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FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

DEPARTAMENTO DE DIREITO COMERCIAL

TESE DE LÁUREA

INITIAL COIN OFFERINGS E A REGULAMENTAÇÃO DOS


CRIPTOATIVOS NO DIREITO BRASILEIRO

Orientador: Prof. José Marcelo Martins Proença

CARLOS ALBERTO KÜMPEL IMBRIANI

SÃO PAULO, 2018


SUMÁRIO

I. INTRODUÇÃO
II. CRIPTOATIVOS: NOÇÕES GERAIS E PANORAMA HISTÓRICO
II.1 Criptoativos: o Blockchain e as Criptomoedas
II.2 Os Criptoativos e as Initial Coin Offerings – Histórico e
considerações gerais à luz do direito positivo brasileiro
II.3 Os criptoativos e o conceito de moeda: a evolução da prova de
confiança e o poder liberatório da moeda
II.4 O conceito de ativo, a definição terminológica “criptoativo” e a
análise crítica da hermenêutica aplicável ao conceito de moeda
III. NOÇÕES GERAIS DA REGULAÇÃO APLICÁVEL AO SISTEMA FINANCEIRO
NACIONAL
III.1 Introdução
III.2 Sistema Financeiro Nacional: panorama regulatório aplicável aos
criptoativos
III.3 A classificação das atividades privativas de instituições financeiras
e sua correlação com a circulação de criptoativos
IV. ANÁLISE DO IMPACTO REGULATÓRIO INTERNACIONAL SOBRE OS
CRIPTOATIVOS
V. AS INITIAL COIN OFFERINGS
V.1Conceito
V.2Preocupações do mercado de capitais coadunadas aos riscos encerrados
pelos criptoativos
V.2.1 O que é um valor mobiliário?
V.2.2 O Conceito de valor mobiliário no direito brasileiro
V.2.3 Conceito de Oferta Pública no Brasil
V.2.4 Implicações regulatórias do enquadramento de tokens no
conceito de valor mobiliário
V.2.4.1Regime de registro de oferta pública
V.2.4.2Restrições à negociação
V.2.5 A regulamentação dos criptoativos e o aparente conflito
de competência entre o Banco Central do Brasil e a
Comissão de Valores Mobiliários
V.2.6 Criptomoedas e os tokens: natureza jurídica

VI. CONCLUSÃO

VII. ÍNDICE BIBLIOGRÁFICO


I. Introdução

O surgimento das chamadas “criptomoedas” despertou interesse de diversas áreas


de estudo, e, como não poderia ser diferente diante do surgimento de um novo instrumento
do comércio, o Direito Comercial passou a se deparar com os primeiros dilemas relativos
à conceituação desses instrumentos.

Porquanto prescinda de regramento que seja diretamente aplicável, a presente tese


procurará analisar esses instrumentos com base no ordenamento brasileiro vigente, e
demonstrar que o regramento disponível atualmente já dispõe de ferramentas adequadas
para propiciar o desenvolvimento de soluções com bases nesses ativos sem que para isso
se ponha em grandes riscos a higidez do sistema financeiro nacional.

O primeiro ponto a permitir a adequada aplicação do direito nesses casos é afastar


a comparabilidade desses instrumentos com qualquer tipo de “moeda”, uma vez que, para
fins do direito brasileiro, uma criptomoeda não é moeda por não possuir poder liberatório.
Para tanto, a presente explorará o surgimento da moeda, desde o lastro com valor em
recursos naturais até a emissão de moeda escritural, fruto direto da atividade bancária, de
forma que o modo como o mercado (e, por conseguinte, o comércio) recepcionou esses
produtos não está associada à ideia de moeda.

A prova de confiança monetária que historicamente derivou do valor intrínseco de


bens escassos, até ser substituída pela moeda fiduciária, que hoje em dia serve como padrão
de valor: caractere incompatível com um instrumento cujo valor oscila no tempo. A
presente tese, nesse sentido, defenderá que a terminologia “criptoativo” é mais adequada
para tratar de seu objeto.

Daí advém a primeira problemática em que se concentrará este trabalho: a oferta


pública de um ativo que pode se valorizar no tempo, ou, ainda, uma oferta pública de
ativos com a intenção de se obter ou viabilizar esforço empresarial, com expectativa de
retorno, poderia caracterizá-los como valores mobiliários para fins da legislação
brasileira?

O comportamento dos criptoativos no comércio tem muitos pontos de contato


com os Contratos de Investimento Coletivo, que ensejaram até mesmo a revisão do
modelo de conceituação de valor mobiliário no Brasil e no mundo. A presente tese
procurará explorar essa construção teórica para demonstrar que o arcabouço regulatório
brasileiro atualmente já é capaz de identificar criptoativos com características de valores
mobiliários.

Do ponto de vista de um a supervisão baseada em riscos, que vem sendo o pilar


pelos quais as agências fiscalizadoras do mercado financeiro balizam sua atuação, o atual
arcabouço regulatório brasileiro é sim capaz de orientar esse mercado de modo a não
afetar a higidez do sistema financeiro nacional, pelo menos em se considerando o risco
sistêmico.

Nesse ponto, vale ressaltar que a escolha por não realizar um trabalho somente
a respeito de criptoativos tem uma razão de ser. A inclusão do ICO na composição do
tema da pesquisa que enseja o presente se dá, principalmente, porque essa operação é
das mais complexas dentre as realizadas com criptomoedas: é dizer, um verdadeiro
stress test de uma figura ainda pouco estudada e muito menos disciplinada no Brasil e
no Mundo, que permite analisar seus desdobramentos de maneira mais dinâmica e ligada
aos princípios basilares do Direito Comercial.

O estudo do ICO permitirá compreender qual o comportamento fático dos


criptoativos no mercado financeiro, e, à partir disso – considerando que o Direito
Comercial, diante de seu aspecto consuetudinário, em muito se funda nos usos do
mercado para construir alicerces doutrinários e legislativos – garantirá que o presente
estudo possa balizar alternativas viáveis de regulamentação e aplicação segura, de um
ponto de vista jurídico, dessas novas tecnologias.
II. CRIPTOATIVOS: NOÇÕES GERAIS E PANORAMA HISTÓRICO

2.1. Criptoativos: o Blockchain e as criptomoedas

Um novo mercado surgiu quando do lançamento das primeiras moedas virtuais


baseadas em criptografias, apelidadas de “criptomoedas” -, fenômeno relativamente
recente quando se leva em conta a extensão e o tempo de que dispuseram para se
desenvolverem os demais produtos financeiros que permeiam o mercado contemporâneo.

A arquitetura tecnológica de criptografia por trás das criptomoedas é uma das


principais inovações em relação ao modelo de estruturação de produtos atual empregado
no mercado financeiro, e vem atraindo o interesse não apenas do setor privado, mas
também de autoridades governamentais.

Com base em chaves de criptografia (os hashes), as chamadas criptomoedas


se constroem sobre um sistema de contabilização e registro público aberto denominado
blockchain, que contém em si o histórico da totalidade das transações já realizadas na
rede de cada uma das criptomoedas, por tomar o exemplo mencionado.1 O principal
efeito prático do emprego do blockhain, como será explorado a seguir, é a desnecessidade
de um intermediário para a transmissão de valores através da internet.

O sistema de blockchain permite que todas as transações estejam catalogadas e


centralizadas em uma única “cadeia” de “blocos de transação”. Dessa forma, a cada
nova transação que é feita um novo bloco é adicionado à cadeia. A cada transação
ocorrida essa cadeia criptográfica aumenta, fazendo com que seja cada vez mais difícil a
alteração dos registros de cada transação anterior, procedimento que exigiria a alteração
de todos os blocos de transações que ocorreram após determinada transação.

No que diz respeito a sua implementação e indo no sentido contrário aos demais
mecanismos de controle e protocolos de segurança usualmente empregados no mercado
financeiro – foco de vultosos investimentos por parte das instituições que o integram –
, que visam geralmente a proteger a segurança de seus ativos e os de seus clientes,
encontram no blockchain uma solução para proteger ambos com o mesmo grau de

1
Para fins deste título, utilizar-se-ão exemplos a respeito da tecnologia do blockchain no que diz respeito às
criptomoedas, embora sua aplicação vá muito além da circulação de Criptoativos, podendo ser aplicado,
como se verá, até mesmo pelos bancos centrais para otimização da fiscalização do mercado.
segurança, embora a estrutura de precificação dos investimentos em blockchain ainda
não esteja clara para alguns atuantes do mercado.

Ainda que essa tecnologia tenha se difundido a partir do lançamento do Bitcoin,


uma das primeiras ditas criptomoedas a alcançar reconhecimento global, vale ressaltar
que em nenhum trecho do whitepaper do Bitcoin Satoshi Nakamoto menciona o termo
“blockchain”, expressão que foi cunhada consecutivamente à difusão dessa tecnologia,
fazendo menção apenas a “uma série de blocos encadeados”2 que possibilitariam a
construção dessa “cadeia de confiança” 3 entre os blocos da rede.

O que Nakamoto descreveu, em realidade, foi uma espécie de Distributed


Ledger Technology (ou “DLT”, em sua sigla em inglês, ou, ainda, Tecnologia de Livros
Distribuídos, em tradução livre) baseada em blockchain, que é uma tecnologia recente4
e de rápida evolução, utilizada para gravar e compartilhar dados entre múltiplos bancos
de dados (ou ledgers).5

A tecnologia DLT permite que dados de qualquer natureza sejam gravados,


compartilhados e sincronizados em uma cadeia pulverizada entre diferentes participantes
da rede. Um blochckain é um tipo particular de estrutura de dados usada em alguns DLTs,
que armazena e transmite dados em pacotes chamados "blocos" que são conectados uns
aos outros como em uma "cadeia" digital. É dizer, em suma, que nem todos os DLTs
utilizam a arquitetura blockchain, embora todo blockchain seja uma espécie do gênero
DLT6.

Pode-se comparar, sem desnaturar seu conceito, um blockchain a um grande


registro público comum, como há nos cartórios brasileiros atualmente. A diferença está
no fato de que a veracidade das informações que ali estão independe da chancela de um

2
NAKAMOTO, Satoshi. Bitcoin: A Peer-to-peer Electronic Cash System. 2008.p. 7.
3
“a chain of blocks ahead of time by working on it continuously (...)”. In NAKAMOTO, Satoshi. Bitcoin: A
Peer-to-peer Electronic Cash System. 2008.p. 7.
4
Os DLTs, ainda que recentes, não são propriamente novos. O serviço BitTorrent, que ficou mundialmente
conhecido pela suposta conivência com o compartilhamento de conteúdo autoral, emprega a tecnologia peer-
to-peer, outra espécie de DLT. A proximidade entre as tecnologias fez com que uma gigante do mercado de
criptomoedas, a Tron, adquirisse a BitTorrent em meados de 2018. Nesse sentido: ROSTEN, Avi,
BitTorrent Officially Confirms its Acquisition by TRON. Disponível em:
https://www.cryptoglobe.com/latest/2018/07/bittorrent-officially-confirms-its-acquisition-by-tron/. Acesso
em: 28.07.18.
5
International Bank for Reconstruction and Development. The World Bank. Distributed Ledger
Technology (DLT) and Blockchain – Fintech Note No. 1. 2017. Disponível em:www.worldbank.org.
6
A explicação suscinta para que não se fuja do escopo do presente trabalho pode ser suprida com a completa
e eficiente explicação de Don e Alex Tapscott em TAPSCOTT, Don; TAPSCOTT, Alex. Blockchain
Revolution. 1. ed. São Paulo: SENAI-SP, 2016.
ente centralizador – o Estado, no caso dos cartórios e registros públicos -, e deriva e de
dois fatores complementares.

De um lado, a dificuldade técnica em se alterar um blockchain, o que corrobora


pela veracidade dos dados que estão ali registrados. A possibilidade da existência de uma
prova de confiança de rede, assunto que será abordado adiante, que permite ao bitcoin
operar com status de moeda, ainda que, para fins da legislação brasileira, não possa sê-
lo.

Os blockchain utilizam métodos criptográficos e algorítmicos para registrar e


sincronizar dados de modo que as informações não possam ser alteradas. Por exemplo,
uma nova transação de criptoativos seria registrada e transmitida para uma rede em um
bloco de dados, que é primeiro validado por membros específicos da rede e, em seguida,
vinculado a uma cadeia de blocos existente de maneira única, produzindo um blockchain.

Após a verificação da validade da transação e seu consequente registro no


blockchain, a informação não pode mais ser removida ou ter suas propriedades alteradas
por qualquer outro participante da rede. Como essa cadeia linear cresce a cada bloco que
é adicionado –e é única-, blocos anteriores não podem ser alterados por qualquer membro
da rede.

O DLT tem estado intimamente ligado às criptomoedas desde o seu início


porque – como já abordado anteriormente - foi empregado como a tecnologia subjacente
de um dos primeiros criptoativos a ganhar relevância global, o Bitcoin.

Em termos práticos, cada bloco é identificado por uma chave de criptografia


(hash) que funciona como uma assinatura eletrônica, e a ligação de um bloco a outro
recebe ainda outro hash, de modo que todas as partes de um blochckain sejam
imediatamente verificáveis.

Em se tomando o exemplo do blockchain do Bitcoin para ilustrar o


procedimento descrito acima, em primeiro lugar é preciso instalar o software do Bitcoin,
seguido da criação de uma carteira virtual7 que será operada pelo software instalado,

77
A função básica das carteiras de Bitcoin é a de armazenar esses criptoativos, bem como enviar e receber
os valores de uma carteira para outra através de transações pela rede blockchain. O que se armazenam nessas
carteiras, na realidade, são as chaves criptografadas digitais (hashes) privadas, que são utilizadas para acessar
os endereços de bitcoin públicos e assinar as transações que são armazenadas na carteira de bitcoin. Existem
diversos tipos de carteira, que dá ao usuário acesso a seus bitcoins de diversas maneiras, existem cinco tipos
também chamado de “cliente” do Bitcoin. Essa carteira geralmente é identificada por um
código, e se comporta como um endereço eletrônico para o qual recursos em Bitcoin são
enviados e em que são armazenados.

Em terceiro lugar, o sistema cria um registro criptografado da operação, que é


utilizado para identificar a natureza da transação e gerar uma chave pública. A chave
pública identifica a transação, e, por ter-se originado de um registro criptografado – a
que apenas o agente contratante tem acesso -, essa chave, que passa a ser a parte pública
da operação, é o que identifica o bloco em um blockchain.

Subsequentemente à emissão da chave pública ocorre o processo de efetiva


inserção daquele bloco representativo de uma transação no blockchain, - processo que
pode demorar até 10 minutos para se perfazer – que culmina com a emissão do hash.

O hash é emitido tão somente depois que a rede verificou a autenticidade das
duas chaves envolvidas na transação, de modo que um bloco só é inserido no blockchain
caso seja verificado que seu ponto de origem e de chegada são válidos, mecanismo esse
que viabiliza a existência de uma confiança de rede propriamente dita.

O poder de processamento que torna possíveis todos esses procedimentos é


oriundo de todos os participantes da rede que estejam executando o software do Bitcoin,
e, por isso, o algoritmo do Bitcoin prevê uma remuneração para aquele que efetivamente
contribuiu para a verificação de uma transação específica, que geralmente é atribuída
como uma porcentagem da transação capturada.

Sob o ponto de vista técnico, o portador da Bitcoin é uma pessoa anônima,


detentora de uma carteira, que concorda em participar de um processo consensuado de
aceitação das regras holísticas de uso da tecnologia blockchain8.

A existência desse registro torna desnecessária a figura da instituição financeira


como prova de confiança para realização de transações, uma vez que há um registro único
e totalitário dos ativos circulantes em um blockchain em questão9. Eliminar essa

principais de carteira: em celulares, computadores, on-line, e até mesmo de papel, as chamadas hard wallets,
onde literalmente anotam-se referidas chaves criptográficas.
8
SAYAD, J. Dinheiro, dinheiro: inflação, desemprego, crises financeiras e bancos. São Paulo: Portfolio
Peguin, 2015.
9
Nesse sentido, vale ressaltar que cada criptoativo tende a empregar seu próprio blockchain, de modo que
os registros não são intercambiáveis. No entanto, alguns blockchains, por seu alto estágio de
desenvolvimento e eficiências operacionais, são utilizados por terceiros para emissão de criptoativos e outros
instituição que realiza a função de intermediária, além de tornar o processo mais ágil,
reduziria custos, pois a presença de um intermediário para esse tipo de transação em geral
está associada à cobrança de uma taxa de serviços.

A existência de um único bloco de registro de transações referentes aos


criptoativos dispensa (ou, ainda, torna desnecessária) a necessidade de um órgão
centralizador, e, além disso, comporta-se, para fins práticos, como verdadeiro ativo
financeiro, pelo que no presente trabalho as criptomoedas serão classificadas como uma
espécie do gênero dos “criptoativos”.

E a classificação como um ativo de criptografia, um criptoativo, deriva de sua


própria natureza. Como se verá adiante, o fenômeno das criptomoedas trouxe à tona
diversos tipos de emissões utilizando empregando o conceito técnico da emissão de uma
criptomoeda (através do blockchain), o que deu origem a diversos movimentos de
crowdfunding e crowdsale com base em tokens das mais diversas naturezas que, por não
poderem ser utilizados como ordem de pagamento à vista, não se aproximam da
conceituação, e nem mesmo ao fim precípuo, de uma moeda.

Esses aspectos peculiares dos criptoativos atraíram o interesse do mercado


financeiro, que enxergou verdadeiro “oceano azul” para começar a operar com essas
moedas - que acumulam valorização expressiva ao longo dos últimos anos - sem
enfrentar grandes entraves legais e especialmente regulatórios.

O que o mercado hoje enxerga como um oceano de oportunidades a serem


exploradas, constitui, por outro lado, uma zona de penumbra para as autoridades
reguladoras de todo o mundo, que têm esboçado nos últimos anos um movimento no
sentido de regulamentar e uniformizar a construção legislativa no que diz respeito aos
criptoativos.

Essa iniciativa regulatória iniciou-se muito tímida ao redor do mundo, com


enfoque primário na contratação de pesquisas para que se entendessem o que seriam

produtos em seu ecossistema, como no caso do blockchain Ethereum. Nesse sentido: HENNING, Diedrich.
Ethereum: Blockchains, Digital Assets, Smart Contracts, Decentralized Autonomous Organizations.
New York: Wildfire Publishing, 2016. 185 p.
esses criptoativos, e como o seu comportamento poderia de alguma forma comprometer
a higidez dos sistemas financeiros e bancários por todo o mundo10.

No início da difusão do Bitcoin e de seus pares (como, por exemplo, a Ethereum


e a LiteCoin11), essas dificuldades advinham basicamente de um par de fatores
antagônicos: a rapidez com a qual o mercado assimilou e incorporou as criptomoedas
em seus produtos, de um lado, e o excesso de burocracia e a falta de conhecimento
técnico que até hoje obstaculiza a ação desses reguladores, de outro.

A rapidez com que o mercado incorporou esse novo produto deu origem a
operações cada vez mais complexas, como dito acima, que culminaram, recentemente,
nas chamadas Ofertas Iniciais de Moedas (em tradução livre, ou Initial Coin Offerings,
“ICO”, em sua sigla em inglês).

Em linhas gerais, em um ICO são emitidos ativos digitais com base em


tecnologia de criptografia, criptoativos, que são usualmente comercializados com o nome
de token. Esses tokens, uma vez adquiridos, garantem ao investidor algum retorno futuro,
seja ele pecuniário ou de acesso a algum serviço, uma vez que os ICOs geralmente são
usualmente lançados no contexto de funding para um projeto ou empreendimento em
estágio inicial de estruturação.

Daí advém a primeira problemática em que se concentrará este trabalho: a oferta


pública de um ativo que pode se valorizar no tempo, ou, ainda, uma oferta pública de
ativos com a intenção de se obter ou viabilizar esforço empresarial, com expectativa de
retorno, poderia caracterizá-los como valores mobiliários para fins da legislação
brasileira?

