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Conrado Hübner Mendes (/colunas/conrado-hubner-

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'Evitar mundos piores' é recado que vale sobretudo


para a ação política
Edifício da Constituição de 1988 está sendo passo a passo desmontado

19.mai.2020 às 23h15

EDIÇÃO IMPRESSA (https://www1.folha.uol.com.br/fsp/fac-simile/2020/05/20/)

O historiador Tony Judt, ao olhar com assombro para o início deste


século, observou que não era hora de imaginar mundos idealizados e
prescrever um caminho sem escalas em direção ao paraíso. Os ventos da
história não sopravam a favor.

Sugeriu pensar em como “evitar mundos piores”, em como “proteger


instituições e leis, regras e práticas que encarnem nossa melhor tentativa
nessas grandes abstrações”. Suspender a utopia para prevenir a distopia
—essa era a tarefa primária que enxergava. A ambição não pecava pela
modéstia.

Judt se referia a filósofos políticos. As abstrações não ofereciam bom


guia prático para o xadrez da ocasião ou para a urgência de se explorar
as frestas da conjuntura. A defesa de valores comuns, a essa altura,
importava mais que qualquer projeto de avanço à terra prometida.
Afinal, é com base na disputa pela versão mais atraente da terra
prometida que partidos se dividem.
Tudo isso foi outro dia, e as frestas eram mais generosas.

Não passava pela cabeça desse estudioso do século passado algo parecido
com o Brasil de 2020, país em estado de aguda degradação cívica,
paralisado na mais grave pandemia em cem anos
(https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/05/brasil-ultrapassa-a-marca-de-mais-de-mil-mortes-diarias-

por-coronavirus.shtml),
e rumo a uma crise econômica e climática inauditas. Para
completar, país chefiado por um sociopata, aquele que é desprovido de
responsabilidade moral e percepção da dignidade e humanidade do
outro, na definição da psicopatologia.

“Evitar mundos piores” é recado que vale para o pensamento, mas


sobretudo para a ação política. Diante do mal maior, pede-se concessões
pragmáticas, alianças ecléticas e renúncia a projeto eleitoral de curto
prazo.

Não é desapego desinteressado, por pura grandeza moral. É uma


tentativa de sobrevivência em liberdade, se pelo menos a liberdade for
um compromisso compartilhado acima de nossos desacordos.

A Constituição de 1988 (https://www1.folha.uol.com.br/colunas/luisfranciscocarvalhofilho/2018/06/a-


constituicao-de-88.shtml) encarna “nossa melhor tentativa nessas grandes

abstrações”. Em nenhum lugar do passado havíamos alcançado versão


melhor de nós mesmos.

Não foi por sua extensa declaração de direitos, nem pelos deveres e
responsabilidades que impôs ao Estado, aos indivíduos e às famílias, que
a Constituição desencadeou o desenvolvimento institucional e social que
assistimos ao longo de quase três décadas. Não foi pela beleza do texto.

Foi antes pelo compromisso de parte das elites políticas em tomá-la


como plataforma inegociável para organizar a competição pelo poder.
Foi também pelos múltiplos canais institucionais que abriu à sociedade
civil para demandar a implementação de políticas públicas.

Essa demanda não precisava mais apelar à generosidade do presidente, à


boa vontade do deputado ou ao favor do burocrata bem intencionado.
Passou a se expressar, finalmente, pela linguagem dos direitos. Esse novo
código mudou a história da cidadania e provocou outra dinâmica
institucional, na qual o sistema de Justiça (Judiciário, Ministério Público
e Defensoria Pública) ganhou protagonismo.

Esse edifício está sendo, passo a passo, desmontado. Não foi e nem será
necessário promover mudança no texto constitucional para continuar o
esvaziamento do seu potencial. Isso o bolsonarismo aprendeu com a
melhor cepa da história autoritária
(https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/04/democracia-e-liberdade-acima-de-tudo-diz-bolsonaro-apos-

participar-de-ato-pro-golpe.shtml).

As mesmas elites políticas que asseguraram a continuidade democrática


desde 1988 entraram em espiral autofágica. Perderam de vista o que
estava em risco e embarcaram na disputa sectária inconsequente.
Pavimentaram a avenida para o bolsonarismo. Divididas assim, vão ser
engolidas. Se quiserem evitar o pior, vão ter que sentar para conversar.

Conrado Hübner Mendes


Professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e
embaixador científico da Fundação Alexander von Humboldt.

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para-a-acao-politica.shtml

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