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REGULAMENTAÇÃO DAS OPERAÇÕES REALIZADAS COM CRIPTOATIVOS:

ANÁLISE DO PROJETO DE LEI 3825/2019


REGULATION OF FINANTIAL OPERATIONS CARRIED OUT WITH CRYPTO ASSETS:
ANALYSIS OF BILL 3825/2019

Eduardo Augusto Bortolini Ribeiro1

Grupo de trabalho: Direito.

Resumo. O presente artigo tem como objetivo o estudo e análise do Projeto de Lei N° 3825,
de 2019, como um dispositivo infraconstitucional criado como tentativa de possibilitar ao
Estado regular as operações financeiras online realizadas com criptoativos. São abordados os
conceitos de plataforma eletrônica, criptoativos e Exchange de criptoativos, trazidos pelo
próprio PL, além de exemplos fáticos. Relata-se como funcionam as exchanges, “corretoras”
que promovem compra e venda de criptoativos, e como o maior objetivo do PL é, conforme o
próprio declara, regulamentar as operações dessas empresas através do Banco Central.
Ademais, expõe-se sobre a atividade regulatória do Estado em um ambiente virtual
desmaterializado, sendo também relatado o confronto entre a ideia de anonimato e
estabilidade do sistema “blockchain”, tecnologia que origina os criptoativos, versus a
estabilidade jurídica do direito. Por fim, retrata a repercussão jurídica dos criptoativos e os
efeitos que estes ensejam, principalmente no momento da conversão e negociação desses
ativos em moeda corrente entre pessoas, em detrimento do funcionamento intrinsicamente
anônimo do sistema.

Palavras-chave. Criptoativos. Regulamentação. Exchange de criptoativos. Banco Central.

Abstract. This article aims the study and analysis of Bill 3825 of 2019, as an
infraconstitutional device that would allow the State to regulate online operations carried out
with crypto-assets. The concepts of electronic platform, crypto-assets and exchange of crypto-
assets, brought by the Bill itself, are discussed, as well as practical examples. Subsequently, it
is demonstrated how exchanges, “brokers” that promote the purchase and sale of crypto-assets
work, and how the main objective of the Bill is to specifically regulate the operations of these
companies through the Central Bank. Furthermore, the discussion about the regulatory
activity of the State in a dematerialized virtual environment is raised, and the confrontation
between the idea of anonymity and stability of the “blockchain” system versus the legal
stability of law is also addressed. Finally, the legal repercussion of crypto-assets is discussed,
if the legal effects they give rise to are given by the conversion and trading of these assets into
currency or by the intrinsically anonymous functioning of the system.

Keywords. Crypto-assets. Regulation. Crypto exchange. Central Bank.


1
Graduando em Direito pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná, campus de Francisco Beltrão.
eduardo.ribeiro3@unioeste.br
INTRODUÇÃO

O presente artigo tem como objetivo a análise do Projeto de Lei N° 3825, de 2019,
de autoria do Senador Flávio Arns (REDE/PR), aprovado pelo Senado Federal no dia 26 de
abril de 2022, que foi criado com o objetivo expresso de regulamentar as operações realizadas
com criptoativos em plataformas eletrônicas de negociação, enquanto uma proposta eficaz
para promover a regulação destes na forma que assumem atualmente.
Com fins de atingir o objetivo de pesquisa, em um primeiro momento o artigo parte a
uma contextualização sobre os conceitos de plataformas eletrônicas, criptoativos e exchange
de criptoativos, trazidos pelo próprio PL. Aprofunda-se no funcionamento e nas espécies de
critpoativo, e em como ganharam relevância para o mundo jurídico com a popularização da
negociação em exchanges, usando-se dinheiro tradicional para isso.
A partir dessa conceituação, parte ao que foi expressamente declarado o grande
objetivo do PL: submeter as exchanges de criptoativos à regulação pelo Banco Central. Como
será visto, as exchanges são “corretoras” de criptoativos, que promovem sua compra e venda
direta ou intermediada. Isso ensejará uma nova discussão: será o Estado capaz de regular o
sistema em si, alcançando de alguma forma a criptografia que origina os criptoativos, ou
somente a parte que mais tangível, ou seja, as pessoas jurídicas (via de regra empresas) que
viabilizam a compra e venda desses ativos?
Também é relatado o quão importante se faz a regulação da economia por parte do
Estado, na forma preconizada pela Constituição Federal, principalmente no que tange à
competência da União para emitir moeda e fiscalizar as operações de natureza financeira (art.
21, VII e VIII da CF), o que parece se opor ao conceito de moedas emitidas de forma
descentralizada (as criptomoedas) e ao anonimato que a criptografia enseja.
Por fim, retrata-se a repercussão jurídica que os criptoativos trouxeram à realidade do
direito. Contrapõe-se a novidade, os avanços na criptografia e na tecnologia, com questões
antigas do direito, pois o que se mostra caro ao legislador não são os criptoativos em si, mas o
que eles podem representar quando são convertidos e transacionados em moeda corrente
como real ou dólar, pois o dinheiro tradicional já é efetivamente tutelado pelo Estado
enquanto bem-jurídico e propriedade.
Para a realização deste artigo, utilizou-se de metodologia dogmática-instrumental,
através de revisão da bibliografia disponível sobre criptoativos, processo de criação
legislativo, regulação estatal da economia e a repercussão social que estes tópicos ensejam.
Procedeu-se à leitura de artigos científicos, dissertações, revistas, o próprio PL 3825/2019 e
dispositivos legais relacionados. O artigo se vale tanto da interdisciplinaridade do direito
quanto das incipientes pesquisas na área, buscando desbravar um fenômeno novo,
principalmente para o meio jurídico, mas que se mostra cada vez mais difundido na
sociedade.

