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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO

CAMPUS BAIXADA SANTISTA


DEPARTAMENTO DE SAÚDE, CLÍNICA E INSTITUIÇÕES

RUBENS CASAL DEL REY NETO

O CARÁTER MASOQUISTA EM REICH FRENTE AO ALÉM DO PRINCÍPIO DO


PRAZER

SANTOS - SP
2019
RUBENS CASAL DEL REY NETO

O CARÁTER MASOQUISTA EM REICH FRENTE AO ALÉM DO PRINCÍPIO DO


PRAZER

Trabalho de Conclusão de Curso


apresentado ao Curso de Psicologia da
Universidade Federal de São Paulo como
requisito à obtenção do título de bacharel
em Psicologia.

Orientador: Sidnei José Casetto


Coorientador: Marcos Tadeu Cipullo

SANTOS - SP
2019
Ficha catalográfica elaborada por sistema automatizado
com os dados fornecidos pelo(a) autor(a)

Casal Del Rey Neto, Rubens .


N469c O Caráter Masoquista em Reich Frente ao Além do
Princípio do Prazer. / Rubens Casal Del Rey Neto;
Orientador Sidnei José Casetto; Coorientador Marcos
Tadeu Cipullo. -- Santos, 2019.
67 p. ; 30cm

TCC (Graduação - Psicologia) -- Instituto Saúde e


Sociedade, Universidade Federal de São Paulo, 2019.

1. Reich. 2. Freud. 3. Caráter. 4. Pulsão de


Morte. 5. Masoquismo. I. José Casetto, Sidnei ,
Orient. II. Título.

CDD 150

Bibliotecária Daianny Seoni de Oliveira - CRB 8/7469


RESUMO

O debate acerca do caráter esteve presente desde muito cedo no meio psicanalítico.
Durante as três primeiras décadas do séc XX, autores como Wilhelm Reich, Sandor
Ferenczi, Karl Abraham, Alfred Adler e Sigmund Freud abordavam o tema em seus
escritos. Embora Freud tenha sido o primeiro psicanalista a utilizar o termo caráter
em sua obra, cabe dizer que tal termo aparece de forma dispersa, não recebendo
um tratamento conceitual propriamente dito. Foi o psicanalista Wilhelm Reich que
deu ao caráter um aspecto central em suas discussões. Chegando a propor uma
análise do caráter, Reich via neste uma espécie de barreira narcísica que serviria,
dentro do processo analítico, como transferência negativa. É com este viés que
Reich, em sua obra “Análise do Caráter”, publicada em 1933, coloca em debate
aspectos técnicos e teóricos da psicanálise. Dentre tais aspectos, ganham destaque
as colocações feitas sobre o caráter masoquista, na qual Reich demonstra uma forte
oposição frente à hipótese freudiana da existência de um além do princípio do
prazer. Deste modo, objetivou-se, por meio de uma exploração bibliográfica,
investigamos a noção de caráter masoquista em Reich em relação à hipótese
freudiana de um além do princípio do prazer. Nota-se que Reich constrói sua teoria
sobre o caráter com base na primeira dualidade pulsional formulada por Freud
(pulsões sexuals - pulsões do Eu). Para ele a pulsão de morte era uma criação
metafísica que explicava muitas coisas, mas não era capaz de ser explicada. Em
1932, quando amadureceu seu entendimento em relação ao masoquismo, expôs
uma teoria que buscava demonstrar clinicamente a inexistência da pulsão de morte.
Para Reich, aquilo que estava sendo atribuído à pulsão de morte podia ser
entendido dentro do princípio do prazer. O sujeito não busca a destruição por uma
tendência biológica primária que o leva a buscar o sofrimento, mas sim por
consequência de frustrações reais Para Reich a única pulsão existente remete à
vida. As manifestações destrutivas (masoquismo-sadismo) são formações
posteriores que devem a sua existência à miséria neurótica que é propagada por
meio de uma sociedade sexualmente rígida.

Palavras-chaves:​ Reich, Freud, caráter, pulsão de morte, masoquismo.


