Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1978.
3.2 – Soberania
. “Os aspectos centrais da ideologia do desenvolvimento tal como a concebe JK são, como vemos, a
prosperidade e a ordem. Os dois se fundem no seu conceito de soberania como equivalente da
autodeterminação, identificada como igualdade com os grandes Estados. Este segundo aspecto
exprime até onde o primeiro alcança: os grandes Estados Ocidentais são soberanos, são livres e se
utilizam dessa liberdade na capacidade de gerir seus próprios negócios. São, assim, padrões que
podem ser seguidos no caminho da soberania.
Para o desenvolvimento, num país economicamente fraco a soberania não deixa de ser
precária. Somente os países que se afirmam no terreno econômico e em que vigora o regime
democrático podem exercer plenamente a sua soberania. Donde
soberania = prosperidade + Democracia” (CARDOSO, 1978: 98).
. “A partir desta perspectiva só os países prósperos podem ser soberanos e a riqueza é condição da
soberania. Não cabe, pois, a discussão das implicações para a soberania nacional das formas
possíveis de conduzir o desenvolvimento, discussão que gira em torno da participação do capital
estrangeiro no processo de aceleração do crescimento econômico dos países subdesenvolvidos. Se
não somos soberanos enquanto estamos nas ‘retaguardas incaracterísticas’, não se trata de
resguardar a soberania, mas de consegui-la. A cooperação internacional que ajuda a promover o
desenvolvimento não interfere na soberania do país ao qual se dirige, mas, ao contrário, contribui
positivamente para que ele a alcance” (CARDOSO, 1978: 98).
. “Uma das primeiras premissas de que parte esta ideologia é a de que como subdesenvolvidos
somos pobres, mas apesar disso, somo democráticos. A democracia já faz parte de nossa
organização sócio-política. Para que estejamos à altura das grandes nações, precisamos manter a
democracia, defendendo-a da ameaça que ela sofre pela existência extensa da miséria, e alcançar a
riqueza, que acaba com esta ameaça. É o sentido da soberania pelo desenvolvimento” (CARDOSO,
1978: 98).
. “Condições muito precárias de vida são consideradas um perigo para a democracia. [citação de
JK...]. Daí mostrar um equilíbrio altamente instável o estado do nosso subdesenvolvimento, em que
miséria e democracia coexistem. Deixando que suas forças se desenvolvam espontaneamente, a
tendência é de agravamento da situação. A luta contra a miséria supõe um esforço racionalmente
articulado, que na sua articulação concreta é econômico, mas em profundidade é político, pois é
uma luta pela democracia” (CARDOSO, 1978: 98-9).
. “A conjuntura internacional, mostrando as ambições expansionistas do comunismo, acrescida das
especificidades da América Latina, em que ressaltam a explosão demográfica – tornando crescente
a dificuldade de elevação da renda per capita – e a politização, que os povos latino-americanos vêm
experimentando cada vez mais acentuadamente, parecem estar a exigir o que Juscelino chama de
‘uma teoria dinâmica do desenvolvimento’, em que a democracia seja preservada através do
combate ao pauperismo. ‘Não nos enganemos: estamos vivendo, não apenas na América Latina,
mas em todo o mundo, situações radicalmente novas, que exigem o estabelecimento de um novo
sistema de relações entre os povos altamente industrializados e os povos subdesenvolvidos. Não é
concebível que, diante da ameaça que representa para o Ocidente o comunismo internacional, as
nações democráticas se mostrem incapazes de superar os erros do passado e de formular uma
política de grandeza, que demonstre a capacidade da democracia de atender às necessidades da
maioria esmagadora da humanidade, constituída por povos que ainda vegetam no limiar da
civilização moderna’ [JK Discursos, 1960, 1171, p. 387]. Aquela mudança de relações parece ter
sido a tônica da política externa juscelinista, sempre voltada para que maior e mais cuidadosa
atenção fosse dada pelas nações democráticas ricas aos povos atrasados e inconformados com a
desigualdade das condições materiais” (CARDOSO, 1978: 99).