1 HISTÓRIA E CONTEXTO DO SURGIMENTO DOS CRIPTOATIVOS

Os criptoativos têm duas faces: são a junção da economia e do uso do dinheiro com a
tecnologia e a criptografia. Historicamente, o primeiro registro que se tem do uso de uma
moeda que representava valor data do século VII a.C., na Lídia, atual Turquia. Essas moedas
eram de ouro ou prata, cunhadas à martelo com figuras que lhe davam suas características.
Surgia então o primeiro conceito de ativo como algo que tem um valor intrínseco e
que pode ser convertido de alguma forma em moedas e dinheiro. Embora as moedas tenham
sido alteradas ao longo da história, elas preservaram essa característica de possuírem valor de
troca e de terem sua legitimidade garantida pela figura cunhada. (GONÇALVES, 1984, p. 27)
Os bancos surgem para guardar essas moedas em segurança. Os negociantes tinham
cofres e guardas a seu serviço, e passaram a armazenar e cuidar das moedas dos seus clientes,
e a dar recibo das quantias guardadas. Tais ficaram conhecidos como goldsmith notes, e eram
papéis que representavam algum valor equivalente em moedas, legitimados pelos negociantes.
Nesse momento têm origem tanto as cédulas bancárias quanto o papel moeda, além dos
próprios bancos.
Por outro lado, criptografia significa esconder informação de terceiros, e desde a
antiguidade se buscavam meios para enviar e receber mensagens secretas, de forma a não
permitir que terceiros estranhos compreendessem o que estava escrito. Na história da
comunicação humana sempre houve a necessidade de comunicar conteúdos somente à
determinados ouvintes.
O primeiro método para encriptografar mensagens foi a cifra, um algoritmo que
serve tanto para cifrar quando para decifrar um texto. Um exemplo é a Cifra de Júlio César,
onde cada letra do alfabeto era trocada por outra letra do mesmo alfabeto, e só quem tinha a
chave, ou seja, sabia qual letra equivalia à outra, poderia decifrar a mensagem (DE
ALVARENGA, 2011, p. 7).
A partir dessa ideia, primordial e datada da antiguidade, unida com a possibilidade de
processamento oferecida pela computação moderna, surge a criptografia computacional, que
parte da antiga necessidade de esconder mensagens de terceiros, mas utiliza para isso
ferramentas como esquematização aritmética e matricial, que teriam sido impensáveis há
séculos atrás (DE ALVARENGA, 2011, p. 101)
Relata-se que já existe há um tempo considerável o dinheiro eletrônico, ou e-money,
que é uma representação digital da moeda fiduciária, garantida por quem a emite, ou seja,
governos e bancos centrais. Mais antiga que o criptoativo é a possibilidade de trocar papel-
moeda ou cédulas bancárias por dinheiro eletrônico, o qual pode ser usado para efetuar
pagamentos pelo celular, por exemplo. Essas transações em dinheiro eletrônico são protegidas
por criptografia, para garantir a segurança do usuário e proteger suas informações (NOLTE;
GARRIDO, 2022, p. 1).
Nesse ponto é importante traçar uma diferenciação entre dinheiro eletrônico e
criptoativo. O criptoativo, como será visto adiante, é descentralizado, ou seja, está
desvinculado de um banco central ou autoridade que o legitime, enquanto o dinheiro
eletrônico, como visto, é moeda fiduciária.
O conceito de criptoativo é bastante amplo, e para elucida-lo é possível partir da
seguinte definição, dada pela Comissão de Valores Mobiliários:

Os criptoativos são ativos virtuais, protegidos por criptografia, presentes


exclusivamente em registros digitais, cujas operações são executadas e armazenadas
em uma rede de computadores. [...] O funcionamento dos criptoativos se baseia em
uma tecnologia de registro descentralizado, um tipo de contabilidade ou livro-razão
distribuído em uma rede ponto a ponto de computadores espalhados ao redor do
mundo. Toda transação realizada é divulgada para a rede, e somente será aceita após
um complexo sistema de validação e de uma espécie de consenso da maioria dos
participantes da rede (COMISSÃO DE VALORES MOBILIÁRIOS, 2018, p. 2).

Decorre-se disso que o criptoativo é algo só poderia existir em um ambiente virtual,


mas como a própria definição do PL traz, ele possui um preço que “pode ser expresso em
moeda soberana local ou estrangeira” (BRASIL, 2019, p. 2). Ou seja, existe um nexo entre o
criptoativo, o valor que lhe é intrínseco e a sua conversão em moeda fiduciária.
A natureza jurídica dos criptoativos ainda não está delimitada, e em âmbito
internacional, diferentes países já os classificaram de diferentes modos, tais como:
“mercadoria, ativo financeiro, bem, serviço, dinheiro, instrumento financeiro, propriedade
privada, substituto monetário, unidade de conta” (FOBE, 2016, p.71). Portanto, não há
consenso global sobre como classificar estes ativos, e a forma com que cada país o faz gera
diferentes efeitos no mundo jurídico. Tentar encontrar esse classificação foge do escopo do
presente trabalho, pois procura-se aqui contemplar os criptoativos da maneira mais próxima
do texto do legislador que propôs o projeto, o que será tratado adiante.

