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MIG AL H AS NOTARI A IS E RE G ISTRAIS

Tokenização imobiliária e o impacto da blockchain


na atividade notarial e registral
Nathaly Diniz e Paulo Roberto Gaiger Ferreira

Tokenização imobiliária e o impacto da blockchain na atividade notarial e registral

15/12/2021

A partir da Teoria Tridimensional, idealizada por Miguel Reale, o Direito pode ser entendido como
fato, valor e norma. Exige-se do Direito uma evolução em consonância com a realidade social. O
Direito não pode ser estático, ensimesmado, estagnado. É imprescindível que o Direito seja
dinâmico e acompanhe, necessariamente, as mudanças sociais.

O mundo globalizado trouxe numerosos avanços à sociedade, nas mais diversas áreas e
ciências, e o Direito não poderia ficar aquém desse progresso pois, como ciência social, está
intrinsecamente ligado às relações humanas e aos conflitos dela decorrentes. No mesmo grau
de avanços, essa universalização trouxe problemas a serem superados e desafios a serem
enfrentados.

Neste mês, o mercado de criptomoedas ultrapassou os US$ 3 trilhões, aproximadamente R$


16,5 trilhões, com os principais ativos demonstrando fôlego para multiplicarem-se muito
mais.1 Já existem mais de 5 mil moedas gerando valor no Blockchain2 e a tendência é que a
multiplicação e os investimentos sigam aumentando exponencialmente.

Esta realidade tem sido desafiadora para a ciência jurídica: o inesgotável desenvolvimento
tecnológico e a célere evolução de ferramentas que criam negócios e meios de construir
riquezas desafiam o legislador e o Poder Judiciário a criarem leis, ou interpretar os avanços à luz
das normas existentes. O Direito, conservador que é, sempre está atrasado.

Apesar desse cenário, destaca-se uma recente decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do
Sul. O Provimento 38/213da Corregedoria-Geral da Justiça se atreveu a regulamentar a lavratura
de escrituras públicas de permuta de bens imóveis por tokens, e o seu respectivo registro
imobiliário. Um feito extraordinário que merece atenção e replicação, mas, para tanto, é
imperioso compreender o queReceba
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ser tokens , smart contracts e blockchain, e os impactos
dessas tecnologias na ciência jurídica, especialmente no campo notarial e registral.
Blockchain, smart contracts e tokens

Os contratos inteligentes, ou smart contracts, são programas de computador ou protocolos de


transações que visam a executar automaticamente, controlar ou documentar legalmente atos ou
ações relevantes no escopo de um contrato, tudo no âmbito da blockchain.4

Como programas que são, com consequências jurídicas, os contratos inteligentes necessitam
que as regras constantes no seu código respeitem as leis vigentes. A blockchain é uma rede
distribuída e, não havendo um ente ou servidor central, não se submete à qualquer soberania
estatal. Semelhante ao ocorrido com o advento da internet, alguns usuários podem imaginar,
devido às características, que se trata de um espaço sem limites. Essa visão ingênua deve ser
afastada, como sugere o serviço de pesquisa do Parlamento Europeu:

“A more realistic interpretation of smart contracts would position them within the wider legal
system. Just as with paper contracts, additional requirements can be imposed, and clauses may
be nullified or reinterpreted on the basis of the intention of the parties and wider law. The law of
the land always sits above the 'law' inscribed in the code, even where legal proceedings and
enforcement may prove difficult. As such, while most discussions of smart contracts recognise
that they will provide efficiency gains in several areas, they are not expected to replace either
traditional contract law or traditional contract lawyers.”5

Os contratos inteligentes possibilitam a disrupção de certas cadeias produtivas. Como exemplo,


mais premente, podem ser citadas as operações financeiras, cujos agentes tradicionais, bancos
e financeiras, lidam com as Defis ¸ acrônimo para decentralized finance, que oferecem produtos
que vão de empréstimos à investimentos com resultados e performances altas e taxas menores,
sem burocracias.