. “[...] É importante notar que, embora compreendendo o econômico, o social e o político, o
caminho para a soberania, identificado com o desenvolvimento, é antes de tudo econômico. Os
demais níveis são incorporados à modificação global efetuada com a soberania em decorrência do
sucesso econômico. Esta nova situação em que a economia nacional se encontra fortalecida é capaz
de resistir a orientações externas que julgue inconvenientes, traz consequências de ordem social e
política, compondo, então, a soberania plena. O processo mesmo, porém, é incialmente e
predominantemente econômico” (CARDOSO, 1978: 100).
. “Toda a matriz do problema, segundo o desenvolvimentismo, está em conseguir o impulso,
considerado decisivo, para que as nações menos desenvolvidas possam ‘atingir e manter uma taxa
de crescimento capaz de conduzi-las à fase de um desenvolvimento razoavelmente autônomo, com
base nos recursos internos’ [JK Discursos, 1960, 1152, p. 382]. Esta possibilidade é grande
responsável pelo clima de otimismo que domina neste período e que atinge uma quase euforia
quando algum progresso econômico mais relevante se faz sentir, ainda que a finalidade seja tão
somente uma autonomia ‘razoável’. O país é pensado em toda sua pujança e a noção da sua
soberania está muito próxima da ideia de grandeza nacional. Mesmo as dificuldades pelas quais
passa o país ajudam a ‘plasmar um Brasil moderno surpreendentemente jovem e impetuoso,
determinado a apossar-se sem vacilação da direção do seu destino e a transformar em riqueza atual
a imensa potencialidade econômica da nação’ [ibid. 1157, p. 383]. Se o processo do
desenvolvimento nos oferece a oportunidade histórica de nos afirmarmos como nação perante o
mundo, tornando-nos prósperos, não podemos deixar que ela nos escape. É preciso assumir com
firmeza a decisão de aproveitá-la” (CARDOSO, 1978: 101).
. “Não é difícil perceber que esta decisão não é meramente econômica, mas especialmente política.
Pretende-se a soberania e considera-se que aquilo que falta para tê-la é o enriquecimento. Por isso a
soberania almejada se iguala à autonomia econômica, quando o país não dependerá de outros para
solucionar seus problemas de carência de capital. Mas consegui-la envolve escolha entre
alternativas, implica opções, é matéria de política, portanto. [...] O que importa analisar, no entanto,
é a que tipo de política JK está se referindo. Para ele, trata-se da decisão política de um problema
econômico, trata-se de política econômica, trazida para o nível técnico de programação e
planejamento. Claro que ela tem de estar subordinada às diretrizes que são fixadas pela política
geral. Tenhamos presente, no entanto, que não basta isso para qualificá-la ao nível político; é
necessário distinguir o seu objeto, verificando como ela o define e a ação que ela empreende”
(CARDOSO, 1978: 102).
. “Por estas razões [não transcritas aqui] é que pude afirmar anteriormente que JK operava uma
redução do conceito de soberania ao seu domínio econômico. Porque para ele ‘na emancipação
econômica está a base da soberania, do bem-estar e da segurança nacional’ [JK Discursos, 1958,
343, p. 132] e a emancipação econômica a que se refere não quer dizer ruptura, nem afastamento,
mas crescimento acelerado, continuado e capaz de se manter com seus próprios recursos. Desse
modo, a emancipação econômica não seria resultado de uma ação propriamente política, vinculada
à emancipação política, mas simplesmente gerada pelo crescimento econômico. Esta libertação
econonômica, como garantia de prosperidade, fornece o elemento que falta aos países
subdesenvolvidos para que, junto com a ordem democrática, eles alcancem a plena soberania. Para
que as nações que vivem a crise de transição do subdesenvolvimento atinjam a soberania é
necessário um duplo esforço: para o desenvolvimento e pela ordem. O desenvolvimentismo supõe,
assim, que a luta contra a miséria, travada dentro dos moldes da democracia, garante a soberania”
(CARDOSO, 1978:102-3).