ABSTRACT

From the very beginning, the discussion regarding the character has always been
present into psychoanalytical field. During the first three decades of the 20th century,
authors as Wilhelm Reich, Sandor Ferenczi, Karl Abraham, Alfred Adler and
Sigmund Freud approached the subject in their writings. Although Freud has been
the first psychoanalyst to use the term character in his works, it is worth mentioning
that such term appears in a dispersed and fragmented way, thereby preventing a
theoretical designation itself. There was the psychoanalyst Wilhem Reich that gave to
the character a central role in his discussions. Even proposing a character analyse,
Reich regarded in this a sort of narcissistic barrier that would serve, within analytical
process, as a negative transfer. With this bias, Reich, in his work “Character
Analyse”, published in 1930, discuss technical and theoretical aspects of
psychoanalyse. Among such aspects, are highlighted the statements about the
masochistic character, in which Reich standards considerable opposition to Freudian
hypothesis of an occurrence of a pleasure principle. Therefore, aimed, through a
bibliographic exploitation, research the masochistic character notion in Reich in
relation to Freudian hypothesis of a beyond pleasure principle. Should be noted that
Reich builds his theory about character based on the first emotive duality developed
by Freud (sexual pulse - self pulse). For him, the death pulse was a metaphysics
creation that could explain a lot of things, however it is unable to be stated. In 1932,
when his understanding concerning the masochistic has matured, showed a theory
which sought clinically demonstrate the absence of the death pulse. For Reich, what
it was being assigned to the death pulse could be understood within the pleasure
principle. The subject does not looking for the destruction due to a primary biological
trend that brought him to seek pain, but actually due to real disappointments. For
Reich, the only existing pulse refers to life. Destructive demonstrations (masochism -
sadism) are following formations that owe their existence to the neurotic misery that it
is spread through a sexually strict society.

Key Words:​ Reich, Freud, Character, Death Pulse, Masochism.


SUMÁRIO

1.1 INTRODUÇÃO​.......................................................................................................5
2. CARÁTER EM REICH​.............................................................................................7
2.1 O caráter neurótico e o caráter Genital: certa idéia de saúde em Reich...............8
2.2 Sobre os mecanismos de formação do caráter....................................................11
2.3 A relação da fobia com a estruturação do caráter................................................13
2.4 A proposta de uma análise do caráter..................................................................13
3. CARÁTER EM FREUD​..........................................................................................16
3.1 Primeiras aparições do termo ..............................................................................16
3.2 O caráter como forma de resistência ao processo análitico………………...…….17
3.3 O caráter e sua relação com as pulsões parciais................................................20
3.4 A dissolução do édipo e os processos identificatórios.........................................21
3.5 Traços de caráter relacionados ao feminino e ao masculino...............................24
4. CARÁTER MASOQUISTA EM FREUD​.................................................................31
4.1 A construção da fantasia masoquista em “Batem numa criança”........................31
4.2 Além do princípio do prazer e a emergência da pulsão de morte........................36
4.3 Masoquismo: caráter ou sintoma?.......................................................................42
5. CARÁTER MASOQUISTA EM REICH​…………………………………...…………..46
5.1 Um caso clínico………………………………………………………………………...47
5.2 Erogeneidade da pele: a proposta de Reich para o masoquismo erógeno……..53
5.3 Formação do caráter masoquista e sua base específica………………..………...54
5.4 O conflito básico do neurótico e a origem do masoquismo……………………….56
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS​…………………………………………………………....60
REFERÊNCIAS​..........................................................……………..............................63
5