1.1 O EXEMPLO DO BITCOIN E DO NFT E A SEGURANÇA ALMEJADA PELA


TECNOLOGIA BLOCKCHAIN

Com fim exemplificativo, o criptoativo pode ser considerado um gênero do qual as


criptomoedas (como o Bitcoin2) e os NFTs (Non-Fungible Tokens3), seus exemplares mais
populares atualmente, são espécies.
O bitcoin ganha forma em um documento de 2008, de autoria de Satoshi Nakamoto,
pseudônimo de seus criadores, que definiu o funcionamento de uma versão totalmente peer-
to-peer (P2P) de dinheiro eletrônico, para a realização de pagamentos online sem intermédio
de uma instituição financeira (NAKAMOTO, 2008, p.2). O primeiro problema tratado pelos
criadores do bitcoin foi a questão do gasto duplo, que significa gastar o dinheiro duas vezes.
Derivada da mesma tecnologia que originou o bitcoin, mas com propósito distinto,
surgem os NFTs, tokens não fungíveis que têm como objetivo registrar a propriedade de um
ativo único. A sua função pode ser comparada a uma versão digital e criptografada de um
“registro em cartorário de uma casa, no qual constará o registro de propriedade e ninguém
mais poderá reivindicá-la, a não ser o proprietário que lá consta” (FAGUNDES, 2021, on-
line).
O NFT pode registrar a autoria de muitos bens, como arte visual, música e jogos. Seu
funcionamento é diferente do bitcoin, este por sua vez fungível e podendo ser substituído por

2
Moeda livre e descentralizada, que funciona como dinheiro eletrônico para realizar operações que não possuam
um intermediário (como um banco).
3
“Tokens Não-Fungíveis”, ou seja, que representam algo único. Diferentemente do bitcoin, que é uma
criptomoeda que pode ser substituida por outra de mesma espécie, qualidade e quantidade.
outros da mesma espécie, qualidade e quantidade, enquanto o NFT pretende designar algo
único.
Se o criptoativo funciona como um arquivo digital, a princípio nada impediria que
ele fosse copiado, o que seria como poder imprimir dinheiro, ou seja, ter dinheiro ilimitado,
contrariando o funcionamento de qualquer moeda, ou como replicar uma obra de arte e
considerar a réplica como uma obra original igual à primeira no caso dos tokens.
A grande inovação e característica do bitcoin é impossibilitar o gasto duplo sem
precisar de uma autoridade centralizadora como uma casa da moeda, enquanto a grande
característica do NFT é não poder ser substituído ou replicado.
Cabe dizer que o referido algoritmo criptográfico diz respeito à tecnologia de
blockchain, que na prática funciona como um livro-razão online compartilhado.

Block chain é uma tecnologia baseada em um sequenciamento, ou cadeia, de


informações armazenadas em blocos. […]. O fato é que tais informações são
registradas e concatenadas entre si com uso de recursos criptográficos, de forma a
garantir sua perenidade, confiabilidade e imutabilidade. Comumente o blockchain
está associado à tecnologia DLT (distributed ledger technology), permitindo que tais
blocos sejam compartilhados de forma distribuída para outros pontos de uma rede
(DINIZ; CERNEV, 2019, p. 168).

As transações são documentadas em um livro de registros, chamado de ledger. As


transações serão validadas em blocos de tempo em tempo, e quando validados, esses blocos
são armazenados sequencialmente com “hashes”, espécie de assinatura digital de cada bloco
(DINIZ; CERNEV, 2019, p. 168). Nesse ponto, não é mais possível alterar quaisquer dados, e
esses dados estarão disponíveis para todos na rede. Desta forma, torna-se impossível falsificar
ou forjar um registro dentro do sistema, pois quem garante a sua confiabilidade são todos os
computadores conectados à rede.

Por isso se propaga a ideia de que o Bitcoin é seguro. É impossível uma invasão
(hack) do banco de dados, uma vez que esse banco de dados é todo distribuído entre
os usuários. Não há um computador ou sistema localizado em determinado território
que contenha as informações e mantenha o sistema em funcionamento, ao conectar-
se todo usuário passa a, involuntariamente, armazenar informação das transações
ocorridas no software. Para alteração fraudulenta dos dados, seria necessário invadir
todos os computadores ao mesmo tempo, o que é impossível. (TEIXEIRA; DA
SILVA, 2017, p.109)

Neste ponto, é possível contrapor a ideia de confiabilidade e segurança trazida pelo


blockchain com a estabilidade social proposta pela função social do direito:
A função social que o direito assume logo remete-se à imposição de um
disciplinamento de condutas intersubjetivas, minimizar-se-á os conflitos de
interesses, organizando a vida em grupo, compactando seus membros, dando solidez
à sociedade [...] também na composição de conflitos de interesses porventura
ocorridos no seio social, ou seja, aqueles que passaram a existir (RUIZ; FARACO
NETO, p.4).

Se busca uma estabilidade social que, além da participação dos membros da


sociedade com sua boa-fé e confiança mútua, também se dá pela prestação jurisdicional de um
Estado que interpõe-se como um terceiro solucionador dos conflitos, aquele que irá dizer o
direito e o dever que corresponde àqueles que estiverem envolvidos em uma lide. O Estado
também é detentor do monopólio do uso da força para tutelar os bens-jurídicos que garante.
No sistema em que os criptoativos se inserem, o que se apresenta é um sistema
totalmente neutro e até então aparentemente infalível, no qual são os próprios usuários que lhe
conferem integralidade, pois não existe uma autoridade central que regule esse sistema e que
lhe impunha regras. A princípio, o blockchain e o peer-to-peer se autoregulam a partir de suas
próprias diretrizes, e não será o Estado o grande provedor de equilíbrio para este organismo
virtual.
No cerne do conceito de criptoativo, especialmente as criptomoedas e seus primeiros
exemplares, existe a ideia de que

a competição levaria a uma moeda mais sólida – leia-se mais favorável à política de
austeridade – e colocaria um freio nos governos e seu controle inflacionário da
moeda. Isso iria significar a ausência de estímulo fiscal ou monetário no contexto de
crise econômica, ou seja, deixar as coisas seguirem seu próprio expurgo
(HENWOOD, 2017, p.5, tradução nossa4).

