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TESE DE LÁUREA
I. INTRODUÇÃO
II. CRIPTOATIVOS: NOÇÕES GERAIS E PANORAMA HISTÓRICO
II.1 Criptoativos: o Blockchain e as Criptomoedas
II.2 Os Criptoativos e as Initial Coin Offerings – Histórico e
considerações gerais à luz do direito positivo brasileiro
II.3 Os criptoativos e o conceito de moeda: a evolução da prova de
confiança e o poder liberatório da moeda
II.4 O conceito de ativo, a definição terminológica “criptoativo” e a
análise crítica da hermenêutica aplicável ao conceito de moeda
III. NOÇÕES GERAIS DA REGULAÇÃO APLICÁVEL AO SISTEMA FINANCEIRO
NACIONAL
III.1 Introdução
III.2 Sistema Financeiro Nacional: panorama regulatório aplicável aos
criptoativos
III.3 A classificação das atividades privativas de instituições financeiras
e sua correlação com a circulação de criptoativos
IV. ANÁLISE DO IMPACTO REGULATÓRIO INTERNACIONAL SOBRE OS
CRIPTOATIVOS
V. AS INITIAL COIN OFFERINGS
V.1Conceito
V.2Preocupações do mercado de capitais coadunadas aos riscos encerrados
pelos criptoativos
V.2.1 O que é um valor mobiliário?
V.2.2 O Conceito de valor mobiliário no direito brasileiro
V.2.3 Conceito de Oferta Pública no Brasil
V.2.4 Implicações regulatórias do enquadramento de tokens no
conceito de valor mobiliário
V.2.4.1Regime de registro de oferta pública
V.2.4.2Restrições à negociação
V.2.5 A regulamentação dos criptoativos e o aparente conflito
de competência entre o Banco Central do Brasil e a
Comissão de Valores Mobiliários
V.2.6 Criptomoedas e os tokens: natureza jurídica
VI. CONCLUSÃO
Nesse ponto, vale ressaltar que a escolha por não realizar um trabalho somente
a respeito de criptoativos tem uma razão de ser. A inclusão do ICO na composição do
tema da pesquisa que enseja o presente se dá, principalmente, porque essa operação é
das mais complexas dentre as realizadas com criptomoedas: é dizer, um verdadeiro
stress test de uma figura ainda pouco estudada e muito menos disciplinada no Brasil e
no Mundo, que permite analisar seus desdobramentos de maneira mais dinâmica e ligada
aos princípios basilares do Direito Comercial.
No que diz respeito a sua implementação e indo no sentido contrário aos demais
mecanismos de controle e protocolos de segurança usualmente empregados no mercado
financeiro – foco de vultosos investimentos por parte das instituições que o integram –
, que visam geralmente a proteger a segurança de seus ativos e os de seus clientes,
encontram no blockchain uma solução para proteger ambos com o mesmo grau de
1
Para fins deste título, utilizar-se-ão exemplos a respeito da tecnologia do blockchain no que diz respeito às
criptomoedas, embora sua aplicação vá muito além da circulação de Criptoativos, podendo ser aplicado,
como se verá, até mesmo pelos bancos centrais para otimização da fiscalização do mercado.
segurança, embora a estrutura de precificação dos investimentos em blockchain ainda
não esteja clara para alguns atuantes do mercado.
2
NAKAMOTO, Satoshi. Bitcoin: A Peer-to-peer Electronic Cash System. 2008.p. 7.
3
“a chain of blocks ahead of time by working on it continuously (...)”. In NAKAMOTO, Satoshi. Bitcoin: A
Peer-to-peer Electronic Cash System. 2008.p. 7.
4
Os DLTs, ainda que recentes, não são propriamente novos. O serviço BitTorrent, que ficou mundialmente
conhecido pela suposta conivência com o compartilhamento de conteúdo autoral, emprega a tecnologia peer-
to-peer, outra espécie de DLT. A proximidade entre as tecnologias fez com que uma gigante do mercado de
criptomoedas, a Tron, adquirisse a BitTorrent em meados de 2018. Nesse sentido: ROSTEN, Avi,
BitTorrent Officially Confirms its Acquisition by TRON. Disponível em:
https://www.cryptoglobe.com/latest/2018/07/bittorrent-officially-confirms-its-acquisition-by-tron/. Acesso
em: 28.07.18.
5
International Bank for Reconstruction and Development. The World Bank. Distributed Ledger
Technology (DLT) and Blockchain – Fintech Note No. 1. 2017. Disponível em:www.worldbank.org.
6
A explicação suscinta para que não se fuja do escopo do presente trabalho pode ser suprida com a completa
e eficiente explicação de Don e Alex Tapscott em TAPSCOTT, Don; TAPSCOTT, Alex. Blockchain
Revolution. 1. ed. São Paulo: SENAI-SP, 2016.
ente centralizador – o Estado, no caso dos cartórios e registros públicos -, e deriva e de
dois fatores complementares.
77
A função básica das carteiras de Bitcoin é a de armazenar esses criptoativos, bem como enviar e receber
os valores de uma carteira para outra através de transações pela rede blockchain. O que se armazenam nessas
carteiras, na realidade, são as chaves criptografadas digitais (hashes) privadas, que são utilizadas para acessar
os endereços de bitcoin públicos e assinar as transações que são armazenadas na carteira de bitcoin. Existem
diversos tipos de carteira, que dá ao usuário acesso a seus bitcoins de diversas maneiras, existem cinco tipos
também chamado de “cliente” do Bitcoin. Essa carteira geralmente é identificada por um
código, e se comporta como um endereço eletrônico para o qual recursos em Bitcoin são
enviados e em que são armazenados.
O hash é emitido tão somente depois que a rede verificou a autenticidade das
duas chaves envolvidas na transação, de modo que um bloco só é inserido no blockchain
caso seja verificado que seu ponto de origem e de chegada são válidos, mecanismo esse
que viabiliza a existência de uma confiança de rede propriamente dita.
principais de carteira: em celulares, computadores, on-line, e até mesmo de papel, as chamadas hard wallets,
onde literalmente anotam-se referidas chaves criptográficas.
8
SAYAD, J. Dinheiro, dinheiro: inflação, desemprego, crises financeiras e bancos. São Paulo: Portfolio
Peguin, 2015.
9
Nesse sentido, vale ressaltar que cada criptoativo tende a empregar seu próprio blockchain, de modo que
os registros não são intercambiáveis. No entanto, alguns blockchains, por seu alto estágio de
desenvolvimento e eficiências operacionais, são utilizados por terceiros para emissão de criptoativos e outros
instituição que realiza a função de intermediária, além de tornar o processo mais ágil,
reduziria custos, pois a presença de um intermediário para esse tipo de transação em geral
está associada à cobrança de uma taxa de serviços.
produtos em seu ecossistema, como no caso do blockchain Ethereum. Nesse sentido: HENNING, Diedrich.
