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JOAN ROBINSON

FILOSOFIA ECONÔMICA

Tradução: Sérgio Tolipan


Diploma de Estudos Superiores Especializados em Economia pela Universidade de Paris I
ZAHAR EDITORES
RIO DE JANEIRO 1979
Tradução da primeira edição inglesa, publicada em 1962
Por C. A. Watts & Co. Ltd., Londres, Inglaterra

ÍNDICE

I. METAFÍSICA, MORAL E CIÊNCIA, 7


II. OS CLÁSSICOS: VALOR, 27
III. OS NEOCLÁSSICOS: UTILIDADE, 43
IV. A REVOLUÇÃO KEYNESIANA, 63
V. DESENVOLVIMENTO E
SUBDESENVOLVIMENTO, 83
VI. QUAIS SÃO AS REGRAS DO JOGO, 103

I
METAFÍSICA, MORAL E CIÊNCIA
[7]
Uma das razões que fazem com que a vida moderna seja tão intranqüila é que crescemos
duvidando de coisas que sempre foram consideradas verdadeiras. Antigamente as pessoas
acreditavam no que acreditavam porque achavam que era verdade, ou porque era isso que todos os
bem-pensantes pensavam. Mas desde que Freud nos expôs nossa propensão à racionalização e Marx
nos mostrou como nossas idéias se originam de ideologias, começamos a nos perguntar: Por que
acredito no que acredito? O fato de nos colocarmos esse tipo de pergunta envolve a crença de que
deve haver uma resposta a ser encontrada. Mas mesmo que conseguíssemos respondê-la a um nível
determinado restaria outra sem resposta: Por que acredito no que acredito que me faz acreditar
nisso? Dessa forma permanecemos numa obscuridade total. A verdade não é mais verdadeira. O
mal já não é mais mau. “Tudo depende do que se quer dizer.” Mas isso torna a vida insuportável – é
preciso encontrar uma saída.
“Para a frente ou para trás, o caminho é sempre longo. Para dentro ou para fora, o caminho é
sempre estreito”. “Quem é você?” “Eu mesmo. Poderia você dizer o mesmo?” “O que é você?” “O
Grande Boyg. . . Vá girando, vá girando.”1
Precisamos andar sempre girando para encontrar as raízes de nossas próprias crenças. Na
massa geral de noções e sentimentos que constituem uma ideologia, a parte diretamente ligada à
vida econômica ocupa um grande espaço, e a própria Economia (isto é, a matéria que é ensinada nas
universidades e classes noturnas e versada em brilhantes artigos) tem sido sempre, em parte, um
veículo para a ideologia dominante em cada período, assim como, em parte, um método de
investigação científica.
[8]
1
Como podemos distinguir ideologia de ciência?
Antes de mais nada, precisamos definir o que queremos dizer por definições. É importante
que se evite confundir definições lógicas com categorias históricas naturais. Um ponto é definido
como aquilo que tem posição, mas não tem grandeza. Evidentemente, ninguém nunca observou um
ponto. Trata-se de uma abstração lógica. Mas como definir um elefante? Acertou aquele que disse:
– não posso definir um elefante, mas reconheço um quando vejo.
Uma ideologia se parece muito mais com um elefante do que com um ponto. É algo que
existe, que podemos descrever, discutir e questionar a respeito. Para resolver divergências, não
adianta apelar para uma definição lógica; precisamos não de definições, e sim de critérios. O caso
do elefante é bastante claro, mas tomemos outro exemplo – aqueles cisnes de que os lógicos tanto
gostam. Se a palavra “cisne” é utilizada para descrever um pássaro que tem, entre outras
características, a de parecer branco, então os pássaros negros da Austrália têm que ser chamados por
outro nome; mas se os critérios para ser cisne são anatômicos, sem menção de cor, então os cisnes
negros e brancos estão na mesma categoria. Toda a discussão gira em torno de estabelecer
categorias, não de criaturas. Elas são o que são, independentemente do que escolhemos para rotulá-
las.
Quais são, portanto, os critérios de uma proposição ideológica, em oposição aos de uma
proposição científica? Primeiro, que se uma proposição ideológica é tratada de uma forma lógica ou
ela se dissolve em algo desprovido de sentido ou torna-se um círculo vicioso. Tomemos por
exemplo a proposição: Todos os homens são iguais. De um ponto de vista lógico, o que isso
significa? A palavra “igual” se aplica a quantidades. Portanto: todos os homens têm o mesmo peso?
Ou então, todos eles obtêm o mesmo resultado em testes de inteligência? Ou ainda – estendendo um
pouco o sentido de quantidades – eu os acho todos igualmente agradáveis? “Igual”, sem que se diga
em que, não é mais do que um som. Neste caso, a igualdade é apenas em relação à igualdade. Todo
homem é igualmente igual.
A característica essencial de uma proposição metafísica é que ela não é capaz de ser
comprovada. Não podemos dizer de que forma o mundo seria diferente se ele não fosse verdadeiro.
O mundo seria o mesmo com a diferença de que nós estaríamos fazendo barulhos diferentes a seu
respeito. Nunca poderíamos provar que tal proposição está errada, pois ressurgiria de cada
argumento em sua própria circularidade; ela pretende ser verdadeira por definição de seus próprios
termos. Propõe-se dizer algo sobre a vida real, mas não aprendemos nada com ela. Se adotarmos o
[9] critério do Professor Popper2 para as proposições que pertencem ás ciências empíricas, de que
podem ser falsificadas pela evidência, ela não é uma proposição científica.
Contudo, as afirmações metafísicas não são desprovidas de conteúdo. Expressam um ponto
de vista e formulam sentimentos que são um guia para a conduta. O slogan “Todos os homens são
1
Ibsen, Peer Gynt, Ato II, Cena 7.
2
Ver The Logic of Scientific Discovery.
iguais” expressa um protesto contra os privilégios oriundos do nascimento. Numa sociedade
igualitária, ninguém pensaria em dizer tal coisa. Exprime um padrão moral para a vida privada –
que é errado ser arrogante no que respeita à classe e à raça; e um programa para a vida política –
criar uma sociedade onde todos tenham os mesmos direitos, negar-se a aceitar um estado onde
alguns são mais iguais do que outros.
As proposições metafísicas também fornecem um quadro do qual se pode formular
hipóteses. Não pertencem ao domínio da ciência, embora lhe sejam necessárias. Sem elas, não
saberíamos o que é que queremos saber. Talvez a situação seja diferente com relação às Ciências
Humanas, mas no que toca à investigação sobre problemas sociais e psicológicos a metafísica
sempre desempenhou um papel importante, talvez indispensável.
Tomemos nosso exemplo – o slogan “Todos os homens são iguais” fornece um programa de
pesquisa. Podemos averiguar se a classe ou a cor está correlacionada com a distribuição estatística
da capacidade inata. Não é uma tarefa fácil, porque a ideologia está profundamente impregnada do
material com que vamos lidar. O que é capacidade? Como podemos estabelecer medidas que
separem o que é inato do que é devido ao ambiente? Teremos que lutar muito para eliminar a
ideologia da resposta, mas o fato é que sem a ideologia nunca teríamos nos colocado a questão.
2
A ideologia, podendo ou não ser eliminada do universo de pensamento das Ciências Sociais, é
certamente indispensável no mundo da ação na vida social. Uma sociedade não pode existir sem
que seus membros tenham sentimentos comuns sobre o que é a maneira correta de conduzir seus
problemas, e esses sentimentos comuns expressam-se em ideologia.
Do ponto de vista da evolução, parece plausível dizer que a ideologia é um substituto para o
instinto. Os animais parecem saber o que fazer; nós precisamos ser ensinados. Como o padrão de
comportamento não é transmitido nos genes, ele é altamente maleável e aparece de diversas formas
nas diferentes sociedades; mas alguns padrões de moralidade são necessários para todo animal
social.
[10] A necessidade biológica da moralidade surge porque, para que as espécies sobrevivam,
cada animal deve ter, por um lado, uma dose de egoísmo – um forte impulso para conseguir
alimento para si mesmo e defender seus meios de sobrevivência; e também – estendendo o egoísmo
do indivíduo à família – de lutar pelos interesses da companheira e dos filhos. Por outro lado, a vida
social é impossível sem que a busca pela defesa dos interesses próprios seja mitigada pelo respeito e
compaixão pelos outros. Uma sociedade onde só existisse o egoísmo se destruiria em pedaços; um
indivíduo perfeitamente altruísta logo morreria de fome. Há um conflito entre tendências contrárias,
cada uma das quais é necessária à vida, e deve haver uma série de regras para conciliar essas
tendências. Além disso, deve haver algum mecanismo que faça com que o indivíduo respeite as
regras quando elas conflitam com seus interesses imediatos.
Para Adam Smith a moralidade se origina de sentimentos de compaixão:
Por mais egoísta que se suponha que é o homem, há evidentemente alguns princípios em sua natureza que
fazem com que se interesse pela sorte dos outros, e que tornam necessária para si mesmo a felicidade
alheia, embora nada lhe advenha disso, a não ser o prazer de ver os outros felizes. É dessa espécie a
piedade ou compaixão, a emoção que sentimos com a miséria dos outros, tanto quando a vemos como
quando somos levados a concebê-la de uma forma bastante real. Que constantemente derivamos a nossa
tristeza da tristeza dos outros, é tão óbvio que não precisamos exemplos para prová-lo; pois esse
sentimento, tal como todas as outras paixões originais da natureza humana, não está de forma alguma ao
alcance apenas dos virtuosos e humanitários, embora eles possam talvez senti-lo com uma sensibilidade
mais apurada. O mais infame dos homens, o mais empedernido violador das leis da sociedade, não é
inteiramente destituído dele.3
Isso é verdade até certo ponto, mas não cobre todo o terreno. Quando se chega a um
conflito, vou me salvar às suas custas – a compaixão não será suficiente para me fazer parar. A
3
The Theory of Moral Sentiments, vol. I, pp. 1-2.
emoção altruísta é bastante forte para levar ao auto-sacrifício da mãe em defesa dos filhos; é
bastante inverossímil em qualquer outro contexto.
Como os impulsos egoístas são mais fortes do que os altruístas, as exigências dos outros
precisam ser impostas a nós. O mecanismo pelo qual são impostas é o senso moral ou a consciência
individual. Para tomarmos um exemplo da esfera econômica, consideremos o respeito pela
propriedade dos outros. O roubo em si não é muito grave na categoria das perversidades. Não
sentimos a mesma repugnância natural por ele como sentimos pela crueldade ou a mesquinhez,
exceto quanto assume a forma de crueldade ou mesquinhez – o rico roubando o pobre. Quando se
dá na outra direção, [11] até simpatizamos com ele. Quando lemos que um salteador ou bandido que
estava se fazendo de Robin Hood foi finalmente capturado, nossa simpatia não está totalmente do
lado da polícia. Mas a falta de honestidade é um grande inconveniente para a sociedade. É uma
fonte de despesas e é bastante cansativa – tanto para as ladrões quanto para qualquer outra pessoa;
sem honra entre os ladrões até o roubo seria impraticável.
Com a ausência de respeito pela propriedade teria sido praticamente impossível se atingir
um padrão razoável de vida. Nem o mais simples investimento – lavrar o campo para a próxima
safra – valeria a pena numa escala superior ao que um homem poderia guardar no tempo da
colheita. Impor o medo da punição pela força funciona até certo ponto, mas é caro, ineficiente e
vulnerável ao contra-ataque. A honestidade é muito mais barata. Mas, observe-se, é a honestidade
das outras pessoas que é necessária para o meu conforto. Se todos fossem honestos, menos eu, eu
estaria numa excelente posição. A necessidade de cada um ser o objeto do bem de todos dá origem
à necessidade da moralidade. Como diz o Dr. Johnson:
A felicidade da sociedade depende da virtude. Em Esparta o roubo era permitido pelo consenso geral;
logo, o roubo não era lá um crime, mas, em conseqüência, não havia segurança; e que vida eles tinham
quando não havia segurança. Sem a verdade, haverá a dissolução da sociedade. Assim como está, há tão
pouca verdade que estamos sempre temerosos de acreditar nos nossos próprios ouvidos; mas como
seríamos se a falsidade fosse multiplicada por dez?4
Exatamente porque o roubo não desperta nenhuma forte repugnância natural, o respeito pela
propriedade dos outros deve ser ensinado. Essa é uma necessidade técnica, para tornar a vida social
possível. Tomemos como exemplo as gralhas. Elas fazem seus ninhos juntos, socialmente. A cada
nova primavera os ninhos precisam ser restaurados ou reconstruídos. O instinto, ou o que quer que
seja que governa o comportamento, leva as gralhas a sair e quebrar varetas que serão transformadas
em material de construção. Evidentemente, elas têm uma certa propensão natural para trabalhar
eficientemente – para pegar as varetas melhores e mais fáceis – ou a tarefa nunca seria realizada.
Mas obviamente as varetas melhores e mais fáceis são aquelas do ninho ao lado. O que as impede
de roubarem-se umas às outras? Se cada uma dependesse das outras para conseguir varetas, a
sociedade se destruiria. Não é que elas tenham uma implicância inata por varetas de segunda mão,
pois elas se utilizam livremente de ninhos abandonados como material de construção. Alguns
observadores afirmam que o roubo ocasionalmente ocorre e que quando um ladrão é apanhado as
[12] outras gralhas se unem contra ele e o expulsam do local. 5 Não nos cabe perguntar se o ladrão
tem um sentimento de culpa e os outros um sentimento de justa indignação (embora seja bastante
possível que se passe assim, pois parece que a vida emocional dos pássaros é bastante parecida com
a nossa). O problema não está relacionado com os sentimentos subjetivos das gralhas. O caso é que
a mesma situação técnica – vida social e propriedade individual – leva a um mesmo resultado: um
código moral garantido por sanções.
Se as gralhas têm ou não uma consciência, sabemos que os seres humanos têm. Ao invés do
instinto que cria um padrão estabelecido, homens e mulheres têm uma consciência que pode
assumir as mais diversas características e dessa forma permitir o florescimento da mais variada
gama de padrões de sociedades. A propensão a desenvolver uma consciência está na estrutura de
4
Boswell, The Life of Dr. Johnson (orgs. Allen e Unwin), vol. II, p. 298.
5
O Sr. G. K. Yeats duvida disso, mas atribui essa união a um fenômeno ainda mais impressionante, os vizinhos se
unindo contra um adúltero. The Life of the Rook, PP. 31 e 38.
um cérebro humano sadio. É muito semelhante à propensão a aprender a falar. O poder de dar
significados a sons e utilizá-los no contexto apropriado é latente no nascimento; desenvolve-se
muito rapidamente nos primeiros anos de vida e continua, com menor facilidade, após. Varia de um
indivíduo para outro e vez por outra é inexistente. Tem uma localização peculiar no cérebro e pode-
se perder com uma lesão. Às vezes, após uma lesão, é possível se adestrar o cérebro (que contém
alguns sobressalentes) e readquirir o poder de reconhecer palavras que se havia perdido.
Evidentemente, a propensão a aprender uma língua é praticamente igual em todas as raças, mas que
língua é aprendida depende da sociedade particular em que a criança cresce.
Tudo isso é verdadeiro com referência ao senso moral, ou propensão a desenvolver uma
consciência. Isso ocorre gradualmente (um ano ou dois após a fala); alguns indivíduos anormais não
o possuem; outros o perdem através de lesões cerebrais, podendo, no entanto, recuperar-se através
de treinamentos. O conteúdo de uma consciência, como a língua particular que é aprendida,
depende da sociedade em que o indivíduo cresce.
A algumas pessoas não agrada a idéia de que a moralidade tem uma base física e surge de
necessidades biológicas, como se isso degradasse a nobreza da natureza humana ao nível dos
animais. Isso parece pouco razoável. Todos concordamos que o amor maternal é belo e admirável.
(Mesmo Freud, que ficou tão chocado com suas descobertas sobre a natureza humana, diz que o
amor de uma mulher pelo filho é a mais pura das emoções 6) [13] No entanto, ninguém pode negar
que o amor materno tem uma função biológica e que nós o partilhamos com os animais. (Aqui a
exceção comprova a regra – entre os peixes-espinho, parece que o pai é que toma conta dos filhos e
lhes dedica a mais total devoção, enquanto a mãe, tendo desempenhado seu papel puramente físico
na procriação, vai-se embora, como o macho em outras espécies, desfrutar uma vida inteiramente
livre. A natureza, como as sociedades humanas, encontra uma grande variedade de soluções para o
mesmo problema técnico.)
O mecanismo biológico para o crescimento da consciência parece que opera através de
nosso equipamento emocional.
A natureza, quando formou o homem para a sociedade, dotou-o com um desejo original de agradar, e uma
aversão original a ofender seus próximos. Ela o ensinou a sentir prazer em seus julgamentos favoráveis e
dor nos desfavoráveis. Ela tornou sua aprovação mais lisonjeira e mais agradável para ele, em seu próprio
bem; e sua desaprovação mais humilhante e mais ofensiva.7
A consciência é moldada numa criança pela aprendizagem do que é aprovado ou
desaprovado pelo resto da família, mas ela trabalha interiormente e se transforma num desejo de ser
aprovado por aquilo que Adam Smith chamou de “o homem dentro do peito”.8 Uma vergonha
secreta é sem dúvida alguma menos dolorosa do que quando descoberta, mas é, mesmo assim,
dolorosa.
O sentimento de vergonha é natural e universal, mas aquilo que causa vergonha depende das
convenções. É como o regulamento de estrada. Tem que haver um, mas em alguns países é
“Mantenha-se à esquerda” e em outros “Mantenha-se à direita”.
Na maioria das sociedades, até tempos recentes, a moralidade era ministrada através da
religião. Não é de modo algum fácil moldar os indivíduos de uma sociedade em um padrão
harmonioso; a religião é um modo bastante útil de fortalecer o desejo do indivíduo de fazer o que
acha direito e de impor uma visão particular do que é direito. Ela funciona, em parte, baseada em
uma moralidade profunda e em um apelo à prudência ou interesse pessoal iluminado – os maus
serão punidos; em parte, ensinando o indivíduo a projetar seus medos de desaprovação em um ser
invisível de forma que a vergonha privada esteja exposta a um olho sempre vigilante; e, em parte,
dando força e propósito ao sentimento de benevolência de que “mesmo o mais infame dos homens...
não está de forma alguma isento dele”.
6
The Introductory Lectures, traduzidas para o inglês por W. S. H. Sprott, pp. 171-2.
7
Adam Smith, Moral Sentiments, vol. I, p.276.
8
Ibid, p. 304.
[14] Muitas pessoas a quem a moralidade foi ensinada pela religião acreditam realmente que
não há nenhum motivo para que se queira fazer o que é direito, a não ser para evitar o ódio de Deus;
Si Dieu n 'existe pas, tout est permis. Se não há Deus, nada é proibido. Esta é uma das coisas mais
bobas que já se disse. Se eu não acredito em Deus, isso não significa que posso dirigir pela direita
da rua em Londres e pela esquerda em Paris. Não significa que os ladrões são menos prejudiciais
aos homens honestos ou que a sociedade infestada de ladrões não esteja envolvida com grandes
perdas para manter tal praga sob controle. Se a consciência de um homem se desintegra quando ele
perde a fé em Deus, é porque ela não deve ter sido corretamente estabelecida quando ele era jovem.
Ele está ainda no estágio infantil do desejo de ser aprovado pelos outros e ainda não cresceu até o
sentido do certo e do errado.
Um dos argumentos preferidos atualmente, pelos adeptos da religião organizada, é que ela é
necessária para a boa conduta e a harmonia social. A decadência da religião é responsável pela onda
de crimes, rompimento de lares, a discórdia e o rancor que atormentam o mundo moderno. Uma
volta às igrejas traria o retorno à boa ordem. Aqueles que argumentam nesse sentido estão
inconscientemente apoiando a afirmação citada anteriormente. A moralidade é desejada e respeitada
pelo que ela própria vale; a religião nos está sendo recomendada porque garante a moralidade, e não
a moralidade porque ela se deriva da religião.
Aqueles que não possuem crença religiosa, por outro lado, estão constantemente inclinados
a tentar derivar o sentimento moral da razão. O argumento mais comum é que cada indivíduo deve
fazer o que é direito porque, se ele não fizer assim, os outros também não farão. Isso se baseia numa
confusão. É a confusão dos cartazes do tempo da guerra: “Tudo depende de você”. Evidentemente,
as autoridades queriam que cada um de nós agisse como se acreditasse nisso. Mas não era verdade.
Nenhum indivíduo, enquanto indivíduo, tem um peso tão apreciável. Decerto, se seu exemplo tem
uma influência, tem o peso que sua influência traz, mas o cartaz não se dirigia a pessoas influentes.
Supunha-se dirigido a cada um dos homens da rua.
Tomemos o exemplo da votação. Num pequeno comitê é possível que um voto seja
decisivo: portanto, só me é razoável ir a uma assembléia na qual será tomada uma decisão sobre a
qual eu me preocupo. Mas suponhamos que eu viva num distrito eleitoral seguro para um partido;
por que devo eu votar numa eleição geral? Um voto a mais ou a menos não faz nenhuma diferença.
“Ah, se todos pensassem da mesma forma, seria o colapso da democracia.” Sim, mas eu não sou
todos – sou apenas eu. Os outros votarão sem mim. “Que maneira chocante de falar!” Sim, esse é o
problema. É evidentemente correto que todos devam sentir que é seu dever [15] votar, mas ninguém
pode ser convencido pela razão. Deve-se pensar que é certo porque é certo.
Ou, retornando ao exemplo das gralhas: se uma roubasse um galho do ninho da outra, só
uma vez, o sistema não se destruiria. Se ela fosse apanhada e não atacada, os padrões declinariam;
mas se ela não fosse apanhada? Que mal faria? Não há nenhuma razão para que isso não seja feito
exceto o fato de que isso não se faz.
Sistemas mais sofisticados tentam derivar a moralidade da tendência da direção da evolução.
Mas isso não é convincente. Se eu disser: “Deixe a evolução cuidar de si mesma; farei como
quero”, como você poderá me responder, a não ser apelando para o meu senso de dever? A
evolução, certamente, responde pelo fato de eu ter um senso de dever; mas se a evolução tivesse me
dotado não só de um senso de dever, mas também do conhecimento do que é o meu dever, não
haveria necessidade de se criar uma teoria sobre a moralidade.
A conclusão dessa discussão é que os sentimentos morais não decorrem nem da teologia
nem da razão. Constituem uma parte separada de nosso equipamento, como nossa capacidade para
aprender a falar.
Se concordamos com isso, a questão do que é o conteúdo de nossos sentimentos éticos fica
em aberto. Todos os sistemas filosóficos da Ética são tentativas de descrever racionalmente o
sentimento ético; não do fato de que temos tais sentimentos, mas do tipo de código de
comportamento que se baseia neles.
Keynes se dedicou ao estudo da teoria da probabilidade influenciado pelo sistema ético de
Moore, que ensinava “a obrigação de agir visando a produção, por conexão causal, do máximo
provável de bem final através de todo o processo de passagem das épocas futuras”. 9 Ser capaz de
calcular probabilidades era uma questão da maior importância. Mas, mesmo que Keynes tivesse
elaborado uma teoria correta da probabilidade, não teria fornecido um manual bastante útil para se
conduzir a vida cotidiana.
Outros sistemas racionais de Ética podem ser menos fantasiosos, mas não serão melhores. O
Professor Braithwaite mostra a diferença entre um sistema de leis científicas e um sistema de
princípios éticos:
Há uma diferença lógica entre as duas hierarquias: ao ascendermos na hierarquia científica, as
proposições vão se tornando cada vez mais fortes de modo que vamos tendo mais o que dizer sobre elas;
ao ascendermos na hierarquia dos fins, as proposições vão se tornando cada vez mais fracas, de modo que
dizemos cada vez menos. Isso decorre do fato de que enquanto uma lei científica de nível inferior é uma
conseqüência lógica de sua explicação de nível superior, a busca de um mais vasto fim B é,
contrariamente, a conseqüência lógica da busca de um fim mais estreito A[16] (junto com o fato de que A
está incluído em B, isto é, de que todas as buscas de A são também buscas de B). Portanto, na medida em
que ascendemos na hierarquia, os fins ganham um maior conteúdo e perdem todo contorno definido. Isso
é responsável pelo enigmatismo peculiar que muitos dentre nós encontram em conceitos que os grandes
filósofos morais propuseram como fins últimos – a eudaimonia de Aristóteles ou a “felicidade” de Mill,
por exemplo, é fácil fornecer casos positivos ou negativos desses conceitos, mas eles próprios parecem
impenetráveis – tão impenetráveis quanto a indefinível “bondade” dos Principia Ethica. A razão parece
ser que, tentando justificar bens menores, eles necessitam ser tão compreensíveis que perdem todo
conteúdo cognitivo.10
A razão não vai ajudar. O sistema ético implantado em cada um de nós por nossa educação
(mesmo um rebelde é influenciado por aquilo contra o que se rebela) não decorre de quaisquer
princípios racionais; aqueles que nos transmitiram esses princípios raramente eram capazes de dar
alguma explicação racional para isso, ou mesmo de formulá-la explicitamente. Eles nos passaram o
que a sociedade lhes ensinou, da mesma forma como nos transmitiram a língua que aprenderam a
falar.
O conteúdo dos códigos éticos, comparando uma sociedade com outra, não é talvez tão
variado quanto suas línguas, mas certamente tem uma grande margem de variação.
A moralidade de Hamlet é normalmente considerada como uma confusão entre idéias cristãs
e pagas; também pode ser considerada como a concepção imaginativa de Shakespeare apreendendo
o ponto de vista de um povo recentemente convertido que assumia de forma quase literal os
assuntos relacionados com o Céu e o Inferno, mas que retinha sua própria ética do dever de honra
da vingança. Uma vingança adequada exigia que o adversário fosse morto de uma forma que
garantisse sua ida para o Inferno. A teologia, talvez, seja um pouco ingênua, mas o sistema ético é
bastante honesto, ainda não contaminado pelo sentimento cristão.
Para tomarmos um exemplo mais estreitamente relacionado com o comportamento
econômico, consideremos os tugues. Eles constituíam uma seita, recrutados entre os muçulmanos e
os hindus, cuja devoção religiosa, dedicada à deusa Cali, consistia em estrangular os viajantes de
uma determinada forma ritual e em dividir os seus bens entre eles segundo uma determinada
fórmula. Seu código proibia que assassinassem mulheres, e quando certa vez um grupo, temendo
deixar uma testemunha, desafiou a regra, foi abandonado pela deusa Cali e facilmente capturado
pela polícia anglo-indiana.
[17] Todo sistema econômico necessita de um conjunto de regras, uma ideologia que o
justifique e uma consciência do indivíduo que faça com que ele o leve adiante.
9
Keynes, Two Memoirs, p.97.
10
R.B. Braithwaite, “Moral Principles and Inductive Policies”, Proceedings of the British Academy, 1950, p. 67.
Esses exemplos nos fazem ver que variedade de formas a consciência humana pode assumir.
Também demonstram outro ponto – que fazemos julgamentos morais sobre os sistemas morais. O
Hamlet talvez seja um caso discutível, mas concordamos com relação aos tugues. Podemos admirar
a disciplina, a determinação e a piedade de um tugue como indivíduo, mas não concordamos com o
tuguismo como sistema econômico. Talvez, caro leitor, você vá dizer que não o desaprova, que sua
atitude diante da sociedade é moralmente neutra, e que qualquer sistema ético é apenas mais um
sistema ético. Mas isso seria realmente verdade? Você está seguro de que realmente aprova o
sistema ético dos tugues?
Uma pessoa simplória acredita que sabe a diferença entre o certo e o errado – que a forma
particular que sua própria consciência assumiu é a única possível (sobretudo se sua ideologia
chegou a si sob a forma de crença religiosa). As pessoas sofisticadas reconhecem a grande
variedade de sistemas éticos e assumem uma visão relativista das questões morais. Mas assim
mesmo, sob o relativismo, acreditamos em certos absolutos. Existem alguns sentimentos éticos
básicos que nós todos compartilhamos. Preferimos a bondade à crueldade, a harmonia ao conflito;
admiramos a coragem e respeitamos a justiça. Os que nascem sem esses sentimentos tratamos como
psicopatas; uma sociedade que treina seus membros para esmagá-los nós consideramos como um
processo de crescimento mórbido. Não adianta tentar pretender que podemos pensar ou falar sobre
questões humanas sem fazer intervir valores éticos.
Talvez Gunnar Myrdal seja muito radical quando diz (falando como economista) que
“nossos próprios conceitos estão carregados de valores” e “não podem ser definidos a não ser em
termos de avaliação política”.11 É bem verdade que a terminologia econômica é tendenciosa. Maior
está próximo de melhor; igual de eqüitativo; bens soa como bem; desequilíbrio lembra desconforto;
exploração, mau; e lucros subnormais, ainda pior. De todo modo, se tomarmos um determinado
sistema econômico como dado, podemos descrever as características técnicas de seu modo
operacional de uma maneira objetiva. Mas não é possível descrever um sistema sem a penetração de
julgamentos morais. Porque olhar de fora um sistema implica que ele não é o único sistema
possível; ao descrevê-lo estamos comparando-o (aberta ou tacitamente) com outros sistemas atuais
ou imaginados. As diferenças implicam opções, e opções implicam julgamentos. Não podemos
fugir de fazer julgamentos e os julgamentos que fazemos decorrem dos [18] preconceitos éticos que
se incorporaram à nossa visão de mundo e que estão de certo modo impressos em nosso cérebro.
Não podemos fugir de nossos próprios hábitos de pensamento. O Boyg bloqueia o caminho. Mas
podemos dar a volta. Podemos ver aquilo a que damos valor, e tentar saber por quê.
Não parece que a religião alguma vez tenha tido algo a ver com nossa própria ideologia
econômica. A estória de um pároco do século XVIII que, quando lia no Evangelho – “Quão difícil
será para os ricos entrarem no reino de Deus” – foi surpreendido murmurando “Claro que isso não
passa de um disparate”, pode não ser verdade, mas é certamente bastante viável.
O conflito entre a piedade e a Economia foi satirizado na Fábula das Abelhas, que, segundo
o Dr. Johnson, todo jovem tinha em suas prateleiras devido à incorreta crença de que era um livro
maldito. (Adam Smith classificou-o entre os Sistemas Licenciosos.) As abelhas certo dia foram
atacadas de virtude e começaram a levar uma vida sóbria, abstendo-se da pompa e da vaidade, e
adotando modos de vida modestos e frugais. O resultado foi um fracasso total.
Em seu próspero estado,
A Raiz do Mal, a Avareza,
Esse maldito, cruel, pernicioso Vício
Era Escravo da Prodigalidade,
Esse nobre Pecado; enquanto o Luxo
Empregava um Milhão de Pobres,
E o odioso Orgulho, um outro Milhão:
A própria Inveja e a Vaidade
Eram ministros da Indústria;
11
An International Economy, p. 337.
As suas queridas Extravagância e Futilidade,
No Comer, no Mobiliar e no Vestir,
Esse estranho Vício ridículo, tornou-se
A verdadeira Roda que fazia girar o Comércio.12
Depois de se tornarem virtuosas,
Tanto decaíram o Orgulho e o Luxo
Que, pouco a pouco, deixaram os Mares.
Não mais Mercadores, mas Companhias
Removeram Fábricas inteiras.
Todas as Artes e Ofícios jaziam abandonados;
Alegre, a Ruína da Indústria
Fazia-as admirar seus suprimentos caseiros,
E não procurou nem desejou nada mais.13
[19] A interpretação de Mandeville feita por Keynes em termos da teoria da demanda efetiva
foi de certa forma forçada.14 Que o luxo do rico dê emprego ao pobre é algo bastante óbvio. Em um
país subdesenvolvido, como era a Inglaterra de Mandeville, há uma abundante reserva de trabalho
na agricultura para fornecer criados e artesãos que podem retirar seu sustento dos dispêndios com o
luxo. Era um tema favorito do Dr. Johnson (que concordava integralmente com o pensamento
econômico de Mandeville, embora não aceitasse sua “moralidade monástica”).
Não se pode gastar dinheiro com o luxo sem que se faça bem aos pobres. Não, faz-se mais bem aos
pobres gastando-o com o luxo do que dando-lhes o dinheiro; pois ao gastá-lo com o luxo a pessoa os faz
exercer a indústria, enquanto que dando-lhes o dinheiro você os deixa ociosas. Admito, sem dúvida, que
há maior virtude em dá-lo imediatamente como caridade do que em gastá-lo com o luxo; embora também
possa haver vaidade nisso.15
e
Muitas coisas que são falsas são transmitidas de livro para livro, e ganham crédito no mundo. Uma dessas
é a grita contra o mal do luxo. Mas a verdade é que o luxo produz muito. Veja-se o luxo das construções
em Londres. Não produz vantagens reais no conforto e na elegância das acomodações, e tudo isso fruto
do empenho da indústria? O povo lhe dirá, com ar melancólico, que muitos construtores estão na cadeia.
É óbvio que estão na cadeia não porque tenham construído, mas porque os aluguéis não estão baixando.
Um homem dá meio guinéu por um prato de ervilhas. Quanto trabalho agrícola proporciona isso?
Quantos trabalhadores são mantidos no emprego pela concorrência por ter essas coisas cedo nos
mercados? Você os ouvirá dizer, com gravidade: “Por que esse meio guinéu, que foi gasto com o luxo,
não foi dado aos pobres? A quantos não poderia ter proporcionado uma boa refeição?” Diabos! – esse
dinheiro não foi para os pobres industriosos, que é preferível apoiar do que os pobres ociosos? Você está
muito mais seguro de estar fazendo o bem quando paga o dinheiro àqueles que trabalham, como uma
recompensa pelo seu trabalho, do que quando dá o dinheiro simplesmente como caridade. Imagine se
fosse revivido o antigo luxo de um prato feito de miolos de pavão; quantas carcaças seriam deixadas para
os pobres a um preço barato? E quanto à algazarra que é feita com relação a pessoas que se arruínam pela
extravagância, não é um problema da nação se alguns indivíduos sofrem. Quando tanto esforço produtivo
é a conseqüência do luxo, a nação não tem que se preocupar se existem devedores na cadeia; não, não se
preocupariam mesmo que os credores também lá estivessem.16
O objetivo de Mandeville não era criar essa visão da economia, mas, tomando-a por certa,
usá-la para mostrar o duplo padrão de um povo que [20] se pretendia cristão e que valorizava a
riqueza e a glória nacional acima de tudo.
No apêndice em prosa da Fábula, ele explica:
Quando eu digo que as sociedades não podem chegar à riqueza e ao poder e ao cume da glória terrestre
sem vícios, não acho que ao dizer isso esteja acusando os homens de serem viciosos, do mesmo modo
como não os acuso de serem agressivos ou cobiçosos quando afirmo que a profissão de advogado não

