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SANTOS - SP
2019
RUBENS CASAL DEL REY NETO
SANTOS - SP
2019
Ficha catalográfica elaborada por sistema automatizado
com os dados fornecidos pelo(a) autor(a)
CDD 150
O debate acerca do caráter esteve presente desde muito cedo no meio psicanalítico.
Durante as três primeiras décadas do séc XX, autores como Wilhelm Reich, Sandor
Ferenczi, Karl Abraham, Alfred Adler e Sigmund Freud abordavam o tema em seus
escritos. Embora Freud tenha sido o primeiro psicanalista a utilizar o termo caráter
em sua obra, cabe dizer que tal termo aparece de forma dispersa, não recebendo
um tratamento conceitual propriamente dito. Foi o psicanalista Wilhelm Reich que
deu ao caráter um aspecto central em suas discussões. Chegando a propor uma
análise do caráter, Reich via neste uma espécie de barreira narcísica que serviria,
dentro do processo analítico, como transferência negativa. É com este viés que
Reich, em sua obra “Análise do Caráter”, publicada em 1933, coloca em debate
aspectos técnicos e teóricos da psicanálise. Dentre tais aspectos, ganham destaque
as colocações feitas sobre o caráter masoquista, na qual Reich demonstra uma forte
oposição frente à hipótese freudiana da existência de um além do princípio do
prazer. Deste modo, objetivou-se, por meio de uma exploração bibliográfica,
investigamos a noção de caráter masoquista em Reich em relação à hipótese
freudiana de um além do princípio do prazer. Nota-se que Reich constrói sua teoria
sobre o caráter com base na primeira dualidade pulsional formulada por Freud
(pulsões sexuals - pulsões do Eu). Para ele a pulsão de morte era uma criação
metafísica que explicava muitas coisas, mas não era capaz de ser explicada. Em
1932, quando amadureceu seu entendimento em relação ao masoquismo, expôs
uma teoria que buscava demonstrar clinicamente a inexistência da pulsão de morte.
Para Reich, aquilo que estava sendo atribuído à pulsão de morte podia ser
entendido dentro do princípio do prazer. O sujeito não busca a destruição por uma
tendência biológica primária que o leva a buscar o sofrimento, mas sim por
consequência de frustrações reais Para Reich a única pulsão existente remete à
vida. As manifestações destrutivas (masoquismo-sadismo) são formações
posteriores que devem a sua existência à miséria neurótica que é propagada por
meio de uma sociedade sexualmente rígida.
From the very beginning, the discussion regarding the character has always been
present into psychoanalytical field. During the first three decades of the 20th century,
authors as Wilhelm Reich, Sandor Ferenczi, Karl Abraham, Alfred Adler and
Sigmund Freud approached the subject in their writings. Although Freud has been
the first psychoanalyst to use the term character in his works, it is worth mentioning
that such term appears in a dispersed and fragmented way, thereby preventing a
theoretical designation itself. There was the psychoanalyst Wilhem Reich that gave to
the character a central role in his discussions. Even proposing a character analyse,
Reich regarded in this a sort of narcissistic barrier that would serve, within analytical
process, as a negative transfer. With this bias, Reich, in his work “Character
Analyse”, published in 1930, discuss technical and theoretical aspects of
psychoanalyse. Among such aspects, are highlighted the statements about the
masochistic character, in which Reich standards considerable opposition to Freudian
hypothesis of an occurrence of a pleasure principle. Therefore, aimed, through a
bibliographic exploitation, research the masochistic character notion in Reich in
relation to Freudian hypothesis of a beyond pleasure principle. Should be noted that
Reich builds his theory about character based on the first emotive duality developed
by Freud (sexual pulse - self pulse). For him, the death pulse was a metaphysics
creation that could explain a lot of things, however it is unable to be stated. In 1932,
when his understanding concerning the masochistic has matured, showed a theory
which sought clinically demonstrate the absence of the death pulse. For Reich, what
it was being assigned to the death pulse could be understood within the pleasure
principle. The subject does not looking for the destruction due to a primary biological
trend that brought him to seek pain, but actually due to real disappointments. For
Reich, the only existing pulse refers to life. Destructive demonstrations (masochism -
sadism) are following formations that owe their existence to the neurotic misery that it
is spread through a sexually strict society.
1.1 INTRODUÇÃO.......................................................................................................5
2. CARÁTER EM REICH.............................................................................................7
2.1 O caráter neurótico e o caráter Genital: certa idéia de saúde em Reich...............8
2.2 Sobre os mecanismos de formação do caráter....................................................11
2.3 A relação da fobia com a estruturação do caráter................................................13
2.4 A proposta de uma análise do caráter..................................................................13
3. CARÁTER EM FREUD..........................................................................................16
3.1 Primeiras aparições do termo ..............................................................................16
3.2 O caráter como forma de resistência ao processo análitico………………...…….17
3.3 O caráter e sua relação com as pulsões parciais................................................20
3.4 A dissolução do édipo e os processos identificatórios.........................................21
3.5 Traços de caráter relacionados ao feminino e ao masculino...............................24
4. CARÁTER MASOQUISTA EM FREUD.................................................................31
4.1 A construção da fantasia masoquista em “Batem numa criança”........................31
4.2 Além do princípio do prazer e a emergência da pulsão de morte........................36
4.3 Masoquismo: caráter ou sintoma?.......................................................................42
5. CARÁTER MASOQUISTA EM REICH…………………………………...…………..46
5.1 Um caso clínico………………………………………………………………………...47
5.2 Erogeneidade da pele: a proposta de Reich para o masoquismo erógeno……..53
5.3 Formação do caráter masoquista e sua base específica………………..………...54
5.4 O conflito básico do neurótico e a origem do masoquismo……………………….56
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS…………………………………………………………....60
REFERÊNCIAS..........................................................……………..............................63
5
1. INTRODUÇÃO
2. CARÁTER EM REICH
1
Quando formos abordar as instâncias psíquicas descrita por Freud em sua segunda tópica (Ich, Es e
Über-Ich), utilizaremos a denominação de Eu, Id e Supereu. No entanto, no que se refere à citações,
deixaremos a forma que foi empregada pelo autor/tradutor.