Quando exposta a problemática, fica evidente a importância da correta


classificação dos objetos dessa análise. Uma vez que a tecnologia criptográfica por trás
das criptomoedas e dos tokens é o blockchain, com singulares diferenças entre umas e
outras, não faria sentido classificar as criptomoedas e tokens como objetos de estudo

10
Exemplo disso, o Banco Central do Brasil contratou a elaboração de um parecer denominado: Banco
Central do Brasil. Distributed ledger technical research in Central Bank of Brazil. Brasília: [s.n.], 2017. 33
p. Diponível em:
https://www.bcb.gov.br/htms/public/microcredito/Distributed_ledger_technical_research_in_Central_Bank
_of_Brazil.pdf
11
Estima-se que existam hoje mais de 1000 criptomoedas em circulação, dentre eles criptomoedas, dos quais
Bitcoin e Ethereum possuem maior valor de mercado, em contraposição a moedas menos conhecidas, de
menor circulação, conhecidas como alternative coins ou simplesmente altcoins.
distintos, uma vez que seus caracteres técnicos e, consequentemente, sua utilização tem
se dado de maneira muito próxima.

Tanto é assim que temos exemplos de emissões de tokens realizadas em âmbito


de um processo de ICO que seriam, após a implementação do projeto, listadas na carteira
de corretoras de criptoativos, em conjunto com o Bitcoin e outras criptomoedas, para que
pudesse então, constituir ativo de valor oscilante negociado em balcão, a chamada
“criptomoeda”.

Assim sendo, uma vez que são ativos conversíveis e possuem características
técnicas e de mercado similares, o presente trabalho, ao analisar o comportamento
jurídico dos tokens emitidos em ICOs poderá, também, trazer conclusões e problemáticas
sobre as criptomoedas e sua regulamentação no Brasil. Até porque, como se verá adiante,
um mesmo criptoativo pode assumir o papel de diversas das definições que são
usualmente a eles atribuídas (criptomoeda, token etc.).

Nesse ponto, vale ressaltar que a escolha por não concentrar este trabalho
somente na análise dos criptoativos tem uma razão de ser. A inclusão do ICO na
composição do tema da presente pesquisa se dá, principalmente, porque essa operação é
das mais complexas dentre as realizadas com criptoativos: é dizer, um verdadeiro stress
test de uma figura ainda pouco estudada e muito menos regulamentada no Brasil e no
Mundo, o que permite analisar seus desdobramentos de maneira mais dinâmica e ligada
aos princípios basilares do Direito Comercial, bem como à regulamentação já existente.

Isso porque o estudo do ICO permitirá compreender qual o comportamento


fático dos criptoativos no mercado brasileiro, e, à partir disso – considerando que o
Direito Comercial, diante de seu aspecto consuetudinário, em muito se funda nos usos
do mercado para construir alicerces doutrinários e legislativos – garantirá que o presente
estudo esteja balizado por alternativas viáveis de regulamentação e aplicação técnica,
de um ponto de vista jurídico, dessas novas tecnologias.

Naturalmente, a análise da natureza jurídica das criptomoedas passará por áreas


já muito conhecidas e desenvolvidas do Direito, como, por exemplo (i) da disciplina dos
valores mobiliários, seu histórico e sua aplicação na regulamentação em vigor; (ii) da
política monetária positiva, especialmente à luz das normas atinentes ao Sistema de
Pagamentos Brasileiro (“SPB”) e do Sistema Financeiro Nacional (“SFN”), incluindo,
mas não se limitando, a Lei nº 4.595/94 e demais leis correlatas; (iii) dos marcos
regulatórios das Autarquias responsáveis pela fiscalização do SFN e do SPB; e (iv)
subsidiariamente, das discussões havidas no exterior a respeito dos modelos usuais de
ICO e como a doutrina e os legisladores estrangeiros têm solucionado – ou buscado
solucionar – a falta de regulamentação específica sobre o tema.

Considerando os pontos expostos acima, a presente tese de láurea buscará (i)


traçar um panorama histórico do surgimento dos criptoativos; (ii) analisar o
recepcionamento dessa nova tecnologia pelos mercados financeiro e de capitais,
passando por suas formas de aplicação e analisando as estruturas que levaram ao
surgimento de um modelo de ICO enquanto alternativa viável de funding; (iii)
comparativamente às soluções práticas encontradas pelo mercado, analisar as principais
vertentes de classificação jurídica dos criptoativos no mundo e no Brasil, sejam elas
valores mobiliários, meio circulante ou, ainda, ativos financeiros; e (iv) delimitar
questões atinentes à sua natureza jurídica, pontos de atenção e discussões atuais
envolvendo as criptomoedas atualmente no âmbito do mercado financeiro.

Portanto, para bem enfrentar as questões postas na breve introdução acima, a


presente análise apresentará nos capítulos subsequentes um panorama histórico dos
ICOs, bem como os marcos regulatórios aplicáveis atualmente no Brasil.

2.2 Os Criptoativos e as Initial Coin Offerings – Histórico e


considerações gerais à luz do direito positivo brasileiro

Como a própria sigla denota, a análise histórica do ICO permite concluir que
sua criação, em perspectiva, se resume basicamente à união entre o blockchain e os
criptoativos, de um lado, e da estrutura por trás de uma Oferta Pública de Ações (ou
Initial Public Offer, “IPO”, em sua sigla em inglês), de outro.

O emprego do IPO como parâmetro estrutural adotado por interessados em


promover um ICO é natural, e apresenta-se pelo fato de que o IPO é um dos principais
instrumentos de captação de recursos em empreendimentos de qualquer porte, sobretudo
os de maior vulto, e a aplicação dos usos e costumes aplicáveis a esse tipo de iniciativa
de captação trouxe, inevitavelmente, a aproximação dos usos e costumes aplicáveis aos
IPOs às ofertas realizadas através de criptoativos. Nesse sentido, ainda que não se tenha
regramento a respeito, um dos poucos comunicados de autoridades reguladoras vieram
da Comissão de Valores Mobiliários, justamente a Autarquia encarregada de registrar e
autorizar os IPOs no Brasil12.

Ocorre que, além de todo o ineditismo que circunda esse novo “produto”
financeiro, o volume de recursos que operações de ICO já estão movimentando em todo
o globo vem agravando a necessidade de consolidação da disciplina jurídica não só
desse tipo de operação em si, mas também dos valores que são trocados como
resultado da oferta.

A ainda frequente comparação entre o ICO e IPO acirra o debate acerca da


supracitada possibilidade de que os criptoativos sejam regulamentados em analogia aos
valores mobiliários, objeto de emissão em IPOs, especialmente por seu valor estar
constantemente exposto a risco e à volatilidade, assim como os valores mobiliários
circulam no Brasil.

Para bem se reproduzir o histórico de surgimento e evolução dos ICOs, é


necessário em primeiro lugar analisar a primeira “emissão” de criptoativos realizada na
história. No ano de 2008, Satoshi Nakamoto13 lançou o primeiro whitepaper14 do
Bitcoin15, descrevendo o funcionamento da tecnologia bem como as oportunidades
comerciais decorrentes de seu emprego.

2.2.1 O surgimento do Bitcoin

12
Comunicado CVM de 11.10.17 : Nesse contexto, a CVM esclarece que certas operações de ICO podem
se caracterizar como operações com valores mobiliários já sujeitas à legislação e à regulamentação
específicas, devendo se conformar às regras aplicáveis. Incorrem na mesma situação companhias (abertas
ou não) ou outros emissores que captem recursos por meio de uma ICO, em operações cujo sentido
econômico corresponda à emissão e à negociação de valores mobiliários.
13
Até hoje não se sabe a real identidade de Satoshi Nakamoto, se seria uma pessoa real, um pseudônimo,
ou até mesmo o nome dado a um grupo de programadores. O fato de ter criado a tecnologia do Bitcoin, não
faz de Satoshi Nakamoto o proprietário da tecnologia, que se estrutura em blocos de acesso público (DLTs)
para funcionar.
14
Whitepaper é a nomenclatura normalmente utilizada para se referir ao documento que formaliza o
lançamento de um criptoativo ou um ICO, similar a um prospecto elaborado no âmbito de uma Oferta
Pública de Ações. Este documento geralmente concentra-se em (i) descrever a oportunidade de mercado
trazida ou propiciada pelo criptoativo que será emitido; e (ii) detalhar o funcionamento técnico da
tecnologia DLT (Distributed Ledger Technology) por trás do criptoativo emitido.
15
NAKAMOTO, Satoshi. Bitcoin: A Peer-to-peer Electronic Cash System. 2008.
O título do whitepaper que lançou o Bitcoin denota que esse criptoativo fora
originalmente concebido como um sistema de pagamentos eletrônico16, similar aos meios
de pagamento recepcionados pela nossa legislação e consolidados no Sistema Brasileiro
de Pagamentos, através da tecnologia blockchain.

Substitui-se, assim, a confiança entre os negociantes por uma chamada


“confiança de rede”- que poderá ser acessada e verificada por todos os seus participantes,
sendo todos eles capazes de assegurar a validade de uma transação - sendo desnecessária
uma figura centralizada para conferir higidez ao sistema de pagamentos.

O Bitcoin surgiu, nos termos de seu whitepaper, para ser um “sistema de


pagamento eletrônico com base na prova criptográfica em vez da confiança, permitindo
que quaisquer duas partes dispostas possam transacionar diretamente entre si sem a
necessidade de um terceiro confiável17. ”

A proposta do Bitcoin seria, desta forma, a de constituir uma ferramenta de


pagamentos descentralizada, em que todos os participantes da rede tenham condições de
verificar e realizar transações, diferentemente do tradicional modelo centralizador que
permeia os modelos de pagamento e liquidação de transações das moedas fiduciárias
tradicionais adotadas por cada país.

Até a criação do Bitcoin, as transações online nunca foram possíveis sem um


intermediário, uma parte que centralizasse a confiança entre comprador e vendedor, e
pudesse realizar o negócio entre ausentes de modo em que ambas as partes vejam
reduzidos seus riscos diante da operação.

Por exemplo, para realizar uma simples transferência de valores entre duas
pessoas físicas através da internet, é necessário um intermediário – no caso atual, uma
instituição financeira18 - que operacionalize a transação, com o emprego de atividades
como: verificar os dados das contas de entrada e saída, a veracidade da assinatura digital

16
“sistema de pagamento eletrônico com base na prova criptográfica em vez de confiança, permitindo que
quaisquer duas partes dispostas a transacionar diretamente entre si possam fazê-lo sem a necessidade de um
terceiro confiável.” (NAKAMOTO, Satoshi. Bitcoin: A Peer-to-peer Electronic Cash System. 2008.
Tradução Livre)
17
Vide N.R. nº 9
18
Tipo de instituição autorizada a funcionar pelo Banco Central do Brasil que tem a intermediação como
uma de suas atividades principais, como preleciona o artigo 17 da Lei nº 4.595 de 31 de dezembro de 1964.
que autoriza a realização da operação, a existência de fundos, dentre diversas outras
funcionalidades e requisitos para que a transação seja viável e efetuada, além da
existência de um espaço de tempo entre a contratação da transação e sua liquidação,
fenômeno conhecido como “lag de liquidação”.

Tem-se, portanto, uma única instituição responsável por operacionalizar um


sistema fechado e centralizado de recursos, de modo que a realização da operação está
intrinsecamente relacionada à disponibilidade e capacidade da instituição financeira em
realizá-la. É dizer: sem a abertura de uma conta em uma instituição financeira seja, ou
sem a presença de um intermediário financeiro, até a invenção do Bitcoin não era possível
transacionar valores na internet de forma segura e rápida.

Nesse sentido, o blockchain permite aos criptoativos apresentar uma proposta


no sentido contrário: a criação de uma rede que liste todos os ativos que nela transitam,
seus proprietários e, quando em trânsito, o remetente e o destinatário final dos valores,
guardando registro imutável19 de todas as transações realizadas no respectivo bloco
encadeado.

A constituição de um blockchain, no entanto, não é desprovida de custos. A


criação e ligação entre os blocos é realizada por todos os participantes da DLT, e, como
despendem poder computacional de processamento e energia elétrica para tanto20,
geralmente cada usuário recebe uma pequena porcentagem da transação que auxiliou a
verificar, através de seu dispositivo conectado à DLT, que pode ser um computador ou
até mesmo um celular.

No caso do protocolo Bitcoin, essa remuneração é feita através da geração de


novos Bitcoins¸ adquiridos por alguém sempre que validar uma transação. Essa atividade
é comumente conhecida como “mineração” de Bitcoins ou de outros criptoativos.

O que acostumou-se a denominar “mineração” é na realidade um processo


matemático a ser realizado pelo dispositivo minerador, relacionado ao hash mencionado
anteriormente. Simplificadamente, o dispositivo minerador precisa, através da solução
desse algoritmo matemático, descobrir um número O processo matemático a ser

19
Em virtude das diferentes arquiteturas tecnológicas aplicadas em cada Blockchain, pode-se concluir que
alguns Blockchains tendem a ser mais seguros que outros
20
Os custos envolvidos no processo de mineração de criptoativos, que será descrito com maiores detalhes a
seguir, decorrem intrinsecamente do poder de processamento envolvido para manter a estrutura blockchain
operante.
realizado pelo minerador é baseado em diversas tentativas, sendo que o blockchain do
Bitcoin é programado para que apenas um bloco de transações verificadas seja
adicionado à cadeia a cada 10 minutos, para evitar sobrecarregamento do sistema21.

O dispositivo capaz de resolver adequadamente a equação descrita acima terá


como produto a geração de um número, conhecido como golden nonce, que é a prova de
que aquele bloco fora adequadamente auditado e pode ser incorporado ao blockchain
(Proof-of-Work)22.

Para incentivar a adesão de novos mineradores ao blockchain, a fim de aumentar


a capilaridade do sistema e, consequentemente, incrementar sua estabilidade, o protocolo
Bitcoin prevê uma remuneração a quem encontrar o golden nonce.

Esse valor, denominado de payout, vai reduzindo conforme o blockchain vai


ganhando novos blocos, uma vez que o aumento da cadeia atrai, na mesma proporção, a
necessidade de maior poder de processamento para que as transações possam ser
registradas adequadamente no DLT.

Tem-se, portanto, que a prova de confiança no protocolo Bitcoin - em como nos


protocolos empregados nos demais criptoativos – se dá com base no incentivo atribuído
pelo próprio sistema aos mineradores, que contribuem para verificar a veracidade das
transações, sendo remunerados para tanto.

Como se verá a seguir, a prova de confiança em meios de pagamento não é um


elemento propriamente novo, estando presente em todos os instrumentos de troca
adotados pela humanidade desde que se abandonou o conceito de trocas naturais.

Isso porque a adoção de instrumentos padronizados para uniformização das


trocas, em fenômeno que se conhece como o surgimento da moeda, só foi possível pois
havia um elemento centralizador da confiança na manutenção da reserva de valor que a
moeda representaria.

O que outrora fora preenchido por um lastro em metais preciosos, com o advento
da moeda fiduciária passa-se a conferir maior autonomia aos estados para emissão de

21
NAKAMOTO, Satoshi. Bitcoin: A Peer-to-peer Electronic Cash System. 2008
22
AUMASSON, Jean-Phillipe et al. Cryptanalysis of Dynamic SHA (2). 2009. Acesso em: 8 fev. 2018.
moeda, que tem no poder liberatório seu principal requisito de validade e eficácia para
que seja considerado como moeda propriamente dita.

2.3 Os criptoativos e o conceito de moeda: a evolução da prova de confiança e o


poder liberatório da moeda

Como explicado anteriormente, o fato de o Bitcoin ter sido concebido enquanto


um sistema de pagamentos aproximou em demasia esse criptoativo do conceito de
moeda, fazendo até mesmo com que o Bitcoin seja definido por vezes como uma espécie
de moeda virtual ou, ainda, mais erroneamente, como moeda eletrônica.

Com o advento do marco legal e regulatório dos meios eletrônicos de pagamento


em 2013, introduziu-se o conceito de “moeda eletrônica” no ordenamento jurídico
brasileiro, notadamente por meio da edição da Lei nº 12.865, de 9 de outubro de 2013
(“Lei 12.865/13”) e regulamentação correlata do Conselho Monetário Nacional
(“CMN”) e do Banco Central do Brasil. Para fins da Lei 12.865/13, as “moedas
eletrônicas”, são uma mera representação eletrônica do Real, possuindo curso legal e
poder liberatório no Brasil, diferentemente das criptomoedas.

Quando da edição da referida norma, o legislador optou por reforçar a existência


do curso forçado da moeda eletrônica, definindo “moeda eletrônica, no inciso VI de seu
artigo 6ª como sendo “recursos armazenados em dispositivo ou sistema eletrônico que
permitem ao usuário final efetuar transação de pagamento”.

Está embutido no conceito de moeda eletrônica, quando se trata de sua análise


jurídica, a possibilidade de que alguém a utilize para efetuar transação de pagamento,
liberando-se, assim, de uma obrigação.

Nesse sentido, o próprio Banco Central do Brasil já se manifestou no sentido de


diferenciar as criptomoedas das “moedas eletrônicas”, tendo editado em 19 de fevereiro
de 2014 o Comunicado 25.306, esclarecendo que, para fins da Lei 12.865/13, uma
criptomoeda não é uma moeda eletrônica:

No Brasil, embora o uso das chamadas moedas virtuais ainda não se tenha mostrado capaz
de oferecer riscos ao Sistema Financeiro Nacional, particularmente às transações de
pagamentos de varejo (art. 6º, § 4º, da Lei nº 12.685/2013), o Banco Central do Brasil está
acompanhando a evolução da utilização de tais instrumentos e as discussões nos foros
internacionais sobre a matéria – em especial sobre sua natureza, propriedade e
funcionamento –, para fins de adoção de eventuais medidas no âmbito de sua competência
legal, se for o caso.

A manifestação da autoridade monetária, além de esclarecer ao mercado uma


posição governamental sobre o assunto, ressalta não só o respeito do regulador com a
definição precisa de moeda, ao referir-se aos criptoativos como “chamadas moedas
virtuais” e a utilização posterior do termo “instrumento” para referir-se a eles, mas
também a sinalização de que, por isso, o Banco Central do Brasil talvez não seja o órgão
competente para regular a matéria, como será abordado adiante.

Voltando à esfera de competência legal do Banco Central do Brasil, o conceito


de “moeda eletrônica” também está presente no artigo 4º, I, da Circular nº 3.885 de 28
de março de 2018 do Banco Central do Brasil (“Circular 3.885/18”), a saber:

Art. 4º As instituições de pagamento são classificadas nas seguintes modalidades, de


acordo com os serviços de pagamento prestados:

I - emissor de moeda eletrônica: instituição de pagamento que gerencia conta de


pagamento de usuário final, do tipo pré-paga, disponibiliza transação de pagamento que
envolva o ato de pagar ou transferir, com base em moeda eletrônica aportada nessa
conta, converte tais recursos em moeda física ou escritural, ou vice-versa, podendo
habilitar a sua aceitação com a liquidação em conta de pagamento por ela gerenciada;

(...)

§ 1º Considera-se moeda eletrônica, para efeito do inciso I do caput, os recursos em


reais armazenados em dispositivo ou sistema eletrônico que permitam ao usuário
final efetuar transação de pagamento. [sem grifos no original]
Ainda que a definição não seja holística, tendo o Banco Central do Brasil limitado
sua aplicação aos efeitos do inciso I do caput do artigo, a regra é clara ao determinar que
se enquadram no conceito de moeda eletrônica somente os recursos em reais aportados
em sistema eletrônico que permitam ao usuário final efetuar transação de pagamento.