Essas tecnologias demandam uma certa estrutura que funciona sob coeteris paribus,
ou seja, desde que todo o resto se mantenha constate, pois além de demandar hardware, ou
seja, peças físicas e energia, demanda também moralidade e objetivos em comum entre seus
usuários. Este é o quadro onde o Estado não tem conseguido impor jurisdição, notadamente
por não dispor dos meios que a regulação requer e por não ter passado pelo processo de
criação legislativa necessário.

4
Texto original: “competition would lead to the use of the soundest — meaning most austerity-friendly —
currency and put a check on governments’ attempts to inflate their way out of trouble. That would mean no fiscal
or monetary stimulus in an economic crisis — just let things run their purgative course”
No entanto, como será retratato, a saída do legislador no PL em questão é focar na
regulação de algo muito mais próximo do convencional para o ordenamento jurídico: a
exchange de criptoativos, que será tratada em breve.

2 AS TENTATIVAS DE REGULAÇÃO PRECEDENTES E O PL 3825/2019

Passando ao histórico brasileiro de tentativas e formulação de diretrizes para a


regulamentação dos criptoativos, é notável a atuação de quatro agentes: a atuação da
Comissão de Valores Mobiliários (CVM), do Banco Central, da Receita Federal Brasileira e
do poder legislativo com seus Projetos de Lei.
A CVM primeiramente passou a considerar determinados ativos digitais oriundos da
tecnologia blockchain como valores mobiliários, nos moldes do art. 2º da Lei nº 6.385/76,
inaugurando posteriormente a Instrução nº 626, que instaurou um ambiente experimental para
que entidades pudessem testar negócios com ativos digitais com criptomoedas e tokens, a fim
de que a partir do experimento fosse possível pensar em regras e normas jurídicas que se
adequassem à situação (SECKELMANN; HEITOR, 2022, p. 2).
Quanto ao Banco Central, suas primeiras manifestações foram no sentido de
diferenciar as criptomoedas da moeda eletrônica fiduciária, situação já exposta anteriormente,
e alertar sobre os riscos envolvidos no uso de uma moeda descentralizada. Passou a
classificar, em 2019, os criptoativos como “ativos não-financeiros”, incluindo suas
movimentações na balança comercial.
A grande contribuição da Receita Federal foi a Instrução Normativa nº 1888/2019,
que passou a obrigar os usuários a prestarem informações

relativamente a todas as operações de compra e venda de criptomoedas realizadas


por exchanges domiciliadas em território brasileiro e/ou operações com criptoativos
que ultrapassem, em um mês, R$ 30 mil, realizadas diretamente por particulares
(P2P) ou em exchange internacional (SECKELMANN; HEITOR, 2022, p. 4)

2.1 O PL 3825/2019 E A RELEVÂNCIA JURÍDICA DO PROJETO DE LEI


Uma lei, por sua vez é “o direito conscientemente elaborado por uma autoridade,
mediante um ato de vontade, o qual se denomina legislação, ou seja o ato de elaborar leis, e
consiste numa declaração jurídica revestida de forma escrita e incorporada num documento”
(OGUISSO; SCHMIDT, 1999, p. 176). Um Projeto de Lei se faz imprescindível enquanto
algo que precede e pode vir a se tornar efetivamente uma das mais importantes formas de
expressão do direito.
Outro ponto a se levar em consideração é que “a criação legislativa será sempre um
trabalho de complementação, com a finalidade de revigorar a estrutura jurídica, aperfeiçoá-la,
suplementá-la, atualizá-la ou conformá-la à evolução social” (OGUISSO; SCHMIDT, 1999,
p. 179). Ao analisar um Projeto de Lei, portanto, deve-se pensar em seu objetivo enquanto
ferramenta que atualizará o sistema jurídico, partindo do contexto de sua criação e sua
possível repercussão para o direito em caso de sanção por parte do poder executivo.
O projeto de lei n° 3825, de 2019, já em seu artigo 1º, declara que surge com o
objetivo de “disciplinar os serviços referentes a operações realizadas com criptoativos em
plataformas eletrônicas de negociação” (BRASIL, 2019, p.2).
Em seguida, o PL apresenta os conceitos de plataforma eletrônica, criptoativo e
exchange de criptoativos, definidos em seu art. 2º, necessários para a compreensão do objeto
que pretende disciplinar:

Art. 2º Para fins desta Lei, considera-se:


I – plataforma eletrônica: sistema que conecta pessoas físicas ou jurídicas por meio
de sítio na rede mundial de computadores ou de aplicativo;
II – criptoativo: a representação digital de valor denominada em sua própria unidade
de conta, cujo preço pode ser expresso em moeda soberana local ou estrangeira,
transacionado eletronicamente com a utilização de criptografia e/ou de tecnologia de
registro distribuído, que pode ser utilizado como forma de investimento, instrumento
de transferência de valores ou acesso a bens ou serviços, e que não constitui moeda
de curso legal; e
III – Exchange de criptoativos: a pessoa jurídica que oferece serviços referentes a
operações realizadas com criptoativos em plataforma eletrônica, inclusive
intermediação, negociação ou custódia.
Parágrafo único. Inclui-se no conceito de intermediação de operações realizadas
com criptoativos a disponibilização de ambiente para a realização das operações de
compra e venda de criptoativo entre os próprios usuários de seus serviços (BRASIL,
2019, p.2).

Partindo das definições dadas pelo PL, e para melhor entendimento do tema, fez-se
necessário um aprofundamento nos conceitos de criptoativo e plataforma eletrônica, tratados
anteriormente. No entanto, da leitura do projeto percebe-se que a intenção do legislador é
submeter as exchanges de criptoativos ao controle do BACEN, o que será reiterado nos
artigos e na justificação do PL. É momento de elucidar no que consiste e como funciona uma
exchange de criptoativos.

