Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Resumo
Em 2008, Satoshi Nakamoto, pseudônimo de uma pessoa desconhecida, lançou o “Bitcoin”, uma criptomoeda
descentralizada, com o objetivo de contornar qualquer banco ou governo e retornar a um sistema monetário mais
“austero” e controlado. Após o advento do Bitcoin, várias outras criptomoedas foram criadas, suscitando um debate
sobre a capacidade desses instrumentos substituírem o que atualmente usamos como “moeda”. Após 10 anos de sua
criação, fica claro que o Bitcoin não atingiu o seu principal objetivo, mas levantou discussões importantes no âmbito
das Autoridades Monetárias. Assim sendo, esse trabalho tem dois grandes objetivos. O primeiro é mostrar que, sob
uma perspectiva teórica pós-keynesiana, o Bitcoin não fará frente às moedas fiduciárias, pois está muito mais
próximo de ser um ativo especulativo altamente volátil do que uma moeda capaz de assumir as funções primordiais
em uma economia capitalista. O segundo objetivo é apontar os desdobramentos dessa discussão no âmbito das
Autoridades Monetárias, com destaque para as propostas das criptomoedas estatais.
Abstract
Cryptocurrencies and the new challenges faced by the monetary system: a post-Keynesian perspective
In 2008, Satoshi Nakamoto, the pseudonym of an unknown person, launched ‘Bitcoin’, a decentralized
cryptocurrency, aiming at circumventing banks or governments and returning to a more ‘austere’ and quantity-
controlled monetary system. After Bitcoin, several other cryptocurrencies were created, and a debate on whether
these instruments could ever replace what we currently use as ‘money’ surfaced. Ten years since its creation, it is
clear that Bitcoin did not reach its main goal but raised important discussions within the framework of Monetary
Authorities. Therefore, this work has two main objectives. The first is to show that, from a post-Keynesian
theoretical perspective, Bitcoin cannot stand up to fiduciary currencies because it is much closer to being a highly
volatile speculative asset than a currency capable of assuming the prime functions in a capitalist economy. The
second objective is to point out the consequences of this discussion within the framework of the monetary
authorities, with emphasis on the proposals of central bank cryptocurrencies.
*
Artigo recebido em 20 de julho de 2019 e aprovado em 21 de janeiro de 2020.
**
Professora Assistente do Departamento de Economia, História e Ciência Política, St. Francis College, Nova York, EUA.
E-mail: obulliomattos@sfc.edu. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8797-071X.
***
Professor das Faculdades de Campinas (Facamp), Campinas, SP, Brasil. E-mail: saulo.ab7@gmail.com. ORCID:
https://orcid.org/0000-0002-5914-4311.
****
Mestranda em Teoria Econômica pelo Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (IE. Unicamp),
Campinas, SP, Brasil. E-mail: laisaraujoesilva@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5049-9514.
1 A hierarquia da moeda
A questão “o que é moeda” intriga os estudiosos em Economia há séculos. Foi (e
continua sendo) em muitos dos debates o principal ponto de divergência entre escolas de
(1) Chick (2010, p. 194), mencionando Shackle, coloca que há uma diferença entre a função de meio de troca e de meio
de pagamento. O pagamento é aquilo que é considerado como final, quando nenhum “contato adicional entre as partes é requerido
ou esperado”. Ou seja, o contrato foi finalizado, a dívida foi paga, e isso se dá naquilo que é considerado moeda. Para a troca,
podem ser aceitos outros ativos, como por exemplo um crédito, que adia o pagamento em si, mas não o finaliza.
(2) Wray (1998) apresenta uma abordagem cartalista da moeda, também colocada por Keynes (1971). A moeda é criatura
do Estado porque ele obriga o pagamento de tributos com a moeda que ele mesmo emite. Como todos os agentes “devem” ao
Estado, a moeda emitida é aceita sem contestação.