Ethereum: Blockchains, Digital Assets, Smart Contracts, Decentralized Autonomous Organizations.
New York: Wildfire Publishing, 2016. 185 p.
esses criptoativos, e como o seu comportamento poderia de alguma forma comprometer
a higidez dos sistemas financeiros e bancários por todo o mundo10.
A rapidez com que o mercado incorporou esse novo produto deu origem a
operações cada vez mais complexas, como dito acima, que culminaram, recentemente,
nas chamadas Ofertas Iniciais de Moedas (em tradução livre, ou Initial Coin Offerings,
“ICO”, em sua sigla em inglês).
10
Exemplo disso, o Banco Central do Brasil contratou a elaboração de um parecer denominado: Banco
Central do Brasil. Distributed ledger technical research in Central Bank of Brazil. Brasília: [s.n.], 2017. 33
p. Diponível em:
https://www.bcb.gov.br/htms/public/microcredito/Distributed_ledger_technical_research_in_Central_Bank
_of_Brazil.pdf
11
Estima-se que existam hoje mais de 1000 criptomoedas em circulação, dentre eles criptomoedas, dos quais
Bitcoin e Ethereum possuem maior valor de mercado, em contraposição a moedas menos conhecidas, de
menor circulação, conhecidas como alternative coins ou simplesmente altcoins.
distintos, uma vez que seus caracteres técnicos e, consequentemente, sua utilização tem
se dado de maneira muito próxima.
Assim sendo, uma vez que são ativos conversíveis e possuem características
técnicas e de mercado similares, o presente trabalho, ao analisar o comportamento
jurídico dos tokens emitidos em ICOs poderá, também, trazer conclusões e problemáticas
sobre as criptomoedas e sua regulamentação no Brasil. Até porque, como se verá adiante,
um mesmo criptoativo pode assumir o papel de diversas das definições que são
usualmente a eles atribuídas (criptomoeda, token etc.).
Nesse ponto, vale ressaltar que a escolha por não concentrar este trabalho
somente na análise dos criptoativos tem uma razão de ser. A inclusão do ICO na
composição do tema da presente pesquisa se dá, principalmente, porque essa operação é
das mais complexas dentre as realizadas com criptoativos: é dizer, um verdadeiro stress
test de uma figura ainda pouco estudada e muito menos regulamentada no Brasil e no
Mundo, o que permite analisar seus desdobramentos de maneira mais dinâmica e ligada
aos princípios basilares do Direito Comercial, bem como à regulamentação já existente.
Como a própria sigla denota, a análise histórica do ICO permite concluir que
sua criação, em perspectiva, se resume basicamente à união entre o blockchain e os
criptoativos, de um lado, e da estrutura por trás de uma Oferta Pública de Ações (ou
Initial Public Offer, “IPO”, em sua sigla em inglês), de outro.
Ocorre que, além de todo o ineditismo que circunda esse novo “produto”
financeiro, o volume de recursos que operações de ICO já estão movimentando em todo
o globo vem agravando a necessidade de consolidação da disciplina jurídica não só
desse tipo de operação em si, mas também dos valores que são trocados como
resultado da oferta.
12
Comunicado CVM de 11.10.17 : Nesse contexto, a CVM esclarece que certas operações de ICO podem
se caracterizar como operações com valores mobiliários já sujeitas à legislação e à regulamentação
específicas, devendo se conformar às regras aplicáveis. Incorrem na mesma situação companhias (abertas
ou não) ou outros emissores que captem recursos por meio de uma ICO, em operações cujo sentido
econômico corresponda à emissão e à negociação de valores mobiliários.
13
Até hoje não se sabe a real identidade de Satoshi Nakamoto, se seria uma pessoa real, um pseudônimo,
ou até mesmo o nome dado a um grupo de programadores. O fato de ter criado a tecnologia do Bitcoin, não
faz de Satoshi Nakamoto o proprietário da tecnologia, que se estrutura em blocos de acesso público (DLTs)
para funcionar.
14
Whitepaper é a nomenclatura normalmente utilizada para se referir ao documento que formaliza o
lançamento de um criptoativo ou um ICO, similar a um prospecto elaborado no âmbito de uma Oferta
Pública de Ações. Este documento geralmente concentra-se em (i) descrever a oportunidade de mercado
trazida ou propiciada pelo criptoativo que será emitido; e (ii) detalhar o funcionamento técnico da
tecnologia DLT (Distributed Ledger Technology) por trás do criptoativo emitido.
15
NAKAMOTO, Satoshi. Bitcoin: A Peer-to-peer Electronic Cash System. 2008.
O título do whitepaper que lançou o Bitcoin denota que esse criptoativo fora
originalmente concebido como um sistema de pagamentos eletrônico16, similar aos meios
de pagamento recepcionados pela nossa legislação e consolidados no Sistema Brasileiro
de Pagamentos, através da tecnologia blockchain.
Por exemplo, para realizar uma simples transferência de valores entre duas
pessoas físicas através da internet, é necessário um intermediário – no caso atual, uma
instituição financeira18 - que operacionalize a transação, com o emprego de atividades
como: verificar os dados das contas de entrada e saída, a veracidade da assinatura digital
16
“sistema de pagamento eletrônico com base na prova criptográfica em vez de confiança, permitindo que
quaisquer duas partes dispostas a transacionar diretamente entre si possam fazê-lo sem a necessidade de um
terceiro confiável.” (NAKAMOTO, Satoshi. Bitcoin: A Peer-to-peer Electronic Cash System. 2008.
Tradução Livre)
17
Vide N.R. nº 9
18
Tipo de instituição autorizada a funcionar pelo Banco Central do Brasil que tem a intermediação como
uma de suas atividades principais, como preleciona o artigo 17 da Lei nº 4.595 de 31 de dezembro de 1964.
que autoriza a realização da operação, a existência de fundos, dentre diversas outras
funcionalidades e requisitos para que a transação seja viável e efetuada, além da
existência de um espaço de tempo entre a contratação da transação e sua liquidação,
fenômeno conhecido como “lag de liquidação”.
19
Em virtude das diferentes arquiteturas tecnológicas aplicadas em cada Blockchain, pode-se concluir que
alguns Blockchains tendem a ser mais seguros que outros
20
Os custos envolvidos no processo de mineração de criptoativos, que será descrito com maiores detalhes a
seguir, decorrem intrinsecamente do poder de processamento envolvido para manter a estrutura blockchain
operante.
realizado pelo minerador é baseado em diversas tentativas, sendo que o blockchain do
Bitcoin é programado para que apenas um bloco de transações verificadas seja
adicionado à cadeia a cada 10 minutos, para evitar sobrecarregamento do sistema21.