Algumas profissões, entre elas a notarial e registral, podem ser extintas com o uso massivo dos
contratos inteligentes. Chris Snook, da revista Inc., aposta que a blockchain vai matar estas
profissões:

“Blockchain's distributor ledger technology is the latest and greatest form of this solution and as
such is removing layers of "red tape" and friction. It also removes the need for the businesses
that have provided services related to verification and certification of goods, guarantees, and
registration/recording of the transaction into a public record.

This means that all of the associated jobs (accountants, title representatives, lawyers, and other
office administration workers) and businesses that have traditionally serviced these needs are
going the way of the horse and buggy.”6

Urge ressaltar que o valor legal dos contratos inteligentes depende do reconhecimento social, de
sua aceitação pelos órgãos jurisdicionais e, finalmente, pela lei. Afinal, o Direito é lerdo. Contudo,
a partir do momento que relações sociais se instauram e, decorrentes delas surgem
desdobramentos que precisam ser sanados pela ordem jurídica, o reconhecimento legal e a
regulação se impõem. Considerar que as instituições notariais e registrais, que operaram com
eficiência, irão de um momento para o outro deixar de serem necessárias, ainda que sob
confronto disruptivo, decorre de simplificação.
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A blockchain tem sido utilizada em plataformas imobiliárias para contratos e registros em
países que não contam com serviços eficientemente estruturados, como Honduras, Gana e
Geórgia, esta última se desligando do jugo russo e necessitando refundar-se como nação.7

Apesar de suas dimensões continentais, o Brasil possui um serviço notarial e registral eficaz e
submetido a controle estatal, havendo intensa fiscalização das atividades sob sua competência.
Diante disso, é mais provável que os operadores do serviço façam uso do blockchain para
aperfeiçoar as suas operações, obtendo as vantagens do ledger descentralizado, do que, em
certo momento, venha a surgir uma plataforma que produzirá os milhões de escrituras e
registros feitos anualmente com plena eficácia legal.

A criação de direitos ou créditos no meio digital, através da blockchain, tem sido conhecida
como tokenização. Token é a representação de ativo digital. Oriunda da língua inglesa, token,
numa tradução livre, significaria “cupom digital”. Em outras palavras, um voucher, um título, uma
cédula. Para a International Organization of Securities Commissions - IOSCO, a tokenização é “o
processo de representar digitalmente um ativo ou propriedade de um ativo”8.

Para Max BijkerkLast, a tokenização de ativos imobiliários envolve a vinculação das cédulas
(tokens) com o bem imóvel.9 Já Mitchley, traz a definição da tokenização de valores imobiliários:

“The concept of tokenization of real estate assets involves creating a virtual token that
represents ownership of a particular type of asset. Similar to the recent digital craze with non-
fungible tokens (NFTs), but with a physical asset tying the token to its value instead.

Tokens can represent real estate related ownership in several ways due to their enhanced
flexibility in use. A token becomes a record that has legal meaning and hence an economic value.
In addition to representing ownership of an asset, tokens can also represent an equity interest in
a legal entity that controls the asset, an interest in a debt secured by the asset, a right to share in
the revenue or profits generated by the asset, or any other variation as determined by the issuer
of the tokens.”10

Sob a perspectiva da legislação pátria, os tokens, ou cédulas, dessa natureza seriam espécies
ou as próprias cédulas de crédito imobiliário (CCI) previstas na lei 10.931/04. Neste caso, a sua
emissão exigiria instrumento público ou particular e custódia em instituição credenciada pelo
Banco Central.

Ademais, é possível tokenizar ativos imobiliários no Brasil constituindo um Fundo de


investimento imobiliário, previsto na lei 8.668/93. Neste contexto, o fundo deveria ser
constituído em obediência à Instrução Normativa 472 da Comissão de Valores Mobiliários
(CVM)11, o qual seria por ela autorizado e fiscalizado.