3 A REGULAÇÃO DAS EXCHANGES DE CRIPTOATIVOS

É a partir do art. 3º que o grande objetivo do PL está preconizado, quando o


legislador se expressa da seguinte maneira: “O funcionamento da Exchange de criptoativos
depende de prévia autorização do Banco Central do Brasil, conforme disposto nesta Lei e nas
demais disposições regulamentares daquela autarquia federal.” (BRASIL, 2019, p.2)
Exchange, em tradução livre, significa intercâmbio, troca, permuta.

As exchanges funcionam como intermediadoras entre vendedores e compradores de


ativos digitais. Elas também guardam as criptomoedas (custódia) daqueles
investidores que não querem manter suas criptos em carteiras próprias. Na prática,
elas são bem parecidas com corretoras de valores. Para usá-las, basta o usuário fazer
o cadastro, confirmar a identidade, enviar recurso, comprar ativos e pagar as taxas
(INFOMONEY, 2020).

Com o surgimento e diversificação das criptomoedas e de outros ativos como o NFT,


foram surgindo empresas que facilitavam a sua negociação. A exchange não necessariamente
possui bitcoins em nome próprio (tal como um capital integralizado), mas conecta quem
possui o ativo a quem deseja comprá-lo, cobrando taxas por isso. Seu objetivo é possibilitar a
compra e venda, e também a troca e a custódia.
Também é possível adquirir esses ativos por meio de fundos de investimento ou
diretamente de forma P2P, mas a exchange acaba sendo a melhor opção para o usuário
comum, pois é um serviço mais próximo do tradicional.
Da jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná é possível visualizar
que nas lides que envolvem criptoativos como objeto, geralmente as exchanges figuram nos
polos ativo ou passivo.
AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE RESCISÃO CONTRATUAL C/C
PEDIDO DE TUTELA CAUTELAR, DESCONSIDERAÇÃO DA
PERSONALIDADE JURÍDICA E CONFIGURAÇÃO DE GRUPO ECONÔMICO.
CRIPTOMOEDA. BITCOIN. IMPEDIMENTO DE ACESSO AOS VALORES
INVESTIDOS. POSSIBILIDADE DE FRAUDE. EMPRESAS EM SITUAÇÃO DE
RECUPERAÇÃO JUDICIAL/FALÊNCIA. HABILITAÇÃO DOS CRÉDITOS
DOS AGRAVANTES. MEDIDA DE ARRESTO QUE, POR ORA, MOSTRA-SE
INDEVIDA. REVOGAÇÃO DA LIMINAR QUE DETERMINOU O BLOQUEIO
DOS VALORES. RECURSO DESPROVIDO (TJPR, 2021a).

Na ação que originou este agravo, de rescisão contratual cumulada com restituição de
valores, relata-se que investidores em bitcoins foram impedidos de sacar dinheiro e fazer
transferência nas contas que mantinham na exchange, a asseveraram possível fraude no
serviço prestado, pois o site da empresa estava sempre offline.

AGRAVO DE INSTRUMENTO – RESIDUAL (ALHEIOS) - AÇÃO DE


RESCISÃO CONTRATUAL E RESTITUIÇÃO DE VALORES (FRAUDE NA
AQUISIÇÃO DA CRIPTOMOEDA BITCOIN - GOLPE DA PIRÂMIDE) -
EMENDA À INICIAL PARA INCLUIR DUAS EMPRESAS, PERTENCENTES
AO MESMO GRUPO ECONÔMICO, NO PÓLO PASSIVO DA DEMANDA –
POSSIBILIDADE – PEDIDO FORMULADO ANTES DA CITAÇÃO DOS
DEMAIS REQUERIDOS (QUE AINDA SEQUER SE CONCRETIZOU) –
EXEGESE DOS ARTIGOS 329, INCISO I, 338 E 339, DO CÓDIGO DE
PROCESSO CIVIL – DECISÃO REFORMADA.AGRAVO DE INSTRUMENTO
PROVIDO (TJPR, 2021b).

Neste outro caso, originalmente a autora pleiteava a inclusão de duas empresas, que
podem ser consideradas exchanges ou corretoras de criptoativos, no polo passivo da demanda,
após ter depositado uma quantia para a aquisição de um plano de investimento, que seria
investida pela exchange em bitcoins com a posterior devolução do investimento, o que não
ocorreu.
Apesar de não serem ilegais, as exchanges de criptoativos não têm supervisão do
Banco Central, e essa falta de regulação acabou por facilitar crimes como fraudes, lavagem de
dinheiro e evasão de divisas. É nesse sentido que o PL pretende legislar, vide o seguinte
trecho da justificação:

Organizações ilegais ou que tiveram seus recursos bloqueados nos sistemas


financeiros, por exemplo, sem acesso a contas bancárias, podem se beneficiar das
facilidades de movimentação financeira com criptomoedas ao não passarem pelos
sistemas financeiros convencionais, em contraposição às autoridades domésticas
(BRASIL, 2019, p.9).
Segundo o art. 4º do PL, o Banco Central estabelecerá diretrizes para o
funcionamento das exchanges, já o art. 5º define os requisitos para sua legalidade e
autorização:

Art. 5º O processo de autorização para funcionamento da Exchange de criptoativos


deve ser instruído com a apresentação de requerimento, mediante protocolo, ao
Banco Central do Brasil, acompanhado de, no mínimo:
I – justificativa fundamentada;
II – documentação que identifique as pessoas que compõem o grupo econômico de
que seja integrante a empresa e que possam vir a exercer influência direta ou indireta
nos seus negócios;
III – documentação que identifique o grupo de controle da empresa e os detentores
de participação qualificada, com as respectivas participações societárias;
IV – comprovação da origem e da respectiva movimentação financeira dos recursos
utilizados no empreendimento pelos controladores e pelos detentores de participação
qualificada; (BRASIL, 2019, p.3)

