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O DEBATE SOBRE CANDIDATURAS AVULSAS NO BRASIL E O

PENSAMENTO DE MOISEI OSTROGORSKI : DEVEMOS REPENSAR O


PARTIDO POLÍTICO ?
BRAZIL’S DEBATE ON INDEPENDENT CANDIDACY AND THE WORK OF MOISEI
OSTROGORSKI: SHOULD WE RETHINK POLITICAL PARTIES?

RAFAEL VINHEIRO MONTEIRO BARBOSA


Doutor e Mestre em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo –
PUC-SP. Professor Assistente de Direito Processual Civil da Universidade Federal do Amazonas –
UFAM. Secretário-geral Adjunto para o Estado do Amazonas do Instituto Brasileiro de Direito
Processual – IBDP. Membro da Associação Brasileira de Direito Processual – ABDPro.
Coordenador do Núcleo de Estudos em Processo da Universidade Federal do Amazonas –
NEPRO/UFAM. Defensor Público no Estado do Amazonas.
rvmb78@hotmail.com

PAULO BERNARDO LINDOSO E LIMA


Mestrando em Direito do Estado (USP) e Graduado em Direito (UFAM). Professor da pós-
graduação em Direito Civil e Processual Civil da ESA/OAB/AM. Professor (PTV) do
Departamento de Direito Privado da UFAM. Membro da Comissão de Direito Condominial e da
Comissão de Arbitragem da OAB/AM (2016-2018). Membro do CBAr. Advogado.
lindosoo@gmail.com

ÁREA DO DIREITO: Direito constitucional; direito eleitoral; partidos políticos e candidaturas independentes.

RESUMO: O recente debate sobre candidaturas ABSTRACT: Brazil’s recent debate on


avulsas no Brasil está intrinsecamente ligado ao independent candidacy is intimately linked to
esvaziamento ideológico dos partidos políticos e the political parties’ ideological decay and to
ao seu controvertido papel no sistema their controversial role in democratic regimes.
democrático. Embora centenária, a obra do Although in a century-aged work, Moisei
jurista russo Moisei Ostrogorski traz relevantes Ostrogorski brings insightful contributions to
contribuições para a discussão, sendo necessário the debate and his point of view is extremely
colocá-las em debate. relevant for the discussion about political parties
and democracy in present-day.

PALAVRAS-CHAVE: Candidatura avulsa, partido KEYWORDS: Independent candidacy, political


político, democracia, Moisei Ostrogorski. parties, democracy, Moisei Ostrogorski.

SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Partidos políticos: história, conceito, características e problemas. 3. Debate sobre
candidaturas avulsas no Brasil: o drama da filiação partidária como condição de elegibilidade. 4. Democracia e
os partidos políticos, por Moisei Ostrogorski: é hora de uma releitura da organização institucional dos partidos?
5. Considerações finais. 6. Referências.

1. INTRODUÇÃO

Às vésperas de completar trinta anos de idade, a Constituição da República de 1988,


marco da redemocratização formal do país, ainda não amadureceu o suficiente para
experimentar o sabor da democracia plena. Ao revés, passados os anos em que o mal
funcionamento das instituições foi ofuscado pela efervescência da economia, a história
recente revelou uma democracia instável e com instituições pouco confiáveis, cujos frutos
foram escândalos de corrupção de proporções (literalmente) hollywoodianas e o ápice da crise
de legitimidade da classe política brasileira.1
No passado, a sociedade civil já havia se organizado para contribuir com o sistema
eleitoral do país, entendendo que ali, possivelmente, estariam algumas das maiores causas da
ineficiência de nossa democracia, do que são exemplos notórios a Lei n. 9.840/1999, que
incluiu o art. 41-A na Lei das Eleições e enrijeceu as punições contra compra de votos; e a Lei
Complementar n. 135/2010, popularmente conhecida por Ficha Limpa.
Mais recentemente, o Congresso Nacional promulgou a Lei n. 13.165/2015, que
empreendeu extensa reforma sobre a legislação eleitoral, incluindo a vedação ao
financiamento privado de campanhas e mudanças substanciais no processo jurisdicional
eleitoral. Em 2017, mais reformas: a Lei n. 13.487/2017 criou o Fundo Especial de
Financiamento de Campanha, engordando o orçamento de partidos políticos com verbas da
União, e, de brinde, extinguiu a propaganda partidária no rádio e na televisão. Nem a
Constituição escapou: a Emenda Constitucional n. 97/2017 criou cláusulas de barreira para a
distribuição do fundo partidário e vedou coligações proporcionais a partir de 2020.
Ao lado da intensa atividade legislativa em temas de direito eleitoral, no ano de 2017 os
tribunais testemunharam o início e florescimento do debate sobre candidaturas avulsas, ou
seja, a possibilidade de que um candidato sem partido concorresse ao pleito eleitoral, o que
estaria em confronto com o disposto no art. 14, § 3o, inciso V, da Constituição da República2,
que indica a filiação partidária como condição de elegibilidade.
No epicentro de todas as reformas e polêmicas está o partido político. Assim, não se
pode travar um debate adequado sobre o processo político eleitoral no Brasil sem fazer uma
análise crítica do papel dos partidos políticos, mesmo porque todas as tentativas de alterar o
lamentável status quo perpassam, necessariamente, pela legislação eleitoral e partidária.

1
Essa advertência, de que existe no mundo uma “crise de legitimidade do atual sistema político”, já foi feita, em
esfera global, pelo sociólogo espanhol Manuel Castells. Na sua visão, há “uma rejeição aos partidos e o clamor
por transparência e participação”. Trecho da entrevista concedida a Gabriel Manzano, do jornal “O Estado de
São Paulo” (Estadão), de 09 de julho de 2013, disponível em: http://politica.estadao.com.br/noticias/eleicoes,ha-
uma-crise-de-legitimidade-do-atual-sistema-politico-diz-castells-imp-,1051538. Acessado em 28/04/2018.
2
Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual
para todos, e, nos termos da lei, mediante: (...) § 3º São condições de elegibilidade, na forma da lei: (...)V - a
filiação partidária;
Por essa razão, é imprescindível trazer à baila os estudos de Moisei Ostrogorski, jurista
e parlamentar russo que, no início do século passado, já identificava os problemas das
agremiações partidárias e, mais do que isso, propunha-se a resolvê-los.