As vantagens da tokenização imobiliária são inegáveis: possibilitam o fracionamento do valor


patrimonial permitindo ao investidor um baixo valor de entrada, permitem a diversificação dos
ativos, pois um token pode estar vinculado a diversos imóveis (residenciais, comerciais,
industriais, etc). Outras vantagens são a liquidez imediata (em segundos) e a eficiência de
custos decorrente da automação e dispensa de intermediários.
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É importante que a CVM e o Banco Central regulamentem a tokenização de ativos imobiliários. O
mercado imobiliário global é imenso, tem valor estimado em US$ 280 trilhões, talvez o maior
existente. A tokenização dará acesso, fluidez, liquidez e amplo acesso a pequenos investidores a
este mercado, atualmente restrito aos grandes negociantes.12

Primeiro caso de uso: netspaces

A escritura pública que motivou o estudo da CGJ do Rio Grande do Sul a editar o Provimento nº
38/2021 é a permuta de um imóvel13 por um token14 criado através de smart contract na rede
principal do Ethereum (main network), a qual foi lavrada em 18 de maio de 2021.

As partes envolvidas, como transmitente a 66 Gestão Patrimonial Ltda. e adquirente a empresa


Netspaces Propriedades Digitais Ltda., ambas sediadas no mesmo endereço comercial,
atribuíram ao token o valor de R$ 2.776,08 (dois mil setecentos e setenta e seis e oito centavos).

Insta salientar que o imóvel foi adquirido pela empresa Netspaces, naquele mês, pela quantia de
R$110.000,00 (cento e dez mil reais), tendo sido considerado este valor para fins fiscais,
conforme se depreende da matrícula. Uma imagem do registro deste negócio integrou o
Processo SEI/TJRS – 3245601, que deu origem ao provimento:

O modelo de tokenização imobiliária proposto pela empresa Netspaces, permutante no ato


originário do processo, é o seguinte: 1) O proprietário acessa o site da empresa e solicita a
digitalização do imóvel de sua propriedade; 2) O proprietário e a empresa assinam uma escritura
de permuta, pela qual a empresa recebe a propriedade do imóvel que se transformará em
propriedade digital; 3) Neste ato, o proprietário
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escritura; 4) A seguir, o proprietário paga também os custos do registro da escritura no cartório
de imóveis. Feito o registro, a mencionada empresa adquire a propriedade efetiva do imóvel; 5)
Uma vez “digitalizado” o imóvel, a empresa registra a transação e a propriedade digital na
blockchain em nome do antigo proprietário, o qual terá apenas a propriedade digital,
representada por um token.

Como aduz o artigo 9º do Regulamento da Propriedade Digital elaborado pela mencionada


empresa, “o nascimento da propriedade digital pressupõe [...] a propriedade plena e irrestrita da
entidade netspaces sobre o bem imóvel sujeito ao regime da propriedade digital”.15 Nesse
sentido, é cristalino que o imóvel tokenizado passa a integrar o acervo patrimonial da pessoa
jurídica em tela.

Ainda de acordo com o modelo proposto, após a “digitalização da propriedade”, o dono do


imóvel digital e, por conseguinte, detentor do token que representa essa sua qualidade no
ambiente virtual, pode aliená-lo a terceiros, desde que as transações sejam realizadas dentro da
plataforma da netspaces, conforme artigos 33 e 34 do regulamento supracitado.

Além disso, remanesce ao proprietário digital uma relação possessória sobre a propriedade real,
regida pelas disposições do Código Civil. Logo, “o direito de usar o imóvel em propriedade digital
poderá ser exercido pelo proprietário digital ou, de acordo com a sua vontade, por terceiros, a
título gratuito ou oneroso”16.

