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5 de dezembro de 2021
O mundo globalizado trouxe numerosos avanços à sociedade nas mais diversas áreas e
ciências e o Direito não poderia ficar aquém desse progresso, pois, como ciência social,
está intrinsecamente ligado às relações humanas e seus conflitos decorrentes. No mesmo
grau de avanços, essa universalização trouxe problemas a serem superados.
Esta realidade tem sido desafiadora para a ciência jurídica: o inesgotável desenvolvimento
tecnológico e a célere evolução de ferramentas que criam negócios e meios de construir
riquezas desafiam o legislador e o Poder Judiciário a criarem leis, ou interpretar os
avanços à luz das normas existentes. O Direito, conservador que é, sempre está atrasado.
Apesar desse cenário, destaca-se uma recente decisão do Tribunal de Justiça do Rio
Grande do Sul. O Provimento nº 38/2021 da Corregedoria-Geral da Justiça se atreveu a
regulamentar a lavratura de escrituras públicas de permuta de bens imóveis por tokens, e
o seu respectivo registro imobiliário.
Tokens
A criação de direitos ou créditos no meio digital, através da tecnologia blockchain, tem
sido conhecida como tokenização. Token é a representação de ativo digital. Oriunda da
língua inglesa, ‘token’, numa tradução livre, significaria “cupom digital”. Em outras
palavras, um voucher, um título, uma cédula. Para a International Organization of
Securities Commissions (IOSCO), a tokenização é “o processo de representar digitalmente
um ativo ou propriedade de um ativo”.
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(residenciais, comerciais, industriais, etc). Outras vantagens são a liquidez imediata (em
segundos) e a eficiência de custos decorrente da automação e dispensa de intermediários.
Insta salientar que o imóvel foi adquirido pela empresa Netspaces, naquele mês, pela
quantia de R$ 110 mil, tendo sido considerado este valor para fins fiscais, conforme se
depreende da matrícula. Uma imagem do registro deste negócio integrou o Processo
SEI/TJRS — 3245601, que deu origem ao provimento:
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regime da propriedade digital”. Nesse sentido, é cristalino que o imóvel tokenizado passa
a integrar o acervo patrimonial da pessoa jurídica em tela.
● Exige que os tokens ou criptoativos não contenham endereço que indiquem que o seu
conteúdo se refere aos direitos de propriedade sobre o imóvel permutado;
● Exige que todos os atos com criptoativos sejam comunicados ao Conselho de Controle
de Atividades Financeiras – COAF, como prevê o Prov. nº 88/2019 do Conselho Nacional
de Justiça.
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Todos os atos passíveis de negócios ou mais especialmente, de registro, como previsto
pela Lei 6.015/73, art. 167, inciso I, podem pretender seu abrigo nas escrituras públicas e
registros. Impensável que a cada novo ato seria necessária nova consulta à CGJ, novo
estudo e novo provimento. O ato emitido chancela ao Direito notarial e registral a
possibilidade de recepcionar os negócios lícitos que envolvam criptoativos.
O segundo dispositivo, que veda que os criptoativos representem direitos sobre o imóvel
permutado, impede que o token criado mantenha relação com o imóvel.
Não havendo óbice legal e tratando-se de negócio idôneo, à luz da autonomia privada, tal
ato deve ser materializado pelos notários e registradores, dando-lhe forma legal.
O parecerista da CGJ salientou que a propriedade digital não tem caráter de direito real.
Neste sentido, a relação estabelecida pelas partes através da tokenização se restringiria
apenas ao campo obrigacional. Em nosso direito, a propriedade nasce com o registro no
ofício imobiliário (CC, art. 1.245).
A outra propriedade, a tokenizada, por sua vez, nasce com o registro em blockchain e não
é levada ao ofício imobiliário. A operação, portanto, duplica um bem único: existe um
imóvel físico e passa a existir também um imóvel digital.
A tokenização prevista neste caso concreto não se vincula ao bem imóvel originário, ou
seja, a cédula criada (token) não corresponde ao imóvel ou a uma fração dele. Apesar do
intento empresarial “de tornar a propriedade digital reflexo da propriedade” (artigo 24 do
Regulamento da Propriedade Digital) real, a partir do Provimento emanado pela CGJ,
instituiu-se uma coexistência dissociada das propriedades digital e real.
Malgrado a decisão da CGJ tenha entendido que não há vínculo entre a propriedade
digital e a propriedade real, é crucial reconhecer que o proprietário digital possui, no
modelo em tela, direitos de usar e fruir do bem imóvel. Nesta senda, poderá por exemplo,
perceber mensalmente aluguéis.
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Partindo dessas premissas, é desarrazoado cogitar que eventual credor de um proprietário
digital, conhecedor desta condição, esteja impedido de perseguir o auferimento dos
valores obtidos pelo devedor, em virtude da tokenização imobiliária, para saldar o débito
existente.