2. PARTIDOS POLÍTICOS: HISTÓRIA, CONCEITO, CARACTERÍSTICAS E PROBLEMAS

O estudo do partido político é relevante porque ele é considerado condição de


possibilidade da democracia representativa, que é irrealizável sem estas “instituições ou
coletividades que se colocam entre o indivíduo isolado e o poder público” 3, cuja inexistência
afetaria “profundamente a possibilidade de sobrevivência de um projeto democrático para a
sociedade”.4
Embora, há séculos, os indivíduos se agrupem para atuar enquanto agentes políticos, a
configuração atual dos partidos políticos é mais recente no curso da história.5 Nesse sentido, a
propósito, a advertência de Maurice Duverger: “A analogia das palavras não deve levar a
confusões. Chamam-se igualmente “partidos” as facções que dividiam as Repúblicas antigas,
os clãs que se agrupavam em torno de um condottiere na Itália da Renascença, os clubes onde
se reuniam os deputados das assembleias revolucionárias, os comitês que preparavam as
eleições censitárias das assembleias revolucionárias, bem como as vastas manifestações
populares que enquadram a opinião pública nas democracias modernas. Essa identidade
nominal justifica-se por um lado, pois traduz certo parentesco profundo: todas essas
instituições não desempenham o mesmo papel, que é o de conquistar o poder político e
exercê-lo? Porém se vê, apesar de tudo, que não se trata da mesma coisa”.6
A noção moderna de partido político, a seu turno, surge a partir de influências de Lenin
e de Max Weber7 e se consolida no final do século XIX e início do século XX, como
exemplificam as constituições alemã (1949), italiana (1947), francesa (1958), portuguesa
(1976) e espanhola (1978).8 No Brasil, a primeira Constituição a tratar dos partidos políticos
foi a de 1946, que estabelecia apenas genericamente ser vedada a criação de partidos “cujo
programa ou ação contrarie o regime democrático” (art. 141, § 13, Constituição dos Estados
3
STRECK, Lênio Luiz; MORAIS, José Luís Bolzan de. Ciência Política e Teoria Geral do Estado. 3. ed. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 173. No mesmo sentido: SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz
Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de direito constitucional. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 744.
4
Idem.
5
“O reconhecimento constitucional dos partidos políticos é um fato relativamente recente, cujo início ocorreu a
partir do pós-Segunda Guerra Mundial”. NERY JUNIOR, Nelso; ABBOUD, Georges. Direito constitucional
brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017. p. 368.
6
DUVERGER, Maurice. Os partidos políticos. Rio de Janeiro: Zahar, 1970, p. 19.
7
AGRA, Walber de Moura. Curso de direito constitucional. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012, p. 344.
8
STRECK, op. cit., p. 174.
Unidos do Brasil de 18 de setembro de 1946), embora já houvesse o efetivo tratamento do
tema no Código Eleitoral de 1932.9
Max Weber, sociólogo alemão que, como dito acima, é considerado um dos mentores
da configuração moderna dos partidos, define-os como “relações associativas baseadas em
recrutamento (formalmente) livre com o fim de proporcionar poder aos seus dirigentes dentro
de uma associação e, por meio disso, a seus membros ativos, oportunidades (ideais ou
materiais) de realizar fins objetivos ou de obter vantagens pessoais, ou ambas as coisas”.10
Segundo Gregorio Badeni, os partidos políticos podem ser conceituados como
“asociaciones de individuos, de carácter permanente, que agrupan a una parte de la
ciudadanía unida por un conjunto de ideas políticas comunes, con la finalidad de conquistar
el poder para aplicar esas ideas”.11 De acordo com Bruce Ackerman, constitucionalista
americano, o partido político “constitui mais notadamente uma organização de serviços,
auxiliando os cidadãos locais nas suas relações com o governo”.12 Assim, fazem parte da
caracterização dos partidos, em síntese, (a) a organização; (b) o programa de governo ou
ideológico; e (c) a duração por tempo indeterminado, uma vez que o objetivo do partido é a
obtenção do controle do poder político.
Nelson Nery Junior e Georges Abboud mencionam o processo de constitucionalização
dos partidos políticos, consistente na imposição de deveres e limites a sua atuação. Para os
mencionados autores, “a Constituição não exige que apenas a estrutura dos partidos seja
democrática, porquanto tal exigência passa a regulamentar inclusive seu funcionamento, que
nunca poderá ser desconforme aos ditames constitucionais, mormente aos direitos
fundamentais”.13