Não obstante, “a faculdade de fruir do imóvel em propriedade digital pertence ao proprietário


digital, o qual poderá transferi-lo em caráter não definitivo a quem queira, a título gratuito ou
oneroso”. Nestes moldes, os frutos do bem imóvel são devidos ao proprietário digital na
proporção que titularidade que detenha sobre ele.

Provimento 38/21 da CGJ do Rio Grande do Sul

O provimento gaúcho regula a lavratura de escrituras públicas de permuta de bens imóveis


representados digitalmente por tokens. Trata-se da primeira norma a prever criptoativos no
âmbito notarial e registral. Em seus quatro artigos, o referido instrumento:

? Informa que as partes envolvidas reconhecem o conteúdo econômico dos tokens, indicando
o seu valor;

? Ressalta que os tokens ou criptoativos não representam direitos sobre o imóvel permutado;

? Exige “razoável equivalência econômica” de valor nos criptoativos e no imóvel envolvidos na


permuta;

? Exige que os tokens ou criptoativos não contenham endereço que indiquem que o seu
conteúdo se refere aos direitos de propriedade sobre o imóvel permutado;

? Exige que todos os atos com criptoativos sejam comunicados ao Conselho de Controle de
Atividades Financeiras - COAF, como prevê o Prov. 88/19 do Conselho Nacional de Justiça.

A primeira dúvida decorrente do provimento diz respeito ao trato exclusivo do negócio permuta.
Notários e registradores poderão intervir em outras operações além desta? É possível uma
compra e venda, um usufruto ou uma nosso
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em pagamento?
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Todos os atos passíveis de negócios ou mais especialmente, de registro, como previsto pela lei
6.015/73, art. 167, inciso I, podem pretender seu abrigo nas escrituras públicas e registros.
Impensável que a cada novo ato seria necessária nova consulta à CGJ, novo estudo e novo
provimento. O ato emitido chancela ao Direito notarial e registral a possibilidade de recepcionar
os negócios lícitos que envolvam criptoativos.

O segundo dispositivo, que veda que os criptoativos representem direitos sobre o imóvel
permutado, impede que o token criado mantenha relação com o imóvel. Tal vedação é excessiva,
na medida em que pode culminar na inviabilização de inúmeros projetos dotados de lisura e, a
título de exemplo, suponha-se que determinado negócio entabulado na blockchain, por meio de
smart contracts, pretenda ter como garantia um bem imóvel, representando-o na rede através de
um token. Não havendo óbice legal e tratando-se de negócio idôneo, à luz da autonomia privada,
tal ato deve ser materializado pelos notários e registradores, dando-lhe forma legal.

Enfim, é prematuro impedir o livre comércio, a criatividade e o desenvolvimento de novos


modelos negociais, pressupondo que o direito imobiliário é sacrossanto. Por outro lado, como
destacado anteriormente, é imprescindível que se atenda à legislação pátria se os tokens vão
representar uma fração do imóvel (Leis 8.668/93 ou 10.931/2004).

O parecerista da CGJ salientou que a propriedade digital não tem caráter de direito real. Neste
sentido, a relação estabelecida pelas partes através da tokenização se restringiria apenas ao
campo obrigacional. Em nosso direito, a propriedade nasce com o registro no ofício imobiliário
(CC, art. 1.245). A outra propriedade, a tokenizada, por sua vez, nasce com o registro em
blockchain e não é levada ao ofício imobiliário. A operação, portanto, duplica um bem único:
existe um imóvel físico e passa a existir também um imóvel digital.

A tokenização prevista neste caso concreto não se vincula ao bem imóvel originário, ou seja, a
cédula criada (token) não corresponde ao imóvel ou a uma fração dele. Apesar do intento
empresarial “de tornar a propriedade digital reflexo da propriedade”17 real, a partir do
Provimento emanado pela CGJ, instituiu-se uma coexistência dissociada das propriedades
digital e real.