12
Mandeville, The Fable of the Bees (edição de Kaye), vol. I, p.25.
13
Ibid., p. 34.
14
General Theory, cap. 23, vii.
15
Boswell, The Life of Dr. Johnson (edição Allen & Unwin) vol. II, p. 298.
16
Ibid., pp. 133-4.
poderia ser mantida em tal proporção e esplendor se não houvesse a abundância de pessoas tão egoístas e
litigiosas.17
E então ele imagina um Epicuro levantando objeções.
Ele citará o meu Lorde Shaftesbury contra mim, e dir-me-á que as pessoas podem ser virtuosas e
sociáveis sem abnegação; que é uma afronta à virtude torná-la inacessível, que faço dela um bicho-papão
para amedrontar os homens como se ela fosse algo impraticável; mas que no que lhe toca ele pode rogar a
Deus, e ao mesmo tempo desfrutar suas criaturas em boa consciência.
Ele me perguntará, finalmente, se a legislatura, a sabedoria da própria nação, enquanto tenta desencorajar
ao máximo possível a profanação e a imoralidade, e promover a glória de Deus, não professa
abertamente, ao mesmo tempo, não ter nenhuma outra intenção senão o conforto e o bem-estar do
cidadão, a riqueza, a força, a honra e tudo o mais que for considerado o real interesse do país; e, ainda
mais, se o mais devoto e mais sábio de nossos prelados, tão preocupados por nossa conversão, quando
rogam a Deus para desviá-los, assim como a nossos corações, do mundo e de todos os desejos carnais,
não pedem em voz alta, na mesma oração, para que Ele inunde de bênçãos e felicidades temporais o reino
ao qual pertencem...
Quanto a estas duas últimas questões, reconheço que são bastante embaraçosas: sou obrigado a responder
pela afirmativa ao que o Epicuro me perguntou; e a não ser que eu ponha em dúvida (que Deus me livre!)
a sinceridade dos reis, bispos e de todo o Poder Legislativo, a objeção contra mim permanecerá válida:
tudo o que posso dizer em minha defesa é que na seqüência dos fatos há um mistério que está além da
compreensão humana.18
Adam Smith não concordou com isso. Sua resposta parece fraca e vulgar diante da sátira
mordaz de Mandeville.
A grande falácia do livro do Dr. Mandeville é ter representado todas as paixões como totalmente viciosas,
independentemente de seu grau ou direção. É por isso que ele trata tudo o que tem referência com o que é,
ou deveria ser, o sentimento dos outros como se fosse pura vaidade; e é através desse sofisma que ele
estabelece sua conclusão preferida, que os vícios privados são benefícios públicos. Se o amor da
opulência, o gosto pelas artes refinadas e melhorias da vida humana, por tudo o que é agradável no vestir,
no mobiliário, no equipamento, pela arquitetura, estatuária, pintura e [21] música, for visto como luxo,
sensualidade e ostentação, mesmo entre aqueles cuja situação permite, sem nenhuma inconveniência, a
indulgência dessas paixões, então é certo que o luxo, a sensualidade e a ostentação são benefícios
públicos; pois sem as qualidades, as quais ele considera apropriado atribuir esses nomes infames, as artes
do refinamento nunca poderiam ser encorajadas, e deveriam desaparecer por falta de aplicação. Algumas
doutrinas populares ascéticas, muito comuns antes de seu tempo, que colocavam a virtude na base da
extirpação e aniquilamento de todas as nossas paixões, foram o fundamento real desse sistema licencioso.
Foi fácil para o Dr. Mandeville provar, primeiro, que essa grande conquista nunca ocorreu realmente
entre os homens; e, segundo, que, se ela devesse existir universalmente, seria pernicioso para a sociedade,
pois poria fim a toda a indústria e o comércio, e de certa forma a todas as atividades da vida humana. Pela
primeira dessas proposições ele parece provar que não existe virtude real e que aquilo que se pretende ser
isso não passa de uma fraude e de uma imposição à humanidade; e, pela segunda, que os vícios privados
eram benefícios públicos, pois sem eles nenhuma sociedade poderia prosperar e florescer. 19
Ele admite de qualquer maneira que há algo certo nisso.
Mas por mais destrutivo que esse sistema possa parecer, nunca poderia ter-se imposto a um
número tão grande de pessoas, ou ter ocasionado um alarme tão grande entre aqueles que
simpatizam com princípios superiores, caso não tivesse em alguns aspectos se aproximado da
verdade.20
De fato, nunca foi dada uma resposta a Mandeville. Após mais de duzentos anos, Keynes
continua se preocupando com nossa vesga moralidade.
Na Europa, ou ao menos em algumas partes da Europa – mas não, creio eu, nos Estados
Unidos da América – existe uma reação latente, bastante difundida, contra basear a sociedade da
maneira como fazemos, no fomento, no encorajamento e na proteção das motivações monetárias
17
Op. cit., p. 231 (com ortografia moderna).
18
Ibid.. pp. 234-5.
19
Moral Sentiments, vol. II, pp. 302-3.
20
Loc. cit.
dos indivíduos. A preferência por organizar nossos negócios de forma a apelar o mínimo possível
para as motivações monetárias, ao invés de ao máximo possível, não necessita ser inteiramente a
priori, mas pode ser baseada na comparação de experiências. Diferentes pessoas, segundo sua
opção profissional, vêem as motivações monetárias desempenhando um menor ou maior papel em
suas vidas cotidianas, e os historiadores podem nos falar sobre outras fases da organização social
em que esse tipo de motivação desempenhou um papel ainda menor do que hoje em dia. Muitos
religiosos e filósofos desaprovaram, para não dizermos mais, um tipo de vida principalmente
influenciado por considerações de benefícios monetários pessoais. Por outro lado, a maioria dos
homens de hoje rejeitam as noções ascéticas e não põem em dúvida as vantagens reais da riqueza.
Além disso, parece-lhes óbvio que ninguém pode avançar sem motivações monetárias, e que, à
parte certos abusos reconhecidos, elas cumprem bem o seu papel. No final, o homem médio desvia
sua atenção do problema, e não tem uma idéia clara do que realmente pensa e sente com respeito ao
conjunto desse tema controverso.21
[22] Schumpeter de certa forma afirma a mesma coisa, em um contexto diferente, quando
diz que os homens de negócios não podem dirigir a lealdade de um povo.
Com a maior facilidade e graça, os lordes e cavaleiros se metamorfoseariam em cortesãos,
administradores, diplomatas, políticos e militares de um tipo que não tem nada a ver com aquele do
cavaleiro medieval. E – um fenômeno ainda mais impressionante quando pensamos no assunto –
um resto desse velho prestígio sobrevive ainda hoje em dia, e não apenas com nossas mulheres.
Com os industriais e comerciantes, o contrário é que ocorre. Certamente não há neles
nenhum traço de qualquer encanto místico, que é o que conta no governo dos homens. A bolsa de
valores é um pobre substituto para o Santo Graal. Já vimos que os industriais e comerciantes,
enquanto empresários, também desempenham uma função de liderança. Mas a liderança econômica
desse tipo não se expande rapidamente, como a liderança militar dos senhores medievais, a ponto de
se tornar liderança de nações. Pelo contrário, a razão e o cálculo de custos são absorventes e
confinadores.
Eu havia chamado o burguês de racionalista e não-heróico. Ele só pode usar o racionalismo
e meios não-heróicos para defender sua posição ou fazer uma nação se curvar diante de seu desejo.
Pode impressionar por aquilo que o povo espera de seu desempenho econômico, pode discutir seu
caso, pode prometer pagar dinheiro ou ameaçar guardá-lo, pode alugar os serviços desleais de um
condottiere, de um político ou de um jornalista. Mas isso é tudo e esse tudo tem sido muito
superestimado com relação ao seu valor político. Tampouco suas experiências e hábitos de vida são
do tipo que criam um fascínio pessoal. Um gênio dentro do escritório pode ser, e normalmente é,
fora dele, totalmente incapaz de elaborar uma frase coerente – tanto na sala de visitas quanto na
tribuna.22
É precisamente a busca do lucro que destrói o prestígio do homem de negócios. Embora
possa comprar todas as formas de respeito, a riqueza nunca as encontra de graça.
A tarefa do economista era superar esses sentimentos e justificar os caminhos de Mammon
para o homem. Ninguém gosta de ter uma má consciência. Cinismo puro é um tanto raro. Mesmo os
tugues roubavam e assassinavam pela honra de sua deusa. O trabalho do economista não é nos dizer
o que fazer, mas mostrar como o que estamos fazendo está de acordo com princípios adequados.
A seguir esse tema será ilustrado com referência a uma ou duas das principais idéias dos
economistas a partir de Adam Smith, não de uma forma erudita, traçando o desenvolvimento do
pensamento, nem historicamente, mostrando como as idéias surgem dos problemas de cada época,
mas sobretudo tentando decifrar a misteriosa maneira com que as proposições metafísicas, sem
nenhum conteúdo lógico, podem constituir uma poderosa influência sobre o pensamento e a ação.
21
Essays in Persuasion, p. 320.
22
Capitalism, Socialism and Democracy, pp. 137-8.
[23]
3
A Economia não é apenas um ramo da Teologia. Sempre esteve lutando para escapar ao
sentimento e ganhar o status de ciência. Vimos anteriormente como as proposições metafísicas não
só exprimem sentimentos morais, mas também fornecem hipóteses. Antes de avançarmos com a
discussão, devemos fazer uma pausa para examinar como isso ocorre.
O método científico é outra espécie de elefante – algo que existe e pode ser descrito, mas
não definido. Uma visão corrente sobre a origem das generalizações científicas é que elas se
baseiam na indução a partir de casos observados. Sempre ouvimos falar que as pessoas do
hemisfério setentrional chegaram à generalização: “Todos os cisnes são brancos”, por meio de um
processo de indução – todos os cisnes ate então vistos eram brancos, até que a Austrália foi
descoberta e os cisnes negros vieram perturbar a generalização. Isso não parece se adequar à
experiência. A primeira vez que se vê um cisne, na Inglaterra, nota-se que é branco, que tem um
longo pescoço etc. e aprende-se que se chama cisne. Não há aí nenhuma indução. Mas acontece que
classificamos as espécies pela anatomia e não pela cor. Dizer que todos os cisnes têm pescoços
compridos é um círculo vicioso, porque se essa criatura não tivesse um pescoço comprido não seria
classificada como cisne. Se tivessem sido chamados “pássaros brancos” não haveria sentido em
dizer “pássaros brancos” negros e então os da Austrália teriam outro nome.
Outro enigma que supostamente ilustra a indução é: Por que acreditamos que o Sol vai
nascer amanhã? Para efeitos da vida cotidiana, tomamos isso como certo; não achamos nada sobre o
fato, nem por um lado nem por outro. Mas quando perguntamos seriamente: Acreditamos nisso?, e
por quê?, a resposta certamente não é devida à indução a partir de seu comportamento passado.
Temos uma teoria do movimento dos planetas, que causa o movimento aparente do Sol, e não há
nenhuma razão para esperarmos que o processo seja interrompido até amanhã (embora,
evidentemente, isso possa ocorrer – nunca se sabe). Antes havia uma teoria de que Deus tinha
criado o Sol para iluminar o mundo e o instruiu para que se movimentasse circularmente para que
pudéssemos dormir à noite. E antes disso havia uma teoria segundo a qual Apolo conduzia seu carro
diariamente pelo céu. Antes do aparecimento da ciência, já existiam diversas teorias. O processo
científico, como afirma o Professor Popper, consiste na tentativa de refutar teorias. O corpo da
ciência é constituído, a cada momento determinado, pelas teorias que não foram refutadas.
A grande dificuldade nas Ciências Sociais (se é que podemos chamá-las assim) em aplicar
um método científico é que não se conseguiu chegar a um acordo sobre uma norma de negação de
uma hipótese. Sem a possibilidade da experimentação controlada, temos que nos basear na
interpretação [24] da evidência, e a interpretação envolve um julgamento; não podemos nunca
chegar a uma resposta definitiva. Mas como o assunto está necessariamente impregnado de
sentimentos morais, o julgamento é marcado pelo preconceito.
Aquele que foi convencido contra sua vontade
É ainda da mesma opinião.
A maneira de sair do impasse não é tentar negar todo preconceito e abordar o problema a ser
discutido com um espírito puramente objetivo. Qualquer um que diga: “Acredite-me, não tenho
preconceitos”, ou está enganando a si próprio ou tentando enganar-nos. O Professor Popper critica o
método de discussão que pretende se basear na imparcialidade do cientista social. A objetividade da
ciência surge, não porque o indivíduo é imparcial, mas porque muitos indivíduos estão
continuamente testando a teoria dos outros. “A fim de evitar mal-entendidos, os cientistas tentam
exprimir suas teorias numa forma que permita que sejam testadas, isto é, refutadas (ou então
confirmadas) pela experiência.”23
Acho que o Professor Popper errou ao dizer que as Ciências Naturais não são em nada
melhores que as Ciências Sociais. Têm em comum a fraqueza humana de tentar desenvolver um
23
The Open Society and its Enemies, vol. II, p. 205.
certo chauvinismo a respeito de seu próprio trabalho: “Minha teoria, certa ou errada!” Mas acima
disso, nas Ciências Sociais, primeiro, o assunto tem um conteúdo político e ideológico muito maior,
de tal forma que também envolve outro tipo de lealdade; e, segundo, devido ao fato de que o apelo à
“experiência pública” nunca pode ser decisivo, como é o caso dos cientistas de laboratório que
podem repetir as experiências dos outros sob condições controladas, os cientistas sociais têm
sempre uma brecha por onde escapar: “As conseqüências que se seguiram às causas que analisei
são, concordo, o oposto do que eu havia previsto, mas seriam ainda maiores se essas causas não
houvessem operado.”
Essa necessidade de se basear no julgamento tem mais uma conseqüência. Já foi por vezes
afirmado que os economistas são mais rabugentos e desagradáveis do que os outros cientistas. A
razão é que, quando o julgamento pessoal de um escritor está envolvido numa discussão, a
discordância é insultante.
Adam Smith fez observações sobre os distintos temperamentos dos poetas e dos
matemáticos.
A beleza da poesia é uma coisa de tal delicadeza, que um jovem iniciante raramente pode estar certo de
que a atingiu. Aliás, nada lhe dá maior prazer do que um julgamento favorável de seus amigos ou do
público; e nada o mortifica mais do que [25] o oposto. A primeira estabelece e a segunda abala a boa
opinião que ele está ansioso por ter acerca de sua própria obra.
Os matemáticos, ao contrário, que podem ter a mais perfeita segurança sobre a verdade e a importância de
suas descobertas, são normalmente muito indiferentes à recepção que elas possam ter pelo público.
... (Eles) devido à sua independência com relação ao público, são muito pouco tentados a se organizarem
em facções ou grupos, tanto para garantir sua própria reputação quanto para denegrir a dos seus rivais.
São quase sempre homens da mais afável simplicidade em seus hábitos, que vivem harmoniosamente
entre si, que simpatizam com a reputação do outro, que não entram em intrigas visando assegurar o
aplauso do público, mas que sentem prazer quando seus trabalhos são aprovados, não ficando nem muito
vexados nem muito irritados quando seus trabalhos são rejeitados.
Não é sempre assim com os poetas, ou com aqueles que se dedicam à literatura. Estão sempre prontos a se
dividir em facções literárias; cada grupo sendo reconhecidamente, e quase sempre secretamente, o
inimigo mortal da reputação de qualquer outro, e se utilizam de todas as mesquinhas artes da intriga e da
instigação para chamar a atenção da opinião pública em favor dos trabalhos de seus próprios membros, e
contra o de seus inimigos e rivais.24
Talvez Adam Smith tenha uma visão muito entusiástica dos matemáticos, e talvez os
economistas não sejam tão ruins quanto os poetas, mas a questão central de sua crítica se aplica. A
falta de um método aceito por todos para a eliminação dos erros introduz um elemento pessoal nas
controvérsias econômicas que se constitui em mais uma dificuldade além de todas as outras. Há
uma notável exceção para confirmar a regra. Keynes era particularmente livre e generoso porque
não dava valor à opinião de ninguém acima da sua. Se alguém discordava dele, era esse alguém que
era idiota; não havia motivo para se irritar a respeito.
O problema pessoal é um subproduto da dificuldade principal, que, na falta de um método
experimental, os economistas não são rigorosamente compelidos a reduzir os conceitos metafísicos
a termos falsificáveis e não podem compelir os outros a concordar com o que foi falsificado. Assim,
a Economia avança mancando, com um pé em hipóteses não-testadas e com o outro em slogans
intestáveis. Aqui nossa tarefa é resolver da melhor maneira que pudermos essa confusão entre
ideologia e ciência. Não poderemos encontrar respostas claras para as perguntas que ela levanta. A
principal característica da ideologia que domina nossa sociedade, hoje em dia, é sua extrema
confusão. Entendê-la significa apenas revelar suas contradições.

24
Moral Sentiments, vol. I, pp. 293-7.
II
OS CLÁSSICOS: VALOR
[27]
Uma das grandes idéias metafísicas em Economia é expressa pela palavra “valor”. O que é o
valor e qual sua origem? Não significa utilidade – o bem que os bens nos proporcionam.
A palavra valor, deve-se observar, tem dois significados distintos, e por vezes expressa a utilidade de
algum objeto particular, e por outras o poder de comprar outros bens que a posse de tal objeto expressa. O
primeiro pode ser chamado “valor no uso”; o outro, “valor de troca”. As coisas que têm um grande valor
no uso freqüentemente têm um pequeno ou nenhum valor na troca. Nada é mais útil do que a água; mas
não poderá comprar praticamente nada; praticamente nada poderá ser obtido em troca dela. Um diamante,
ao contrário, não tem praticamente nenhum valor no uso; mas uma enorme quantidade de outros bens
podem normalmente ser obtidos em troca dele.25
O valor não significa preços de mercado, que variam constantemente sob a influência de
acidentes casuais; nem é uma simples média histórica dos preços reais. De fato, não é simplesmente
um preço, é algo que irá explicar como surgem os preços. O que é? Onde poderemos encontrá-lo?
Como todos os conceitos metafísicos, quando tentamos apreendê-lo, mostra que é apenas uma
palavra.
De todo modo, os problemas que surgiram na busca das causas do valor não são de forma
alguma destituídos de significado.
1
Lembremo-nos de como Adam Smith começou a busca:
Nesse primitivo e rude estágio da sociedade que antecede a acumulação de estoques e a apropriação da
terra, a proporção entre as quantidades de trabalho necessárias [28] para se adquirir diferentes objetos
parece ser a única circunstância que pode fornecer alguma regra para trocá-los um pelo outro. Se, entre
uma nação de caçadores, por exemplo, o trabalho para matar um castor é o dobro do trabalho para matar
um veado, um castor deve naturalmente ser trocado por, ou valer, dois veados. É natural que o que
normalmente é o produto de dois dias ou duas horas de trabalho deve valer o dobro do que normalmente é
o produto de um dia ou uma hora de trabalho...
Nesse estado de coisas, o produto total do trabalho pertence ao trabalhador; e a quantidade de trabalho
comumente empregada para se adquirir ou produzir qualquer mercadoria é a única circunstância que pode
regular a quantidade de trabalho que ela pode normalmente comprar, comandar ou ser trocada por. 26
Como devemos definir essa proposição? Ela não é metafísica – conta-nos uma história
bastante definida com um conteúdo perfeitamente fatual. Poderia servir de hipótese a ser testada.
Mas é uma hipótese que não se deriva da observação nem da análise. Pertence mais ao domínio do
mito – uma hipótese do mesmo tipo da que Deus ordenou ao Sol para que girasse em torno da Terra
para fazer a divisão entre o dia e a noite.
Consideremos a teoria de Adam Smith de uma forma analítica. Como ele chegou à
conclusão de que os caçadores queriam comerciar? A troca surge da especialização, mas Adam
Smith claramente pretende que a floresta era para todos. Não havia propriedade de partes especiais
e ele expressamente exclui as diferenças na dificuldade dos trabalhos e na capacidade requerida.
Então por que deveria haver comércio? Como ele mesmo chama a atenção num capítulo posterior:
Nesse rude estágio da sociedade, em que não existia divisão do trabalho, em que as trocas raramente eram
feitas, e no qual cada homem provia-se a si mesmo de todas as coisas, não era necessário que os estoques
fossem acumulados, ou armazenados de antemão, para que se desenvolvessem os negócios da sociedade.
Cada homem se esforçava para suprir, por seu próprio trabalho, todas as suas necessidades ocasionais,
como aliás ocorria. Quando estava com fome, ele se dirigia à floresta para caçar; quando sua vestimenta

25
Adam Smith, Wealth of Nations (edição Everyman), vol. I, pp. 24-5.
26
Ibid., pp. 41-2.
estava rasgada, se vestia com a pele do primeiro grande animal que matasse; e, quando sua cabana
começava a se arruinar, ele a reparava, da melhor maneira possível, com árvores e com a grama que
encontrava à sua volta.27
Como então poderia haver uma relação de preços normal? Poderia haver uma permuta
casual, mas por que deveria haver comércio regular a um preço normal? Evidentemente, devemos
compreender que, em transações particulares, as duas partes concordam em comerciar ao preço
normal. Não é o tempo que realmente foi despendido por cada um, mas o tempo que “normalmente
custa” que comanda a troca. O valor governa porque é justo e correto. Não está, no final das contas,
muito distante do Justo Preço dos escolásticos medievais.
[29] Na versão dessa teoria que sobreviveu aos tempos modernos, a especialização é
permitida; aplica-se aos artesãos, cada qual com sua especialização, possuindo seus próprios meios
de produção. Isso sem dúvida explica as trocas, mas destrói a teoria; agora só o tempo não serve
como única medida de diferentes espécies de trabalho.
O trabalho concreto, segundo nos dizem, de um ferreiro produz ferraduras e o de um tecelão
produz tecidos, enquanto que o trabalho abstrato explica seus valores. Podemos descobrir quanto
trabalho abstrato existe em cada um pela observação de seus preços.
Quando um produtor de mercadorias traz um machado ao mercado visando trocá-lo, verifica que pode
conseguir 20 quilos de cereais em troca do machado. Isso significa que o machado vale a mesma
quantidade de trabalho social que 20 quilos de cereais.28
Mesmo que pudéssemos obter algum sentido analítico nesse conceito, isso seria irrelevante
do ponto de vista histórico. Para que a economia camponesa seja viável é preciso que cada
comunidade local possa manter os oficiais de que necessita – um ferreiro, dois barbeiros, cinco
padres, ou seja lá o que for, e eles devem receber um salário de subsistência por homem/ano. O
tempo de trabalho por unidade de produto não tem nada a ver com isso. O plano mais simples é o
que ainda persiste numa aldeia indiana não-modernizada: os especialistas da aldeia têm o direito a
uma certa percentagem da colheita e devem dedicar mais, ou menos, trabalho conforme for
necessário.
O comércio e os preços certamente sempre existiram, ao menos desde a era neolítica. Há
razão para que se acredite que existiam mercadores viajantes que comerciavam sílex e âmbar e
parece bastante razoável supor que, como vendiam produtos exóticos até o fim do dia, fora do
esquema, o que quer que fosse que regulasse o mercado doméstico, eles vendiam sua mercadoria
pelo que pudessem conseguir.29 Certamente, o tempo de trabalho não tinha nada a ver com isso.
A história de Adam Smith sobre os castores e os veados não tem fundamento, nem analítico,
nem histórico. Ele a deduziu de preconceitos morais. É assim que deve ter sido. Os caçadores
estavam vivendo em um passado idílico em que o sistema econômico era moralmente satisfatório.
Assim que a terra de um país tornou-se propriedade privada, os senhores da terra, como todos os outros
homens, gostaram de colher onde nunca semearam, e exigiram uma renda mesmo pela produção
natural....
[30] Assim que os estoques se acumularem nas mãos de determinados indivíduos, alguns dentre eles irão
naturalmente empregá-los para pôr para trabalhar as pessoas laboriosas, que irão suprir com materiais e
subsistência, a fim de obterem um lucro pela venda de seu trabalho, ou daquilo que seu trabalho acresce
ao valor dos materiais.30
Há em toda sociedade ou cercania uma norma ou média, tanto de salários quanto de lucros e rendas....
Essas normas ou taxas médias podem ser chamadas de taxas naturais de salários, lucros e rendas, no
tempo e espaço em que normalmente prevalecem. Quando o preço de qualquer mercadoria não é nem

27
Ibid., p. 241.
28
Political Economy, manual publicado pelo Instituto de Economia da Academia de Ciência da URSS, Laurence &
Wishart, Londres, 1957, p. 71.
29
J.G.D. Clark, Prehistoric Europe, Cap. IX.
30
The Wealth of Nations, vol. I, pp. 44 e 42.
superior nem inferior ao suficiente para pagar (essas taxas naturais) a mercadoria está sendo vendida pelo
que poderemos chamar seu preço natural. A mercadoria está, portanto, sendo vendida por exatamente o
que ela vale.31
Enquanto uma teoria dos preços, isso é por demais simplista, mas é bastante duvidoso que as
doutrinas ensinadas hoje em dia, que são muito mais sofisticadas, sejam mais profundas. De
qualquer forma, o problema não está na análise; está no dilema moral. A propriedade e os lucros são
uma imposição aos trabalhadores. Há um tom de nostalgia por esse “estado de coisas original”
quando o trabalhador não tinha “nem senhor das terras, nem patrão com quem dividir”.32
Mas Adam Smith é teimoso. O livro não é dedicado a sentimentos morais, mas à
conveniência. Mas isso tudo ficou para trás, devido ao aumento de produtividade que se seguiu à
divisão do trabalho. Uma teoria esquemática do valor servirá suficientemente, pois o problema
principal é discutir as vantagens do comércio e da acumulação de estoques. O importante é o
crescimento da produção física, e os preços realmente não importam muito.
Para Ricardo, também, o valor era uma questão secundária. Ricardo inicialmente não se pôs
em campo para procurar uma teoria dos preços.
O produto da terra – tudo que é extraído de sua superfície pela aplicação conjunta de trabalho, maquinaria
e capital – está dividido entre três classes da comunidade; a saber, o proprietário da terra, o possuidor do
estoque ou capital necessário para seu cultivo, e os trabalhadores por cujo labor ela é cultivada.
Mas em diferentes estágios da sociedade, as proporções do produto total da terra que será divido entre
essas classes, sob a designação de renda, lucro e salário, serão essencialmente diferentes; dependendo
principalmente da fertilidade real do solo, da acumulação do capital e da população, e da qualificação, da
engenhosidade e dos instrumentos empregados na agricultura.
Determinar as leis que regem essa distribuição, é o principal problema da Economia Política. 33
[31] Mas ele foi detido pela necessidade de medir o total que devia ser distribuído. Sua
dificuldade era que uma mudança na parte dos salários do valor do produto, que vincula uma
mudança na taxa de lucro do capital, altera os preços relativos das mercadorias, porque os salários e
os lucros entram nos custos de cada mercadoria em proporções distintas. Em que unidade o valor do
produto deveria ser calculado? Ele se utilizou de uma unidade de tempo de trabalho, mas nunca
esteve satisfeito com isso; e, como mostrou Sraffa, fez diversas tentativas através das diferentes
edições dos Principles. O problema apareceu com maior clareza em seu último ensaio, que foi
encontrado na famosa lata de Raheny:34
As únicas qualidades necessárias para se fazer com que uma medida de valor seja uma medida perfeita
são que ela mesma tenha valor e que esse valor seja, ele mesmo, invariável, da mesma maneira que uma
medida perfeita de comprimento deve ter comprimento e esse comprimento não pode estar sujeito a
aumentos e diminuições; ou como uma medida de peso que deve ter peso e que tal peso deve ser
constante.
Embora seja fácil dizer o que deve ser uma medida perfeita de valor, não é igualmente fácil encontrar
uma mercadoria qualquer que possua as qualidades exigidas. Quando queremos uma medida de
comprimento, escolhemos uma jarda ou um pé – que é uma determinada medida bem definida e não
sujeita a aumentos ou diminuições; mas quando queremos uma medida de valor, que mercadoria que
tenha valor poderemos selecionar que não varie em valor?35
Podemos ver claramente agora que isso está fora da questão. Peso e comprimento,
evidentemente, são convenções humanas, mas uma vez convencionados eles não mudam, por
razões práticas, porque se referem ao mundo físico, não humano. São os mesmos para Robinson
Crusoé ou em Trafalgar Square; os mesmos em Moscou ou em Nova York. Mas o valor é uma
relação entre as pessoas. Não tem nenhum significado para Robinson Crusoé. Nunca existirá uma

31
Ibid., p. 48.
32
Ibid., p. 57.
33
Works of David Ricardo, org. por P. Sraffa, vol. I, Prefácio aos Principles, p. 5.
34
Ibid., Vol. I, p. ix.
35
Ibid., vol. IV, p. 361.
unidade para medir a renda nacional que tenha o mesmo significado para todos, ainda menos uma
unidade que significa a mesma coisa em diferentes datas ou no conjunto dos distintos sistemas
econômicos.
Sabemos agora que, quando não se consegue uma resposta, é porque há algo de errado com
a pergunta, mas Ricardo nunca viu que o erro estava na pergunta e continuou tentando eliminar os
erros nas suas respostas.
Não parece haver nenhuma implicação ideológica ou qualquer resíduo de fé na busca do
valor absoluto empreendida por Ricardo. Ele possuía uma integridade intelectual que é infelizmente
muito rara entre aqueles que se preocupam com problemas sociais e políticos; estava honestamente
lutando com um honesto quebra-cabeça intelectual. Mas a discussão [32] foi tomada em termos
ideológicos e, até Sraffa tê-lo salvo, lhe havia sido impingida uma questão bem diferente.
Sua unidade-trabalho como medida de valor pareceu, de certa forma, levar a pensamentos
perigosos. Poder-se-ia dar apenas ao trabalho todo o crédito na criação do valor! Implica isso que os
lucros sejam uma imposição aos trabalhadores? As correções que Ricardo fez em sua busca por
uma unidade de valor foram utilizadas para mostrar que ele admitia que o capital também é
produtivo, e toda a discussão mergulhou numa penumbra metafísica disfarçada em análise.
Marshall incumbiu-se da defesa de Ricardo contra a acusação de pensamentos perigosos. Os
mal-entendidos devem ser devidos à obscuridade:
Sua exposição é tão confusa quanto seu pensamento é profundo; ele se utiliza de palavras com sentidos
artificiais, que não explica e às quais não adere; e muda de uma hipótese para outra sem dar qualquer
aviso.
Se queremos, portanto, entendê-lo corretamente, devemos interpretá-lo generosamente, mais
generosamente do que como ele interpretou Adam Smith. Quando suas palavras são ambíguas, devemos
dar-lhes a interpretação que em outras passagens de seus escritos indicam que seria esta a interpretação
que ele queria dar-lhes.36
Dessa forma, ele atribui a paternidade da “espera” como um elemento do custo de produção.
Com o subtítulo “Ele corrigiu a antecipação de Malthus dos equívocos de Marx”, cita Ricardo:
Parece que o Sr. Malthus pensa que faz parte da minha doutrina que o custo e o valor de uma coisa devem
ser os mesmos; faz, se ele por custo entende “o custo de produção”, incluindo os lucros. Na passagem
acima, não é isso que ele quer dizer e por conseguinte não me entendeu claramente”. E tanto Rodbertus
como Karl Marx invocam a autoridade de Ricardo para a afirmação de que o valor natural das coisas
consiste apenas no trabalho despendido nelas; e mesmo esses economistas alemães que mais tenazmente
combatem as conclusões desses autores são levados constantemente a admitir que interpretaram Ricardo
corretamente, e que suas conclusões são conseqüências lógicas dele.37
Todo esse episódio é um bom exemplo das relações entre análise e ideologia, ainda mais já
que ninguém se sente hoje muito tocado por ele e que podemos vê-lo com desprendimento.
Marshall estava perfeitamente consciente de que Ricardo estava apenas procurando uma
medida de valor. No final do apêndice do qual a citação acima foi retirada, escreve ele:
O primeiro capítulo de Ricardo foi discutido aqui tomando apenas como referência as causas que regem
os valores de troca relativos de coisas diferentes; porque [33] sua principal influência no pensamento
subseqüente foi nesta direção. Mas ele estava originalmente associado a uma controvérsia sobre até que
ponto o preço do trabalho serve como um bom padrão para a medida do poder geral de compra do
dinheiro.38
A mudança na discussão, de uma medida de valor para uma teoria da determinação dos
preços relativos, está diretamente ligada à mudança no interesse pelo problema de Ricardo – as leis
que regem a distribuição do produto da terra entre as classes da comunidade – para o problema bem
menos candente dos preços relativos. Mas, debaixo do pano, o problema da distribuição continuava
36
Marshall, Principles, p. 813.
37
Loc. cit., p. 816.
38
Loc. cit., p. 821.
fornecendo o calor necessário para essa tépida questão. A misteriosa emanação, valor, continuava
de certa forma espreitando os preços relativos, embora eles tivessem sido proclamados agora ser
somente a taxa de troca entre mercadorias; se apenas ao trabalho se devesse dar crédito pela
determinação dos preços relativos, ele de certa forma receberia o crédito pela criação do valor, e, se
o trabalho é que o criava, certamente o trabalho deveria tê-lo. A visão teimosa de Adam Smith, de
que o senhor de terras e o mestre criam uma situação de força e assim conseguem sua parte, não
seria bem recebida por uma geração mais piedosa. O capital precisava receber a permissão para
produzir o valor que recebia. E assim, com um certo trabalho, o problema que incomodava Ricardo
em sua busca de uma medida de valor – o fato de que a proporção entre os lucros e os salários nos
preços de diferentes mercadorias deve variar com a proporção entre o capital e o trabalho ao
produzi-los – foi transformado numa justificativa moral dos lucros, e numa resposta para a visão
insidiosa de que o trabalho deveria receber o valor que havia criado.