2
Neste trabalho adotamos o uso do termo repressão, mas mantereremos o termo utilizado nas
citações, frequentemente “recalque”.
8
ESTASE
CARÁTER
SINTOMA
Vimos acima que o caráter procura trazer certo equilíbrio energético, sendo
ele a própria resolução do conflito entre as energias pulsionais do Id e o mundo
externo. Contudo, devemos fazer um adendo a isto, pois paga-se um certo preço
para que o caráter se forme, tendo em vista que ele se constitui como uma barreira
protetora entre o interno e o externo. Em outras palavras, ele é um “encouraçamento
do Ego contra os perigos do mundo exterior e as exigências pulsionais recalcadas
do id” (REICH, 1933/1998, p.151).
Mas, enfim, qual o preço que se paga pela formação do caráter? O que seria
esse encouraçamento? Reich o aponta como uma cronicidade defensiva que
impede o sujeito de ter contato com a realidade e, portanto de se pôr em meio à
experiência, obtendo satisfação dela.
Um caráter pode ser mais ou menos rígido, de modo que a sua rigidez e
flexibilidade marca o quanto ele é capaz de obter prazer em suas relações durante a
vida. Um caráter muito rígido agiria de modo crônico e defensivo frente ao mundo
9
Aqui, vale retomar a distinção que Reich faz entre um caráter neurótico e um
caráter genital. Segundo o autor, todos nós constituímos um caráter, no entanto mais
ou menos flexíveis. É esse grau de flexibilidade e rigidez que determina se um
caráter é neurótico ou genital. Sinteticamente, podemos dizer o caráter genital tem
uma maior capacidade de se abrir ao mundo e à obtenção de prazer, diferente do
caráter neurótico que tende a se fechar, obtendo um prazer miserável advindo de
suas formações defensivas.
Segundo Reich (1933), por meio do combate às resistências advindas do
caráter, podemos liberar os afetos de suas ancoragens e disfarces, assim como
caminhamos em direção à área central do conflito infantil: o complexo de édipo e a
angústia de castração. Isso se deve ao fato do caráter ser uma formação primária
infantil, a qual perdura como um traço atual da personalidade do sujeito. Dito de
outra forma, descobrimos que a couraça do caráter surge na infância em decorrência
“[...] dos mesmos objetivos e razões aos quais a resistência de caráter está
relacionada na situação analítica presente” (REICH, 1933/1998, p.63).
Tomemos como exemplo um homem que se dispõe a se aproximar da mulher
desejada. Seria normal que com isto ele se sinta angustiado, pois o perigo da
reprovação e da frustração é iminente. Um caráter genital sentiria essa angústia, no
entanto ele não recorreria a métodos defensivos para aplacá-la, como aconteceria
no caráter neurótico. No caráter neurótico a angústia seria muito intensa, pois ela
estaria hipercarregada devido à estase libidinal. Frente a tal situação, o sujeito de
caráter neurótico teria que recorrer a atitudes defensivas. Portanto, ele lidaria com a
situação de modo estereotipado conforme a sua própria estruturação do caráter,
podendo então, por exemplo, se constranger a ponto de nem conseguir se aproximar
10
e dizer: “Ela nem era tão atraente, eu sou muito mais!”. Nesse exemplo o sujeito
conseguiria obter alguma satisfação substitutiva no caráter por meio de seu
narcisismo secundário, pois ele é “muito mais atraente”; contudo essa substituição é
miserável, privando-o da experiência e, como em um ciclo vicioso, fomentando ainda
mais o represamento das pulsões. Desse modo existe uma correlação inversa entre
angústia real e angústia de estase, de modo que “quanto mais a angústia real é
evitada, tanto mais forte se torna a angústia de estase e vice-versa” (REICH,
1933/1998, p.168).
Cabe ressaltar que o caráter pode assumir as mais variadas formas de
aplacar a angústia. No nosso exemplo acima o sujeito exerce uma fuga feita na
realidade (ele simplesmente não se aproxima do objeto). Contudo, ele poderia, por
exemplo, ter se aproximado da mulher desejada sob uma atitude de “superioridade”
advinda da própria forma defensiva: “ela nem é tão atraente, eu sou muito mais”.
Desse modo, ele conseguiria diminuir a angústia real e se aproximar de seu objeto
de desejo, o que, no entanto, seria feito sob uma forma defensiva estereotipada e
rígida.
Como notamos em nosso exemplo, a formalização feita por Reich de um tipo
de caráter mais saudável e outro mais adoecido não se constrói de forma polarizada:
aquele que sofre (neurótico); aquele que não sofre (genital). O caráter genital
também sofre, também pode ser agressivo, também pode sentir tristeza, também
pode se angustiar, contudo ele tem um maior domínio racional (Reich utiliza esse
termo) sobre a situação de frustração e perigo do que o caráter neurótico, pois este
não suporta sentir a frustração devido ela ser muito mais intensa por conta da estase
libidinal e de seus conflitos infantis não resolvidos. As saídas que o caráter neurótico
pode ter para lidar com a angústia são restritas, baseadas no seu protótipo infantil.
