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Democracia e democratice

19/10/1988
in: O Século Esquisito, pp. 202-05

Ninguém me pode obrigar a ser feliz à sua maneira.


Immanuel Kant

Assistimos, em 5 de outubro de 1988, ao parto de um ente ambíguo: uma


nova Constituição, que é democrática mas não é liberal. Ela exemplifica a
distinção entre “democracia” e “democratice”. “Democracia” é a livre
escolha do indivíduo, abrangendo um leque de opções: opções políticas,
opções sociais, opções econômicas. “Democratice” é a ênfase sobre os
direitos e garantias políticas, com descaso pela defesa do indivíduo contra
imposições governamentais no plano econômico, cultural e social.
Ninguém negará à nova Constituição exuberância democratista. Os direitos
políticos são amplos. Existem o habeas corpus, o habeas data e até mesmo
o habeas debitum (anistia de dívidas). Há liberdade de palavra,
pensamento, religião e asso- ciação; superpõem-se, para gáudio dos
advogados, três mecanismos de preservação dos direitos – o tradicional
mandado de segurança, o mandado de injunção e a inconstitucionalidade
por omissão. Levou-se ao exagero o participacionismo partidário.
Não só é livre a criação de partidos como inexistem os dois mecanismos
tradicionais de viabilização de atividade parlamentar: o voto distrital (puro
ou misto) e a exigência de uma performance eleitoral mínima, de modo que
o Parlamento abrigue segmentos expressivos de opinião e não exoticismos
personalistas. (Na Alemanha Federal, só têm representação os partidos com
5% das votações globais.) Nossa “democratice” levar-nos-á a um
multipartidarismo caótico, precisamente quando o Congresso deveria
agilizar-se para absorver graves e ambiciosas responsabilidades.
Mas se a Constituição preserva virginalmente nossos direitos políticos,
comete vários estupros da liberdade de escolha:
A) O estupro da liberdade de escolhas econômicas;
B) O estupro da liberdade de escolhas sociais; e
C) O estupro de liberdade de escolhas educacionais.