9
SILVA, Virgílio Afonso da. Partidos e Reforma Política. Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado
(RERE), Salvador, Instituto Brasileiro de Direito Público, no. 10, junho/julho/agosto, 2007. Disponível na
Internet: < http://www.direitodoestado.com.br/rere.asp >. Acesso em: 18 de abril de 2018.
10
WEBER, Max. Economia e sociedade. Volume 1. 4. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2015. p.
188.
11
BADENI, Gregorio. Tratado de derecho constitucional. Tomo I. 2. ed. Buenos Aires: La Lay, 2006, p. 1.026.
Ingo Wolfgang Sarlet defende que, dentre as funções dos partidos, “situa-se a de identificar e formar lideranças
políticas, sua respectiva apresentação ao povo (eleitor) e a captação do seu voto, para, na condição de partido(s)
do governo comprir(em) o seu desiderato de elos da corrente de legitimação entre o povo e o Estado (governo),
mas, na oposição (e potencial governo futuro), exercer o papel de crítica e controle, portanto, de limitação do
poder e proposição de alternativas, ademais da representação das minorias políticas”. SARLET, Ingo Wolfgang;
MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de direito constitucional. 6. ed. São Paulo: Saraiva,
2017. p. 745.
12
ACKERMAN, Bruce. Nós, o povo soberano: fundamentos do direito constitucional. Belo Horizonte: Del Rey,
2006. p. 349.
13
Os autores ainda apontam três funções dos partidos políticos: (a) expressar o pluralismo político; (b) contribuir
para a formação e manifestação da vontade popular; (c) ser instrumento fundamental da participação política.
NERY JUNIOR, Nelson; ABBOUD, Georges. Direito constitucional brasileiro. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2017. p. 368-370.
Embora já tenha sido definido como “natural ao sistema democrático de governo”14, a
caracterização que identifica o arquétipo institucional de um partido político está sujeita a
críticas há muito tempo. Walber de Moura Agra, a propósito, sintetiza o contraponto aos
partidos políticos desde sempre existente: “A ideia de criação dos partidos políticos também
foi muito criticada. Impingiam a eles a nefanda função de dividir a sociedade, gerando
antagonismos e animosidades. Ainda maculavam a sua função com a ideia de que
funcionariam como um corpo intermediário entre o cidadão e o governo, impedindo a
participação direta do cidadão nos negócios governamentais. Compartilhavam dessa opinião
Rousseau e Hobbes”.15
Particularmente no Brasil, Manoel Gonçalves Ferreira Filho aponta pelo menos três
vícios do sistema partidário, quais sejam, (1) o número excessivo de partidos; (2) a
inautenticidade dos partidos brasileiros; e (3) o individualismo brasileiro.16
O primeiro vício dificultaria a governabilidade do país e obscureceria a definição da
vontade política do povo, sendo o número excessivo de partidos um consectário natural dos
sistemas de representação proporcional, motivando o surgimento de partidos que se
distinguiriam entre si apenas pelo personalismo de seus líderes.17
O segundo vício denota que os partidos brasileiros não passam de “conglomerados
decorrente de exigências eleitorais”, sem definição de programa político ou vida própria.18
O terceiro vício, com o qual não concordamos, refere-se à natureza do brasileiro e à
ideia de que “todas essas várias formas de solidariedade têm entre nós uma vida artificial e
uma duração efêmera”.19 Para Manoel Gonçalves Ferreira Filho, “traço inegável do caráter
nacional brasileiro é a falta de inclinação para a vida cívica e associativa”.20
Não nos parece que a “natureza” do brasileiro conduziria a uma ruptura ou
incompatibilidade natural com a vida política: essa ideia careceria de qualquer embasamento
científico. Isso não obstante, os argumentos supracitados revelam que os partidos
efetivamente não têm apreço a seus programas ideológicos, políticos ou governamentais; e,
ainda, que possuem caráter nitidamente oligárquico,21 algo sobre o que já advertida Robert

14
WAGNER, José Carlos Graças. Partidos Políticos no Brasil. Curso Modelo Político Brasileiro, Volume VI.
Instituto dos Advogados de São Paulo: Brasília – DF, 1985, p. 23.
15
AGRA, Walber de Moura. Curso de direito constitucional. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012, p. 344.
16
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional. 38. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p.
187-189.
17
FERREIRA FILHO, op. cit., p. 187.
18
FERREIRA FILHO, op. cit., p. 188.
19
FERREIRA FILHO, op. cit., p. 189.
20
FERREIRA FILHO, op. cit., p. 189.
21
FERREIRA FILHO, op. cit., 189.
Michels ainda no século XX.22
Se estas críticas já existiam quando do surgimento do partido político, a realidade de
hoje não é diferente. O cenário político brasileiro no século XXI iniciou com uma década de
prosperidade econômica e, depois disso, sucessivas demonstrações de instabilidade política
que ressaltaram a incapacidade do sistema partidário de veicular apropriadamente a vontade
popular.23
Um dos mais notórios elementos de ineficiência do sistema partidário atual é a
corrupção eleitoral, decorrência natural da degeneração dos partidos políticos causada pelos
vícios acima narrados e por outros tantos.24 Esta não é, entretanto, uma certidão de óbito do
sistema de partidos políticos: nos dizeres de Marco Antonio Corrêa Monteiro, a democracia
representativa partidária é a “fórmula que se mostrou mais adequada, ao menos até o
momento, para conciliar os mais diversos interesses em uma vontade geral”, de modo a ser
necessário aprofundar os estudos do sistema eleitoral-partidário para poder combater seus
problemas e fortalecê-lo.25 E arrebata o autor: “A corrupção política, em geral, e a corrupção
eleitoral, em específico, somente podem ser efetivamente combatidas em uma democracia em
que o exercício do poder apresente-se visível e transparente à opinião pública, abastecida esta
de valores éticos com os quais será confrontado o exercício do poder político. Estas são
condições sem as quais não se pode falar em democracia material”.26
O sistema partidário, bem como a democracia representativa que ele almeja atingir, dão
sinais de cansaço não só no Brasil, mas também em países europeus como Reino Unido e
Islândia.27 Como assinala Mônica Herman Caggiano, o exercício democrático do poder não
pode mais se limitar ao sufrágio universal: “Não há que ignorar, também, o sentimento
popular que, se nos primórdios do século XX, encarava o sufrágio universal como a conquista
definitiva para o exercício do poder, hoje não mais entende a cidadania limitada à participação

22
MICHELS, Robert. Sociologia dos Partidos Políticos. Trad. de Arthur Chaudon. Editora Universidade de
Brasília: Brasília, 1982, p. 243.
23
Na feroz crítica de Max Weber, “costuma ser também decisivo para a atitude dos líderes e do quadro
administrativo o interesse próprio (ideal ou material) em termos de poder, cargos e garantia de existência,
enquanto que a defesa dos interesses de seus eleitores só se realiza na medida em que seja inevitável, para não
pôr em perigo as possibilidades de reeleição”. WEBER, Max. Economia e sociedade. Volume 1. 4. ed. Brasília:
Editora Universidade de Brasília, 2015. p. 190.
24
MONTEIRO, Marco Antonio Corrêa. Os partidos políticos e o fenômeno da corrupção eleitoral. Revista
Brasileira de Direito Constitucional (RBDC). Escola Superior de Direito Constitucional (ESDC) – São Paulo:
ESDC, 2008. N.8, p. 401.
25
MONTEIRO, Os partidos políticos..., p. 402.
26
Idem.
27
CAGGIANO, Mônica Herman. Distúrbios da democracia. Representação política e suas patologias. A
Reforma Eleitoral no Brasil atende a essas funções? In: CARVALHO NETO, Tarcisio Vieira de; FERREIRA,
Telson Luís Cavalcante (coord.). Direito Eleitoral: aspectos materiais e processuais. São Paulo: Migalhas, 2016,
p. 83.
no polo decisional mediante o voto, elegendo seus representantes – quer parlamentares quer o
Chefe do Executivo. Almeja mais e dispõe de instrumentos para tanto. Sua influência pode ser
sentida por via do controle político a que procede e que realiza, principalmente, por
intermédio de ações judiciais, propiciando a expansão do fenômeno da politização da
justiça”.28
Se o exercício democrático do poder não mais se limita à participação no polo
decisional mediante voto, o partido político – como elo entre vontade popular e decisão
política – deve ser repensado. Neste contexto de investigação científica acerca do sistema
partidário, é preciso buscar soluções para que ele possa voltar a funcionar de maneira
adequada, afastando-se os vícios que fazem dele um instrumento político que não serve à
democracia.