2
Marshall sabia todo o tempo o que Ricardo realmente queria dizer, mas não entendia Marx.
A utilização feita por Marx da teoria do valor-trabalho não era apenas uma reivindicação de que o
trabalhador tem direito ao produto de seu trabalho. Pelo contrário, sua alegação é que a teoria do
valor é precisamente o que explica a exploração.
Tal como os outros, ele se sentiu obrigado a fornecer uma teoria dos preços relativos, mas,
embora pensasse que ela era essencial, podemos ver que esse é um ponto irrelevante diante da
questão principal da sua teoria.
No volume I de O Capital, Marx trata dos preços relativos na famosa passagem:
Tomemos duas mercadorias, por exemplo, trigo e ferro. As proporções nas quais podem ser trocadas,
quaisquer que sejam essas proporções, podem ser representadas [34] por uma equação na qual uma
quantidade determinada de trigo é equacionada a uma quantidade de ferro: por exemplo, um alqueire de
trigo = x quilos de ferro. O que nos diz essa equação? Diz que em duas coisas distintas – um alqueire de
trigo e x quilos de ferro – existe, em quantidades iguais, algo que é comum a ambos. Essas duas coisas
devem, por conseguinte, ser iguais a uma terceira, que em si mesma não é igual nem a uma nem a outra.
Cada uma delas, enquanto se constitui num valor de troca, deve, portanto, ser redutível a essa terceira.
Esse “algo” comum não pode também ser uma propriedade geométrica, química ou qualquer outra
propriedade natural das mercadorias. Tais propriedades só chamam nossa atenção na medida em que
afetam a utilidade dessas mercadorias, transformando-as em valores de uso. Mas a troca de mercadorias é
evidentemente um ato caracterizado por uma total abstração do valor de uso.
Se, portanto, não consideramos o valor de uso das mercadorias, elas só ficarão com uma propriedade em
comum, a de serem produtos do trabalho. Mas até o próprio produto do trabalho sofreu uma mudança em
nossas mãos. Se abstrairmos seu valor de uso, estaremos ao mesmo tempo abstraindo as formas e
elementos materiais que fazem do produto um valor de uso. Já não vemos mais nele uma mesa, uma casa,
um fio, ou qualquer outra coisa útil. Sua existência enquanto coisa material fica fora de nosso campo de
visão. Nem poderemos mais vê-lo como o produto do trabalho do marceneiro, do pedreiro, do fiandeiro,
ou de qualquer outro tipo determinado de trabalho produtivo. Juntamente com as qualidades úteis dos
próprios produtos, colocamos fora de nosso campo de visão tanto o caráter útil dos vários tipos de
trabalho neles incorporados quanto as formas concretas desse trabalho; nada restou a não ser o que é
comum a todas; todas foram reduzidas a um único tipo de trabalho, trabalho humano em abstrato...
Tudo o que essas coisas agora nos dizem é que o poder de trabalho humano foi despendido em sua
produção, que o trabalho humano está incorporado nelas. Quando vistas como cristalização dessa
substância social comum a todas elas, são, então, valores.39
Gerald Shove, colocando objeções à minha descrição disso como “uma afirmação
puramente dogmática”, diz que isso é um tema de discussão. 40 Mas é difícil que se veja qualquer
discussão nisso. Aqui valor é algo diferente de preço, algo que explica o preço, e que por sua vez
39
O Capital, vol. I, pp. 3-5.
40
“Mrs. Robinson on Marxian Economics”, Economic Journal, abril de 1944.
tem que ser levado em consideração. E explicá-lo pelo tempo de trabalho é uma mera asserção. Se
definimos o valor como o tempo de trabalho necessário para produzir uma mercadoria, e em
seguida apresentamos a proposição de que as mercadorias são normalmente trocadas a preços
proporcionais a esses valores, nesse sentido teremos então reduzido uma afirmação metafísica a
uma hipótese. Mas é uma hipótese que seria uma perda de tempo testar, porque já sabemos de
antemão, e Marx também sabia, que não é exata.
Essa teoria dos preços não é um mito, como a história de Adam Smith sobre os castores e
veados. Nem pretendia ser uma contribuição original para a ciência. Era simplesmente um dogma
ortodoxo. A fusão da idéia [35] do trabalho como medida do valor e do trabalho como causa do
valor foi retirada de Ricardo, e como podemos observar em sua última obra – que Marx nunca leu –
não se trata de um mal-entendido; estava muito próximo da maneira como o próprio Ricardo via o
problema.
O problema da discussão era algo bastante diferente. Aceitando o dogma de que todas as
coisas são trocadas a preços proporcionais a seus valores, Marx o aplica à força de trabalho. Esta é a
chave que explica o capitalismo. O trabalhador recebe seu valor, seu custo em termos de tempo de
trabalho, e o empregador o utiliza para produzir mais valor do que custa. O custo do trabalhador é
um salário de subsistência (isso não é um simples mínimo fisiológico, mas contém um “elemento
moral e histórico” que depende do padrão de vida existente quando a “classe de trabalhadores livres
se forma”).41
Marx não acusa o capitalismo do mesmo modo que os idealistas ingênuos que trataram a
exploração como roubo. Ao contrário, com um tipo de sarcasmo lógico, defende o capitalismo. Não
há fraude – tudo é trocado segundo seu valor, como é certo e justo. Não é o valor que ele produz,
mas o valor que ele custa que é pago ao trabalhador.
Nesse plano toda a discussão parece ser metafísica; fornece um exemplo típico da forma
como operam as idéias metafísicas. Logicamente, não passa de um jogo de palavras, mas, para
Marx, era uma fonte de iluminação e, para os marxistas posteriores, uma fonte de inspiração.
Ideologicamente, é um veneno muito mais poderoso do que um ataque direto contra a
injustiça. O sistema não é injusto no interior de suas regras. Por essa mesma razão, a reforma é
impossível; não há outra saída senão derrubar o próprio sistema.
No plano científico, fornece as bases para uma abordagem analítica do capitalismo.
Marx aprendeu com Ricardo o truque de estabelecer o que hoje em dia chamamos de
modelo – afirmando os pressupostos e retirando as conclusões. Sustentou seu dogma sobre o valor
da força de trabalho com um argumento analítico.
O capitalismo inicialmente recruta os trabalhadores de que necessita através da ruína do
camponês e do artesão. O padrão de vida que prevalece quando “a classe de trabalhadores livres se
forma” estabelece o nível das taxas do salário real. O excedente da produção sobre os salários
pertence aos capitalistas. Isso não é um excedente metafísico do valor; é um excedente concreto de
bens, particularmente de bens de salário. Os capitalistas se utilizam do excedente retirado da
produção de um grupo de trabalhadores para empregar outros: uma parte vai suprir suas próprias
necessidades [36] e de seus dependentes; outra – a maior parte – aumenta seu capital visando extrair
mais excedente. A força de trabalho cresce continuamente (uma afirmação óbvia naquele período) e
existe um exército de reserva de trabalhadores potenciais desempregados. Isso fornece um
mecanismo que impede que os salários reais aumentem permanentemente além do nível onde
começaram. Quando o capital cresce de forma tão rápida a ponto de reduzir a reserva de trabalho, o
nível dos salários reais aumenta e o excedente por homem empregado cai. A acumulação se torna
mais lenta. (Aqui há um ponto fraco no argumento de Marx, pois aparecem misturadas uma teoria
cíclica da falta de motivação para investir, quando os lucros esperados no futuro parecem baixos,
41
O Capital, vol. I, p. 150.
com o fluxo reduzido de recursos, quando os lucros realizados no passado foram baixos.) Não só a
redução nos lucros torna mais lenta a acumulação, fazendo aumentar a demanda de trabalho, mas
também os altos salários levam à introdução de dispositivos de economia da mão-de-obra. O
crescimento natural antecipando-se ao atual compasso lento de acumulação, junto com o
desemprego tecnológico, reabastece o exército de reserva e os salários reais voltam a baixar.
Aqui a teoria metafísica foi transformada em uma hipótese científica – a hipótese de que sob
o capitalismo a taxa de salário real não cresce. Parecia bastante plausível naqueles tempos, mas
mostrou estar errada. Isso, aliás, é a prova de seu status científico. Uma crença metafísica, como na
lei de valor, não pode estar errada e este é o sinal de que não há nada a aprender com ela.
Por razões óbvias, foi o elemento dogmático, e não o científico, do marxismo que apoiou um
grande movimento histórico e floresceu numa ideologia ortodoxa. O elemento científico se atrofiou,
pois a ciência progride através de ensaio e erro, e quando é proibido admitir o erro não pode haver
progresso. Até hoje os marxistas preferem negar que o capitalismo tenha melhorado o nível de vida
dos trabalhadores ou qualquer outra coisa que Marx não tenha dito que iria ocorrer, preferindo o
sacrifício do elemento científico no desenvolvimento de seu pensamento a fim de reforçar o
elemento dogmático.
Os antimarxistas não foram melhores: em seus ataques a Marx também se concentraram na
metafísica; centram o fogo particularmente na teoria dos preços relativos, já que é o lado mais fácil
de se atacar.
Marx elaborou sua teoria dos preços relativos de tal forma que quando foi publicada era
bastante diferente do simples dogma do vol. I de O Capital. Os marxistas leais se ressentem muito
da afirmação de que há uma inconsistência entre as versões do vol. I e do vol. III, e, na medida em
que isso se refere a Marx, é mais justo vê-la mais como uma modificação do que como uma
inconsistência. No vol. I ele diz que os preços normais das mercadorias são proporcionais a seus
valores, e no vol. III que isso só ocorre com as mercadorias que requerem a taxa média global de
capital [37] por homem empregado (traduzindo-se em terminologia acadêmica). De qualquer
maneira, Marx jamais conseguiu dar ao resto de suas idéias uma forma coerente e integrada como
no vol. I, e nunca as publicou. Ninguém pode ser justamente acusado de inconsistência numa obra
inacabada. Foi Engels quem anunciou que o terceiro volume conteria uma conciliação da Lei do
Valor com a igualação da taxa de lucro em linhas de produção com diferentes proporções de capital
e trabalho. Fez disso uma grande coisa, e abriu o que Böhm-Bawerk, debochando, chamou de
campeonato de ensaios para sugerir soluções.42 Quando finalmente apareceu o vol. III, não havia
nenhuma solução, mas apenas, disfarçado num jogo de palavras, o lugar-comum de que os preços
cobrem os custos de produção incluindo os lucros normais do capital em questão.
Böhm-Bawerk ficou encantado de poder exercitar sua ironia à custa de Marx, e os
economistas acadêmicos, a partir de então, sentiram-se muito aliviados por poder dizer a seus
alunos que o sistema de Marx se baseava numa simples confusão. Os marxistas, além disso, se
uniram na defesa com argumentos excessivamente forçados. Mas a teoria de Marx não dependia,
essencialmente, disso, de uma maneira ou de outra. A essência de sua teoria, em seu aspecto
metafísico, estava relacionada com o valor da força de trabalho; e, em seu aspecto científico, com a
parte dos salários no produto da indústria; isso ficou intacto, tanto pelas críticas jocosas de Böhm-
Bawerk quanto pelas bombásticas réplicas de seus próprios defensores.
A coisa toda, considerada analiticamente, não passou de um grande estardalhaço por nada.
Para a análise dos preços relativos, realmente não podemos fazer nada melhor do que a teoria
simplista de Adam Smith.43 O desenvolvimento geral de uma economia determina o nível geral de
42
Karl Marx and the Close of his System. (Este título em inglês é uma má tradução. Böhm queria dizer a conclusão da
análise.)

43
Cf. p. 30.
salários, juros, lucros e renda (é aqui que reside a maioria das questões de interesse). Para cada
mercadoria determinada o preço normal é regido por seu custo normal de produção nessa base
(exceção feita, como Adam Smith mostra cuidadosamente, para o monopólio e a escassez natural),
porque cada indústria deve ser capaz de pagar seus fatores de produção a uma taxa
aproximadamente igual a do resto.
Até aqui, no que toca à marcha geral das indústrias manufatureiras (ao menos até agora – a
automação pode trazer uma mudança na ênfase) o elemento predominante que determina as
diferenças nos custos é a produção por hora de trabalho humano empregado. A diferença de preços
entre uma xícara de chá e um automóvel, ou mesmo entre um Austin e um Rolls Royce, deve ser
principalmente imputada às diferenças nas folhas [38] de pagamento referentes à produção de uma
unidade de cada. (Foi essa “teoria salarial do valor” representada em condições primitivas que deu
origem à mítica teoria do valor-trabalho de Adam Smith.)
Isso não é verdade para as mercadorias naturais (embora Marx nunca fosse admitir isso). A
diferença de preço entre uma tonelada de platina e uma tonelada de chumbo é muito maior do que o
inverso da diferença da produção per capita; assim também é a diferença no preço de um quilo de
uvas e um quilo de groselha.
Mas para a indústria manufatureira, certamente, todos concordariam, por um lado, que as
diferenças nos preços são aproximadamente proporcionais ao custo do trabalho e, por outro, que
elas não são exatamente proporcionais por causa das diferenças nos graus de trabalho empregado,
no capital por homem e na escala em que os investimentos são feitos.
Por que então tanto espalhafato? Todas as teorias razoáveis dos preços relativos não acabam
chegando à mesma coisa? Certamente chegará se for razoável; a disputa não se dava, e não se dá, ao
nível da razão. São as implicações ideológicas que causam toda a confusão.
Ninguém pode, evidentemente, estar consciente de sua própria ideologia, da mesma forma
como ninguém pode cheirar seu próprio hálito. Marx, em especial, sentiu-se perfeitamente
científico e criticou fortemente o tipo de socialismo idealista que dependia de sentimentos morais.
Sua análise mostrou o capitalismo como um estágio necessário no desenvolvimento econômico,
exigido para amadurecer as forças produtivas do trabalho social, que não poderia e não deveria ser
derrubado antes que houvesse cumprido sua missão histórica. Entrementes, os capitalistas são tão
escravos do sistema como qualquer outra pessoa. O empresário inovador de Schumpeter, o
benfeitor da humanidade, tem o mesmo caráter que o ricaço de Marx. Apenas os adjetivos são
diferentes. Marx, evidentemente, os odiava. Cada palavra que escreveu estava saturada de
indignação moral e o marxismo, em sua forma original (como o Cristianismo), foi um apelo à causa
dos mais desprotegidos. Assim como com o Cristianismo, a roda do tempo transformou-o num
credo dos mais protegidos e a partir daí seu apelo perdeu muito de sua força.

3
E que dizer das aplicações práticas da teoria? Como a lei do valor, que foi planejada para
penetrar os disfarces do capitalismo, funciona numa economia socialista?
Antes de mais nada, o valor do trabalho, enquanto uma unidade de medida da Renda
Nacional, é praticamente inútil. Não podemos estimar o valor total dos bens produzidos em um ano
somando simplesmente as horas de trabalho gastas em sua produção.
[39] Inicialmente há o problema da distinção entre o trabalho produtivo e o trabalho
improdutivo. Isso nos leva de volta a Adam Smith:
Há um tipo de trabalho que se adiciona ao valor do objeto ao qual se aplica; há outro tipo que não tem
esse efeito. O primeiro, como produz um valor, pode ser chamado trabalho produtivo, e o segundo,
trabalho improdutivo. Assim, o trabalho de um artesão adiciona geralmente ao valor dos materiais com
que está trabalhando o da sua própria subsistência e o do lucro de seu mestre. O trabalho de um criado
doméstico, ao contrário, não adiciona nenhum valor a nada. Embora o artesão receba seu salário pago por
seu mestre, ele em realidade não lhe custa nada, o valor desses salários sendo geralmente reposto, junto
com um lucro, no valor aumentado do objeto sobre o qual ele se aplica. Mas o sustento de um criado
doméstico nunca é reposto.
O trabalho de algumas das mais respeitáveis categorias da sociedade é, como o dos criados domésticos,
improdutivo de qualquer valor, e não se fixa ou se realiza em qualquer objeto permanente, ou mercadoria
vendável, que permanece depois que esse trabalho tenha terminado, e no qual uma quantidade igual de
trabalho possa posteriormente ser conseguida. O rei, por exemplo, com todos os oficiais tanto da justiça
quanto do exército que servem sob suas ordens, todo o exército e a marinha, são trabalhadores
improdutivos. São os servidores do público, e são mantidos por uma parte do produto anual da indústria,
fruto do trabalho de outros. Seu serviço, por mais honrado, útil e necessário que seja, não produz nada
pelo qual uma igual quantidade de serviço possa posteriormente ser conseguida. A proteção, a segurança
e a defesa da comunidade, efeitos de seu trabalho anual, não irão comprar sua proteção, segurança e
defesa para o ano seguinte. Nessa mesma categoria podemos incluir algumas das mais sérias e mais
importantes, e algumas das mais frívolas profissões: clérigos, advogados, médicos, homens de letras de
todas as espécies; jogadores, bufões, músicos, cantores líricos, bailarinas etc. O trabalho do mais
desprezível desses tem um certo valor, regido pelos mesmos princípios que regem qualquer outro tipo de
trabalho; e o do mais nobre e mais útil não produz nada que possa posteriormente comprar ou conseguir
uma quantidade igual de trabalho. Como a declamação de um ator, o discurso de um orador, ou a ária de
um cantor, o trabalho de todos eles parece no mesmo instante de sua produção. 44
Adam Smith está tenteando em busca do conceito de trabalho que contribui para o processo
de acumulação. Marx retomou a distinção entre trabalho produtivo e improdutivo. Incluiu o
transporte como trabalho produtivo, mas excluiu o comércio. Na prática, ao se calcular a Renda
Nacional nos países socialistas, a linha divisória parece estar entre as mercadorias físicas e os
serviços. Assim, um chapéu faz parte da Renda Nacional, mas um penteado não. Deve haver muito
boas razões empíricas para que se proceda assim. Um crescimento da produtividade pode ser
medido muito mais facilmente quando há uma produção física (embora as diferenças em qualidade
sejam difíceis de apreender), enquanto que os serviços só podem ser avaliados segundo o que
custam. Mas de um ponto de vista filosófico a distinção entre o trabalho produtor de valor e o resto
não é muito fácil de ser compreendida.
[40] A segunda dificuldade diz respeito à qualidade dos trabalhadores. Como podemos
calcular quanto trabalho abstrato está contido em uma hora de trabalho de um técnico qualificado?
Utilizar-se dos salários relativos de diferentes categorias de trabalhadores, para estabelecer as
diferentes quantidades de valor com as quais eles contribuem para um produto, não é legítimo; as
diferenças nos salários presumivelmente medem as diferenças nos valores da força de trabalho, isto
é, o custo de manter e treinar os trabalhadores, e não das diferenças dos valores criados.
A dificuldade seguinte é que o valor é o produto não das horas de trabalho realmente
despendidas numa tarefa, mas do tempo de trabalho socialmente necessário. Marx teve o cuidado de
evitar o argumento absurdo de que os produtos de um trabalhador vagaroso contêm mais valor do
que o produto de outro que seja eficiente. O progresso técnico e a acumulação de capital em
equipamentos reduzem o valor de uma dada mercadoria, e quando os métodos obsoletos ainda estão
sendo utilizados lado a lado com técnicas superiores ou quando grupos de trabalhadores estão
usando mais equipamento mecânico do que outros, e que ao mesmo tempo uns sejam mais
eficientes do que outros dentro do mesmo grupo, como poderemos calcular o número exato para o
tempo de trabalho socialmente necessário em cada ramo da produção?
Finalmente, o valor da produção de um ano não é apenas o trabalho despendido durante esse
ano, mas também o valor transmitido pelos bens de capital em que o tempo de trabalho foi
incorporado no passado. Isso introduz na discussão todas as famosas questões desconcertantes sobre
a depreciação da fábrica e a avaliação dos estoques.
Mas se todas essas dificuldades pudessem, de uma forma ou de outra, ser superadas, a
unidade valor ainda seria ociosa, porque não mede aquilo em que os medidores estão interessados.
44
Wealth of Nations, vol. I, p. 294
A produtividade e o crescimento da Renda Nacional são concebidos como fluxos da produção de
bens; são precisamente as modificações na produção física por homem-hora que devem ser
procuradas. Em termos de valor, uma hora é uma hora. Uma quantidade constante de tempo de
trabalho, ano após ano, produz o mesmo valor. Mas quem se importa? O que queremos saber é
quanta coisa está sendo produzida.
Na prática, os economistas socialistas têm que somar sua Renda Nacional em termos
monetários, e enfrentam exatamente os mesmos problemas sobre índices numéricos, os mesmos
dilemas sobre custos históricos versus custos de reposição, a mesma tentação de fazer com que os
números signifiquem mais do que podem, que seus colegas capitalistas. A teoria do valor não os
ajuda em nada.
Enquanto uma teoria do salário real, o valor da força de trabalho não tem claramente um
lugar em uma economia socialista. O plano que rege a produção não visa a extração de um
excedente em seu próprio [41] benefício, mas a retirada de tudo o que é necessário para financiar o
investimento, a defesa, os serviços sociais e as despesas gerais da sociedade. A teoria keynesiana de
salários reais seria a mais apropriada, a relação dos preços para os salários monetários sendo
governada pela proporção do investimento para o consumo.
Ao mesmo tempo a economia socialista sente-se orgulhosa em apresentar uma taxa de
acumulação mais rápida do que qualquer país capitalista já tenha alcançado. Ter rotulado os
recursos investíveis de “exploração” e “trabalho não-pago” é de certa forma embaraçoso.
Argumentar que os capitalistas extraem um excedente para seu próprio benefício enquanto que os
planejadores sociais estão interessados no bem da sociedade é argumentar no plano subjetivo,
moral. Considerados objetivamente, os capitalistas, no esquema de Marx, são um órgão da
sociedade cuja função é assegurar a acumulação, do mesmo modo que os planejadores socialistas.
Como disse Keynes: “Como abelhas, eles pouparam e acumularam, não menos para benefício de
toda a comunidade porque eles mesmos não tinham grandes fins em vista.” 45 Como vemos hoje em
dia no Sudeste da Ásia ou nas Antilhas, a miséria de ser explorado pelos capitalistas não é nada
comparado com a miséria de não ser explorado de todo. Aqui a lei do valor desenvolve um tipo de
estrabismo que deixa as pessoas profundamente confusas.
E que dizer dos preços relativos? Fazer com que os preços das mercadorias vendidas nas
lojas sejam proporcionais a seus valores implica coletar um fundo para investimento etc., através de
uma taxa uniforme sobre a folha de salários e permitir que os preços cubram os custos, inclusive
essa taxa. Há muito que recomendar tal sistema, embora ele tivesse que ser modificado para alinhar
os preços com as condições da oferta e da procura, pois os valores corresponderiam aos preços da
procura apenas quando toda escassez tivesse sido superada de modo que cada mercadoria individual
tivesse uma oferta perfeitamente elástica. Nenhum sistema de preços desse tipo já foi tentado, e não
parece que haja qualquer doutrina clara com relação aos preços relativos na teoria socialista. O
compêndio de Economia Política apenas nos diz que “o funcionamento da lei do valor é levado em
consideração no planejamento dos preços”;46 não diz como.
O compêndio frisa bem a distinção entre os dois tipos de produção que existem na União
Soviética – a produção totalmente socialista na indústria onde a totalidade dos meios de produção é
de propriedade do Estado e os trabalhadores recebem salários, e a produção cooperativa na maior
parte da agricultura, onde a maioria dos meios de produção é propriedade da cooperativa e os
trabalhadores recebem uma parte do produto.
[42] Como é possível deduzir os preços dos produtos agrícolas de seus valores? Isso nunca
foi explicado. Dentro de uma fazenda coletiva, presumivelmente, o procedimento correto é avaliar
as diferentes tarefas de forma que um dia de trabalho seja tão difícil de ser ganho numa quanto na

45
Economic Consequences of the Peace, p. 16.
46
Op. cit.,p. 591.
outra. Mas o rendimento monetário de um dia de trabalho para a fazenda como um todo depende
dos preços recebidos por seus produtos; esses são parcialmente fixados pelas autoridades e
parcialmente sujeitos às variações da oferta e da procura no mercado livre. É o valor que determina
os preços ou os preços que determinam os valores?
Entre os diferentes significados de valor, houve um que permaneceu todo o tempo sob a
superfície, o antigo conceito de um Preço Justo – o princípio que fez com que os caçadores de
Adam Smith trocassem sua caça na base do tempo que cada espécie leva normalmente para ser
caçada. É esse o significado que se quer aqui. Os preços devem ser tais que (sujeitos à conveniência
política) o trabalho de um dia na cidade e no campo produza a mesma renda. Mas mesmo quando se
admite isso como um ideal, resta o problema de calcular o que deve ser considerado uma renda
equivalente para indivíduos levando uma vida bastante diferente em ambientes diferentes. 0 valor
não ajudaria. Não tem nenhum conteúdo operacional. É apenas uma palavra.
III
OS NEOCLÁSSICOS: UTILIDADE
[43]

Entrementes, a teoria do trabalho, com seu cheiro desagradável, foi eliminada do campo
ortodoxo, entrando a utilidade.

1
Utilidade é um conceito metafísico de circularidade inexpugnável; utilidade é a qualidade
das mercadorias que faz com que as pessoas queiram comprá-las, e o fato de que as pessoas
queiram comprar mercadorias mostra que estas têm utilidade.
Entrou em voga, inicialmente, em relação com a teoria dos preços relativos. Pretendendo ser
uma quantidade, podia-se falar dela em termos de total, média e marginal, e assim era empregada
para explicar a velha charada da água e os diamantes. A utilidade total da água é indefinidamente
grande, já que a própria vida depende dela. Quando os indivíduos possuem tudo o que necessitam,
não desejam pagar por mais nada. Em Aden, no entanto, onde a água é escassa, ela possui um preço
e a quantidade que um indivíduo pode consumir é reduzida à quantidade cuja utilidade marginal é
igual a esse preço. Como sabemos disso? Deve ser assim, pois o preço é a medida da utilidade
marginal.
Foi essa idéia que chegou a Jevons com a força de uma inspiração. “Nos últimos meses
deparei, felizmente, com o que não tenho dúvida é a verdadeira Teoria da Economia, tão eficaz e
consistente, que já não posso ler outros livros sobre o assunto sem me indignar.”47
[44] Marshall a havia descoberto, independentemente, com relação à idéia de excedente do
consumidor.48 Na época em que apareceu na versão final de seus Principles of Economics ele a
cercou de diversas restrições:
A utilidade é considerada como um correlativo do Desejo ou do Querer. Já se argumentou que os desejos
não podem ser medidos diretamente, mas apenas indiretamente pelos fenômenos externos que provocam:
e nos casos em que a economia está principalmente relacionada, a medida se encontra no preço que uma
pessoa quer pagar para o preenchimento ou satisfação de seu desejo. Ela pode ter desejos e aspirações que
não estão conscientemente estabelecidos para qualquer satisfação, mas no momento estamos tratando
principalmente dos casos em que há essa consciência; e admitimos que a satisfação resultante
corresponde, em geral, bastante bem ao que havia sido antecipado quando se deu a compra.
Existe uma variedade infindável de desejos, mas há um limite para cada desejo separado. Essa tendência
familiar e fundamental da natureza humana pode ser estabelecida na lei dos desejos saciáveis ou da
utilidade decrescente da seguinte maneira: A utilidade total de uma coisa para uma pessoa qualquer (isto
é, o prazer, ou outro benefício total que ela lhe traz) aumenta a cada aumento de seu estoque dela, mas
não tão rápido quanto aumenta seu estoque. Se seu estoque dessa coisa aumenta numa taxa uniforme, o
beneficio derivado dela aumenta numa taxa decrescente. Em outras palavras, o beneficio adicional que
uma pessoa retira de um aumento dado de seu estoque de uma coisa diminui a cada aumento no estoque
que ela já possuía... .
Não é demais insistir que medir diretamente, ou per se, tanto os desejos quanto a satisfação resultante de
seu preenchimento é impossível, senão inconcebível. Se fosse possível, teríamos duas contas a fazer, uma
de desejos, outra de satisfações realizadas. E as duas seriam consideravelmente diferentes. Pois, para não
se dizer nada das aspirações superiores, alguns desses desejos com os quais a Economia está
particularmente preocupada, e especialmente os relacionados com a emulação, são impulsivos; muitos são
o resultado da força do hábito; alguns são mórbidos e só levam à dor; e outros estão baseados em

47
Letters and Journals, p. 151.
48
Pure Theory of Domestic Values.
expectativas que nunca se consumarão... . Evidentemente, muitas satisfações não são prazeres comuns,
mas fazem parte do desenvolvimento de uma natureza humana superior, ou, para usarmos uma palavra
antiga, de sua beatificação; e muitas podem mesmo resultar parcialmente da auto-abnegação... . As duas
medições diretas devem, portanto, diferir. Mas, como nenhuma das duas é possível, voltamos à medição
fornecida pela Economia, do motivo ou força motriz para a ação: e a fazemos servir, com toda sua
margem de erro, tanto para os desejos que incitam à ação quanto para a satisfação que resulta deles.49
É o desejo, e não a satisfação, que é medido pelo preço; logo, a idéia de satisfação pode ser
afastada. A utilidade é uma Boa Coisa; o objetivo e o propósito da vida econômica é conseguir o
máximo possível dela. E, exposta num diagrama, parece igual a uma quantidade mensurável.
Antes de irmos adiante, devemos observar tristemente que todos os refinamentos modernos
desse conceito não o libertaram da metafísica. Hoje em dia nos dizem que, se a utilidade não pode
ser medida, ela não é um conceito operacional, e que a “preferência revelada” deve ser colocada
[45] em seu lugar. O comportamento observável do mercado irá mostrar o que um indivíduo
escolhe. A preferência é apenas o que o indivíduo em questão prefere; não envolve nenhum
julgamento de valor. Assim sendo, na medida em que a argumentação avança, fica claro que é uma
Boa Coisa para o indivíduo ter o que prefere. Isso, pode-se afirmar, não é uma questão de
satisfação, mas de liberdade – queremos que ele tenha o que prefere para evitar ter de restringir o
seu comportamento.
Mas os toxicômanos devem ser curados; as crianças precisam ir à escola. Como decidimos
quais preferências que devem ser respeitadas e quais as que devem ser restringidas, a não ser que
julguemos as próprias preferências?
É praticamente impossível praticarmos essa violência contra nossa própria natureza, para
nos abstermos de julgamentos de valor.
Além do mais, não é verdade que o comportamento do mercado possa revelar preferências.
Não se trata apenas de que a experiência de oferecer aos indivíduos uma variedade alternativa de
bens, ou mudar sua renda para ver o que irá comprar, nunca possa ser realizada na prática. A
objeção é lógica, não apenas prática.
Como diz Marshall:
Há, no entanto, uma condição implícita nesta lei (a lei da utilidade marginal decrescente) que deve ser
esclarecida, é que não supomos que o tempo seja responsável por qualquer alteração no caráter ou nos
gostos do próprio homem. Não há, portanto, exceção para a lei de que, quanto mais boa música um
homem ouve, mais forte se tornará seu gosto por ela; que a avareza e a ambição são sempre insaciáveis;
ou que a virtude do asseio e também o vício do alcoolismo se desenvolvem com o que os estimula. Pois,
em tais casos, nossa observação percorre um certo período de tempo; e o homem não é mais o mesmo em
seu início como em seu fim. Se tomarmos um homem como ele é, sem permitir que o tempo provoque
qualquer alteração em seu caráter, a utilidade marginal de uma coisa para ele diminui ainda mais a cada
aumento no seu estoque.50
Só podemos observar a reação de um indivíduo a dois conjuntos de preços diferentes em
dois momentos distintos. Como poderemos dizer que parte na diferença das suas compras é devida à
diferença nos preços e que parte à alteração em suas preferências que ocorreu nesse meio tempo?
Não há certamente nenhuma suposição de que seu caráter não mudou, pois o sabonete e o uísque
não são as únicas mercadorias cujo uso afeta o gosto. Praticamente tudo desenvolve uma inércia de
hábito ou um desejo de mudança.
Temos uma equação de duas incógnitas. A menos que tenhamos alguma evidência
independente sobre as preferências, a experiência não é [46] válida. Mas essa era a experiência em
que devíamos, supostamente, nos basear para observar as preferências.

49
Principles, pp. 92-3
50
Principles, p. 94
Essa não é a única dificuldade. Para Jevons e, em seus momentos menos prudentes, para
Marshall, o consumidor é um “homem”, um Robinson Crusoé, um indivíduo com seu equipamento
impermeável e insulado de desejos e gostos. Quando admitimos a influência da sociedade e da
publicidade sobre a escala de preferências do indivíduo, o problema de enquadrar a experiência
torna-se ainda mais irritante. Pior ainda quando reconhecemos que o consumo de um homem pode
reduzir o bem-estar de outros – uma consideração que a existência dos carros dos outros pesa
dolorosamente sobre nós – começamos a duvidar se as preferências são o que realmente preferimos.
Deixemos de lado essa inconsistência lógica e voltemos à utilidade – um conceito
metafísico, uma simples palavra, sem nenhum conteúdo científico, mas que exprime um ponto de
vista.
O conteúdo ideológico da abordagem dos preços a partir da utilidade tem, curiosamente,
dois gumes, como mostrou Gunnar Myrdal.51
Vista de um ângulo era muito mais humana do que a teoria clássica. Pela primeira vez os
salários eram incluídos na riqueza das nações. Adam Smith gostava de vislumbrar os trabalhadores
desfrutando a “afluência”, mas, basicamente, para ele os salários eram um custo e a nação que
houvesse alcançado o mais alto grau de opulência seria aquela em que o trabalho fosse barato. 52
Para Ricardo também, a riqueza significava acumulação. Para os neoclássicos a utilidade dos bens
consumidos pelos operários não era diferente de nenhuma outra.
Wicksell foi claro nesse ponto:
Assim que começamos a examinar seriamente os fenômenos econômicos como um todo e a procurar as
condições do bem-estar de todos, as considerações sobre os interesses do proletariado devem emergir; e
daí à proclamação de direitos iguais para todos é um pequeno passo.
O próprio conceito de Economia Política, portanto, ou a existência de uma ciência com tal nome, implica,
estritamente falando, um programa completamente revolucionário. Não é de surpreender que o conceito
seja vago, pois isso normalmente ocorre com um programa revolucionário. Sem dúvida alguma, muitos
problemas práticos e teóricos restam a ser resolvidos antes que se possa dizer que o objetivo do
desenvolvimento econômico e social tenha sido claramente compreendido. Algo ainda se pode dizer em
favor do antigo ponto de vista, mas em qualquer caso deve ser dito honestamente e sem tergiversação. Se,
por exemplo, vemos as classes trabalhadoras como sendo de tipo inferior, ou se, sem precisar ir assim tão
longe, as vemos como ainda não estando capacitadas para uma perfeita partilha do produto da sociedade,
[47] então devemos dizê-lo claramente e basear nosso raciocínio posterior sobre essa opinião. Só há uma
coisa que não é válida na ciência – esconder ou deturpar a verdade; o que significa, nesse caso, apresentar
a situação como se essas classes já tivessem recebido tudo o que poderiam razoavelmente desejar ou
esperar, ou se apoiar em crenças otimistas e infundadas de que o desenvolvimento econômico em si
mesmo tende para a maior satisfação possível de todos.53
Aplicou-se à própria renda não apenas isso, mas também a doutrina da utilidade marginal
decrescente. Como Marshall coloca:
Será necessário um incentivo mais forte para induzir uma pessoa a pagar um preço determinado por nada
se ela for pobre do que se for rica. Um xelim é a medida de menos prazer, ou satisfação de qualquer tipo,
para um homem rico do que para um pobre. Um homem rico, em dúvida quanto a gastar um xelim num
único charuto, está fazendo comparações com prazeres bastante menores do que um homem pobre que
está em dúvida quanto a gastar um xelim numa reserva de fumo que vai lhe durar todo um mês. 0
funcionário que recebe 100 libras por ano irá a pé para o trabalho sob uma chuva muito mais forte do que
o funcionário que recebe 300 libras por ano; pois o custo de uma viagem de trem ou de ônibus equivale a
um benefício muito maior para o homem mais pobre do que para o mais rico. Se o homem mais pobre
gasta o dinheiro, sofrerá mais devido às suas necessidades posteriores do que o mais rico sofreria. O

51
Conferências proferidas em Cambridge, em 1950. Ver também The Political Element in the Development of
Economic Theory.
52
Wealth of Nations, vol. I, p. 84.
53
Lectures on Political Economy, vol. I, p. 4.
benefício que é medido na cabeça do homem mais pobre por esse custo ê maior do que o que é medido na
cabeça do homem mais rico.54
Isso mostra princípios igualitários, justifica os Sindicatos, a taxação progressiva e o Estado
do Bem-Estar Social, ou mesmo meios mais radicais de interferência em um sistema econômico que
permite que tanto do sumo da utilidade desapareça das mercadorias devido à sua distribuição
desigual.
Mas, por outro lado, toda a questão da utilidade visava justificar o laisser faire. Todos
devem ser livres para gastar suas rendas como queiram, e cada um receberá o maior benefício
quando consiga igualar a utilidade marginal de um xelim gasto em cada tipo de mercadoria. A
busca do lucro nas condições de concorrência perfeita leva os produtores a igualarem os custos
marginais aos preços, e a máxima satisfação possível é retirada dos recursos disponíveis.
Isso é uma ideologia para acabar com as ideologias, porque aboliu o problema moral. Tudo
o que o indivíduo necessita é agir egoisticamente para que o bem de todos seja atingido.
Esta concepção, sem dúvida, nos leva de volta a Adam Smith (talvez a Adão). A tese central
do Wealth of Nations é:
O esforço natural que cada homem está continuamente fazendo para melhorar sua própria condição é um
princípio de preservação capaz de prevenir e corrigir, em muitos aspectos, os maus efeitos de uma
economia política que é, em certa medida, [48] parcial e opressiva. Tal economia política, embora sem
dúvida o retarde mais ou menos, não é sempre capaz de parar de todo o progresso natural de uma nação
em direção à riqueza e à prosperidade.55
Em outra passagem:
Não é da benevolência do açougueiro, do cervejeiro ou do padeiro, que esperamos nosso jantar, mas da
atenção que eles dão a seus próprios interesses. Nós nos dirigimos, não a seu humanismo, mas a seu
amor-próprio, e nunca falamos com eles sobre nossas próprias necessidades, mas das vantagens que eles
têm. Ninguém, que não seja um mendigo, depende principalmente da benevolência de seus concidadãos. 56
Adam Smith não acha a “propensão natural da natureza humana... para trocar, permutar e
comerciar uma coisa por outra”57 particularmente admirável – uma nota de desagrado cavalheiresco
sempre surge em seu tom – mas ela está aí: é o fundamento da prosperidade nacional e só precisa se
libertar de seus freios para florescer em perfeição total. (Talvez seja porque ele nunca tenha
conseguido realmente responder, que Mandeville tanto o irritava.)
Isso foi levado a extremos pelos neoclássicos, e alguns chegavam mesmo a negar que fosse
necessário que as autoridades decidissem se o trânsito deveria ser pela direita ou pela esquerda.
Uma fé tão pura, sem dúvida, é rara: a maioria dos escritores têm dúvidas em um ponto ou
noutro. Walras se considerava um socialista, e Marshall em sua juventude tinha uma tendência
nessa direção. Foram os escritos dos socialistas que o afastaram.58
Wicksell entendeu tudo. Observou que Walras dedicou-se a fornecer uma prova rigorosa da
doutrina vaga dos clássicos.
É preciso provar que a livre concorrência fornece o máximo de utilidade. E essa visão era, de fato, o
ponto de partida de sua própria obra sobre Economia, é quase trágico, no entanto, que Walras, que era
normalmente tão preciso e claro, imaginasse que havia descoberto a prova rigorosa, que não encontrou
nos defensores contemporâneos do dogma do livre comércio, simplesmente porque revestiu de uma
fórmula matemática os mesmos argumentos que considerava insuficientes quando expressos em
linguagem comum.59