Tem-se ainda, da leitura do parágrafo primeiro desse mesmo artigo da Circular


3.885/18, que sua emissão pode ocorrer tão somente após um aporte equivalente em reais
em uma conta de pagamentos. É dizer, na legislação brasileira, “moeda eletrônica” é tão
somente um representativo de conversão de numerário do meio físico para o eletrônico,
conceito distante do que se apresenta como uma nova classe de ativos de emissão com
base em criptografia.

Superado o conceito de moeda eletrônica, cumpre analisar a classificação de


“moeda virtual”, que não é um sinônimo de moeda eletrônica em virtude da definição
regulamentar, mas também não se apresenta como terminologia precisa para que se
classifique os criptoativos.

Quando entendido nessa acepção, pode-se entender “moeda virtual” como sendo
a uma moeda propriamente dita – como o é o dinheiro - emitida em ambiente virtual. Tem-
se, portanto, que para que os criptoativos possam ser enquadrados como moedas virtuais
devem cumprir com dois parâmetros objetivos: (i) enquadrarem-se na definição de moeda;
e (ii) circularem em meio eletrônico.

Porquanto considere-se o segundo requisito cumprido de antemão, diante da


explanação tida no capítulo anterior da presente, vale analisar o primeiro deles. “Moeda”
é um instrumento ou objeto aceito pela coletividade para intermediar as transações
econômicas e para pagamento de bens e serviços. Essa aceitação é garantida por lei,
através de instituto denominado “curso forçado” da moeda. Há também quem defina
moeda simplesmente como tudo aquilo que pode ser utilizado como meio de
pagamento23.

Antes da existência da moeda, o fluxo de troca de bens e serviços na economia


dava-se por escambo, é dizer, trocas diretas de mercadoria por mercadoria. Nesse estágio
das relações privadas, o uso de um bem determinado que possuía valor próprio e

23
NORDHAUS, W.D., SAMUELSON, P.A. Economia. 14ª edição. Alfragide: McGraw-Hill de Portugal.
p.571.
durabilidade no tempo foi amplamente utilizado como meio de troca24.Com o passar dos
anos, certas mercadorias passaram a ser aceitas por todos, por suas características
peculiares ou pelo simples fato de serem escassas.

O sal, por exemplo, que por ser um bem escasso foi utilizado na Roma Antiga
como moeda25, foi superado ao longo do tempo pelos metais preciosos, que assumiram
sua função não só por sua escassez, mas primordialmente por sua durabilidade e
resistência. Juridicamente, essa substituição significou o início do emprego de bens
escassos e com valor intrínseco como intermediário de trocas, de modo que, enquanto
mercadoria, o regime jurídico da moeda correspondia ao das coisas móveis26.

Esse aspecto é importante pois a prova de titularidade das coisas móveis, e, no


nosso exemplo, da moeda, é feita pela posse27, de modo que a moeda era um instrumento
imediatamente intercambiável e dissociada de sua finalidade para que pudesse propiciar
as trocas.

Esses dois caracteres dos metais preciosos propiciaram o surgimento de um


processo denominado cunhagem, através do qual a moeda não mais se dava por seu peso
– o que acarretava o às vezes custoso e moroso processo de pesagem das moedas para
determinar seu valor.

A partir da cunhagem, produziam-se moedas idênticas e de mesmo tamanho que


simbolizavam, ou melhor, equivaliam a determinada quantia. O processo de cunhagem
permitiu a uniformização e a criação de moedas com diferentes pesos e valores, o que
deu origem à atual moeda metálica.

Era comum, para que não se perdesse de vista a origem do valor da moeda, que
cada “peso” ou “valor” escolhido correspondesse a um montante existente de metais

24
VERÇOSA, Haroldo Malheiros Duclerc. Breves Considerações Econômicas e Jurídicas Sobre a
Criptomoeda. Os Bitcoins. Revista de Direito Empresarial, São Paulo, v. 14/2016, p. 139 – 154, mar-abr
2016.
25
GALBRAITH,J.K. Moeda: de onde veio, para onde foi. Segunda edição. Livraria Pioneira: São Paulo,
1983. p.16
26
Nesse sentido, ver também BAROSSI-FILHO, Milton; SZTAJN, Rachel. “Natureza Jurídica da Moeda
e Desafios da Moeda Virtual”, disponível em
https://www.cidp.pt/publicacoes/revistas/rjlb/2015/1/2015_01_1669_1690.pdf, acesso em 25 de maio de
2018.
27
A posse como prova de titularidade apenas pode ser afastada pela prova da má-fe do possuidor, nos termos
do artigo 12.202 do Código Civil.
28
preciosos, ao que se denominava lastro. Como a própria expressão indica , o lastro
servia para garantir a existência dos fundos representados pela moeda, a fim de mitigar a
problemática da confiança nas relações privadas.

No entanto, considerando que os metais preciosos são escassos e não haveria


quantidade suficiente para atender à demanda crescente dos negócios privados, o lastro
em metal precioso foi caindo em desuso, até desparecer quase absolutamente, dando
origem às chamadas moedas fiduciárias29.

A moeda no formato que conhecemos hoje, o dinheiro, não possui lastro.


Surgida em 1920, quando abandonou-se o padrão ouro e a emissão de moedas passou a
ocorrer a livre critério de cada país30, a aceitação da moeda passa a ser promovida
mediante determinação de autoridade governamental. A essa determinação dá-se o nome
de “poder liberatório” ou, ainda, “curso forçado” da moeda.

Para a finalidade proposta para o presente trabalho, vale ressaltar que tal curso
forçado tem a mesma finalidade que tinha o lastro nas negociações mais primitivas:
mitigar incertezas e garantir sua liquidez, especialmente para reduzir a problemática da
confiança nas relações privadas.

A título de exemplo, em 30 de junho de 1994 ano o "real" passou a ser moeda


brasileira única e exclusivamente porque assim mandou o direito positivo brasileiro,
quando da edição da Medida Provisória 542/9431. Todas as demais unidades monetárias
como tais definidas pelos ordenamentos jurídicos de outros Estados não são “moedas”
no Brasil, não possuindo poder liberatório ou curso forçado.

Referida medida só foi possível por autorização do legislador constituinte


originário, que determinou, no artigo 21, VII da Constituição Federal de 1988 que é
competência da União emitir moeda, e, ainda, no artigo 164, caput, que tal competência

28
CASTRO, Marcílio Moreira de. Dicionário de Direito, Economia e Contabilidade: português-inglês /
inglês-português : incluindo mercado de capitais, finanças, comércio exterior, negócios e jornalismo
econômico e financeiro. 4ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013, p. 216.
29
VERÇOSA, Haroldo Malheiros Duclerc. Breves Considerações Econômicas e Jurídicas Sobre a
Criptomoeda. Os Bitcoins. Revista de Direito Empresarial, São Paulo, v. 14/2016, p. 139 – 154, mar-abr
2016.
30
MENDES, Antônio; NASCIMENTO, Edson Bueno, Estudo de Direito Monetário: A Moeda e suas
Funções; Obrigações Monetárias; Estipulação e Indexação de Obrigações Monetárias. Revista de
Direito Mercantil.Nova Série, XXX (84) Dezembro.
31
Para fins de referência histórica, no Brasil por muitos anos a moeda fiduciária se sustentou por força do
Decreto-Lei n 157
seria exercida exclusivamente pelo Banco Central do Brasil, de modo que, além de não
possuírem curso forçado no brasil, os criptoativos, por não terem sido emitidos pela
autoridade competente, não podem ser interpretados analogamente às moedas no que diz
respeito ao seu regime jurídico.

Portanto os criptoativos não possuem os atributos de validade e eficácia


indispensáveis ao cumprimento de sua função de padrão de valor e de liberação de
débitos pecuniários. Podem, certamente, representar uma reserva de valor, coisa no
sentido jurídico, constituindo instrumento de pagamento nos mercados externos, mas não
possuem o poder de liberar imediatamente alguém de uma obrigação, ou, muito menos,
possui curso forçado para tanto. Em outras palavras, um criptoativo não pode ser
confundido como uma moeda no âmbito do ordenamento jurídico brasileiro.

O dinheiro outorga às pessoas o poder de extinguir uma obrigação, líquida ou


que possa ser liquidada em dinheiro, poder esse exercível até mesmo contra o próprio
Estado. Na prática, cada cidadão que possua em suas mãos uma fração monetária emitida
com a devida marca da autoridade, representa o próprio Estado ao transferi-la a outrem,
liberando-se de suas obrigações se o valor transferido assim permitir.

É dizer: o curso forçado nada mais é que a outorga, pelo Estado ao cidadão, do
direito de resolver uma obrigação sem sua intervenção direta, ainda que tenha havido
intervenção legislativa anterior, ao se eleger uma moeda para ter curso forçado.

Uma vez que o Bitcoin, um dos primeiros criptoativos a ser emitido, foi criado
precipuamente para operar como um sistema de pagamentos, a nomenclatura adotada
para os primeiros criptoativos que foram emitidos acabou por aproximá-los do conceito
de “moeda”, mas, como se vê, tal entendimento não se sustenta sob a luz do direito
brasileiro.

A um, pois não há qualquer disposição normativa que confira poder liberatório
aos criptoativos, de modo que fica prejudicado seu enquadramento no conceito de
“moeda”. A dois, pois não é necessariamente utilizado para liberação de débitos
pecuniários (a existência dos utility tokens descrita abaixo é exemplo disso), de modo
que não se pode concluir que qualquer criptoativo, ainda que seja apelidado de
criptomoeda, seja considerado como sendo moeda propriamente dita para fins da
legislação brasileira atual.
2.4 O conceito de ativo, a definição terminológica “criptoativo” e a análise
crítica da hermenêutica aplicável ao conceito de moeda

Como se vê, prejudicada a comparabilidade entre os criptoativos e as moedas de


curso forçado, bem como as demais definições legais do direito brasileiro que
recepcionam o conceito de “moeda eletrônica”. Ainda que possa se comportar como uma
espécie de moeda virtual, esse enfoque acaba por limitar a abrangência que os
criptoativos adquiriram não como forma de se liberar de obrigações, mas sobretudo como
um instrumento de apuração de valor ao longo do tempo.

Essa característica intrínseca dos criptoativos deve ser levada em conta quando
de sua análise jurídica, tendo em vista o caráter consuetudinário do Direito Comercial,
que faz dos usos e costumes do mercado uma de suas fontes de positivação.

Para além de seu comportamento fático, como se verá a seguir, os maiores riscos
encerrados pelos criptoativos dizem respeito ao seu uso enquanto ativo ou valor
mobiliário, e não seu uso enquanto moeda corrente, de modo que, novamente, conceituar
esses instrumentos como moeda impediria a incidência do atual arcabouço regulatório
existente, capaz de mitigar riscos imediatos e mediatos advindos desses produtos.

Isso porque, como tem sido empregados, esses instrumentos mais se aproximam
do conceito de ativo que do conceito de moeda, uma vez que têm sido utilizados muito
mais para fins de investimento que para fins próprios de liberação de obrigações.

Nesse ponto, cabe fazer uma ressalva relevante. A possibilidade de liberação de


obrigações através do adimplemento de obrigações em Bitcoin não faz dele, por si só,
uma moeda, vez que na grande maioria dos casos a liberação da obrigação não se dá pelo
valor intrínseco que tem o Bitcoin, mas sim seu valor atrelado a alguma moeda de curso
forçado, geralmente o real brasileiro ou o dólar norte-americano.

Tem-se, portanto, que o estabelecimento comercial que aceita pagamentos em


Bitcoin não o faz por acreditar em seu valor intrínseco de moeda, mas sim na expectativa
de sua valorização, enquanto ativo de alta volatilidade. Diante da possibilidade de
liquidação em moedas de curso forçado, conclui-se que a prova de confiança desse
negócio jurídico não decorre do valor do Bitcoin, mas sim do curso forçado atribuído às
moedas em que pode ser liquidado. Daí sua aproximação com o conceito de ativo.

Enquanto o ordenamento jurídico brasileiro prescinde de uma definição ou


conceituação do que seja um “ativo”, cabe remeter-se à área dos conhecimentos contábeis
para que se sustente a tese de que a terminologia adequada para se referir aos
instrumentos objeto do presente mais alia-se ao conceito de ativo do que propriamente
ao de moeda.

Nessa linha, o Comitê de Pronunciamentos Contábeis32 brasileiro (CPC), dispôs


o que segue em seu Pronunciamento Conceitual Básico (R1) divulgado em 2 de
dezembro de 2011, que traz um rol de definições básicas contábeis a serem aplicados no
Brasil:

Ativo é um recurso controlado pela entidade como resultado de eventos passados e do


qual se espera que fluam futuros benefícios econômicos para a entidade. Repare-se que a figura do
controle (e não da propriedade formal) e a dos futuros benefícios econômicos esperados são
essenciais para o reconhecimento de um ativo. Se não houver a expectativa de contribuição futura,
direta ou indireta, ao caixa da empresa, não existe o ativo.

A conceituação de ativo adotada pelo CPC parte de uma acepção dilatada no


tempo desses instrumentos, de modo que um ativo só pode ser assim entendido se for
fruto de evento passado e se houver, concomitantemente, expectativa de futuros
benefícios econômicos para seu detentor.

A conceituação incorporada pelo CPC está em linha com conceituações literárias


a respeito, como a definição concebida por Sprouse e Moonitz33, que também definem
ativos com uma conceituação dilatada do tempo, segundo a qual a expectativa de retorno
é elemento imprescindível para que se retenha a conceituação de ativo. Para esses
autores, “ativo são bens que proporcionam um fluxo de serviços ao longo do tempo”.

32
Criado pela Resolução CFC nº 1.055/05, o CPC tem como objetivo "o estudo, o preparo e a emissão de
Pronunciamentos Técnicos sobre procedimentos de Contabilidade e a divulgação de informações dessa
natureza, para permitir a emissão de normas pela entidade reguladora brasileira, visando à centralização e
uniformização do seu processo de produção, levando sempre em conta a convergência da Contabilidade
Brasileira aos padrões internacionais".
33
SPROUSE, T.,MOONITZ, M. (1962). A tentative set of broad accounting principles for business
enterprises. New York: AICPA.
Nessa linha, André Franco e Vinícius Bazan34 dividem os ativos virtuais em três
classes: as “criptocommodities”, as “criptomoedas” e os “criptotokens”.

Os primeiros seriam matérias-primas virtuais para o desenvolvimento de


aplicativos (como sistemas operacionais). A ideia por trás das criptocommodities é a
comercialização de códigos abertos que proporcionem a estruturação de soluções em
blockchain, como, por exemplo, contratos inteligentes. Uma vez que possuem a natureza
jurídica de produto, esses não será objeto da presente tese.

As chamadas “criptomoedas” são aquelas tratadas no item anterior, nada mais


sendo do que criptoativos que são empregados para saldar transações.

Os criptotokens, por sua vez, seriam divididos em utility tokens, que garantem o
acesso a certas funcionalidades da plataforma (como o direito de utilização gratuito de
determinado aplicativo blockchain, por exemplo) e os equity tokens ou security tokens,
que garantem desde o direito à divisão de lucros decorrentes da utilização e
desenvolvimento de determinado empreendimento, até mesmo a participação societária
na start-up que desenvolve o projeto.

São esses últimos os possivelmente enquadrados como valores mobiliários, na


medida em que confiram direito de participação, parceria ou de remuneração aos seus
detentores.

34
FRANCO, André; BAZAN, Vinícius. Criptomoedas: Melhor que Dinheiro. São Paulo:Ed. Empiricus,
2018. p. 115-128.
III. NOÇÕES GERAIS DA REGULAÇÃO APLICÁVEL AO SISTEMA
FINANCEIRO NACIONAL

3.1. Introdução

Vistos os principais aspectos atintentes aos criptoativos, cumpre delinearmos


noções gerais indispensáveis à sua análise sob o ponto de vista jurídico. Para tanto, o
presente capítulo concentrar-se-á em descrever os principais aspectos regulatórios
aplicáveis ao Sistema Financeiro Nacional, para que se possam identificar os agentes
envolvidos e, consequentemente, o escopo da incidência normativa que esses
instrumentos atraem.

A escolha pelas agências componentes do Sistema Financeiro Nacional se encerra


pois, como já visto, o comportamento dos criptoativos no comércio tem atraído riscos
ainda pouco mensuráveis sob a perspectiva de políticas públicas monetárias positivas,
como aquela realizada pelo Conselho Monetário Nacional, amparado pela supervisão do
Banco Central do Brasil, bem como as autoridades dos mercados de capitais, cuja
supervisão no brasil fica a cargo da Comissão de Valores Mobiliários (CVM).

Como se verá na sequência, o que quando do surgimento dos criptoativos


aparentava ser um conflito de competência, hoje em dia já se mostra relativamente
consolidada a atuação da CVM na supervisão desse mercado, uma vez que é a autoridade
que, inclusive, já está sendo consultada sobre procedimentos de Initial Coin Offerings,
tendo até mesmo divulgado decisão definindo que um token não seria valor mobiliário
para fins da Lei n 6.395/.

Isso se sustenta pelo fato de que a autoridade monetária não está apta a lidar com
um ativo que não se comporta como moeda, ainda que tenha sido concebido como um
meio de pagamentos35.

Os riscos advindos dessa tecnologia, que podem, em larga escala, vestir-se de


riscos sistêmicos, mais aliam-se ao fato de que os criptoativos tem sido empregados na

35
Nesse sentido, ver Capítulo II supra.
forma de fração de investimento, como verdadeiro Contrato de Investimento, como se
verá a seguir.

Como a experiência internacional vem confirmando, deve-se definir uma emissão


pela natureza do token, de modo que a análise, assim como a do valor mobiliário, deve
ser feita caso a caso. Além desses temas, o presente capítulo buscará lançar mão das
bases teóricas necessárias ao entendimento completo dos conceitos que serão abordados.

Nesse sentido, também serão abordadas discussões relevantes a cerca dos


conceitos que permeiam a regulação do Sistema Fincanceiro Nacional, como o debate
sobre a definição de instituição financeira. Para fins de coesão e melhor encadeamento,
o debate acerca do conceito de valores mobiliários, mais atinado às Initial Coin Offerings,
será abordado no capítulo a seguir.

3.2 Sistema Financeiro Nacional: Panorama regulatório aplicável aos


criptoativos

As Leis nº 4.595/64, e nº 4.728, de 14 de julho de 1965 (“Lei de Reforma


Bancária"), conforme alterada, são responsáveis por regular as Instituições Financeiras
Brasileiras.

O Artigo 17 36da Lei de Reforma Bancária estabelece o conceito de Instituições


Financeiras, que as determina conforme as atividades que desempenham.

Tanto a doutrina quanto a jurisprudência buscaram elucidar os fatores que


definitivamente distinguiriam essa atividade, concluindo que seu aspecto primordial e
indispensável para sua definição, seria o conhecido binômio bancário: tomar dinheiro
emprestado a crédito e dá-lo também por empréstimo.

Sendo assim, de acordo com os ensinamentos de Salomão Neto37, para que haja
atividade privativa de Instituição Financeira, deve existir a captação e repasse cumulativo
de recursos.

36
“Artigo 17. Consideram-se instituições financeiras, para os efeitos da legislação em vigor, as pessoas
jurídicas, públicas ou privadas, que tenham como atividade principal ou acessória a coleta, intermediação ou
aplicação de recursos financeiros próprios ou de terceiros, em moeda nacional ou estrangeira, e a custódia
de valor de propriedade de terceiros”.
37
SALOMÃO NETO, Eduardo. Direito Bancário. 2° Edição. São Paulo: Atlas, 2014, página 29.
De forma que os elementos dessa atividade são: (a) a captação de recursos de
terceiros em nome próprio, (b) seguida de repasse financeiro através de operação de mútuo,
(c) com o intuito de auferir lucro derivado da maior remuneração dos recursos repassados
em relação à dos recursos coletados, (d) desde que a captação seguida de repasse se realize
em caráter habitual.