1. INTRODUÇÃO

O debate acerca do caráter esteve presente desde muito cedo no meio


psicanalítico. Durante as três primeiras décadas do séc XX, autores como Sandor
Ferenczi, Karl Abraham, Alfred Adler e Freud abordavam o tema em seus escritos.
No meio psicanalítico, o primeiro a falar de caráter foi Freud (ZIMERMAN, 2001).
Embora, a noção de caráter apareça na obra do autor de maneira bastante dispersa,
foi este que trouxe para a psicanálise as primeiras discussões acerca do tema.
Podemos dizer que, mesmo que Freud não tenha estruturado uma teoria sobre o
caráter, tal tema ganha uma importância considerável em alguns de seus escritos
(SILVA & ALBERTINI, 2001).
Um psicanalista que deu ao caráter um aspecto central em suas discussões
foi Wilhelm Reich. Reich fez oficialmente parte do movimento psicanalítico em um
período que se estendeu do ano de 1920 até 1934, quando foi expulso da
International Psychoanalytical Association ​(IPA) ​(WAGNER, 1996). Neste período,
Reich deu a Freud a ideia da criação de um seminário para discutir a técnica
psicanalítica, a qual “Freud aprovou entusiasticamente” (REICH, 1942/1978, p. 61).
No ano de 1922, o “​Seminário sobre a Técnica Psicanalítica da Clínica de Viena” foi
inaugurado, tendo Edward Hitschmann como o primeiro coordenador. Em 1924,
Reich passou a ocupar o lugar de coordenador do seminário, seguindo no cargo até
o ano de 1930 (ALBERTINI, 2015).
No “Seminário sobre a Técnica Psicanalítica da Clínica de Viena” discutia-se,
sobretudo, os casos mal sucedidos, investigando as razões do insucesso
terapêutico. Foi em meio à sua participação nessas discussões que Reich
amadureceu suas concepções teórico-clínicas, permitindo que ele propusesse uma
“análise do caráter” (WEINMANN, 2002).
Ao analisar trabalhos que discutem a relação entre Reich e Freud (REICH,
1933; WAGNER,1996; ALBERTINI, 2015), fomos levados diretamente para o tema
da pulsão de morte, apontando as tensões que tal formulação gerou na relação de
tais autores. A entrada de Reich na “Sociedade Vienense de Psicanálise” ocorre no
mesmo ano da publicação de “Além do Princípio do Prazer”; no entanto o tema da
6

pulsão de morte não aparece diretamente em seu primeiro escrito: “Conceitos de


pulsão e libido de Forel a Jung” ​(192​2). Assim, neste primeiro momento, parece que
Reich não concordou ou não percebeu o impacto da nova proposta de Freud que
sustentava uma oposição entre pulsão de vida e pulsão de morte (REGO, 2005).
Posteriormente, em “O Caráter Masoquista” (1932), Reich crítica diretamente
a ideia de pulsão de morte. No modo de ver reichiano, aquilo que Freud chamava de
pulsão de morte, ou destrutiva, seria, na verdade, fruto da própria pulsão de vida
que, sendo impedida de encontrar um objeto, tornar-se-ia tóxica (WAGNER, 1996).
No que tange às nossas pesquisas, este trabalho parte da hipótese de que o
caráter na teoria de Reich não se relaciona apenas com as colocações feitas por
Freud acerca do caráter; mais que isto, ela encontra suas bases no próprio
arcabouço teórico psicanalítico freudiano. Como apontado nos parágrafos anteriores,
o tema da pulsão de morte parece ganhar um aspecto central nas discussões entre
Freud e Reich. Frente a isso, caminhamos diretamente para a pergunta que norteia o
nosso trabalho: qual o impacto de um além do princípio do prazer sobre a noção de
caráter em Reich? Procurando seguir esta pergunta delimitamos como o objetivo de
nosso trabalho analisar a noção de caráter em Reich em relação à hipótese de um
além do princípio do prazer.
Inicialmente, utilizando como leitura principal o livro “Análise do Caráter”
(1933), investigaremos a forma na qual Reich entende a estruturação do caráter,
assim como as propostas referentes à técnica psicanalítica, que culminaram na ideia
de análise do caráter. Feito isso, localizaremos e discutiremos algumas abordagens
feitas por Freud acerca do caráter. Posteriormente, exploraremos algumas questões
que cercam o tema do masoquismo em Freud (pulsão de morte, masoquismo
erógeno, compulsão à repetição), sendo que, por fim, analisaremos a proposta de
Reich para entender o caráter masoquista.
7

2. CARÁTER EM REICH

Podemos partir do princípio que, para Reich, o caráter é uma estruturação do


1
Eu . Topologicamente, o Eu estaria localizado na fronteira da vida pulsional com o
mundo externo. É em meio ao conflito da pulsão com o mundo externo que o caráter
se forma como uma defesa narcísica.

De início podemos entender que existe um Eu relativamente fraco para lidar


com tal conflito. Desse modo, se faz necessário o uso de mecanismos de defesa, tal
2
como a repressão . Contudo, a repressão gera um problema do ponto de vista
econômico da libido, pois a libido permanece insatisfeita, gerando assim um
represamento das forças pulsionais. Dito de outro modo:

[...] encontraremos, por um lado, desejos genitais extremamente intensos e,


por outro, um ego relativamente fraco, que, por medo de ser punido, procura
se proteger por recalques. O recalque conduz a um represamento das
forças pulsionais que, por sua vez, ameaça aquele recalque simples com
uma irrupção das pulsões recalcadas (REICH, 1933/1998, p. 152).