. “Esta linha de interpretação do pensamento político de JK parece encontrar reforço ao recorrermos
a um outro tipo de análise, baseado na distribuição da temática do seu discurso. O Quadro I nos
fornece dados mais gerais a respeito. Dos 7 temas tratados 1 há dois que se destacam nitidamente:
desenvolvimento/subdesenvolvimento (I) e atitude política (IV). Na temática geral – que envolve a
comunicação pública de Juscelino como Governador de Minas Gerais, como Presidente da
República e nos livros que escreveu sobre seus programas e sua vida política – o tema I é o mais
frequente, com 40% e o tema IV é o segundo em importância, com 33%. A análise mais profunda
da ideologia que ele expõe indica que este dois temas estão intimamente associados, e mais, que isto
ocorre segundo uma relação direta: quanto maior o desenvolvimento, tanto maior a possibilidade de
ordem (principal componente do tema IV) se manter, cada qual como condição necessária para o
outro. O discurso está tão centrado nesta problemática que os dois temas juntos contêm quase 3/4
do total” (CARDOSO, 1978: 103).
. “Na sua comunicação mais geral, excluindo os discursos, naturalmente mais vinculados às
diferentes conjunturas, posso adiantar que a distribuição é semelhante a esta, com uma tendência a
marcar ainda mais fortemente o tema I. Sua generalidade, no caso, lhe confere o caráter de
expressão dos aspectos essenciais do pensamento político juscelinista, já que sua referência é mais
global, mais abrangente e mais pragmática, tomando como base não só um período de tempo mais
largo, mas também uma perspectiva de ação concreta, envolvendo altos níveis de decisão – é o caso
tanto das Mensagens Presidenciais, quanto dos livros em que elabora seu Programa de Governo.
Esta caráter e aquela semelhança dão validade à utilização da temática geral como capaz de indicar
as linhas mestras da formulação ideológica” (CARDOSO, 1978: 103-4).
. “Por outro lado, em momentos de crise política, captável em certos discursos, às vezes abrangendo
todo um período, a temática se transforma, dando lugar a uma acentuação da presença do tema IV,
que chega até a ultrapassar o tema I: é quando a defesa da ordem ou do regime ganha supremacia –
sempre circunstancial em JK – face ao desenvolvimento econômico” [seguem quadros 1 e 2]
(CARDOSO, 1978: 104).
. “Façamos algumas considerações iniciais quanto ao tema I. Nele a análise prevê que é possível
entender o desenvolvimento como: a) prosperidade; b) soberania; c) libertação – percorrendo uma
escala que se desloca, respectivamente, da ênfase econômica à ênfase política na abordagem da
questão. Em Juscelino é claramente a primeira alternativa que vigora, com 81% do total do tema,
1
“Do que me ficou dos ensinamentos da análise de conteúdo e da análise estrutural, decidi-me a trabalhar com terma
definidos teoricamente a partir das categorias teóricas fundamentais e a construir índices que permitissem alguma forma
de quantificação. Sete temas foram destacados como sendo os principais, cada qual composto de itens. Estes marcam
posições diferentes que podem ser assumidas em cada tema. Cada item compreende indicadores temáticos, que não são
simplesmente palavras, mas expressões de ideias, em geral conjuntos de palavras, de tal modo que palavras diferentes
podem designar a mesma ideia, enquanto a mesma palavra pode representar ideias diferentes. Os temas são: I –
desenvolvimento/subdesenvolvimento; II – relação Nação/estrangeiro; III – relação Estado/iniciativa privada; IV –
atitude política geral; V – relação Governo/povo; VI – formação de consciência; VII – composição social. O
relacionamento global dos itens nos sete temas define uma posição ideológica” (CARDOSO, 1978: 19).
enquanto a terceira está excluída da problemática, conforme o Quadro II. A diferença entre as duas
perspectivas presentes é bastante significativa e se mantém assim em todos os tipos de
comunicação. Onde ela se encontra mais acentuada é nos discursos (com 85% para ‘prosperidade’)
e onde ‘soberania’ aparece mais fortemente representada é nos livros (com 27%). O sentido da
importância do tema I na temática geral, pois, deve ser buscado no papel que, dentro dele cabe à
presença do item ‘prosperidade’, ou à ausência do item ‘soberania’” (CARDOSO, 1978: 104).