Admitir que os frutos da propriedade tokenizada não possam ser objeto de penhora por
credores do proprietário digital significa estabelecer sobre o imóvel um manto de
proteção à margem da lei, premiando devedores que visem blindar seu patrimônio das
dívidas por eles contraídas e frustrando execuções.
Com a finalidade de sanar eventual tentativa de ocultação de bens, deve a empresa que
objetiva desenvolver essa atividade empresarial criar mecanismo, junto aos órgãos
públicos, que forneça consulta dos proprietários digitais, conferindo a transparência e a
publicidade que a espécie exige. Talvez este aspecto mereça uma futura regulação legal ou
normativa.
De forma análoga, uma vez suscitadas, as empresas que desejam explorar a tokenização
imobiliária devem colaborar com o poder público para que as transações realizadas por
meio da plataforma disponibilizada no mercado brasileiro não almejem a ocultação
patrimonial, a fraude à credores ou à execução, ou a prática de ilícitos.
Por isso, a exigência de que os tokens criados não guardem relação com o bem imóvel
subjacente talvez não seja a melhor alternativa, pois pode dificultar a vinculação dos
direitos e obrigações. Vedou-se que o token tenha como nome o endereço do imóvel,
prejulgando o conhecimento que as partes devem ter ao fazer o negócio.
Pode ser importante para eventuais modelos negociais, que inevitável e futuramente
surgirão no blockchain, que se faça a correlação com o bem imóvel subjacente à
tokenização. Assim, a norma pode causar empecilho ao desenvolvimento do mercado e,
por consequência, ao desenvolvimento econômico do Rio Grande do Sul.
“Deverá ser pensada uma regulação de modo a que as contratações no ambiente digital
não sejam fonte de insegurança jurídica, ou de estímulo à ocultação de patrimônio fruto
de atividade irregular. Hoje, o cerco está se fechando. Há poucos ambientes para que as
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situações ocultas e clandestinas possam prosperar. Sem uma regulação, creio, estar-se-
á fomentando tais situações. Deverá ser criada, creio eu, neste momento inicial, uma
ferramenta visando a estabelecer uma interconexão entre a realidade digital com o
sistema de proteção da propriedade imobiliária formal. Para o ambiente da tecnologia
isso é medida simples de se implementar, e isso poderá contribuir para que ambas as
realidades conversem, fomentando novos negócios num ambiente seguro, e não o
contrário.”
Trocou-se um bem imóvel avaliado em 110 mil reais por um token, cujo valor atribuído
pelas partes era R$ 2.776,08 (dois mil setecentos e setenta e seis reais e oito centavos). A
diferença é de 50 vezes e a CGJ do RS orienta o notário e registrador gaúcho a exigirem, a
partir de agora, uma equivalência razoável. Este precedente não poderá se repetir.
Um dos méritos do parecer da CGJ gaúcha é admitir que a lei não impede a utilização de
criptoativos como meio de pagamento em negócios formalizados por escritura pública e
levados ao registro de imóveis, contrariando o Comunicado CG nº 51/2018, da CGJ de
São Paulo, que veda o recebimento de criptoativos em pagamento de emolumentos
notariais ou registrais. Neste diapasão, Lamana argumenta que:
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Claramente o setor imobiliário não ficaria alheio à transição.
Convictamente, a ciência jurídica deverá abrigar a evolução que se institui, cabendo aos
seus operadores compreender as tecnologias, estudando os casos de uso, avaliando as
implicações e buscando soluções. Sob este prisma, o Direito deve ter como fim colimado o
estímulo e o crescimento dos profissionais que desbravam e aceitam os desafios impostos
no ambiente virtual.
É possível que esta evolução envolva também mudanças no Direito notarial e registral.
Preliminarmente, será que teremos escrituras e registros inteligentes?
Pode ser, sim, o fim da necessidade de notários e registradores. Por outro lado, pode ser
também que estes profissionais façam uso da tecnologia e agreguem valor às incipientes
cadeias de produção com uso da ferramenta.
No que tange a tokenização imobiliária algumas balizas devem ser sedimentadas com o
propósito de evitar o desenvolvimento de um ambiente propício para ocultação
patrimonial e ilícitos, fato que desvirtuaria os anseios e potencialidades que a blockchain
proporciona.
Sobre os autores
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Nathaly Diniz da Silva é advogada especializada na estruturação jurídica de projetos que
utilizam a tecnologia Blockchain. Consultora na área regulatória para tokenização de
ativos. Programadora de smart contracts pela PUC/SP
Paulo Roberto Gaiger Ferreira é tabelião de notas em São Paulo, conselheiro da União
Internacional do Notariado, autor de “Ata Notarial, teoria, prática e meio de prova” e
“Escrituras públicas”.
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