54
Principles, p. 19.
55
Wealth of Nations, vol. II, p. 168.
56
Ibid., vol. I, p. 13.
57
Ibid., p. 12.
58
Ver p. 49.
59
Lectures on Political Economy, p. 74
A distinção que Pigou fez entre o produto líquido social e o privado abriu uma larga brecha
através da qual as exceções poderiam fluir.
A ênfase geral, ao mesmo tempo, está toda do lado do laisser faire.
[49] Como era possível manter os dois lados da doutrina separados – o programa totalmente
revolucionário indicado pela teoria da utilidade e a ideologia totalmente conservadora do laisser
faire?
Antes de mais nada, precisamos ver que, embora logicamente a tarefa apresentasse
dificuldades insuperáveis, no plano teológico ela era realmente bastante fácil. Os discípulos dos
economistas, embora não tivessem grandes posses, pertenciam, no todo, a estratos sociais que não
se ressentiam da desigualdade. Aqueles que tinham uma formação socialista geralmente rejeitavam
todo o tema como uma impostura. Os estudantes dessa matéria estavam sempre prontos a ter suas
consciências sociais tranqüilizadas.
O método pelo qual o elemento igualitário da doutrina era esterilizado era principalmente o
de passar da utilidade para a produção física como o objeto a ser maximizado. Um total menor de
bens físicos, igualmente distribuído, poderia ser claramente admitido como possuindo mais
utilidade do que um total muito maior desigualmente distribuído, mas se damos maior atenção ao
total dos bens torna-se fácil esquecer a utilidade. Marshall curou-se de sua formação socialista
examinando a renda nacional física.
Desenvolvi uma tendência ao socialismo; que foi fortalecida mais tarde pelo ensaio de Mill na Fortnightly
Review em 1879. Portanto, por mais de uma década, permaneci sob a convicção de que as idéias
associadas à palavra “socialismo” eram o objeto de estudo mais importante para mim, senão no mundo,
ao menos de todos os acontecimentos. Mas os escritos dos socialistas geralmente me repeliam, quase
tanto quanto me atraíam; porque pareciam muito distantes da realidade, e, em parte, por essa razão decidi
falar pouco sobre o assunto, até que eu tivesse pensado bastante mais.
Agora, quando a velhice indica que meu tempo para pensar e falar está próximo do fim, vejo por todos os
lados um desenvolvimento maravilhoso das faculdades da classe operária e, parcialmente em
conseqüência, um fundamento mais firme e amplo para os esquemas socialistas do que existia quando
Mill escreveu. Mas nenhum esquema socialista, mesmo avançado, parece tomar providências adequadas
para a manutenção do alto empreendimento e da força de caráter do indivíduo; nem parece prometer um
crescimento suficientemente rápido das instalações empresariais e de outros instrumentos materiais da
produção que permitam que as rendas reais das classes trabalhadoras manuais continuem a crescer tão
rapidamente quanto no passado recente, mesmo se a renda total do país fosse igualmente distribuída por
todos...60
O nível médio da natureza humana no mundo ocidental cresceu rapidamente durante os últimos cinqüenta
anos. Mas me pareceu que quem realmente fez maiores progressos reais em direção ao distante objetivo
de uma organização social idealmente perfeita foram aqueles que concentraram suas energias em algumas
dificuldades particulares encontradas no caminho, e não gastaram suas forças tentando ultrapassá-las
apressadamente.61
Nesse poente meloso de sua vida ele se sentia capaz de reiterar o que havia escrito há mais
de vinte anos antes:
[50] O problema das metas sociais assume novas formas em cada época; mas há um princípio
fundamental na base de tudo, a saber, que o progresso depende principalmente da maneira como são
utilizadas as mais poderosas, e não apenas as mais altas, forças da natureza humana para o aumento do
bem social. Há certas dúvidas quanto ao que realmente é o bem social, mas elas não chegam
suficientemente longe a ponto de abalar as fundações do princípio fundamental. Pois sempre houve um
substrato de acordo de que o bem social se baseia fundamentalmente nesse exercício e desenvolvimento
saudáveis de faculdades que produzem a felicidade sem entraves, porque sustentam o auto-respeito e são
sustentadas pela esperança. Nenhuma utilização de gases desperdiçados no alto-forno pode ser comparada
ao triunfo de fazer o trabalho para o bem público aprazível por si mesmo, e de estimular os homens de
todas as classes a grandes empreendimentos por outros meios que não essa evidência de poder que se
manifesta pelo desperdício. Precisamos incentivar o trabalho de qualidade e a iniciativa sadia com a brisa

60
Industry and Trade, p. vii.
61
Ibid., p. 664.
quente da simpatia e do apreço daqueles que verdadeiramente o entendem; precisamos levar o consumo
por caminhos que fortaleçam o consumidor e que tragam à tona as melhores qualidades daqueles que
fornecem para o consumo. Reconhecendo que há alguns trabalhos que devem ser feitos e que não são
enobrecedores, devemos procurar aplicar o conhecimento crescente e os recursos materiais do mundo
para reduzir tais trabalhos a limites estreitos, e extirpar todas as condições de vida que são em si mesmas
aviltantes. Não pode haver uma grande melhoria repentina nas condições de vida do homem; pois ele as
forma tanto quanto elas o formam, e ele mesmo não pode se modificar tão rapidamente: mas precisa
pressionar firmemente na direção do objetivo distante onde a oportunidade de uma vida nobre possa ser
acessível a todos.62
A justificação da desigualdade baseada em que apenas os ricos poupam, e que, portanto, a
desigualdade é necessária para a acumulação de capital, estava relacionada a essa concepção. Isso
de certa forma tem um certo sabor da teimosia clássica, mas era sempre apresentado de uma forma
suavizada – pode-se confiar na desigualdade para aumentar o total a ser dividido a tal ponto que
mesmo a menor partilha seria maior do que poderia ser num sistema igualitário. E, como um
argumento subsidiário, dizia-se que a redistribuição da renda não iria na realidade aumentar de
forma apreciável a renda de ninguém.
Deve ter havido uma boa parte de teimosia em tudo isso. O único ponto que nos interessa
aqui é a elegante mágica que fez com que a moral igualitária da teoria da utilidade desaparecesse
diante de nossos olhos.
A outra forma de fazer desaparecer a moral igualitária da teoria da utilidade foi admiti-la
francamente, mas separá-la radicalmente da questão do total a ser distribuído. Ainda se fazem
exercícios em que se supõe que se está tratando da distribuição, por exemplo, através de um sistema
de taxas e prêmios e então se mostra como o mercado livre leva à satisfação máxima. Ninguém,
evidentemente, leva as taxas e prêmios a sério, ou se pergunta como um sistema econômico que
depende da motivação monetária [51] funcionaria se a renda fosse distribuída entre os indivíduos
independentemente de seus esforços; ou como a motivação pelo lucro funcionaria quando ninguém
estivesse autorizado a guardar o que ganhou, acima do nível médio, para o benefício de sua própria
família.
Em toda essa espécie de análise, que ainda é ensinada e que ainda está sendo elaborada com
novos ornamentos, a noção de julgamento ético pretende estar excluída, e todo exercício é levado
adiante como uma peça de lógica pura. Para os praticantes nesse campo a própria idéia de
implicações morais é repugnante.
De qualquer maneira, mesmo os economistas são seres humanos, e não podem se despir de
toda roupagem do pensamento humano. Seu sistema está saturado de sentimentos morais. Aqueles
que estão dentro, que cresceram habituados a respirar seu próprio ar balsâmico, perderam o poder
de cheirá-lo. Àqueles que se aproximam de fora e que reclamam que o aroma é enjoativo, os de
dentro indignados respondem: “O cheiro está em suas próprias narinas. Nosso objetivo é totalmente
inodoro, científico, lógico e livre de julgamentos de valor.”
A preocupação inconsciente por trás do sistema neoclássico era principalmente elevar os
lucros ao mesmo nível da respeitabilidade moral dos salários. O trabalhador é merecedor de seu
salário. E o capitalista, o que merece? A atitude teimosa dos clássicos, que viam na exploração a
fonte de riqueza nacional, foi abandonada. O capital não é mais originalmente um adiantamento dos
salários necessário pelo fato de que o trabalhador não tem propriedades e não pode se manter até
que os frutos de seu trabalho apareçam. O capital está de certa forma identificado com o tempo de
espera, e fabrica o produto extra que um período mais longo de gestação torna possível. Como o
capital é produtivo, o capitalista tem um direito à sua porção. Como só os ricos poupam, a
desigualdade está justificada. Enquanto isso, a corrente do programa totalmente revolucionário flui
ao lado, fazendo girar as rodas idílicas da teoria pura do Bem-Estar Social.

62
Ibid., pp. 664, 665.
2
Havia dois ramos bastante separados do sistema neoclássico, cada um com seu próprio
modelo analítico e sua própria marca anódina para as dúvidas morais.
A distinção não é muito enfatizada hoje em dia e é em geral totalmente omitida. Por
exemplo, Schumpeter nas notas de seu grande History of Economic Analysis sustenta que o âmago
da teoria de Marshall é praticamente o mesmo que o esquema estabelecido por Walras.63
[52] Na verdade há uma diferença básica entre eles com relação à oferta de capital. Para
Walras, Jevons, os austríacos, Wicksell (e talvez para Lorde Robbins, que viu a alocação de
recursos escassos entre usos alternativos como objeto central, senão único, da economia), é natural
que a oferta de fatores de produção seja dada. Cada empregador de fatores procura minimizar o
custo de seu produto e maximizar seu próprio rendimento, cada partícula de um fator procura o
emprego que maximize sua renda e cada consumidor planeja seu consumo para maximizar a
utilidade. Há uma posição de equilíbrio na qual cada indivíduo está fazendo o melhor por si mesmo,
de modo que nenhum tem qualquer incentivo para se mover. (Que os grupos se combinem para
melhorarem coletivamente, está estritamente fora das regras.) Nessa posição cada indivíduo está
recebendo uma renda regida pela produtividade marginal do tipo de fator que fornece, e a
produtividade marginal é regida pela escassez relativa à demanda. Aqui “capital” é um fator como
todos os outros, e a distinção entre trabalho e propriedade desapareceu de vista. Colocar tudo isso
em termos algébricos é de grande ajuda. As relações simétricas entre x e y parecem tranqüilas e
cordiais, inteiramente livres das associações de aspereza que poderiam ser sugeridas pelas relações
entre “capital e trabalho”; e a aparente racionalidade do sistema de distribuição do produto entre os
fatores de produção oculta a natureza arbitrária da distribuição dos fatores entre os participantes.
O esquema de Marshall é bastante diferente. Os fatores de produção não são simplesmente
dados, possuem um preço de oferta; há uma certa taxa de rendimento que é preciso que um fator
receba para pôr uma certa quantidade de si em uso. Esse preço não é um custo, mas mede o custo –
o custo dos esforços e sacrifícios dos trabalhadores e dos capitalistas. Os esforços dos trabalhadores,
evidentemente, significam apenas trabalho. O sacrifício dos capitalistas é a espera. Isso deixa a terra
sem um custo real e a renda sem uma justificação moral (mas agora é muito tarde para se
nacionalizar a terra e, de qualquer forma, um capitalista individual que investiu em propriedades
está esperando tanto quanto qualquer outro).
Nenhum dos esquemas conseguiu se estabelecer satisfatoriamente. As contradições de cada
um deles poderiam ter passado desapercebidas (ou poderiam ter sido deixadas de lado como quebra-
cabeças que devem ter uma resposta que será encontrada em breve) porque toda a ênfase não estava
na estrutura do sistema, mas no seu funcionamento interno – a teoria dos preços relativos – que
agora se havia tornado o objeto quase exclusivo de discussão e fora elaborado com detalhes
infindáveis.
A falha do primeiro esquema é que ele não fornece nenhuma maneira de considerar uma
taxa de lucro sobre o capital e uma taxa de juros sobre o financiamento. Os fatores que são
fornecidos são dados em uma forma concreta: o capital se constitui de máquinas e estoques de
mercadorias. No equilíbrio de mercado cada máquina tem seu próprio preço de aluguel [53] que se
deriva da procura pelas mercadorias particulares que ela auxilia a produzir. Se há qualquer
tendência a igualar a taxa de lucro sobre o capital em geral, deve ser porque os capitalistas podem
trocar seus fatores, de uma forma concreta que está rendendo uma renda mais baixa, para outra que
promete mais. Mas então não há oferta de fatores concretos que seja dada, mas uma quantidade de
“capital” em abstrato. O que se quer dizer por poupança – que uma quantidade de “capital”
permanece a mesma quando muda sua forma – é um mistério que nunca foi explicado até hoje.
Marshall se agarrou ao outro lado do problema. O preço, enquanto preço de oferta da espera,
leva naturalmente à interpretação de que uma certa taxa de lucro irá induzir uma certa taxa de
63
Op. cit. p. 837.
acumulação. Para cada taxa de crescimento de uma economia há um nível particular de lucro
normalmente esperado no investimento, e em condições concorrenciais qualquer linha particular
que prometa mais do que a taxa normal irá rapidamente atrair mais do que sua parte no
investimento, a ponto de fazer baixar o rendimento, contrariamente a quando os lucros prospectivos
estão abaixo do nível normal. Portanto, um fluxo e refluxo contínuo tende a estabelecer um nível
constante em todo o sistema. Mas o que Marshall necessita é de uma taxa de lucro apropriada para
um estoque de capital, não a uma taxa de acumulação. Terra, trabalho e espera são os fatores de
produção; renda, salários e juros, suas recompensas. Contudo, tratar a posse de um estoque de
capital como sendo um “sacrifício” a ser somado aos “esforços” dos trabalhadores não é muito
brilhante. Marshall deixou a coisa toda muito nebulosa, e desde então ela sempre foi nebulosa.
Foi o Professor Pigou quem conciliou os dois lados da doutrina neoclássica colocando-a
numa posição de equilíbrio estacionário, quando a acumulação chegou ao fim. Para possuir
qualquer quantidade de riqueza, medida em poder de compra, os capitalistas, em sua capacidade de
proprietários, necessitam de uma taxa de juros particular, correspondente à sua taxa de desconto
marginal do consumo futuro. Dada a quantidade de riqueza em existência, uma taxa de juros mais
baixa iria levá-los a consumir mais, uma taxa mais alta os levaria a poupar. Há, também, uma taxa
de lucro na qual os capitalistas, em sua condição de empresários, desejam fazer uso de seu estoque
de bens de capital concretos que incorpora uma quantidade particular de riqueza, sendo a taxa de
lucro regida pela produtividade marginal do capital. O equilíbrio existe quando o estoque de capital
é tal que a taxa de juros que representa seu preço de oferta é igual à taxa de lucro que representa seu
preço de demanda. Dessa forma, as equações de Walras podem ser encaixadas, e um único padrão
de preços e quantidades aparece, a pressão que cada parte exerce sobre o resto mantendo o todo em
equilíbrio.
As estruturas lógicas desse tipo têm um certo encanto. Permitem àqueles sem formação
matemática perceberem o que significa a beleza intelectual. [54] Isso foi um grande apoio para elas
em sua função ideológica. Diante de tal elegância, só um filisteu poderia reclamar que a
contemplação de um estado estacionário último, quando a acumulação chega ao fim, não está nos
ajudando muito com os problemas de hoje em dia.

3
Em um ponto a escola do laisser-faire tinha uma plataforma política definida. Eram fortes
defensores do Livre Comércio. Essa foi, sem dúvida alguma, durante todo tempo, a doutrina central
da Economia Política. A principal tese de Adam Smith, fazendo-a avançar do ponto deixado pelos
fisiocratas, era diretamente contra o Mercantilismo. A teoria da renda de Ricardo levou à abolição
das leis dos cereais. Para os neoclássicos, a crença no Livre Comércio transformou-se na verdadeira
característica de um economista: o protecionismo pertencia às espécies inferiores desprovidas de
lei.
O caso do Livre Comércio era basicamente a mesma coisa que o caso geral da busca
individualista do lucro, embora, tendo como ponto de partida a teoria dos custos comparativos de
Ricardo, ela tenha recebido uma forma diferente. Ela exibia uma posição de equilíbrio em que a
concorrência levava à máxima utilidade no mundo como um todo sendo produzida por recursos
dados.
Mas, para apelar para os políticos e os eleitores, o bem do mundo como um todo era muito
pouco. O argumento de que a proteção só poderia beneficiar um país às custas do resto do mundo
não funcionaria; o público poderia responder: “Se ela vai nos beneficiar, leve-nos a ela.” Nem era
suficiente provar, num estilo clássico teimoso, que o Livre Comércio iria beneficiar o Reino Unido.
Deveria ser mostrado que, sob ele, todo e qualquer país avançaria, de forma que pudesse ser
apregoado em todo mundo com uma boa consciência. Os protecionistas eram apresentados como
sendo meros batalhadores, nas antecâmaras, por determinados interesses. Uma tarifa poderia
beneficiar uma troca, mas certamente traria mais prejuízo para o resto da economia do que benefício
para os protegidos. (Escrúpulos sobre adicionar utilidades, fazer comparações interpessoais e
admitir julgamentos de valor eram deixados de lado nesse momento. Sua função era combater
pensamentos perigosos entre os cidadãos, e não solapar as bases lógicas do dogma do Livre
Comércio.)
É bem verdade que o pedido de uma tarifa surge mais comumente nas antecâmaras do que
em qualquer outro lugar, mas não é verdade que não se possa encontrar nenhum bom argumento
nacional para o protecionismo.
Vejamos como a doutrina neoclássica contornou isso. Estabeleceu-se um modelo para a
teoria pura do comércio internacional, cada país ficando numa condição estática, com uma
população, recursos naturais, estoque [55] de capital e conhecimentos técnicos dados. O equilíbrio
internacional também prevalecia, com o valor das importações igual ao das exportações. As
condições de pleno emprego e concorrência perfeita eram assumidas como certas. Os benefícios do
comércio, se opondo ao isolamento, eram mostrados em termos desse modelo.
Agora, na vida real, uma razão para que as nações lancem mão do protecionismo é visar o
aumento do emprego internamente. Não há lugar para esse argumento na teoria pura, pois o pleno
emprego já está alcançado. (Pigou, sem dúvida, concordou que em certos casos a imposição de uma
tarifa pode aliviar o desemprego causado pela quebra da posição de equilíbrio a ser estabelecida,
mas ele se protegeu de tirar qualquer conclusão positiva da análise citando a visão de Sidgwick de
que, embora a teoria pudesse apontar casos onde a proteção fosse boa, não se podia confiar nas
mãos grosseiras do Governo, para a delicada tarefa de escolher os casos certos.64)
Novamente, um país pode restringir suas importações para corrigir o balanço de
pagamentos. Mas na teoria pura existe um mecanismo, funcionando através de fluxos de ouro, que
irá ajustar os preços fazendo com que as importações e as exportações se equilibrem.
Depois há a questão de desenvolver as indústrias nacionais de modo que possam atingir os
produtores estrangeiros que, no momento, estão vendendo a preços inferiores a elas. Nesse ponto
era totalmente impossível evitar que o senso comum interviesse. Uma exceção tinha que ser feita
para as “indústrias incipientes”. No entanto, essas estavam incluídas numa dessas caixas vazias
rotuladas “rendimentos crescentes”; quem quer que pretendesse ao status de “incipiente” era
altamente suspeito; a idéia, que hoje em dia é um lugar-comum, de que a proteção pode promover o
desenvolvimento industrial como um todo em países atrasados nunca foi trazida à baila.
Mesmo assim, após todos os problemas de interesse terem sido excluídos, a hipótese do
Livre Comércio como um benefício para cada nação não pôde ser provada. O ponto fraco da análise
estava na subestimação das implicações da aceitação de uma concorrência perfeita universal. É
bastante óbvio que qualquer grupo de vendedores pode naturalmente tirar melhor proveito, para si
mesmo, coletivamente pelo acordo de sustentar os preços do que competindo individualmente. Eles
fazem menos negócios, mas a um lucro mais alto por unidade. Similarmente, qualquer nação dentro
das condições do modelo de equilíbrio retiraria maior benefício com um volume menor de comércio
a preços de exportação mais elevados em relação às importações do que numa posição de livre
comércio. Isso foi apontado num artigo, agora famoso, de Bickerdike, criticando Edgworth [56] em
função de sua própria análise diagramática. Edgworth foi obrigado a admitir a crítica, e avançou a
correção, ao caso do livre comércio puro, de que uma pequena tarifa poderia ser benéfica. 65 É uma
“pequena” tarifa no mesmo sentido em que um monopolista faz um “pequeno” aumento sobre o
preço competitivo. O preço mais compensador não é o preço mais alto possível, ao qual as vendas
seriam muito reduzidas, mas aquele que permite o mais alto múltiplo de lucro por unidade com as
unidades vendidas.

64
Public Finance, p. 209.
65
Papers Relating to Political Economy, vol. II, “Bickerdike's Theory of Incipient Taxes”.
Essa foi uma grande brecha deixada na questão do Livre Comércio. Como ela foi tratada?
Simplesmente perdeu-se de vista. O artigo de Bickerdike é bem conhecido agora, pois foi retirado
do esquecimento quando Abba Lerner redescobriu a mesma questão nos anos trinta 66 e a partir de
então foi discutido em toda parte. Mas até então havia sido efetivamente abafado. Num volume
agora esquecido, que representa um embaraço no pensamento neoclássico, a questão é tratada da
seguinte maneira:
Há um argumento altamente teórico, sobre a possível vantagem para um país de alterar os termos de troca
em seu favor (isto é, baixar os preços do que importa em relação ao que exporta) através da imposição de
uma tarifa, a que não se faz mais nenhuma referência neste volume. Aqueles que se interessam por esse
assunto podem encontrar o argumento rapidamente explicado e respondido pelo Professor Jacob Viner
num artigo sobre “A Questão das Tarifas e o Economista” na National and Athenaeum de 7 de fevereiro
de 1931. “Nenhum economista, tanto quanto conheço” – conclui o Professor Viner – “alguma vez
afirmou que o ganho, para qualquer país, proveniente de uma alteração favorável nos termos de troca
devido ao protecionismo é capaz, em circunstâncias concebíveis, de igualar sua perda decorrente da
realocação não-econômica de seus recursos produtivos”.67
A questão era, evidentemente, que no pré-guerra de 1914, a Grã-Bretanha tinha tudo para
ganhar das outras nações que adotassem o livre comércio e muito pouco a perder se ela mesma o
adotasse. O remanescente da confiança de pré-guerra na doutrina só cedeu lugar quando o
desemprego e a fraqueza crônica da balança comercial britânica foram tão exagerados pela crise
mundial a ponto de forçar os economistas a notarem que algo havia mudado.
Marshall, a velha raposa, sabia perfeitamente bem que era uma questão de interesse próprio
nacional:
Embora reconhecendo a liderança de Adam Smith, os economistas alemães ficaram mais irritados do que
quaisquer outros pelo que viram como a estreiteza e autoconfiança [57] insular da escola ricardiana.
Ressentiam-se especialmente da maneira com que os defensores ingleses do livre comércio admitiam
tacitamente que uma proposição que havia sido estabelecida em relação a um país manufatureiro, como
era a Inglaterra, pudesse ser transferida sem modificações para países agrícolas. O gênio brilhante e o
entusiasmo nacional de List jogaram por terra essa suposição; e mostraram que os ricardianos levavam
muito pouco em consideração os efeitos indiretos do livre comércio. Não se faria grande mal em
negligenciá-los enquanto se tratasse da Inglaterra, porque eles eram os principais beneficiados e portanto
se somavam à força de seus efeitos diretos. Mas ele mostrou que na Alemanha, e mais ainda na América,
boa parte de seus efeitos indiretos eram negativos, e afirmou que esses aspectos negativos excediam seus
benefícios diretos.68
Mas isso era sobretudo um apêndice maçante aos Principles, sobre a história do
pensamento, e poucos dos alunos de Marshall estavam conscientes de que ele tivesse sido tão
indiscreto a ponto de mencionar que o Livre Comércio era bom para nós, mas não deveria ser tão
bom para os outros.

4
Com a utilidade veio a Matemática, e parecia prometer uma nova alvorada para a Economia
enquanto objeto científico real. O esquema de pensamento de Ricardo era matemático, mas ele não
sabia Álgebra. Para Jevons, a Matemática era a chave:
Parece perfeitamente claro que a Economia, se quiser ser uma ciência, deve ser uma ciência matemática.
Existe muito preconceito contra as tentativas de introduzir os métodos e a linguagem da Matemática em
qualquer ramo das Ciências Morais. Muitas pessoas parecem afirmar que as Ciências Físicas formam a
própria esfera do método matemático, e que as Ciências Morais exigem outro método, não sei qual.
Minha teoria econômica, entretanto, é puramente matemática em seu caráter.
Não sei quando devemos ter um sistema perfeito de estatística, mas a necessidade de um é o único
obstáculo insuperável no caminho para transformar a Economia Política numa Ciência Exata. 69
66
“The Diagrammatic Representation of Demand Conditions in International Trade”, Economica, agosto de 1934.
67
Tariffs: The Case Examined, Sir William Beveridge e outros, p. 14, nota 1.
68
Principles, p. 767.
69
Theory of Political Economy, 1ª ed., p. 3.
Edgworth foi quem fez o maior protesto. A felicidade deve ser medida como uma
quantidade bidimensional, as dimensões sendo a intensidade e o tempo, e a unidade o mínimo
aumento sensível em ambas as direções. O princípio utilitarista de que a política deve ser dirigida
para o maior bem do maior número exige a adição da felicidade de indivíduos separados, e
Edgworth não via nenhuma dificuldade nisso:
Em virtude de que unidade tal comparação é possível? Eis aqui: Qualquer indivíduo experimentando uma
unidade de prazer-intensidade durante uma unidade de tempo deve “contar por um”. A utilidade, portanto,
tem três dimensões; uma massa [58] de utilidade, “um lote de prazer”, é maior do que outra quando tem
mais unidades de intensidade, tempo e número. a terceira dimensão é, sem dúvida, uma aquisição
evolutiva, e está ainda longe de ter evoluído inteiramente.
Olhando para nossa escala tríplice, não encontramos nenhuma dificuldade particular sobre a terceira
dimensão, é uma questão de recenseamento. A segunda dimensão é uma questão de cronometragem,
admitindo que a distinção aqui levantada, entre medida de tempo subjetivo e objetivo, é de menor
importância. Mas a primeira dimensão, onde deixamos o terreno seguro da objetividade, igualando à
unidade cada mínimo sensível, apresenta, sem dúvida alguma, dificuldades peculiares. Átomos de prazer
não são fáceis de distinguir e discernir; mais contínuos do que a areia, mais discretos do que o líquido;
como se fossem núcleos do apenas perceptível, encaixados na semiconsciência circum-ambiente.
Não podemos contar os grãos de areia de ouro da vida; não podemos enumerar os “sorrisos inumeráveis”
dos mares de amor; mas parece que somos capazes de observar que há aqui uma maior, e lá uma menor,
quantidade de unidades de prazer, de massa de felicidade; e isso basta.70
Isso parece levar diretamente a um igualitarismo do tipo mais descomprometido, mas
Edgworth conseguiu evitá-lo:
A concepção central do Cálculo Utilitário é a Maior Felicidade, a maior soma total possível de
prazer alcançada durante todo o tempo e sobre toda a sensibilidade. Os raciocínios matemáticos são
utilizados parcialmente para confirmar a prova do Sr. Sidgwick de que a Maior Felicidade é o fim
da boa ação; e, parcialmente, para deduzir axiomas intermediários, meios que conduzem a esse fim.
Essa dedução tem um caráter muito abstrato, talvez apenas negativo; negativando a afirmação de
que a Igualdade está necessariamente implícita no Utilitarismo. Pois, se os sensitivos diferem em
sua Capacidade para a Felicidade – sob circunstâncias semelhantes algumas classes de sensitivos
sentem em média mais prazer (por exemplo, de imaginação e simpatia) e menos dor (por exemplo,
de cansaço) do que outras – não há nenhuma suposição de que a igualdade de circunstâncias seja o
arranjo que proporcione maior felicidade, especialmente quando se leva em conta os interesses da
posteridade.71
Essa cláusula-escape tem sido sempre considerada útil, mas é ela precisamente que
desmascara o jogo. Uma unidade de medida implica um acordo convencionado que é o mesmo para
todo mundo. Trancado na consciência subjetiva do indivíduo, não é de nenhuma forma uma
unidade. A unidade de felicidade é o mesmo tipo de miragem que o valor absoluto de Ricardo e o
trabalho abstrato de Marx.
Essa espécie de pseudo matemática continua florescendo hoje em dia. A utilidade
quantitativa já desapareceu há muito, mas ainda é bastante comum criarem-se modelos nos quais
aparecem quantidades de “capital”, sem nenhuma indicação de que quantidade está se tratando.
Assim como o problema de dar um significado operacional para a utilidade foi evitado [59] pondo-a
num diagrama, assim também o problema de dar um significado à quantidade de “Capital” é evitado
exprimindo-o através da Álgebra. K é capital, ΔK é investimento. Então, o que é K? Ora, é capital,
claro. Deve significar alguma coisa, portanto deixe-nos prosseguir com a análise, e não nos perturbe
com esse pedantismo intrometido que quer o significado das coisas.
A despeito dessa herança de maus hábitos, a Economia lucrou enormemente com a
disciplina introduzida pelos marginalistas.

70
Mathematical Psychics, p. 8.
71
Ibid., p. vii.
Mais uma vez, os conceitos metafísicos, que são, estritamente falando, um disparate, deram
uma contribuição à ciência. O método da análise econômica é um hábito de pensamento, que, para
qualquer um que o possua, aparece como simples senso comum. Uma pessoa só lhe dá valor quando
começa a discutir com alguém que não o possui. O Sr. Little descreve suas experiências em
Whitehall da seguinte maneira:
Antes de me ter tornado consultor econômico, eu achava difícil compreender em que os economistas
eram úteis (exceto em alguns campos limitados). Parecia-me que o quadro essencial básico das idéias
utilizáveis era tão simples e limitado que qualquer homem capaz, relacionado com assuntos econômicos,
poderia e iria adquiri-las na medida em que ganhasse experiência, sem nenhuma necessidade de um
treinamento formal. Assim que alguém se perde sob esse campo muito limitado de pensamento, a teoria
econômica torna-se inaplicável. E assim como para qualquer método realmente profissional de predição,
qualquer economista sensato encara-a mais como um exercício exploratório sobre método do que como
uma prática em que se pudesse confiar... .
Minha experiência em Whitehall me curou do mal-estar causado pela idéia de que meu tema de estudo era
muito importante. Não quero com isso dizer que o conhecimento da Economia acadêmica seja uma
condição sine qua non para que se possa dar bons conselhos sobre assuntos econômicos. Existem
praticantes de primeira classe da arte que não brilhariam num seminário universitário. Mas eu estava
convencido de que um conhecimento extensivo da teoria e da controvérsia econômica (assim como uma
familiaridade quantitativa com os fatos econômicos e algum conhecimento da histórica econômica
moderna) é bastante útil – mais útil do que o Latim, a Lógica e a História da Antigüidade. .. .
A teoria econômica nos ensina como as grandezas econômicas se relacionam, e o quanto essas relações
são complexas e emaranhadas. Os não-economistas tendem a ser muito acadêmicos. Abstraem demais do
mundo real. Ninguém pode pensar sobre fatos econômicos sem alguma teoria, porque os fatos e as
relações são extremamente emaranhados para se organizarem por si mesmos; não se colocam
simplesmente em seus lugares. Mas, se o teórico é inculto, é capaz de construir uma teoria muito parcial
que não permite que veja algumas das possibilidades. Ou então recai em alguma teoria velha ou simplista,
escolhida aqui ou ali. Ele é capaz também, creio eu, de interpretar o passado ingenuamente. Post hoc ergo
propter hoc é raramente uma explicação econômica adequada. Eu, por vezes, me chocava pela certeza
ingênua com que trechos bastante questionáveis da análise econômica eram tratados em Whitehall.72
[60] Em sua própria época, o esquema neoclássico foi bem estéril em resultados. Jevons
começou bastante cedo com a investigação estatística, mas sua liderança foi pouco seguida por
outros teóricos (embora se tenham realizado muitos trabalhos em estudos realísticos sem benefício
para a teoria). As generalizações estatísticas do tipo da assim chamada lei de distribuição de Pare to
ou a suposta regularização do ciclo econômico não surgiram do núcleo central de análises e foi
necessário estabelecer teorias especiais para explicá-las.
Bem no final do reinado dos neoclássicos, o Professor Clapham caçoava dos economistas:
Imagine um economista, bem-educado na escola britânica dominante, indo a uma fábrica de chapéus. Nas
prateleiras do depósito – a primeira sala em que entra – encontram-se caixas contendo chapéus. Nas
prateleiras de sua mente também se encontram caixas. Tem uma fileira denominada Indústrias com
Rendimentos Decrescentes, Indústrias com Rendimentos Constantes, Indústrias com Rendimentos
Crescentes. Acima, outra prateleira poeirenta, denominada Monopólios (com discriminação de três
graus), de Indústrias com Rendimentos Decrescentes, Indústrias com Rendimentos Crescentes e
Indústrias com Rendimentos Constantes. Mais acima ainda, ele só consegue ler as etiquetas. Taxa sobre
Monopólios de Indústrias com Rendimentos Decrescentes – e assim por diante. Ele está consciente de que
essas caixas não são muito proeminentes nas prateleiras de alguns economistas cujo mobiliário mental ele
geralmente aprova; mas ele as recebeu de seu mestre e as viu sendo carregadas com belíssima
ingenuidade por seus colegas. Não consegue, no entanto, se lembrar, a partir de todas as suas leituras e
conversas, de uma cena em que alguém tenha aberto as caixas e dito, com autoridade e uma evidência
convincente: “Indústrias de Rendimentos Constantes, meias”, “Indústrias de Rendimentos Decrescentes,
chapéus”, ou que tenha se utilizado de qualquer dessas palavras. Nem consegue pensar em uma
monografia industrial que faça um uso lucrativo da Lei dos Rendimentos ao comentar as coisas da vida.
Talvez ele mesmo tivesse tentado escrever uma pequena monografia e se lembre agora que, sem dúvida
por incapacidade, não tenha se utilizado delas; mas que também ninguém o censurou por isso.
Retira, de memória e quando chega em casa, de suas prateleiras, Indústria e Comércio: Um Estudo Sobre
a Técnica Industrial e a Organização Comercial, com suas quase novecentas páginas cheias de coisas da

72
“The Economist in Whitehall”, Lloyds Bank Review abril de 1957, p. 35.
vida. Duas referências aos Rendimentos Constantes – uma numa nota de pé da página – e um punhado de
referências aos Rendimentos Crescentes e Decrescentes im Allgemeinen, não tão longe quanto podia
pensar em relação fechada aos fatos daquelas indústrias inglesas, francesas, alemãs e americanas de que
tanto lhe ensinou esse grande livro: isso parece ser tudo. Tenta a Economia do Bem-Estar Social para
descobrir que, em cerca de mil páginas, não há nem mesmo um exemplo sobre que indústrias estão em
que caixas, embora muitos argumentos se iniciem com “quando as condições de rendimentos
decrescentes prevalecem” ou “quando as condições de rendimentos crescentes prevalecem”, como se todo
mundo soubesse o que é isso.73
Creio que há uma dupla razão para essa esterilidade.
Primeiro, as questões em discussão não tinham importância prática. A política recomendada
era o laisser faire, e não era necessário descrever em qualquer detalhe como fazer o que quer que
seja. As máximas da taxação emergem, é verdade, da análise de Marshall, mas elas são sobretudo
um esquema de exposição e não uma receita para a política. As mercadorias com demanda
inelástica eram de qualquer forma taxadas porque são produtoras de renda, e a tese de Marshall
sobre o excedente do consumidor não adiciona nada. Assim como com as taxas e subsídios de
Pigou, se alguém os tivesse levado a sério estaria buscando ansiosamente as indústrias com
rendimentos crescentes e decrescentes, e isso era exatamente (como mostrou Clapham) o que
ninguém estava fazendo.
À parte a defesa do Livre Comércio, não havia muito o que dizer sobre questões práticas
surgindo do âmago da teoria do laisser-faire (em oposição a várias questões distintas que foram
levantadas de tempos em tempos pelos acontecimentos transitórios); foi devido ao fato de sua única
ligação com a política ter sido negativa que a teoria fez tão pouco progresso no desenvolvimento de
conceitos operacionais que pudessem ser utüizados sobre dados reais.
A segunda razão por que os neoclássicos estavam tão isolados da prática era a dominância
do conceito de equilíbrio na própria teoria. A função da teoria econômica, em oposição à teologia
econômica, é estabelecer hipóteses que possam ser testadas. Mas, se uma hipótese é enquadrada em
termos de posição de equilíbrio que será atingido quando todas as partes interessadas tiverem a
previsão correta, não há razão em testá-la; já sabemos de antemão que ela não poderia provar ser
correta. A dominância do equilíbrio era justificada pelo fato de que é excessivamente complicado
pôr num só modelo tanto os movimentos do todo no tempo como a interação detalhada das partes.
Era necessário por motivos puramente intelectuais escolher entre um modelo dinâmico simples e
um modelo estático complexo. Mas não foi por acidente que a escolha recaiu sobre o modelo
estático; as harmonias suavizantes do equilíbrio apoiavam a ideologia do laisser-faire e a elaboração
do argumento manteve-nos suficientemente ocupados a ponto de não termos tempo para
pensamentos perigosos.