Segue uma tabela que esquematiza as diferenças entre um caráter neurótico
e um caráter genital para Reich.
Vive em constante alternância entre tensão e Sofre uma constante estase da libido.
satisfação.
3
Um exemplo disto será visto em: “5.3 A formação do caráter masoquista e sua base específica” (p.
57).
13
Uma fobia corresponde a uma cisão da personalidade; por outro lado, a formação de
um traço de caráter corresponde a uma consolidação da personalidade. O segundo
caso é uma reação sintetizadora do ego a um conflito da personalidade que não
pode ser mais suportado (REICH, 1933/1998, p.192).
Reich coloca a fobia como uma forma natural de dominar a angústia que
precede o encouraçamento do caráter. Trata-se de mais uma tentativa do princípio
do prazer aplacar o desprazer. Diferente do caráter, no qual o conflito encontra certa
assimilação no próprio Eu, na fobia o sujeito experimenta uma cisão, de modo que
os conteúdos aflitivos são projetados em um objeto externo. Ao fazê-lo, a criança
passa a obter algum tipo de controle e, por conseguinte, alívio.
Embora o traço de caráter e a fobia sejam, em alguns aspectos, opostos, algo
eles têm de semelhante: ambos configuram uma tentativa de evitação. Dessa forma,
o encouraçamento do caráter também gera certa evitação de contato.
Exemplificando isso, Reich diz:
De certo tal postura pode ser localizada dentro do próprio setting analítico, na
forma evitação de conteúdos angustiantes. Dessa forma o caráter possibilita certo
14
modo o autor reconhece que se “[...] a neurose sintomática está sempre enraizada
num caráter neurótico, então é claro que, em toda análise, estamos lidando com
resistências que são manifestações de um caráter neurótico” (REICH, 1933/1998 p.
54).
Desse modo, com certa semelhança ao dito por Freud em “Alguns tipos de
caráter encontrados no trabalho psicanalítico (1916)”, Reich localiza no caráter um
importante obstáculo clínico, pois em meio a ele se fazem presentes intensas formas
de resistência. Frente a isso, Reich se perguntava: “Como podemos fazer que um
paciente reaja? Como podemos fazer que ele se revele?” (HIGGINS & RAPHAEL,
4
1970, p.52, tradução nossa).
A resposta dada por Reich é que, para que uma análise ocorra, deve-se
primeiro atentar-se às resistências advindas do caráter. Resistências que se
apresentam devido à funcionalidade que o caráter tem para o sujeito, pois por meio
dele alcança-se um certo equilíbrio, ainda que neurótico, “equilíbrio este para qual a
análise constitui um perigo” (REICH, 1933/1998).
4
Como podiamos conseguir que reaccionara un paciente? ¿Como conseguiriamos que se
“¿
IGGINS & RAPHAEL, 1970, p.52).
expresara?”(H
16
3. CARÁTER EM FREUD
[...] caráter é um termo que aparece disperso na obra freudiana. Não tem
uma presença contínua e parece-nos difícil reconhecer, em Freud, uma
teoria do caráter propriamente dita (diferentemente do que ocorre com a
teoria das pulsões, por exemplo)” (SILVA, 2005, p.288)
Aquilo que descrevemos como nosso caráter acha-se baseado nos traços
de memória de nossas impressões que causaram o maior efeito em nós - as
de nossa primeira infância - são precisamente aquelas que dificilmente se
tornam conscientes (FREUD, 1900/2012, p. 576).
5
Item 4.4 A dissolução do édipo e os processos identificatórios
18
6
Item 4.2 A construção da fantasia masoquista em “Batem numa criança”
20
posição reducionista não mais se sustenta, pois a perversão também passa a ser
situada no campo do complexo de Édipo e do recalque" (BERNARDES, 2005 p.59).
Em 1917, no escrito "Transformações dos instintos, em particular no erotismo
anal", Freud retoma a discussão de 1905 sobre a analidade e o caráter. No entanto,
nesse texto passa-se a discutir o aspecto simbólico que se relaciona com a
analidade. Tem-se a ideia de que no ato de defecar o bebê tem de abandonar o
prazer autoerótico advindo da retenção das fezes. O cocô, sendo ele um objeto
produzido com prazer pela própria criança, torna-se o equivalente simbólico a um
presente, o qual é destinado a um adulto em troca de amor. Nesse sentido o bebê
tem que decidir entre o narcisismo primário ligado ao autoerotismo e o amor pelo
objeto.
A defecação proporciona a primeira oportunidade em que a criança deve
decidir entre uma atitude narcísica e uma atitude de amor objetal. Ou
reparte obedientemente as suas fezes, ‘sacrifica-as’ ao seu amor, ou as
retém com a finalidade de satisfação auto-erótica e, depois, como meio de
afirmar sua própria vontade. Se faz essa última escolha, estamos na
presença de um desafio (obstinação) que, por conseguinte, nasce de um
apego narcísico ao erotismo anal” (FREUD, 1917/2010 p.139).
Um aspecto que vale ser ressaltado é que tais traços de caráter são
egossintônicos, ou seja, não são vistos como um problema para o próprio sujeito
que, por sua vez, tende a nem notá-los ou vê-los como uma caraterística de si. Em
contraponto ao traço de caráter, os sintomas frequentemente são destoantes em
relação ao sujeito, que tende a ver nele um empecilho sem sentido. Assim, pode-se
dizer que os sintomas são egodistônicos.
Portanto, levando em conta os apontamentos feitos acima, nota-se que Freud,
em alguns momentos de sua obra, relaciona o caráter com as pulsões parciais,
dando grande ênfase aos processos de sublimação e formação reativa.