3. DEBATE SOBRE CANDIDATURAS AVULSAS NO BRASIL: O DRAMA DA FILIAÇÃO PARTIDÁRIA


COMO CONDIÇÃO DE ELEGIBILIDADE

Em outubro de 2017, o Supremo Tribunal Federal reconheceu, à unanimidade,


repercussão geral no ARE 1054490, que trata do pedido de registro de um candidato sem
partido à prefeitura do Rio de Janeiro em 2016. Embora o Tribunal Superior Eleitoral já tenha
expressamente afirmado que não existem condições fáticas e tecnológicas para realizar uma
eleição com candidaturas avulsas no pleito de 2018, o início deste debate no Supremo
Tribunal Federal sugere que em breve haverá precedente sobre a matéria, o que deve
intensificar as discussões doutrinárias e políticas a respeito.
A polêmica também ecoou nos juízos singulares. Em setembro de 2017, o Tribunal
Regional Eleitoral de Goiás registrou pelo menos duas decisões, de juízos zonais, acenando
positivamente às candidaturas avulsas, mas sem que quaisquer das decisões fossem
efetivadas.
Em síntese, aqueles que defendem a possibilidade de candidaturas avulsas no Brasil
sustentam que o país está vinculado ao disposto no artigo 23, item 5, do Pacto de San José da
Costa Rica, que dispõe que as distinções aplicáveis ao processo de participação da vida
política devem ser “exclusivamente por motivo de idade, nacionalidade, residência, idioma,
instrução, capacidade civil ou mental, ou condenação, por juiz competente, em processo
penal”. Assim, restringir a capacidade eleitoral passiva àqueles com filiação partidária

28
CAGGIANO, Mônica Herman. Distúrbios da democracia..., p. 83.
violaria a Convenção Interamericana de Direitos Humanos da qual o Brasil é signatário, uma
vez que esta distinção não estaria prevista no tratado.
Ocorre, no entanto, que as candidaturas avulsas no Brasil encontram dois obstáculos. O
primeiro deles é que a regulação infraconstitucional do processo eleitoral está toda desenhada
para o sistema partidário, incluindo a divisão de verbas dos fundos partidário e eleitoral e a
distribuição de tempo nos meios de comunicação regulados pelo Estado, para citar apenas
dois exemplos. De modo geral, a realidade é que aplicar as atuais normas do sistema
partidário a indivíduos, em relação aos quais não existe uma norma sequer especificamente
aplicável, geraria um pandemônio hermenêutico incompatível com a segurança jurídica.
Last but not least, a filiação partidária é requisito de elegibilidade com assento
constitucional, tendo em vista o disposto no art. 14, §3o, inciso V, da Constituição da
República. É o que ensina Néviton Guedes: “A Constituição também exige como condição de
elegibilidade a filiação partidária. Com isso, pode-se dizer que, diversamente do que ocorre
em diversas Democracias contemporâneas, o partido político no Brasil, nas disputas eleitorais,
detém o monopólio das candidaturas (CF, art. 14, § 3º, V, c/c art. 17). Não há, pois, em nosso
País, a possibilidade de candidaturas avulsas ou independentes da filiação partidária”.29
Isso, a seu turno, reaquece o debate travado pelo Supremo Tribunal Federal durante o
julgamento do RE 466.343-SP, sobre a natureza jurídica dos tratados internacionais de
direitos humanos no ordenamento jurídico brasileiro, e abre uma possibilidade de se rever o
posicionamento segundo os quais estes tratados teriam natureza supralegal, isto é,
infraconstitucional, mas acima das demais leis.
Ou seja, é possível que, numa viragem jurisprudencial, o Pacto de San José da Costa
Rica seja considerado tratado internacional de direitos humanos com natureza de norma
constitucional, o que possibilitaria uma derrogação do art. 14, §3o, inciso V, da Constituição,
para afastar a necessidade de filiação partidária para concorrer às eleições.
Entretanto, até que isso aconteça – e se é que irá acontecer – fica valendo a atual
jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sobre tratados internacionais de direitos humanos
que não se submeteram ao procedimento de recepção especial do art. 5o, § 3o, da Constituição
da República. Assim, permanece com status supralegal a Convenção Interamericana de
Direitos Humanos, e, portanto, incapaz de derrogar dispositivo constitucional.