. “Quando o desenvolvimento é tratado sob o ângulo da soberania, ele é sempre e de qualquer modo
mais político do que quando sob o da prosperidade, mesmo que a soberania esteja sendo entendida
como ‘soberania pelo desenvolvimento’, isto é, como decorrência do enriquecimento econômico.
[...]”(CARDOSO, 1978: 105-6).
. “A presença da soberania no discurso, portanto, aparece como um marco distintivo de uma das
muitas possíveis posições nacionalistas. Atinge aos nacionalistas em geral, desde as esquerdas –
para as quais ela permite trazer o debate para o terreno que mais lhes agrada, o político, no seu nível
não meramente factual, mas especificamente ideológico – até as Forças Armadas, muito ciosas de
sua função de defesa nacional. A racionalidade da sua utilização por um político como JK – na fase
política nacional que se caracteriza por um tipo determinado de relações entre o político e as massas
e em que ele consegue sua ascensão política – está na contribuição eficaz que a inclusão do tema
‘soberania’ pode dar para a constituição de uma base política ampla, com a incorporação do apoio
das camadas majoritárias da população, as mais importantes numa política da base eleitoral, os
trabalhadores. Especialmente porque eles estavam mobilizados pelo nacionalismo do período
anterior, e traumatizados pelo desfecho da oposição lacerdista com o suicídio de Vargas”
(CARDOSO, 1978: 106).
. “Não é em todo e qualquer momento que sensibilizar as esses estratos sociais pode interessar
politicamente a uma posição como a que assume Kubitschek. As épocas mais típicas deverão ser
aquelas próximas a grandes campanhas eleitorais, em que se pretende despertar elementos
propiciadores de adesão política maciça. Os dados confirma esta hipótese. Vimos (Quadro II) que a
soberania aparece com sua mais forte expressão quantitativa nos livros de JK. O Quadro III [p. 107]
nos mostra que entre eles aquela tendência é ainda mais acentuada por ocasião da campanha
eleitoral à Presidência da República: com 33% do total do tema I nas Diretrizes Gerais do Plano
Nacional de Desenvolvimento e com 32% no Programa de Metas. Mesmo nesses casos, porém,
sempre permanece muito menos significativa do que a prosperidade” (CARDOSO, 1978: 106).
. “Os dados ainda confirmam a suposição de que a presença da soberania no discurso deva cumprir
a tarefa vinculada a apoio das massas, quando verificamos que a sua menor representação está em
discursos proferidos em círculos mais restritos (excluídos os feitos da Voz do Brasil). Mesmo fora
das campanhas eleitorais não seria conveniente transformar uma imagem para as massas durante
aquelas ocasiões” (CARDOSO, 1978: 108).
. “De acordo com a análise precedente, vimos a soberania como um elemento significativo nas
relações entre a ideologia do desenvolvimento, dominante, com as forças do trabalho nacional,
através de sua presença no discurso, vinculando-o a um nacionalismo. Veremos agora a que forças
se liga a sua ausência. [...]” (CARDOSO, 1978: 108).
. “Como a grande carência para impulsionar o desenvolvimento é o capital, é indispensável que a
ideologia encontre meios de mobilizá-lo. Face àqueles que dispõem do capital o item ‘soberania’
funciona tanto mais positivamente quanto menos estiver presente. A própria preocupação com o
capital, mesmo se abstrairmos o problema da sua obtenção, desvia a formulação no sentido do
econômico. Os dados de que dispomos também confirmam estas hipóteses. Em toda a comunicação
pública de JK a mais notável sub-representação de ‘soberania’, que corresponde `a maior presença
de ‘prosperidade’, ocorre nos Discursos de 1959 (esta com 90% do total do tema) e de 1957 (esta
com 80%), como se pode ver no Quadro IV. Ambos estes anos são de profunda preocupação do
Governo brasileiro com o financiamento do nosso desenvolvimento econômico e se distinguem dos
demais anos que compõem o período da Presidência de JK exatamente por este envolvimento com a
obtenção de capital. Controlando os discursos destes dois períodos por audiência, nota-se
claramente uma acentuação de tendência nos discursos restritos, com 97% e 80% respectivamente
em 1959 e 1957 (Quadro V) [p. 111]” (CARDOSO, 1978: 108).