Esse descompasso suscita várias indagações relativas à possibilidade de constrição do bem


imóvel. Poderia a propriedade real ser atingida por débitos do proprietário digital? Relembrando:
para todos os fins jurídicos, enquanto digitalizado o imóvel, a propriedade real permanece em
nome da empresa.

Apesar da decisão da CGJ ter entendido que não há vínculo entre a propriedade digital e a
propriedade real, é crucial reconhecer que o proprietário digital possui, no modelo em tela,
direitos de usar e fruir do bem imóvel. Nesta senda, poderá por exemplo, perceber mensalmente
aluguéis.

Partindo dessas premissas, é desarrazoado cogitar que eventual credor de um proprietário


digital, conhecedor desta condição, esteja impedido de perseguir o auferimento dos valores
obtidos pelo devedor, em virtude da tokenização imobiliária, para saldar o débito existente.
Admitir que os frutos da propriedade tokenizada não possam ser objeto de penhora por credores
do proprietário digital significaReceba
estabelecer sobre o imóvel um manto de proteção à margem da
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lei, premiando devedores que visem blindar seu patrimônio das dívidas por eles contraídas e
frustrando execuções.
Com a finalidade de sanar eventual tentativa de ocultação de bens, deve a empresa que objetiva
desenvolver essa atividade empresarial criar mecanismo, junto aos órgãos públicos, que forneça
consulta dos proprietários digitais, conferindo a transparência e a publicidade que a espécie
exige. Talvez este aspecto mereça uma futura regulação legal ou normativa.

Hodiernamente empresas que exploram o ramo de intermediação de compra e venda de


criptoativos e fornecem o serviço de custódia deles, denominadas exchanges, são
rotineiramente instadas pelo Poder Judiciário a informar se eventual indivíduo possui cadastro
em sua plataforma e, em caso positivo, de quanto o seu saldo conforme a cotação diária dos
ativos que detém na carteira virtual. As exchanges, ainda, têm deveres de informação e reporte
perante à Receita Federal e ao COAF (Conselho de Controle de Atividades Financeiras, visando à
prevenção de crimes de lavagem de dinheiro e outros ilícitos.

De forma análoga, uma vez suscitadas, as empresas que desejam explorar a tokenização
imobiliária devem colaborar com o poder público para que as transações realizadas por meio da
plataforma disponibilizada no mercado brasileiro não almejem a ocultação patrimonial, a fraude
à credores ou à execução, ou a prática de ilícitos.

Por isso, a exigência de que os tokens criados não guardem relação com o bem imóvel
subjacente talvez não seja a melhor alternativa, pois pode dificultar a vinculação dos direitos e
obrigações. Vedou-se que o token tenha como nome o endereço do imóvel, prejulgando o
conhecimento que as partes devem ter ao fazer o negócio. Pode ser importante para eventuais
modelos negociais, que inevitável e futuramente surgirão no blockchain, que se faça a
correlação com o bem imóvel subjacente à tokenização. Assim, a norma pode causar empecilho
ao desenvolvimento do mercado e, por consequência, ao desenvolvimento econômico do Rio
Grande do Sul.

Acerca dos efeitos da tokenização no registro imobiliário, o oficial responsável pelo registro
pioneiro, proferiu opinião no sentido de que é necessário ter cautela para evitar a ocultação de
patrimônio:18:

“Deverá ser pensada uma regulação de modo a que as contratações no ambiente digital não
sejam fonte de insegurança jurídica, ou de estímulo à ocultação de patrimônio fruto de atividade
irregular. Hoje, o cerco está se fechando. Há poucos ambientes para que as situações ocultas e
clandestinas possam prosperar. Sem uma regulação, creio, estar-se-á fomentando tais
situações. Deverá ser criada, creio eu, neste momento inicial, uma ferramenta visando a
estabelecer uma interconexão entre a realidade digital com o sistema de proteção da
propriedade imobiliária formal. Para o ambiente da tecnologia isso é medida simples de se
implementar, e isso poderá contribuir para que ambas as realidades conversem, fomentando
novos negócios num ambiente seguro, e não o contrário.”