O art. 14 enseja uma importante discussão sobre o anonimato e a privacidade dos


usuários:

Art. 14. No exercício das atividades de fiscalização, o Banco Central do Brasil


poderá exigir da Exchange de criptoativos a exibição de documentos e livros de
escrituração e o acesso, inclusive em tempo real, aos dados armazenados em
sistemas eletrônicos, considerando-se a negativa de atendimento como embaraço à
fiscalização, sujeitando-a às sanções aplicáveis na forma da Lei nº 13.506, de 13 de
novembro de 2017.
Parágrafo único. Informações sensíveis, como dados pessoais dos clientes, devem
ser disponibilizados pela Exchange de criptoativos ao regulador em caso de
requisição, considerando-se a negativa de atendimento como embaraço à
fiscalização, sujeitando-a às sanções referidas no caput (BRASIL, 2019, p.7).

Como visto anteriormente, o anonimato é uma das premissas da criptografia e do


sistema blockchain. Isso acaba por ser quebrado a partir do momento em que se torna possível
identificar as partes envolvidas na transação, quando são obrigatoriamente revelados os dados
pessoais dos clientes em caso de exigência do Banco Central.
No entanto, nem todas as exchanges exigem documentação pessoal do usuário na
hora de abrir uma conta no serviço. Consultando o site de algumas dessas empresas, verifica-
se que a Mercado Bitcoin, por exemplo, exige para a abertura de conta de pessoa física um
CPF ou CNPJ sem pendências ante a Receita Federal, além de email válido (MERCADO
BITCOIN, 2022, on-line). Essa é inclusive uma diretriz que segue o Manual de
preenchimento da obrigatoriedade de prestação de informações relativas às operações
realizadas com criptoativos à Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil, criado a partir
da Instrução Normativa nº 1888 de 2019 (SECRETARIA DA RECEITA FEDERAL, 2019, p.
8).
A realidade do anonimato que o blockchain cria é desafiante ao direito, que muitas
vezes parte da subjetividade da personalidade para definir o que são e como se compõem as
relações jurídicas e as obrigações, ficando muito difícil definir uma relação jurídica em
específico sem conhecer as partes envolvidas nela.

4 A PRESENÇA DA ATIVIDADE JURISDICIONAL NA QUESTÃO DOS


CRIPTOATIVOS

Na justificação do PL, o legislador consta que no Brasil, em 2018, “o volume


negociado de moedas virtuais correspondeu a R$ 6,8 bilhões” (BRASIL, 2019, p.9). Ou seja,
uma das suas preocupações é a questão econômica levantada pelo fluxo não regulamentado
de criptoativos.

O crescimento dos investimentos em criptoativos e o correlato movimento das


chamadas Initial Coin Offerings (ou, como mais conhecidas, ICOs), operação de
emissão de criptoativos e outros ativos virtuais, sobretudo para fins de transferência
de recursos, captação de poupança pública e investimentos – fez com que as
autoridades monetárias e do mercado de capitais ao longo do mundo despertassem o
seu interesse e passassem a observar com muita atenção tais movimentos. De
expectadores um tanto curiosos, passaram a considerar seriamente os meios de
regular tais fenômenos nascentes (TRINDADE; VIEIRA, 2020, p. 869).

No ordenamento jurídico brasileiro, a Constituição Federal estabelece que a ordem


economica observará o princípio da soberania nacional. Ao Estado, importa a regulação da
economia principalmente por questões de controle da inflação, emissão de moeda, tributos e
controle de divisas (moedas estrangeiras). O que se pretende com projetos legislativos como o
analisado aqui é “a regulamentação mínima, com possibilidade de identificação e rastreio de
operações mediante necessidade e justificativa plausível” (TEIXEIRA; DA SILVA, 2017,
p.113), e isso se torna plenamente adequado, pois:

aqueles que objetivam o uso da moeda virtual com finalidades ilícitas, ilegais ou
imorais, devem ser responsabilizados, razão pela qual é de suma importância a
fiscalização dos Estados, utilizando de seu poder regulatório, para impedir abusos
contra o sistema financeiro (TEIXEIRA; DA SILVA, 2017, p.113).

A Constituição preconiza que compete exclusivamente à União a emissão de moeda


e a fiscalização de operações econômicas:

Art. 21. Compete à União:


VII - emitir moeda;
VIII - administrar as reservas cambiais do País e fiscalizar as operações de natureza
financeira, especialmente as de crédito, câmbio e capitalização, bem como as de
seguros e de previdência privada; (BRASIL, 1988)

O inciso VII gera discussões a respeito da constitucionalidade de uma moeda que é