73
"Of Empty Economic Boxes", Economic Journal, setembro de 1922.
IV
A REVOLUÇÃO KEYNESIANA
[63]
Alguns dos contemporâneos e antecessores de Keynes não gostam da expressão “a
Revolução Keynesiana”. Não havia nada de tão novo na General Theory74, dizem eles.
Evidentemente, tudo pode ser encontrado em Marshall, mesmo a General Theory. Mas sabemos o
que pensavam os alunos de Marshall, que ingressaram no Tesouro, pelo famoso White Paper de
1929,75 que foi um exemplo da teoria neoclássica em ação. Nas eleições gerais desse ano, Lloyd
George baseava sua campanha na promessa de abolir o desemprego, que há muito estava acima de
10% (depois aumentou para 20%), através de um programa de obras públicas. O Tesouro (muito
impropriamente, de um ponto de vista constitucional) foi consultado para mostrar por que isso era
impossível. Sua tese era muito simples. O fundo total de poupança já está dado, e se usarmos mais
para investimentos internos os empréstimos estrangeiros, e conseqüentemente o excedente
exportável, se reduziria correspondentemente; não haveria nenhuma vantagem para a economia
como um todo.76
Hoje em dia isso parece simplesmente engraçado. Não é necessário repetir agora a
conhecida história da vitória duramente alcançada pela teoria da demanda efetiva; estamos mais
preocupados em ver a importância da nova linha para os temas que estivemos discutindo.

1
Antes de mais nada, Keynes trouxe de volta algo da teimosia dos clássicos. Via o sistema
capitalista como um sistema, um negócio em desenvolvimento, [64] uma fase do desenvolvimento
histórico. Por vezes ele o via com raiva e desespero, mas no geral o aprovava ou sentia que valia a
pena tentar consertá-lo e fazê-lo funcionar toleravelmente bem. Mas, da mesma forma que Adam
Smith, sua defesa se baseava na conveniência:
De minha parte, creio que o Capitalismo, se gerido inteligentemente, pode provavelmente ser
transformado em algo mais eficiente para atingir os fins econômicos do que qualquer outro sistema
alternativo em vista, mas em si mesmo ele é, em vários pontos, extremamente questionável. Nosso
problema é elaborar uma organização social que seja tão eficiente quanto possível sem atentar contra
nossas noções de um modo de vida satisfatório.77
Em segundo lugar, Keynes trouxe de volta o problema moral que a teoria do laisser faire
havia abolido. É bem verdade que em Cambridge nunca nos ensinaram que a Economia deveria ser
wertfrei ou que o positivo e o normativo podem ser claramente separados. Sabíamos que a busca era
tanto pelos frutos como pela luz. Mas o analgésico do laisser faire funcionou bastante bem mesmo
em Cambridge. Marshall, certamente, foi um grande moralizador, mas de alguma forma a moral
sempre aparecia como: seja o que for, está muito próximo do melhor. Pigou elaborou a tese de seu
Economics of Welfare em termos de exceções à regra de que o laisser faire garante a máxima
satisfação. Não questionou a regra. Os reajustamentos eram necessários para tornar a distribuição de
recursos entre seus usos a mais eficiente possível. A desigualdade da distribuição do produto
levantava dúvidas, mas estas eram facilmente transformadas em devaneios utópicos. Mesmo
Keynes, como acabamos de ver, embora não gostasse muito das motivações pelo lucro, acreditou
(nos anos 20) que elas proporcionavam um mecanismo melhor do que qualquer outro “ainda em
vista” para operar o sistema econômico, com a reserva de que esse mecanismo não fazia,
necessariamente, o melhor uso possível de seus recursos.

74
Estão em uma posição muito difícil para dizer isso à autora, que aprendeu a ortodoxia pré-keynesiana com eles.
75
Memorandum on Certain Proposals Relating to Unemployment, Cmd. 3331.
76
Op. cit., p. 47.
77
Essays in Persuasion, p. 321.
Nos anos 30 grande parte de seus recursos não estava sendo usada para absolutamente nada.
Keynes diagnosticou a causa como um profundo defeito no mecanismo e, desse modo, incluiu uma
exceção à regra confortável de que cada homem ao melhorar sua própria situação estaria fazendo
um bem para a comunidade. Uma exceção tão ampla a ponto de romper completamente a
conciliação entre a busca do lucro privado e o benefício público.
Toda a estrutura elaborada da justificação metafísica do lucro foi pelos ares quando ele
mostrou que o capital é portador de um rendimento não porque seja produtivo, mas porque é
escasso.78 Ainda pior, a noção de [65] que a poupança é uma causa do desemprego cortou as raízes
da justificação para a renda desigual enquanto uma fonte de acumulação.
O que fez com que a General Theory tivesse tanta dificuldade em ser aceita não foi seu
conteúdo intelectual, que num ambiente mais tranqüilo pode facilmente ser dominado, mas suas
implicações chocantes. Pior do que os vícios privados serem benefícios públicos, parecia que a nova
doutrina significava a proposição ainda mais desconcertante de que as virtudes privadas (a
frugalidade e a economia cuidadosa) eram vícios públicos.
Agora, já encontramos nosso caminho. Quando o pleno emprego vai ser mantido de
qualquer maneira, a poupança é certamente mais desejável do que os gastos de um ponto de vista
público. A poupança só é prejudicial quando os investimentos não se utilizam dela. Mas em seu
tempo Keynes parecia estar defendendo um “sistema licencioso” que era muito mais questionável
do que Mandeville foi para Adam Smith. E, evidentemente, Keynes, assim como Mandeville, era
um terrível provocador. Preferia nunca adoçar a pílula. Quanto mais amarga fosse, mais bem faria.
Tornando impossível que se continuasse a acreditar numa reconciliação automática dos
interesses conflitantes num todo harmônico, a General Theory trouxe à tona o problema da escolha
e do julgamento que os neoclássicos tanto se esforçaram por abafar. A ideologia para acabar com as
ideologias sucumbiu. A Economia tornou-se novamente Economia Política.
Em terceiro lugar, Keynes trouxe o tempo de volta para a teoria econômica. Acordou a Bela
Adormecida de seu longo sono a que fora condenada pelo “equilíbrio” e a “previsão perfeita” e
deixou-a solta pelo mundo aqui e agora.
Essa libertação permitiu que a economia desse um grande passo à frente, afastando-se da
teologia e em direção à ciência. Já não é mais preciso que as hipóteses sejam enquadradas de tal
forma que já saibamos de antemão que serão refutadas. As hipóteses relacionadas com um universo
onde os seres humanos realmente vivem, onde não podem conhecer o futuro ou anular o passado,
têm, ao menos em princípio, a possibilidade de serem estabelecidas sob uma forma testável.

2
Keynes era muito cético com relação à Econometria (não é absolutamente evidente que os
trabalhos realizados nos últimos vinte anos teriam levantado suas dúvidas), mas foi ele quem tornou
possível o novo trabalho em Estatística. Em How to Pay for the War, utilizou os primeiros quadros
da Renda Nacional organizados da maneira moderna de partidas dobradas, através de um esboço
feito por Erwin Rothbarth, para ele, e sob sua influência o método foi oficialmente aceito e agora
está universalmente estabelecido.
[66] O retorno no tempo pôs a teoria econômica também em contato com a história. O
próprio Keynes perdeu os escrúpulos de um acadêmico. Escolheria qualquer exemplo para ilustrar
uma tese, e se algum o traía ele sabia sempre encontrar outro. Fez sugestões extravagantes, como a
de que o gênio de Shakespeare só poderia ter florescido em uma época de inflação, 79 ou de que a
civilização não pode ser encontrada a não ser onde existam terremotos que levem de tempos em

78
General Theory, p. 213.
79
Treatise on Money, vol. II, p. 154.
tempos a um forte movimento de reconstrução.80 Essas afirmações bem-humoradas não passavam
de ornamentos superficiais para mostrar os paradoxos da análise. (Ele planejou dedicar-se
seriamente à história econômica aos setenta anos, e não podemos saber como a teria abordado.)
Embora Keynes não fosse historiador, a General Theory abriu um vasto campo para um exame
analítico da história econômica. Anteriormente não havia praticamente nenhum vínculo entre a
história e a teoria com exceção da interpretação, agora em descrédito, do movimento de preços em
termos da oferta de ouro.
Na história, aprendemos que as invenções técnicas são o motor do desenvolvimento: na
teoria, boa parte dos exercícios partiam de “um estágio determinado de conhecimento”. As
invenções eram uma questão especial, difícil; mesmo quando abordada, o argumento era conduzido
comparando-se duas posições, com estágios distintos de conhecimento, cada um já em equilíbrio.
(Schumpeter, que trouxe uma edição expurgada de Marx para a doutrina acadêmica, fez seu sistema
depender de invenções, mas partia de certa forma do centro da ortodoxia; foi apenas depois que
Keynes rompeu as barreiras que ele pôde encontrar seu lugar.) Na história, aprendemos sobre a
ascensão e decadência dos sistemas econômicos; na teoria, há um conjunto de princípios que
governam a vida na ilha de Robinson Crusoé e entre os camponeses míticos que trocavam roupa por
vinho, assim como na cidade de Londres e em Chicago.
Na história, as nações têm várias formas e tamanhos, com várias características geográficas
e tradições sociais; na teoria, elas são apenas A e B, cada uma com uma dotação de fatores idêntica
em todos os aspectos, exceto em suas quantidades relativas, e comerciando as mesmas mercadorias.
Na história cada acontecimento tem a sua conseqüência, e a pergunta: O que teria
acontecido se esse acontecimento não tivesse ocorrido?, não passa de uma especulação inútil; na
teoria, há uma posição de equilíbrio à qual o sistema irá chegar, não importa onde tenha começado.
A General Theory rompeu com a barreira artificial e uniu novamente a história e a teoria.
Mas para os teóricos, o retorno no tempo não foi fácil. Após vinte anos, a Princesa despertada ainda
está zonza e cambaleante.
[67] O próprio Keynes ainda não estava muito firme das pernas. Sua observação sobre um
multiplicador intemporal81 é bastante suspeita. E o núcleo da análise, em torno do qual gira sua
controvérsia intermitente, se baseia em comparações de posições de equilíbrio estático de curto
prazo, cada uma com uma taxa determinada de investimento em funcionamento, embora ele
pretendesse traçar o efeito de uma mudança na taxa de investimento que ocorre em um momento do
tempo.
Keynes só estava interessado em problemas de muito curta duração (ele costumava dizer:
“O período longo é um objeto para os não-graduados”) e, portanto, não era talvez tão importante
para ele a distinção entre fazer comparações da estrutura de diferentes posições ou traçar as
conseqüências da mudança, embora tivesse havido uma violenta discussão entre ele e Sir Dennis
Robertson sobre esse ponto.82 Mas quando se chega a questões de longo prazo a distinção torna-se
indispensável, e aqueles que aprenderam a flutuar nas águas tranqüilas do equilíbrio acham as
exigências da análise histórica muito inconfortáveis. Ainda estamos escorregando e nos debatendo
como patos que pousaram num lago e o encontraram congelado.
Rompemos com o equilíbrio estático, ao menos em relação à acumulação de capital.
Aprendemos a distinguir entre o desejo de poupar e a indução a investir, e entre ambos e o preço de
oferta de um estoque de espera. Em outros ramos da Economia a substituição do equilíbrio
intemporal pelo desenvolvimento histórico ainda terá uma grande luta pela frente.

80
General Theory, p. 129.
81
General Theory, p. 122.
82
Cf. H.G. Johnson, “Some Cambridge Controversies on Monetary Theory”, Review of Economic Studies, 1951-2, XIX
(2) 49.
O próprio Keynes não estava interessado na teoria dos preços relativos. Gerald Shove
costumava dizer que Maynard nunca havia despendido os vinte minutos necessários para entender a
teoria do valor. Sobre esses tópicos ele se sentia satisfeito em deixar a ortodoxia sozinha. Carregava
consigo uma grande quantidade de bagagem marshalliana e nunca a desfez inteiramente para jogar
fora as roupas que não podia vestir. A revolução keynesiana só agora está, pouco a pouco, lutando
para entrar nesse terreno.

3
O progresso é vagaroso, em boa parte, por pura inércia intelectual. Num assunto onde não há
nenhum procedimento convencionado para eliminar os erros, as doutrinas gozam de uma longa
vida. Um professor ensina o que lhe ensinaram, e seus alunos, com todo o respeito e reverência
pelos professores, estabelecem uma resistência contra seus críticos pela simples razão de que é dele
que eles são discípulos.
[68] Temos um exemplo bem documentado no caso de Pigou e de Marshall. A crítica feita
por Pigou da General Theory83 foi severa e excessiva em seu tom e, como posteriormente ele
mesmo admitiu, logicamente incorreta. A razão dessa atitude é que ele ficou profundamente
ofendido e ultrajado pela forma como Keynes atacou Marshall.
Se quisesse, teria sido fácil para Keynes ser “generoso” com Marshall, da mesma forma
como Marshall foi generoso em relação a Ricardo, isto é, sobrecarregá-lo com suas próprias idéias.
As ambigüidades de Marshall se prestavam muito mais do que as de Ricardo a várias interpretações.
Mas Keynes, que (diferentemente dos poetas de Adam Smith) era singularmente isento de
malignidade, já que sua autoconfiança não exigia incentivos externos, se deu ao trabalho de
escolher a interpretação de Marshall mais oposta às suas próprias visões, para pulverizá-la, zombar
dela e sapatear sobre seus restos mutilados, só porque achou que fosse algo de grande importância –
de uma importância política real e urgente – que as pessoas soubessem que ele estava dizendo algo
novo. Se ele tivesse sido cortês e suave, se tivesse se utilizado de uma cautela sabiamente adequada
e de reserva acadêmica, seu livro teria passado despercebido e milhões de famílias se arruinando
com o desemprego não teriam conseguido ajuda. Ele queria que seu livro ficasse engasgado na
garganta dos ortodoxos, de tal forma que fossem forçados a vomitá-lo ou a tragá-lo
apropriadamente.
Pigou vomitou-o, não porque, tenho certeza, as suas observações incômodas se referissem a
ele, mas porque sua lealdade a Marshall tinha sido ofendida.
Quando teve a oportunidade de pegar o livro treze anos mais tarde, e lê-lo com calma, ficou
surpreendido por descobrir que estava de acordo com a maior parte dele, e que sua crítica fizera mal
a Keynes. Ele estava aposentado e Keynes estava morto, mas pediu permissão para dar duas
conferências para os formandos, para fazer uma reparação a Keynes por sua crítica injusta.84 Para os
jovens, para quem suponho que a General Theory não passava de mais um clássico que se espera
que o professor não perceba que não foi lido, isso foi sobretudo mistificador. Para aqueles que
viveram durante essas velhas batalhas, foi uma cena nobre e comovente.
Fornece-nos um exemplo excepcionalmente claro de como os sentimentos pessoais podem
criar uma defesa das velhas idéias contra as novas.
Há também, evidentemente, um elemento puramente intelectual. As idéias novas são difíceis
exatamente porque são novas. A repetição de certo modo remenda as brechas e inconsistências das
velhas idéias, e as [69] novas não podem penetrar. É preciso um trator tão poderoso quanto Keynes
para abrir caminho.

83
Economica, maio de 1936.
84
Ver “Keynes' General Theory, a Retrospective View”.
Há também um elemento psicológico na sobrevivência da teoria do equilíbrio. Há uma
atração irresistível pelo conceito de equilíbrio – o zumbido quase silencioso de uma máquina em
perfeito funcionamento; a aparente calma de uma balança exata de pressões neutralizantes; a suave
recuperação automática de uma perturbação ocasional. Haverá algo de freudiano nisso? Deve haver
uma ligação com o desejo de retorno ao útero materno. Devemos procurar uma explicação
psicológica para entender a poderosa influência de uma idéia que é intelectualmente insatisfatória.

4
O conceito de equilíbrio é, sem dúvida, um instrumento de trabalho indispensável. Até
mesmo Marx se utilizou do caso de “reprodução simples” para clarear o terreno para sua análise da
acumulação em termos de poupança e investimento; a reprodução simples, onde o estoque de todos
os bens de capital está sendo mantido intacto, tem muito em comum com o “estado estacionário
completo” de Pigou. Mas para usar o conceito de equilíbrio é preciso mantê-lo em seu lugar, e seu
lugar é estritamente nos estágios preliminares de um argumento analítico, não no enquadramento de
hipóteses que deverão ser testadas em relação aos fatos, pois sabemos perfeitamente bem que não
encontraremos fatos em estado de equilíbrio. Contudo, muitos escritores parecem conceber o longo
período como uma data em algum lugar no futuro que alcançaremos um dia. Ou mesmo sugerem
que se for possível mostrar que algo seja verdadeiro em equilíbrio – por exemplo, importações
iguais a exportações, ou lucros à taxa normal – que então não haverá importância de que
diariamente, agora e no futuro, ele seja falso. Para tomarmos um exemplo contemporâneo desse tipo
de argumentação: diz-se que a longo prazo todo monopólio sucumbirá.85 Isso parece ser uma
generalização apressada, mas não é essa a questão. O problema é que essa afirmação é utilizada
para sugerir que o fenômeno do lucro de monopólio não é importante, a despeito do fato de que,
cada novo dia, um número de monopólios que ainda não sucumbiram estarão alegremente obtendo
grandes lucros. “A longo prazo estaremos todos mortos”, mas não todos nós ao mesmo tempo.
O equilíbrio a longo prazo é uma enguia escorregadia. Marshall evidentemente quis
significar por longo período um horizonte que está sempre a uma distância no futuro, e isso é uma
metáfora muito útil; mas ele [70] escorregou para a discussão da posição de equilíbrio que é
modificada pelo próprio processo de aproximação dela e enfiou-se numa confusão total traçando
posições tridimensionais num diagrama plano.86
Ninguém negaria que falar de uma tendência em direção ao equilíbrio que altera, ela mesma,
a posição em direção à qual está tendendo é uma contradição de termos. E mesmo assim ela
persiste. É por isso que devemos atribuir sua sobrevivência a algum tipo de apelo psicológico que
transcende a razão.
Marshall estava bastante consciente da dificuldade de fazer generalizações que se intenciona
aplicar à vida real em termos de conceitos eternos. O preço normal é o “valor que as forças
econômicas realizariam caso as condições gerais de vida fossem estacionárias por um período de
tempo suficientemente longo para permitir que desenvolvam todo o seu efeito”.87
Sir Dennis Robertson, achando que era simples perversidade de um crítico não estar
satisfeito com isso, repetiu-o indignadamente. 88 Mas como, se as forças econômicas presentes numa
situação particular são mutuamente contraditórias? Digamos, parte do investimento que está sendo
feito não é resultado de expectativas de lucro que outra parte impedirá de ser obtido? Qual é o
equilíbrio a que o desenvolvimento dessas forças irá levar se tiver tempo suficiente para chegar lá?
E, em qualquer caso, as “condições estacionárias” se aplicam a uma população e um estoque de
capital dados, ou a uma taxa de crescimento dada ou a uma aceleração de crescimento dada?

85
Peter Wiles, “Are Adjusted Roubles Rational?”, Soviet Studies, outubro de 1955, p. 144.
86
Principles, Apêndice H.
87
Principles, p. 347.
88
Lectures on Economic Principles, vol. I, p. 95.
Mesmo se esses enigmas pudessem ser decifrados e um significado definido pudesse ser
dado à passagem, através do tempo, do ponto normal em direção ao qual a posição atual está
tendendo a se mover, deveríamos inquirir quão distante do equilíbrio a posição atual tende a estar –
quão rápida é a reação em direção ao normal, comparada com a velocidade do movimento da
posição normal? Em que casos a diferença está aumentando e em que casos está diminuindo?
Existem questões importantes e de interesse, mas exceto no departamento especial – teoria do ciclo
econômico –onde a revolução keynesiana comanda o campo, elas raramente são colocadas quanto
mais respondidas. O debate se encerra quando a posição normal foi descrita e o equilíbrio
acalentador silencia qualquer questionamento.

5
Estas são razões subsidiárias para a sobrevivência e o renascimento das idéias pré-
keynesianas. A razão principal, como sempre, deve ser procurada [71] na esfera ideológica. Keynes
trouxe de volta o problema moral para a Economia, destruindo a conciliação neoclássica entre o
egoísmo privado e o serviço público. Também expôs uma outra fraqueza. Há outro conflito na vida
humana, semelhante ao conflito entre os meus interesses e o dos outros – que é o conflito entre eu
mesmo agora e no futuro. Esse conflito a ideologia neoclássica realmente não resolveu; ao
contrário, evitou-o. A prudência é algo semelhante à virtude e exige o exercício do autocontrole. O
conceito de espera, como um sacrifício, está relacionado com a visão de que todo possuidor de
riqueza está sob a tentação constante de consumi-la em “gratificações presentes” e os juros são a
“recompensa” que o leva a se conter.
Porque o sistema neoclássico foi sempre tão obscuro sobre uma economia enquanto um todo
e pôs em destaque os preços relativos, foi capaz de deixar a questão crucial da taxa de poupança
adequada nesse estado insatisfatório. Se eu desconto o futuro, então, quando esse dia futuro tornar-
se presente, o problema é meu. A taxa ótima de poupança para a sociedade deve ser confiada a esses
tipos estúpidos? E o que dizer da prosperidade? Os sentimentos familiares são um apoio fraco, pois
são precisamente os solteiros que têm margem maior para poupar. Foi parcialmente como uma
maneira de fugir dessas questões embaraçosas que os sucessores de Marshall deram tanto valor ao
estado estacionário em que a acumulação chegou ao fim.
Dez anos antes da General Theory, Keynes havia proferido a oração fúnebre do laisser
faire:
Limpemos do terreno os princípios gerais ou metafísicos sobre os quais, de tempos em tempos, se fundou
o laisser faire. Não é verdade que os indivíduos possuam uma “liberdade natural” consagrada em suas
atividades econômicas. Não há nenhum “pacto” conferindo direitos perpétuos àqueles que Têm ou
àqueles que Adquirem. O mundo não é tão dirigido de cima a ponto de os interesses privados e sociais
sempre coincidirem. Não é tão administrado aqui de baixo para que na prática coincidam. Não é uma
dedução correta dos Princípios da Economia que os interesses próprios e esclarecidos sempre operem
segundo os interesses públicos. Nem é verdade que o interesse próprio seja esclarecido; mais comumente
os indivíduos agindo separadamente para alcançar seus próprios fins são tão ignorantes ou tão fracos para
alcançar mesmo isso. A experiência não mostra que os indivíduos, quando formam uma unidade social,
sejam sempre menos esclarecidos do que quando agem separadamente.
Não podemos, portanto, assentar num terreno abstrato, mas precisamos alcançar seus méritos em
detalhe, aquilo que Burke chamou de “um dos mais delicados problemas na legislação, a saber,
determinar o que o Estado deve assumir para dirigir pela sabedoria pública, e o que deve deixar, com a
menor interferência possível, para o empenho individual”. Precisamos discriminar entre o que Bentham,
em sua nomenclatura esquecida mas útil, usou para denominar Agenda e Não Agenda, e fazer isso sem a
sua afirmação anterior de que a interferência é, ao mesmo tempo, “geralmente desnecessária” e
“geralmente perniciosa”.89
[72] Em The End of Laissez-Faire, Keynes só tinha isso a dizer sobre a questão da
acumulação:

89
Essays in Persuasion, pp. 312-313.
Meu segundo exemplo se refere à Poupança e aos Investimentos. Creio que é necessário um ato
coordenado de julgamento inteligente com relação à escala em que é desejável que a comunidade como
um todo deva poupar, a escala em que essas poupanças devem se dirigir ao estrangeiro sob a forma de
investimento externo, e se a atual organização do mercado de investimentos distribui a poupança pelos
canais nacionais mais produtivos. Não creio que esses assuntos devam ser inteiramente deixados às
possibilidades do julgamento privado e dos lucros privados, como são atualmente. 90
Quando toda a questão de ver que as poupanças potenciais não fariam desaparecer o
desemprego, que os recursos investíveis deveriam ser utilizados, foi colocada na agenda, pareceu
como se pouca coisa tivesse ficado para a não-agenda.
Discutir a questão principal tornou-se impossível. Mas o próprio Keynes tinha momentos de
nostalgia pelas velhas doutrinas.
“A Filosofia Social em cuja direção a Teoria Geral deve levar” é bastante menos radical do
que aquilo a que o argumento do livro levou os leitores á esperarem:
Nossa crítica da teoria clássica da Economia, geralmente aceita, não consistiu tanto em encontrar as falhas
lógicas em suas análises quanto em mostrar que suas suposições tácitas eram raramente ou nunca
satisfeitas, com o resultado de que ela não pode resolver os problemas econômicos do mundo atual. Mas
se nossos controles centrais conseguirem estabelecer um volume agregado de produto correspondente ao
pleno emprego, tanto quanto for praticável, a teoria clássica readquire seus direitos a partir desse ponto.
Se supomos que o volume do produto seja dado, isto é, que seja determinado por forças externas ao
esquema clássico de pensamento, então não há nenhuma objeção a ser levantada contra a análise clássica
sobre o tema de que o interesse privado determinará o que é produzido em particular, em que proporções
os fatores de produção se combinarão para produzi-lo, e como o valor do produto final será distribuído
entre eles.91
Nesse reino reduzido, o laisser-faire ainda pode florescer. Nesse terreno ainda pode fazer
uma investida para recapturar o território perdido. É esse reagrupamento das velhas forças
ideológicas em torno de seu estandarte –a distribuição ótima dos recursos no equilíbrio a longo
prazo – que responde pelo lento progresso que foi feito ao se pôr a chamada Teoria do Valor e da
Distribuição em contato com o tempo histórico e a chamada teoria do Bem-Estar Social em contato
com a vida humana.

6
De certa forma, o golpe mais impiedoso de todos foi o repúdio de Keynes à doutrina de que
as tarifas deveriam ser prejudiciais ao país que as impõe. [73] Ele não esgaravatou a teoria pura e o
argumento de Bickerdike. Estava interessado na questão muito mais simples e muito mais direta de
que uma tarifa que desvia a demanda de bens estrangeiros para bens nacionais aumenta o emprego
na indústria nacional.
Keynes, educado na mais estrita seita dos fariseus, foi um dogmático defensor do Livre
Comércio em seu tempo. Com sua usual falta de chauvinismo por suas próprias idéias passadas,
escolheu a si mesmo, na General Theory, como o expoente da doutrina que agora quer atacar:
Será mais justo, talvez, citar, como exemplo, o que eu mesmo escrevi. Ainda em 1923, como um aluno
fiel da escola clássica que não duvidava nesse tempo do que lhe havia sido ensinado e não mantinha
nenhuma reserva sobre o assunto, escrevi: “Se há uma coisa que o protecionismo não pode fazer, é sanar
o Desemprego. ... Há alguns argumentos a favor do Protecionismo, baseados no fato de assegurar ele
algumas vantagens possíveis mas improváveis, para as quais não há respostas simples. Mas a exigência
de sanar o Desemprego envolve a falácia protecionista em sua forma mais crua e grosseira.” 92
Isso não fazia realmente parte da doutrina formal, pois o caso do Livre Comércio era
discutido em termos de um modelo que tomava o pleno emprego como dado, mas fazia certamente
parte da “economia vulgar” que estava sendo ensinada nessa época.
90
Ibid.. p. 318.
91
General Theory, p. 378.
92
Ibid., p. 334.
Na obra já citada como caracterizando a decadência do pensamento neoclássico afirma-se,
primeiro, que “Não podemos, cortando as importações, evitar cortar, a longo prazo, um valor
equivalente de exportações que poderíamos, caso contrário, ter realizado.”93 (Nesse argumento o
investimento externo que era a glória de nossa economia do século XIX não poderia ter ocorrido.)
Segundo, que poderíamos ter um excedente de exportações, mas que isso significaria investir no
exterior ao invés de em nosso próprio país, 94 e, finalmente, que se algo deve ser feito em relação ao
desemprego seria melhor fazê-lo investindo internamente em construções de moradias e estradas. O
último argumento, evidentemente, tem muito a recomendá-lo (embora nas circunstâncias da época
um certo protecionismo ou desvalorização teria sido um suplemento necessário para uma política de
obras públicas). Mas, da maneira como os autores dessa polêmica o vêem, é como a desculpa sobre
a fome chinesa: Por que subscrever para aliviar a fome na China quando tantos do nosso próprio
povo passam necessidades? Não vou subscrever absolutamente nada.
As opiniões podem diferir entre os defensores do Livre Comércio, assim como entre outros, sobre até que
ponto é sensato pressionar tais esquemas de gastos públicos [74] e até que ponto eles irão simplesmente
atrasar os reajustamentos naturais e necessários. Mas a questão fundamental do Livre Comércio mantém-
se inabalada pela demonstração de que há uma quantidade permanente de fatores de produção
desempregados; pois o Livre Comércio garante que tal quantidade de fatores de produção (quando a
política salarial dos sindicatos e as condições de investimento e empreendimento entre eles permitem que
sejam empregados) não é, de qualquer forma, utilizada na produção de coisas que podem ser, mais
facilmente, obtidas pela troca, de acordo com os princípios da “divisão do trabalho” internacional. 95
Isso mais uma vez ilustra de quão pouca lógica uma ideologia realmente necessita. A grande
grita contra a traição de Keynes à causa do Livre Comércio, que fez muitos homens fortes
chorarem, mostra como uma ideologia pode sobreviver à sua utilidade; as doutrinas que se
justificavam, ao menos de um ponto de vista patriótico, que fossem defendidas quando a Inglaterra
era a maior nação exportadora, faziam muito pouco sentido a qualquer nível nos anos 30.
A doutrina do Livre Comércio é um dos casos mais evidentes de como o problema moral foi
abolido pelos neoclássicos e como a revolução keynesiana o trouxe de volta. Na doutrina do Livre
Comércio, com a objeção esquecida de Bickerdike e as reservas não-lidas de Marshall, parecia que
a virtude e o interesse próprio eram indivisíveis. O Livre Comércio não só é bom para o mundo
como um todo, mas para toda e qualquer nação. Nenhum país pode fazer qualquer bem para si
mesmo, quer pela exportação do desemprego para outros visando restaurar sua balança comercial,
quer ganhando uma vantagem nos preços. O interesse próprio nacional indica políticas que
beneficiam todo mundo. As vantagens imputadas ao protecionismo são uma pura ilusão.
Keynes estragou essa feliz concatenação de motivos altruísticos e egoístas e mergulhou-nos
de volta na inconfortável realidade, onde quanto mais houver de meu, menos haverá de vocês.

7
Dentro do território que conquistou, a General Theory permitiu um grande avanço em
direção à ciência, não obstante tenha ilustrado bem a tese de que as idéias são primeiro concebidas
em uma forma metafísica. A preferência pela liquidez mantém a mesma relação com a demanda de
dinheiro em termos de taxa de juros, que a utilidade mantém com a demanda de mercadorias em
termos de poder de compra, e (tal como as mercadorias e o poder de compra) a moeda e a taxa de
juros tornam-se elas mesmas conceitos inatingíveis quando tentamos realmente defini-los. A
constância da propensão marginal a consumir baseada numa lei psicológica universal [75]
demonstra não ter passado de um pensamento de fé, e ainda está por ser procurada uma definição
genuinamente operacional da eficiência marginal do capital. Contudo, sem esses conceitos é difícil
entender como a General Theory pudesse ter se agüentado de pé.

93
Tariffs, the Case Examined, p. 53.
94
Loc. cit., p. 56.
95
Op. cit.,p. 74.
Aqui a metafísica é, por assim dizer, uma fraca infusão, e não dá muito trabalho jogá-la fora.
O grande conceito ideológico da General Theory é o próprio Pleno Emprego.
Consideremos primeiro as questões de definição.
Quando se ocupa da política prática, Keynes fala de um nível “satisfatório” de emprego e no
White Paper de 1944,96 que representou o reconhecimento oficial da vitória da revolução
keynesiana (embora mesmo então o Tesouro não conseguisse aceitá-la muito bem), o Governo
assumiu a responsabilidade pela manutenção de um nível “alto e estável” de emprego.
Esse tipo de vagueza é obviamente prudente quando um objetivo de política está sendo
declarado. Ser muito definido é dar abrigo a descontentes. Mesmo na esfera científica a vagueza é
mais exata do que a precisão. Como disse o Professor Popper, a ciência pode operar perfeitamente
bem com termos vagos como “vento”, e, quando se precisa especificar um significado mais restrito,
ele é dado pelo estabelecimento de limites: “vento com uma velocidade entre 20 e 40 milhas por
hora”. “Nas medidas físicas”, diz ele, “sempre tomamos cuidado em considerar a margem dentro da
qual possa haver um erro; e a precisão não consiste em tentar reduzir essa margem a nada, ou em
pretender que não exista essa margem, mas em seu reconhecimento explícito.”97
O pleno emprego está destinado a ser uma concepção vaga. Antes de mais nada, há um
elemento bastante arbitrário nas horas semanais que constituem o horário integral. A oportunidade
de fazer extraordinário ocasional é levada em conta? E, se assim é, quanto tempo? Depois, tem o
problema do número de corpos que constituem a força de trabalho disponível a qualquer momento.
Mulheres casadas, estudantes, ricos proprietários – quem faz e quem não faz parte da força de
trabalho? Tem também todo o problema do trabalhador autônomo. O termo “desemprego
disfarçado” foi inventado originalmente para abranger o caso do vendedor de fósforos no Strand
que apareceu durante a crise. Depois se ampliou para abranger os camponeses com uma
propriedade pequena demais para manter sua família produtivamente ocupada. Mas quão produtiva?
O desemprego se abriga numa baixa produção per capita. Nada disso importa para a análise
positiva. Os termos podem ser definidos para cada problema da maneira apropriada, para que
sirvam para ser discutidos, e não é preciso dar maior precisão do que a questão requer.
[76] Para um slogan ideológico essa vagueza não funcionará. O Pleno Emprego é uma Boa
Coisa, e pode ser atingido com uma política inteligente. É um estado abençoado, como o equilíbrio.
Devemos ser capazes de dizer o que ele é.
Em sua definição original, Keynes distingue o desemprego voluntário, que pode ser devido à
“retirada de seu trabalho por um corpo de trabalhadores porque eles não aceitam trabalhar por
menos do que uma certa recompensa real”, e o “desemprego involuntário”:
Os homens estão involuntariamente desempregados se, na ocorrência de um pequeno aumento no preço
dos bens de salário relativamente ao salário monetário, tanto a oferta agregada de mão-de-obra disposta a
trabalhar pelo salário monetário corrente como a demanda agregada dela, a esse salário, sejam maiores do
que o volume existente de emprego.98
Novamente:
Temos Pleno Emprego quando a produção subiu a um nível em que o rendimento marginal para uma
unidade representativa dos fatores de produção caiu para o número mínimo ao qual uma quantidade de
fatores suficientes à produção desse produto está disponível.99
É a “desutilidade marginal do trabalho” que “estabelece um limite superior” 100 à produção
potencial.