A terceira exigência da Corregedoria, qual seja, a razoável equivalência econômica do bem


imóvel com os ativos permutados, não era exatamente o caso posto em exame. Trocou-se um
bem imóvel de avaliado em 110 mil reais por um token, cujo valor atribuído pelas partes era
R$2.776,08 (dois mil setecentos e setenta e seis reais e oito centavos). A diferença é de 50
vezes e a CGJ do RS orienta o notário e registrador gaúcho a exigirem, a partir de agora, uma
Receba nosso
equivalência razoável. Este precedente não informativo repetir.19
poderá se gratuitamente
Nesta linha, o provimento do RS obrigou a informação de todos os negócios ao COAF,
pressupondo a má-fé dos operadores de criptoativos ou negócios via blockchain. A disposição é
prudencial, mas parece estar em desacordo com a própria norma fundamentadora, o Provimento
88/19 do CNJ. Segundo o artigo 19, a Corregedoria Nacional de Justiça é o órgão competente
para indicar as hipóteses de operações suspeitas e de comunicação necessária.20 Parece-nos
conveniente uma revisão futura desta obrigatoriedade, mas, seguimos o pensamento do
registrador: é indispensável o controle das operações para a profilaxia do mercado imobiliário e
para combate à lavagem de dinheiro, corrupção e terrorismo.

Um dos méritos do parecer da CGJ gaúcha é admitir que a lei não impede a utilização de
criptoativos como meio de pagamento em negócios formalizados por escritura pública e
levados ao registro de imóveis, contrariando o Comunicado CG 51/2018, da CGJ de São Paulo,
que veda o recebimento de criptoativos em pagamento de emolumentos notariais ou registrais.
Neste diapasão, Lamana argumenta que:

“Não vemos problema no fato de a permuta ter como contrapartida tokens ou criptoativos.
Como já se disse acima, os criptoativos são hoje fatos da vida econômica e, com ou sem lastro
"oficial", eles têm valor de mercado. Não há, por óbvio, qualquer empecilho para que alguém
compre validamente criptoativos (isto é, "troque" moeda corrente oficial por valores equivalentes
em criptomoeda, por exemplo) e, ao contrário, isso ocorre cotidianamente no mundo todo sem
representar nenhuma novidade. Deste modo, o criptoativo é um bem de valor transacionável, e
pode efetivamente ser incluído em uma permuta por qualquer outro objeto lícito, como um bem
imóvel.”

É relevante salientar que a Secretaria Especial de Desburocratização, Gestão e Governo Digital,


por meio do Ofício Circular SEI 4081/2021, autorizou as Juntas Comerciais a aceitarem
criptoativos para a integralização do capital social de empresas. Tal ato foi emitido em 1º de
dezembro de 2020 e derivou de uma consulta formulada pela JUCESP ao Ministério da
Economia.

Blockchain e a atividade notarial e registral

A tecnologia blockchain promoveu transformações em diversos segmentos. Intuitivamente, o


primeiro setor impactado com as mudanças foi o financeiro, dada a dinâmica que os
criptoativos estabeleceram no mercado. Não demorou muito para que esse livro-razão virtual e
distribuído fosse adotado como solução em cadeia de suprimentos (supply chain) e logística.22

No decorrer do tempo a tokenização se tornou um fenômeno: “tokenizing everything”. De


créditos de carbono a clubes do futebol, quase todos os ativos estão sendo alvo de tokenização
pelos seus donos, emergindo diariamente novos casos de uso e aplicações. Claramente o setor
imobiliário não ficaria alheio à transição.