O que outrora fora preenchido por um lastro em metais preciosos, com o advento
da moeda fiduciária passa-se a conferir maior autonomia aos estados para emissão de
21
NAKAMOTO, Satoshi. Bitcoin: A Peer-to-peer Electronic Cash System. 2008
22
AUMASSON, Jean-Phillipe et al. Cryptanalysis of Dynamic SHA (2). 2009. Acesso em: 8 fev. 2018.
moeda, que tem no poder liberatório seu principal requisito de validade e eficácia para
que seja considerado como moeda propriamente dita.
No Brasil, embora o uso das chamadas moedas virtuais ainda não se tenha mostrado capaz
de oferecer riscos ao Sistema Financeiro Nacional, particularmente às transações de
pagamentos de varejo (art. 6º, § 4º, da Lei nº 12.685/2013), o Banco Central do Brasil está
acompanhando a evolução da utilização de tais instrumentos e as discussões nos foros
internacionais sobre a matéria – em especial sobre sua natureza, propriedade e
funcionamento –, para fins de adoção de eventuais medidas no âmbito de sua competência
legal, se for o caso.
(...)
Quando entendido nessa acepção, pode-se entender “moeda virtual” como sendo
a uma moeda propriamente dita – como o é o dinheiro - emitida em ambiente virtual. Tem-
se, portanto, que para que os criptoativos possam ser enquadrados como moedas virtuais
devem cumprir com dois parâmetros objetivos: (i) enquadrarem-se na definição de moeda;
e (ii) circularem em meio eletrônico.
23
NORDHAUS, W.D., SAMUELSON, P.A. Economia. 14ª edição. Alfragide: McGraw-Hill de Portugal.
p.571.
durabilidade no tempo foi amplamente utilizado como meio de troca24.Com o passar dos
anos, certas mercadorias passaram a ser aceitas por todos, por suas características
peculiares ou pelo simples fato de serem escassas.
O sal, por exemplo, que por ser um bem escasso foi utilizado na Roma Antiga
como moeda25, foi superado ao longo do tempo pelos metais preciosos, que assumiram
sua função não só por sua escassez, mas primordialmente por sua durabilidade e
resistência. Juridicamente, essa substituição significou o início do emprego de bens
escassos e com valor intrínseco como intermediário de trocas, de modo que, enquanto
mercadoria, o regime jurídico da moeda correspondia ao das coisas móveis26.
Era comum, para que não se perdesse de vista a origem do valor da moeda, que
cada “peso” ou “valor” escolhido correspondesse a um montante existente de metais
24
VERÇOSA, Haroldo Malheiros Duclerc. Breves Considerações Econômicas e Jurídicas Sobre a
Criptomoeda. Os Bitcoins. Revista de Direito Empresarial, São Paulo, v. 14/2016, p. 139 – 154, mar-abr
2016.
25
GALBRAITH,J.K. Moeda: de onde veio, para onde foi. Segunda edição. Livraria Pioneira: São Paulo,
1983. p.16
26
Nesse sentido, ver também BAROSSI-FILHO, Milton; SZTAJN, Rachel. “Natureza Jurídica da Moeda
e Desafios da Moeda Virtual”, disponível em
https://www.cidp.pt/publicacoes/revistas/rjlb/2015/1/2015_01_1669_1690.pdf, acesso em 25 de maio de
2018.
27
A posse como prova de titularidade apenas pode ser afastada pela prova da má-fe do possuidor, nos termos
do artigo 12.202 do Código Civil.
28
preciosos, ao que se denominava lastro. Como a própria expressão indica , o lastro
servia para garantir a existência dos fundos representados pela moeda, a fim de mitigar a
problemática da confiança nas relações privadas.
Para a finalidade proposta para o presente trabalho, vale ressaltar que tal curso
forçado tem a mesma finalidade que tinha o lastro nas negociações mais primitivas:
mitigar incertezas e garantir sua liquidez, especialmente para reduzir a problemática da
confiança nas relações privadas.
28
CASTRO, Marcílio Moreira de. Dicionário de Direito, Economia e Contabilidade: português-inglês /
inglês-português : incluindo mercado de capitais, finanças, comércio exterior, negócios e jornalismo
econômico e financeiro. 4ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013, p. 216.
29
VERÇOSA, Haroldo Malheiros Duclerc. Breves Considerações Econômicas e Jurídicas Sobre a
Criptomoeda. Os Bitcoins. Revista de Direito Empresarial, São Paulo, v. 14/2016, p. 139 – 154, mar-abr
2016.
30
MENDES, Antônio; NASCIMENTO, Edson Bueno, Estudo de Direito Monetário: A Moeda e suas
Funções; Obrigações Monetárias; Estipulação e Indexação de Obrigações Monetárias. Revista de
Direito Mercantil.Nova Série, XXX (84) Dezembro.
31
Para fins de referência histórica, no Brasil por muitos anos a moeda fiduciária se sustentou por força do
Decreto-Lei n 157
seria exercida exclusivamente pelo Banco Central do Brasil, de modo que, além de não
possuírem curso forçado no brasil, os criptoativos, por não terem sido emitidos pela
autoridade competente, não podem ser interpretados analogamente às moedas no que diz
respeito ao seu regime jurídico.
É dizer: o curso forçado nada mais é que a outorga, pelo Estado ao cidadão, do
direito de resolver uma obrigação sem sua intervenção direta, ainda que tenha havido
intervenção legislativa anterior, ao se eleger uma moeda para ter curso forçado.
Uma vez que o Bitcoin, um dos primeiros criptoativos a ser emitido, foi criado
precipuamente para operar como um sistema de pagamentos, a nomenclatura adotada
para os primeiros criptoativos que foram emitidos acabou por aproximá-los do conceito
de “moeda”, mas, como se vê, tal entendimento não se sustenta sob a luz do direito
brasileiro.
A um, pois não há qualquer disposição normativa que confira poder liberatório
aos criptoativos, de modo que fica prejudicado seu enquadramento no conceito de
“moeda”. A dois, pois não é necessariamente utilizado para liberação de débitos
pecuniários (a existência dos utility tokens descrita abaixo é exemplo disso), de modo
que não se pode concluir que qualquer criptoativo, ainda que seja apelidado de
criptomoeda, seja considerado como sendo moeda propriamente dita para fins da
legislação brasileira atual.
2.4 O conceito de ativo, a definição terminológica “criptoativo” e a análise
crítica da hermenêutica aplicável ao conceito de moeda
Essa característica intrínseca dos criptoativos deve ser levada em conta quando
de sua análise jurídica, tendo em vista o caráter consuetudinário do Direito Comercial,
que faz dos usos e costumes do mercado uma de suas fontes de positivação.