Freud parece localizar no caráter uma possível fonte de resistência para a clínica do
sintoma. Segundo ele, no tratamento o médico não deve levar em conta apenas o
caráter, sendo que, mais que isso, ele deve se voltar em grande parte para o
sintoma e suas vicissitudes. Contudo, ao mesmo tempo ele enfatiza que “existem
resistências que o enfermo lhe opõe, e que tais resistências podem ser atribuídas ao
caráter do enfermo. Então é esse caráter que reclama primeiramente o seu
interesse” (FREUD, 1916/2010, p.191).
Nota-se, portanto, que já no ano de 1916, Freud indicava que o caráter podia
funcionar como resistência para o processo analítico.
7
Ricardo III é uma peça baseada na figura verídica do rei da Inglaterra Ricardo III. Tal peça é de
autoria de William Shakespeare, e sua publicação data de um período entre 1592 e 1593
(SHAKESPEARE, W. Ricardo III. São Paulo: Imprensa Oficial - SP (IMESP), 2006).
22
8 9
e Lady Macbeth, de Shakespeare , e Rebecca, personagem criada por Ibsen . Além
da literatura, algumas vinhetas clínicas também são utilizadas.
Nos sujeitos que se comportam como se fossem exceções, Freud localizou
um intenso sentimento de injustiça. Tais sujeitos se posicionavam como
prejudicados, irritados perante a natureza e ao destino por desvantagens congênitas
e infantis. Além disso, Freud alega que nesses doentes sua neurose “ligava-se a
uma vivência ou um sofrimento que haviam tido nos primeiros anos da infância, do
qual sabiam serem inocentes e que podiam considerar uma injusta desvantagem
para sua pessoa” (FREUD, 1916/2010, p.193). Essas desvantagens fazem com que
esses sujeitos pensem que “já sofreram e renunciaram o bastante, que têm direito a
serem poupados de outras requisições, que não se sujeitam mais a qualquer
necessidade desagradável, pois são exceções e pretendem continuar a sê-lo”
(FREUD, 1916/2010, p.192). Aqui o exemplo literário dado por Freud é de Ricardo
III, personagem que se constrói como uma espécie de vilão, se vendo no direito de
cometer crueldades. Freud explicita sua hipótese citando uma fala do próprio
personagem Ricardo III, o qual diz:
O segundo tipo de caráter trabalhado por Freud se baseia nas pessoas que
adoecem perante ao triunfo. Utilizando o exemplo da personagem Rebbeca, da peça
Rosmersholm de Henrik Ibsen, Freud enfatiza a dificuldade que a personagem tem
quando finalmente consegue se casar com Rosmer. A própria personagem diz: “É
justamente isso o mais terrível, que agora — quando toda a felicidade do mundo me
é entregue nas mãos —, eu me tenha tornado uma pessoa cujo caminho para a
8
Lady Macbeth é uma personagem da peça teatral Macbeth, escrita por Shakespeare. A data da
publicação não é exata, sendo motivo de discussão entre os estudiosos da peça, que atribuem um
período situado entre 1603 e 1611 (SHAKESPEARE, W. Macbeth. In: Shakespeare – tragédias, vol.
I. Trad. de F. Carlos de Almeida Cunha Medeiros e Oscar Mendes. São Paulo: Abril Cultural, 1978).
9
Rebecca é personagem de uma peça escrita pelo dramaturgo norueguês Henrik Ibsen. Sua
publicação data de 1886 (IBSEN, Henrik. Quando despertarmos de entre os mortos/Rosmersholm.
Rio de Janeiro: Editora Globo, 1985).
23
10
Se inicialmente o bebê é uma majestade (FREUD, 1914/2010), posteriormente o mesmo passa a
ver o seu trono ameaçado. Podemos pensar na entrada no édipo com a inserção de uma terceira
figura na relação dual mãe-bebê, em outras palavras, quando a relação de completude que se cria
entre o bebê e a sua mãe ganha um novo personagem, inaugurando então uma dinâmica triangular.
Assim, a entrada no édipo do menino se dá pela inserção de um rival na sua relação com a mãe: o
pai. Nesse sentido, é sob a égide de uma rivalidade com o pai que o menino vai temer ser castrado
pelo mesmo, se encontrando em uma posição conflituosa frente ao seu desejo pela mãe. O conflito
se instaura entre os seus desejos libidinosos dirigidos à figura materna e o interesse narcísico que o
mesmo dirige a seu pênis, o qual é a ameaçado pela figura do pai castrador. Desse modo o complexo
de édipo no menino encontra seu declínio.
24
11
Ainda nos Três ensaios sobre a Teoria da Sexualidade, em uma nota de rodapé acrescentada em
1915, Freud passa a utilizar o termo homossexual, sendo que, posteriormente, em 1920, é
acrescentada uma outra nota que defende o uso do termo “homoerotismo”, proposto por Ferenczi.
Ademais, Freud defende a existência de dois tipos de homoerotismo: o homoerótico no sujeito, que
se sente e se comporta como mulher, e o homoerótico no objeto, que é viril e apenas troca o objeto
feminino por um do mesmo sexo.
12
Na concepção biológica o que está em jogo é a atividade do espermatozóide masculino em
contraponto ao óvulo feminino (FREUD, 1905/2016).
27
Para fins deste tópico, podemos citar três teorias sexuais infantis descritas por
Freud: a teoria do nascimento cloacal; a concepção sádica do coito; a ideia de que
todos os seres humanos, inclusive os seres femininos, têm um pênis. Essas três
concepções infantis nos interessam por elas terem em comum o fato de serem
atravessadas por uma única temática: a diferenciação sexual.