Conforme o entendimento majoritário dos doutrinadores, as Instituições


Financeiras privadas no Sistema Financeiro Nacional (“SFN”) podem ser classificadas em
nove diferentes espécies, classificando-as preliminarmente em instituições bancárias (i.e.,
autorizadas a captar recursos junto ao público sob a forma de depósitos à vista, com o que
obtêm o efeito multiplicador da moeda) e instituições não bancárias (não autorizadas a
captar recursos dessa forma).

Inicialmente, cabe analisar o conceito de instituição financeira, cuja definição


legal é dada pelo artigo 17 da Lei nº 4.595, de 31 de dezembro de 1964 (“Lei 4.595/64”),
nos seguintes termos:

Art. 17 - Consideram-se instituições financeiras, para os efeitos da


legislação em vigor, as pessoas jurídicas públicas ou privadas, que tenham como
atividade principal ou acessória a coleta, intermediação ou aplicação de recursos
financeiros próprios ou de terceiros, em moeda nacional ou estrangeira, e a
custódia de valor de propriedade de terceiros.

Parágrafo único. Para os efeitos desta lei e da legislação em vigor,


equiparam-se às instituições financeiras as pessoas físicas que exerçam qualquer
das atividades referidas neste artigo, de forma permanente ou eventual.”

Eventual prática de atividade exclusiva de instituição financeira está sujeita às


sanções previstas no § 7º do artigo 44 da Lei 4.595/64, as quais se aplicam à empresa e a
seus administradores, conforme segue:

Art. 44. As infrações aos dispositivos desta lei sujeitam as


instituições financeiras, seus diretores, membros de conselhos
administrativos, fiscais e semelhantes, e gerentes, às seguintes penalidades,
sem prejuízo de outras estabelecidas na legislação vigente:

(...)
§ 7º Quaisquer pessoas físicas ou jurídicas que atuem como
instituição financeira, sem estar devidamente autorizadas pelo Banco
Central da Republica do Brasil, ficam sujeitas à multa referida neste artigo
[multa pecuniária variável] e detenção de 1 a 2 anos, ficando a esta
sujeitos, quando pessoa jurídica, seus diretores e administradores.”

O caráter excessivamente amplo e impreciso do artigo 17 da Lei 4.595/64 deriva


basicamente da indefinição sobre o que sejam atividades de “coleta”, “intermediação” ou,
ainda “aplicação” de recursos financeiros. Há questionamentos, ainda, se tais atividades
devem ocorrer concomitantemente para que os requisitos formais na Lei 4.595/64 sejam
atendidos. Essas contradições impõem a necessidade de analisar o conceito de instituição
financeira de modo mais aprofundado.

Há diferentes posições em relação aos elementos que configuram a atividade


privativa de instituição financeira (“coleta, intermediação, aplicação”). Se interpretada de
forma literal, a norma leva à conclusão de que não é necessária a concomitância desses três
elementos para configurar atividade privativa de instituição financeira, em virtude da
conjugação “ou”.

No entanto, há quem defenda que uma determinada entidade apenas pode ser
considerada uma instituição financeira se desempenhar as atividades mencionadas no
“caput” do artigo 17 da Lei 4595/64 de maneira concomitante, não isolada. Nesse sentido
é o entendimento de Nelson Eizirik38:

Portanto, somente ocorrendo a interligação das atividades


relacionadas – coleta, intermediação e aplicação de recursos de terceiros –
poderão ficar caracterizadas atividades privativas de instituições
financeiras.

38
EIZIRIK, Nelson. Caracterização do Exercício Irregular da Atividade Privativa de Instituição
Financeira. In: CARVALHOSA, Modesto e EIZIRIK, Nelson. Estudos de Direito Empresarial. São Paulo:
Saraiva, 2010, p. 523-531.
Wilson do Egito Coelho, ex-consultor jurídico do Banco Central do Brasil, em
estudo apresentado logo após a edição da Lei 4.595/64 já compartilhava do mesmo
entendimento39:

(...) não é possível considerar como instituição financeira a pessoa


jurídica pública ou privada que se dedique unicamente a aplicar recursos
financeiros independentemente da coleta e intermediação dos mesmos. Esta
impossibilidade baseia-se no fato de a aplicação de recursos financeiros –
operação ativa, por excelência das instituições financeiras – não pode ser
apreendida isoladamente, mas somente em conjunto com os dois outros
elementos, integrantes, indissociáveis da unidade conceitual de instituição
financeira, quais sejam, a coleta e a intermediação de recursos financeiros.

Eventual realização de operações ou atividades vedadas, não autorizadas ou em


desacordo com a autorização concedida pelo Banco Central do Brasil, conforme artigo 3º,
II da Lei 13.506 de 13 de novembro de 2017 está sujeita às sanções previstas no artigo 5º
do referido diploma, as quais se aplicam à empresa e a seus administradores, conforme
segue:

“Art. 5o São aplicáveis as seguintes penalidades às pessoas mencionadas no art.


2o desta Lei, de forma isolada ou cumulativa:

(...)

I - admoestação pública;

II - multa;

III - proibição de prestar determinados serviços para as instituições mencionadas


no caput do art. 2o desta Lei;

IV - proibição de realizar determinadas atividades ou modalidades de operação;

39
COELHO, Wilson do Egito. Empréstimo de dinheiro por particulares: quando se caracteriza
operação privativa dos bancos. Revisa da OAB, V. 2, n. 4, p. 341
V - inabilitação para atuar como administrador e para exercer cargo em órgão
previsto em estatuto ou em contrato social de pessoa mencionada no caput do art.
2o desta Lei;

VI - cassação de autorização para funcionamento.”

Nos últimos anos, o Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional


(“CRSFN”) proferiu decisões em ambos os sentidos, alternando seu entendimento ao longo
do tempo. Até o ano 2000, existia uma jurisprudência relativamente pacífica no sentido de
que, para a caracterização de uma instituição financeira, seria preciso que as atividades
mencionadas no “caput” do artigo 17 da Lei 4.595/64 fossem exercidas pela entidade de
maneira concomitante, não isolada40.

No entanto, decisões mais recentes do CRSFN vêm adotando uma intepretação


literal do dispositivo em questão. Nesse sentido é a seguinte decisão do CRSFN prolatada
em novembro de 2013:

“Por uma análise semântica, a utilização da partícula "ou" demonstra que


é necessária para a caracterização da atividade de instituição financeira
somente uma das atividades, sendo desnecessária a concomitância de
captação, intermediação e aplicação”.

Analisando as decisões mais recentes do CRSFN, a jurisprudência parece estar


adotando uma interpretação literal do artigo 17 da Lei 4.595/64 apenas de forma a
considerar como atividade financeira aquelas operações que, embora sejam tipicamente
bancárias, não necessariamente contenham os três elementos.

40
Conforme decisão proferida no Recurso nº 3832 (Pricewaterhousecoopers Auditores Independentes
vs. BACEN), julgado em 15.9.2004: “A esse respeito, comunga-se do entendimento que define uma entidade
como instituição financeira nos casos em que haja cumulação de captação, intermediação e aplicação de
recursos de terceiros. E, mesmo assim, se os recursos forem captados de forma difusa do público e não de
pessoas jurídicas específicas, em número pequeno e determinado. Também necessário, para materialização
de instituição financeira, que haja caráter habitual, a atividade seja feita de forma profissional e com os
riscos inerentes à especulação.”
Por exemplo, operações de empréstimo realizadas com profissionalismo e
habitualidade, mas com a utilização de recursos próprios, sem captação de recursos de
terceiros. É o que se observa na seguinte decisão do CRSFN41:

[o] entendimento de que seria necessária a concomitância é absolutamente


incompreensível, uma vez que as instituições financeiras não realizam
necessariamente as três atividades. Os bancos, por exemplo, captam
recursos junto aos seus clientes e aplicam tais recursos, emprestando-os aos
tomadores.

Com relação especificamente à atividade de intermediação, cabe ainda observar


que há duas interpretações possíveis, utilizadas na doutrina e na jurisprudência.

A primeira é partidária da interpretação de que a intermediação apenas surge


quando há, de um lado, uma captação e, de outro, uma aplicação. Ou seja, seria, nas
palavras de Wilson do Egito Coelho, a operação que surge da “inter-relação” da coleta e
aplicação. Uma segunda possível interpretação, que inclusive consta de outra decisão do
CRSFN, refere-se à atividade dos administradores de recursos de terceiros, das
distribuidoras e das corretoras de valores.

3.3. A classificação das atividades privativas de instituições financeiras e sua


correlação com a circulação de criptoativos

Os preceitos normativos genéricos aplicáveis a requerimentos propostos ao Banco


Central para a obtenção ou constituição de Instituições Financeiras estão determinados na
Resolução do Conselho Monetário Nacional nº 4.122, de 2 de agosto de 2012.

Existem determinadas restrições para que se possa ser constituída uma Instituição
Financeira privada, dentre elas, a necessidade de autorização pelo Banco Central do Brasil

41
Vide decisão proferida nos autos do Recurso CRSFN nº 5783 (Consórcio Nacional GM Ltda. vs.
BACEN), julgado em 29.3.2005.
para entrar em funcionamento. Ademais, deve ser ressaltado que, de acordo com a
Constituição Federal do Brasil, a participação do capital estrangeiro em Instituições
Financeiras, está sujeita além da prévia aprovação do Banco Central do Brasil, além disso,
usualmente os requerimentos referentes a aumento de participação estrangeira no SFN
necessita da edição de um decreto emanado pelo Poder Executivo.

Deve ser ressaltado, no que tange as aquisições de participações em Instituições


Financeiras brasileiras que já sejam detidas, direta ou indiretamente, por estrangeiros, o
decreto presidencial não é aplicável, uma vez que a aquisição referida não altera de
nenhuma forma o grau de participação estrangeira no SFN.

Conforme elucidado por Nelson Abraão42, a organização institucional do Sistema


Financeiro Nacional foi definida pela Lei da Reforma Bancária, que originou o Conselho
Monetário Nacional (“CMN”), que tem como uma de suas finalidades a fiscalização das
políticas monetárias e cambiais voltadas para o desenvolvimento econômico e social bem
como pela operação do sistema financeiro, e conferiu poderes ao Banco Central para que
o mesmo possa emitir moeda e exercer o controle sobre o crédito.

Os órgãos regulatórios e fiscalizadores abaixo compõem o Sistema Financeiro


Nacional:

(i) Conselho Monetário Nacional;

(ii) Banco Central;

(iii) Comissão de Valores Mobiliários;

(iv) Superintendência de Seguros Privados; e

(v) Secretaria de Previdência Complementar.

O Banco Central do Brasil e o Conselho Monetário Nacional são responsáveis por


regular o setor bancário do Brasil, já a Comissão de Valores Mobiliários é responsável pelo

42
ABRÃO, Nelson. Direito Bancário. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p 66
desenvolvimento e implementação das políticas do CMN que dizem respeito ao Mercado
de Valores Mobiliários.

3.3.1 Conselho Monetário Nacional

O Conselho Monetário Nacional é responsável pela formulação e supervisão


global das políticas monetária, de crédito, orçamentária, fiscal e de dívida pública. O CMN
tem por finalidade:

(i) Adaptar o volume dos meios de pagamento às necessidades da economia


nacional;

(ii) Regular o valor interno da moeda;

(iii) Regular o valor externo da moeda e o equilíbrio na balança de pagamento


do País;

(iv) Orientar a aplicação de recursos das Instituições Financeiras;

(v) Propiciar o aperfeiçoamento dos recursos das instituições e instrumentos


financeiros;

(vi) Zelar pela liquidez e solvência das Instituições Financeiras;

(vii) Coordenar as políticas monetária, creditícia, orçamentária, fiscal e da dívida


pública; e

(viii) Definir a política a ser observada na organização e no funcionamento do


mercado de valores mobiliários brasileiro.

O Ministro da Fazenda ocupa a presidência do Conselho Monetário Nacional, o


qual é composto também pelo Ministro do Planejamento, Orçamento e Gestão e pelo
Presidente do Banco Central do Brasil.
3.3.2. Banco Central do Brasil

A Lei da Reforma Bancária atribuiu poderes ao Banco Central do Brasil para


instituir as políticas monetárias e de crédito determinadas pelo CMN, além de fiscalizar as
Instituições Financeiras sejam elas dos setores público ou privado, submetendo-lhes às
penas estabelecidas, caso haja algum descumprimento normativo.

Dentre as suas principais atribuições estão:

(i) emitir papel-moeda e moeda metálica;

(ii) executar os serviços do meio circulante;

(iii) receber recolhimentos compulsórios e voluntários das instituições


financeiras;

(iv) realizar operações de redesconto e empréstimo às instituições financeiras;

(v) regular a execução dos serviços de compensação de cheques e outros papéis;

(vi) efetuar operações de compra e venda de títulos públicos federais;

(vii) exercer o controle de crédito;

(viii) exercer a fiscalização das instituições financeiras;

(ix) autorizar o funcionamento das instituições financeiras;

(x) estabelecer as condições para o exercício de quaisquer cargos de direção nas


instituições financeiras;

(xi) vigiar a interferência de outras empresas nos mercados financeiros e de


capitais; e

(xii) controlar o fluxo de capitais estrangeiros no país.


O Presidente da República é o responsável pela nomeação do Presidente do Banco
Central, para exercício do cargo por tempo indeterminado, tal nomeação é sujeita à
ratificação pelo Senado Federal.

3.3.4 A Comissão de Valores Mobiliários

Outro componente do Sistema Financeiro Nacional, com sede e foro na Cidade


do Rio de Janeiro e jurisdição em todo território nacional, a Comissão de Valores
Mobiliários (“CVM”) consiste em uma autarquia ligada ao Ministério da Fazenda, com
personalidade jurídica e patrimônio próprios, dotada de autoridade administrativa
independente, ausência de subordinação hierárquica, mandato fixo e estabilidade de seus
dirigentes, e autonomia financeira e orçamentária. A CVM tem por finalidade, dentre
outras, a implementação das políticas do CMN referente ao mercado de valores
mobiliários, sendo a autarquia competente para fiscalizar regulamentar e desenvolver esse
mercado, observando a Lei do Mercado de Valores Mobiliários, bem como a Lei 6.404/76.

É atribuído à CVM, regular a fiscalização e inspeção das companhias abertas, a


negociação e intermediação nos mercados de valores mobiliários, regular e fiscalizar o
Mercado de Valores Mobiliários, como instrumento de captação de recursos para as
empresas, a organização, funcionamento e operação das bolsas de valores, dentre outras.

A administração da CVM é composta por um Presidente e quatro Diretores, sendo


que devem ter reputação ilibada e reconhecida competência em matéria de mercado de
capitais, os mesmos devem ser nomeados pelo Presidente da República, e serão nomeados
apenas após a aprovação do Senado Federal.

3.3 A natureza jurídica das atividades de uma instituição financeira e sua


relação com os criptoativos.

O conceito de instituição financeira decorre da caracterização das atividades que


tais entidades desempenham, para tanto o legislador brasileiro espelhou-se nas definições
especialmente nos países de Civil Law para estabelecer as atividades privativas de
instituição financeira cuja, por si só, coloca uma determina instituição no rol de entidades
que compõem este gênero.

Entretanto, o legislador brasileiro não distinguiu assertivamente como ocorreu na


legislação francesa o gênero “instituição financeira” da espécie “banco”, de forma que
as definições adotadas pelo ordenamento jurídico induzem a uma confusão entre tais
institutos.

A delimitação do conceito de instituição financeira encontra-se no artigo 17 da


Lei nº 4.595, de 31 de dezembro de 1964 (“Lei 4595/64”), que regulamenta o Sistema
Financeiro Nacional, a seguir transcrito:

Art. 17. Consideram-se instituições financeiras, para os efeitos da


legislação em vigor, as pessoas jurídicas públicas ou privadas, que
tenham como atividade principal ou acessória a coleta,
intermediação ou aplicação de recursos financeiros próprios ou de
terceiros, em moeda nacional ou estrangeira, e a custódia de valor
de propriedade de terceiros.

Parágrafo único. Para os efeitos desta lei e da legislação em vigor, equiparam-se


às instituições financeiras as pessoas físicas que exerçam qualquer das atividades
referidas neste artigo, de forma permanente ou eventual

Conforme afirma Nelson Abraão, o ordenamento jurídico brasileiro não distingue


o gênero “instituição financeira” da espécie “banco” equiparando ambos os conceitos. A
confusão trazida pelo artigo supramencionado decorre da equiparação trazida pelo
legislador de as atividades principais e acessórias. Ora, a caracterização de uma atividade
empresarial deve estar baseada na atividade principal desempenhada pelo empreendedor
e não pelas atividades acessórias, de forma que logicamente o conceito de instituição
financeira deveria derivar das atividades principais desempenhadas por tais instituições.

Nos termos da definição de instituição financeira nos termos do art. 17 da Lei


4.595/64 o conceito de instituição financeira adotado pelo ordenamento jurídico
brasileiro é composto por quatro elementos principais: coleta, intermediação ou
aplicação de recursos próprios ou de terceiros e a custódia de valores de propriedade de
terceiros.
Se interpretada de forma literal, a norma leva à conclusão de que não é necessária
a concomitância desses 3 (três) elementos para configurar atividade privativa de
instituição financeira, em virtude da conjugação “ou”. Não obstante, na doutrina nacional
há quem defenda que uma determinada entidade apenas pode ser considerada uma
instituição financeira se desempenhar as atividades mencionadas no “caput” do artigo 17
da Lei 4595/64 de maneira concomitante, não isolada. Entre

O Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional (“CRSFN”), analisando


o Recurso nº 13.128, de relatoria do Conselheiro Arnaldo Penteado Laudísio deliberou
que diante das constatações do caso, ficou caracterizada a irregularidade consistente na
realização de operações privativas de instituição financeira, com infringência ao contido
no caput do artigo 17, e, caput e § 1º, do artigo 18, da Lei 4.595/64.

O Conselheiro Arnaldo Penteado Laudísio, relator do caso, deixou registrado em


seu voto que, para caracterização de exercício de atividade privativa de instituição
financeira, basta, apenas, a configuração de um dos elementos “captação”,
“intermediação” ou “aplicação de recursos próprios ou de terceiros”. Os demais
conselheiros acompanharam o relator.

Neste sentido, observa-se uma tendência do CRSFN de manter sua


jurisprudência, com viés conservador, ampliando a interpretação do artigo 17 da Lei nº.
4.595/64 para considerar como instituição financeira a entidade que pratica isoladamente
qualquer das atividades descritas no caput da norma - captar, intermediar ou aplicar -
principalmente se há indícios de fraude nas operações sob análise de referido órgão.

Conceito semelhante é adotado pelo artigo 1º da Lei nº 7.492, de 16 de junho de


1986 (“Lei nº 7492/86”), que dispõe sobre os crimes contra o Sistema Financeiro
Nacional:

Art. 1º. Considera-se instituição financeira, para efeito desta lei, a


pessoa jurídica de direito público ou privado, que tenha como
atividade principal ou acessória, cumulativamente ou não, a
captação, intermediação ou aplicação de recursos financeiros de
terceiros, em moeda nacional ou estrangeira, ou a custódia, emissão,
distribuição, negociação, intermediação ou administração de
valores mobiliários.
A Lei 7.492/86 traz algumas alterações ao conceito de instituição financeiro
implementado pela Lei 4.595/64. A definição adotada pela Lei 7.492/86 exclui a
referência à atividade de captação, intermediação ou aplicação de recursos próprios,
mantendo para fins do conceito de instituição financeira apenas a prática de tais
atividades com relação a recursos de terceiros. Ademais, referida lei determina que a
instituição financeira pode ser caracterizada pela “custódia, emissão, distribuição,
negociação, intermediação ou administração de valores mobiliários”.