Ao se colocar frente ao problema econômico da repressão, Reich sustenta a


ideia de que o caráter forneceria certo equilíbrio energético (ainda que neurótico);
em outras palavras, o caráter por si só não seria o problema, mas sim uma tentativa
de resolução do conflito (nisso ele se assemelha ao sintoma neurótico). O sintoma
para Reich seria, em grande parte, uma formação secundariamente necessária, uma
marca do fracasso do caráter em estabelecer o equilíbrio energético.

Dito isto, podemos sintetizar as relações expostas nesse tópico no seguinte


esquema:

1
Quando formos abordar as instâncias psíquicas descrita por Freud em sua segunda tópica (​Ich, Es e
Über-Ich), utilizaremos a denominação de Eu, Id e Supereu. No entanto, no que se refere ​à citações,
deixaremos a forma que foi empregada pelo autor/tradutor.
2
Neste trabalho adotamos o uso do termo repressão, mas mantereremos o termo utilizado nas
citações, frequentemente “recalque”.
8

Um Eu fraco que, com medo de ser punido faz uso da repressão

PULSÃO ↛ OBJETO (MUNDO EXTERNO)

A pulsão é frustrada em seu caminho ao mundo externo

ESTASE

Energia represada em decorrência da repressão

CARÁTER

Cumpre as funções econômicas de aliviar a pressão da repressão e, acima de tudo de fortalecer o


Eu

SINTOMA

O caráter não dá conta de toda a energia e começam a surgir sintomas neuróticos

2.1 O caráter neurótico e o caráter genital: certa ideia de saúde em Reich

Vimos acima que o caráter procura trazer certo equilíbrio energético, sendo
ele a própria resolução do conflito entre as energias pulsionais do Id e o mundo
externo. Contudo, devemos fazer um adendo a isto, pois paga-se um certo preço
para que o caráter se forme, tendo em vista que ele se constitui como uma barreira
protetora entre o interno e o externo. Em outras palavras, ele é um “encouraçamento
do Ego contra os perigos do mundo exterior e as exigências pulsionais recalcadas
do id” (REICH, 1933/1998, p.151).

Mas, enfim, qual o preço que se paga pela formação do caráter? O que seria
esse encouraçamento? Reich o aponta como uma cronicidade defensiva que
impede o sujeito de ter contato com a realidade e, portanto de se pôr em meio à
experiência, obtendo satisfação dela.

Um caráter pode ser mais ou menos rígido, de modo que a sua rigidez e
flexibilidade marca o quanto ele é capaz de obter prazer em suas relações durante a
vida. Um caráter muito rígido agiria de modo crônico e defensivo frente ao mundo
9

externo, restringindo assim sua obtenção de prazer na experiência. Já um caráter


flexível seria capaz de se pôr ao mundo de forma mais aberta, de modo a ter maior
capacidade de fruição e, por conseguinte, uma maior obtenção de prazer. Nas
palavras de Reich:

Em situações de desprazer a couraça se contrai; em situações de prazer ela


se expande. O grau de flexibilidade do caráter, a capacidade de se abrir ou
de se fechar ao mundo exterior, dependendo da situação, constitui a
diferença entre uma estrutura orientada para a realidade e uma estrutura de
caráter neurótico (REICH, 1933/1998, p. 151).