Convictamente, a ciência jurídica deverá abrigar a evolução que se institui, cabendo aos seus
operadores compreender as tecnologias, estudando os casos de uso, avaliando as implicações
e buscando soluções. Sob este prisma, o Direito deve ter como fim colimado o estímulo e o
crescimento dos profissionais que desbravam e aceitam os desafios impostos no ambiente
virtual. Receba nosso informativo gratuitamente
É possível que esta evolução envolva também mudanças no Direito notarial e registral.
Preliminarmente, será que teremos escrituras e registros inteligentes?

Parece-nos provável que sim. As finalidades da atividade notarial e registral são a publicidade, a
autenticidade, a segurança e a eficácia dos atos jurídicos.23 A adoção de ferramentas como
códigos prévios que executam comandos tendentes à execução de uma tarefa simplifica a
obtenção desses fins. A executividade das escrituras públicas seria amplificada com a adoção
da blockchain.

Há, porém, o temor de que a máquina e seus programas dispensem notários e registradores de
suas atividades, haja vista que, dentre as vantagens da blockchain, estão a automação de
processos, a eliminação de intermediários, a redução de custos e o acesso e rastreabilidade.24

Pode ser, sim, o fim da necessidade de notários e registradores. Por outro lado, pode ser
também que estes profissionais façam uso da tecnologia e agreguem valor às incipientes
cadeias de produção com uso da ferramenta. Enquanto houver necessidade do poder estatal,
agregando fé pública a certos negócios, haverá demanda por profissionais que representem o
Estado e aportem a fé publicidade exigida pela lei a certos negócios e situações. Aqui, no físico,
e lá, no digital.

No que tange a tokenização imobiliária algumas balizas devem ser sedimentadas com o
propósito de evitar o desenvolvimento de um ambiente propício para ocultação patrimonial e
ilícitos, fato que desvirtuaria os anseios e potencialidades que a blockchain proporciona. Noutra
ótica, as normas e regulações, em nome da segurança jurídica, devem se afastar de regras
tendentes a engessar que projetos se desenvolvam no ambiente nacional, ceifando o poder
propulsor da tecnologia.

Acolher a blockchain é estar aberto à disrupção. O modelo idealizado pela netspaces é inovador
e demarca uma ruptura com todas as concepções tradicionais de propriedade, exigindo
profundas reflexões e ponderações pelos estudiosos da área jurídica. Fato é, que a construção
de um formato de tokenização imobiliária eficiente, disruptivo, seguro e hígido requer das partes
envolvidas, profissionais e órgãos públicos um trabalho conjunto com vias de congregar o real e
o virtual.

_________________

1 Forbes.com.br, “Mercado de cripto ultrapassa R$ 16,5 trilhões e Bitcoin e Ether atingem novos
recordes”, 08.11.2021, acessado em 12.11.2021 às 17h29.

2 Disponível aqui. Acessado em 12.11.2021 às 17h37.

3 Disponível aqui. Acessado em 18.11.2021, às 9h33.

4 Disponível aqui. Acessado em 16.11.2021, às 14h08.

5 Philip Boucher. European Parliamentary Research Service. How blockchain technology could
change our lives, pp. 13-14.
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6 Blockchain and Artificial Intelligence Are Coming to Kill These 4 Small Business Verticals, aqui.
Acessado em 19.11.2021 às 15h08.
7 Georg Eder. Digital Transformation: Blockchain and Land Titles. Trabalho apresentado na OECD
Global Anti Corruption and Integrity Forum, 2019, pp. 4-6.

8 Disponível aqui. Acessado em 25.11.2021, às 14h36.

9 “Real estate tokenization is the process of partitioning real estate into many small pieces,
called tokens. Whoever owns a token, owns a piece of the underlying asset.” in Tokenized real
estate: 2021 update, aqui, acessado em 23.11.2021 às 14h28.