Com base nesse dispositivo e na evolução do legislativo na determinação de


ambas as definições, Ernane Gâlveas conceituou como instituição financeira:

(...) as empresas que desempenham, no mercado, funções de


intermediárias entre os que têm recursos ou economias disponíveis
e os que necessitam de financiamento para seus gastos de consumo
ou de investimento. Essas empresas servem de caixa único para a
comunidade (depósitos bancários) e efetuam o transporte financeiro
da produção, provendo os recursos necessários ao processo
produtivo, através de financiamentos para a aquisição de matérias-
primas, para vendas a prazo de bens de consumo etc.

Tal definição, entretanto, conforme afirma Fábio Konder Comparato considera


principalmente as atividades desempenhadas por bancos, e não por toda e qualquer
instituição financeira, dado que a “formação de caixa único” está diretamente ligada a
captação de depósitos, atividade privativa da espécie “bancos” e não necessariamente do
gênero “instituição financeira.

Desta forma, importante distinguir ambos os conceitos, uma vez que a instituição
financeira é a entidade que negocia créditos com atividade principal ou acessória,
influenciando na velocidade da circulação da moeda, enquanto os bancos atuam na
efetiva criação da moeda escritural, conforme afirma Comparato em seus comentários.
Referido conceito, entretanto, se mostra ultrapassado diante do marco regulatório
criado em 2013 no qual foi criado o conceito de instituição de pagamento a fim de regular
a emissão de cartões pré e pós pagos e a criação de moeda escritural no âmbito do
mercado de meios de pagamentos, descrita no capítulo 2 do presente trabalho.

Neste sentido, cabe mencionar que a definição adotada pelo legislador e regulador
brasileiro determina expressamente que instituições de pagamento não são instituições
financeiras, mas entidades distintas sujeitas a conceituação e arcabouço legal próprias.

Diante de tal atualização legislativa restou premente atentar aos termos utilizados
na conceituação de instituição financeira de forma a não resultar na confusão de ambos
os institutos.

Assim sendo, resta utilizar-se de elemento pacífico na doutrina para a entre o


gênero “instituição financeira” e a espécie “banco”: a origem dos fundos utilizados pela
entidade em suas operações. Enquanto a instituição financeira utiliza apenas fundos de
seus próprios canais, os bancos utilizam também os fundos que eles recebem
profissionalmente do público mediante recebimento de depósitos.

V. ANÁLISE DO IMPACTO REGULATÓRIO INTERNACIONAL SOBRE


OS CRIPTOATIVOS

Um aspecto interessante mercado sob análise e já problematizado anteriormente


neste trabalho é a fluidez dos termos utilizados para descrever os diferentes produtos
criados sob a forma de criptoativos. Como já dito, embora as várias formas do que são
amplamente conhecidas como "criptomoedas" sejam semelhantes, pois são baseadas
principalmente no mesmo tipo de tecnologia descentralizada conhecida como blockchain
com criptografia inerente, a terminologia usada para descrevê-las varia muito de uma
jurisdição para outra.

Em relatório internacional divulgado a respeito, alguns dos termos usados pelos


países para fazer referência à criptomoeda incluem: moeda digital (Argentina, Tailândia
e Austrália), commodity virtual (Canadá, China, Taiwan), cripto-token (Alemanha),
token de pagamento (Suíça), moeda digital (Itália e Líbano), moeda eletrônica (Colômbia
e Líbano) e ativo virtual (Honduras e México)43.

Uma das ações mais comuns identificadas nas jurisdições pesquisadas são os
avisos emitidos pelo governo sobre as armadilhas de investir nos mercados de
criptomoeda44. Tais alertas, em sua maioria emitidos por bancos centrais, são em grande
parte projetados para educar os cidadãos sobre a diferença entre as moedas reais, que são
emitidas e garantidas pelo Estado, e moedas criptográficas, que não possuem curso
forçado, como já visto.

A maioria dos avisos governamentais emitidos pelos países analisados menciona


o risco adicional resultante da alta volatilidade associada aos criptoativos e do fato de
que muitas das organizações que facilitam essas transações não são regulamentadas. A
maioria também observa que os cidadãos que investem em criptomoedas o fazem por sua
própria conta e risco e que nenhum recurso legal está disponível para eles em caso de
perda.

Muitas das advertências emitidas por vários países também observam as


oportunidades que os criptoativos criam para atividades ilegais, como lavagem de
dinheiro e terrorismo. Alguns dos países pesquisados vão além de simplesmente avisar o
público e expandiram suas leis sobre lavagem de dinheiro, contraterrorismo e crimes
organizados para incluir os mercados de criptomoedas, e exigem que bancos e outras
instituições financeiras facilitem esses mercados para conduzir todas as exigências
devidas tais leis. Por exemplo, a Austrália45, o Canadá e recentemente promulgaram leis

43
Traduções literais da terminologia listada no Relatório elaborado pela Library of Congress norte-
americana. <Disponível em: https://www.loc.gov/law/help/cryptocurrency/cryptocurrency-world-
survey.pdf>
44
No Brasil, como será explorado a seguir, a CVM e o BACEN emitiram comunicados ao mercado
alertando sobre os riscos do emprego desses ativos, bem como delineando a interpretação da atual
regulamentação aplicável a esses mercados emergentes.
45
Em agosto de 2015, o Comitê de Referências Econômicas do Senado do Parlamento Australiano publicou
um relatório, após a conclusão de uma consulta sobre “como desenvolver um sistema regulatório eficaz para
moeda digital, o potencial impacto da tecnologia de moeda digital na economia australiana e como a Austrália
pode tirar proveito da tecnologia de moeda digital.” O governo respondeu às recomendações do Comitê em
maio de 2016, que culminou na adequação do tratamento fiscal de criptomoedas, que observou aspectos das
seguintes ações do Australian Taxation Office (ATO). No que diz respeito à prevenção à lavagem de dinheiro
e financiamento do combate ao terrorismo, o governo australiano apresentou um projeto de lei ao Parlamento
em agosto de 2017 para que os operadores de corretoras digitais sejam abrangidos pelo regime de
regulamentação do aplicável, conforme recomendado pela comissão do Senado A lei foi promulgada em
dezembro de 2017 e as disposições relevantes entraram em vigor em 3 de abril de 2018.
para levar as transações de criptomoeda e instituições que as facilitam sob o âmbito das
leis de lavagem de dinheiro e financiamento do terrorismo.

Algumas jurisdições foram ainda mais longe e impuseram restrições aos


investimentos em criptomoedas, cuja extensão varia de uma jurisdição para outra. Alguns
(Alemanha, Bolívia, Marrocos, Nepal, Paquistão e Vietnã) proíbem toda e qualquer
atividade envolvendo criptomoedas.

O Catar e o Bahrein têm uma abordagem um pouco diferente na medida em que


impedem seus cidadãos de se engajarem em qualquer tipo de atividade que envolva
criptomoedas no local, mas permitem que os cidadãos o façam fora de suas fronteiras.

Há também países que, apesar de não proibirem seus cidadãos de investir em


criptoativos, impõem restrições indiretas impedindo que instituições financeiras de suas
fronteiras facilitem transações envolvendo criptomoedas (Bangladesh, Irã, Tailândia,
Lituânia, Lesoto, China46 e Colômbia).

Um limitado número de países regulamenta os ICOs. Das jurisdições que tratam


das ICOs, algumas (principalmente China, Macau e Paquistão) as banem completamente,
enquanto a maioria tende a se concentrar em regulá-las.

Na maioria destes últimos casos, a regulamentação das ICOs e das instituições


reguladoras relevantes varia dependendo de como uma oferta é categorizada. Por
exemplo, na Nova Zelândia, obrigações específicas podem ser aplicadas dependendo se
o token oferecido é categorizado como dívida, segurança, segurança patrimonial, produto
de investimento gerenciado ou derivativo47.

46
Em 3 de dezembro de 2013, autoridades monetárias chinesas emitiram em conjunto um aviso alertando o
público sobre os riscos do bitcoin, definida como “por natureza uma commodity virtual especial”, que “não
tem o mesmo status legal de moeda” e “não pode e não deve ser circulada no mercado como moeda”. De
acordo com o aviso, os bancos e as instituições de pagamento na China estão proibidas de negociar bitcoins.
Instituições financeiras e de pagamento são proibidas de usar preços de bitcoin para produtos ou serviços ou
de compra ou venda de bitcoins, nem podem fornecer serviços relacionados a bitcoins diretos ou indiretos,
incluindo registro, negociação, liquidação, compensação ou outros serviços; aceitar bitcoins ou usar bitcoins
como uma ferramenta de liquidação; ou negocie bitcoins com yuan chinês ou moedas estrangeiras.
47
Em outubro de 2017, a autoridade monetária (Financial Markets Authority - FMA) neozelandesa publicou
informações sobre criptomoedas e os riscos associados a elas, como parte de sua orientação sobre as opções
de investimento. Em particular, destaca os seguintes três pontos sobre criptomoedas: são ativos de alto risco
e altamente voláteis; seu preço pode subir e descer muito rapidamente; e não são regulamentados na Nova
Zelândia
A FMA também publicou comentários sobre ofertas iniciais de moedas (ICOs) e serviços de criptomoeda
(incluindo trocas, carteiras e corretagem). As informações referem-se à aplicação do marco regulatório
existente para produtos e serviços financeiros. Com relação aos ICOs, a orientação afirma que: Estar ou não
Da mesma forma, na Holanda, as reservas aplicáveis a um ICO específico
dependem de o token ofertado ser considerado uma garantia ou uma unidade em um
investimento coletivo, uma avaliação feita caso a caso.

Nem todos os países vêem o advento da tecnologia blockchain e criptomoedas


como uma ameaça, embora por diferentes razões. Parte da jurisdição pesquisada, apesar
de não reconhecer as criptomoedas como moeda legal, vê um potencial na tecnologia por
trás disso e está desenvolvendo um regime regulatório favorável à criptomoeda como um
meio de atrair investimentos em empresas de tecnologia que se destacam neste setor,
como Espanha48, Bielorrússia, Ilhas Cayman e Luxemburgo49.

Algumas jurisdições estão procurando ir ainda mais longe e desenvolver seu


próprio sistema de criptomoedas. Esta categoria inclui uma lista diversificada de países,
como as Ilhas Marshall, a Venezuela, os países membros do Banco Central do Caribe
Oriental (ECCB) e a Lituânia. Além disso, alguns países que emitiram avisos ao público
sobre as armadilhas dos investimentos em criptomoedas também determinaram que o
tamanho do mercado de criptomoedas é muito pequeno para ser motivo de conteúdo
suficiente para justificar a regulamentação e /ou a proibição neste momento (Bélgica,
África do Sul e Reino Unido)50.

Uma das muitas questões que surgem de permitir investimentos e o uso de


criptomoedas é a questão da tributação. A esse respeito, o desafio parece ser como
categorizar as criptomoedas e as atividades específicas que as envolvem para fins de

sujeito à regulamentação depende se o ICO inclui um "produto financeiro" está sendo oferecido a
investidores de varejo na Nova Zelândia (ou seja, uma "oferta regulada" está sendo feita). Se um token
oferecido por meio de um ICO é um produto financeiro e, em caso afirmativo, que tipo de produto depende
das características específicas e da substância econômica do token. A FMA então explica como um token
pode ser considerado um dos quatro tipos de produtos financeiros estabelecidos na Lei de Conduta dos
Mercados Financeiros de 2013 (sendo títulos de dívida, ações, produtos de investimento gerenciado e
derivativos), e se sim, quais são as obrigações do emissor.
48
Comunicado Conjunto de la Comisión Nacional del Mercado de Valores (CNMV) y Banco de España
[Joint Press Statement by CNMV and Banco de España on “Cryptocurrencies” and “Initial Coin Offerings”
(ICOs)] (Feb. 8, 2018). <Disponível em:
https://www.cnmv.es/loultimo/NOTACONJUNTAriptoES%20final.pdf>
49
España Busca Aprobar una Legislación Amistosa para las Criptomoneda. Spain Seeks to Approve Friendly
Legislation Towards Cryptocurrencies], Harwareate (Feb. 18, 2018). <Disponível em:
https://hardwareate.com/espana-busca-aprobar-una-legislacion-amistosas-las-criptomonedas>
50
As Ilhas Marshall promulgaram legislação autorizando o lançamento de sua “criptomoeda” para servir
como moeda de curso legal para cidadãos e empresas na ilha. A moeda será conhecida como soberana, ou
SOV, e servirá como “moeda de curso legal das Ilhas Marshall para todas as dívidas, encargos públicos,
impostos e contribuições”. Circulará como moeda legal além do dólar americano O SOV será introduzido
em uma oferta inicial de moeda (ICO), após a qual os residentes das Ilhas Marshall receberão os meios para
manter, salvar e conduzir transações com o SOV, e os comerciantes nas Ilhas Marshall terão acesso a um
aplicativo de computador que permitirá que eles recebam pagamentos feitos com o SOV.
tributação. Isso é importante principalmente porque os ganhos obtidos com mineração
ou venda de moedas criptografadas são categorizados como renda e os ganhos de capital
invariavelmente determinam a faixa de imposto aplicável. Os países pesquisados
classificaram as criptomoedas de maneira diferente para fins fiscais, conforme ilustrado
pelos exemplos a seguir:

Principalmente devido a uma decisão de 2015 do Tribunal de Justiça das


Comunidades Europeias (TJCE), os ganhos em investimentos em criptomoeda não estão
sujeitos ao imposto sobre valor agregado nos Estados-Membros da União Europeia51.

Na maioria dos países pesquisados que têm ou estão em processo de desviar as


regras de tributação, a mineração de criptomoedas também está isenta de tributação. No
entanto, na Rússia52, a mineração que excede um certo limite de consumo de energia é
tributável.

Em um pequeno número de jurisdições pesquisadas, as criptomoedas são aceitas


como meio de pagamento. A Ilha de Man e o México também permitem o uso de
criptomoedas como meio de pagamento junto com sua moeda nacional 53. Assim como
os governos ao redor do mundo que financiam vários projetos ao segregar títulos do
governo, o governo de Antígua e Barbuda permite o financiamento de projetos e
instituições de caridade por meio de ICOs apoiadas pelo governo54.

As diferentes reações das distintas autoridades regulatórias globais delimitam


duas problemáticas centrais no que diz respeito à regulamentação desses ativos. A um, a
autoridade competente para fazê-lo, tendo em vista que as reações regulatórias oscilaram,

51
O Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias decidiou no caso Skatterverket v. David Hedqvist que
o imposto sobre valor agregado não incidiria sobre os estados-membro da União Europeia.
52
Lei nº. 419059-7, Federal Law of the Russian Federation on Digital Financial Assets, <Disponível em:
http://asozd2c.duma.
gov.ru/addwork/scans.nsf/ID/E426461949B66ACC4325825600217475/$FILE/419059-
7_20032018_419059-7.PDF?OpenElement (em Russo)
53
A lei mexicana para Regulamentar Empresas de Tecnologia Financeira, promulgada em março de 2018,
inclui um capítulo sobre operações com “ativos virtuais”. Este capítulo define ativos virtuais como
representações de valor registradas eletronicamente e utilizadas pelo público como meio de pagamento para
todos os tipos de transações legais, que só podem ser transferidas eletronicamente.
Além disso, o México promulgou uma lei estendendo a aplicação de suas leis relativas à lavagem de dinheiro
a ativos virtuais, exigindo, assim, que instituições financeiras que prestam serviços relacionados a esses
ativos relatem transações que excedam determinados valores.
54
Comunicado à imprensa. CNET Antigua, The Government of Antigua and Barbuda Supports CNET’s
Investment Development Projects and Charities Funded by the Initial Coin Offering for Development
<disponível em: https://www.prnewswire.com/news-releases/the-government-of-antigua-and-barbuda-
supports-cnets-investment-development-projects-and-charities-funded-by-the-initial-coin-offering-for-
development-300605628.html>
tendo vindo ora de autoridades monetárias, ora das autoridades supervisoras dos
mercados de capitais, tendo poucas jurisdições criado órgãos especializados nesses
ativos.

A dois, o tratamento jurídico que deve ser dado a esses instrumentos, que é a
problemática central da presente tese.

No Brasil, o primeiro ponto parece se delimitar com maior clareza. A natureza de


ativo concomitantemente ao comportamento como valor mobiliário atraem a
competência da CVM para regulamentar a matéria, cabendo ao Banco Central do Brasil
a função de supervisionar a atuação das entidades sob sua alçada para que não se
exponham aos riscos atinentes a esses ativos.

Quanto ao segundo ponto, a análise da experiência internacional pode ser sim


proveitosa para análise dos riscos decorrentes desses ativos, mas esbarra também na
problemática da conceituação jurídica desses ativos. Ainda que aqui se defenda que o
atual arcabouço jurídico brasileiro já é capaz de lidar com esses ativos de forma a não
impedir seu progresso de maneira segura, não é de se descartar o fato de que
regulamentação adequada poderia aprimorar o recepcionamento desses ativos no
ordenamento brasileiro.

IV. AS INITIAL COIN OFFERINGS

4.1. Conceito

ICO é a abreviatura de initial coin offering. Embora a abreviatura de ICO seja


próxima à do termo IPO (initial public offering ou oferta pública inicial de ações) e,
assim como os tradicionais IPOs, os ICOs possam ser utilizados como uma alternativa
de captação de recursos, há grandes diferenças entre ambos. As diferenças vão desde o
objeto da oferta em si, até a forma de liquidação de tais captações e o ambiente aonde
tais captações ocorrem.

Enquanto no IPO o objeto da oferta são as ações de companhias emissoras, no


ICO temos uma oferta dos chamados “coins” ou “tokens”. Conforme veremos em maior
detalhe a seguir, há diferentes espécies de coins ou tokens, sendo que, ao contrário das
ações, nem todos são valores mobiliários, havendo os chamados “utility tokens” e os
“security tokens”.
Ao contrário também de um IPO, no qual o pagamento pelos investidores do
preço das ações adquiridas ou subscritas é realizado em moeda corrente nacional (Reais),
no ICO o pagamento é efetuado com a entrega de ativos virtuais (como o Bitcoin ou
Ether).

Além disso, em um IPO a oferta é realizada em um ambiente com uma estrutura


centralizada e uma autoridade supervisora, como, por exemplo, a B3 S.A. – Brasil, Bolsa,
Balcão, que conta com uma série de instituições intermediárias (os bancos de
investimento e as corretoras). Já os ICOs são realizados em plataformas descentralizadas,
baseadas na tecnologia do blockchain, em uma rede peer to peer, sem uma autoridade
central e sem intermediários. Esse é o caso, por exemplo, da plataforma Ethereum, que
vem sendo largamente utilizada para o lançamento de ICOs, especialmente por esta
permitir a criação dos chamados smart contracts (contratos inteligentes). Os smart
contracts, de uma forma muito simplista, são contratos regidos por um código de
programação, utilizando a tecnologia do blockchain, o que os torna autoexecutáveis.

Em linhas gerais, os “tokens” ofertados em ICOs podem ser divididos em duas


espécies: “utility token” e “security token”.

Os “utility tokens” (conhecidos também como “commodity tokens” ou “tokens


utilidade”) apenas conferem a seus adquirentes o direito se utilizar uma determinada
funcionalidade, produto ou serviço. Esse é o caso do próprio Bitcoin. Outro exemplo
dessa espécie de token é o Civic (CVC), que fornece acesso a serviços de verificação de
identidade.

Já os “security tokens” (também chamados de “share tokens” ou “tokens valores


mobiliários”) representam uma captação de recursos junto ao público. Tais tokens podem
conceder a seus adquirentes, entre outros, direitos típicos de acionistas de companhias,
funcionando de forma muito semelhante a uma ação, ou direitos de participação em um
determinado empreendimento.

Em outubro de 2017, a Comissão de Valores Mobiliários (“CVM”) publicou uma


nota trazendo esclarecimentos sobre o enquadramento das Initial Coin Offerings no
ambiente legal e regulatório existente e aplicável ao mercado de capitais brasileiro. Em
tal nota, a CVM reconheceu a existência de diferentes espécies de “tokens” objeto de
ICOs e deixou claro que a caracterização de algumas ofertas de “tokens” ou “coins” como
ofertas públicas de valores mobiliários depende tanto do contexto econômico da emissão
quanto dos direitos conferidos aos investidores. Dessa forma, o regulador traçou uma
linha diferenciando os “security token” de outros ativos virtuais cujas características os
afastam do conceito de valor mobiliário existente no Brasil.