. “1959 é uma época de grave tensão internacional, com o agravamento da guerra fria, envolvendo
especialmente a América Latina em decorrência do caso cubano. Nossas relações internacionais se
tornam objeto de importantes decisões. É a ocasião em que o Governo Juscelino se empenha a
fundo na promoção da Operação Pan-Americana, tentando obter a afluência de capitais em nome da
segurança continental, como veremos adiante, em 3.3.d; e em que rompe com a orientação do
Fundo Monetário Internacional a propósito dos mecanismos para a contensão da inflação, embora
adote o Plano de Estabilização Monetária, seguindo uma alternativa que não causasse prejuízos
maiores ao montante do investimento para o desenvolvimento. No plano interno, 1959 é um ano de
inflação muito acentuada (e de tentativa do controle inflacionário) e o ano da Operação Nordeste,
com a criação da SUDENE; portanto também com fortes necessidades quanto à mobilização de
recursos; é ainda a ocasião da colocação do problema sucessório” (CARDOSO, 1978: 108-9).
. Breve análise desta situação que justifica o maior número do item “prosperidade” tais como
desenvolvimento não inflacionário, atração da inciativa privada para auxiliar o desenvolvimento,
etc. (CARDOSO, 1978: 109).
. “Se 1957 não pode ser apontado como o ano em que se inicia a ação econômica do Governo
Kubitschek, pois ela tem lugar com a sua posse, em 31.1.1956, pode sem dúvida ser visto como o
ano em que ela começa a integrar efetivamente a ideologia do desenvolvimento de JK como
Presidente da República. Isto se deve ao clima político reinante no país em fins de 1956, cujo início
antecede 1954 e que marcou Juscelino na sua candidatura, na sua posse e pelo menos nos seus
primeiros seis meses de governo, incluindo tentativas golpistas como Jacaré-Acanga. É em 1957
que esta inquietação política é controlada; permanece a preocupação coma manutenção da ordem,
mas a ênfase do Governo pode passar para a construção econômica. Consequentemente, cresce a
importância do aspecto econômico como tema I, a ‘prosperidade’, em detrimento do seu lado
político, a ‘soberania’, especialmente nos discursos de audiência restrita. Acresce que a maioria
destes se dirige às classes produtoras ou políticas no poder” (CARDOSO, 1978: 109).
. “Assim, a presença ou a ausência do item ‘soberania’ indicam uma tentativa de mobilização ou das
grandes massas, que votam, ou dos capitais, que promovem o investimento. A presença do item
‘prosperidade’, permanente embora com oscilações de grau, mostra o cerne da problemática posta
por Juscelino, a grande meta material a ser atingida: progresso econômico” (CARDOSO, 1978:
112).
5 – Definição política
5.1 – Mudar, dentro da ordem, para garantir a ordem
. “Toda política do governo Kubitschek é definida em torno do desenvolvimento econômico. O
comportamento político de Juscelino é de molde a despertar, em primeiro lugar, a consciência da
necessidade do desenvolvimento: necessidade econômica, como combate à miséria, e necessidade
política, como impedimento da infiltração de ideologias subversivas. A razão última do
desenvolvimento seria a luta contra a expansão comunista. Diante dela, a erradicação da miséria
pelo desenvolvimento não é senão um meio. A extrema pobreza constituindo, no pensamento
desenvolvimentista, campo fértil para a penetração de ideias contrárias à ordem, para preservar a
ordem vigente é preciso não apenas combater diretamente estas ideias, como também e
principalmente impedir a sua propagação, acabando com as condições que o permitem”
(CARDOSO, 1978: 227).
. “A perspectiva política geral é pois: mudar, dentro da ordem, para garantir a ordem. Com a
colocação da necessidade do desenvolvimento nestes termos, Juscelino mobiliza amplos setores
para o esforço desenvolvimentista. [...]” (CARDOSO, 1978: 227).