A noção de que os bebês são trazidos por uma cegonha ou que eles nascem
pelo ânus, assim como as fezes, foi descrita por Freud como uma fantasia infantil
comum. Não raro após a chegada de um irmão essa pergunta é reanimada por
intensos sentimentos de inveja e ciúmes de modo que a pergunta se transforma em
“De onde vem este bebê intrometido?” junto a: “Que a cegonha o leve de volta!”
(FREUD, 1908/1974, p. 147).
Outra fantasia infantil localizada por Freud é a interpretação da cena sexual
como algo agressivo. A criança, ao ter contato com um conteúdo sexual adulto (o
coito dos pais), pode interpretá-lo como sádico. Nesse caso, frequentemente é a
figura paterna que é vista como o agente agressor. É verdade que Freud alerta para
o fato de que a cena sexual nem sempre é presenciada, podendo ser um mero fruto
da fantasia do sujeito.
Uma dessas teorias infantis nos é de maior interesse. A crença da existência
de um único órgão sexual: o falo. Em termos de teorias sexuais infantis podemos
pensar que é por meio da negativa (não ter o falo) e da positiva (ter o falo) que a
diferenciação sexual se articula. Contudo, a coisa não cessa no ter ou não ter, indo
adiante: o menino, ao localizar a falta na menina, se sente ameaçado, pois “se ela
não tem é por que lhe foi tirado!”, logo ele também se vê sob a ameaça de perder
aquilo. A menina, por sua vez, ao se deparar com a sua ausência, achará que algo
ou lhe foi arrancado ou não lhe foi dado, se sentirá prejudicada frente ao menino
melhor aparelhado e, por conseguinte, desenvolverá intensos sentimentos de inveja.
Nas palavras de Freud, a menina “sucumbe à inveja do pênis, que deixa traços
indeléveis em seu desenvolvimento na formação do caráter, e mesmo em casos
favoráveis não é superada sem grande dispêndio psíquico” (FREUD, 1931/2010,
p.280).
Em relação às fases psicosexuais, Freud diz: “Os dois sexos parecem
atravessar da mesma forma as primeiras fases de desenvolvimento da libido”
28
Até mesmo na esfera da vida sexual humana os senhores verão logo como
é inadequado fazer o comportamento masculino coincidir com atividade e o
feminino, com passividade. [...] As mulheres podem demonstrar grande
atividade, em diversos sentidos; os homens não conseguem viver em
companhia dos de sua própria espécie, a menos que desenvolvam uma
grande adaptabilidade passiva. Se agora os senhores me disserem que
esses fatos provam que tanto os homens, como as mulheres são
29
utilize o termo “natureza” - termo este que aponta para um caráter inato - pouca
articulação é feita com o mesmo. Uma possível articulação é a afirmação de que “O
masoquismo feminino que estivemos descrevendo baseia-se inteiramente no
masoquismo primário, erógeno, no prazer no sofrimento (FREUD,1924/2010, p.170).
Sobre o tema do masoquismo feminino, conclui-se, portanto, com base nas
colocações feitas por Freud, que ele não é equivalente ao masoquismo erógeno,
embora se baseie inteiramente nele. Assim sendo, nota-se um determinado emprego
feito por Freud do termo “natureza”, uma vez que o que podemos denominar de
natural seria referente ao masoquismo erógeno.
O masoquismo feminino, por conseguinte, se materializa em fantasias de
surra. Segundo Freud: “o conteúdo manifesto é: ser amordaçado, amarrado,
golpeado, chicoteado de maneira dolorosa, maltratado de algum modo, obrigado à
obediência incondicional, sujado, humilhado” (FREUD, 1924/2010, p.169).
Caminhando nesse sentido, concluímos junto com Freud que tal masoquismo ganha
o nome de feminino por se constituir em uma fantasia na qual o conteúdo coloca “o
indivíduo numa situação caracteristicamente feminina; elas significam, assim, ser
castrado, ser possuído ou dar à luz” (FREUD, 1924/2010, p 169).
31
Os casos aqui descritos foram publicados por Freud no ano de 1919 — pouco
tempo antes da pulsão de morte emergir oficialmente como conceito —, em um texto
chamado “Batem numa criança”. Nele podemos notar o raciocínio utilizado por Freud
para chegar a construção de fantasias que têm como centralidade o tema do
masoquismo-sadismo. O texto leva em conta o material de seis casos clínicos,
sendo eles relativos à análise de quatro mulheres e dois homens.
Freud (1919) inicia o texto declarando que a fantasia “batem numa criança” é
trazida por muitas pessoas que o procuram para tratamento psicanalítico, seja por
histeria ou por neurose obsessiva. Após a confissão de tal fantasia, pouco conseguia
ser associado, de modo que uma forte resistência se instaurava, despertando
sentimentos de culpa e vergonha.
Quem é a criança que apanhava? A que tinha a fantasia ou uma outra? Era
sempre a mesma criança ou, frequentemente, qualquer outra? Quem batia
na criança? Um adulto? Quem, então? Ou a criança fantasiava que ela
mesma batia numa outra? Para todas essas questões não havia uma
informação esclarecedora, mas apenas uma tímida resposta: “Não sei nada
mais; batem numa criança” (FREUD, 1919/2010, p.222/223).
Outra característica apontada por Freud é que ela geralmente surge investida
de prazer e não raro se conclui em um ato de satisfação autoerótica. Contudo, tal
satisfação é um tanto quanto velada; quando o sujeito presenciava uma cena de
castigo, o que se sentia era um misto de excitação e forte repulsa. De uma forma
geral, o sujeito não se deleita com cenas nas quais a criança punida sofre graves
ferimentos.