Para além de seu comportamento fático, como se verá a seguir, os maiores riscos
encerrados pelos criptoativos dizem respeito ao seu uso enquanto ativo ou valor
mobiliário, e não seu uso enquanto moeda corrente, de modo que, novamente, conceituar
esses instrumentos como moeda impediria a incidência do atual arcabouço regulatório
existente, capaz de mitigar riscos imediatos e mediatos advindos desses produtos.
Isso porque, como tem sido empregados, esses instrumentos mais se aproximam
do conceito de ativo que do conceito de moeda, uma vez que têm sido utilizados muito
mais para fins de investimento que para fins próprios de liberação de obrigações.
32
Criado pela Resolução CFC nº 1.055/05, o CPC tem como objetivo "o estudo, o preparo e a emissão de
Pronunciamentos Técnicos sobre procedimentos de Contabilidade e a divulgação de informações dessa
natureza, para permitir a emissão de normas pela entidade reguladora brasileira, visando à centralização e
uniformização do seu processo de produção, levando sempre em conta a convergência da Contabilidade
Brasileira aos padrões internacionais".
33
SPROUSE, T.,MOONITZ, M. (1962). A tentative set of broad accounting principles for business
enterprises. New York: AICPA.
Nessa linha, André Franco e Vinícius Bazan34 dividem os ativos virtuais em três
classes: as “criptocommodities”, as “criptomoedas” e os “criptotokens”.
Os criptotokens, por sua vez, seriam divididos em utility tokens, que garantem o
acesso a certas funcionalidades da plataforma (como o direito de utilização gratuito de
determinado aplicativo blockchain, por exemplo) e os equity tokens ou security tokens,
que garantem desde o direito à divisão de lucros decorrentes da utilização e
desenvolvimento de determinado empreendimento, até mesmo a participação societária
na start-up que desenvolve o projeto.
34
FRANCO, André; BAZAN, Vinícius. Criptomoedas: Melhor que Dinheiro. São Paulo:Ed. Empiricus,
2018. p. 115-128.
III. NOÇÕES GERAIS DA REGULAÇÃO APLICÁVEL AO SISTEMA
FINANCEIRO NACIONAL
3.1. Introdução
Isso se sustenta pelo fato de que a autoridade monetária não está apta a lidar com
um ativo que não se comporta como moeda, ainda que tenha sido concebido como um
meio de pagamentos35.
35
Nesse sentido, ver Capítulo II supra.
forma de fração de investimento, como verdadeiro Contrato de Investimento, como se
verá a seguir.
Sendo assim, de acordo com os ensinamentos de Salomão Neto37, para que haja
atividade privativa de Instituição Financeira, deve existir a captação e repasse cumulativo
de recursos.
36
“Artigo 17. Consideram-se instituições financeiras, para os efeitos da legislação em vigor, as pessoas
jurídicas, públicas ou privadas, que tenham como atividade principal ou acessória a coleta, intermediação ou
aplicação de recursos financeiros próprios ou de terceiros, em moeda nacional ou estrangeira, e a custódia
de valor de propriedade de terceiros”.
37
SALOMÃO NETO, Eduardo. Direito Bancário. 2° Edição. São Paulo: Atlas, 2014, página 29.
De forma que os elementos dessa atividade são: (a) a captação de recursos de
terceiros em nome próprio, (b) seguida de repasse financeiro através de operação de mútuo,
(c) com o intuito de auferir lucro derivado da maior remuneração dos recursos repassados
em relação à dos recursos coletados, (d) desde que a captação seguida de repasse se realize
em caráter habitual.
(...)
§ 7º Quaisquer pessoas físicas ou jurídicas que atuem como
instituição financeira, sem estar devidamente autorizadas pelo Banco
Central da Republica do Brasil, ficam sujeitas à multa referida neste artigo
[multa pecuniária variável] e detenção de 1 a 2 anos, ficando a esta
sujeitos, quando pessoa jurídica, seus diretores e administradores.”
No entanto, há quem defenda que uma determinada entidade apenas pode ser
considerada uma instituição financeira se desempenhar as atividades mencionadas no
“caput” do artigo 17 da Lei 4595/64 de maneira concomitante, não isolada. Nesse sentido
é o entendimento de Nelson Eizirik38:
38
EIZIRIK, Nelson. Caracterização do Exercício Irregular da Atividade Privativa de Instituição
Financeira. In: CARVALHOSA, Modesto e EIZIRIK, Nelson. Estudos de Direito Empresarial. São Paulo:
Saraiva, 2010, p. 523-531.
Wilson do Egito Coelho, ex-consultor jurídico do Banco Central do Brasil, em
estudo apresentado logo após a edição da Lei 4.595/64 já compartilhava do mesmo
entendimento39:
(...)
I - admoestação pública;
II - multa;
39
COELHO, Wilson do Egito. Empréstimo de dinheiro por particulares: quando se caracteriza
operação privativa dos bancos. Revisa da OAB, V. 2, n. 4, p. 341
V - inabilitação para atuar como administrador e para exercer cargo em órgão
previsto em estatuto ou em contrato social de pessoa mencionada no caput do art.
2o desta Lei;
40
Conforme decisão proferida no Recurso nº 3832 (Pricewaterhousecoopers Auditores Independentes
vs. BACEN), julgado em 15.9.2004: “A esse respeito, comunga-se do entendimento que define uma entidade
como instituição financeira nos casos em que haja cumulação de captação, intermediação e aplicação de
recursos de terceiros. E, mesmo assim, se os recursos forem captados de forma difusa do público e não de
pessoas jurídicas específicas, em número pequeno e determinado. Também necessário, para materialização
de instituição financeira, que haja caráter habitual, a atividade seja feita de forma profissional e com os
riscos inerentes à especulação.”
Por exemplo, operações de empréstimo realizadas com profissionalismo e
habitualidade, mas com a utilização de recursos próprios, sem captação de recursos de
terceiros. É o que se observa na seguinte decisão do CRSFN41:
Existem determinadas restrições para que se possa ser constituída uma Instituição
Financeira privada, dentre elas, a necessidade de autorização pelo Banco Central do Brasil
41
Vide decisão proferida nos autos do Recurso CRSFN nº 5783 (Consórcio Nacional GM Ltda. vs.
BACEN), julgado em 29.3.2005.
para entrar em funcionamento. Ademais, deve ser ressaltado que, de acordo com a
Constituição Federal do Brasil, a participação do capital estrangeiro em Instituições
Financeiras, está sujeita além da prévia aprovação do Banco Central do Brasil, além disso,
usualmente os requerimentos referentes a aumento de participação estrangeira no SFN
necessita da edição de um decreto emanado pelo Poder Executivo.
42
ABRÃO, Nelson. Direito Bancário. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p 66
desenvolvimento e implementação das políticas do CMN que dizem respeito ao Mercado
de Valores Mobiliários.