emitida através de um sistema virtual (criptografia e blockchain), mas que passa a ser
utilizada como meio de adquirir bens e serviços do “mundo real”, além de adquirir valor em
moeda corrente. Porém, é evidente que não só de criptomoedas compõe-se o quadro de
criptoativos existentes.
Com isso, pode ser feita uma ponderação de que em um ambiente virtual qualquer
criptoativo “manifesta-se como uma informação dotada de valor e aceita como instrumento de
troca entre os usuários do ciberespaço” (SOUZA, 2017, p.67). Inclusive é possível
transacionar um criptoativo por outro, como bitcoins em troca de NFTs, por exemplo.
Ao tratar os criptoativos como informação, passa-se a égide do inciso IX do artigo 5º
da Carta Magna, enquanto direito fundamental: “é livre a expressão da atividade intelectual,
artística, científica ou de comunicação, independente de censura ou licença”, o que é reiterado
pelo artigo 220: “A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob
qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto
nesta Constituição” (BRASIL, 1988). Se o criptoativo é apenas um algoritmo representado na
forma de informação, sendo um conhecimento transacionado entre os usuários daquele meio
virtual, sua circulação seria constitucional.
Entretanto, como visto, a preocupação do legislador no caso do PL é mais de ordem
de um grande montante econômico do que da natureza que o criptoativo assume, pois é fato
que os ativos como as criptomoedas representem um valor em moeda corrente nacional, essa
sim emitida com competência da União.
A Constituição também confere competências tributárias aos entes federativos em
seu artigo 145, que define as espécies de tributos.
Art. 145. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão instituir
os seguintes tributos:
I - impostos;
II - taxas, em razão do exercício do poder de polícia ou pela utilização, efetiva ou
potencial, de serviços públicos específicos e divisíveis, prestados ao contribuinte ou
postos a sua disposição;
III - contribuição de melhoria, decorrente de obras públicas. (BRASIL, 1988)

Porém, surge a seguinte questão: como tributar algo que existe e se transaciona de
forma descentralizada e criptografada em um território virtual? O bitcoin não é um meio de
pagamento justamente porque possui valor intrínseco, diferente de um cartão de crédito ou
uma conta bancária, e a sua categorização vai depender da finalidade de seu uso (TOMÉ,
2019, p. 328).
A resposta reside na possibilidade de cobrar sobre as transações e negociações
realizadas em um contexto de exchanges de criptoativos, o que será visto em detalhes em
breve.
Até então, o sistema blockchain em si jamais foi fraudado, dadas as impossibilidades
já tratadas anteriormente. A premissa do sistema é ser íntegro e seguro de forma garantida
mutuamente pelos próprios usuários. Logo, a garantia de uma existência estável não é
proposta por nenhum Estado e nenhuma jurisdição, mas pela própria cadeia de usuários. No
entanto, essa realidade não se estende às exchanges:

Há que se diferenciar, outrossim, a questão das agências cambiais, como a sul-


coreana Bithumb, nas quais já se tem notícia de invasão e roubo de moedas
eletrônicas. Isso porque não se trata de violação ao sistema Bitcoin em si, mas sim
do sistema interno da empresa de câmbio, o qual segue diretrizes de servidor
comum, sem o dispositivo existente no sistema própria da moeda eletrônica, sendo
pertinente nesses casos, evidentemente, a responsabilização da empresa de câmbio
(TEIXEIRA; DA SILVA, 2017, p.110).

Conclui-se que o sistema dessas empresas é comum, e não criptografado em


blockchain, ou seja, pode conter falhas e viabilizar fraudes e crimes.
A japonesa Mt. Gox representava 70% das transações mundiais de bitcoins em 2014,
quando sofreu uma falha de segurança e invasões. Na ocasião, “cerca de 745 mil Bitcoins
saíram de circulação em virtude da tal falha, um prejuízo gigantesco e, aparentemente,
irrecuperável.” (ALECRIM, 2014) A empresa fechou e até hoje seus clientes não foram
ressarcidos do prejuízo.
É contra essas situações que projetos como o PL em questão se insurgem,
submetendo essas empresas a um mínimo de controle pelas autoridades financeiras e
identificando quem realizou as transações, com a finalidade de conferir segurança a todos os
envolvidos na transação.

5 O INTERESSE NA REGULAÇÃO DOS CRIPTOATIVOS

Faz-se necessária uma crítica ao conteúdo do PL, pois sua redação permite uma
interpretação no sentido de que a regulação econômica, no tocante aos criptoativos, só se dria
na medida em que essas moedas e tokens podem ser transacionadas e possuir valor
equivalente em moeda "comum", seja dólar, real, ou qualquer outra moeda estrangeira padrão,
emitida pelos seus respectivos Estados.
Para grande parcela das pessoas que negociam e contratam em exchanges, um
criptoativo tem apenas finalidade especulativa, tal como uma ação na bolsa de valores ou um
título do tesouro público que se espera que se valorize com o passar do tempo. Existem muitas
promessas de valorização desses ativos, logo, para muitos clientes a grande questão é comprar
criptoativos e esperar sua valorização.
Uma vez valorizado, esse mesmo usuário vende o ativo por moeda corrente
fiduciária. Por isso a importância do art. 9 do PL em seu inciso II, onde buscou obrigar às
exchanges “a manter em ativos de liquidez imediata o equivalente aos valores em Reais
aportados pelos clientes em contas de movimentação sob sua responsabilidade, ainda não
investidos em criptoativos, ou resgatados e ainda não retirados pelos clientes” (BRASIL,
2019, p.5), justamente para evitar casos como a da Mt. Gox.

Mesmo que o bitcoin tenha falhado como dinheiro, vive enquanto ativo
especulativo. No entanto, ao contrário dos ativos especulativos tradicionais, seu
valor é completamente imaterial. As ações são reinvindicações nos lucros das
empresas e os títulos públicos são reinvindicações nos pagamentos de juros.
Diferentemente do bitcoin, cujo único valor é o que alguém pagará por ele hoje ou
amanhã (HENWOOD, 2017, p.4, tradução nossa5).

5
Texto original: “So even though Bitcoin fails as money, it’s acquired a vivid life as a speculative asset. But
unlike more conventional speculative assets, its value is completely immaterial. Stocks are ultimately claims on
corporate profits, and bonds are a claim on a future stream of interest payments. You can say no such thing for
Bitcoin. Its only value is what someone else will pay for it later today or maybe tomorrow.”
No entanto, a ideia original da existência de ativos criptografados era criar um
universo de possibilidades de transação e de novos usos, através da inovação, blockchain,
criptografia com algoritmos matemáticos complexos. Com bitcoin, por exemplo, é possível
comprar até imóveis, além de realizar qualquer tipo de pagamento e doação, desde que a
empresa ou entidade em questão aceite a criptomoeda como meio de pagamento.