Aqui, vale retomar a distinção que Reich faz entre um caráter neurótico e um
caráter genital. Segundo o autor, todos nós constituímos um caráter, no entanto mais
ou menos flexíveis. É esse grau de flexibilidade e rigidez que determina se um
caráter é neurótico ou genital. Sinteticamente, podemos dizer o caráter genital tem
uma maior capacidade de se abrir ao mundo e à obtenção de prazer, diferente do
caráter neurótico que tende a se fechar, obtendo um prazer miserável advindo de
suas formações defensivas.
Segundo Reich (1933), por meio do combate às resistências advindas do
caráter, podemos liberar os afetos de suas ancoragens e disfarces, assim como
caminhamos em direção à área central do conflito infantil: o complexo de édipo e a
angústia de castração. Isso se deve ao fato do caráter ser uma formação primária
infantil, a qual perdura como um traço atual da personalidade do sujeito. Dito de
outra forma, descobrimos que a couraça do caráter surge na infância em decorrência
“[...] dos mesmos objetivos e razões aos quais a resistência de caráter está
relacionada na situação analítica presente” (REICH, 1933/1998, p.63).
Tomemos como exemplo um homem que se dispõe a se aproximar da mulher
desejada. Seria normal que com isto ele se sinta angustiado, pois o perigo da
reprovação e da frustração é iminente. Um caráter genital sentiria essa angústia, no
entanto ele não recorreria a métodos defensivos para aplacá-la, como aconteceria
no caráter neurótico. No caráter neurótico a angústia seria muito intensa, pois ela
estaria hipercarregada devido à estase libidinal. Frente a tal situação, o sujeito de
caráter neurótico teria que recorrer a atitudes defensivas. Portanto, ele lidaria com a
situação de modo estereotipado conforme a sua própria estruturação do caráter,
podendo então, por exemplo, se constranger a ponto de nem conseguir se aproximar
10

e dizer: “Ela nem era tão atraente, eu sou muito mais!”. Nesse exemplo o sujeito
conseguiria obter alguma satisfação substitutiva no caráter por meio de seu
narcisismo secundário, pois ele é “muito mais atraente”; contudo essa substituição é
miserável, privando-o da experiência e, como em um ciclo vicioso, fomentando ainda
mais o represamento das pulsões. Desse modo existe uma correlação inversa entre
angústia real e angústia de estase, de modo que “quanto mais a angústia real é
evitada, tanto mais forte se torna a angústia de estase e vice-versa” (REICH,
1933/1998, p.168).
Cabe ressaltar que o caráter pode assumir as mais variadas formas de
aplacar a angústia. No nosso exemplo acima o sujeito exerce uma fuga feita na
realidade (ele simplesmente não se aproxima do objeto). Contudo, ele poderia, por
exemplo, ter se aproximado da mulher desejada sob uma atitude de “superioridade”
advinda da própria forma defensiva: “ela nem é tão atraente, eu sou muito mais”.
Desse modo, ele conseguiria diminuir a angústia real e se aproximar de seu objeto
de desejo, o que, no entanto, seria feito sob uma forma defensiva estereotipada e
rígida.
Como notamos em nosso exemplo, a formalização feita por Reich de um tipo
de caráter mais saudável e outro mais adoecido não se constrói de forma polarizada:
aquele que sofre (neurótico); aquele que não sofre (genital). O caráter genital
também sofre, também pode ser agressivo, também pode sentir tristeza, também
pode se angustiar, contudo ele tem um maior domínio racional (Reich utiliza esse
termo) sobre a situação de frustração e perigo do que o caráter neurótico, pois este
não suporta sentir a frustração devido ela ser muito mais intensa por conta da estase
libidinal e de seus conflitos infantis não resolvidos. As saídas que o caráter neurótico
pode ter para lidar com a angústia são restritas, baseadas no seu protótipo infantil.
Segue uma tabela que esquematiza as diferenças entre um caráter neurótico
e um caráter genital para Reich.

Caráter Genital Caráter Neurótico

O sujeito é capaz de obter uma satisfação O sujeito é impotente orgasticamente e incapaz


orgástica da libido e de sublimar suas pulsões de sublimar suas pulsões pré-genitais devido a
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pré-genitais em suas relações sociais. grande quantidade de represamento da libido.

Vive em constante alternância entre tensão e Sofre uma constante estase da libido.
satisfação.

Devido à satisfação da energia proveniente do Devido à insatisfação, a energia represada


Id, o Supereu não se sobrecarrega, se tornando fomenta o Supereu, fazendo com que ele
menos rígido e, por conseguinte, pressiona exerça uma pressão brutal sobre o Eu.
menos o Eu.

Em suas relações não prevalecem os protótipos As relações acontecem com a prevalência do


rígidos da infância. Seu complexo de édipo foi complexo de édipo mal resolvido.
superado e suas relações não têm como base a
repetição de conflitos edípicos.

Em termos de Supereu: Em termos de Supereu:


- Não se opõe à sexualidade. - Se opõe à sexualidade.
- Não se encontra sadicamente carregado - Se encontra sadicamente carregado
devido à estase da libido. devido à estase da libido.
- A libido, sendo satisfeita, não se - A libido, não sendo satisfeita, faz uso
esconde nos empenhos do Eu ideal. do Eu ideal como prova de potência.