96
Cmd. 6527.
97
The Open Society and its Enemies, vol. II, p. 18.
98
General Theory, p. 15.
99
Ibid, p. 303.
100
Ibid, p. 26.
A desutilidade do trabalho é uma peça da bagagem marshalliana que Keynes carregava
impensadamente consigo.
Marshall descreve um menino colhendo amoras, que continua até que a utilidade marginal
de outra amora já não será suficiente para recompensar a desutilidade marginal do esforço extra.101
Em suma, ele continua até se sentir inclinado a parar.
Para um trabalhador vivendo num mundo sem garantias sociais, que tem a opção entre pegar
um trabalho ao salário corrente ou não ter salário nenhum, essa concepção está muito fora do alvo.
Talvez a razão para que Marshall não tenha conseguido notar seu absurdo esteja relacionada com o
sistema peculiar de remuneração dos catedráticos em Oxford ou Cambridge. Um professor recebe
seu dividendo da universidade quase independentemente do número de unidades de esforço que
despende, e ainda pode ter alunos a tanto per capita. Todos nós sabemos como a desutilidade
marginal dos alunos aumenta com o seu número e, com uma renda básica independentemente [77]
dada, as diferenças na utilidade marginal da renda podem ser consideradas como menos
importantes.
Para um professor universitário torna-se uma idéia atraente o separar experimentalmente a
utilidade marginal da renda da desutilidade do trabalho. Pague-se-lhe um salário básico cada vez
maior, e então veja-se como a taxa per capita exigida para induzi-lo a tomar um número
determinado de alunos deve variar. Mas infelizmente não será, de fato, muito científico: O valor do
lazer não é independente do poder de compra disponível. A desutilidade do trabalho pode na
realidade ser negativa se a alternativa for nada a fazer e nenhum lugar para ir, e muito alta quando a
alternativa são divertimentos agradáveis e caros.
Qualquer medida que possa ser proposta quanto à desutilidade do trabalho terá de ser
elástica. De todos os conceitos da bagagem neoclássica, esse é irremediavelmente o mais
metafísico. Keynes não lhe deu nenhuma importância e estava pronto a aceitar como alternativa
uma definição simplista – de que há pleno emprego quando todo mundo que quer tem um emprego.
Mas isso é um limite superior inatingível. Do ponto de vista ideológico, não adianta dizer que o
pleno emprego nunca poderá ser alcançado.
Beveridge propôs o critério da relação entre o número de vagas não-preenchidas e o de
desempregados registrados. Ambos os números são obviamente indicadores muito precários do que
supostamente devem indicar e, mesmo que fossem bastante exatos, uma igualdade global entre eles
não representaria um ponto crítico na relação entre a oferta e a procura de trabalho já que a própria
coincidência entre as vagas não-preenchidas e os trabalhadores desempregados mostra que eles não
se correspondem, ou porque estão geograficamente separados ou porque as vagas são para tipos
particulares de trabalho que os desempregados não podem oferecer. Um aumento ou diminuição do
excesso de vagas sobre os desempregados é uma indicação bastante útil, no curto prazo, dos
movimentos da demanda, e uma queda em ambos indicaria, presumivelmente, uma melhoria nas
condições gerais de mobilidade do trabalho ou uma versatilidade de administração. Mas não há
nenhum sentido em tomar o equilíbrio exato entre eles como um indicador do “Pleno Emprego”
com letras maiúsculas.
(Para digredir um momento, é impressionante que quando Beveridge estava escrevendo Full
Employment in a Free Society, consultando um número de jovens keynesianos, uma média de
desemprego de 3% parecia um objetivo bastante audacioso a ser proposto. A idéia de que por mais
de doze anos não tivéssemos alcançado esse número, na verdade 2% deveria ser considerado
perigosamente alto, pareceria naquela época uma extravagante racionalização de desejo.)
Desde o começo era óbvio que se tivéssemos conseguido alcançar e manter um nível de
desemprego baixo, com as mesmas instituições de barganha de um salário livre e o mesmo código
de comportamento adequado [78] dos sindicatos então alcançado, a espiral de aumento de preços e
salários se tornaria crônica. Já nessa época podia-se argumentar que a “questão do pleno emprego,
101
Principles, p. 331.
longe de ser um local de descanso em equilíbrio, parece ser um precipício sobre o qual, uma vez
que se chegou à borda, o valor da moeda deve mergulhar num abismo sem fim”. 102 Isso demonstrou
ser uma triste verdade, e ideologicamente é bastante problemático, pois tanto o Pleno Emprego
quanto os preços estáveis são Boas Coisas. A solução por vezes encontrada é dizer que, quando os
salários estão aumentando, há um super pleno emprego e definir o Pleno Emprego de modo a
incluir bastante desemprego a ponto de evitar que as taxas de salário monetário cresçam mais
rapidamente do que a produtividade. Isso é em geral acompanhado pela suposição arbitrária de que
algum número definido, digamos 3% de desemprego, manteria os preços estáveis e pela sugestão de
que essa é uma política correta e adequada a se visar para manter o nível postulado.103
Michal Kalecki, que descobriu a General Theory independentemente, retirou dela
conclusões menos otimistas do que Keynes. Quando durante a guerra tornou-se claro que a nova
teoria estava firmemente estabelecida e que o velho ciclo econômico poderia ser superado, ele
predisse que iríamos viver sob um “ciclo econômico” político:
Na crise, tanto sob a pressão das massas quanto sem ela, o investimento público financiado pelo
empréstimo será assumido para prevenir o desemprego em grande escala. Mas caso se façam tentativas
para aplicar esse método, visando manter o nível alto de emprego alcançado no boom subseqüente, dever-
se-á encontrar uma forte oposição dos “líderes empresariais”. Como já foi dito, o pleno emprego
duradouro não é absolutamente de seu agrado. Os trabalhadores iriam “sair de seu controle” e os “capitães
da indústria” ficariam ansiosos por “dar-lhes uma lição”. Ainda mais, o aumento de salários na alta é
desvantajoso para os pequenos e grandes proprietários “cansados do boom”.
Nessa situação, provavelmente se formaria um bloco poderoso entre os interesses dos grandes
empresários e dos proprietários, e eles encontrariam provavelmente mais de um economista para declarar
que a situação é manifestamente inviável. A pressão de todas essas forças, e em particular da grande
empresa – em regra influenciadora dos departamentos do Governo – iria provavelmente induzir o
Governo a retornar à política ortodoxa de corte no déficit orçamentário. Seguir-se-ia uma crise em que a
política governamental de gastos retornaria ao que era antes... .
O regime do “ciclo econômico” político seria uma restauração artificial da posição existente no
capitalismo do século XIX. O pleno Emprego só seria alcançado no pico do boom, mas as crises seriam
relativamente suaves e de curta duração.104
[79] Talvez se devesse ter dado maior ênfase à City do que à grande empresa, e mais ênfase
à política monetária do que aos déficits orçamentários, mas no todo isso provou estar bem próximo
do alvo.
Do mesmo modo, a objeção ao baixo desemprego tornou-se relativamente fraca (ao menos
na Inglaterra); certamente qualquer retorno ao elevado desemprego sofreria uma resistência
violenta. Considerando-o de modo geral, o Pleno Emprego tornou-se um objetivo ortodoxo de
política.
A noção de que o Pleno Emprego é atingível tornou-se, do modo como Keynes em certos
momentos pretendeu, a nova defesa do laisser-faire. Só é necessário remover um defeito evidente
do sistema de empresas privadas e este se torna mais uma vez um ideal.
O Pleno Emprego (com algumas reservas quanto a não permitir que se torne super pleno)
tornou-se um objetivo da política conservadora e o mais forte argumento contra os críticos
socialistas. “Vocês costumavam reclamar, e agora admitimos, com certa justificação, que um
sistema capitalista que permita um elevado desemprego crônico é indefensável. Agora lhes
oferecemos um capitalismo com um nível alto e estável de emprego. Vocês não têm nada a
reclamar.”
Os críticos marxistas compreenderam que a teoria de Keynes levava a conclusões que de seu
ponto de vista eram reacionárias. Negaram, portanto, a lógica de sua análise e até se viram em
102
Joan Robinson, Essays in the Theory of Employment, p. 24.
103
Cf. J.E. Meade, The Control of Inflation. Cf. também, K.J.C. Knowles e C.B. Winster, “Can the Level of
Unemployment Explain Changes in Wages?”, Oxford Institute of Statistics Bulletin, maio de 1959.
104
“Political Aspects of Full Employment”, The Political Quarterly, out./dez. 1943.
aliança com os protagonistas do engano financeiro que Keynes atacou inicialmente. Por exemplo, o
Professor Baran não se contenta em mostrar que um sistema econômico que só pode manter a
prosperidade através de gastos com armamentos é uma ameaça à humanidade, moralmente
horroroso e politicamente desonroso; teve também que apelar para a Teoria Quantitativa da Moeda
para mostrar que ela não pode funcionar porque os gastos governamentais causam inflação.105
Esse é outro exemplo da confusão entre a lógica e a ideologia. Porque Keynes mostrou um
caminho para o sistema capitalista remover seus defeitos óbvios, ele é reacionário e, portanto, sua
teoria é falsa.
Mas se sua teoria fosse falsa, seria completamente inofensiva. Justamente porque o
diagnóstico estava correto, o tratamento surtiu efeito e a vida do paciente foi prolongada,
desconcertando seus prováveis herdeiros.
A razão pela qual o Pleno Emprego tornou-se um slogan da direita é que, se o emprego é um
fim em si, nenhuma questão pode ser levantada sobre seu conteúdo. Para que serve o trabalho?
Apenas para manter os trabalhadores fora da desordem. Qualquer produto é tão bom como qualquer
outro.
[80] Keynes disparou seus paradoxos para penetrar os muros maciços do obscurantismo da
velha ortodoxia do laisser faire:
O Egito Antigo era duplamente afortunado e sem dúvida deveu a isso sua fabulosa riqueza, ao fato de que
possuía duas atividades, a saber, a construção de pirâmides e a busca de metais preciosos, cujos frutos, já
que não podiam servir às necessidades do homem em sendo consumidos, não apodreciam com a
abundância. A Idade Média construiu catedrais e cantou ladainhas. Duas pirâmides, duas missas para o
morto, são duas vezes melhor do que uma; mas não da mesma forma duas estradas de ferro ligando
Londres a York. Dessa forma, somos tão sensatos, nos auto-educamos a um ponto tão próximo de parecer
com um financista prudente, pensando cuidadosamente antes de aumentar os encargos “financeiros” da
posteridade ao lhe construir casas de habitação, que não temos uma escapatória tão simples para os
sofrimentos do desemprego.106
E ele argumenta a favor do desperdício quando nenhum objeto útil para investimento possa
ser lucrativo:
Enquanto os milionários encontrarem sua satisfação na construção de enormes mansões para conter seus
corpos quando vivos e pirâmides para abrigá-los depois da morte, ou, arrependendo-se de seus pecados
erigirem catedrais e doarem mosteiros ou missões estrangeiras, o dia em que a abundância do capital irá
interferir na abundância da produção deverá ser postergado. “Cavar buracos no chão”, pago pela
poupança, irá aumentar, não apenas o emprego, mas o dividendo nacional real de mercadorias e serviços
úteis.
Mas acrescenta:
Não é razoável, no entanto, que uma comunidade sensata deva estar satisfeita em continuar dependente de
tais mitigações fortuitas e normalmente desperdiçadoras quando compreendemos as influências de que
depende a demanda efetiva.107
Hoje em dia, os paradoxos são assumidos com a mais sóbria seriedade e construir armas que
se tornam obsoletas mais rapidamente do que podem ser construídas tornou-se muito melhor do que
as pirâmides jamais fizeram para manter o lucro sem aumentar a riqueza. A recaída de Wall Street
que se segue a qualquer sintoma de relaxamento na Guerra Fria é uma clara demonstração da
exatidão da teoria de Keynes, mas também uma demonstração da falsidade de sua visão otimista de
que, quando a teoria fosse entendida, a razão iria prevalecer.
Ele mesmo deve ser em parte culpado pela perversão de suas idéias, pois falhou em ver que,
uma vez que estivesse estabelecido o princípio de [81] que manter o emprego é uma preocupação
pública, a questão de saber para que serve o emprego tornar-se-ia uma questão política.

105
The Political Economy of Growth, p. 124.
106
General Theory, p. 131
107
Ibid., p. 220.
No último capítulo da General Theory, anteriormente citado,108 ele caiu no erro de supor que
existe um certo tipo de política neutra que um Governo pode assumir para manter a demanda efetiva
em geral, sem ter qualquer influência sobre qualquer demanda particular pelo que quer que seja. O
Governo tem de assumir a “tarefa de ajustar entre si a propensão a consumir e a indução a investir”,
mas tudo o mais é melhor ser deixado “ao livre jogo das forças econômicas”.109
Isso é uma concepção metafísica tão inatingível quanto o trabalho abstrato ou a utilidade
total. O que é uma política que simplesmente ajusta a demanda por recursos investíveis à oferta?
Para aumentar a demanda efetiva quando ela ameaça esmorecer, podem ser utilizados vários
meios: reduzir a tributação ou transferir os encargos dos setores mais prováveis de aumentar seu
consumo para os mais prováveis de reduzir sua poupança; alimentar a concorrência a ponto de
reduzir as margens de lucro; aumentar os subsídios ou as despesas com os serviços sociais – todos
meios que tendem a reduzir as desigualdades no consumo. Ou as despesas governamentais com
investimentos podem ser aumentadas, diretamente ou através de indústrias nacionalizadas, ou a
redução na política tributária e de crédito pode ser utilizada para encorajar o investimento privado.
Ao contrário, quando a demanda efetiva parece excessiva, taxas para desencorajar o consumo,
restrições de crédito e reduções das despesas do Governo podem ser postas em funcionamento. E
tudo isso tem que ser planejado visando preservar o balanço de pagamentos a um nível ou outro,
assim como para preservar o emprego. O que é uma política neutra? Qual a mistura desses meios
que deixa a empresa privada intacta em conteúdo e age apenas sobre a quantidade?
Há em alguns setores uma grande simpatia pela política de créditos porque ela parece ser a
menos seletiva e de certa forma se combina com o ideal de uma regulação neutra, simples e geral da
economia. A enorme atração ideológica da Teoria Quantitativa da Moeda, que a manteve de pé por
aproximadamente quarenta anos depois que seu conteúdo lógico foi destruído, 110 é devida ao fato de
que ela concebe o problema da escolha política sob um mecanismo aparentemente impessoal.
Experiências recentes mostraram, no entanto, que não existe algo como uma política
financeira global puramente quantitativa. Temos a sorte de ter tido um relatório oficial que
finalmente descartou o velho falatório.
[82] Mas exatamente porque a comissão Radcliffe é clara sobre esse ponto, não tem
nenhuma recomendação precisa a fazer. Não há uma política correta simples; é uma questão de
julgamento.
A revolução keynesiana destruiu as velhas doutrinas soporíferas, e sua própria metafísica é
fina e transparente. Fomos deixados na situação inconfortável de ter que pensar por nós mesmos.

108
Ver p. 72.
109
General Theory, pp. 379 e 380.
110
Tract on Monetary Reform, de Keynes.
V
DESENVOLVIMENTO E SUBDESENVOLVIMENTO
[83]
Depois da guerra, quando o problema da demanda efetiva deficiente parecia ter
desaparecido nas penumbras, uma nova questão veio ao poder: o desenvolvimento a longo prazo.
A mudança surgiu em parte pela evolução interna da economia enquanto disciplina
acadêmica. A solução de um problema abriu as portas para o problema seguinte; uma vez que a
teoria de curto prazo de Keynes, na qual o investimento desempenha o papel principal, foi
estabelecida, era evidentemente necessário discutir as conseqüências da acumulação de capital
produzida pelo investimento.
Ainda mais, a mudança do centro de interesse se devia a problemas urgentes colocados pela
situação real. As nações do mundo pareciam estar divididas em três grupos (com alguns casos
excepcionais em cada). Um compreendia as economias industriais avançadas, cujos habitantes
desfrutavam um nível relativamente alto de consumo per capita (em termos de bens e serviços
comprados), concorrendo entre si com fortunas variáveis, com um produto global médio crescendo
a uma taxa moderada. Outro compreendia economias agrícolas ainda mais amplas se
industrializando a uma taxa rápida sob instituições socialistas. E o último, um grupo variado de
regimes coloniais, neocoloniais e ex-coloniais, em que muitos sofriam uma violenta explosão
populacional resultante da importação de uma taxa de mortalidade modernizada para regiões onde
se atingia uma taxa de natalidade primitiva, clamando por escapar do status de lenhadores ou
aguadeiros para o próspero Ocidente e pelo direito de se estabelecerem como nações prósperas.
Nessa situação, tanto a análise estática neoclássica de alocação de recursos determinados
entre vários usos quanto a análise keynesiana, a curto prazo, de como determinados recursos são
empregados parecem bastante inadequadas. O que se precisa agora é de uma análise dinâmica a
longo prazo de como os recursos podem ser aumentados.
[84]
1
Quando procuramos alguma luz sobre a questão do desenvolvimento a longo prazo no
ensino tradicional, encontramos, a cada passo, previsões de que a taxa de lucro tenderá a cair e a
acumulação de capital a chegar ao fim. Uma grande variedade de razões distintas são levantadas
para defender essa visão; nenhuma delas parece convincente hoje em dia.
Para Ricardo, o problema está na limitação dos recursos naturais. Na versão mais simples de
sua teoria, o capital se acumula, oferecendo emprego a uma força de trabalho sempre crescente
(fornecida por uma população crescente) a uma taxa salarial fixa em termos de trigo (que representa
o produto agrícola em geral). Para aumentar a produção de trigo, é preciso estender o cultivo a
terras de qualidade inferior. O lucro por homem empregado é o excesso sobre o salário-trigo do
produto líquido por homem na terra de pior qualidade (a vantagem das terras de melhor qualidade
indo inteiramente para seus proprietários sob a forma de renda da terra). Como o produto líquido
por homem cai na medida em que o cultivo se estende, e o valor-trigo do capital por homem
empregado tende mais provavelmente a subir do que a cair, a taxa de lucro sobre o capital cai com o
passar do tempo. No final, a motivação para novos investimentos irá desaparecer e a acumulação
chegará ao fim.
Levando em conta a taxa em que a população mundial está crescendo, todos aspirando a
atingir o nível per capita de destruição dos recursos naturais que agora prevalece nos Estados
Unidos, parece que o problema de Ricardo se tomará real a longo prazo. Mas nesse meio tempo a
agricultura está sofrendo de uma dificuldade da demanda efetiva de se expandir tão rapidamente
quanto a produção física, mais comumente do que o inverso.
Marx adotou a teoria ortodoxa da tendência à queda da taxa de lucro e forneceu uma nova
razão para explicá-la. Segundo a sua explicação, a composição orgânica do capital tende a aumentar
com o passar do tempo, o que pode ser interpretado como um reflexo de que o valor do capital por
homem empregado (calculado em termos de tempo de trabalho) está em geral aumentando, devido a
uma tendência à utilização de capital no progresso técnico. A parte do rendimento da indústria que
vai para o lucro líquido não aumenta tão rapidamente quanto o valor do capital por homem.
Conseqüentemente, a taxa de lucro sobre o capital cai. É possível atacar essa proposição no terreno
lógico,111 mas é mais simples rejeitar seus fundamentos empíricos. É verdade que o capital físico
por homem, medido em cavalos-vapor ou toneladas de aço, aumentou devido à tecnologia [85]
moderna, mas, já que o produto per capita pode aumentar tão rapidamente na produção de
equipamento de capital quanto em sua utilização, não há nenhuma razão necessária para que o valor
do capital por homem, no sentido de Marx, deva aumentar; nos últimos tempos, parece mesmo que
está caindo.
O esquema neoclássico está estabelecido em termos da posição de equilíbrio de uma
economia em um “estado de conhecimento técnico determinado”; uma invenção é tratada como um
impacto que faz saltar a economia de um equilíbrio para outro.
Comparando as posições de equilíbrio é possível mostrar, com base na definição de
“conhecimento determinado”, que os usos a que o capital se submete são tão menos lucrativos
quanto maior for a quantidade de capital por homem (embora normalmente se deixe muito vago em
que termos a quantidade deva ser calculada). O argumento então prossegue da comparação de
posições de equilíbrio para a sugestão de que a acumulação de capital, considerada como um
processo que se dá no tempo, deve ser acompanhada de uma taxa de lucro decrescente. A transição
de uma comparação para um processo, no entanto, requer que todas as questões sejam discutidas.
Marshall desconfiava das fórmulas estereotipadas e abordava o “alto tema do progresso
econômico”112 com hesitação e precaução, mas parece que apoiava em geral a visão de que uma
rápida taxa de poupança tende a deprimir a taxa de juros (que ele identificava com a taxa de lucro)
pelo aumento do estoque total de capital relativamente à sua demanda.
Na teoria do curto prazo de Keynes, o investimento está sempre chegando ao fim porque o
investimento ocorre num momento de alta; a alta taxa de lucro é gerada pelo mercado vendedor
enquanto o investimento está ocorrendo, mas um aumento na capacidade produtiva produzida pelo
investimento tende a pôr fim ao mercado vendedor.
Quando se ocupa do longo prazo, Keynes pensa numa taxa de lucro caindo a zero, não como
uma tendência natural do capitalismo, mas como um objetivo de uma política deliberada.
Tenho certeza de que a demanda de capital é estritamente limitada no sentido de que não será difícil
aumentar o estoque de capital até um ponto onde sua eficiência marginal terá caído a um número muito
baixo. Isso não quer dizer que o uso de instrumentos de capital custará praticamente nada, mas apenas que
seu rendimento deverá cobrir um pouco mais do que seu esgotamento devido ao desgaste e obsolescência,
juntamente com uma certa margem para cobrir os riscos e o exercício da habilidade e do raciocínio. Em
suma, o rendimento agregado dos bens duráveis no curso de suas vidas irá, como no caso dos bens de
curta duração, apenas cobrir seus custos de mão-de-obra de especialização e supervisão.
[86] Ora, embora esse estado de coisas possa ser bastante compatível com uma certa medida de
individualismo, também significaria a eutanásia do proprietário e, conseqüentemente, a eutanásia do
crescente poder opressivo do capitalista de explorar o valor da escassez do capital. Os juros hoje em dia já
não recompensam nenhum sacrifício genuíno, não mais do que faz a renda da terra. O proprietário de
capital pode obter juros porque o capital é escasso, assim como o proprietário da terra pode obter renda
porque a terra é escassa. Mas, enquanto pode haver razões intrínsecas para a escassez da terra, não há
nenhuma razão intrínseca para a escassez de capital. Uma razão intrínseca para tal escassez, no sentido de
um sacrifício genuíno que só poderia ocorrer em função da oferta de uma recompensa sob a forma de
juros, não iria ocorrer, a longo prazo, exceto se a propensão individual para consumir provar possuir tal
caráter que a poupança líquida em condições de pleno emprego chegue ao fim antes que o capital tenha se
111
Cf. Joan Robinson, An Essay on Marxian Economics, Cap. V.
112
Principles, p. 461.
tornado suficientemente abundante. Mas, mesmo assim, será possível manter a poupança pública, através
da ação do Estado, num nível que permita o crescimento do capital até o ponto onde ele deixa de ser
escasso.113
Se tenho razão para supor que seja comparativamente fácil tornar os bens de capital tão
abundantes a ponto da eficiência marginal do capital ser zero, isso pode ser a maneira mais sensata
de ir gradualmente se liberando de muitas das características objetáveis do capitalismo. Pois uma
pequena reflexão mostraria que enormes mudanças sociais resultariam de um desaparecimento
gradual de uma taxa de rendimento sobre a riqueza acumulada. Um homem ainda poderia ser livre
para acumular sua renda ganha visando gastá-la numa data posterior. Mas sua acumulação não
cresceria. Ele estaria simplesmente na situação do pai de Pope, que, quando se aposentou, levou
consigo uma arca cheia de guinéus para sua casa em Twickenham e cobria suas despesas
domésticas com isso, segundo suas necessidades.114
Assim a previsão de uma taxa de lucro decrescente foi convertida de um pesadelo em um
agradável devaneio.

2
As teorias tradicionais, quando confrontadas com os dados estatísticos, não se mostram nada
satisfatórias. Para os países industriais desenvolvidos, os Estados Unidos em particular, os números
parecem mostrar um aumento claro (fazendo a média entre altas e baixas) no valor do capital por
homem, com mudanças relativamente pequenas, de um lado ou do outro, na proporção do produto
para o capital ou na parte dos lucros no produto total. Isso indica uma taxa de lucro sobre o capital
mais ou menos constante. O progresso técnico e a disponibilidade de recursos materiais têm
evidentemente sido suficientemente fortes para tornar sem sentido as previsões baseadas em
rendimentos decrescentes, composição orgânica crescente ou produtividade marginal em baixa.
O ponto fraco da doutrina neoclássica é que o progresso técnico é tratado como um impacto
ocasional que muda a posição de equilíbrio do [87] sistema. Harrod nos abriu um novo caminho ao
tratar o progresso técnico como uma propensão própria a uma economia industrial.
A famosa fórmula, g = s/v – o crescimento percentual da renda total por ano é igual à
proporção de renda poupada dividida pela fração do capital em relação à renda anual – exprime a
noção de que a produção por unidade de capital pode ser tomada como constante enquanto o
estoque de capital aumenta; quando o emprego da mão-de-obra não está crescendo a uma taxa igual,
isso significa que a produção por homem está crescendo mais rapidamente do que o capital por
homem.
A fórmula do crescimento constante foi apresentada em várias versões, aparentemente bem
independentes umas das outras, por Harrod,115 Domar116 e Mahalanobis;117 tiveram também um
precursor desconhecido no economista soviético Fel’dman.118 Tais coincidências (como a
coincidência da descoberta por Kalecki da teoria de Keynes) são uma indicação de que se alcançou
um estágio na evolução de um tema onde há um próximo passo particular que deve ser dado.
A fórmula diminuiu o peso das suposições tradicionais. Quando as invenções, as descobertas
e melhoramentos no transporte tornam acessíveis novas fontes de matérias-primas suficientemente
rápido, não há rendimentos decrescentes. Quando o progresso técnico é neutro, não é necessário que
haja um aumento na composição orgânica. Quando é suficientemente rápido, não ocorre uma queda

113
General Theory, pp. 375-6.
114
Ibid., p. 221.
115
“An Essay in Dynamic Theory”, Economic Journal, março de 1939.
116
“Capital Expansion, Rate of Growth and Employment”, Econometrica, abril de 1946.
117
“Some Observations on the Process of Growth of National Income”, Sankhya, setembro de 1953.
118
“On the Theory of Economic Growth”, Planovoe Khoziaistvo, novembro de 1928. Ver Domar, Essays in the Theory
of Economic Growth.
na produtividade marginal. Jogando fora os anteolhos tradicionais, temos campos mais amplos a
pesquisar.
A fórmula trouxe uma grande contribuição negativa para o desenvolvimento da economia;
marca, de certo modo, a linha divisória entre a análise keynesiana e a análise moderna; mas, vista
como uma contribuição positiva ao pensamento, ela não provou ser tão útil.
A fórmula parece sugerir que a taxa de crescimento de uma economia é determinada por
condições técnicas (que dentro de certos limites fixam a proporção do capital para a renda) e pela
propensão da população a poupar. Isso deixa fora de conta o elemento mais importante dentro de
todo o tema – as decisões que regem a taxa de acumulação de capital.
Numa economia de empresa privada, as decisões para investir são tomadas à luz dos lucros
esperados, e, como a General Theory mostrou, os lucros esperados são deprimidos, e não
aumentados, pelos indivíduos frugais [88] que se abstêm dos gastos com o consumo. A frugalidade,
em si mesma, é um fator deflacionário e depressivo numa economia de mercado; só serve à
acumulação na medida em que a propensão a investir é suficientemente forte para tender a gerar
condições inflacionárias. Quando a propensão para investir é fraca, a frugalidade apenas a torna
ainda mais fraca.119
A primeira questão a ser discutida em uma teoria do desenvolvimento sob o regime da
empresa privada deve ser: o que rege a taxa global de acumulação de capital? Sobre essa questão o
ensino adotado, ainda dopado pela análise do equilíbrio estático, tem muito pouco a dizer.
Na parte formal da teoria de Keynes, a taxa de investimento tende a igualar a eficiência
marginal do capital com a taxa de juros. Isso é puramente formal. A eficiência marginal do capital
significa o lucro que se espera obter de um investimento, considerando o risco e a incerteza. A
afirmação de que a eficiência marginal do capital equivale à taxa de juros é, portanto, o mesmo que
dizer que o prêmio para o risco é a diferença entre os lucros esperados e a taxa de juros relevante.
Sempre que os modelos de ciclo econômico são estabelecidos é comum distinguir o
investimento “autônomo”, que é independente das influências de curto prazo, do que é induzido por
mudanças recentes no nível de rendas ou de lucros. Para uma análise do longo prazo é precisamente
o que rege o investimento “autônomo” que precisamos conhecer.
Kalecki postula que os planos de investimento são limitados pelas finanças. As finanças são
fornecidas pelos lucros retidos das empresas que estão investindo e pelos empréstimos, que estão
limitados a um certo coeficiente de autofinanciamento. Transposto de seu modelo de ciclo
econômico para um plano a longo prazo, isso só mostra que o investimento (em termos monetários)
possui inércia; quando a taxa de investimento foi alta no passado recente, os lucros foram altos e há
fundos disponíveis para manter uma alta taxa de investimento. Quando foi baixa, os lucros
pequenos e um poder de empréstimo limitado mantêm-na baixa. Não esclarece em nada o que rege
o nível dos investimentos em primeiro lugar.
Marx exclama: “Acumulem! Acumulem! Assim como Moisés e os Profetas.” Os capitalistas
investem porque é de sua natureza fazer isso.
Keynes não leva seu próprio modelo formal a sério:
[89] É uma característica da natureza humana que uma grande proporção de nossas atividades positivas
dependam do otimismo espontâneo e não da expectativa matemática, sejam elas morais, hedonistas ou
econômicas. A maioria, provavelmente, de nossas decisões de fazer algo positivo, cujas inteiras
conseqüências só surgirão daqui a vários dias, só podem ser consideradas como o resultado de um
temperamento animal – de um impulso espontâneo para a ação, ao invés de para a inação, e não como o

119
Harrod, evidentemente, pretendia enfatizar apenas este ponto, mas o fez de uma forma invertida. Tomou a taxa de
lucros sobre o capital como sendo algo determinado pela taxa de juros. A sua “taxa de crescimento garantida” não é a
taxa de acumulação que as empresas desejam levar a cabo a essa taxa de lucros, mas a taxa que ela tem que levar a cabo
para que essa taxa de lucro seja realizada. A taxa “garantida” é tanto mais alta quanto maior for a propensão a poupar da
comunidade. Maior frugalidade requer uma taxa de crescimento mais alta, mas não fornece nenhum motivo para ela.
produto de uma média ponderada de benefícios quantitativos multiplicada pelas probabilidades
quantitativas. Um empreendimento só pretende para si mesmo ser impulsionado pelas afirmações que se
encontram em sua própria perspectiva, por mais cândida e sincera que seja. Só um pouco mais do que
uma expedição para o Pólo Sul, ele se baseia num cálculo exato dos benefícios que irão decorrer.
Portanto, se esse temperamento animal é ofuscado e o otimismo espontâneo hesita, deixando-nos
exclusivamente na dependência da expectativa matemática, o empreendimento vai desaparecer
gradualmente e morrer; embora o medo da perda não tenha uma base mais razoável do que as esperanças
de lucro tinham antes.120
Para entender as motivações para o investimento, devemos entender a natureza humana e a
maneira como reage a vários tipos de sistemas econômicos e sociais em que deve operar. Ainda não
fomos suficientemente longe para exprimi-lo em termos algébricos.
Apesar de seu fraco tratamento dos determinantes da acumulação, o modelo de Harrod
constituiu uma importante contribuição para a discussão. Enfatizou a distinção entre a taxa de
acumulação necessária para realizar a taxa “natural” de crescimento, isto é, a taxa de crescimento
tecnicamente possível, e a taxa que realmente ocorre em uma economia não-planejada de empresa
privada.
A taxa “natural” de crescimento é regida pela taxa de crescimento da força de trabalho
(deixando de lado as complicações de modificações nas horas de trabalho etc.) e pela taxa de
crescimento da produção per capita (que Harrod admite ser regida pelo progresso técnico
“autônomo”). Seu diagnóstico é que a acumulação real normalmente cai próxima da taxa necessária
para realizar a taxa tecnicamente possível de crescimento do produto. Nos países pobres,
especialmente quando a população cresce rapidamente, é impossível extrair poupança suficiente.
Nos países ricos, a propensão a investir é muito fraca.121
É evidentemente uma simplificação irrealista tornar o progresso técnico completamente
autônomo. Há uma forte relação entre o esforço para acumular e o esforço para aumentar a
produtividade.122 Isso adiciona uma [90] força a fortiori ao argumento. Quando uma economia
capitalista depara com uma escassez de trabalho enquanto a tendência a acumular é forte, começa a
encontrar melhorias nos métodos de produção que levam à economia de trabalho. Como essas se
aplicam particularmente ao tipo de equipamento, elas tanto podem reduzir a proporção capital/renda
quanto aumentá-la. Em suma, a taxa possível de crescimento é aumentada pelo próprio fato de que a
taxa realizada é alta.
Obviamente não se pode confiar que a reação do progresso técnico a uma demanda
excessiva por trabalho seja sem limite. A taxa de aumento do produto per capita não pode ser
indefinidamente empurrada para cima sem causar uma queda na taxa de lucro. Mas não sabemos
onde está o limite, pois o sistema nunca foi tão empurrado por um tempo suficientemente longo
para que pudéssemos descobrir.
Por outro lado, é evidente que o progresso técnico não é inibido por uma deficiência da
demanda de mão-de-obra. A luta competitiva entre empresas e a adaptação para uso industrial das
descobertas feitas em nome da ciência da guerra estão continuamente aumentando a produtividade
mesmo quando há um excedente de trabalho disponível. A incapacidade da taxa real de crescimento
em manter o nível da taxa “natural” aparece, então, sob o disfarce de desemprego tecnológico.
A análise de Harrod das relações entre a acumulação real de capital e a acumulação
necessária para realizar a taxa máxima de crescimento compatível com um nível constante da taxa
de lucros, interpretada dessa forma, abre muitas linhas de pesquisa interessantes. Especialmente, a

120
General Theory, p. 161.
121
Isso está expresso na terminologia de Harrod por uma taxa de crescimento garantida – isto é, uma propensão a
poupar – que é muito alta.
122
Isso é enfatizado por Kaldor (Essays on Economic Stability and Growth, p. 267), mas infelizmente ele torna a taxa
de progresso técnico (mostrada pela altura de sua curva do progresso técnico) autônoma e só permite o grau de
inclinação em direção à utilização de capital ou à poupança de capital (mostrado por um ponto na curva) que seja
influenciado pela taxa de acumulação (mostrada pelo valor de x no diagrama).
tendência para a estagnação como está mais uma vez emergindo nos Estados Unidos pode ser vista
como devida, não a alguma falha nos recursos reais em expandir por causa do “fechamento das
fronteiras”, menos ainda à saturação das necessidades reais, mas à incapacidade da indústria em
manter a oferta de emprego em uma expansão tão rápida quanto a força de trabalho.
Essas linhas de pesquisa foram muito pouco seguidas, talvez porque levassem
alarmantemente para longe do caminho batido da análise do equilíbrio.