29
GUEDES, Néviton. Comentário ao artigo 14, § 3 o, inc. V. In: CANOTILHO, J. J. Gomes; MENDES, Gilmar
F.; SARLET, Ingo W.; STRECK, Lenio L. (Coords.). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo:
Saraiva/Almedina, 2013, p. 2.876.
Outro elemento que não deve escapar à discussão é a sentença da Corte Interamericana
de Direitos Humanos no caso Castañeda Gutman versus México. Na única oportunidade em
que analisou a abrangência do artigo 23, item 5, da Convenção, a Corte entendeu não haver
violação a direitos humanos quando as candidaturas a cargos eletivos fossem registradas
através de partidos políticos: “Based on the foregoing arguments, the Court does not find that,
in the instant case, it has been proved that the system of registering candidacies for elected
office by political parties constitutes an unlawful restriction to regulate the right to be elected
established in Article 23(1)(b) of the American Convention and, consequently, has not verified
a violation of Article 23 thereof.”30
Ao que tudo indica, nem a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos
é favorável à aplicação do Pacto de San José da Costa Rica para os fins de afastar o sistema de
candidaturas exclusivamente partidárias em um país. Mas isso não desqualifica a discussão;
ao contrário, revela que as reformas necessárias à eventual regulamentação das candidaturas
avulsas no Brasil apenas serão mais trabalhosas.
Outra possibilidade para viabilizar candidaturas avulsas seria exigir do indivíduo,
pretenso candidato independente, todos os requisitos de criação e funcionamento de um
partido político, o que demonstraria que este indivíduo teria representatividade suficiente para
concorrer ao pleito em pé de igualdade (mutatis mutandis) com os partidos políticos, sem
violar materialmente as exigências legais e constitucionais de elegibilidade. Esta solução
eminentemente hermenêutica é a defendida pelo professor Yuri Dantas Barroso, da
Universidade Federal do Amazonas.
Apesar de viabilizar as candidaturas avulsas a partir de uma coerente compatibilização
interpretativa das normas do sistema eleitoral, ainda seria difícil implementar a solução acima
proposta, uma vez que o sistema eleitoral é desenhado justamente na medida do monopólio de
candidaturas pelos partidos. O arquétipo institucional do partido político, portanto, é o xis da
questão.

4. DEMOCRACIA E OS PARTIDOS POLÍTICOS, POR MOISEI OSTROGORSKI: É HORA DE UMA

RELEITURA DA ORGANIZAÇÃO INSTITUCIONAL DOS PARTIDOS?

Moisei Ostrogorski (Grodno, 1854 – São Petersburgo, 1921) foi um político,


historiador, parlamentar, jurista e sociólogo russo, considerado um dos pais da Sociologia
Política ao lado de Max Weber e Robert Michels, e a autor de A democracia e os partidos
30
http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_184_ing.pdf
políticos, obra publicada em Nova Iorque, em 1902, traduzida para o inglês a partir do
original em francês.
O livro foi editado em francês algumas vezes no século XX e traduzido para o catalão
em 1997, versão a partir da qual posteriormente foi editada, em tradução para o espanhol de
2008, uma publicação da conclusão agregada a uma edição de 1912. Em síntese, as
referências ao original são exíguas, extraindo-se as ideias aqui expostas da resenha de Jaime
Ortega Reyna, publicada pela Universidad Autónoma Metropolitana do México.31
O centro das ideias de Ostrogorski é o que ele denomina de paradoxo democrático:
como o partido político, instituição pensada para ser mecanismo de promoção da democracia,
finda por se tornar uma estrutura puramente formal, contraproducente e antidemocrática?
Segundo o autor russo, isso ocorre porque o indivíduo, que teria de eleger um candidato
a governante (o que já é por si só um tanto complexo), acaba tendo de também fazer sua parte
na eleição dos dirigentes do partido, método irracional que faz com que a organização
intrapartidária por vezes se assemelhe a uma religião. Para Ostrogorski, não prevalece dentro
do partido uma razão democrática, mas o uso de sentimentos para angariar adesões.
Disso decorreriam essencialmente dois problemas, quais sejam, (a) a profusão de uma
democracia formal levada a cabo por políticos profissionais e (b) o baixo nível cultural e
educacional dos partidos políticos, problemas estes que, uma vez conjugados, integrariam um
ciclo vicioso de servilismo e mediocridade dentro dos partidos.
Ostrogorski não advoga pelo fim da figura do político, mas identifica que estruturas
partidárias, às quais é indispensável o sistema de eleições internas, são solos férteis para o
surgimento de políticos profissionais que protagonizam e dão sentido à organização, ao invés
de surgirem como seus auxiliares. No Brasil, onde partido tem “dono”, não raro se vê uma
agremiação partidária minguar após a saída de seu filiado de maior projeção, o que dá indícios
de que as suspeitas de Ostrogorski eram acertadas.
Esta também é a percepção de Robert Michels, em Sociologia dos partidos políticos, ao
se referir ao caráter dominador dos chefes do partido32 e denunciar, na mesma linha, as
oligarquias que dominam os partidos políticos. A propósito, há quem vá além: Gonzalo
Fernandez de la Mora,33 ao sintetizar o pensamento de Joseph Schumpeter, afirma que na

31
ORTEGA REYNA, Jaime. Reseña de “La democracia y los partidos políticos” de Moisei Ostrogorski. Polis:
Investigación y Análisis Sociopolítico y Psicosocial, vol. 6, núm. 1, 2010, pp. 143-148. Universidad Autónoma
Metropolitana Unidad Iztapalapa. Distrito Federal, México, 2010.
32
MICHELS, Robert. Sociologia dos partidos políticos. Trad. de Arthur Chaudon. Editora Universidade de
Brasília: Brasília, 1982, p. 61 e ss.
33
Em que pese tenha sido notório defensor do elitismo político, as ideias de Gonzalo Fernandez de la Mora
servem ao presente trabalho porque (i) curiosamente democratizam o debate, permitindo o viés analítico de
democracia real, separada do ideal democrático intangível, a soberania popular seria exercida
optando entre oligarquias, e que os partidos aspirantes ao poder seriam naturalmente
oligárquicos, rechaçando a ideia de que seriam apenas grupos de pessoas coincidentes em
uma ideologia e em prol do bem-estar público.34 E arrebata: “Para Schumpeter, la
democracia factible se reduce, en suma, a la oportunidad que las oligarquías dan a los
gobernados para que periódicamente se pronuncien sobre una opción, generalmente muy
limitada, y precedida de una gran operación manufacturera de la opinión pública. Esto es lo
que queda de la utopía cuando pasa por la prueba de la realidad; es la democracia
residual”.35
É certo que a democracia enceta um sem-número de problemas, mas nos parece que o
surgimento de oligarquias encrustadas no poder se dá em virtude do sistema para obtenção e
exercício deste poder – o sistema eleitoral partidário como atualmente concebido – e não pelo
fato de este poder emanar do povo e por ele dever ser exercido, conteúdo mínimo da
democracia.
Além de condenar o político profissional produto destas oligarquias políticas, o autor
russo também critica o baixo nível cultural dos partidos políticos, que não se dedicam a
estimular verdadeira educação política, limitando-se a demandar dos eleitores um “cheque em
branco” para impulsionar adiante seus interesses políticos, sem que qualquer envolvimento
posterior seja necessário. Para Ostrogorski, “todas las lecciones que reciben los ciudadanos
son lecciones de cobardía, la primera, que enseña que no hay salvación para un ciudadano
fuera de un partido”.36
Esse panorama conduziria a um afrouxamento das ideologias e convicções, dos
programas partidários e da moral, tornando os partidos políticos estruturas burocráticas,