Desta forma, importante distinguir ambos os conceitos, uma vez que a instituição
financeira é a entidade que negocia créditos com atividade principal ou acessória,
influenciando na velocidade da circulação da moeda, enquanto os bancos atuam na
efetiva criação da moeda escritural, conforme afirma Comparato em seus comentários.
Referido conceito, entretanto, se mostra ultrapassado diante do marco regulatório
criado em 2013 no qual foi criado o conceito de instituição de pagamento a fim de regular
a emissão de cartões pré e pós pagos e a criação de moeda escritural no âmbito do
mercado de meios de pagamentos, descrita no capítulo 2 do presente trabalho.
Neste sentido, cabe mencionar que a definição adotada pelo legislador e regulador
brasileiro determina expressamente que instituições de pagamento não são instituições
financeiras, mas entidades distintas sujeitas a conceituação e arcabouço legal próprias.
Diante de tal atualização legislativa restou premente atentar aos termos utilizados
na conceituação de instituição financeira de forma a não resultar na confusão de ambos
os institutos.
Uma das ações mais comuns identificadas nas jurisdições pesquisadas são os
avisos emitidos pelo governo sobre as armadilhas de investir nos mercados de
criptomoeda44. Tais alertas, em sua maioria emitidos por bancos centrais, são em grande
parte projetados para educar os cidadãos sobre a diferença entre as moedas reais, que são
emitidas e garantidas pelo Estado, e moedas criptográficas, que não possuem curso
forçado, como já visto.
43
Traduções literais da terminologia listada no Relatório elaborado pela Library of Congress norte-
americana. <Disponível em: https://www.loc.gov/law/help/cryptocurrency/cryptocurrency-world-
survey.pdf>
44
No Brasil, como será explorado a seguir, a CVM e o BACEN emitiram comunicados ao mercado
alertando sobre os riscos do emprego desses ativos, bem como delineando a interpretação da atual
regulamentação aplicável a esses mercados emergentes.
45
Em agosto de 2015, o Comitê de Referências Econômicas do Senado do Parlamento Australiano publicou
um relatório, após a conclusão de uma consulta sobre “como desenvolver um sistema regulatório eficaz para
moeda digital, o potencial impacto da tecnologia de moeda digital na economia australiana e como a Austrália
pode tirar proveito da tecnologia de moeda digital.” O governo respondeu às recomendações do Comitê em
maio de 2016, que culminou na adequação do tratamento fiscal de criptomoedas, que observou aspectos das
seguintes ações do Australian Taxation Office (ATO). No que diz respeito à prevenção à lavagem de dinheiro
e financiamento do combate ao terrorismo, o governo australiano apresentou um projeto de lei ao Parlamento
em agosto de 2017 para que os operadores de corretoras digitais sejam abrangidos pelo regime de
regulamentação do aplicável, conforme recomendado pela comissão do Senado A lei foi promulgada em
dezembro de 2017 e as disposições relevantes entraram em vigor em 3 de abril de 2018.
para levar as transações de criptomoeda e instituições que as facilitam sob o âmbito das
leis de lavagem de dinheiro e financiamento do terrorismo.
46
Em 3 de dezembro de 2013, autoridades monetárias chinesas emitiram em conjunto um aviso alertando o
público sobre os riscos do bitcoin, definida como “por natureza uma commodity virtual especial”, que “não
tem o mesmo status legal de moeda” e “não pode e não deve ser circulada no mercado como moeda”. De
acordo com o aviso, os bancos e as instituições de pagamento na China estão proibidas de negociar bitcoins.
Instituições financeiras e de pagamento são proibidas de usar preços de bitcoin para produtos ou serviços ou
de compra ou venda de bitcoins, nem podem fornecer serviços relacionados a bitcoins diretos ou indiretos,
incluindo registro, negociação, liquidação, compensação ou outros serviços; aceitar bitcoins ou usar bitcoins
como uma ferramenta de liquidação; ou negocie bitcoins com yuan chinês ou moedas estrangeiras.
47
Em outubro de 2017, a autoridade monetária (Financial Markets Authority - FMA) neozelandesa publicou
informações sobre criptomoedas e os riscos associados a elas, como parte de sua orientação sobre as opções
de investimento. Em particular, destaca os seguintes três pontos sobre criptomoedas: são ativos de alto risco
e altamente voláteis; seu preço pode subir e descer muito rapidamente; e não são regulamentados na Nova
Zelândia
A FMA também publicou comentários sobre ofertas iniciais de moedas (ICOs) e serviços de criptomoeda
(incluindo trocas, carteiras e corretagem). As informações referem-se à aplicação do marco regulatório
existente para produtos e serviços financeiros. Com relação aos ICOs, a orientação afirma que: Estar ou não
Da mesma forma, na Holanda, as reservas aplicáveis a um ICO específico
dependem de o token ofertado ser considerado uma garantia ou uma unidade em um
investimento coletivo, uma avaliação feita caso a caso.
sujeito à regulamentação depende se o ICO inclui um "produto financeiro" está sendo oferecido a
investidores de varejo na Nova Zelândia (ou seja, uma "oferta regulada" está sendo feita). Se um token
oferecido por meio de um ICO é um produto financeiro e, em caso afirmativo, que tipo de produto depende
das características específicas e da substância econômica do token. A FMA então explica como um token
pode ser considerado um dos quatro tipos de produtos financeiros estabelecidos na Lei de Conduta dos
Mercados Financeiros de 2013 (sendo títulos de dívida, ações, produtos de investimento gerenciado e
derivativos), e se sim, quais são as obrigações do emissor.
48
Comunicado Conjunto de la Comisión Nacional del Mercado de Valores (CNMV) y Banco de España
[Joint Press Statement by CNMV and Banco de España on “Cryptocurrencies” and “Initial Coin Offerings”
(ICOs)] (Feb. 8, 2018). <Disponível em:
https://www.cnmv.es/loultimo/NOTACONJUNTAriptoES%20final.pdf>
49
España Busca Aprobar una Legislación Amistosa para las Criptomoneda. Spain Seeks to Approve Friendly
Legislation Towards Cryptocurrencies], Harwareate (Feb. 18, 2018). <Disponível em:
https://hardwareate.com/espana-busca-aprobar-una-legislacion-amistosas-las-criptomonedas>
50
As Ilhas Marshall promulgaram legislação autorizando o lançamento de sua “criptomoeda” para servir
como moeda de curso legal para cidadãos e empresas na ilha. A moeda será conhecida como soberana, ou
SOV, e servirá como “moeda de curso legal das Ilhas Marshall para todas as dívidas, encargos públicos,
impostos e contribuições”. Circulará como moeda legal além do dólar americano O SOV será introduzido
em uma oferta inicial de moeda (ICO), após a qual os residentes das Ilhas Marshall receberão os meios para
manter, salvar e conduzir transações com o SOV, e os comerciantes nas Ilhas Marshall terão acesso a um
aplicativo de computador que permitirá que eles recebam pagamentos feitos com o SOV.
tributação. Isso é importante principalmente porque os ganhos obtidos com mineração
ou venda de moedas criptografadas são categorizados como renda e os ganhos de capital
invariavelmente determinam a faixa de imposto aplicável. Os países pesquisados
classificaram as criptomoedas de maneira diferente para fins fiscais, conforme ilustrado
pelos exemplos a seguir:
51
O Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias decidiou no caso Skatterverket v. David Hedqvist que
o imposto sobre valor agregado não incidiria sobre os estados-membro da União Europeia.