Em termos de Eu: Em termos de Eu:


- Ausência de sentimento neurótico de - O Eu só consegue obter alguma
culpa. satisfação quando acompanhada de
- Capaz de sublimar empenhos culpa. O ato sexual é concebido como
pré-genitais, satisfazendo-os e algo sujo.
sublimando a agressão natural em suas - O Eu é adulador do Supereu e inimigo
realizações sociais. do Id, mas ao mesmo tempo flerta com
o Id e se rebela secretamente contra o
Supereu.
- As relações com o mundo externo são
artificiais. O sujeito não consegue
tornar-se uma parte harmoniosa e
entusiástica das coisas, por conta de
lhe faltar a capacidade de uma
experiência completa.

2.2 Sobre os mecanismos de formação do caráter

A estruturação do caráter, como pudemos ver anteriormente, se constitui no


período da infância, em um momento no qual o Eu é relativamente fraco para lidar
com a pressão das pulsões e a sua relação frustrante com o mundo externo.
Reich aponta a timidez como um primeiro sinal de estruturação de caráter.
Contudo, essa primeira transformação do Eu não basta para dominar a pulsão; pelo
contrário, ela gera mais angústia. Com isso “[...] torna-se necessária uma
12

transformação adicional do ego: os recalques têm de ser cimentados, o ego tem de


se enrijecer, a defesa tem de assumir um caráter cronicamente operante e
automático” ​(REICH, 1933/1998, p.150). Tal enrijecimento do ego se dá por meio
dos seguintes mecanismos:

1. O sujeito se identifica com a realidade repressiva e frustrante, representada


pela imagem da principal pessoa repressiva (“Tenho de me controlar como
meu pai me disse”).
2. O sadismo que foi endereçado para a pessoa repressiva retorna contra si
mesmo.
3. Comporta-se de forma reativa contra seus empenhos sexuais, ou seja,
utiliza a própria energia desses empenhos para evitá-los.

Como já exposto, o caráter pode ser considerado uma solução crônica


ancorada no Eu para lidar com o conflito pulsão x realidade. Tal solução pode
variar de acordo com a fase em que a pulsão é frustrada, assim como a
intensidade e frequência das frustrações. Outro ponto a ser levado em conta
3
são as contradições que o sujeito experimenta.
Assim, nota-se que Reich dá grande ênfase ao aspecto ambiental e
social da neurose. Seu raciocínio nos leva diretamente para o problema da
miséria sexual da sociedade, que trata a sexualidade de forma rígida e
repressora, respondendo com severidade as primeiras manifestações sexuais
das crianças. Sobre os aspectos descritos no parágrafo acima, Reich comenta
“essas condições são determinadas pela ordem social dominante no que diz
respeito à educação, moralidade e satisfação das necessidades, em última
análise, pela estrutura econômica vigente na sociedade” (REICH, 1933/1998,
p.156).

3
Um exemplo disto será visto em: “5.3 A formação do caráter masoquista e sua base específica” (p.
57).
13

2.3 A relação da fobia com a estruturação do caráter

Tomando como exemplo o caso Hans, podemos dizer que a vivência da


sexualidade infantil despertou o temor de castração e, por conseguinte, uma intensa
angústia que foi deslocada para um objeto no mundo externo – o cavalo –
desencadeando o desenvolvimento de uma fobia (FREUD, 1909/2015).
Podemos pensar na fobia como um sintoma que se sobressai na infância
devido ao fato do sujeito estar elaborando conflitos relativos à sua sexualidade, o
que faz desse momento um período de intensa angústia. Nesse sentido, tanto a
fobia quanto o traço de caráter são apontados por Reich como soluções para a
angústia infantil. No entanto, seus mecanismo são opostos, pois:

Uma fobia corresponde a uma cisão da personalidade; por outro lado, a formação de
um traço de caráter corresponde a uma consolidação da personalidade. O segundo
caso é uma reação sintetizadora do ego a um conflito da personalidade que não
pode ser mais suportado (REICH, 1933/1998, p.192).