10 Robert Mitchley, Tokenization of real estate assets explained, aqui, acessado em 23.11.2021,
às 12h13.

11 Disponível aqui. Acessado em 25.11.2021, às 16h30.

12 Robert Mitchley, idem.

13 Disponível aqui, acessado em 23.11.2021, às 17h02.

14 Disponível aqui, acessado em 23.11.2021, às 17h05.

15 Disponível aqui, acessado em 24.11.2021, às 15h43.

16 Artigo 25 do Regulamento da Propriedade Digital. Disponível aqui, acessado em 24.11.2021,


às 15h43

17 Artigo 24 do Regulamento da Propriedade Digital, aqui.

18 João Pedro Lamana Paiva, Oficial do 1º Registro de Imóveis de Porto Alegre, é autor de várias
obras sobre Direito Imobiliário e Registros Públicos.

19 Receia-se que eventual disparidade de valores poderia dissimular uma doação sem o
recolhimento imposto devido, acarretando em prejuízos ao erário.

20 Disponível aqui, acessado em 25.11.2021, às 17h42.

21 Disponível aqui, acessado em 24.11.2021, às 08h15.

22 Disponível aqui, acessado em 23.11.2021, às 16h22.

23 Lei 8.935/94, art. 1º.

24 Disponível aqui, acessado em 18.11.2021, às 18h16.

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CO O RDE N AÇ ÃO

Carlos E. Elias de Oliveira é professor de Direito Civil e Direito Notarial e de Registral em diversas
instituições. Consultor Legislativo do Senado Federal em Direito Civil, Processo Civil e Direito Agrário.
Advogado, parecerista e árbitro. Ex-advogado da AGU. Ex-assessor de ministro STJ. Doutor, mestre e
bacharel em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). Instagram: @profcarloselias e
@direitoprivadoestrangeiro.

Flauzilino Araújo dos Santos, 1º Oficial de Registro de Imóveis da Comarca de SP e presidente do


Operador do Sistema de Registro de Imóveis Eletrônico (ONR). Diretor de Tecnologia do Instituto de
Registro Imobiliário do Brasil - IRIB. Licenciado em Estudos Sociais, bacharelado em Direito e em
Teologia e mestrado em Direito Civil. Autor de livros e de artigos de Direito publicados em revistas
especializadas. Integra, atualmente, a Comissão de Concurso Público para outorga de Delegações de Notas e
de Registro do Estado de Alagoas, realizado pelo CNJ.

Hercules Alexandre da Costa Benício, doutor e mestre em Direito pela Universidade de Brasília. É
tabelião titular do Cartório do 1º Ofício do Núcleo Bandeirante/DF; presidente do Colégio Notarial do
Brasil - Seção do Distrito Federal e acadêmico ocupante da Cadeira nº 12 da Academia Notarial
Brasileira. Foi Procurador da Fazenda Nacional com atuação no Distrito Federal.

Ivan Jacopetti do Lago, diretor de Relações Internacionais e Coordenador Editorial do IRIB. Bacharel,
mestre e doutor em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP. Pós-graduado pelo CeNOR - Centro
de Estudos Notariais e Registrais da Universidade de Coimbra e pela Universidade Autónoma de
Madri (Cadri 2015). 4º Oficial de Registro de Imóveis de SP.

Izaías G. Ferro Júnior é oficial de Registro de Imóveis, Civil das Pessoas Naturais e Jurídicas e de
Títulos e Documentos da Comarca de Pirapozinho/SP. Mestre em Direito pela EPD - Escola Paulista
de Direito. Doutorando em Direito pela Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo - FADISP.
Professor de graduação e pós-graduação em Direito Civil e Registral em diversas universidades e
cursos preparatórios.

Sérgio Jacomino é presidente do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil (IRIB) nos anos
2002/2004, 2005/2006, 2017/2018 e 2019/2020. Doutor em Direito Civil pela UNESP (2005) e
especialista em Direito Registral Imobiliário pela Universidade de Córdoba, Espanha. Membro
honorário do CeNoR - Centro de Estudos Notariais e Registais da Universidade de Coimbra e Quinto
Oficial de Registro de Imóveis da cidade de SP.

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