52
Lei nº. 419059-7, Federal Law of the Russian Federation on Digital Financial Assets, <Disponível em:
http://asozd2c.duma.
gov.ru/addwork/scans.nsf/ID/E426461949B66ACC4325825600217475/$FILE/419059-
7_20032018_419059-7.PDF?OpenElement (em Russo)
53
A lei mexicana para Regulamentar Empresas de Tecnologia Financeira, promulgada em março de 2018,
inclui um capítulo sobre operações com “ativos virtuais”. Este capítulo define ativos virtuais como
representações de valor registradas eletronicamente e utilizadas pelo público como meio de pagamento para
todos os tipos de transações legais, que só podem ser transferidas eletronicamente.
Além disso, o México promulgou uma lei estendendo a aplicação de suas leis relativas à lavagem de dinheiro
a ativos virtuais, exigindo, assim, que instituições financeiras que prestam serviços relacionados a esses
ativos relatem transações que excedam determinados valores.
54
Comunicado à imprensa. CNET Antigua, The Government of Antigua and Barbuda Supports CNET’s
Investment Development Projects and Charities Funded by the Initial Coin Offering for Development
<disponível em: https://www.prnewswire.com/news-releases/the-government-of-antigua-and-barbuda-
supports-cnets-investment-development-projects-and-charities-funded-by-the-initial-coin-offering-for-
development-300605628.html>
tendo vindo ora de autoridades monetárias, ora das autoridades supervisoras dos
mercados de capitais, tendo poucas jurisdições criado órgãos especializados nesses
ativos.
A dois, o tratamento jurídico que deve ser dado a esses instrumentos, que é a
problemática central da presente tese.
4.1. Conceito
55
Vide Capítulo V.
security-based swap, bond, debenture, evidence of indebtedness, certificate of interest or
participation in any profit-sharing agreement, collateral-trust certificate,
preorganization certificate or subscription, transferable share, investment contract,
voting-trust certificate, certificate of deposit for a security, fractional undivided interest
in oil, gas, or other mineral rights, any put, call, straddle, option, or privilege on any
security, certificate of deposit, or group or index of securities (including any interest
therein or based on the value thereof), or any put, call, straddle, option, or privilege
entered into on a national securities exchange relating to foreign currency, or, in
general, any interest or instrument commonly known as a ‘‘security’’, or any certificate
of interest or participation in, temporary or interim certificate for, receipt for, guarantee
of, or warrant or right to subscribe to or purchase, any of the foregoing.”
O dispositivo legal acima transcrito não traz propriamente uma definição de valor
mobiliário ou security, mas uma relação, de forma exemplificativa – e não taxativa –,
dos tipos de títulos que podem ser considerados uma security no direito norte-americano.
Diante das lacunas apresentadas pela legislação federal, os tribunais norte-americanos e
a Securities Exchange Commission - SEC passaram a ser frequentemente acionados para
que se manifestassem com relação à definição de valor mobiliário.
56
“The transactions involved in this case were not simply sales and assignments of interests in land, but, by
the nature of the offers, were within the terms "investment contracts" and "any interest or instrument
commonly known as a security,'" and were therefore sales of "securities" within the meaning of § 2(1) of
the Securities Act of 1933. P. 320 U. S. 351. The ejusdem generis rule and the maxim expressio unius
exclusio alterius are subordinate to the doctrine that courts will construe the details of an Act in conformity
with its dominating general purpose, will read text in the light of context, and, so far as the meanings of the
words fairly permit, will interpret the text so as to carry out in particular cases the generally expressed
legislative policy. P. 320 U. S. 350”
especificamente de contrato de investimento. Tal entendimento foi fundamentado,
principalmente, no fato de que referida empresa não oferecia meras cessões de
arrendamento, mas sim instrumentos que possibilitavam aos investidores (cessionários)
participar em eventuais lucros que viessem a decorrer da exploração dos poços de
petróleo.
Não se atendo apenas à forma dos instrumentos envolvidos no caso, mas também
analisando a realidade econômica da operação, a Suprema Corte norte-americana
concluiu que os contratos de investimento (investment contracts) compreenderiam todo
e qualquer instrumento que envolvesse “(a) an investment of money (b) in a common
57
For purposes of the Securities Act, an investment contract (undefined by the Act) means a contract,
transaction, or scheme whereby a person invests his money in a common enterprise and is led to expect
profits solely from the efforts of the promoter or a third party, it being immaterial whether the shares in the
enterprise are evidenced by formal certificates or by nominal interests in the physical assets employed in
the enterprise. Pp. 328 U. S. 298-299.3. The fact that some purchasers, by declining to enter into the
service contract, chose not to accept the offer of the investment contract in its entirety does not require a
different result, since the Securities Act prohibits the offer, as well as the sale, of unregistered nonexempt
securities. P. 328 U. S. 300. The test of whether there is an "investment contract" under the Securities Act
is whether the scheme involves an investment of money in a common enterprise with profits to come solely
from the efforts of others; and, if that test be satisfied, it is immaterial whether the enterprise is speculative
or nonspeculative, or whether there is a sale of property with or without intrinsic value. P. 328 U. S. 301.
enterprise (c) with profits to come (d) solely from the efforts of the promoter or a third
party”.
III - outros títulos criados ou emitidos pelas sociedades anônimas, a critério do Conselho
Monetário Nacional.
A mesma lei explicitou, ainda, no parágrafo único de seu artigo 2º, os títulos
excluídos do conceito de valor mobiliário:
Embora o caso dos bois tenha ficado mais conhecido, era comum também a oferta
de investimentos em outros animais, como suínos e aves. Um dos casos célebres de
pirâmide no Brasil é o caso da Avestruz Master58, empresa goiana que emitia Cédulas de
Produto Rural (as chamadas CPRs) que asseguravam aos seus adquirentes o direito de
remuneração por meio de um compromisso de recompra das aves. O rendimento
prometido chegava a 10% ao mês. Quando faliu em 2004, a empresa deixou um prejuízo
de mais de R$ 2 bilhões.