(3) As esferas industrial e financeira são colocadas por Keynes no Treatise on Money. Na Teoria Geral, essas esferas
tornam-se os “motivos para demandar moeda”. Na esfera industrial, encontra-se o motivo transação: a demanda por moeda que
depende diretamente da renda para realização de transações correntes, hoje ou no futuro. Na esfera financeira, estão os motivos
precaução, no qual a moeda é retida para algum evento inesperado e está relacionado com a função da moeda como um porto-
seguro; e o motivo especulação, no qual a retenção de moeda se dá para ganhos especulativos no mercado de títulos. Aqui, os
agentes podem demandar títulos se esperam que seu preço suba no futuro e a taxa de juros caia (Keynes chamou estes agentes de
altistas ou touros) ou demandar moeda, caso esperem que o preço dos títulos caiará e sua taxa subirá (baixistas ou ursos). A
política monetária age neste último motivo, pois o BC tem a capacidade de alterar a quantidade de moeda e influenciar as
expectativas dos agentes quanto à taxa de juros. A taxa de juros é, assim, um fenômeno monetário e é determinada pela preferência
dos agentes em como manterão suas reservas monetárias (moeda ou títulos) e pela oferta de moeda do BC. É importante destacar
que Keynes está se referindo à taxa de juros de longo prazo.
(4) Importante colocar que essa taxa de juros é aquela de longo prazo, que influencia as decisões de investimento.
(5) De acordo com Kaldor (1939 apud Aglietta, 2004, p. 44), especulação é “a compra (ou venda) de mercadorias tendo
em vista uma revenda (ou recompra) em data posterior, onde o móbil de tal ação é a antecipação de uma mudança dos preços em
vigor, e não uma vantagem resultante de seu uso, ou uma transformação ou transferência de um mercado para o outro.”
(6) Elaboração própria com base nas aulas do Professor Perry Mehrling, da Universidade de Columbia, disponíveis no
site Coursera (Economics of Money & Banking, Part I, 2013).
Figura 1
A hierarquia de instrumentos financeiros
Segundo Guttmann (2003), a moeda tem uma “natureza dual”: é um bem público, cujas
funções devem ser preservadas, mas também é criada privadamente com objetivos de lucro.
Belluzzo e Almeida (2002, p. 28) e Belluzzo (2012), na mesma linha, colocam que as funções
da moeda dependem do seu funcionamento como “fundamento das relações entre produtores
independentes” e, ao mesmo tempo, como o único critério de quantificação do enriquecimento
privado. Estes dois lados da moeda podem ser conflituosos, já que a busca incessante pelo
enriquecimento individual pode levar à ruptura do caráter público. O Banco Central tem, assim,
o papel de administrar a “norma” monetária, conduzindo os dois lados da moeda de forma
equilibrada e organizando os espaços nos quais os agentes buscam o enriquecimento, a fim de
garantir a soberania da moeda estatal: “O Banco Central assume a função de coordenador das
(7) Segundo Aglietta (2004), os mercados são mais líquidos quanto maiores as suas: i) amplitude – deve haver um grande
volume de títulos e de agentes com objetivos diversificados; ii) profundidade – preços devem variar pouco com a operação
marginal dos agentes e iii) resiliência – que tem a ver com a velocidade com que o preço se ajusta quando o mercado é atingido
por um choque exógeno. A existência de câmaras de compensação garante que os mercados serão mais líquidos.
(8) Proof of work refere-se ao processo (de cálculo) requerido ao servidor para que uma transação seja validada. Esse
mecanismo protege o sistema de ataques ou abusos como spam (Lee; Chuen, 2017).
(9) Conforme Peters et al. (2015), num ambiente peer-to-peer, a validação das transações deve ser aprovada por mais de
50% dos computadores conectados ao sistema.
Figura 2
Funcionamento básico do Blockchain
(10) Conforme Forbes (2017), o Bitcoin ganhou alguma liquidez (e atenção) “após a página Silkroad, na deep weeb,
vender mercadorias ilícitas e somente aceitar Bitcoins nas transações”.
(11) O Gráfico 1, sobre o volume de transações, considera somente a fase recente de valorização do Bitcoin e das demais
criptomoedas, entre 2015 e 2018.
(12) Vale ressaltar o uso do Bitcoin e outras criptomoedas em situações de crises financeiras extremas. Por exemplo, a
iminência de uma corrida bancária no Chipre em 2011 – gerada pelo agravamento da crise na zona do euro – levou muitos
depositários a converter seu dinheiro em Bitcoins e outras criptomoedas (Lee; Chuen, 2015).