. “A atitude desenvolvimentista é francamente transformadora, ela mostra um profundo
inconformismo com o presente. Por outro lado, ela é abertamente conservadora, preocupada que
está com a garantia da ordem, acima de tudo. Quanto ao campo econômico ela é marcadamente
inovadora, impulsionando os setores emergentes., concentrando os investimentos em áreas novas,
predominantemente industriais – mesmo que com isso esteja contrariando a hegemonia que
vigorava anteriormente. Atua, pois, no sentido de propiciar o surgimento ou fortalecimento de uma
nova hegemonia. Essas transformações no âmbito da hegemonia, no entanto, se processam todas
nos limites das classes dominantes; a política desenvolvimentista favorece certas frações, em
detrimento de outras, mas enquanto se trata de frações da classe dominante. O seu inconformismo
com o presente só cai até aí: primeiro, ele se refere unicamente aos aspectos econômicos; segundo,
ele só admite o confronto intra-classe dominante. São essas restrições, é essa fixação de limites ao
seu caráter inovador que lhe assinalam sua outra característica, o conservadorismo. Pois não admite
a formação de qualquer grupo como força social, se ele se situa fora dos círculos dominantes. Esta
interdição em geral não se dá através de mecanismos diretamente repressivos, embora eles também
sejam utilizados, mas principalmente por meio do fortalecimento dos mecanismos de coesão social
generalizada que a mobilização para o projeto da própria classe dominante – apresentado como
projeto nacional – enseja. Isto é, a atitude política do desenvolvimentismo é conservadora na
medida em que dá maior solidez aos processos hegemônicos mais importantes, aqueles que se
exercem dos grupos globalmente dominantes para os dominados. Fazendo com estes aceitem o
projeto daqueles como o seu próprio, não só mantém, como estende o poder de direção e de
domínio” (CARDOSO, 1978: 228).
. Se este lado conservador só se nota em uma análise mais detida, a mobilização da ideia de
“ordem” é explícita em diversos discursos de Juscelino. O termo tem três conotações mais
recorrentes: “ordem” como tranquilidade social, por oposição à baderna; “ordem” como lei; e a
terceira e mais usada, “ordem” como regime vigente (democracia), por oposição a subversão
(CARDOSO, 1978: 228-29).
. ‘A ideologia do desenvolvimento é, assim, ao mesmo tempo, progressista e anticomunista. Não
hesita em contrariar certos interesses particulares, desde que esteja agindo dentro das perspectivas
dinâmicas de expansão do sistema. Também não hesita em não permitir qualquer interferência
negativa nessa expansão, escolhendo para esse fim, os elementos ideológicos como escudo. [...]”
(CARDOSO, 1978: 229).
. Conjuntura da posse de JK e tensão nos outros anos de governo relacionados à mobilização da
“ordem” nos três sentidos acima relatados [inclusive Aragarças] (CARDOSO, 1978: 230-32).
. Ainda sobre o levante de Aragarças, “O que parece importante notar é que a ação do Governo é
altamente politizada ao não fazer utilização política de um fato como este. [...]”. Porém,
“Analisando com um pouco mais de cuidado a situação, no entanto, percebe-se que algum
tratamento político é dado ao fato. Juscelino o qualifica como ‘desordem’, mas o identifica como
resultado da ‘demagogia derrotista’, que vincula à ‘mentalidade retrógrada’, ao ‘conformismo’ e à
‘resignação’. Aliás, esta é uma forma usual sua de lidar com as forças de oposição: identificá-las
como forças de resistência ao desenvolvimento” (CARDOSO, 1978: 232).
. “[...] Seria por resistir ao desenvolvimento de uma maneira geral (não a um tipo de
desenvolvimento, que no caso seria o modelo proposto pelo seu Governo) que surgiriam adversários
ao seu Governo e à sua pessoa de político – é o que JK procura transmitir. [...] As forças políticas se
dividiriam, então, conforme essa forma de pensar, entre aqueles que querem e aqueles que não
querem o desenvolvimento. São apenas o progressistas de um lado e os retrógrados do outro. [...]