5.1 UM LONGO CAMINHO: O QUE FALTA NORMATIZAR?

O legislador perdeu uma grande oportunidade ao deixar de tratar sobre essa questão
de como o Estado poderia regular as transações feitas em bitcoin para se obter bens e serviços
no mundo real. Há como exemplo a questão tributária, pois se sobre toda compra e venda
incide imposto, logo se pergunta: como o Estado vai tributar essas operações?
Essa questão está além do escopo do presente trabalho, mas cabe dizer que quando se
trata das exchanges, logo vêm à tona questões financeiras antigas, de direito comercial e
empresarial, como se a questão só fosse considerada juridicamente em função do sistema
monetário convencional e do sistema empresarial, como uma espécie de acessório e nunca
independentemente, em sua total manifestação.
O que se quer dizer é que poderia ter sido proposta a criação de um dispositivo legal
mais amplo num ordenamento ainda sem regulamentações nessa área. Para o PL, não importa
o uso que os indivíduos darão às criptomoedas em um ambiente virtual depois de adquiri-las
legalmente, ou seja, em uma empresa autorizada pelo Estado e pelo Banco Central.
No dia 26 de abril de 2022, o PL 3825 de 2019 restou prejudicado, ou seja, não foi
aprovado. O motivo foi a aprovação do subsistutivo Projeto de Lei nº 4.401, de 2021, que
subsumiu o PL que foi tratado neste. O PL 4401 traz um recorte mais específico para o que
chama de “prestadoras de serviços de ativos virtuais”, mas não enseja uma discussão mais
ampla sobre a nova realidade que os criptoativos já trouxeram e ainda trarão ao direito.
Sobre o PL substitutivo, este traz o seguinte:

O substitutivo recomenda a aprovação do PL 3.825/2019, do senador Flávio Arns.


Irajá considera prejudicados os PLs 4.207/2020 e 3.949/2019, sugeridos por Soraya
Thronicke e Styvenson Valentim. O substitutivo traz regras e diretrizes tanto para a
prestação de serviços relacionados a ativos virtuais quanto para o funcionamento das
corretoras.
Irajá entende que o criptoativo não é um título mobiliário. Portanto, não fica
submetido à fiscalização da CVM, que supervisiona o mercado de ações. A exceção
é para o caso de oferta pública de criptoativos para captação de recursos no mercado
financeiro.
O relator considera como prestadora de serviços de ativos virtuais a empresa que
executa, em nome de terceiros, pelo menos um dos serviços: resgate de
criptomoedas (troca por moeda soberana); troca entre uma ou mais criptomoedas;
transferência de ativos virtuais; custódia ou administração desses ativos ou de
instrumentos de controle de ativos virtuais; ou participação em serviços financeiros
relacionados à oferta por um emissor ou à venda de ativos virtuais. (AGENCIA
SENADO, 2022)

Isto posto, é possível considerar o PL 3825 de 2019, tratado neste artigo, como um
marco no processo de criação legislativa, pois o fato de ter sido prejudicado em favor de outro
PL não significa que seu conteúdo foi anulado, mas sim que as discussões resultaram e
continuarão ensejando novos projetos, por ora nenhum em definitivo, até que se chegue em
uma solução eficaz e socialmente benéfica para a problemática apresentada.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nos últimos anos, as novas tecnologias deram forma à algoritmos complexos,


funcionando em redes anônimas e criptografadas, que passaram a representar um desafio cada
vez maior para o direito. Dentre as novidades estão os criptoativos, ativos virtuais, gerados a
partir de criptografia e armazenadas em uma rede virtual.
Como visto, a classificação dos criptoativos depende do entendimento de cada país,
pois a rede de computadores é algo transnacional, que ultrapassa barreiras entre soberanias
nacionais. Essa é a grande característica do criptoativo, sua descentralização. Também
concluiu-se que o sistema que origina os criptoativos, o blockchain, até então mostrou-se
inviolável, pois é um livro-razão compartilhado entre todos os usuários no qual não se pode
forjar registros.
O que demonstrou ser passível de fraudes e crimes como evasão de divisa e lavagem
de dinheiro são as exchanges de criptoativos, basicamente uma empresa que intermedia a
relação vendedor-comprador, e que também pode manter criptoativos sob custódia.
O Projeto de Lei N° 3825, de 2019 surgiu para sugerir a regulação das transações e
negociações de criptoativos em plataformas eletrônicas de negociação, trazendo um conceito
genérico para “plataforma eletrônica”. A conclusão foi tal que o legislador pretende de fato
regular as exchanges de criptoativos, pois estas são a via mais comum e popular para a
negociação destes ativos e ainda não têm normatização.
A solução que o PL apresenta é submeter essas empresas intermediadoras à
regulamentação do Banco Central, que deverá estabelecer diretrizes para seu funcionamento e
requisitos para sua legalidade.
Em uma abordagem constitucional, conclui-se que os criptoativos podem ser tratados
também como informação que não pode ser impedida de circular, mas que também estão
submetidos ao crivo da soberania estatal para o controle e manutenção da economia.
Por fim, tornou-se claro que o interesse do direito nesta categoria de ativos se dá
majoritariamente na medida em que podem ser convertidos em moeda corrente ou terem sua
dinâmica utilizada para cometer atos ilícitos, crimes, fraudes, em situações que já estão
definidas e previstas pelo direito há muitas décadas.

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disposições. In: Diário do Senado Federal, Brasília, DF, 04 de maio. 2021. Disponível em:
<https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/151264>. Acesso em: 28
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