Gráfico 1
Volume de transações diárias em Bitcoins (2011-2019)
600.000
500.000
400.000
300.000
200.000
100.000
0
01/11 01/12 01/13 01/14 01/15 01/16 01/17 01/18 01/19
Gráfico 2
Cotação BTC/US$ e variação semanal (01/2011 a 01/2019)
$25.000 120%
100%
$20.000 80%
60%
$15.000 40%
Variação semanal
US$/BTC
20%
$10.000 0%
-20%
$5.000 -40%
-60%
$0 -80%
01/11 01/12 01/13 01/14 01/15 01/16 01/17 01/18 01/19
BTC Variação semanal
Gráfico 3
Principais pools de mineração de Bitcoin (28/05/2019 a 31/05/2019)
(13) Vale ressaltar que o alto custo energético envolvido na mineração pode ser em parte compensando financeiramente
pelas emissões de novas criptomoedas.
(14) Conforme o Portal do Bitcoin (2018), a Bitmain chegou a controlar 51% do poder de processamento da rede Bitcoin.
A empresa chinesa é avaliada (2018) em US$ 8,8 bilhões e deve realizar um IPO em breve.
(15) Quantitative easing refere-se a uma política de compra de títulos públicos e privados (ou compra de ativos) pelo
Banco Central (Borio; Zabai, 2016).
(16) Conforme Borio e Zabai (2016, p. 35), o instrumento conhecido como helicopter money representa “an increase in
the nominal purchasing power of economic agents in the form of a permanent addition to their money balances”.
Referências bibliográficas
AGLIETTA, M. Macroeconomia financeira: mercado financeiro, crescimento e ciclos. São
Paulo: Edições Loyola, 2004. v. 1.
BACK, A. A partial hash collision based postage scheme. s.l.: s.n. 1997. Disponível em:
http://www.hashcash.org/papers/announce.txt. Acesso em: 25 jan. 2015.
BECH, Morten L.; GARRATT, Rodney. Central bank cryptocurrencies. BIS Quarterly Review,
Sept. 2017.
BELL, Stephanie. The role of the state and the hierarchy of money. Cambridge Journal of
Economics, 25, p. 149-163, 2001.
BELLUZZO, L. G. M. O capital e suas metamorfoses. São Paulo: Editora Unesp. 2012.
BELLUZZO, L. G. M.; ALMEIDA, J. G. Depois da queda: a economia brasileira da crise da
dívida aos impasses do Real. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
BIS. The role of central bank money in payment systems. Committee on Payment and
Settlement Systems, Aug. 2003.
BLOOMBERG. Bitcoin bloodbath nears dot-com levels as many tokens go to zero. 2018.
Disponível em: https://www.bloomberg.com/news/articles/2018-06-30/Bitcoin-bloodbath-
nears-dot-com-levels-as-many-tokens-go-to-zero. Acesso em: 4 jul. 2018.
BORIO, C.; ZABAI, A. Unconventional monetary policies: a re-appraisal. BIS Working
Papers, n. 570, Jul. 2016.
CARVALHO, F. J. C. Moeda, produção e acumulação: uma perspectiva pós-keynesiana. In:
SILVA, M. L. F. (Org.). Moeda e produção: teorias comparadas. Brasília: Editora UNB, 1992.
CHICK, V. Sobre moeda, método e Keynes: ensaios escolhidos. Campinas, SP: Editora da
Unicamp, 2010.
CHUEN, David Lee Kuo (Ed.). Handbook of digital currency: Bitcoin, innovation, financial
instruments, and big data. Academic Press, 2015.
DAI, W. b-money, s.l.: s.n. 1998.
FINANCIAL TIMES. Santander launches blockchain-based foreign exchange service. 2018a.
Disponível em: https://www.ft.com/content/1e47733e-3e2a-11e8-b9f9-de94fa33a81e. Acesso
em: 4 jul. 2018.
FINANCIAL TIMES. JPMorgan weighs spin-off for blockchain Project. Disponível em:
https://www.ft.com/content/4ca72d20-2e10-11e8-9b4b-bc4b9f08f381. 2018b. Acesso em: 5
jul. 2018.