Mesmo nos momentos em que aprofunda um pouco mais a sua análise, não ultrapassa, como
estamos vendo, o nível das táticas políticas como objeto da sua reflexão explícita. Jamais chega às
suas razões” (CARDOSO, 1978: 233).
. “Complementando a formação desse estado de espírito condicionante do apoio político
[expectativa de crescimento econômico que reduziria a desigualdade sem alteração na estrutura
social], acrescentam-se as atitudes de esperança e de otimismo, fundadas na vocação da nação para
a grandeza. [...] É preciso acreditar na possibilidade do êxito para ajudar a consegui-lo; e mostrar
empenho nisso. [...]” (CARDOSO, 1978: 239).
. “Há, pois, dois principais pontos de sustentação ideológica para a política do Governo: o destino
nacional, afirmado como altamente positivo e encorajador e a fé que emana dele. [...] O dinamismo
que passava através de todo o corpo social não podia contar exclusivamente com as elites
dirigentes, mas não teria continuidade se esbarrasse o imobilismo daqueles que porventura
estivessem ausentes do projeto em curso. Como arrancá-los desse imobilismo? A confiança nos
destinos do País parecia um meio eficaz de despertá-los, e capaz de alastrar-se pelos outros grupos,
fortalecendo-os cada vez que alguma confirmação – resultados das obras em andamento, por
exemplo – lhes fosse apresentada” (CARDOSO, 1978: 240-41).
. “A atitude que informa a mobilização é, assim, um misto de emoções e comportamentos que
envolvem otimismo, fé, entusiasmo, esperança, todos voltados para a realização de um destino que
já é dado como de grandeza. [...] Não adianta, assim, se opor a este destino, porque o futuro o
assegurará. Ficar indiferente a ele só retarda. É, pois, racional crer na sua realização e contribuir
para que ela se processe o mais rapidamente possível” (CARDOSO, 1978: 241).
. A crença no destino abafa as restrições à aplicação de capital estrangeiro: dado que estamos
fadados a sermos uma grande nação, não há por que temer o capital internacional (CARDOSO,
1978: 242).
. “Se as perspectivas do futuro se apresentavam tão otimistas, com altíssima probabilidade de sua
realização efetiva, daí era possível tirar forças para enfrentar o presente. Ao entusiasmo junta-se,
pois, a coragem, já que as dificuldades que caracterizam a situação da época ‘são todas comuns a
nação em crescimento’. [...]”. Retomada da argumento de tratamento de choque para que se alcance
um equilíbrio em uma realidade desenvolvida. A crise é pois, vista com otimismo (CARDOSO,
1978: 243).
. “De todos os instrumentos utilizados por Juscelino para a mobilização política, aquele a que cabe
menor papel é o debate propriamente político. A ele JK opõe uma forte dose de pragmatismo e uma
enorme ênfase na racionalidade. Os problemas concretos a que sua política pretende aplicar-se,
assim como as medidas também concretas que nela se contém são o grande apelo a que Juscelino
cede. A eliminação da polêmica em favor do tratamento técnico inclusive das questões mais
controvertidas é a fórmula que adota. [...]”(CARDOSO, 1978: 244).
II
A ideologia do fortalecimento nacional sob a presidência de Jânio Quadros
7 – O fortalecimento nacional: formação do Povo e do bloco subdesenvolvido
7.1 – A integridade nacional como princípio básico
. “Para o Presidente Jânio Quadros o presente não aparece como um dado. O estado de coisas com
que se defronta não é tratado como uma situação de fato a que se deva dar continuidade ou que
tenha de aceitar como ponto necessário de partida. Não me refiro aqui ao presente como atraso ou
subdesenvolvimento do País, mas ao processo de desenvolvimento em curso, na sua forma e na sua
mecânica. Jânio praticamente se insurge contra ele, submete-o a severa crítica e, partindo de
suposições diversas, propõe caminhos também diversos” (CARDOSO, 1978: 287).