As lembranças referentes a tais fantasias antecedem aos seis anos de idade.
No entanto, muitas as vezes elas são associadas ao período escolar, quando a
criança assistiu à cena de um professor castigando outras crianças. Segundo Freud,
embora a cena escolar possa tê-la despertado ou fortalecido, elas já existiam
32
anteriormente e sua origem é mais antiga que tal período. Assim sendo, a orientação
técnica feita por Freud é:
[...] deve ser visto como psicanálise correta apenas o trabalho analítico que
logra remover a amnésia que esconde ao adulto o conhecimento de sua
vida infantil desde o início dos dois aos cinco anos, aproximadamente). [...]
Sublinhar a importância das primeiras vivências não implica subestimar o
peso das vivências posteriores; mas essas posteriores impressões da vida
falam com clareza pela boca do paciente, enquanto o médico tem de erguer
a voz em favor da infância (FREUD, 1919/2010, p.225).
Na primeira fase, que diz respeito ao período mais arcaico, a criança que
apanha é sempre outra, em geral um irmão menor. Esse suposto irmão menor sofre
os castigos de um outro adulto que embora apareça obscuro por um tempo,
posteriormente tende a ser reconhecido na figura do pai. Aqui podemos sintetizar
essa primeira etapa na seguinte frase: “Meu pai bate na criança”, ou então, mais
33
precisamente “Meu pai bate na criança que odeio”. Assim a criança passa a associar
a surra no irmão como uma retração do amor do pai; dito de outro modo, a criança
“Logo compreende que apanhar, mesmo quando não dói muito, significa uma
retração do amor e uma humilhação” (FREUD, 1919/2010, p.228). Nesse sentido
cabe uma nova configuração à nossa síntese: “Meu pai não ama esse outro, ama
somente a mim”.
Freud demonstra imprecisão em assimilar esse primeiro momento como
masoquista ou sádico. Tal imprecisão é explicitada nas primeiras páginas do texto:
“A fantasia não é certamente masoquista, então talvez queira chamá-la de sádica,
mas não se deve perder de vista que a criança que fantasia não é jamais aquela que
bate” (FREUD, 1919/2010, p.226). Em um segundo momento, após descrever as
três etapas da fantasia, Freud retoma a questão do sadismo dizendo:
fantasia. Nesse sentido, existe uma inversão, na qual ela se torna masoquista, uma
vez que a própria criança que fantasia se vê castigada. A nova situação surge
acompanhada de prazer, diferente do que ocorria na primeira fase. Podemos
sintetizar essa fase na frase: “Sou castigada pelo meu pai”. A explicação é que
devido ao sentimento de culpa que se liga ao primeiro momento da fantasia, o
sujeito experimentaria uma inversão.
Pensando nesse caso, Freud diz: “que eu saiba, é sempre assim, a
consciência de culpa é o fator que transforma o sadismo em masoquismo” (FREUD,
1919/2010, p.231). Contudo, nesse mesmo texto encontramos a afirmação de que
este certamente não é conteúdo inteiro do masoquismo, pois “também o impulso
amoroso deve ter o seu quinhão” (FREUD, 1919/2010, p.231). Tal possibilidade diz
respeito a outro raciocínio: “Meu pai me ama” se transforma em “Meu pai me bate”.
Esse segundo formato de fantasia refere-se a uma degradação da organização
genital que tende a se formar em sujeitos que alcançaram a genitalidade e,
posteriormente experimentaram uma regressão à fase sádico-anal. Dessa forma, ser
golpeado “é não só o castigo pela relação genital proibida, mas também o substituto
regressivo para ela”. Desse modo, não só consciência de culpa, mas também
erotismo estão interligados e “essa é, enfim, a essência do masoquismo” (FREUD,
1919/2010, p.231).
Essa segunda fase, diferente da primeira, não é uma lembrança exata, sendo
ela uma construção da própria análise. Nas palavras de Freud: “Em nenhum caso
ela é lembrada, não chegou a tornar-se consciente. É uma construção da análise,
mas nem por isso menos necessária” (FREUD, 1919/2010, p.227). Embora o sujeito
não possa se lembrar, Freud ressalta sua importância: “Não só por continuar
atuando mediante a fase que a substitui; pode-se também demonstrar efeitos sobre
o caráter que provêm diretamente de sua forma inconsciente” (FREUD, 1919/2010,
p.236, grifo nosso).
A terceira fase experimenta grande similaridade com a primeira, pois a
criança que fantasia tende a sair novamente de cena, se tornando um mero
espectador. Assim, o sujeito que apanha passa a ser outra criança, não
representada por uma figura específica, de modo que “ao serem questionadas, as
pacientes dizem apenas: Eu estou olhando, provavelmente” (FREUD, 1919/2010, p.
35
227). É verdade também que tais cenas não são necessariamente de surras,
podendo ganhar outros contornos, como castigos e humilhações de outra espécie.
Também existe uma característica similar à segunda fase: a cena é acompanhada
de uma forte excitação sexual, permitindo a satisfação masturbatória. Desse modo, a
fantasia experimenta nova inversão, tornando-se novamente sádica.
Nessa estruturação final a figura do pai é substituída por outra equivalente,
como um professor ou algum outro que ocupe um suposto lugar de autoridade.
Podemos remontá-la na frase: “Meu pai está batendo na outra criança, ele ama
somente a mim”, porém, somente a primeira parte (Meu pai está batendo na outra
criança) parece ser mantida, enquanto a segunda (ele ama somente a mim) se
mantém longe da consciência devido à repressão.