Vale notar que em novembro de 2017 a CVM divulgou novos esclarecimentos a


respeito dos ICOs, em formato de FAQ (perguntas e respostas), e em março de 2018 a
CVM divulgou novo comunicado também a respeito do assunto. Em ambos, a CVM
reforçou o entendimento acima indicado. O último comunicado, ainda, deixa claro que
até a data de sua divulgação nenhum ICO havia obtido dispensa ou registro de oferta
pública de distribuição de valores mobiliários na CVM, de forma a afastar os rumores de
que já haveria um ICO “aprovado” pela CVM.

4.1 Preocupações Regulatórias coadunadas aos riscos encerrados pelos


criptoativos

A realização de ICOs para captação de recursos junto ao público vem chamando


a atenção de reguladores ao redor do mundo e já foi objeto de manifestações por
autoridades dos Estados Unidos, China, Coréia do Norte, Suíça, Canadá, Hong Kong e
Singapura, dentre outras, além das autoridades brasileiras.

Com o crescimento do número de ICOs, surge uma série de preocupações dos


reguladores com diferentes aspectos de tais captações, especialmente com o risco de
fraude, operações de lavagem de dinheiro, evasão fiscal e a proteção dos investidores.
Há uma preocupação dos reguladores em assegurar, no mercado de ICOs, mecanismos
de proteção adequados como há nos mercados financeiro e de capitais tradicionais.

No entanto, como visto acima, é preciso considerar que há diferentes espécies de


coins ou tokens existentes, sendo que nem todos devem levantar as mesmas
preocupações. Até porque, não somente no caso dos valores mobiliários “tradicionais”,
como as securities¸ a pertinência ou não do enquadramento de um token ou coin como
valor mobiliário depende de uma análise caso a caso, como também demonstrou a
experiência internacional a esse respeito55.

Com relação especificamente à proteção dos investidores, tal preocupação é


voltada àqueles ICOs que sejam caracterizados como ofertas públicas de valores
mobiliários. A própria competência da CVM, assim como de órgãos reguladores do
mercado de capitais em diversas outras jurisdições, decorre de tal caracterização.

Nesse sentido, reguladores tanto no Brasil quanto em diversas outras jurisdições


já esclareceram que o ICO apenas está sujeito à regulação do mercado de capitais se o
objeto da oferta for um valor mobiliário.

Assim, a análise jurídica do token objeto de um ICO é imperativa para que se


possa avaliar eventual regulação aplicável a tal captação. Para fins dessa análise, é
preciso, inicialmente, examinar o conceito de valor mobiliário.

4.1.1 O que é um valor mobiliário?

A análise jurídica dos valores mobiliários e o estabelecimento de sua


conceituação têm se mostrado um grande desafio para a doutrina e legisladores. O
conceito adotado atualmente pelo direito brasileiro aproxima-se do modelo norte-
americano. Por essa razão, abordaremos brevemente o conceito de valor mobiliários nos
Estados Unidos antes de tratarmos do conceito de valor mobiliário no Brasil.

4.1.2. O direito norte-americano e o conceito de securities

O conceito de securities consta do Securities Act, promulgado em 1933, com o


objetivo principal de estabelecer regras e premissas para a negociação de valores
mobiliários envolvendo mais de um estado norte-americano. De acordo com o Securities
Act, “The term ‘‘security’’ means any note, stock, treasury stock, security future,

55
Vide Capítulo V.
security-based swap, bond, debenture, evidence of indebtedness, certificate of interest or
participation in any profit-sharing agreement, collateral-trust certificate,
preorganization certificate or subscription, transferable share, investment contract,
voting-trust certificate, certificate of deposit for a security, fractional undivided interest
in oil, gas, or other mineral rights, any put, call, straddle, option, or privilege on any
security, certificate of deposit, or group or index of securities (including any interest
therein or based on the value thereof), or any put, call, straddle, option, or privilege
entered into on a national securities exchange relating to foreign currency, or, in
general, any interest or instrument commonly known as a ‘‘security’’, or any certificate
of interest or participation in, temporary or interim certificate for, receipt for, guarantee
of, or warrant or right to subscribe to or purchase, any of the foregoing.”

O dispositivo legal acima transcrito não traz propriamente uma definição de valor
mobiliário ou security, mas uma relação, de forma exemplificativa – e não taxativa –,
dos tipos de títulos que podem ser considerados uma security no direito norte-americano.
Diante das lacunas apresentadas pela legislação federal, os tribunais norte-americanos e
a Securities Exchange Commission - SEC passaram a ser frequentemente acionados para
que se manifestassem com relação à definição de valor mobiliário.

Em 1943, foi submetida à apreciação da Suprema Corte o primeiro caso


envolvendo o conceito de valor mobiliário previsto no Securities Act, SEC v. C.M. Joiner
Leasing Corporation56. Essa empresa, após adquirir, como arrendatária, três mil acres de
terra no Estado do Texas, com o objetivo de explorar petróleo, mediante pesquisa e
perfuração do solo, decidiu ceder partes do contrato de arrendamento. As cessões tinham
por objetivo financiar o empreendimento. A Suprema Corte dos Estados Unidos entendeu
que o empreendimento envolvia a oferta pública pela Joiner de securities, mais

56
“The transactions involved in this case were not simply sales and assignments of interests in land, but, by
the nature of the offers, were within the terms "investment contracts" and "any interest or instrument
commonly known as a security,'" and were therefore sales of "securities" within the meaning of § 2(1) of
the Securities Act of 1933. P. 320 U. S. 351. The ejusdem generis rule and the maxim expressio unius
exclusio alterius are subordinate to the doctrine that courts will construe the details of an Act in conformity
with its dominating general purpose, will read text in the light of context, and, so far as the meanings of the
words fairly permit, will interpret the text so as to carry out in particular cases the generally expressed
legislative policy. P. 320 U. S. 350”
especificamente de contrato de investimento. Tal entendimento foi fundamentado,
principalmente, no fato de que referida empresa não oferecia meras cessões de
arrendamento, mas sim instrumentos que possibilitavam aos investidores (cessionários)
participar em eventuais lucros que viessem a decorrer da exploração dos poços de
petróleo.

Em 1946, a Suprema Corte voltou a apreciar analisar o conceito de contrato de


investimento, no emblemático caso SEC. v. W.J. Howey Company. O caso Howey57
consistia na venda de pequenos lotes de terra pela Howey Company. Esses lotes de terra
eram utilizados para o plantio de frutas cítricas. Além disso, outra companhia, a Howey-
in-the-Hills Service Company, subsidiária da primeira, prestava os serviços de plantio e
cultivo da terra, bem como os de comercialização das frutas ali produzidas.

A conclusão da Suprema Corte foi a de que os pequenos lotes de terra vendidos


pela Howey constituíam-se, na verdade, em “investimentos” feitos por centenas de
pessoas, que, sem ter o conhecimento, experiência e equipamentos necessários ao cultivo
das frutas cítricas, investiram “passivamente” em um negócio dirigido por terceiros, na
expectativa de obter lucros, não se tratando, assim, de simples aquisições de glebas de
terra, as quais, inclusive eram divididas em frações economicamente inviáveis quando
consideradas isoladamente.

Não se atendo apenas à forma dos instrumentos envolvidos no caso, mas também
analisando a realidade econômica da operação, a Suprema Corte norte-americana
concluiu que os contratos de investimento (investment contracts) compreenderiam todo
e qualquer instrumento que envolvesse “(a) an investment of money (b) in a common

57
For purposes of the Securities Act, an investment contract (undefined by the Act) means a contract,
transaction, or scheme whereby a person invests his money in a common enterprise and is led to expect
profits solely from the efforts of the promoter or a third party, it being immaterial whether the shares in the
enterprise are evidenced by formal certificates or by nominal interests in the physical assets employed in
the enterprise. Pp. 328 U. S. 298-299.3. The fact that some purchasers, by declining to enter into the
service contract, chose not to accept the offer of the investment contract in its entirety does not require a
different result, since the Securities Act prohibits the offer, as well as the sale, of unregistered nonexempt
securities. P. 328 U. S. 300. The test of whether there is an "investment contract" under the Securities Act
is whether the scheme involves an investment of money in a common enterprise with profits to come solely
from the efforts of others; and, if that test be satisfied, it is immaterial whether the enterprise is speculative
or nonspeculative, or whether there is a sale of property with or without intrinsic value. P. 328 U. S. 301.
enterprise (c) with profits to come (d) solely from the efforts of the promoter or a third
party”.

Dessa forma, o principal resultado do caso Howey foi a definição do contrato de


investimento, muito mais pela sua substância do que pela forma, identificando, desse
modo, uma security com base na substância econômica subjacente. Nas palavras do
professor Luiz Gastão Paes de Barros (1974, p. 48): “Assim, no caso em tela, foi
identificada, num contrato de investimento, a realidade econômica da transação, que seria
a substância comum às demais ‘formas’ de securities alinhadas na definição legal”.

Após esse caso, as Cortes norte-americanas passaram a procurar aplicar em


muitos casos o chamado “Howey test” para determinar se o título, instrumento ou
operação em exame, consistia ou não em uma security, ainda que nem sempre exigindo
a presença de todos os requisitos da “Howey definition”. Construiu-se, assim, uma
interpretação jurisprudencial em torno do conceito de security e de seus requisitos.
Embora não haja um entendimento unânime sobre tais requisitos, atualmente, é pacífico
que em matéria de valores mobiliários deve prevalecer a substância e não a forma.

3.1.3 O conceito de valor mobiliário no direito brasileiro

A primeira menção sistemática a valores mobiliários no ordenamento jurídico


brasileiro aparece na Lei nº 4.728, de 4 de julho de 1965, que, em seu artigo 2º,
disciplinou as atribuições do Conselho Monetário Nacional e do Banco Central relativas
ao mercado financeiro e de capitais. No entanto, apesar de mencionar os valores
mobiliários, a Lei nº 4.728/65 não se preocupou em defini-los. Tal definição foi
introduzida no ordenamento jurídico brasileiro apenas com o advento da Lei nº 6.385, de
7 de dezembro de 1976, criadora da CVM. Essa lei não trouxe propriamente um conceito
de valor mobiliário, mas sim uma lista taxativa dos instrumentos que, a partir de então,
seriam considerados como valores mobiliários:

Art. 2°. São valores mobiliários sujeitos ao regime desta Lei:

I - as ações, partes beneficiárias e debêntures, os cupões desses títulos e os bônus de


subscrição;

II - os certificados de depósitos de valores mobiliários;

III - outros títulos criados ou emitidos pelas sociedades anônimas, a critério do Conselho
Monetário Nacional.

A mesma lei explicitou, ainda, no parágrafo único de seu artigo 2º, os títulos
excluídos do conceito de valor mobiliário:

Art. 2º. (...)

Parágrafo único. Excluem-se do regime desta Lei:

I – os títulos da dívida pública federal, estadual ou municipal;

II – os títulos cambiais de responsabilidade de instituição financeira, exceto as debêntures.

Com base na faculdade atribuída ao Conselho Monetário Nacional (CMN) pelo


inciso III do artigo 2º da Lei nº 6.385/76, este órgão resolveu, em 1990, por meio da
Resolução nº 1.723, considerar como valor mobiliário a nota promissória emitida por
sociedade por ações, destinada à oferta pública – os commercial papers –, excetuando
apenas aquelas emitidas por instituições financeiras, sociedades corretoras e
distribuidoras de valores mobiliários e sociedades de arrendamento mercantil.
Posteriormente, em 1992, o CMN também passou a considerar valores mobiliários, por
meio da Resolução 1.907, os seguintes títulos: direitos de subscrição de valores
mobiliários; recibos de subscrição de valores mobiliários; opções de valores mobiliários
e certificados de depósitos de ações.

Além das resoluções do CMN, vários decretos, leis e medidas provisórias


ampliaram o rol da Lei nº 6.385/76, considerando outros instrumentos como valores
mobiliários. Todavia, como se tratava de um rol taxativo, qualquer instrumento ou título
negociado que não se enquadrasse na listagem apresentada pela Lei nº 6.385/76,
conforme ampliada posteriormente pelas resoluções do CMN, entre outras normas,
escaparia da fiscalização da CVM.
A impropriedade desse sistema ficou evidente com os escândalos envolvendo
empresas de captação de investimento em contratos de engorda de bois. Conhecidos
como contratos de boi gordo, esses contratos eram uma espécie de parceria pecuária, mas
o comprador dos bois, que, na verdade, era o investidor, recebia uma parcela do valor da
venda dos bois. As empresas que ofereciam essa “parceria” chegavam a prometer um
rendimento de cerca de 40% quando do abate dos bois. O segredo de um rendimento tão
atrativo foi descoberto depois que muitas vítimas caíram no golpe: essas empresas
funcionavam como uma pirâmide, também conhecida como esquema Ponzi. Isto é, os
contratos vencidos eram pagos com o dinheiro da entrada de novos investidores. Quando
os pagamentos superaram os novos investimentos, a pirâmide se desfez.

Embora o caso dos bois tenha ficado mais conhecido, era comum também a oferta
de investimentos em outros animais, como suínos e aves. Um dos casos célebres de
pirâmide no Brasil é o caso da Avestruz Master58, empresa goiana que emitia Cédulas de
Produto Rural (as chamadas CPRs) que asseguravam aos seus adquirentes o direito de
remuneração por meio de um compromisso de recompra das aves. O rendimento
prometido chegava a 10% ao mês. Quando faliu em 2004, a empresa deixou um prejuízo
de mais de R$ 2 bilhões.

Assim, instrumentos originalmente destinados à capitalização da atividade


pecuária, eram utilizados para a captação de poupança popular. No entanto, embora
fossem utilizados como meios de se captar a poupança popular, tais instrumentos não
estavam sujeitos à disciplina da Lei nº 6.385/76, pois não se enquadravam no conceito
de valores mobiliários.

Diante desse cenário, em regime de urgência, foi editada a Medida Provisória nº


1.637, de 8 de maio de 1998, convertida em 2001 na Lei nº 10.198, ampliando o rol de
valores mobiliários, com o objetivo de abarcar títulos e contratos de investimento
coletivo semelhantes aos contratos de boi gordo, conforme revela a exposição de motivos
da Medida Provisória nº 1.637/98:

A possibilidade de vir a ser empregado esquema semelhante em diversos outros


segmentos revela a necessidade de se adotar na legislação um conceito amplo, que
abranja todas as modalidades de captação pública de poupança em que esteja presente a

58
Com a constatação da distribuição pública irregular, a CVM determinou a suspensão das atividades de
negociação de CPRs pela Avestruz Master, através da Deliberação 473, de 01/12/04
característica predominante de investimento coletivo, cujos rendimentos resultem do
esforço de pessoas que não os investidores.

A Medida Provisória nº 1.637/98 classificou como valores mobiliários, sujeitos,


portanto, ao regime da Lei nº 6.385/76, quando ofertados publicamente, os títulos ou
contratos de investimento coletivo, que gerem direito de participação, de parceria ou de
remuneração, inclusive resultante de prestação de serviços, cujos rendimentos advêm do
esforço do empreendedor ou de terceiros. Disposição essa semelhante à adotada pelo
direito norte-americano em 1933 e cujos critérios foram definidos na década de 40, a
partir do célebre caso Howey.

Cabe observar, porém, que, embora inspirada no direito norte-americano, a nova


definição constante da Medida Provisória nº 1.637/98 traz os conceitos de participação,
parceria e remuneração não presentes na “Howey definition”.

Desse modo, a CVM passou a ter competência para fiscalizar os referidos


contratos, sujeitando-os ao prévio registro junto à autarquia no caso de distribuição
pública desses instrumentos. Nasceu então uma novao conceito forma de conceituar osde
valores mobiliários, vendo-se.

Vê-se aí uma transição no direito brasileiro da forma de conceituar valores


mobiliários. Se anteriormente o legislador optava por uma forma restritiva, agora a
conceituação abrangia não só uma lista de instrumentos, mas também quaisquer outros
títulos que atendessem a determinadas características, ampliando-se assim o leque de
abrangência dos valores mobiliários, tal qual o direito norte-americano e a sua
conceituação de “security”.

Em voto proferido em 2003, o então diretor da CVM Luiz Antonio de Sampaio


Campos59 tece os seguintes comentários a respeito da evolução do conceito de valor
mobiliário com o advento da Medida Provisória nº 1.637/98:

“Esse novo conceito pode-se dizer que representou verdadeira revolução


copérnica na regulação do mercado de valores mobiliários muito embora
não se tenha atentado para toda a sua extensão, pois significa o abandono

59
Processo CVM nº RJ 2003/0499, Rel. Dir. Luiz Antonio de Sampaio Campos, julgado em 28.08.2003
de uma concepção fechada de valor mobiliário, para a adoção de uma
concepção funcional-instrumental do que seria valor mobiliário, acabando
por alargar sobremaneira sua definição, bem como a competência da
CVM.”

Incorporou-se, então, na realidade brasileira substancialmente o conceito de


security do direito norte-americano, sem maiores inovações, o que não significa nenhuma
crítica, neste particular.

Dado que o conceito de valor mobiliário do ponto de vista técnico-doutrinário


não tem grande importância, há até mesmo dificuldade em se definir conceitualmente o
que seja um valor mobiliário. O conceito que é relevante para o exame dos, digamos,
valores mobiliários clássicos, está muito mais nos títulos de crédito do que no de valores
mobiliários propriamente ditos, posto que as características efetivamente importantes são
encontradas nos títulos de crédito.

Aquela visão de título de massa, de longo prazo, com homogeneidade


incompatível com a diversidade das situações individuais, dotados de fungibilidade, que
"coisifica" ou incorpora os direitos nele contidos, como exigência da negociabilidade,
que deveria ser transmitido por tradição (em oposição à tradição por cessão), deixou de
ser essencial para a existência de um valor mobiliário.

Da mesma forma, a existência de um financiamento, da figura de um emitente e


de um mercado primário para caracterizar um valor mobiliário também cedeu lugar.

A nota tonal no tocante a valor mobiliário passa, portanto, pelo esforço de


captação da poupança pública com a conotação de investimento – ou mesmo especulação
- por parte dos doadores dos recursos.

Em verdade, esta sempre foi a tônica da definição de valores mobiliários para fins
de regulação pela CVM, muito embora não fosse assim tão explícita, não obstante fosse
intuitiva.

Ela decorria, na verdade, da redação do art. 1º da Lei nº. 6.385/76, que ao se


referir a valores mobiliários faz menção sempre à negociação no mercado, o que traz
intrínseca a noção de negociação pública e não privada.
A transição verificada na forma de conceituação de valores mobiliários de
restritiva ou formal para uma conceituação expansiva e conceitual consolidou-se por
meio da edição da Lei nº 10.303/01, a qual alterou o artigo 2º da Lei nº 6.385/76,
refletindo o novo conceito introduzido pela Lei nº 10.198/01.

Com as alterações trazidas pela Lei nº 10.303/01, o artigo 2º da Lei nº 6.385/76


passou a vigorar com a seguinte redação:

Art. 2o São valores mobiliários sujeitos ao regime desta Lei:

I - as ações, debêntures e bônus de subscrição;

II - os cupons, direitos, recibos de subscrição e certificados de


desdobramento relativos aos valores mobiliários referidos no inciso II;

III - os certificados de depósito de valores mobiliários;

IV - as cédulas de debêntures;

V - as cotas de fundos de investimento em valores mobiliários ou de clubes


de investimento em quaisquer ativos;

VI - as notas comerciais;

VII - os contratos futuros, de opções e outros derivativos, cujos ativos


subjacentes sejam valores mobiliários;

VIII - outros contratos derivativos, independentemente dos ativos


subjacentes; e

IX - quando ofertados publicamente, quaisquer outros títulos ou contratos


de investimento coletivo, que gerem direito de participação, de parceria ou
de remuneração, inclusive resultante de prestação de serviços, cujos
rendimentos advêm do esforço do empreendedor ou de terceiros.