3
A busca de uma teoria da acumulação reviveu os interesses sobre a questão das origens do
capitalismo industrial, que era normalmente discutida em termos da teoria de Weber sobre a
influência econômica do protestantismo (a teoria de Sombart de que era totalmente devido ao
catolicismo nunca teve muita penetração).123
[91] Walt Whitman Rostow124 fez uma proposta audaciosa para conquistar a praça com a
doutrina de que a industrialização começa como uma reação à humilhação nacional. Há um caso em
que isso se encaixa muito bem – a Restauração Meiji em 1867 no Japão. Ela não explica por que a
reação na China teve que esperar até 1949. Ademais, a humilhação contra a qual o Japão estava
reagindo era o impacto do próprio capitalismo. A descoberta de que existiam povos no mundo cuja
riqueza e poder estavam baseados em técnicas industriais levou o Japão, por assim dizer, através de
um ato de vontade nacional, a dominar as técnicas e avançar em direção às fileiras do poder. Esse
tipo de reação pode explicar a disseminação do capitalismo, mas não suas origens. Atribuir a
Revolução Industrial à humilhação da Inglaterra por van Tromp é muito forçado.
Há uma teoria menos conhecida que parece mais promissora. Foi apresentada por um
discípulo de Veblen, o Professor C. E. Ayres.125 Ele coloca a questão: “Por que a Revolução
Industrial ocorreu na Europa Ocidental e em tempos modernos? Por que não na China, ou na Grécia
antiga?”126
O que há de especial na história cultural da Europa Ocidental? Essa região era a legatária
residual de milhares de anos de civilização na área mediterrânica, mas muitas outras também eram.
Os vales do Nilo e da Mesopotâmia ainda são habitados. Em que a Europa Ocidental é diferente
deles?127
Ele encontra a resposta no fato de que a Europa Ocidental era a “região fronteiriça da
civilização mediterrânica”
Uma fronteira é um fenômeno de penetração, é uma região para a qual vêm as pessoas de
outro centro mais antigo de civilização, trazendo consigo as ferramentas e materiais de suas antigas
vidas, seus cereais e vinhas e árvores frutíferas, seus animais domésticos e trajes, suas técnicas de
trabalhar a pedra e a madeira, seus projetos arquitetônicos e tudo o mais. Também trazem suas
crenças e “valores” imemoriais, seus usos e costumes. Mas é sabido que os últimos invariavelmente
sofrem uma certa redução em importância sob as condições de vida fronteiriça. A vida na fronteira
é, como dizemos, livre e fácil. A observação meticulosa do sábado e das regras gramaticais são de
certa forma menos importantes na fronteira do que “na terra natal”.128
Ele atribui o caráter progressivo da tecnologia ao enfraquecimento do poder da religião
sobre a sociedade:

123
Der Bourgeois, Cap. XIX.
124
The Stages of Economic Growth.
125
The Theory of Economic Progress (University of North Carolina Press, 1944).
126
Ibid., p. 129.
127
Ibid., p. 132.
128
Ibid., p. 133.
[92] Temos que reconhecer que a Igreja foi a ponta de lança da resistência institucional à mudança
tecnológica. Sob a liderança da Igreja, a sociedade feudal se opôs e proibiu todas as grandes inovações
que dão nascimento á sociedade industrial, mas essa oposição foi ineficaz – do ponto de vista da evolução
industrial, felizmente assim foi – e essa ineficácia foi devida não a qualquer diferença marcada de
temperamento e intenção que possa ser concebida para distinguir o cristianismo de outros credos, mas ao
fato de que ele era apesar de tudo um credo que se disseminou de uma forma muito menos pesada entre
os povos ocidentais do que o islamismo entre os árabes, o hinduísmo na índia, ou o confucionismo na
China. Quando somos tentados a pensar na Igreja como a quinta-essência da civilização medieval,
devemos parar e nos perguntar: quem, afinal de contas, foi o símbolo mais significativo da cultura
européia. Santo Tomás ou o seu contemporâneo, o Imperador Frederico II?...129
A experiência real dos povos europeus foi a de uma comunidade fronteiriça dotada de um complemento
abundante de ferramentas e materiais provenientes de uma cultura ancestral e, portanto, quase
completamente separada do sistema de poder institucional de seus ancestrais. O resultado foi único. É
duvidoso que a história aponte outro exemplo de uma área e uma população comparáveis tão ricamente
dotadas e tão completamente separadas de suas origens. O fato de a Europa Ocidental ter sido o berço de
uma civilização nos séculos que se seguiram foi devido integralmente a esse dom, do qual nenhuma parte
importante foi perdida; o fato de que ela foi de todas as grandes civilizações de seu tempo
incomparavelmente a mais jovem, a menos rígida, a menos sufocada pela acumulação de longa data da
poeira institucional, mais susceptível de longe do que qualquer outra para a mudança e a inovação, foi
devido a essa separação única, é quase certo que foi esse caráter composto que fez da civilização da
Europa Medieval a mãe da Revolução Industrial.130
As grandes invenções que levam às revoluções técnicas, na visão do Professor Ayres, são
essencialmente novas combinações de instrumentos criados para diversos propósitos:
Assim, o avião é a combinação de uma pipa com um motor de explosão. O automóvel é a combinação de
uma carruagem com um motor de explosão. O próprio motor de explosão é a combinação de um motor a
vapor com um combustível gasoso que substitui o vapor e explode pela combinação posterior com uma
centelha elétrica. Falando de maneira geral, claro. Na prática, as combinações são geralmente muito mais
detalhadas. O que é apresentado ao público como uma “nova” invenção é, normalmente, o produto final
de uma longa série de invenções...131
Admitindo que as ferramentas são sempre ferramentas de homens que possuem a capacidade de usar
ferramentas e, portanto, a capacidade de utilizá-las juntas, é de se supor que as combinações tenham de
ocorrer. Além do mais, se segue que, quanto maior o número de ferramentas existentes, maior o número
de combinações potenciais. Se não soubéssemos nada sobre a história, mas tivéssemos, de alguma forma,
conseguido entender a natureza de nossas ferramentas, poderíamos inferir que o desenvolvimento
tecnológico deve ter sido um processo acelerante, quase imperceptivelmente lento em seus estágios
primitivos e vertiginosamente rápido em suas fases mais recentes. 132
[93] As precondições para a Revolução Industrial foram geradas por uma acumulação de
tais combinações. Por exemplo, o descobrimento do Novo Mundo obviamente teve um grande
papel na preparação do terreno. Na visão do Professor Ayres, ele foi a conseqüência do
desenvolvimento dos barcos oceânicos, que por sua vez resultaram da combinação da tradição de
construção naval do Mediterrâneo com a dos Vikings:
Os navios que começaram a cruzar os oceanos no final do século XV eram uma combinação desses dois
tipos. Não sabemos exatamente como ou quando ou onde ocorreu essa combinação. Talvez tivesse sido
nos estaleiros da costa da baia de Biscaia, onde a cultura Viking dirigindo-se para baixo se encontrou com
a cultura mediterrânea que subia. Mesmo assim, um tempo considerável se passou antes que o encontro
fosse frutífero, mas isso serve para enfatizar dois pontos: que a combinação não foi deliberada e que não
teve nenhum “fim” especial em vista (como as Índias), e que um navio não é um invento simples, mas
uma massa de traços culturais, de modo que a combinação seria sempre inevitavelmente a função lenta de
uma amalgamação cultural geral e do desenvolvimento tecnológico geral. Mas parece ser uma conjectura
bastante correta que a era das viagens e dos descobrimentos foi uma função dos navios, que os navios
oceânicos foram o resultado de uma combinação de diferentes tipos de inventos anteriores e que as
combinações ocorrem como um resultado de contato de culturas.133

129
Ibid., p. 135.
130
Ibid., p. 137.
131
Ibid., p. 112.
132
Ibid., p. 119.
133
Ibid., p. 143.
Uma vez que os navios existiam, os descobrimentos “tinham” de ocorrer.
A característica especial da Europa Ocidental não era que tais combinações tivessem
ocorrido aí, pois ocorreram em todos os lugares, mas que os “padrões cerimoniais” de
comportamento criaram uma menor resistência aí, do que em civilizações mais antigas, à expansão
de novas invenções.
Essa concepção lança alguma luz no que, de alguns pontos de vista, é o principal problema
dos tempos atuais – o desenvolvimento econômico relativamente lento da Índia sob instituições
copiadas da democracia parlamentar, em contraste com o da China sob a direção do Partido
Comunista. O liberalismo ocidental apenas aqueceu a superfície das águas profundas das tradições
da Índia, enquanto na China uma violenta inversão de idéias abriu o caminho para mudanças
rápidas na tecnologia e nas formas sociais apropriadas para explorá-las.
A analogia mais próxima à partida das legiões da Bretanha e da Gália está na África Negra.
Aqui a tecnologia mais moderna está chegando ao conhecimento de povos muito pouco bloqueados
pelas tradições antigas; se a teoria do Professor Ayres é correta, eles estão destinados no momento
adequado a nos sobrepujar a todos.
[94]
4
De todas as doutrinas econômicas, a de maior importância para os países subdesenvolvidos é
aquela associada a Malthus. Não que a teoria da população de Malthus possa ser aplicada de uma
forma clara a seus problemas, mas porque seu próprio nome chama a atenção para o simples e
doloroso fato de que quanto mais rápido é o crescimento demográfico mais lento é o crescimento da
renda per capita.
A discussão ainda segue, em geral, o desenvolvimento que recebeu inicialmente, baseando-
se simplesmente no fornecimento de alimentos. Por um lado, sentimos calafrios quando ouvimos
previsões sobre a fome e, por outro, ficamos sabendo que um número astronômico de pessoas
poderiam ser alimentadas com uma exploração científica da terra e dos mares. Mesmo que a visão
otimista se mostre correta, ela está bastante longe do problema. A questão não é o que devemos ser
capazes de fazer, se realmente tentarmos, para aumentar a produção por hectare. A questão é o que
já sabemos que podemos fazer para aumentar a produção por homem. A maneira de aumentar a
produção por homem é assegurar o equipamento e a educação. Nos países subdesenvolvidos,
existem massas de trabalhadores empregados a um nível de produtividade extremamente baixo ou
mesmo escassamente empregados. Equipá-los e treiná-los para um nível razoável de produção é
uma grande tarefa. Na medida em que o número de pessoas vai crescendo, o tempo em que todos
estarão equipados vai sendo adiado; a fortiori o tempo para um aumento geral a níveis mais altos de
produtividade pode ser iniciado.
É verdade que, com uma organização adequada, não é necessário que haja desemprego,
como a China mostrou. Há sempre algo de útil a ser feito mesmo com as mãos nuas do homem. O
desemprego e o subemprego maciços que afligem o homem de hoje mostram um defeito nas
instituições sociais e econômicas. Isso não quer dizer que é fácil consertá-las. É muito mais fácil
construir máquinas do que reorganizar a sociedade. O problema é que, mesmo se ele pudesse ser
resolvido, o nível da produção permaneceria miseravelmente baixo. Mais homens com mais mãos
nuas, mesmo que não baixe a média, torna mais difícil seu aumento. Supondo uma organização
perfeita, sem os obstáculos das instituições sociais não-apropriadas e operando com probidade e
sabedoria, há ainda um limite para a quantia de investimento que qualquer força de trabalho
determinada pode levar a cabo (considerando que as exportações costumam pagar o equipamento
importado como parte do investimento). O limite é estabelecido pelo excedente por homem
empregado na produção das necessidades de consumo sobre seu próprio consumo. A proporção do
excedente para o consumo por homem rege a proporção máxima da força de trabalho que pode ser
imputada ao investimento. (Isso obviamente é uma simplificação grosseira [95] de uma questão
complexa, mas o princípio fundamental permanece o mesmo, por mais que seja sofisticado com
complexidades.)
Ora, dada a proporção de recursos destinados ao investimento, é óbvio que o equipamento
per capita crescerá tão mais rapidamente quanto mais lento for o crescimento no número de
cabeças. O argumento é igualmente óbvio quando aplicado à construção de casas e às amenidades
da cidade, e à constituição de uma equipe de médicos, professores etc., que, de forma alguma, não é
a parte menos importante de um programa de investimento.
A questão da população levanta tanta emoção e toca em complexos tão profundamente
enterrados que a lógica desempenha um papel muito pequeno na discussão, e o ponto indicado
acima, embora muito simples,é normalmente omitido ou mesmo negado.
O catolicismo ortodoxo e o marxismo ortodoxo estão de acordo em protestar que não há tal
coisa como um problema populacional (embora ambos pareçam estar adotando uma atitude mais
flexível nos últimos tempos). Seria possível compreender a argumentação religiosa se ela fosse
assim: “A explosão da população agora em curso está causando uma grande miséria em muitas
vidas, e impedindo muitas outras de atingir um conforto modesto. Mas a anti-concepção é um
pecado. É errado ajudar os outros a cometer pecados (mesmo quando não são cristãos) e evitar a
miséria não é uma desculpa.” As pessoas religiosas, no entanto, não gostam geralmente de pôr um
preço tão elevado na virtude; preferem fingir que não existe o problema. “Com cada boca, Deus
envia um par de mãos.” É bem verdade, mas não envia uma segadeira. Quanto aos marxistas, só se
pode suspeitar que eles saibam mais, e que tenham alguma razão para não dizê-lo.
Há um problema populacional também no setor industrial avançado do mundo. Costumavam
dizer-nos que o desenvolvimento demográfico passa regularmente por três estágios. Primeiro, há
um equilíbrio primitivo entre uma alta taxa de natalidade e uma alta taxa de mortalidade. Os
desenvolvimentos modernos na Medicina e no fornecimento de alimentos reduzem a taxa de
mortalidade, e então ocorre a explosão demográfica. Gradualmente, com uma melhor educação, um
aumento na proporção da população urbana em relação à rural, e um padrão de vida mais elevado, a
taxa de natalidade cai, até que um equilíbrio civilizado é atingido. As experiências mais recentes
sugerem que, após passar por um ponto baixo (no qual surgem gritos de “Suicídio da raça!”) a taxa
de natalidade torna a crescer. Já não podemos mais esperar que a simples disseminação do controle
da natalidade e do planejamento familiar seja suficiente para manter os números em xeque.
O aumento da população no mundo ocidental (especialmente nos Estados Unidos) se iniciou
em um momento em que o progresso técnico [96] também é rápido. A taxa “natural” de
crescimento no sentido de Harrod134 está evidentemente levando vantagem sobre a acumulação, e os
Estados Unidos parecem estar se desgarrando para um tipo de subdesenvolvimento de alto nível,
com as oportunidades de emprego caindo muito abaixo da força de trabalho disponível. Isso é
suavizado até certa medida por um tipo de desemprego disfarçado de alto nível em serviços
comerciais de pequena escala.
O efeito mais notável de um crescimento da população, quando ocorre num alto padrão de
vida, é a forma como os seres humanos destroem as amenidades dos outros atravancando o país
com seus corpos, suas casas e seus automóveis. As deseconomias externas do consumo são então
tão marcantes que deixam a teoria da utilidade inteiramente arruinada.

5
No passado, as grandes invenções revolucionárias ocorreram acidentalmente através de
acontecimentos históricos casuais, tais como a abertura das comunicações entre a Europa e a China

134
Ver p. 89.
pelo Império Mongol, que levou à adaptação da impressão às línguas alfabéticas. 135 Hoje em dia, a
pesquisa é conscientemente dirigida para a solução de problemas técnicos (embora infelizmente a
maior parte seja dedicada para o que eufemisticamente é chamado a defesa). A evolução da
sociedade também fez crescer a auto-consciência. Um país subdesenvolvido tem que decidir em que
tipo de sociedade quer se desenvolver.
Há aqueles, ainda dedicados às doutrinas de Adam Smith, que preconizam que as economias
atrasadas precisam apenas criar as condições favoráveis para que o capitalismo floresça e frutifique.
Elas, em sua maioria, que se tornaram céticas por suas próprias experiências, sentem que já
esperaram demais e procuram cultivos de colheita rápida.
Quando as autoridades nacionais assumem o encargo de dirigir o desenvolvimento
econômico, o investimento tem que ser controlado por um plano consciente ao invés de seguir a
mentalidade animal flutuante da empresa privada. As proposições deduzidas da fórmula de
crescimento (g = s/v) ainda terão algo a dizer. A fórmula mostra, por exemplo, que, se se quer
atingir uma determinada taxa de crescimento, quanto mais poupança de capital estiver contida nos
investimentos, maior será a proporção de consumo em relação à renda que deverá ser permitida
(dado g, um menor valor de v implica um menor valor de s), ou que, dado o tipo de investimento a
ser assumido, a taxa de crescimento atingida depende [97] da proporção de investimento em relação
ao consumo (dado v, um maior valor de g exige um maior valor de s).
Do mesmo modo, a ênfase na poupança é mais enganadora do que útil. O problema
característico de uma economia subdesenvolvida é que sua atual taxa de acumulação é muito baixa
(em alguns casos muito baixa até para não ficar atrás do crescimento da população, sem falar em
começar a reduzir o subemprego e aumentar o padrão de vida). Tais economias têm diante de si a
dura tarefa de aumentar suas taxas de crescimento, e, por mais ingenuamente que mantenham baixa
a proporção capital/produção, isso deve implicar (em termos da fórmula) um aumento geral na
proporção da poupança em relação à renda. Mas, para a maioria, a massa de seu povo está vivendo
abaixo do mínimo de subsistência necessário para trabalhar eficientemente. O problema pode ser
colocado de uma maneira direta em termos da necessidade de garantir um aumento do consumo
necessário e ao mesmo tempo restringir o consumo desnecessário. A proporção de poupança geral
(s na fórmula) distrai a atenção do problema da distribuição da renda entra as famílias individuais.
Ajuda a disfarçar o horrível problema do que os indianos começaram a chamar de “crescimento do
setor U” que ocorre quando a riqueza privada é dilatada pela inundação de investimentos públicos.
A necessidade de restringir o consumo visando permitir que a taxa de acumulação aumente
dá uma vantagem para as economias que estão empreendendo o desenvolvimento sob instituições
socialistas. Uma revolução que nacionaliza a propriedade sem compensações faz com que recursos
que anteriormente alimentavam o consumo U fiquem disponíveis para o investimento. O excedente
preexistente de consumo desnecessário é pequeno, no entanto, em relação à acumulação exigida. A
principal vantagem em eliminar a renda proveniente do capital é que torna mais fácil, moral e
politicamente, evitar que os salários reais aumentem muito rapidamente. Além do mais, o consumo
coletivo na forma de serviços médicos, divertimentos etc. (que são fáceis de garantir numa
economia coletivizada) contribuem mais, por unidade de despesa nacional, para o bem-estar geral
(em qualquer base racional de julgamento) do que um aumento nos salários escassamente
disseminados por famílias individuais.
Marx esperava que uma revolução socialista teria apenas que expropriar os expropriadores,
para assumir uma economia industrial altamente desenvolvida como uma empresa florescente.
Como se verificou, as economias socialistas tiveram que levar a cabo a industrialização por si
mesmas, e tiveram de enfrentar relações de propriedade feudais e antigas ideologias que o
capitalismo não conseguiu destruir. O economista ortodoxo, que não pode aprovar o socialismo,
assim como o feudalismo, fica tristemente desnorteado.

135
Ayres, op. cit., p. 141.
[98] Stalin formulou os objetivos econômicos do socialismo como: “A garantia de máxima
satisfação das exigências materiais e culturais constantemente crescentes da sociedade como um
todo.”136
Tomado de um ponto de vista positivo, isso não tem mais conteúdo do que qualquer slogan
metafísico; tal como o slogan “Todos os homens são iguais”, expressa seu ponto de vista através de
negações. Exigências “constantemente crescentes” significa que não há nenhum limite previsível
para o possível aumento da produtividade (porque, evidentemente, não são tanto as exigências
como os meios de satisfazê-las que irão aumentar continuamente). Exigências “culturais” significa
que a riqueza crescente não deve estar limitada aos bens físicos (embora apenas esses entrem na
definição marxista de produto). “A sociedade como um todo” implica uma condenação da
distribuição arbitrária da riqueza.
Os economistas ortodoxos não têm nada a objetar. Na verdade, isso tira as próprias palavras
de suas bocas. Mas eles estavam acostumados a desculpar a desigualdade gerada pela propriedade
privada dos meios de produção porque ela era necessária para fazer com que a renda total fosse
maior. Se a renda cresce mais rapidamente, sem a propriedade privada, eles ficam numa situação
difícil. Talvez seja por isso que eles saíram de mansinho para se esconder em moitas de Álgebra
deixando a tocha da ideologia para ser carregada pelo argumento político de que as instituições
capitalistas são o bastião da liberdade.

6
A teoria de Keynes tem pouco a dizer, diretamente, aos países subdesenvolvidos, pois estava
inteiramente enquadrada no contexto de uma economia industrial desenvolvida, com instituições
financeiras altamente desenvolvidas e uma classe empresarial sofisticada. O desemprego que
interessava a Keynes era acompanhado pela subutilização da capacidade já existente. Era resultado
de uma queda na demanda efetiva. O desemprego das economias subdesenvolvidas surge porque a
capacidade instalada e a demanda efetiva nunca foram suficientemente grandes.
De toda maneira, a General Theory tem muito a ensinar, de uma forma negativa.
Em particular, esclarece o significado da inflação. Era um preconceito profundamente
enraizado no velho ensinamento, e que ainda não foi extirpado, que a inflação é um fenômeno
monetário, que pode ser evitado por uma manipulação correta da oferta de moeda.
A análise da General Theory mostra que a inflação é um fenômeno real, e não monetário.
Opera em dois estágios (mais uma vez dando conta, [99] de uma forma extremamente simples, de
um processo complexo). Um aumento da demanda efetiva deparando com uma oferta inelástica de
bens faz subir os preços. Quando o alimento é ofertado por uma agricultura camponesa, uma alta
nos preços dos gêneros alimentícios representa um aumento direto na renda monetária dos
vendedores e aumenta seus gastos. O custo de vida mais elevado cria uma pressão para aumentar as
taxas de salários. As rendas monetárias aumentam então em todo lugar isso faz subir os preços
ainda mais e uma espiral viciosa se estabelece.
O primeiro estágio – um aumento da demanda efetiva – pode muito facilmente ser evitado
se não houver nenhum desenvolvimento. Mas se deve haver desenvolvimento então deve haver um
estágio em que os investimentos aumentam relativamente ao consumo. Tem que haver um aumento
na demanda efetiva e uma tendência em direção à inflação. O problema é como mantê-la dentro de
limites.
Alguns esquemas de investimentos que parecem ser claramente indispensáveis para
melhorias a longo prazo, como as instalações elétricas, levam muito tempo para produzir qualquer
fruto e nesse meio tempo os trabalhadores engajados neles têm que ser fornecidos. O segredo do
desenvolvimento não-inflacionário é a alocação da quantia certa de investimentos de poupança de
136
Economic Problems of Socialism in U.S.S.R., edição inglesa, p. 45
capital, de rápido rendimento, no setor de bens de consumo (especialmente a agricultura) para gerar
um excedente suficiente a ponto de suportar os projetos mais amplos necessários.
É nesse tipo de análise, mais do que nas mistificações do “déficit financeiro” que se deve
procurar a chave do problema da inflação.
A análise keynesiana também esclarece sobre a questão dos usos e abusos da ajuda externa.
Há dois casos em que a ajuda externa é indispensável para dar início ao desenvolvimento. O
primeiro é quando se necessita de equipamento que não pode ser produzido internamente a qualquer
preço, enquanto simultaneamente a demanda mundial de todas as mercadorias que o país pode
exportar é inelástica.137 Em tal caso não será através do trabalho duro ou da abstinência
conscienciosa que se tornará possível comprar equipamentos a mais do que o pouco que os ganhos
com o comércio externo irão pagar.
No segundo tipo de caso, a força de trabalho nacional é tecnicamente capaz de levar a cabo
o investimento desejado, mas não há como obter [100] um excedente suficiente para garantir a
transferência dos homens retirados da produção de alimentos para o trabalho no investimento. Em
tal caso, a ajuda externa pode ser usada tanto para importar alimentos quanto para importar bens de
investimento. Para aplicar essa ajuda da maneira mais vantajosa, ela deve ser alocada em qualquer
proporção que produza uma acumulação mais rápida no estoque de equipamento.
Tais casos, em termos estritos, devem ser bastante raros. Geralmente, antes do
desenvolvimento ter-se iniciado, há algumas importações dispensáveis de bens de consumo que
podem ser cortadas ou alguns consumos internos dispensáveis que podem ser transformados em
bens de exportação vendáveis. Aonde essas arestas ainda não foram polidas, a ajuda externa não é,
estritamente falando, indispensável, mas é politicamente útil, pois remove a necessidade de cortar o
consumo de luxo. Quando a ajuda externa é aplicada em reduções de impostos ou assume a forma
de salários, comissões ou subornos, que são gastos em importações, que de outra forma não teriam
ocorrido, ela não contribui em nada para o desenvolvimento.
Isso foi agora compreendido pelo Governo dos Estados Unidos. Os membros da Aliança
para o Progresso foram avisados de que a ajuda só seria dada para Governos honestos, que tenham
realizado uma reforma agrária radical e instituído impostos progressivos que são realmente pagos.
Essa regra parece que foi inspirada pela simples fé na teoria econômica, mas não há dúvida de que
não é tão simples como parece.
Há ainda outro tópico, relacionado com problemas do subdesenvolvimento, que tem sido
muito discutido em termos da análise teórica: a escolha da técnica quando uma variedade de
métodos está disponível para o mesmo produto. O campo está obscurecido por dois preconceitos
opostos. Um é o apelo esnobe pelo equipamento mais moderno e mais altamente automático e o
outro o apelo sentimental dos artesãos da aldeia.
Para encontrar um caminho no meio da nebulosidade, devemos, antes de mais nada, propor
duas regras simples que apelam para o senso comum. Primeiro, nenhum equipamento deve ser
destruído e nenhum método de produção rejeitado enquanto os materiais por eles utilizados e a
mão-de-obra que os opera não consigam encontrar uma utilização melhor em qualquer outra parte.
As melhores técnicas devem ser materializadas em novos investimentos, mas as novas não ocupam
o lugar das velhas; elas trabalham lado a lado. Até que todos os trabalhadores estejam equipados
com o melhor, o equipamento inferior é melhor do que nada. Segundo, nenhuma técnica deve ser
escolhida só porque cria emprego. O objetivo da operação não é ser capaz de somar o maior total de
empregos estatísticos, mas aumentar a produção. (É ilusório colocar a questão em termos de
137
Isto é, inelástica para uma queda de preços. Não é comum que um país tenha um monopólio suficientemente
confiável em qualquer bem exportável a ponto de fazer de um aumento no preço uma política segura. Um aumento no
preço, imediatamente ou após um intervalo, irá chamar os fornecedores rivais para o mercado ou induzir os
compradores a transferir sua demanda para substitutos. Uma queda no preço será seguida pelos vendedores rivais. Logo
a demanda precisa ser muito elástica em relação a um aumento e muito inelástica em relação a uma queda nos preços,
qualquer que tenha sido o preço inicial.
técnicas intensivas em trabalho. A vantagem da mão-de-obra está em ser poupadora de capital, não
em ser utilizadora de trabalho.)
[101] Restam casos de dúvida genuína onde uma técnica utilizando menos capital, com
menor produto per capita, promete maior produto por unidade de investimento, ou um mais rápido
retorno do investimento, do que outra que é mais mecanizada e exige menos trabalho. Tem-se dito
que em tais casos a política correta é escolher a técnica que produz a mais alta taxa de excedente, a
ponto de fazer a maior contribuição para a acumulação posterior. À primeira vista, isso parece
bastante razoável, já que o desenvolvimento é o objetivo global da operação. Mas, quando vemos
mais de perto, não é tão óbvio. O excedente que uma técnica produz é o excesso do produto líquido
sobre o valor dos salários dos operários que a operam. Um excedente mais alto significa uma taxa
mais rápida de aumento na produção e no emprego, partindo de um começo onde era menor.
Quanto mais poupadora de capital for uma técnica, maior o produto que resulta e mais salários
paga. E por essa mesma razão que ela oferece um excedente menor.
Há uma escolha entre algum congestionamento hoje e mais congestionamento depois de
amanhã. Esse problema não pode ser resolvido por qualquer tipo de cálculo baseado em “descontar
sobre o futuro”, pois os indivíduos envolvidos na perda ou ganho são diferentes. Quando a escolha
recai sobre a técnica mais mecanizada, produtora de maior excedente, a perda cai sobre aqueles que
teriam sido empregados se a outra escolha houvesse sido feita. O benefício originado de seu
sacrifício só aparecerá mais tarde e eles podem não sobreviver para vê-lo. A escolha pode ser feita
de uma maneira ou de outra, mas os princípios da Economia do Bem-Estar Social não ajudam a
estabelecê-la.
Sem dúvida, num plano alto de generalidade, a teoria econômica não tem quase nada a dizer
ao planejador, exceto: Não dê ouvidos àqueles que dizem que você prefere isso ao invés daquilo –
agricultura, e não indústria; exportações, e não produção para o mercado interno; indústria ligeira, e
não indústria pesada. Você quer sempre as duas coisas.
Contudo, em questões de detalhes os métodos estatísticos e matemáticos desenvolvidos pela
Economia moderna podem oferecer um grande serviço ao planejamento do desenvolvimento, desde
que sejam bem escovados para limpar os conceitos metafísicos que os envolvem.
IV
QUAIS SÃO AS REGRAS DO JOGO?
[103]
Com todas essas doutrinas econômicas, que decaem e revivem, que se chocam umas com as
outras, que são compreendidas pela metade, na cabeça do público, que idéias básicas são aceitáveis
e que regras políticas se derivam delas?

1
No meio de toda a confusão, há um elemento ideológico sólido e imutável que de tão
evidente é raramente notado – isto é, o nacionalismo.
A própria natureza da Economia tem suas raízes no nacionalismo. Como um tema puro, é
muito difícil para que seja um objeto de estudo compensador; os praticantes desse tema incoerente,
incerto e indisciplinado negam a beleza da Matemática e a satisfação das descobertas nas Ciências
Naturais. Ele nunca teria sido desenvolvido se não fosse na esperança de esclarecer as questões de
política. Mas a política não significa nada se não houver uma autoridade que a leve a cabo, e as
autoridades são nacionais. O tema, por sua própria natureza, opera em termos nacionais. Mesmo o
marxismo, que teoricamente é universalista, teve que adotar os moldes nacionais quando as
administrações revolucionárias foram estabelecidas. As aspirações dos países em desenvolvimento
são mais de independência nacional e de auto-respeito nacional do que apenas de pão para comer.
Os clássicos teimosos não tiveram dúvida quanto a isso. Argumentavam contra o
nacionalismo estreito dos Mercantilistas e a favor de uma política mais ampla. Mas eram a favor do
Livre Comércio porque era bom para a Inglaterra, não porque fosse bom para o mundo.
A doutrina neoclássica se supunha universalista. A utilidade não conhecia fronteiras.
Quando Edgworth propôs que se somassem as unidades [104] de felicidade, propunha que cada
indivíduo valesse uma.138 Ele não disse que cada inglês devia valer uma.
Mas, na prática, o próprio fato de que a doutrina da utilidade reduzia as diferenças de classe
fez com que ela fosse sobretudo nacionalista. Como disse Gunnar Myrdal, 139 o apelo à solidariedade
nacional que sustenta o próprio Estado do Bem-Estar Social torna a solidariedade da raça humana
muito mais difícil de ser alcançada.
A ideologia dos neoclássicos pretendia basear-se na benevolência universal, mas eles
adquiriram, naturalmente, o hábito de falar em termos de Renda Nacional e no bem-estar do povo.
A nossa nação, o nosso povo, já era bastante para eles se preocuparem.
Hoje em dia, um escritor consciencioso como o Professor Meade, antes de apresentar os
méritos do mercado livre, é cuidadoso em dizer “Para que o sistema monetário e de preços possa
funcionar com eqüidade é preciso que se alcance uma distribuição justa da renda e da propriedade”
e em chamar a atenção para o fato de que a desigualdade torna o sistema não só injusto, mas
também ineficiente, de modo que uma precondição para o desejo de preservá-lo é “tomar as
medidas radicais que garantam uma distribuição toleravelmente justa da renda e da propriedade”. 140
Mas ele não considera em nenhum momento qualquer outra distribuição que não seja entre os
cidadãos da Inglaterra. Parece tão natural quanto respirar, o fato de limitar a igualdade e a eficiência
ao seu próprio litoral.
A grande doutrina central da escola neoclássica – o caso do Livre Comércio – embora seja
sofisticada quando pretende que nenhuma nação pode se beneficiar com o protecionismo, é
138
Cf. p. 58.
139
Cf. An International Economy.
140
Planning and the Price Mechanism, p. 35.
inexpugnável quando mantém que nenhum grupo de produtores pode se beneficiar com o
protecionismo, a não ser, ao menos temporariamente, pelo prejuízo dos outros. Mas os economistas
não afirmam que é um dever das nações ricas aumentar a quantidade de utilidade no mundo pelo
subsídio às importações para as nações pobres.
Um ponto de vista genuinamente universalista é muito raro. O mais próximo a que
chegamos, normalmente, é afirmar que num mundo próspero em geral nós iremos fazer melhor do
que num mundo miserável. A prosperidade dos outros não é desejada para seu bem, mas como uma
contribuição para nosso conforto; quando a prosperidade deles parece ameaçar a nossa, ela não é de
forma alguma desejada. Isso parece ser uma forma tão natural de pensar, tão correta e apropriada,
que nós nem mesmo notamos que é uma forma determinada de pensar; respiramos esse ar desde o
nascimento e nunca nos ocorreu querer saber a que cheira.
[105] Nos últimos tempos, o desenvolvimento das estatísticas forneceu muito alimento para
a ideologia nacionalista. Periodicamente são publicadas várias tabelas sobre a Renda Nacional
média, a taxa de crescimento, o percentual de poupança, a produtividade, o crescimento da
produtividade etc., e procuramos ansiosamente qual o nosso lugar. Quando o pobre velho Reino
Unido, como normalmente ocorre, aparece mal colocado, sentimo-nos mortificados, ou, então,
ficamos tentando encontrar buracos nas estatísticas para mostrar que a colocação está errada; ou
então apontando todos os tipos de vantagens injustas que os miseráveis estrangeiros tiveram, que
tornaram as comparações tão ilusórias.
Em um mundo de concorrência internacional, há uma sólida razão para se ficar ansioso por
equiparar o crescimento da produtividade com as outras nações comerciais; se perdemos mercados
devido a nossos preços mais elevados vamos descobrir que é muito difícil evitar reduzir nosso
consumo, e um corte na renda nacional real é muito desagradável.
As tabelas estatísticas também podem ser utilizadas para mostrar o que é possível fazer de
modo que um observador que queira, em qualquer caso, defender mais investimentos possa apelar
para elas com o fim de silenciar um oponente que afirma que isso não pode ser feito.
Estes são usos racionais das comparações, mas o principal apelo das tabelas estatísticas é
muito mais simples e diretamente dirigido a um instinto de alcançar uma posição invejada,
projetado para o plano internacional.
A concorrência internacional e a política nacional sempre foram um grande estímulo para o
desenvolvimento econômico. Por trás da fachada da teoria do laisser faire, os Governos de todas as
nações capitalistas impulsionaram o comércio e a produção, conquistaram territórios e adotaram
instituições para auxiliar seus próprios cidadãos a obter vantagens. A própria doutrina do Livre
Comércio, como Marshall perspicazmente observou, era na realidade uma projeção dos interesses
nacionais britânicos.
Os enormes passos dados pela produção sob o regime da concorrência internacional
levaram-nos à situação paradoxal em que nos encontramos hoje. Nunca antes as comunicações
foram tão completas. Nunca antes a opinião pública educada em qualquer país esteve tão consciente
do resto do mundo. Nunca antes valeu a pena pensar na pobreza como um problema mundial – só
agora nos parece possível, pela aplicação da ciência à saúde, ao controle de nascimentos e à
produção, livrar toda a raça humana de suas piores misérias.
Mas também nunca antes uma proporção tão grande de energia econômica e de estudos
científicos foi dedicada a meios de destruição. Combinamos doutrinas de benevolência universal
com o mesmo patriotismo que inspirou os cavaleiros de Gengis Khan.
“Quando a natureza formou a humanidade para a sociedade”, como disse Adam Smith, ela o
dotou de alguns sentimentos de compaixão por [106] seus iguais. A evolução produz uma
consciência. Mas a biologia cessa na fronteira da tribo. A evolução não responderá à maioria de
nossas questões morais. Quem é meu vizinho? A partir desse ponto, é a Humanidade que tem que
assumir o lugar da Natureza, mas ela não mostra, até o momento, nenhum sinal de estar fazendo
isso.
O patriotismo é certamente uma grande força para o bem. É unificador até a fronteira.
Supera o patriotismo secional de grupos raciais e religiosos e, dessa maneira, contribui para a
harmonia interna. Os marxistas lastimam o momento em que ele se sobrepõe aos antagonismos de
classe. Mas a vizinhança interna é ganha pela projeção da agressão para fora. Muitas das coisas que
seriam consideradas vergonhosas em casa são justificadas em nome do interesse nacional. Como
disse o Dr. Johnson: “O patriotismo é o último refúgio do canalha.” Estamos ainda muito longe de
desenvolver uma consciência nacional que transforme o patriotismo em um desejo de se comportar
bem. É claro que em nosso país, especialmente, fazemos muito barulho em relação à consciência
nacional, mas ele consiste principalmente em insistir sobre o fato de todo mundo atribuir nossa
política nacional a motivações altamente morais, e não em examinar o que nossas motivações são
na realidade. Para tomarmos um exemplo moderno, quando o Relatório Devlin descreveu a
Niassalândia como um “Estado policial” houve certamente grande indignação. Mas a indignação, na
maior parte, não era de que um território britânico estivesse em uma condição que se prestasse a
essa descrição, mas de que alguém estivesse tão distante de sentimentos respeitosos a ponto de se
utilizar dessas palavras para falar de uma dependência britânica.
Enquanto indivíduos, valorizamos as pessoas pelo que elas deram ao mundo, não por aquilo
que retiraram dele. Vemos com suficiente clareza em cada semelhante (embora nem sempre cada
um em si mesmo) que o prestígio exterior é um pobre substituto para o contentamento interior.
Vemos que a agressão é um sinal de fraqueza e a ostentação um sinal de falta de confiança em si
mesmo. Todavia, a ganância, a ostentação e a opressão são bem aceitas em termos nacionais.
É verdade que a economia internacional tem mostrado, nos tempos atuais, uma grande
quantidade de benevolência, mas ela é sempre justificada na base de um interesse nacional.
Ajudamos a Índia (da maneira como fazemos) não porque queremos multiplicar “unidades de
felicidade” dando para um povo faminto uma refeição decente, mas porque esperamos com isso
manter o prestígio do Ocidente contra a União Soviética. A julgar pela imprensa, quando a fome
que é aliviada se dá na China, já não ficamos tão contentes.
A revolução keynesiana rompeu com o pretenso nacionalismo da doutrina do Livre
Comércio e ajudou a introduzir um internacionalismo genuíno em seu pensamento. Os acordos
internacionais do pós-guerra, embora [107] fortemente influenciados pelos ideais do Livre
Comércio, deixaram cláusulas de escape para países que sofriam de dificuldades no balanço de
pagamentos, e para os países subdesenvolvidos, e permitiram que as políticas internas de emprego
tivessem prioridade sobre as obrigações internacionais. Em princípio, embora muito pouco tenha
sido feito a respeito, a regulamentação do comércio em mercadorias de primeira necessidade foi
aceita como um objetivo de política (embora os fanáticos do Livre Comércio ainda o critiquem
publicamente) e quando nosso balanço de pagamentos melhorou devido ao empobrecimento dos
produtores primários, ao menos reconhecemos que não havia nada para se orgulhar nisso.
Essa consciência da variedade de problemas que enfrentam as outras nações, e o abandono
da doutrina pseudo-universalista do Livre Comércio, é um grande avanço no esclarecimento. É
também um grande aumento do desconforto mental. Sem o paliativo do laisser-faire, o problema
moral, em escala mundial, tornou-se evidente.