Embora o conteúdo manifesto pareça ser sádico, se levarmos em conta seu
conteúdo inconsciente, tenderíamos a vê-lo como masoquista, pois “todas as
crianças indefinidas que levam surra do professor são, afinal, substitutos da criança
mesma” (FREUD, 1919/2010, p.232).
Até então acompanhamos Freud na construção da fantasia da menina. Cabe
dizer que Freud não localiza um caminho único para o masoquismo no menino e na
menina. Embora o texto de 1919 dê uma importância maior à fantasia da garota,
Freud também discorre acerca de suas diferenças em relação ao garoto.
O segundo momento da fantasia de surra no menino, semelhante à menina,
tende a ser associado à figura do pai. Contudo, o significado é outro; se na menina o
segundo momento de sua fantasia masoquista ligava-se a uma mescla de excitação
sexual e sentimento de culpa, no menino, por sua vez, tal fantasia se relaciona
diretamente a uma necessidade de amor, seu conteúdo sendo: “Sou amado pelo
meu pai”, que no terceiro momento experimenta uma mudança no objeto: “Sou
amado pela minha mãe”. Nesse sentido a fantasia do menino é passiva. Como o
menino experimenta uma mudança de objeto (quem bate é a mãe e não mais o pai),
ele pode manter uma atitude feminina e uma escolha objetal heterossexual.
Embora Freud localize diferenças entre a fantasia de surra no menino e na
menina, em ambos os casos tende a localizar o sadismo como primário, delegando
ao masoquismo uma formação secundária. Baseando-se nos casos estudados,
Freud afirma: “Parece confirmar-se, primeiramente, que o masoquismo não é uma
36
Esse “eterno retorno do mesmo” não nos surpreende muito, quando se trata
de um comportamento ativo da pessoa em questão e nós descobrimos o
traço de caráter permanente de seu ser, que tem de manifestar-se na
repetição das mesmas vivências (FREUD, 1920/2010, p.134).
13
Ver: FREUD, Sigmund. Recordar, repetir e elaborar (1914). In: Observações psicanalíticas sobre
um caso de paranoia relatado em autobiografia ("o caso Schreber"), artigos sobre técnica e outros
textos. tradução e notas Paulo César de Souza – São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
39
Se é lícito aceitarmos, como experiência que não tem exceção, que todo ser
vivo morre por razões internas, retorna ao estado inorgânico, estão só
podemos dizer que o objetivo de toda vida é a morte, e,
restrospectivamente, que o inanimado existia antes do vivente (FREUD,
1920/2010, p.149).
14
Termo empregado no meio psicanalítico por Barbara Low em “Psycho-Analysis. A Brief Account of the
Freudian Theory. Abingdon-on-Thames: Routledge (2013/1920).”
15
Ver “Projeto para uma psicologia científica (1950[1895])” In:: FREUD, S. Edição standard brasileira
das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. v. 1. Rio de Janeiro: Imago, 1990, p. 385-529.
40
casos descritos em “Batem numa criança”, carregam conteúdos que remetem a: “ser
amordaçado, amarrado, golpeado, chicoteado de maneira dolorosa, maltratado de
algum modo, obrigado à obediência incondicional, sujado, humilhado” (FREUD,
1924/2010, p.169). Contudo, vale ressaltar que, diferente de tal texto, na
conceituação feita em 1924, Freud concedeu ao masoquismo uma qualidade
primária, “Assim, o masoquismo feminino é inteiramente baseado no masoquismo
primário, erógeno, caracterizado pela ligação estabelecida entre o prazer, de
natureza libidinal, e a dor, produto da pulsão de morte” (ROUDINESCO & PLON,
1998, p. 683).
O terceiro masoquismo descrito por Freud, o masoquismo moral, tem uma
íntima relação com o sentimento de culpa inconsciente. Neste tipo de masoquista
não se verifica uma relação tão direta com o objeto, se quem o faz sofrer é “uma
pessoa amada ou outra qualquer não faz diferença; pode ser causado também por
poderes ou circunstâncias impessoais, o verdadeiro masoquista sempre oferece a
face quando vê perspectiva de receber uma bofetada” (FREUD, 1924/2010, p.173).
Dito de outro modo, não parece haver diferença na forma de sofrimento, o que vale é
sofrer, seja lá por qual meio. Isto leva Freud a dizer que tal tipo de masoquismo não
tem uma relação direta com a pulsão sexual, embora ele não descarte
completamente tal questão (FREUD, 1924/2010).
Além das formas de masoquismo descritas, Freud mantém a crença da
existência de um masoquismo secundário, na qual o sadismo projetado para fora,
retorna para dentro tornando-se novamente componente masoquista. “Não
ficaremos surpresos de ouvir que, em determinadas circunstâncias, o sadismo ou
instinto de destruição voltado para fora, projetado, pode ser novamente introjetado,
voltado para dentro, desse modo regredindo à sua situação anterior” (FREUD,
1924/2010, p.172).
Neste tópico, retomamos brevemente o caminho traçado por Freud até chegar
em sua concepção mais madura do masoquismo. Se inicialmente o masoquismo era
tomado como uma formação secundária, fruto do retorno do sadismo para o Eu,
posteriormente, após a conceituação da pulsão de morte e do masoquismo primário,
essa fórmula experimenta uma inversão, sendo o masoquismo um componente
42
id” e “caráter do Eu”. Além disso, no que se refere ao Supereu, Freud diz: “O
super-eu conservará o caráter do pai” (FREUD, 1913/2010, p. 255). Com isso
entende-se que o supereu é uma instância severa de caráter sádico que tem suas
origens no complexo de Édipo. Assim:
16
Essa citação causa estranheza por situar a apresentação da pulsão de morte no escrito “O ego e o
Id”. Ainda mais estranho é o fato do texto conter uma nota de rodapé que localiza “O ego e o Id”
numa coletânea denominada “Ensaios de psicanálise” (1951), sendo que o texto foi publicado por
Reich em 1927.