ideologia liberal; e porque (ii) a obra tem compromisso metodológico de manter neutralidade. A esse propósito:
“Contrariamente a lo que prevalece, la valoración del Estado no puede efectuarse a priori, comparando su
realidad con un clisé previamente elaborado, sea tomista o fichteano; se efectúa a posteriori, en virtud de sus
frutos o, lo que es lo mismo, de su eficacia real. (…) Y este planteamiento es válido para las instituciones
políticas concretas. Los partidos serán buenos allí donde funcionen aceptablemente, y serán malos en la
hipótesis contraria. Y ello no dependerá tanto de la institución, que en si misma es neutra, cuanto de la calidad
de las élites y de las condiciones estructurales de la sociedad. Nada, pus, más lejos de mi ánimo que hacer la
apología o la diatriba de los partidos políticos, dos tareas harto cultivadas. Se trata simplemente de describirlos
en acto, de articularlos en el contexto de la cosa pública, de establecer las correlaciones que existen entre las
diversas notas estasiológicas y constitucionales, de analizar los condicionamientos sociales para el
funcionamiento de la institución y de contrastar las teorías justificativas con los nudos hechos.” (La
Partitocracia. Madrid: Instituto de Estudios Politicos, 1977, p. 25-26).
34
SCHUMPETER, Joseph. Capitalism, Socialism and Democracy. 4. ed. Londres, 1959, p. 12, apud
FERNANDEZ DE LA MORA, Gonzalo. La Partitocracia. Madrid: Instituto de Estudios Politicos, 1977, p. 43-
49.
35
FERNANDEZ DE LA MORA, Gonzalo. La Partitocracia. Madrid: Instituto de Estudios Politicos, 1977, p.
49-50.
36
ORTEGA REYNA, op. cit., p. 146.
contraproducentes e antidemocráticas, cujo resultado prático seria a tentativa de perpetuação
no poder.37 A consequência disso, em poucas palavras, é que no partido político germinaria a
corrupção.
Para combater os males endêmicos dos partidos políticos, Ostrogorski propõe medidas
simples, começando com a eliminação da estrutura rígida e burocrática dos partidos, a ser
substituída por uma concepção de partido político como agrupamento de pessoas em torno de
bandeiras, teses ou ideias específicas.38 Ainda, a releitura de partidos políticos feita por
Ostrogorski sugere que eles tivessem duração limitada e metas, de modo a serem
automaticamente extintos após o seu atingimento, o que impediria que os partidos se
enrijecessem e dessem azo a cacicados políticos.
Com isso, a militância seria múltipla, e não apenas aderente a uma ou outra sigla, o que
impediria o surgimento de currais eleitorais para políticos profissionais, que costumam tratar
de todos os temas do bem comum sem serem especialistas em qualquer um deles. A nova
tônica, portanto, seria de resolução de problemas em contraposição ao mero acesso ao poder.
A ideia de partido político proposta por Ostrogorski lembra um pouco o conceito de
grupos de pressão, que são “organizações ou entidades que procuram influenciar no processo
de decisão dos órgãos estatais, visando ao atendimento de seus objetivos específicos”.39
Como ensina Badeni, esses grupos – de interesse ou de pressão – se diferenciam dos partidos
porque “carecen de una organización y un programa estables, respondiendo a intereses
particulares y esencialmente limitados en el tiempo”.40
Os grupos de pressão podem ser permanentes – como sindicatos e associações – e
também podem ser profissionais, ideológicos ou religiosos, e os destinatários de suas ações
são os órgãos estatais do executivo, legislativo e judiciário. Isso não obstante, estes grupos
também se relacionam com os partidos em si, como comenta Gastão Alves de Toledo: “Os
partidos políticos não estão imunes à ação dos grupos. Ao contrário, podem constituir-se em
importante veículo institucional dos mesmos, já que participam diretamente do processo

37
Nas palavras de Daron Acemoglu e James A. Robinson, “[p]ower is valuable in regimes with extractive
political institutions, because power is unchecked and brings economic riches”. (Why nations fail: the origins of
power, prosperity and poverty. New York: Crown Business, 2012. p. 343).
38
Motivado pelas mesmas impressões oriundas de fenômenos atuais, Manuel Cassels afirma que os “novos
movimentos sociais dispõem de autonomia de organização, debate e mobilização. As entidades burocratizadas,
com uma cúpula profissional que negocie em nome dos filiados, estão ameaçadas quanto aos partidos políticos”.
Entrevista concedida ao jornal “O Estado de São Paulo” (Estadão), de 09 de julho de 2013, disponível em:
http://politica.estadao.com.br/noticias/eleicoes,ha-uma-crise-de-legitimidade-do-atual-sistema-politico-diz-
castells-imp-,1051538. Acessado em 28/04/2018.
39
TOLEDO, Gastão Alves de. Grupos de Pressão no Brasil. Curso Modelo Político Brasileiro, Volume VII.
Instituto dos Advogados de São Paulo: Brasília – DF, 1985, p. 3.
40
BADENI, op. cit., p. 1.026.
político. Os grupos de pressão, contudo, com eles não se confundem: os partidos visam
alcançar o poder para exercê-lo; aqueles se propõem a influenciar os detentores de poder
estatal para obtenção de medidas que lhes favoreçam os interesses”.41
Ora, se o partido é “canal oficial por que se exprime a opinião pública”,42 é possível
dizer que o leque de grupos de pressão atuantes no cenário político é o canal extraoficial de
expressão da opinião pública. Ainda, se há uma nítida esgarçadura entre os partidos políticos
e a população, decorrente da frouxidão ideológica e da corrupção sistêmica, também é
possível dizer que atualmente os grupos de interesse no Brasil têm maior legitimidade política
que os partidos.43
Basta pensar em exemplos recentes para chegar a essa conclusão. Independentemente
do matiz ideológico subjacente, praticamente toda movimentação social que pleiteia qualquer
tipo de política pública é levada a cabo por entidades apartidárias: a legalização das drogas, o
casamento homoafetivo, a legalização do aborto, a política de controle de armas etc. São
temas usualmente discutidos em tribunais, não raro com o implemento de mudanças, sem que
o parlamento ou o executivo, principal campo de atuação dos partidos políticos, se envolvam.
Aliás, mesmo dentro do parlamento há ação mais contundente de grupos de pressão do que
dos partidos, como exemplificam as leis de iniciativa popular da Ficha Limpa e do combate à
compra de votos, já mencionadas acima.
O problema é que política no Brasil se faz através dos partidos, até mesmo por força do
art. 14 da Constituição da República. Embora pareça sedutora a ideia de candidaturas avulsas
– e é mesmo –,44 é importante que esta discussão abarque uma releitura crítica do desenho
institucional dos partidos políticos, tal como propõe Ostrogorski.