No título da “Ordem Econômica e Financeira”, o grande estuprado é o


“consumidor”, personagem sequer mencionado no texto. Nas economias
liberais o consumidor é soberano. Não está à mercê de reservas de
mercado, que encorajam a ineficiência e desencorajam a produtividade. Ele
pode escolher entre produtos nacionais e importados, pagando neste caso
tarifas aduaneiras que incentivam o produtor local sem dar-lhe poder de
extorsão.
A liberdade de escolha empresarial é também estuprada. O empresário
nem sequer é livre para dosar sua participação no capital, pois se for
minoritário não poderá atuar na mineração ou na informática. Os
estrangeiros naturalmente sofrem grosseira discriminação. Quanto aos
nacionais, todos são iguais mas alguns são mais iguais que os outros, dado
que a lei poderá criar cartórios econômicos (supostamente por interesses
estratégicos e desenvolvimentistas). Todos sabemos, por exemplo, que
nossa modernização industrial é refém dos gigolôs da informática...
O consumidor pode também sofrer como “contribuinte” e “usuário”.
Como “contribuinte”, porque o Poder Público “dará tratamento preferencial
à empresa brasileira de capital nacional” na compra de bens e serviços, o
que dispensa o governo da obrigação de comprar melhor e mais barato.
(Esse dispositivo criarnos-á, aliás, imediatos problemas com as duas
grandes instituições internacionais financiadoras de obras públicas: o
Banco Mundial e o BID. Os estatutos de ambas, dos quais o Brasil é
signatário, exigem concorrência “internacional”.) Como “usuário”, porque
se ampliaram as áreas de monopólio e foi oficializado o grevismo. A greve
nos serviços essenciais não é mais proibida: Alguém – provavelmente os
sindicatos “progressistas” dos funcionários das estatais – “disporá sobre o
atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade”. Isso não é
democracia. É democratice. A sociedade inocente ficará refém de um
bando de monopolistas mais interessados em maximizar suas vantagens do
que em melhorar seus serviços.
O estupro da liberdade de escolhas sociais é duplo. De um lado, a
Constituição engessa minuciosamente as relações entre empregadores e
empregados, independentemente da situação da empresa e da adversidade
da conjuntura. É uma privação de liberdade negocial. Contou-me
recentemente um pequeno empresário da indústria de confecções, que
enfrentou o drama humano de reduzir suas costureiras de 93 para 18,
intimidado pelos novos encargos sociais e multa de despedida, legiferados
pelos constituintes. Desativará a empresa, e diz com razão que a
Constituição, sob aparência benfeitora, é uma conspiração dos já
empregados contra os desempregados e os jovens. De outro lado, temos
que engolir, goela adentro, através de contribuições compulsórias, o
ineficiente sistema de seguridade social, que gasta mais com os assistentes
que com os assistidos. O razoável seria deixar ao empregador e
empregados a liberdade de escolha entre o sistema oficial e entidades
privadas de previdência e saúde. Estas operariam em ambiente competitivo,
rivalizando-se na prestação de serviços, sob pena de perderem a clientela.
Os que preferirem ficar sob as asas desse “pai terrível” que é o Estado (para
usar uma expressão de Octávio Paz) seriam livres para fazê-lo...
Há também um estupro das liberdades educacionais. Ao contrário do que
dizem os “progressistas”, o dinheiro público não deve ir necessariamente
para as escolas públicas e sim para a escolhida pelos contribuintes, pública
ou privada, leiga ou confessional. Não é democracia e sim democratice que
os ricos estudem gratuitamente em universidades públicas, enquanto os
pobres têm que recorrer a cursos noturnos em escolas pagas. O governo, ao
invés de entregar polpudos recursos a universidades semi-ociosas, por falta
de alunos ou grevismo dos professores, entregaria “bônus de educação” às
famílias cujos filhos demonstrassem capacidade acadêmica e insuficiência
econômica. Escolheriam livremente a escola ou universidades, avaliando o
que for melhor para o treinamento dos filhos. O pior que poderia acontecer
seria termos universidades públicas sobrantes por falta de alunos, com o
útil subproduto de eliminarmos a dupla praga do grevismo dos docentes e
de displicência dos discentes...
O que cabe a esta altura perguntar é por que produzimos um texto com
muito mais democratice que “democracia”? Parte da explicação reside na
composição enviesada da Comissão de Sistematização, de colorido social-
estatizante. O Centrão, terminada a briga regimental, sucumbiu a interesses
assistencialistas e cartoriais. Havia esperanças de melhoria no segundo
turno,
mas não era mais que a tênue esperança de consertar a sombra de uma vara
torta. A exaustão fez o resto. Num auge de irresponsabilidade, foi aceita a
votação por “acordos de liderança”, podendo-se arguir que por isso a
Constituição nascerá inconstitucional. Nos acordos de liderança, os sete
líderes de esquerda, que representam a si mesmos ou a alguns míseros
gatos pingados, contavam tanto como os líderes de partidos expressivos
com a vantagem adicional de maior agressividade. O segundo turno foi, em
grande parte, um “voto de ouvido”, sem textos previamente distribuídos, o
que sem dúvida representa uma escandalosa originalidade na feitura de
constituições.
“Ninguém pode me obrigar a ser feliz à sua maneira”, filosofava o grande
Immanuel Kant. Com profusas promessas sociais, abundantes garantias e
escassos deveres, e uma ingênua crença no “Pai terrível”, os constituintes
querem nos tornar felizes à maneira deles...

PS: Para os futuros historiadores, interessados em avaliar a diferença entre


“a democracia de livre escolha” e a “democratice de escolhas impostas”,
serão interessantes algumas estatísticas. A palavra produtividade só aparece
uma vez no texto constitucional; as palavras usuário e eficiência figuram
duas vezes; fala-se em garantias, 44 vezes, em direitos, 76 vezes, enquanto
a palavra deveres é mencionada apenas quatro vezes. Para quem duvida da
tendência antiliberal do texto basta lembrar que a palavra finalização é
usada quinze vezes e a palavra controle nada menos de 22 vezes.

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