47
prazer, já andava no ar, mas eu não tinha nenhuma contribuição a fazer naquela
altura” (REICH, 1933/1998, p. 224). O que dá a entender, como hipótese, é que
Reich nunca acreditou na existência da pulsão de morte, mas como o tema do
masoquismo ainda era enigmático, preferiu não se posicionar, até que tivesse
alguma contribuição sobre o tema.
também não é a sua função central (REICH, 1933). O que se encontra no cerne da
questão é um profundo desapontamento no amor.
A exigência de amor se baseia no medo de ser abandonado, o qual fora
experimentado no começo da vida. O masoquista não suporta ficar só, “Ser
abandonado é morrer - o fim da minha vida”, dizia um paciente atendido por Reich.
A função inicial do comportamento do paciente era provocar o analista até
que ele se enfurecesse. Contudo, como a resposta do analista não foi condizente,
uma função secundária se instaurou: o paciente se soltava cada vez mais, de modo
a testar o quanto o analista suportaria sem retirar o amor e recorrer a punição. Ele
não deseja a punição, mas sim obtém prazer por meio da neutralização do medo
(REICH, 1933).
Nesta fase do tratamento a postura provocativa se intensificou e Reich
passou novamente a espelhar o comportamento do paciente, chegando ao ponto de
se jogar no chão, gritar e espernear. De início, o paciente reagiu ficando atônito, mas
posteriormente começou a rir e a analisar a postura adotada por Reich, o que
permitiu o andamento da análise.
O que se revelou no comportamento do masoquista é que a maneira
provocativa de agir é a sua forma de pedir amor. O caráter masoquista reinvindica
amor da seguinte forma: “Veja como sou infeliz - ame-me!”, “Você não me ama o
suficiente - é mesquinho comigo!”, “Você tem de me amar; vou forçá-lo a me amar.
Se não me amar, vou deixá-lo irritado!”. A forma do caráter masoquista buscar a
simpatia é por meio da infelicidade. Segundo Reich: “Esse mecanismo é específico
do caráter masoquista. Não é encontrado em qualquer outra forma de neurose, e se
isso acontece o aspecto masoquista correspondente no caráter também está
presente” (REICH, 1933/1998, p.233).
O que o masoquista exprime é uma exigência excessiva de amor. Essa
necessidade de amor se deve a uma predisposição à angústia, “Há uma correlação
direta entre a atitude masoquista e a exigência de amor, por um lado e, por outro, a
tensão desagradável e a predisposição à angústia (ou perigo de perda de amor)”
(REICH, 1933, p. 233). A tentativa do masoquista em aplacar a angústia por meio do
amor está sempre fadada a malograr, pois jamais consegue se livrar da tensão
interna, “Assim, o sentimento de sofrimento corresponde a um fato concreto, que é a
51
Não é fácil compreender por que razão o contato corporal com a pessoa
amada tem o efeito de dissolver a angústia. Com toda probabilidade, isso
pode ser explicado pelo fato de , fisiologicamente, o calor corporal, no
sentido acima descrito, e a inervação da periferia do corpo, na esperança de
proteção maternal, dissolverem, ou pelo menos aliviarem, a tensão interna
(REICH, 1933/1998, p.235).
Toda frustração da libido provoca intenções destrutivas que, por sua vez,
podem se transformar facilmente em sadismo, pois este engloba o impulso
libidinal e o destrutivo. Por outro lado, a tendência destrutiva é fortalecida
58
Antítese Descrição
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
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docência, USP, 2015.
______. A interpretação dos sonhos. vol 1.Porto Alegre, RS: L&PM, 2012.
_______. Sobre as Teorias Sexuais das Crianças (1908). In: Delírios e sonhos na
Gradiva de Jensen. Obras Completas de Freud, Edição Standard Brasileira. Rio de
Janeiro: Imago, 1974.
_______. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In: Três ensaios sobre a
teoria da saxualidade, análise fragmentária de uma histeria (“O caso Dora”) e outros
textos (1901-1905). São Paulo : Companhia das Letras, 2016
_______. Caráter e Erotismo Anal. In: Edição Standard das Obras Psicológicas
Completas de Sigmund Freud (1908). Rio de Janeiro: Imago,1976.
_______. Além do princípio do prazer (1920). In: História de uma neurose infantil:
(O homem dos lobos); Além do princípio do prazer e outros textos (1917 – 1920)/
Sigmund Freud; tradução e notas Paulo César de Souza — São Paulo: Companhia
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_______. Sobre as teorias sexuais das crianças (1908). Obras Completas. Rio de
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REICH, W. O caráter masoquista (1932). In: Análise do Caráter (1933). São Paulo:
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________. Drive and Libido Concepts from Forel to Jung (1922). In: Early
Writings vol.I. New York, Farrar, Straus and Giroux, 1975.
________. O caráter masoquista (1932). In: Análise do caráter. São Paulo: Martins
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SILVA, João Rodrigo Oliveira e; ALBERTINI, Paulo. Notas sobre a noção de caráter
em Reich. Psicol. cienc. prof., Brasília , v. 25, n. 2, p. 286-303, jun. 2005 .