41
TOLEDO, op. cit., p. 69.
42
FERREIRA FILHO, op. cit., p. 146.
43
Sobre a representatividade dos grupos de pressão, vale a lição de Manoel Gonçalves Ferreira Filho: “A
necessidade de uma representação dos interesses particulares (sem os riscos e a clandestinidade dos grupos de
pressão) ao lado de uma representação popular em vista do bem comum tem inspirado ora a criação de câmaras
econômicas ou profissionais, de caráter corporativo ou não, ora a previsão de lugares no parlamento para grupos
profissionais. (...) O estabelecimento de uma câmara de representação de interesses é ideia que encontrou
acolhida, sobretudo depois da difusão do corporativismo. O fato de que essa ideia tenha sido encampada pelo
fascismo, veio, todavia, pô-la de parte, após a Segunda Guerra Mundial. Antes fora ela posta em prática, fora do
fascismo, por exemplo, na Áustria, em 1934, quando se estabeleceu câmara destinada a representar as várias
profissões e seus interesses. Depois de 1945 a Constituição iugoslava de 1953, que não pode ser acoimada de
fascista, previu, ao lado do Conselho Federal, um Conselho dos Produtores, que reúne representantes eleitos da
indústria, da agricultura e do artesanato, proporcionalmente à importância do grupo na produção total do país.
Essa experiência é indubitavelmente interessante mas tem de ser devidamente apreciada, levando-se em conta a
diferença de regime e de estrutura política.” (Curso de direito constitucional. 38. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p.
148-149).
44
Ao que parece, Ingo Wolfgang Sarlet deixa abertura para as candidaturas avulsas: “Ao longo da trajetória
evolutiva do constitucionalismo democrático (embora existam partidos em que não exista democracia), a
democracia passou a ser cada vez mais e preponderantemente uma democracia partidária, especialmente (e
logicamente) no contexto da assim chamada democracia representativa, sem prejuízo de eventual
É extremo propor a extinção dos partidos – talvez até desnecessário. Por outro lado, os
grupos de pressão não possuem legitimidade constitucional para veicular oficialmente a
vontade popular, e tampouco esse é seu papel.45 Uma releitura possível do desenho
institucional brasileiro de partidos políticos, na linha do que propõe Ostrogorski, seria
aproximá-los da ideia de grupos de pressão. Grupos de pressão institucionalizados, com metas
específicas e tempo determinado, com a legitimidade política e eleitoral para registrar
candidatos proporcionais e majoritários, mas sem a estrutura partidária que faz surgir
oligarquias e fisiologismo.
Acima de tudo, os problemas que surgem do sistema partidário revelam que é
necessário refletir criticamente sobre a forma atual da democracia representativa e sobre como
podemos aumentar de maneira substancial, não meramente formal, o exercício democrático
do poder político. Bruce Ackerman e James S. Fishkin, em ensaio provocativo sobre
cidadania, sugerem seja criado um feriado nacional denominado Deliberation Day, que assim
descrevem: “Deliberation Day – a new national holiday. It will be held one week before
major national elections. Registered voters will be called together in neighborhood meeting
places, in small groups of 15, and larger groups of 500, to discuss the central issues raised by
the campaign. Each deliberator will be paid $150 for the day's work of citizenship, on
condition that he or she shows up at the polls the next week. All other work, except the most
essential, will be prohibited by law”.46
Em síntese, eleitores seriam convocados a participar de grupos de discussão sobre os
principais tópicos da campanha política, na semana anterior às eleições gerais, e seriam
modicamente premiados se comparecessem às urnas no dia do pleito. Trata-se de iniciativa
que os próprios autores consideram utópica, mas que enfatiza a necessidade de reflexão sobre
os modelos de representatividade democrática, mesmo porque a democracia liberal é
relativamente recente na história do mundo, muito mais um trabalho pendente de conclusão
do que um arranjo institucional estável, mesmo em países de maior tradição e êxito.47

reconhecimento de candidaturas tipo avulso”. SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme;
MITIDIERO, Daniel. Curso de direito constitucional. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 744.
45
Fagner dos Santos Carvalho apresenta um exemplo de grupos interesse e pressão com atuação exitosa durante
a Constituinte (O papel dos grupos de interesse e pressão na formatação e fortalecimento da democracia
brasileira: o caso do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (DIAP) durante o processo da
Constituinte (1987/1988) brasileira. Aurora, ano III, número 5, dezembro de 2009, p. 32-39. Disponível em:
http://www.marilia.unesp.br/Home/RevistasEletronicas/Aurora/CARVALHO.pdf. Acessado em 20/04/2018).
46
ACKERMAN, Bruce; FISHKIN, James S. Deliberation Day. The Journal of Political Philosophy, Volume 10,
Number 2, 2002. Oxford: Blackwell Publishers, 2002, pp. 129-152.
47
ACKERMAN, Bruce; FISHKIN, James S. Deliberation Day. The Journal of Political Philosophy, Volume 10,
Number 2, 2002. Oxford: Blackwell Publishers, 2002, pp. 131.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Apesar de centenárias, as críticas feitas por Moisei Ostrogorski são perturbadoramente