Logo, com a nova redação do artigo 2º da Lei nº 6.385/76, e especialmente o seu


inciso IX, o legislador brasileiro adotou um estilo de caracterização de valores
mobiliários semelhante ao adotado pelo legislador norte-americano. Ambos estabelecem,
primeiro, uma lista enumerativa dos instrumentos que são qualificados como valores
mobiliários. A seguir, adotam um conceito aberto para alcançar títulos não listados no
dispositivo legal.

O tipo aberto tornou o conceito de valores mobiliários instrumental, uma vez que
o conceito de valor mobiliário no direito positivo brasileiro delimita o campo de atuação
da CVM. Diante da expressão “quando ofertados publicamente” (no inciso IX do artigo
2º da Lei nº 6.385/76), um título ou contrato de investimento coletivo, por mais que
possua as características e os requisitos estabelecidos no referido dispositivo, somente
passa a interessar o legislador dependendo de a quem é ofertado ou a forma em que é
ofertado o referido título.

Títulos ou contratos de investimento coletivo idênticos podem ou não receber a


condição de valores mobiliários, dependendo somente da forma como são negociados.
Assim, para a classificação de um determinado ativo como valor mobiliário, é crucial
definir se esse ativo está sendo ofertado aos investidores de forma pública ou privada.

Esse caráter instrumental do conceito de valor mobiliário ficou nítido no


julgamento do Processo CVM nº RJ 2007-11593, que tratou do pedido de dispensa de
registro de oferta pública de Cédula de Crédito Bancário (“CCBs”) de emissão de uma
companhia do setor imobiliário, lastreada por instituição financeira devidamente
autorizada a funcionar pelo Banco Central do Brasil.

O voto proferido pelo diretor da CVM, Marcos Barbosa Pinto, e acompanhado,


na íntegra, pelos demais membros do Colegiado, entendeu que a CCB, quando objeto de
uma oferta pública, seria um valor mobiliário, permitindo, assim, que a CVM regulasse
e fiscalizasse as ofertas públicas de CCBs.

O relator do referido processo expôs da seguinte forma sua análise a respeito do


enquadramento da CCB no conceito de valor mobiliário:

Na minha opinião, as CCBs satisfazem claramente os cinco primeiros


requisitos que enumerei no item 2.11 acima, pelas seguintes razões:

i. ao adquirir uma CCB, o poupador está fazendo um investimento em


renda fixa, o que satisfaz o requisito delineado no item 2.11(i) acima;
ii. o art. 26, caput, da Lei nº 10.931/04 deixa claro que as CCBs são títulos
de crédito, atendendo assim o requisito descrito no item 2.11(ii) acima; a
este propósito, vale destacar que embora o conceito de "valor mobiliário"
não se confunda com o conceito de "título de crédito", sempre se admitiu
que alguns títulos de crédito podem ser valores mobiliários, como é o caso
das notas promissórias;

iii. a partir de uma mesma operação de crédito, e ressalvado o disposto no


art. 28, § 2º, II, da Lei nº 10.931/04, diversas CCBs com as mesmas
características podem ser emitidas e transferidas a pessoas distintas, o que
caracteriza o potencial coletivo do investimento nesses títulos e atende o
requisito descrito no item 2.11(iii) acima;

iv. as CCBs pagam juros aos seus titulares e estes juros constituem,
obviamente, uma remuneração, o que satisfaz o requisito descrito no item
2.11(iv) acima; a propósito, vale lembrar que, segundo nossos precedentes,
a palavra "remuneração" empregada no inciso IX deve ser entendida em
sentido lato, de forma a cobrir "qualquer investimento que o público faça
na expectativa de obter algum rendimento"; e

v. a remuneração paga pelas CCBs tem origem nos esforços do


empreendedor e não do investidor, já que este aguarda passivamente o
pagamento dos juros incidentes sobre o crédito; também está satisfeito,
portanto, o item 2.11(v) acima.

Marcos Barbosa Pinto ressaltou também em seu voto as exceções previstas no


§1º do artigo 2º, segundo o qual não são valores mobiliários nem os títulos da dívida
pública nem os títulos de responsabilidade das instituições financeiras. Daí decorre o
requisito de não permanência da instituição financeira como responsável pelo
adimplemento do título para a caracterização da CCB como valor mobiliário60.

Embora a CCB não conste expressamente da relação prevista no artigo 2º da Lei


nº 6.385/76, a CVM entendeu pelo seu enquadramento no inciso IX desse mesmo artigo.

60
Para discussão mais detalhada sobre o precedente, que aborda pontos não atinados ao tema do presente,
vide MATTOS FILHO, Ary Oswaldo. CCB é valor mobiliário? Artigo publicado na
Revista Capital Aberto, ano 5, nº 56, abril de 2008.
Assim, entendeu a CVM que a CCB, quando objeto de uma oferta pública,
enquadra-se nos seguintes requisitos: (i) ser um título ou contrato; (ii) de investimento
coletivo; (iii) ofertado publicamente; (iv) gerar direito de participação, de parceria ou de
remuneração, inclusive resultante de prestação de serviços; e (v) ter seus rendimentos
advindos do esforço do empreendedor ou de terceiros.

Da mesma forma que uma CCB, a depender do contexto de sua emissão e do


público a que é ofertado, pode se comportar como um valor mobiliário, também o podem
os tokens e demais criptoativos emitidos em sistemas blockchain e demais DLTs.

Portanto, no contexto de um ICO, o emissor deve-se atentar à estruturação da


oferta e especialmente do token que será ofertado, afinal, é o token que caracteriza a
emissão, e não o contrário.

Emitir um token que confere ao seu titular tão somente a expectativa de uso de
um serviço, exemplo clássico de um utility token, por não conferir ao titular direito de
participação no empreendimento, não pode ser considerado um valor mobiliário, sendo
um bem intangível, um ativo. E essa conclusão traz consigo uma consequência relevante.

O fato de o utility token em questão se valorizar no tempo, ainda essa valorização


decorra diretamente do esforço empresarial, não atrela o investidor do ICO à estrutura de
capital da sociedade. Isso porque a oferta realizada nessa modalidade pode ser definida
como uma espécie de crowdsale, venda coletiva de um produto.

Analogamente, da mesma forma que o sucesso de um produto pode levar um


empreendimento varejista de segmentos mais tradicionais do mercado a um grande
evento de capitalização, um projeto promissor pode angariar recursos através de um ICO,
que será o canal de venda dos produtos antes mesmo de sua confecção.

Portanto, ao se analisar qualquer ICO, é crucial que o emissor se atente à


estruturação do token para alinhar e estruturar suas expectativas de funding. A emissãod
e um token com características de valor mobiliário pode não somente gerar uma stop
order por parte da CVM, mas também atrair as penalidades aplicáveis àqueles que, sem
autorização, operam no mercado de valores mobiliários no Brasil.

Se estiver disposto a arcar com o impacto regulatório envolvido na adequação do


modelo de negócios à regulamentação aplicável aos agentes autorizados do mercado de
capitais61, o arcabouço regulatório existente parece já ser suficiente, como se verá a
seguir, para proteger o sistema financeiro e os investidores dos riscos, às vezes incertezas,
atrelados aos ICOs. Além disso, como será explorado adiante, se o token objeto da
captação enquadra-se em algum dos cinco requisitos acima indicados, sobretudo pois a
conceituação de valor mobiliário no Brasil, já visto, se coaduna à acepção norte-
americana de securty.

3.1.4. Conceito de oferta pública no Brasil

No tocante ao terceiro requisito visto acima (requisito de o título ou contrato de


investimento coletivo ser ofertado publicamente), cabe notar que, no Brasil, a oferta
pública de valores mobiliários caracteriza-se por elementos objetivos e subjetivos.

Os elementos objetivos referem-se aos meios utilizados no processo de


distribuição dos valores mobiliários. O § 1º do artigo 19 da Lei n° 6.385/76 define como
atos de distribuição pública aqueles que importem a venda, promessa de venda, oferta à
venda ou subscrição, assim como a aceitação de pedido de venda ou subscrição de valores
mobiliários, quando os pratiquem a companhia emissora, seus fundadores ou as pessoas
a ela equiparada. A Lei n° 6.385/76 e a Instrução CVM n° 400 trazem exemplos de atos
de distribuição que caracterizam a oferta pública.

Já os elementos subjetivos dizem respeito aos destinatários de tais atos, isto é, seu
grau de sofisticação e se tiveram acesso às informações relativas à companhia e aos
valores mobiliários em questão.

Independentemente do meio de distribuição utilizado, caso seja verificado que o


investidor é capaz de avaliar os riscos do investimento que lhe é oferecido e que teve
acesso a informações equiparáveis àquelas que seriam disponibilizadas no contexto de
uma oferta pública de tal forma a caracterizar uma decisão de investimento consciente e
bem informada, pode não se justificar a exigência do registro aplicável a ofertas públicas.

61
VALENTE, Patrícia Rodrigues Pessôa. Avaliação de Impacto Regulatório: Uma ferramenta à disposição
do Estado. 2010. 8 f. Dissertação de mestrado (Direito) - Faculdade de Direito da Universidade de São
Paulo, São Paulo, 2010. Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/2/2134/tde-26032012-
092844/publico/PatriciaPessoaValente_versao_completa.pdf>. Acesso em: 12 jun. 2018.
Nesse caso, é possível que a oferta seja vista como uma oferta privada, isenta, portanto,
do registro junto à CVM.

A esse respeito, ressalta-se que não há, no Brasil, uma definição de oferta privada.
Porém, a doutrina brasileira, inspirada em modelos adotados em outras jurisdições
(principalmente no modelo norte-americano) busca identificar parâmetros, considerando
a conceituação de oferta pública no ordenamento jurídico nacional para, a contrariu
sensu, identificar os contornos do conceito de oferta privada.

Nesse sentido, o jurista Nelson Eizirik observa que “para a caracterização da


distribuição como pública ou privada, embora sejam relevantes os meios utilizados na
colocação dos títulos, o elemento essencial e decisivo refere-se à situação dos
ofertados”62.

No caso específico dos ICOs, embora não seja possível generalizar, em muitos
casos ao menos, a oferta é endereçada, utilizando-se de publicidade, ao público em geral,
tendo como alvo investidores que não necessariamente são sofisticados ou possuem as
informações adequadas. Em tais casos, o primeiro requisito para o enquadramento no
conceito de valor mobiliário estaria então atendido, restando avaliar, caso-a-caso, se os
outros dois requisitos também estariam presentes.

Isto é, se o token ou coin objeto do ICO (i) gera direito de participação, de parceria
ou de remuneração, inclusive resultante de prestação de serviços e (ii) possui seus
rendimentos advindos do esforço do empreendedor ou de terceiros.

Como já visto, as discussões descritas nesse capítulo podem ser já resolvidas com
o atual arcabouço regulatório existente no Brasil, de modo que, sob a ótica de uma
supervisão baseada em riscos, a natureza jurídica dos tokens que interessam ao Sistema
Financeiro Nacional já está delimitada, qual seja, a de valor mobiliário

5.2.4 Implicações regulatórias do enquadramento de tokens no conceito de valor


mobiliário

62
EIZIRIK, Nelson, GAAL, Ariádna B., PARENTE, Flávia e HENRIQUES, Marcus de Freitas. Mercado
de Capitais - Regime Jurídico. 3. Ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2011
Como visto acima, alguns criptoativos podem ser enquadrados como valores
mobiliários nos termos da legislação brasileira, mas isso não significa que sempre o
serão. No caso de tokens que possuem as características de valores mobiliários no Brasil,
sua oferta ao público por meio de um ICO é equiparada a uma oferta pública de valor
mobiliário e, assim, se sujeita à legislação e regulamentação aplicáveis às ofertas públicas
de valores mobiliários. Nesses casos, são duas as principais implicações regulatórias: a
aplicação das regras de registro e de disclosure previstas na regulamentação da CVM e
restrições à negociação dos tokens, que serão descritas a seguir.

3.2.1 Regime de registro de oferta pública

O arcabouço regulatório do mercado de capitais tem por objetivo principal a


proteção de investidores, que é assegurada especialmente pelo chamado “full disclosure”,
somado às normas que buscam prevenir a manipulação do mercado. O full disclosure
representa o dever de divulgação de informações relativas aos valores mobiliários
negociados no mercado e a seus emissores, de modo claro e transparente, para permitir
que os investidores possam tomar decisões de investimento de forma consciente e
informada.

O princípio do full disclosure encontra suas origens no direito inglês e no direito


norte-americano. Nos Estados Unidos, o Securities Act de 1933 e o Securities Exchange
Act de 1934 tornaram mandatória uma ampla divulgação de informações sobre as
companhias emissoras e os valores mobiliários negociados no mercado, bem como seu
prévio registro junto à Securities and Exchange Comission (SEC).

No Brasil, a elaboração da Lei nº 6.385/76 foi fundamentalmente norteada pelo


princípio do full disclosure. Ao longo de todo o texto dessa lei é salientada a importância
do acesso, pelos investidores, a informações sobre os valores mobiliários negociados no
mercado e as companhias que os tenham emitido. O dever de informar ainda está previsto
expressamente na Lei das Sociedades por Ações (Lei nº 6.404/76).
As próprias atribuições da CVM foram definidas à luz de tal princípio, tendo sido
atribuída a essa autarquia a responsabilidade por assegurar o acesso do público a
informações sobre os valores mobiliários e seus emissores, mas não a responsabilidade
por garantir a veracidade das informações prestadas ou a qualidade do emissor e do
investimento oferecido. O registro de uma oferta pública de valores mobiliários, perante
a CVM, tem justamente por objetivo assegurar aos investidores o acesso a informações
claras e precisas sobre a companhia emissora e os valores mobiliários emitidos.

Assim, no caso de um ICO ser considerado uma oferta pública de valores


mobiliário, é necessário que tal captação observe as regras de registro e de disclosure
previstas na regulamentação da CVM, sujeito às hipóteses de dispensa previstas também
em tal regulamentação. No caso de ofertas de “tokens” que se enquadrem na definição
de valor mobiliário e estejam em desconformidade com a regulamentação, a CVM possui
autoridade para aplicar as sanções e penalidades cabíveis.

Tal regulamentação abrange, principalmente, a Instrução CVM 400, de 29 de


dezembro de 2003 (“Instrução CVM 400”), a Instrução CVM 476, de 16 de janeiro de
2009 (“Instrução CVM 476”), e a Instrução 588, de 13 de julho de 2017 (“Instrução CVM
588”). As duas primeiras tratam, respectivamente, da oferta pública tradicional de valores
mobiliários e da oferta pública com esforços restritos de distribuição. Por sua vez, a
Instrução 588 trata das ofertas por meio de plataformas de crowdfunding de
investimento63.

Os ICOs são semelhantes aos IPOs e ao crowdfunding. Como IPOs, uma


participação da empresa ou startup é vendida para arrecadar dinheiro para as operações
da entidade durante uma operação da OIC. No entanto, enquanto as IPOs lidam com
investidores, os ICOs lidam com interessados em investir em um novo projeto, como um
evento de crowdfunding. A diferença reside no fato de que quem aporta recursos em um
movimento de crowdfunding esperam retorno prospectivo em seus investimentos,
enquanto os fundos levantados em ICOs na última campanha são basicamente doações.

63
ICOs são comumente definidos na literatura especializada como uma modalidade de crowdsale, não de
crowdfunding. A diferença reside no fato de que quem aporta recursos em um movimento de crowdfunding
esperam retorno prospectivo em seus investimentos, enquanto os fundos levantados em ICOs na última
campanha são basicamente doações. Na prática, no entanto, sob a ótima da oferta, ambos podem ser
utilizados como instrumento de capitalização.
Os ICOs também mantêm pelo menos três importantes diferenças estruturais das
IPOs. Primeiro, os ICOs são descentralizados, sem uma única autoridade que as controle.
Segundo, os ICOs são em grande parte não regulamentadas, o que significa que
organizações governamentais como a Comissão de Valores Mobiliários dos Estados
Unidos (SEC) não as supervisionam. Finalmente, como resultado da descentralização e
da falta de regulamentação, as OICs são muito mais livres em termos de estrutura do que
as IPOs.

Os ICOs podem ser estruturadas de várias maneiras. Em alguns casos, uma


empresa define uma meta específica ou limite para seu financiamento, o que significa
que cada token vendido no ICO tem um preço pré-definido e que o fornecimento total de
token é estático. Em outros casos, há uma oferta estática de tokens, mas uma meta de
financiamento dinâmica, o que significa que a distribuição de tokens aos investidores
dependerá dos fundos recebidos (e que quanto mais fundos forem recebidos na ICO,
maior será o total preço simbólico). Ainda outros ICOs têm um fornecimento de token
dinâmico que é determinado de acordo com o montante de financiamento recebido.
Nesses casos, o preço de um token é estático, mas não há limite para o número total de
tokens, exceto para parâmetros como a extensão temporal do ICO.

A Instrução CVM 400 regulamenta a oferta pública tradicional de valores


mobiliários, seja primária e/ou secundária. Essa Instrução traz, via de regra, a obrigação
de um registro duplo para a oferta de valores mobiliários no Brasil: o registro do próprio
emissor e da oferta junto à CVM, em ambos os casos mediante análise prévia por tal
autarquia. Para fins da obtenção do registro, uma série de requisitos específicos devem
ser observados. No entanto, em caráter excepcional, a CVM pode dispensar o registro ou
alguns dos requisitos (incluindo divulgações, prazos e procedimentos), mas desde que
observados o interesse público, a adequada informação e a proteção ao investidor,
conforme previsto no artigo 4º da referida Instrução CVM 400.

A Instrução CVM 476, por sua vez, instituiu no ordenamento jurídico brasileiro
o conceito de “oferta pública com esforços restritos”. Essa modalidade de oferta de
valores mobiliários foi criada à luz de modelos adotados em outras jurisdições e tem por
objetivo facilitar o acesso das empresas ao mercado de capitais mediante a redução de
custos e prazos.
Todavia, entre outros requisitos, a Instrução CVM 476 contém uma lista taxativa
dos títulos que podem ser objeto de ofertas públicas com esforços restritos, dentre os
quais não estão incluídos os contratos de investimento coletivo. Ademais, esse tipo de
oferta deve ser destinada exclusivamente a um número restrito de investidores
profissionais, além de intermediadas por integrantes do sistema de distribuição de valores
mobiliários. Até 75 Investidores Profissionais podem ser procurados, dos quais apenas
50 podem subscrever ou adquirir valores mobiliários na oferta.

Por fim, a Instrução CVM 588 regulamenta o mercado brasileiro de equity


crowdfunding, conhecido também como crowdfunding de investimento. Em linhas
gerais, essa modalidade de crowdfunding busca permitir a utilização de plataformas
eletrônicas para investimentos e captações de recursos, voltada a empresas de pequeno
porte que geralmente enfrentam dificuldades para assumir financiamentos ou captar
investimentos nas formas tradicionais.

De modo a permitir o desenvolvimento do equity crowdfunding no Brasil, a


Instrução CVM 588 prevê a dispensa de registro junto à CVM para a oferta pública de
distribuição de valores mobiliários de emissão de sociedades empresárias de pequeno
porte realizada por meio de plataforma eletrônica de investimento participativo.

Embora essa nova regulação tenha representado um grande avanço em relação ao


modelo tradicional de oferta pública, sua aplicação é cercada por uma série de limitações.
Dentre os limites específicos previstos, destaca-se que apenas estão dispensadas as
ofertas realizadas por sociedades empresárias de pequeno porte (isto é, com receita bruta
anual de no máximo R$ 10.000.000,00 no ano anterior à oferta), a captação por sociedade
deve observar um limite de R$ 5.000.000,00 e os investidores somente podem investir
até R$ 10.000,00 por ano (sujeito a algumas exceções). Além disso, as plataformas
eletrônicas dependem de autorização da CVM para operar.