58
Com a constatação da distribuição pública irregular, a CVM determinou a suspensão das atividades de
negociação de CPRs pela Avestruz Master, através da Deliberação 473, de 01/12/04
característica predominante de investimento coletivo, cujos rendimentos resultem do
esforço de pessoas que não os investidores.
59
Processo CVM nº RJ 2003/0499, Rel. Dir. Luiz Antonio de Sampaio Campos, julgado em 28.08.2003
de uma concepção fechada de valor mobiliário, para a adoção de uma
concepção funcional-instrumental do que seria valor mobiliário, acabando
por alargar sobremaneira sua definição, bem como a competência da
CVM.”
Em verdade, esta sempre foi a tônica da definição de valores mobiliários para fins
de regulação pela CVM, muito embora não fosse assim tão explícita, não obstante fosse
intuitiva.
IV - as cédulas de debêntures;
VI - as notas comerciais;
O tipo aberto tornou o conceito de valores mobiliários instrumental, uma vez que
o conceito de valor mobiliário no direito positivo brasileiro delimita o campo de atuação
da CVM. Diante da expressão “quando ofertados publicamente” (no inciso IX do artigo
2º da Lei nº 6.385/76), um título ou contrato de investimento coletivo, por mais que
possua as características e os requisitos estabelecidos no referido dispositivo, somente
passa a interessar o legislador dependendo de a quem é ofertado ou a forma em que é
ofertado o referido título.
iv. as CCBs pagam juros aos seus titulares e estes juros constituem,
obviamente, uma remuneração, o que satisfaz o requisito descrito no item
2.11(iv) acima; a propósito, vale lembrar que, segundo nossos precedentes,
a palavra "remuneração" empregada no inciso IX deve ser entendida em
sentido lato, de forma a cobrir "qualquer investimento que o público faça
na expectativa de obter algum rendimento"; e
60
Para discussão mais detalhada sobre o precedente, que aborda pontos não atinados ao tema do presente,
vide MATTOS FILHO, Ary Oswaldo. CCB é valor mobiliário? Artigo publicado na
Revista Capital Aberto, ano 5, nº 56, abril de 2008.
Assim, entendeu a CVM que a CCB, quando objeto de uma oferta pública,
enquadra-se nos seguintes requisitos: (i) ser um título ou contrato; (ii) de investimento
coletivo; (iii) ofertado publicamente; (iv) gerar direito de participação, de parceria ou de
remuneração, inclusive resultante de prestação de serviços; e (v) ter seus rendimentos
advindos do esforço do empreendedor ou de terceiros.
Emitir um token que confere ao seu titular tão somente a expectativa de uso de
um serviço, exemplo clássico de um utility token, por não conferir ao titular direito de
participação no empreendimento, não pode ser considerado um valor mobiliário, sendo
um bem intangível, um ativo. E essa conclusão traz consigo uma consequência relevante.
Já os elementos subjetivos dizem respeito aos destinatários de tais atos, isto é, seu
grau de sofisticação e se tiveram acesso às informações relativas à companhia e aos
valores mobiliários em questão.
61
VALENTE, Patrícia Rodrigues Pessôa. Avaliação de Impacto Regulatório: Uma ferramenta à disposição
do Estado. 2010. 8 f. Dissertação de mestrado (Direito) - Faculdade de Direito da Universidade de São
Paulo, São Paulo, 2010. Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/2/2134/tde-26032012-
092844/publico/PatriciaPessoaValente_versao_completa.pdf>. Acesso em: 12 jun. 2018.
Nesse caso, é possível que a oferta seja vista como uma oferta privada, isenta, portanto,
do registro junto à CVM.
A esse respeito, ressalta-se que não há, no Brasil, uma definição de oferta privada.
Porém, a doutrina brasileira, inspirada em modelos adotados em outras jurisdições
(principalmente no modelo norte-americano) busca identificar parâmetros, considerando
a conceituação de oferta pública no ordenamento jurídico nacional para, a contrariu
sensu, identificar os contornos do conceito de oferta privada.
No caso específico dos ICOs, embora não seja possível generalizar, em muitos
casos ao menos, a oferta é endereçada, utilizando-se de publicidade, ao público em geral,
tendo como alvo investidores que não necessariamente são sofisticados ou possuem as
informações adequadas. Em tais casos, o primeiro requisito para o enquadramento no
conceito de valor mobiliário estaria então atendido, restando avaliar, caso-a-caso, se os
outros dois requisitos também estariam presentes.
Isto é, se o token ou coin objeto do ICO (i) gera direito de participação, de parceria
ou de remuneração, inclusive resultante de prestação de serviços e (ii) possui seus
rendimentos advindos do esforço do empreendedor ou de terceiros.
Como já visto, as discussões descritas nesse capítulo podem ser já resolvidas com
o atual arcabouço regulatório existente no Brasil, de modo que, sob a ótica de uma
supervisão baseada em riscos, a natureza jurídica dos tokens que interessam ao Sistema
Financeiro Nacional já está delimitada, qual seja, a de valor mobiliário
62
EIZIRIK, Nelson, GAAL, Ariádna B., PARENTE, Flávia e HENRIQUES, Marcus de Freitas. Mercado
de Capitais - Regime Jurídico. 3. Ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2011
Como visto acima, alguns criptoativos podem ser enquadrados como valores
mobiliários nos termos da legislação brasileira, mas isso não significa que sempre o
serão. No caso de tokens que possuem as características de valores mobiliários no Brasil,
sua oferta ao público por meio de um ICO é equiparada a uma oferta pública de valor
mobiliário e, assim, se sujeita à legislação e regulamentação aplicáveis às ofertas públicas
de valores mobiliários. Nesses casos, são duas as principais implicações regulatórias: a
aplicação das regras de registro e de disclosure previstas na regulamentação da CVM e
restrições à negociação dos tokens, que serão descritas a seguir.
63
ICOs são comumente definidos na literatura especializada como uma modalidade de crowdsale, não de
crowdfunding. A diferença reside no fato de que quem aporta recursos em um movimento de crowdfunding
esperam retorno prospectivo em seus investimentos, enquanto os fundos levantados em ICOs na última
campanha são basicamente doações. Na prática, no entanto, sob a ótima da oferta, ambos podem ser
utilizados como instrumento de capitalização.
Os ICOs também mantêm pelo menos três importantes diferenças estruturais das
IPOs. Primeiro, os ICOs são descentralizados, sem uma única autoridade que as controle.
Segundo, os ICOs são em grande parte não regulamentadas, o que significa que
organizações governamentais como a Comissão de Valores Mobiliários dos Estados
Unidos (SEC) não as supervisionam. Finalmente, como resultado da descentralização e
da falta de regulamentação, as OICs são muito mais livres em termos de estrutura do que
as IPOs.