atuais: nada mudou ao longo de um dos mais agitados séculos da história? Ao que parece, o
esvaziamento ideológico dos partidos e a falta de representatividade da classe política, no
Brasil do século XXI, são problemas atuais que já incomodavam a Europa do início do século
XX.48
A discussão sobre candidaturas avulsas é relevante justamente porque reacende, nos
tribunais e no seio da sociedade, o debate sobre a forma de organização dos partidos políticos,
algo que está no cerne dos escândalos de corrupção e da distribuição e controle do poder no
Brasil. Talvez seja esse o momento ideal para romper o status quo e permitir que novos
players do jogo político, não ligados a partidos, possam dar voz aos agrupamentos de pessoas
em torno de ideias de que já falava Ostrogorski.49
Uma das possíveis formas de atingir esse desiderato é redesenhar a estrutura
institucional dos partidos políticos no Brasil, seja para torná-los mais democráticos e
funcionais, seja para permitir candidaturas avulsas.
Existem, contudo, dois desafios. O primeiro deles – e certamente o mais difícil – é a
vontade política para empreender mudanças contrárias aos interesses das oligarquias que
dominam o poder. Como anota Mônica Hermann Caggiano, é comum que surjam
movimentos reformadores logo após os períodos eleitorais,50 sem que até o momento

48
A perda do controle de algumas das atividades desempenhadas pelo modelo tradicional dos partidos políticos e
o seu esvaziamento ideológico são, precisamente, duas das principais características apontadas por Ronald
Alfaro Redondo como importantes para as mudanças ocorridas nessas instituições nos últimos anos e
responsáveis por seu vertiginoso declínio. O autor vale-se do termo catch-all-parties para descrever, com base
nas lições de Kirchhmeir, o que tem sido costumeiramente presenciado na prática: a competição eleitoral e a
busca por votos, a fim de garantir vitórias eleitorais imediatas, contribuem para que os partidos políticos relaxem
sua bagagem ideológica e acabem se transformando em partidos “pega-tudo” (catch-all-parties). (Are political
parties in decline?: recent contributions in the field. Revista Derecho electoral, n. 18, julio-deciember, 2014.
Disponível em: http://www.tse.go.cr/revista/art/18/alfaro_redondo.pdf. Acessado em 25/04/2018.
49
Em termos similares, isso é o que defende Manuel Cassels, quando questionado a respeito dos recentes
protestos populares ocorridos no Brasil: “Eles rechaçam a gestão dos governos por entender - provavelmente
com razão - que a gestão dos políticos é em beneficio próprio, não para os cidadãos. Eles criticam a corrupção, a
arrogância, a falta de transparência e de participação. A essa rejeição cabe às instituições responder com diálogo
e propostas de mudança. Não se trata de negociar com uma cúpula, mas de responder às demandas do
movimento. O que é seguro é que a democracia atual deixou de ser democrática, segundo a maioria dos cidadãos
em todo o mundo, e que sua recuperação terá de ocorrer a partir dos movimentos autônomos surgidos na rede. O
maior perigo para a democracia é a atual classe política”. Entrevista concedida ao jornal “O Estado de São
Paulo” (Estadão), de 09 de julho de 2013, disponível em: http://politica.estadao.com.br/noticias/eleicoes,ha-uma-
crise-de-legitimidade-do-atual-sistema-politico-diz-castells-imp-,1051538. Acessado em 28/04/2018.
50
“Aliás, a perspectiva de reforma apresenta-se, de modo geral, como efeito colateral imediato dos pleitos
eleitorais. Finalizados os resultados eleitorais, reabre-se a temporada dos debates acerca da reforma política,
mobilizando a imprensa, a mídia e as redes sociais, realocando propostas de remodelação do processo eletivo
que fora aplicado para a designação dos representantes do povo ou daquele, ou daquela, que passou a ocupar o
qualquer deles tenha avançado muito “na perspectiva de renovar e aprimorar o processo
eleitoral, com vistas a assegurar à cidadania um processo de participação por via do voto que
lhe garanta uma interveniência mais efetiva”.51
O segundo desafio, contudo, particularmente às candidaturas avulsas, esbarra no art. 14,
§ 3o, inciso V, da Constituição da República, que determina a obrigatoriedade da filiação
partidária para que alguém se registre candidato. Em nosso sentir, trata-se de óbice
intransponível ao reconhecimento da possibilidade de candidaturas avulsas no Brasil, salvo se
alterada a Constituição por meio de emenda – ou, ainda, se alterada a Constituição por meio
de decisão do Supremo Tribunal Federal, algo que não raro se vê nestes estranhos tempos em
que vive a democracia brasileira.

6. REFERÊNCIAS

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and poverty. New York: Crown Business, 2012.

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posto de maior exponencial político no sistema presidencial. Não há exceções.” (CAGGIANO, Mônica Herman.
Distúrbios da democracia. Representação política e suas patologias. A Reforma Eleitoral no Brasil atende a essas
funções? In: CARVALHO NETO, Tarcisio Vieira de; FERREIRA, Telson Luís Cavalcante (coord.). Direito
Eleitoral: aspectos materiais e processuais. São Paulo: Migalhas, 2016, p. 89.
51
CAGGIANO, Mônica Herman. Distúrbios da democracia. Representação política e suas patologias. A
Reforma Eleitoral no Brasil atende a essas funções? In: CARVALHO NETO, Tarcisio Vieira de; FERREIRA,
Telson Luís Cavalcante (coord.). Direito Eleitoral: aspectos materiais e processuais. São Paulo: Migalhas, 2016,
p. 90.
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brasileira. Aurora, ano III, número 5, dezembro de 2009, p. 32-39. Disponível em:
http://www.marilia.unesp.br/Home/RevistasEletronicas/Aurora/CARVALHO.pdf.
Acessado em 20/04/2018.

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