3.2.2 Restrições à negociação

Após o lançamento de um ICO, os tokens emitidos costumam ser negociados nas


chamadas corretoras de criptomoedas. No entanto, no caso de tokens que se enquadrem
no conceito de valor mobiliário e sejam ofertados publicamente no Brasil por meio de
um ICO, é preciso observar as restrições aplicáveis à negociação de valores mobiliários
previstas nas normas da CVM. De acordo com essas normas, tal negociação apenas
poderia se dar em ambientes de negociação de valores mobiliários autorizados pela
CVM.

Conforme nota divulgada pela CVM em outubro de 2017, “valores mobiliários


ofertados por meio de ICO não podem ser legalmente negociados em plataformas
específicas de negociação de moedas virtuais (chamadas de virtual currency exchanges),
uma vez que estas não estão autorizadas pela CVM a disponibilizar ambientes de
negociação de valores mobiliários no território brasileiro”

Fazendo um paralelo com o mercado de capitais tradicional, é a mesma exigência


aplicável a ações objeto de uma oferta pública que apenas podem ser negociadas em
ambientes devidamente autorizados para tanto, como as bolsas de valores, estando a
listagem e negociação de tais valores mobiliários sujeitos a um arcabouço regulatório
próprio.

Vale notar que, mesmo no modelo de equity crowdfunding criado pela Instrução
CVM 588, tais restrições à negociação de valores mobiliários se aplicam. As plataformas
de crowdfunding não podem realizar atividades de intermediação secundária de valores
mobiliários.

Essa restrição atualmente cria um grande obstáculo para o lançamento no Brasil


de uma oferta de tokens que sejam valores mobiliários por meio de um ICO, dado que
não há, atualmente, um ambiente devidamente autorizado pela CVM para a listagem e
negociação de tokens, com o uso da tecnologia do blockchain.

A oferta de “tokens” ou “coins”, por meio de um ICO, pode representar desde


uma forma de captação de recursos junto ao público mediante a conferência de direito de
participação na emissora ou de direito de remuneração atrelada a seus resultados (os
chamados “token-shares”) até a distribuição de ativos para a utilização de
funcionalidades desenvolvidas no âmbito de blockchains. Esses últimos são comumente
chamados “token-utilities”, e possuem papel diferenciado para a presente análise, que
será aprofundado adiante.
O tratamento de ambas as modalidades de tokens emissíveis em um ICO vinha
sendo constantemente debatido pelo mercado, não somente e vista de decisões já tomadas
em diversos países, mas principalmente sobre o conceito de valor mobiliário trazido pela
Lei 6.385/76, que, se englobar os criptoativos, atrai para este mercado todas as
implicações decorrentes da caracterização de tais emissões como ofertas públicas no
Brasil.

Em 11 de Outubro de 2017 a Comissão de Valores Mobiliários (“CVM”)


publicou nota ao público, documento sem eficácia normativa, trazendo esclarecimentos
sobre o enquadramento dos “ICOs” no ambiente legal e regulatório existente e aplicável
ao mercado de capitais brasileiro. Ainda que sem força regulatória, o comunicado da
CVM trouxe ao mercado a mensagem de que algumas ofertas de tokens ou coins podem
sim ser enquadradas como operações envolvendo valores mobiliários, nos termos do art.
2º, da Lei 6.385/76, a depender do contexto econômico de sua emissão e dos direitos
conferidos aos investidores. Para todos os fins, isso significaria a equiparação dos ICOs
a ofertas públicas de valores mobiliários no Brasil, atraindo todo o arcabouço regulatório
aplicável a essas últimas.

Os criptoativos podem ser enquadrados, em algumas hipóteses, como valores


mobiliários nos termos da legislação brasileira, mas isso não significa que sempre o
serão, especialmente quando consideradas as diferenças entre os “token-shares” e
“token-utilities”.

Importante salientar que, considerando a atual indefinição regulatória sobre o


tema, não é a emissão que caracteriza o ativo, mas sim o ativo que caracteriza a emissão.
É dizer: a natureza do Criptoativo emitido é o ponto de maior relevância para a
determinação da natureza da oferta pública (se de valores mobiliários ou não). Para
determinar essa natureza é preciso ater-se à finalidade que o ativo terá após sua emissão.

Assim, um ICO que emita um token que se enquadre no conceito de valor


mobiliário no Brasil deverá observar as regras de ofertas públicas editadas pelas CVM
(atualmente as Instruções CVM 400 e 476, a recente Instrução 588, que trata das ofertas
por meio de plataformas de crowdfunding de investimento (equity crowdfunding), ou
ainda outra norma específica que venha a ser editada no futuro), podendo a CVM aplicar
as sanções e penalidades cabíveis no caso de ofertas de “tokens” que se enquadrem na
definição de valor mobiliário e estejam em desconformidade com a regulamentação. A
CVM alertou que ainda não foi registrada nem dispensada de registro nenhuma oferta,
por meio de um ICO, no Brasil, embora já tenha dispensado e de registro um ICO, o Caso
Niobium que será tratado adiante.

Isso posto, de acordo com o posicionamento recente da CVM a respeito, os token-


shares, por estarem atrelados à conferência de participação na emissora ou de direito de
remuneração atrelada aos resultados que apure, podem sim ser enquadrados no conceito
de valor mobiliário vigente atualmente no Brasil, de modo a atrair toda a regulamentação
aplicável a essas ofertas públicas.

Já quanto aos token-utilitites, entendemos que há argumentos para sustentar que


não se enquadrariam no conceito de valor mobiliário, uma vez que sua valorização não
estaria atrelada ao esforço empresarial ou similar, mas sim à valorização do ativo em
conexão com a prestação de serviços por parte do emissor.

3.3. A regulamentação dos criptoativos e o aparente conflito de competência entre


o Banco Central do Brasil e a Comissão de Valores Mobiliários

Já aparenta esboçar-se no contexto internacional o entendimento de que os


maiores riscos encerrados pelos criptoativos advém menos da possibilidade de seu
emprego enquanto meio de pagamento do que da possibilidade de que possa se comportar
como um valor mobiliário, o que naturalmente atraiu a atenção das autoridades
competentes para regular esses instrumentos ao redor do mundo.

No Brasil, tanto a autoridade monetária, o Banco Central do Brasil, quanto à do


mercado de capitais, a Comissão de Valores Mobiliários, chegaram a se pronunciar sobre
os criptoativos, sem, contudo, emitir qualquer documento com força normativa até o
presente momento. Entretanto, alguns movimentos do mercado já foram apreciados por
essas autoridades.

Neste sentido, cabe mencionar ainda que em 30 de janeiro de 201864, o Colegiado


da CVM confirmou o entendimento manifestado pela área técnica Superintendência de

64
Informativo da Reunião do Colegiado Nº 04/2018
Registro de Empresas (“SRE”) da CVM no sentido de não enquadrar a criptomoeda
Niobium Coin (“NBC”) como um valor mobiliário e, portanto, afastar a aplicação da
regulamentação de ofertas públicas editadas pelas CVM e a competência deste regulador
para supervisionar as atividades da emissora e sua negociação65.

Ademais, a área técnica pontua que deve ser levada a discussão as demais
características do NBC, especialmente aquelas que poderiam ser interpretadas como
caracterizadoras de um token cujo retorno seria resultante do esforço do empreendedor.
Neste sentido, a área técnica leva ao Colegiado a discussão sobre uma potencial
interpretação extensiva do conceito de valor mobiliário no Brasil, em vista da valorização
dos tokens no mercado secundário como se pode ver a seguir:

Notadamente citam-se aqui os aspectos do instrumento relacionados: ao limite


da quantidade emitida destes tokens; bem como ao fato de que tais tokens serão
utilizados em uma plataforma que será desenvolvida a partir dos recursos
levantados no seu ICO, pelos desenvolvedores do projeto, acarretando que seu
valor de uso decorrerá do bom andamento do projeto. Tais aspectos em conjunto
poderiam sugerir a interpretação de que o instrumento Niobium conferiria ao seu
detentor o direito à remuneração advinda do esforço do empreendedor,
materializada na expectativa de valorização destes.

Ainda que esta seja uma compreensão possível, a qual inclusive encontra
respaldo na interpretação dada pela SEC no âmbito da conceituação de
Security no recente caso da Munchee Inc.2, é importante observar que
esta perspectiva foi contemplada na análise conduzida pela Procuradoria
Federal Especializada da CVM. Com efeito, afirmou a PFE em seu
parecer que o conceito de security, em nosso ordenamento jurídico, foi
positivado, adquirindo contornos legais que limitam a sua configuração,
de modo que, embora haja expectativa de lucro, o instrumento em tela em
princípio não se enquadra na definição de CIC, à luz do previsto no art.
2º, IX, da Lei 6.385/76 3.

Discute-se que eventual interpretação extensiva do conceito de valor mobiliário


no Brasil seria afastada em decorrência da redação do art. 2º, IX, da Lei 6.385/76 que

65
Processo CVM nº 19957.010938/2017-13.
estabelece o conceito de contrato de investimento coletivo. Embora o assunto tenha sido
levado ao Colegiado, a decisão não entra em maiores detalhes de forma que pode-se
esperar que o assunto seja retomado em discussões futuras.

A decisão concluiu, destacando que sua aplicação está circunscrita ao caso do


NBC, que o NBC não poderia ser tratado como valor mobiliário pois seus adquirentes
não receberiam um “ganho, lucro ou participação” ou seja, uma forma de remuneração
conforme previsto na redação do inciso IX, art. 2°, da Lei 6.385/76, mas teria apenas a
característica de um ativo com utilidade na futura “bolsa de ativos digitais”,
empreendimento a que estaria atrelada. Neste sentido, a área técnica pontua que:

A efetiva analise deve se pautar como já inclusive analisado pela área


técnica na presença dos requisitos legais para tanto. E, conforme já
anteriormente esclarecido, ao adquirente do Niobium não é prometido
nenhum ganho, lucro ou participação; mas apenas a aquisição de um
ativo que poderá ter uma utilidade específica quando da implementação
futura da BOMESP.

Ainda que não constitua regramento erga omnes, a atuação regulatória no Brasil
sobre os criptoativos já está se estabilizando no campo de atuação da Comissão de
Valores Mobiliários, até porque, como já visto, esses ativos não encerram os atributos de
validade e eficácia monetária necessários à atração da competência da autoridade
responsável, no caso, o Banco Central no Brasil.

Não à toa, já em 2012 a Comissão de Valores Mobiliários aplicou uma suspensão


de oferta de grupo de investimento em arbitragem de bitcoins66. Nesse mesmo sentido, a
CVM suspendeu também duas ofertas de cotas de investimento em mineração de
Bitcoins em 2017 e 2018, o que também crê-se ter sido um dos motivos pelos quais
excluiu os criptoativos da definição de “Ativo Financeiro” apllicável a fundos de
investimento, através do Ofício-Circular nº 1/2018/CVM/SIN.

66
Deliberação CVM n° 680/2012, em desfavor da Exchange Mercado Bitcoin.
Através desse Oficio a CVM esclareceu que “criptomoedas” não podem ser
consideradas ativos financeiros para fins da Instrução CVM nº 555. Os fundos de
investimento são veículos de investimento existentes no ordenamento jurídico
brasileiro, regulados pela Comissão de Valores Mobiliários notadamente pela
Instrução CVM nº 555, de 17 de dezembro 2014, conforme alterada e outras normas
específicas, a depender da classe de fundo envolvida.

Um fundo de investimento é uma comunhão de recursos, constituído sob a forma


de condomínio, sem personalidade jurídica própria, destinado à aplicação em
determinados ativos financeiros estabelecidos de forma taxativa pela regulamentação
aplicável.

Os investimentos nos fundos se dão por meio da subscrição e da integralização de


cotas de emissão do fundo. As cotas emitidas pelo fundo formam seu patrimônio (i.e.,
representam frações ideais do patrimônio do fundo, de titularidade dos cotistas) e
possibilitam o investimento em ativos, de maneira que cada cota corresponde a uma fração
ideal do patrimônio comum do fundo. Ao longo do tempo as cotas serão amortizadas e/ou
resgatadas, a depender da natureza do fundo (i.e., aberto ou fechado), como forma de
remuneração/retorno do investimento.

Os ativos financeiros investidos pelo fundo comporão o seu patrimônio e serão


selecionados de acordo com sua natureza e na forma estabelecida na regulamentação. Uma
vez realizado o investimento, os ativos se tornam propriedade do fundo e os valores
recebidos em contrapartida ou como remuneração de tais investimentos serão utilizados
para a amortização ou resgate das cotas. Ademais, e a depender da classe de fundos
envolvida, ao término do período de investimento os ativos financeiros de titularidade do
fundo são, via de regra e observadas as regras estabelecidas para o respectivo fundo,
vendidos para gerar liquidez e permitir o resgate ou amortização das cotas, de forma a gerar
retorno financeiro ao investidor.

A constituição e manutenção de um fundo implica na participação de diversos


players na estrutura, tais como:

(i) um administrador, cujo principal papel é o de prestar serviços


relacionados ao funcionamento e à manutenção do fundo. O administrador
deverá ser uma instituição com autorização específica junto à CVM para atuar
nesta capacidade (usualmente, um banco ou uma distribuidora de títulos e
valores mobiliários);67

(ii) um gestor, cujo principal papel é o de realizar a gestão


profissional dos ativos financeiros integrantes da carteira do fundo. O gestor
deverá ser uma pessoa com licença específica junto à CVM para a gestão
profissional de carteiras de valores mobiliários;68

(iii) um custodiante, cujo principal papel é o de realizar a custódia


(ou seja, a guarda) dos ativos financeiros investidos pelo fundo, sendo também
o responsável pela liquidação física e financeira dos ativos. O custodiante
deverá ser uma instituição com autorização específica junto à CVM para atuar
nesta capacidade (usualmente, um banco ou uma distribuidora de títulos e
valores mobiliários);69

(iv) um auditor independente;

(v) investidores/cotistas;

(vi) a CVM, na qualidade de órgão supervisor com a competência


de autorizar o funcionamento e o registro da distribuição e aprovação da
emissão de cotas do fundo e a fiscalização de seus prestadores de serviço; e

(vii) um distribuidor das cotas, cujo papel é o de realizar a


colocação das cotas emitidas pelo fundo no mercado (papel que pode ser
desempenhado pelo próprio administrador do fundo).

Um dos problemas enfrentados pelas autoridades supervisoras no que diz


respeito aos fundos de investimento diz respeito sobretudo a questões relativas a lavagem
de dinheiro – uma vez que a estrutura condominial dificulta a identificação dos
beneficiários finais de cada cota de fundo.

A falta de transparência dessa estrutura de investimento ensejou a ação


regulatória mais enérgica até o momento no Brasil, a partir do ponto em que a CVM

67
vide Instrução CVM nº 558, de 26 de março de 2015
68
vide Instrução CVM 558.
69
vide Instrução CVM nº 542, de 20 de dezembro de 2013.
efetivamente vedou a possibilidade de que fundos de investimento invistam em
criptoativos no Brasil.

(iii) Projeto de Lei

Embora seja pouco provável que avance na pauta da Câmara dos Deputados este
ano, o projeto de lei nº 2.303/2015, que visa propor regras para a regulamentação do
mercado de criptomoedas no Brasil, vem sofrendo inúmeras críticas por parte da
comunidade de moedas digitais nacional, que chegou a argumentar que os deputados têm
pouco conhecimento sobre o assunto e que os debates que ocorreram na câmara foram
superficiais e equivocados, sendo quase impossível identificar se realmente o tema
abordado envolvia Bitcoin e criptomoedas.

O Projeto de Lei nº 2.303, de 2015 (“PL 2.303/15”), de autoria de V. Exa. Dep.


Áureo, visava a inclusão das negociações com criptomoedas na Lei 12.865/13,
conferindo um tratamento semelhante ao de arranjos de pagamento. Em 13 de dezembro
de 2017, no entanto, o Deputado relator da Comissão Especial, V. Exa. Dep. Expedito
Netto, apresentou um relatório que traz um projeto de lei substitutivo ao proposto
anteriormente (“Relatório”). O Relatório defende a proibição e criminalização da
emissão de moedas digitais, moedas virtuais, criptomoedas e elementos digitais ou
eletrônicos representativos de bens e direitos, propondo alterações ao artigo 292 do
Código Penal e à Lei nº 1.521, de 26 de dezembro de 1951.

Importante ainda mencionar que a Estratégia Nacional de Combate à Corrupção


e à Lavagem de Dinheiro (“ENCCLA”) estabeleceu como sua Ação nº 8, a elaboração
de diagnóstico sobre a atual conjuntura da utilização de moedas virtuais e meios de
pagamento eletrônico. Não há ainda uma conclusão desses trabalhos, porém, a
expectativa é que sejam elaboradas diretrizes a respeito das criptomoedas, com o objetivo
de identificar eventuais tipologias que sirvam para a prática de ilícitos, tais como a
lavagem de dinheiro.
VI. CONCLUSÃO

O recepcionamento jurídico dos criptoativos no brasil já está acontecendo, ainda


que ainda não pela via legislativa positiva, mas já começa a delinear quais são os riscos
que trazem e as oportunidades que devem ser levadas em conta na construção de eventual
regramento positivo a respeito.

Enquanto não haja lei específica, a disciplina jurídica desses ativos deve ser
pautada, em lógica semelhante à de uma supervisão baseada em riscos, na prevenção e
remediação dos riscos encerrados, de um lado, e no fomento ao recepcionamento desses
instrumentos em respeito aos usos e costumes do mercado, a outro.

Para tanto, o operador do direito aparenta estar enfrentando dificuldades para


conceituar o que sejam os criptoativos, sobretudo diante da imprecisa noção de “moeda” a
que os foi atribuído.

Prejudicada a comparabilidade entre os criptoativos e as moedas de curso forçado,


bem como as demais definições legais do direito brasileiro que recepcionam o conceito de
“moeda eletrônica”. Ainda que possa se comportar como uma espécie de moeda virtual,
esse enfoque acaba por limitar a abrangência que os criptoativos adquiriram não como
forma de se liberar de obrigações, mas sobretudo como um instrumento de apuração de
valor ao longo do tempo.

Por se comportarem como ativos, ainda as chamadas criptomoedas, devem ser


observadas como tal.

Portanto, no contexto de um ICO, o emissor deve-se atentar à estruturação da


oferta e especialmente do token que será ofertado, afinal, é o token que caracteriza a
emissão, e não o contrário.

Emitir um token que confere ao seu titular tão somente a expectativa de uso de um
serviço, exemplo clássico de um utility token, por não conferir ao titular direito de
participação no empreendimento, não pode ser considerado um valor mobiliário, sendo um
bem intangível, um ativo.

Não se trata de um ativo comum, no entanto. A revolução regulatória atual pode


ser comparada ao advento da introdução no ordenamento brasileiro da conceituação aberta
de valor mobiliário, posto que à época, meros contratos de investimento, ainda que
revestidos de negócios jurídicos bilaterais, encerravam todos os riscos naturais a valores
mobiliários e punham em risco a higidez do Sistema Financeiro Nacional. Atualmente, os
critpoativos ofertados a público encerram riscos muito semelhantes.

Porém, a igual semelhança dos adventos permite com que, hoje, haja preparação
regulamentar suficiente para reagir a eventuais intempéries advindas do recepcionamento
dos criptoativos.

Por essa razão, o presente trabalho elegeu as Initial Coin Offerings como regra-
parâmetro para a análise desses ativos, que, quando se comportam como valores
mobiliários, podem ensejar a determinação de restrições à oferta (stop orders) e restrições
à negociação por parte da Comissão de Valores Mobiliários.
VII. ÍNDICE BIBLIOGRÁFICO

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