2
Também na frente interna tornamo-nos agora conscientes das opções que devem ser feitas e
encontramo-nos privados dos princípios simplistas de como fazê-las. A ideologia do Pleno
Emprego, como um fim em si, é muito fina e transparente. A idéia de que há uma relação correta,
natural, indicada, de equilíbrio entre investimento e consumo; ou entre investimento interno e
externo; ou entre investimento público e privado; ou um nível correto e natural de equilíbrio dos
salários reais, ou da taxa de juros, caiu no descrédito pelo simples fato de que a política nacional de
emprego é admitida como sendo necessária.
Em todo caso, uma vez que se aceita que um “alto e estável nível de emprego” será
garantido (deixando de lado a questão de quão alto deve ser e se algumas vacilações não serão
induzidas para suavizar a estabilidade), então o problema do emprego enquanto tal deixa de ter
qualquer interesse. Só foi necessário argumentar sobre ele quando a visão oficial era de que nada
poderia ser feito. Agora a argumentação precisa ser sobre o que deve ser feito.
A herança neoclássica ainda tem uma grande influência, não apenas no ensino da Economia,
mas também na formação da opinião pública em geral, ou, ao menos, no fornecimento à opinião
pública de seus slogans. Mas, quando ela chega a um problema real, não tem nada de concreto a
dizer. Seus praticantes mais recentes se refugiam na construção de manipulações matemáticas cada
vez mais elaboradas e ficam cada vez mais aborrecidos com qualquer um que lhes pergunte o que
eles supostamente estão manipulando.
Na medida em que as doutrinas econômicas têm uma influência na escolha de objetivos de
política nacional, são em geral mais obscurantistas do que úteis.
O conceito de utilidade pretende ver por trás do “véu da moeda”, mas a utilidade não pode
ser medida, enquanto que os valores monetários podem; os economistas têm uma inclinação pelo
mensurável igual à que o curtidor tem pelo couro.
As mesmas falácias contra as quais se supõe que a Economia deva se prevenir, os
economistas são os primeiros a cometer. Seu conceito central, a Renda Nacional, é uma massa de
contradições. O consumo, por exemplo, é normalmente identificado com a venda de bens de
consumo, e uma alta taxa de “consumo” é identificada com um alto padrão de vida. Mas o
consumo, no significado pleno da palavra, no sentido que está relacionado com a satisfação das
necessidades naturais, não ocorre no momento em que as mercadorias são entregues por cima do
balcão, mas em períodos de tempo mais longos ou mais curtos após esse acontecimento. Essa
dimensão-tempo é completamente deixada de fora pelos números. É deixada de fora não porque
alguém negue sua importância, mas devido à simples dificuldade de apanhá-la numa malha
estatística.
A moda em roupas é um tipo de esporte que engloba valores não-materiais, embora nos
princípios utilitaristas o sofrimento dos muitos perdedores provavelmente supere o prazer dos
poucos ganhadores. Seja lá como for, nas mercadorias cujo propósito é fornecer satisfação material,
a durabilidade é um grande ganho; se a dimensão-tempo do consumo cai à medida que a dimensão-
quantidade das vendas sobe, é um grande erro tomar a última como medida das mudanças no
padrão de vida.
Novamente, segundo a doutrina da utilidade, supõe-se que as mercadorias satisfaçam
necessidades que existem independentemente delas. É em função disso que as mercadorias são
consideradas uma Boa Coisa. Não é de forma alguma óbvio que as mercadorias que carregam suas
próprias necessidades consigo, através de uma propaganda habilidosa, sejam uma Boa Coisa. É
certo que poderíamos estar em tão boas condições sem as mercadorias e sem as necessidades? Esse
é o tipo de pergunta que, muito naturalmente, é dolorosamente irritante para os estatísticos da
Renda Nacional. (Os estudos sobre a Renda Nacional são, evidentemente, de um enorme valor em
sua própria esfera, isto é, na medição das mudanças no produto global, como uma indicação da
atividade empresarial, e das mudanças na produtividade enquanto uma medida de eficiência.)
O grande problema da teoria da utilidade era responder à questão de Adam Smith sobre a
água e o diamante – distinguir entre a utilidade total, que deve medir a satisfação, e a utilidade
marginal, que é medida pelo preço. A representação diagramática de Marshall do excedente do
consumidor é, evidentemente, falsa – um tratamento pseudoquantitativo [109] de algo que por sua
natureza não pode ser medido. Mas a idéia que está por trás dela se baseia no senso comum. A
oportunidade de comprar uma mercadoria, comparada com a situação em que ela não existe, pode
oferecer uma vantagem aos consumidores que não é, de forma alguma, medida pela quantia real
despendida com ela. Contudo, na contabilidade da Renda Nacional as mercadorias têm que ser
lançadas em termos de seus valores de troca, não de suas utilidades. Isso não passaria de um tema
para a especulação filosófica, se a política não fosse afetada pela propaganda sobre o padrão de vida
da forma como aparece nos números, e há uma pressão sistemática e contínua por bens com um
valor de venda contra aqueles que não o possuem. A luta que se deve travar, por exemplo, para
salvaguardar o campo virgem de ser explorado pelo lucro monetário é ainda mais dificultada porque
seus defensores podem ser representados como defendendo valores “não-econômicos” (o que é
considerado estúpido, tolo e impatriótico), embora os economistas devessem ser os primeiros a
mostrar que a utilidade, e não o dinheiro, é um valor econômico e que a utilidade das mercadorias
não é medida por seus preços.
O preconceito do laisser-faire, a que a ortodoxia ainda se agarra, também ajuda a falsificar
os verdadeiros valores. Quando Keynes (com sua maneira “moderadamente conservadora”) afirmou
que, desde que o pleno emprego geral esteja garantido, “não há nenhuma objeção a ser levantada
contra a análise clássica sobre a maneira em que o auto-interesse privado irá determinar o que é
produzido em particular”,141 ele se esqueceu que num capítulo anterior tinha escrito: “Não há
nenhuma evidência clara proveniente da experiência de que a política de investimentos que seja
socialmente vantajosa coincida com a que é a mais lucrativa.” 142 Nesse momento, ele estava levando
em consideração a inclinação da empresa privada por lucros rápidos. Há ainda uma inclinação mais
fundamental em nossa economia a favor de produtos e serviços para os quais é fácil recolher o
pagamento. As mercadorias que podem ser vendidas em pacotes para os clientes individuais, ou
serviços que podem ser cobrados a tanto por cabeça, garantem um campo para a empresa lucrativa.
Os investimentos na urbanização da cidade, por exemplo, só podem ser desfrutados coletivamente e
não é fácil fazer dinheiro com isso; enquanto que bens negativos, como a sujeira e o barulho,
poderiam ser dispensados sem a exigência de qualquer compensação.
Quando se pensa nisso, o que facilmente pode ser onerado e o que não pode torna-se um
simples acidente técnico. Algumas coisas, como a drenagem e a iluminação das ruas, são tão
obviamente necessárias que uma quantia lhes é dedicada independentemente do fato de que o
pagamento deverá ser recebido através de taxas, mas são apenas as necessidades mais [110]
evidentes que entram nessa categoria, juntamente com algumas amenidades tradicionais, como
canteiros de flores nos parques, que são considerados necessários para o auto-respeito municipal.
Os fundos para investimentos em negócios lucrativos são amplamente retirados dos lucros
obtidos com investimentos passados. Quando compramos um pacote de mercadoria, pagamos os
custos de sua produção (inclusive um rendimento para os emprestadores do dinheiro que entrou no
equipamento necessário para levá-la a cabo) e também um pequeno extra, que vai para os lucros
não-distribuídos para financiar outros investimentos. Em muitos casos, o preço também inclui uma
contribuição para os impostos que serão gastos na administração geral, serviços sociais, juros sobre
a dívida nacional, defesa etc. A diferença entre as margens de lucros e as taxas indiretas, em termos
de seus funcionamentos econômicos, não é de forma alguma bem definida, nenhuma representa um
“peso” maior ou menor do que a outra. A diferença entre elas é que o desembolso das margens de
lucros em dividendos, amenidades ou investimentos lucrativos, sob o controle nominal dos
acionistas, está nas mãos do conselho de direção, enquanto que o desembolso em taxas e impostos
está nas mãos das corporações urbanas e dos departamentos governamentais, sob o controle
nominal do eleitorado. A idéia de que uma é necessariamente mais “econômica” do que a outra não
tem nenhum fundamento a não ser em preconceitos ideológicos.
O Professor Galbraith retrata a situação na América, onde tanto a produção de bens
vendáveis quanto a negligência com serviços não-vendáveis são ainda mais radicais do que na
Inglaterra.

141
General Theory, pp. 378-9.
142
Ibid., p. 157.
A família que sai em seu carro cor de malva e cereja, equipado com ar condicionado, direção e freio
automático, para um passeio, passa por cidades que estão mal pavimentadas, horríveis de tanto lixo, com
edifícios em ruínas e cartazes destruídos, e com postes elétricos que há muito já deveriam ter sido
derrubados. Passa por uma região rural que se tornou praticamente invisível pela propaganda. (As
mercadorias que estão anunciadas têm uma prioridade absoluta em nosso sistema de valores. Tais
considerações estéticas como uma paisagem campestre são secundárias. Em tais questões somos
coerentes.) Fazem um piquenique com alimentos primorosamente empacotados, retirados de uma
geladeira portátil, ao lado de um riacho poluído, e resolvem passar a noite em um parque que é uma
ameaça para a saúde e a moral públicas. Antes de cochilarem num colchão de ar, sob uma tenda de nylon,
no meio do mau cheiro dos resíduos em deterioração, elas podem refletir vagamente sobre a curiosa
desigualdade de suas bênçãos.143
Ainda não atingimos esse estágio na Inglaterra, mas estamos indo nesse caminho.
[111] Algumas interpretações da política de emprego tomam por certo que os investimentos
das empresas privadas devem sempre ter prioridade de recursos e o investimento público deve
diminuir de ritmo, embora as “obras públicas” possam ser empreendidas quando o investimento
privado estiver dando sinais de estar se dirigindo para uma baixa e novamente reduzidas quando o
investimento privado se recupere.
Lloyd George e Keynes estavam certos quando defendiam a abertura de ruelas e o
alargamento de estradas apenas como um meio de dar trabalho, porque a ortodoxia oficial era contra
fazer qualquer coisa, mas agora não parece fazer muito sentido que tenhamos que esperar por uma
crise para fazer esses trabalhos. É possível argumentar que o investimento privado seja útil para as
exportações, que não podemos autorizar que se abram ruelas até que nossa indústria esteja em
melhor forma, e que as exportações não poderão florescer enquanto a indústria lucrativa, como um
todo, não esteja florescendo. Este é um argumento lógico, embora não necessariamente
convincente. Mas o argumento de que o investimento público, por mais benéfico que seja, é menos
desejável de um ponto de vista nacional do que qualquer investimento privado, simplesmente
porque ele é público, não possui nenhuma base lógica, é apenas um remanescente da ideologia do
laisser-faire.
Para tomarmos outro exemplo, Keynes, como já vimos, 144 afirmou (quando ele permitiu que
sua mente se preocupasse com problemas de longo prazo) que o investimento mantido firmemente a
níveis de pleno emprego iria em pouco tempo saturar toda demanda útil por equipamentos de
capital, e exigir uma redução a zero da taxa de juros. Mas não lamentava isso, ele o via como um
começo de uma época de vida civilizada. Os “keynesianos vulgares” retomaram a questão com
outro sentido. Transformaram o esgotamento prospectivo das oportunidades de investimentos
lucrativos na “tese da estagnação”. Os estagnacionistas, ao invés de saudar a perspectiva de um
período em que a poupança teria se tornado desnecessária, em que os altos salários reais teriam
reduzido a zero a taxa de lucro e o progresso técnico poderia ser dirigido para tornar o trabalho mais
leve e aumentar o lazer, viram sua aproximação como uma ameaça. Isso, evidentemente, é um
ponto de vista perfeitamente razoável se se considera que o objetivo da vida econômica é garantir
uma esfera para a realização de lucros. A saciedade das necessidades materiais é má para os lucros.
Mas isso não combina muito com a afirmação usual de que o sistema de empresas privadas se
justifica por seu poder de responder às necessidades.
Na prática, a política de emprego não se baseia em qualquer teoria particular, mas segue a
linha da menor resistência. O investimento público [112] é a coisa mais fácil de ser cortada quando
se procura fazer restrições, e o consumo privado a coisa mais agradável de ser recomendada quando
se necessita de um estímulo. Do ponto de vista do planejamento dos investimentos socialmente
benéficos o método normalmente utilizado é o da cara ou coroa.
Não só o sistema está distorcido por sua tendência em direção ao investimento lucrativo,
mas mesmo dentro dessa esfera não há razão para se esperar que a motivação pelo lucro se dirija

143
The Affluent Society, pp. 186-7.
144
Ver pp. 85-6.
para um padrão de investimento bem equilibrado. Esse sempre foi um ponto fraco do sistema
neoclássico. A doutrina que afirma que, sob condições de livre concorrência, os recursos dados são
utilizados para realizarem a máxima satisfação, se aplica essencialmente a uma posição de
equilíbrio. Só pode ser demonstrada se se admitir que um equilíbrio existe e se mostrar que a saída
dele será prejudicial (tem também que se admitir, evidentemente, que a distribuição da renda é de
certa forma como deveria ser). Walras teve a brilhante idéia de fazer os habitantes de seu mercado
“gritarem” suas ofertas até que o equilíbrio tivesse sido encontrado, e então começar o comércio
real a preços de equilíbrio. É um puro desaforo estender esse tipo de concepção de equilíbrio ao
investimento. O padrão de equilíbrio do investimento elaborado nesse sistema só é possível em uma
economia totalmente planejada (quando muito).
Marshall é menos imaginoso; admite que há um nível de equilíbrio geral dos lucros, e que
cada indústria particular é atraída a investir mais rápido quando os lucros são mais altos do que o
normal, trazendo assim para baixo os preços de seus produtos pelo aumento da oferta. Mas no
volume I dos Principles, admite condições de equilíbrio geral e estuda a saída da posição de
equilíbrio em uma indústria de cada vez. Ele nunca tentou escrever o volume que explicaria como o
equilíbrio geral seria preservado.
E seu próprio argumento mostra que não seria. O seu próprio argumento mostra que uma
indústria competitiva passaria do ponto de equilíbrio sob a influência da perspectiva de lucros
supernormais e cairia, em seguida, num período de lucros subnormais. Isso decorre da própria
natureza da concorrência. Cada empresa em um mercado vendedor procura expandir sua própria
capacidade produtiva até o ponto que será lucrativo se o mercado vendedor for duradouro, mas as
outras estão fazendo o mesmo, e o mercado vendedor não dura. Mesmo um conhecimento geral de
que é assim que as coisas se passam não impede que excedam os limites, pois cada um espera estar
entre os felizardos que sobreviverão quando o mercado comprador eliminar os outros.
Justamente por isso, quando uma indústria tem o controle de um monopólio, um
planejamento inteligente do futuro dita o cuidado na resposta a um aumento na demanda. A
capacidade excedente é o grande pecado a ser evitado. Quanto mais forte o monopólio, mais
cauteloso ele [113] será, e se, por estar sempre na retaguarda da demanda, ele conseguir criar um
mercado vendedor permanente, tanto melhor.
Em um mundo onde algumas indústrias têm um acesso muito mais fácil do que as outras, há
uma distorção sistemática no padrão de investimento, que é algo que se coloca independentemente
da instabilidade geral que a política de emprego deveria controlar, dos erros de prognóstico que
podem ocorrer em qualquer sistema, e da má orientação dos investimentos devido às influências
especulativas, a que Keynes se refere ao dizer: “Quando o desenvolvimento do capital de um país
torna-se um subproduto das atividades de um Cassino, o trabalho provavelmente está sendo mal
feito.”145

3
Tudo isso seria verdade mesmo se a distribuição da renda e da riqueza fosse aceita como
justa e racional. Numa democracia moderna, isso está longe de ocorrer. Através dos canais políticos
– o sistema tributário e os serviços sociais – somos constantemente empurrados contra a
distribuição da renda que nosso sistema econômico estabelece.
A pressão é um puro acaso e é normalmente ineficaz (a diferença entre nosso sistema de
impostos altamente progressivos no papel e nosso sistema altamente regressivo de evitação de
impostos na realidade é bastante conhecida). O esforço na redistribuição não tem nenhuma filosofia
particular por trás dele e não parece haver qualquer critério racional para o ponto em que se deve
limitá-lo; oscila de um lado para o outro (embora não muito amplamente) na medida em que o
equilíbrio das pressões políticas se altera.
145
General Theory, p. 159.
Os economistas da utilidade, segundo Wicksell, comprometeram-se com “um programa
totalmente revolucionário” precisamente na questão da distribuição da renda. 146 Marshall e, até certo
ponto, Pigou livraram-se das dificuldades a que suas teorias os haviam submetido, quando
enfatizaram o perigo para a renda nacional física total que estaria associado com uma tentativa em
aumentar sua utilidade fazendo que sua distribuição fosse mais igual. Esse argumento foi estragado
pela revolução keynesiana. Se, como Keynes esperava, a poupança é mais do que suficiente para
uma taxa satisfatória de investimento privado, utilizá-la com propósitos sociais é não só inofensivo
como benéfico, na realidade, para a Renda Nacional, enquanto que, se for necessário maior
poupança total do que a que seria fornecida sob o laisser-faire, ela poderia ser facilmente
suplementada por excedentes orçamentários.
[114] Edgworth, como vimos anteriormente, 147 (e muitos depois dele) se refugiou no
argumento de que realmente não sabemos se a maior igualdade vai promover maior felicidade,
porque os indivíduos diferem em sua capacidade para a felicidade, de modo que, enquanto não
possuirmos um hedonímetro totalmente científico, “o princípio de 'cada homem, e cada mulher,
valer uma unidade' deve ser aplicado com muito cuidado”.148
Muitos anos antes, o Professor Harberler expressava esse mesmo ponto de vista: “Como
posso saber que lhe dói mais lhe cortarem a perna do que me dói ser espetado por um alfinete?”
Parece que na época isso teria causado mais efeito se ele tivesse posto o problema de modo inverso.
Tais argumentos estão se tornando muito perigosos hoje em dia, pois embora
presumivelmente nunca venhamos a ter um hedonímetro cujas indicações não fossem ambíguas, a
medida da dor está bastante bem desenvolvida, e seria bastante surpreendente se uma pesquisa
nacional sobre a distribuição da susceptibilidade à dor mostrasse ter a mesma inclinação que a da
distribuição da renda.
Se alguma vez se colocasse a questão: O que daria maior contribuição para o bem-estar da
humanidade: um investimento na capacidade de produzir bugigangas que tenham que ser
propagandeadas para serem vendidas ou um investimento na melhoria dos serviços de saúde?,
parece que a resposta seria por demais óbvia; a melhor resposta que a ideologia do laisser-faire
poderia dar seria não fazer a pergunta.
É possível defender nosso sistema econômico na base de que, com algumas correções
keynesianas, ele é – como o próprio Keynes disse – o “melhor em vista”. Ou então que de qualquer
forma não é tão ruim assim, e a mudança seria muito dolorosa. Em suma, que nosso sistema é o
melhor sistema que conseguimos.
Ou é possível adotar a linha intransigente que Schumpeter derivou de Marx. Que o sistema é
cruel, injusto, turbulento, mas que produz mercadorias e – dane-se o resto – são as mercadorias que
vocês querem.
Ou, reconhecendo seus defeitos, defendê-lo no terreno político – a democracia da forma que
conhecemos não poderia ter se desenvolvido sob qualquer outro sistema e não pode sobreviver sem
ele.
O que não é possível, a essa altura dos acontecimentos, é defendê-lo, no estilo neoclássico,
como um delicado mecanismo auto-regulador, que só precisa ser deixado por si mesmo para que
produza a maior satisfação para todos.
Mas nenhuma das defesas alternativas soa realmente bem. Hoje em dia, para apoiar o status
quo, a melhor maneira é se esquecer de todos esses horríveis problemas.
[115]
4
146
Cf. p. 48.
147
Cf. p. 58.
148
Mathematical Psychics, p. 81.
Para descermos das questões de política nacional e universal para o funcionamento interno
do sistema, perguntemos quais são as regras do jogo que são aceitas hoje em dia pelos vários
jogadores em uma economia industrial.
O que dizer dos Sindicatos? Segundo a estrita doutrina do laisser-faire, eles eram colocados
no mesmo nível dos monopólios. O funcionamento livre das forças do mercado asseguraria para
cada grupo de trabalhadores seu produto marginal líquido, e um sindicato, ao forçar o salário para
cima de seu nível de equilíbrio, causaria o desemprego, assim como um monopolista restringe as
vendas mantendo os preços altos.
De certa forma, a novidade mais notável da doutrina keynesiana foi que (abstraindo dos
efeitos no comércio externo) uma redução geral dos salários não reduziria o desemprego e
(introduzindo a elaboração de Kalecki) poderia na realidade aumentá-lo.
Ao mesmo tempo, a “concorrência imperfeita” entrava em moda e desacreditava a idéia de
que se pode confiar nas forças do mercado para o estabelecimento da igualdade dos salários com o
valor do produto marginal, de forma que, mesmo em suas águas, a velha ortodoxia já não podia
navegar.
Hoje em dia, é perfeitamente aceito que os sindicatos não introduzem um elemento de
monopólio no sistema, mas constituem o que o Professor Galbraith 149 batizou de um “poder
compensatório” para cancelar o elemento monopolístico que inevitavelmente existe do lado do
empregador na barganha pelo salário. Ao mesmo tempo, o lado do empregador, ao menos nas
grandes empresas, aprendeu a aceitar os sindicatos e, no geral, afora alguns atritos ocasionais, a
coexistir com eles bastante amigavelmente.
A nova doutrina, no entanto, se presta a duas interpretações. Uma tendência ao aumento das
taxas do salário monetário é necessária para manter o monopólio em xeque, mas se cresce muito
rapidamente não faz nenhum bem aos trabalhadores e torna-se um grande prejuízo para todas as
outras partes.
As experiências de uma espiral viciosa nos anos de alto emprego demonstraram isso de
forma bastante clara, como uma verdade geral. Mas permanece a obrigação de cada sindicato,
individualmente, de cuidar dos interesses de cada um de seus membros. Apelar para qualquer
sindicato para que exerça o espírito público e restrinja as exigências salariais é apelar para que ele
traia a sua confiança. Um apelo para o trabalho organizado, como um todo, para exercer restrições é
naturalmente visto com a mais profunda desconfiança na medida em que os lucros não são
restringidos.
[116] Nesse ponto houve uma quebra espetacular na doutrina de que a busca dos interesses
próprios por cada um promove o bem de todos.
A velha teoria admitia o pleno emprego e preços estáveis. Agora a história mostrou que não
passava de um blefe. Onde está o mecanismo que irá estabelecer tal situação? As velhas regras do
jogo tornaram-se impraticáveis, precisando urgentemente ser revistas.
E o outro lado da barganha? Está certo que os empregadores resistam às exigências
salariais? Não tem muito tempo que uma greve dos gráficos reduziu a imprensa britânica ao
silêncio, destruiu o setor de propaganda e arruinou uma série de pequenos tipógrafos locais. Depois
os empregadores reivindicaram crédito por terem salvo o público, com grandes perdas para si
mesmos, de um aumento ainda maior nos salários, que teriam que ser concedidos, caso houvessem
cedido sem briga.150 Estamos de acordo que devemos nos sentir gratos e felicitá-los, por seu espírito
público? Ou lamentamos a perda da produção e a má vontade geral que se seguiu à disputa? A
doutrina ortodoxa não nos pode ajudar.

149
Ver American Capitalism.
150
Ver The Times, 19 de setembro de 1959. Carta de J. Brooke-Hunt.
E os preços? A velha teoria de que eles são estabelecidos pela concorrência não pode
sobreviver ao longo mercado comprador do período entre as guerras, e as teorias da concorrência
imperfeita e monopolística deixaram apenas caos no seu rastro. A teoria do homem de negócios
(que foi adotada por alguns economistas) de que os preços são regidos pelos custos já não ajuda
mais; é quase impossível definir o custo, incluindo uma contribuição apropriada para os gastos
gerais, depreciação e “um lucro justo e razoável” para qualquer porção particular de produto de
qualquer mercadoria particular. Pode-se encontrar uma fórmula, ou outra, para fixar os custos que
justificarão qualquer preço, dentro dos limites da razão, que uma empresa considerará conveniente
cobrar.
A teoria do homem de negócio, em qualquer caso, não pretende evidentemente ser tomada
literalmente, pois, com umas poucas exceções, eles não mostram nenhuma boa vontade em reduzir
os preços quando caem os custos.
Tudo o que a teoria ortodoxa nos diz é que em condições de concorrência perfeita os preços
caem juntamente com os custos e que em condições de oligopólio provavelmente não caem. Diz-
nos a teoria que seria uma Boa Coisa se as empresas agissem como se houvesse concorrência
perfeita e baixassem os preços? Essa foi a visão adotada (com uma certa hesitação) no terceiro
relatório do Conselho de Cohen.151 Foi recebida por alguns comentaristas com certa surpresa. É
certo que o principal objetivo da indústria é fazer lucros? Existem casos em que uma redução do
preço poderá [117] aumentar os lucros, e que, portanto, é indicada; mas a doutrina de que os preços
têm que cair apenas porque os custos baixaram parece muito estranha. Um porta-voz da Federação
das Indústrias Britânicas, comentando o relatório, observou:
Há uma certa ambigüidade em sua sugestão de que a indústria deveria reduzir os preços. Uma coisa é
reduzir os preços, e dessa forma expandir a procura e a produção; outra é manter os preços abaixo de seu
nível de mercado com o objetivo de restringir os lucros ou os dividendos.152
Aqui, novamente, se coloca o problema da durabilidade das mercadorias a que nos referimos
acima. Suponhamos que um industrial tenha descoberto uma maneira, que não envolva custos
extras, de tornar seu produto mais durável. Deve esse método ser adotado, de modo a beneficiar
seus clientes, ou deve-se considerar o perigo de satisfazer sua procura e reduzir o mercado de
reposições? Aqui a doutrina de que o mais lucrativo é o mais benéfico socialmente depara com uma
terrível dificuldade.
E, novamente, o que dizer da política de dividendos? Existe uma grande tendência da
natureza humana, que ainda não foi explicada (talvez uma chave possa ser encontrada nos instintos
dos animais de viver em bandos), para que o indivíduo se afeiçoe a qualquer espécie de grupo do
qual faz parte e desenvolva um chauvinismo em relação a esse grupo.
A nação, a raça, a Igreja, a cidade, evocam lealdade. Marx nunca chegou a escrever o
capítulo sobre as classes. A lealdade de classe, no marxismo vulgar, é apresentada sob a forma de
egoísmo, mas não é só isso, ela normalmente exige o sacrifício dos interesses imediatos do
indivíduo.
Essa tendência de afeição é o fundamento do espírito da escola pública e do moral do
regimento. Também opera fortemente nas empresas. A principal causa que frustrou a previsão de
Adam Smith de que as empresas por ações seriam impossíveis, 153 e o dito de Marshall de que as
companhias de responsabilidade limitada estagnariam, 154 é essa capacidade dos gerentes e diretores
de projetar seus egos para a organização a que por acaso pertencem e cuidar dela tanto quanto se se
tratasse de um negócio familiar.

151
Conselho sobre Preços, Produtividade e Rendas, 1959.
152
The Times, 7 de agosto de 1959.
153
Wealth of Nations, vol. I, p. 229.
154
Principies, p. 316.
A entidade que evoca essa lealdade é a empresa enquanto tal. Os acionistas (exceto os
membros fundadores que são identificados com a empresa) são vistos aproximadamente no mesmo
nível dos credores e é uma necessidade desagradável fragmentar os ganhos da empresa para
satisfazê-los.
[118] Tal devoção à empresa leva a uma alta taxa de autofinanciamento, exceto no caso da
administração de grandes empresas que, de tempos em tempos, fazem grandes emissões de novas
ações. Pagam dividendos, e procuram manter alto o preço de mercado das ações, não porque
estejam agindo no interesse dos acionistas, mas porque essa é a melhor maneira de aumentar o
capital da empresa que servem.
Nessa questão da distribuição dos lucros, qual é o comportamento mais adequado? Alguns
economistas são contra o autofinanciamento porque ele estraga a teoria marginal. Os investimentos
se dirigem para onde os lucros estão sendo ganhos e os investimentos de uma produtividade
marginal relativamente baixa podem ser empurrados por velhas empresas, enquanto as novas com
uma produtividade marginal alta não conseguem financiamento. É muito melhor, argumentam eles,
distribuir os lucros e deixar todas as empresas irem para o mercado. Mas, para o dinheiro que já foi
despendido, talvez 10% serão poupados e estarão disponíveis para reinvestimento, enquanto que
100% dos lucros retidos são reinvestidos. Será a qualidade superior do financiamento externo
suficientemente grande que suplante a diferença tão grande de quantidade?
A Administração (pois a Administração com A maiúsculo é também uma entidade com seu
próprio ponto de vista) é totalmente contra essa doutrina e vê o reinvestimento como a principal
justificação para os lucros. A idéia de que a motivação para a indústria é a busca do lucro é
ressentida como uma vil calúnia. A situação é o inverso: a indústria é a motivação para a busca de
lucros.
Num manifesto, agora esquecido, assinado por cento e vinte homens de negócios, que foi
lançado durante a guerra, encontramos este credo: A Indústria (Indústria com I maiúsculo):
tem uma tripla responsabilidade pública: com o público que consome seus produtos, com o público que
ela emprega, e com o público que fornece o capital com o qual ela opera e se desenvolve. ... A
responsabilidade daqueles que dirigem a Indústria é manter um equilíbrio justo entre os diversos
interesses do público enquanto consumidores, dos funcionários e trabalhadores enquanto empregados, e
dos acionistas enquanto investidores, e dar a contribuição mais alta possível para o bem-estar da nação
como um todo.155
Isso soa pomposo e arrogante. Quem deu a essas pessoas o direito de determinar a
distribuição da Renda Nacional e que sabedoria sobre-humana eles afirmam que os dirige para
distribuí-la corretamente? Sem dúvida, há uma grande dose de verdade na opinião de que o poder
de alocar recursos e distribuir a renda tenha de fato sido colocado em suas mãos. À lista de
interesses que eles têm que equilibrar deveriam ser acrescentados, antes [119] de tudo, os conselhos
de direção, e, em segundo lugar, de uma forma mais vaga e difusa, a solidariedade com seus colegas
de uma indústria que hoje em dia tanto ameniza a concorrência, e a solidariedade com a Indústria
enquanto tal – ou seja, com a classe à qual eles pertencem. Mas a magnanimidade não é apenas um
simples golpe publicitário para recomendar sua classe a todos nós. Há um forte elemento, no
chauvinismo que une um administrador à sua empresa, de desejo por uma boa reputação e uma boa
consciência. Mesmo quando é hipócrita, a hipocrisia – a homenagem que o vício faz à virtude – é
bem preferível ao cinismo. O capitalismo moderno dificilmente se identifica com o retrato do rude
explorador que Marx faz, sugando cada gota de excedente a partir do suor dos trabalhadores.
Keynes em um de seus momentos otimistas falou da tendência da grande empresa de se
socializar.156 Hoje em dia a Administração (do tipo com A maiúsculo) gosta de se ver como uma
espécie de serviço público.

155
A National Policy for Industry, 1942.
156
Essays in Persuasion, P. 314.
Tudo isso foi muito prejudicado ultimamente por um violento golpe do capitalismo, já fora
de moda, em busca de lucro. A ficção legal de que as empresas pertencem a seus acionistas foi
assumida para eliminar a Administração cavalheiresca e generosa. Mais uma vez alguns
economistas, se agarrando à velha ortodoxia, aprovam a absorção das pequenas empresas pelas
grandes com base no princípio de que o que é lucrativo deve estar certo, e concedendo aos lucros
oriundos das manipulações financeiras a auréola que uma vez pertenceu à “recompensa da
Empresa”. Aqueles que afirmam que o propósito da indústria é pagar dividendos devem aprovar a
pressão feita sobre os conselhos de direção para contra-subornar seus acionistas.
De que lado devemos estar? Será que o espírito público cavalheiresco da Administração é
normalmente um disfarce para o conforto cavalheiresco e os longos fins de semana? Será que a
exaltação dos acionistas irá tornar os administradores cínicos e os sindicatos agressivos, e nos
incomodar com questões incisivas que foram abafadas na mentalidade confusa do Estado do Bem-
Estar Social?
Outra questão sobre a qual a ortodoxia nos levou a uma grande confusão é o monopólio.
Geralmente, no esquema ortodoxo, o monopólio é uma Coisa Má. O Professor Knight ficou
conhecido por atacar as leis anti-trustes dos Estados Unidos como uma interferência ilegítima na
liberdade do indivíduo, mas para a maioria dos economistas a concorrência é absolutamente
essencial para a justificação do laisser-faire; é a concorrência que iguala as margens, distribui os
recursos de forma a maximizar a utilidade e, em geral, faz todo o esquema funcionar.
[120] Mas será a concorrência, com certeza, a principal causa do monopólio? Como é
possível que fazer baixar os preços, expandir o mercado e vender mais barato que os rivais seja uma
Coisa Boa, enquanto que a empresa que consegue superar essas dificuldades, e permanece de posse
do terreno, seja considerada uma monopolista perversa? A objeção a práticas restritivas, e a
principal justificação para a atual campanha contra elas, é que elas restringem a concorrência e
mantêm os produtores ineficientes em atividade. Se a campanha tiver bons resultados, a
concorrência, pondo para fora os ineficientes, irá criar mais monopólios. É isso o que queremos? E,
se não, o que queremos? Quais são as regras do jogo?

5
Talvez tudo isso pareça negativo e destrutivo. Para alguns, talvez chegue a recomendar as
velhas doutrinas, já que não oferece um “caminho melhor” a seguir. A conclusão deste ensaio é
precisamente que não há um “caminho melhor”.
O problema moral é um conflito que não pode nunca ser decidido. A vida social irá sempre
apresentar à humanidade uma escolha de males. Nenhuma solução metafísica que possa ser
formulada parecerá satisfatória para sempre. As soluções apontadas pelos economistas não são
menos ilusórias do que as dos teólogos a quem eles substituíram.
De qualquer forma, não devemos abandonar a esperança de que a Economia possa fazer um
avanço em direção à ciência, ou a fé de que o esclarecimento é útil. É preciso tirar do caminho os
restos decadentes da metafísica obsoleta antes de podermos tocar para a frente.
O primeiro ponto essencial para os economistas, ao discutirem entre si mesmos, é “tentar
muito seriamente”, como o Professor Popper diz que os cientistas naturais fazem, “evitar falar com
objetivos opostos” e, ao se dirigir ao mundo, ler suas doutrinas corretamente, para combater, e não
alimentar, a ideologia que pretende que os valores que podem ser medidos em termos de moeda são
os únicos que devem ser levados em conta.

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