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16/03/2018 - 05:00

À beira do abismo
Por José de Souza Martins

Os impasses desta hora política nem sempre têm tido a crítica devida e apropriada
daqueles que restam de um tempo em que se fazia política com lucidez e patriotismo.
Hoje o país, com dificuldade, garimpa competências nos escolhos do que sobrou de
uma grande promessa que foi a do Brasil político arquitetado pelos constituintes de
1988.

Vista da beira do abismo em que nos encontramos hoje, a Constituição e suas leis se
tornaram menos cidadãs do que supunha Ulysses Guimarães. Seu uso oportunista
encheu de brechas as liberdades nela consagradas. Milhões de brasileiros ficaram de
fora das mínimas possibilidades de inserção social e de superação de uma situação teimosamente adversa. Somos ótimos em fazer leis
que, não raro, já nascem viciadas por brechas que, nas formalidades judiciais aparentemente corretas, serão relativizadas e amenizadas.
Aqui a Constituição e as leis aparentemente estão nas entrelinhas.

Constituição vulnerável também porque, em nome de uma concepção simples de liberdade, acolheu o que havia de pior e mais
antimoderno na tradição política brasileira, o localismo e o clientelismo da troca de favores. Parlamentares agindo com frequência em
causa própria, viabilizando uma casta antidemocrática que se alimenta de privilégios inaceitáveis. Os de um país que se demora na
autoindulgência iníqua e antidemocrática de que todos são iguais perante a lei, mas alguns são mais iguais. Falo dos vícios da
instituição, os que circunscrevem e limitam a ação política dos capazes e honestos, como lucidamente nos lembra George Orwell, em
"A Revolução dos Bichos". Refere-se ele aos crimes decorrentes da vontade de poder dos incapacitados para a verdadeira
representação política e que, no entanto, dela se apossam e dela se locupletam. É ali tal a promiscuidade dos porcos com os inimigos
dos bichos restantes, os bichos-cidadãos, que, no fim da história, já não se sabia quem era porco e quem era gente. Ter essa impressão
todos os dias é muito desanimador.

O povo brasileiro foi colocado de joelhos diante da falta de alternativas, a não ser a de optar entre as que lhe são impostas justamente
pelos próprios aproveitadores. Em ano eleitoral, não há nenhum indício de uma saída que nos afaste da proximidade do precipício.
O afã de poder, a vontade de se eleger e de permanecer no poder a qualquer preço, constitui expressão impatriótica de um apego ao
mando que nada tem de serviço à nação. É, no mais das vezes, serviço que os políticos prestam a si mesmos. A Constituição e as leis
facilitam as reeleições, direta ou indiretamente, recursos públicos de vários modos viabilizam que no poder permaneça quem merece e
quem não merece. O eleitor se engana e é enganado. Supõe que corrupto e incompetente é o outro, nunca o seu próprio candidato.
Gente suspeita aparece em destaque nas pesquisas de opinião eleitoral com vistas ao pleito de outubro.

Tudo sugere que os 200 milhões de brasileiros se pareçam todos com esses poucos que dominam o Brasil com sua pouquidade. É
injusto. Qualquer um de nós pode, olhando para o lado, ver pessoas do maior respeito cotidianamente dedicadas ao outro e ao país. E,
se em vez de olharmos para baixo, olharmos para cima, enxergaremos o vulto honesto e competente de mais uns tantos milhões. E,
então, nos perguntaremos por que estamos perdendo nosso tempo e gastando nossa paciência com poucos que nada valem em vez de
dedicá-la a tantos que valem muito.

Lideranças cúmplices não nos ajudarão a encontrar o caminho. Como lembra o poeta espanhol Antonio Machado, em seu célebre
poema, teremos que fazer o caminho ao andar. Para isso é preciso que se deixe de ser crédulo e aprender a pensar de maneira crítica, a
avaliar candidatos sem premissas ideológicas ou religiosas.

É preferível um centrista corajoso e depreendido a um esquerdista cúmplice e corporativo. Como é preferível um esquerdista lúcido e
construtivo a um esquerdista falastrão, que com facilidade se compõe com os adversários das causas que diz defender. Como é
temerário optar pelos discursadores do porrete e do castigo, os pregadores do neofascismo raivoso. Se pancada e violência política
consertassem um país, este seria o país mais consertado do mundo. Em nenhum lugar se apanha tanto quanto aqui.

Os diferentes partidos e candidatos, da esquerda à direita, sem exceção, estão pensando o processo político na perspectiva do poder, são
partidos do poder. Não o estão pensando na perspectiva da sociedade e das contradições sociais que pedem e possibilitam a inovação e
a renovação política de que o país carece. Nesse cenário, é improvável que nos ofereçam a viabilidade de um pacto que devolva os
políticos à política e o Brasil a si mesmo.

José de Souza Martins é sociólogo. Professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Membro
da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de "Moleque de Fábrica" (Ateliê Editorial).

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