A Instrução CVM 476, por sua vez, instituiu no ordenamento jurídico brasileiro
o conceito de “oferta pública com esforços restritos”. Essa modalidade de oferta de
valores mobiliários foi criada à luz de modelos adotados em outras jurisdições e tem por
objetivo facilitar o acesso das empresas ao mercado de capitais mediante a redução de
custos e prazos.
Todavia, entre outros requisitos, a Instrução CVM 476 contém uma lista taxativa
dos títulos que podem ser objeto de ofertas públicas com esforços restritos, dentre os
quais não estão incluídos os contratos de investimento coletivo. Ademais, esse tipo de
oferta deve ser destinada exclusivamente a um número restrito de investidores
profissionais, além de intermediadas por integrantes do sistema de distribuição de valores
mobiliários. Até 75 Investidores Profissionais podem ser procurados, dos quais apenas
50 podem subscrever ou adquirir valores mobiliários na oferta.
Vale notar que, mesmo no modelo de equity crowdfunding criado pela Instrução
CVM 588, tais restrições à negociação de valores mobiliários se aplicam. As plataformas
de crowdfunding não podem realizar atividades de intermediação secundária de valores
mobiliários.
64
Informativo da Reunião do Colegiado Nº 04/2018
Registro de Empresas (“SRE”) da CVM no sentido de não enquadrar a criptomoeda
Niobium Coin (“NBC”) como um valor mobiliário e, portanto, afastar a aplicação da
regulamentação de ofertas públicas editadas pelas CVM e a competência deste regulador
para supervisionar as atividades da emissora e sua negociação65.
Ademais, a área técnica pontua que deve ser levada a discussão as demais
características do NBC, especialmente aquelas que poderiam ser interpretadas como
caracterizadoras de um token cujo retorno seria resultante do esforço do empreendedor.
Neste sentido, a área técnica leva ao Colegiado a discussão sobre uma potencial
interpretação extensiva do conceito de valor mobiliário no Brasil, em vista da valorização
dos tokens no mercado secundário como se pode ver a seguir:
Ainda que esta seja uma compreensão possível, a qual inclusive encontra
respaldo na interpretação dada pela SEC no âmbito da conceituação de
Security no recente caso da Munchee Inc.2, é importante observar que
esta perspectiva foi contemplada na análise conduzida pela Procuradoria
Federal Especializada da CVM. Com efeito, afirmou a PFE em seu
parecer que o conceito de security, em nosso ordenamento jurídico, foi
positivado, adquirindo contornos legais que limitam a sua configuração,
de modo que, embora haja expectativa de lucro, o instrumento em tela em
princípio não se enquadra na definição de CIC, à luz do previsto no art.
2º, IX, da Lei 6.385/76 3.
65
Processo CVM nº 19957.010938/2017-13.
estabelece o conceito de contrato de investimento coletivo. Embora o assunto tenha sido
levado ao Colegiado, a decisão não entra em maiores detalhes de forma que pode-se
esperar que o assunto seja retomado em discussões futuras.
Ainda que não constitua regramento erga omnes, a atuação regulatória no Brasil
sobre os criptoativos já está se estabilizando no campo de atuação da Comissão de
Valores Mobiliários, até porque, como já visto, esses ativos não encerram os atributos de
validade e eficácia monetária necessários à atração da competência da autoridade
responsável, no caso, o Banco Central no Brasil.
66
Deliberação CVM n° 680/2012, em desfavor da Exchange Mercado Bitcoin.
Através desse Oficio a CVM esclareceu que “criptomoedas” não podem ser
consideradas ativos financeiros para fins da Instrução CVM nº 555. Os fundos de
investimento são veículos de investimento existentes no ordenamento jurídico
brasileiro, regulados pela Comissão de Valores Mobiliários notadamente pela
Instrução CVM nº 555, de 17 de dezembro 2014, conforme alterada e outras normas
específicas, a depender da classe de fundo envolvida.
(v) investidores/cotistas;
67
vide Instrução CVM nº 558, de 26 de março de 2015
68
vide Instrução CVM 558.
69
vide Instrução CVM nº 542, de 20 de dezembro de 2013.
efetivamente vedou a possibilidade de que fundos de investimento invistam em
criptoativos no Brasil.
Embora seja pouco provável que avance na pauta da Câmara dos Deputados este
ano, o projeto de lei nº 2.303/2015, que visa propor regras para a regulamentação do
mercado de criptomoedas no Brasil, vem sofrendo inúmeras críticas por parte da
comunidade de moedas digitais nacional, que chegou a argumentar que os deputados têm
pouco conhecimento sobre o assunto e que os debates que ocorreram na câmara foram
superficiais e equivocados, sendo quase impossível identificar se realmente o tema
abordado envolvia Bitcoin e criptomoedas.
Enquanto não haja lei específica, a disciplina jurídica desses ativos deve ser
pautada, em lógica semelhante à de uma supervisão baseada em riscos, na prevenção e
remediação dos riscos encerrados, de um lado, e no fomento ao recepcionamento desses
instrumentos em respeito aos usos e costumes do mercado, a outro.
Emitir um token que confere ao seu titular tão somente a expectativa de uso de um
serviço, exemplo clássico de um utility token, por não conferir ao titular direito de
participação no empreendimento, não pode ser considerado um valor mobiliário, sendo um
bem intangível, um ativo.
Porém, a igual semelhança dos adventos permite com que, hoje, haja preparação
regulamentar suficiente para reagir a eventuais intempéries advindas do recepcionamento
dos criptoativos.
Por essa razão, o presente trabalho elegeu as Initial Coin Offerings como regra-
parâmetro para a análise desses ativos, que, quando se comportam como valores
mobiliários, podem ensejar a determinação de restrições à oferta (stop orders) e restrições
à negociação por parte da Comissão de Valores Mobiliários.
VII. ÍNDICE BIBLIOGRÁFICO
ABRÃO, Nelson. Direito Bancário. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p 66
MATTOS FILHO, Ary Oswaldo. CCB é valor mobiliário? Revista Capital Aberto, ano 5,
nº 56, abril de 2008
MATTOS FILHO, Ary Oswaldo. Conceito de Valor Mobiliário. In: Revista de Direito
Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, nº 59, set. 1986.
MOUGAYAR, William. The Business Blockchain. John Wiley & Sons, 1º Ed., 2016.
NAKAMOTO, Satoshi, Bitcoin v0.1 released, 2009.
Sprouse, R. T., & Moonitz, M. (1962). A tentative set of broad accounting principles
for business enterprises. New York: AICPA
TAPSCOTT, Don; TAPSCOTT, Alex. Blockchain Revolution. 1. ed. São Paulo: SENAI-
SP, 2016