Reich coloca a fobia como uma forma natural de dominar a angústia que
precede o encouraçamento do caráter. Trata-se de mais uma tentativa do princípio
do prazer aplacar o desprazer. Diferente do caráter, no qual o conflito encontra certa
assimilação no próprio Eu, na fobia o sujeito experimenta uma cisão, de modo que
os conteúdos aflitivos são projetados em um objeto externo. Ao fazê-lo, a criança
passa a obter algum tipo de controle e, por conseguinte, alívio.
Embora o traço de caráter e a fobia sejam, em alguns aspectos, opostos, algo
eles têm de semelhante: ambos configuram uma tentativa de evitação. Dessa forma,
o encouraçamento do caráter também gera certa evitação de contato.
Exemplificando isso, Reich diz:

A pose de nobreza de nosso “aristocrata”, o bloqueio afetivo de nosso


caráter compulsivo, a polidez do caráter passivo-feminino não são
naturalmente outra coisa senão atitudes de evitação, da mesma maneira
que a fobia que as precede” (REICH, 1933/1998, p. 192)​.

De certo tal postura pode ser localizada dentro do próprio ​setting analítico, na
forma evitação de conteúdos angustiantes. Dessa forma o caráter possibilita certo
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distanciamento dos conteúdos aflitivos que surgem no processo analítico,


funcionando como uma resistência ao avanço do processo da análise. O tema da
resistência será desenvolvido no tópico a seguir, no qual será discutida a proposta
de análise do caráter.

2.4 A proposta de análise do caráter

Para Reich, em um início de análise, o analista deve sempre desconfiar de


uma transferência positiva, pois por trás dela quase sempre se apresenta uma
transferência negativa latente. Segundo ele, “o neurótico tem todas as razões,
devido à sua repressão, para dar um valor especialmente alto à polidez e às
convenções sociais e fazer uso delas como meios de proteção” (REICH, 1933/1998,
p.42).
Dois grandes pontos são localizados por Reich como o motivo para o fracasso
de uma análise: um era o que ele chamava de “situação analítica caótica” e o outro
era a lembrança desacompanhada de afeto.
Na situação analítica caótica o analista se vê perdido em meio aos diversos
conteúdos que foram despertados pelo paciente, um embaraço que seria causado
por uma análise não sistemática, na qual o analista busca analisar os conteúdos
sem critério algum. Nela, o próprio analista começa achando que está indo muito
bem devido à grande quantidade de material que se apresenta, mas logo se vê
perdido, sem saída em meio ao conteúdo, que logo passa a servir de resistência
para o processo analítico.
Além da situação caótica em um processo de análise, Reich relata um outro
grande motivo para o fracasso analítico: a ausência de afeto. Como o autor traz,
uma das razões para que aqueles que, mesmo com um profundo trabalho de
recordação, não produzem nenhum sucesso, é o fato de sua paralisia afetiva não
receber a devida atenção. Dito de outro modo, o paciente recorda, mas não se afeta.
É no bojo de tais discussões que Reich formula sua ideia de análise do
caráter ​(WEINMANN, 2002)​. Isso se deve ao fato de que, para este autor, o caráter
foi desenvolvido a partir de uma base neurótica e, por conseguinte, também é parte
da neurose, funcionando como uma “barreira narcísica” (REICH, 1933/1998). Desse
15

modo o autor reconhece que se “[...] a neurose sintomática está sempre enraizada
num caráter neurótico, então é claro que, em toda análise, estamos lidando com
resistências que são manifestações de um caráter neurótico” (REICH, 1933/1998 p.
54).
Desse modo, com certa semelhança ao dito por Freud em “Alguns tipos de
caráter encontrados no trabalho psicanalítico (1916)”, Reich localiza no caráter um
importante obstáculo clínico, pois em meio a ele se fazem presentes intensas formas
de resistência. Frente a isso, Reich se perguntava: “Como podemos fazer que um
paciente reaja? Como podemos fazer que ele se revele?” (HIGGINS & RAPHAEL,
4
1970, p.52, tradução nossa).
A resposta dada por Reich é que, para que uma análise ocorra, deve-se
primeiro atentar-se às resistências advindas do caráter. Resistências que se
apresentam devido à funcionalidade que o caráter tem para o sujeito, pois por meio
dele alcança-se um certo equilíbrio, ainda que neurótico, “equilíbrio este para qual a
análise constitui um perigo” (REICH, 1933/1998).

4
​ Co​mo podiamos conseguir que reaccionara un paciente? ​¿Co​mo conseguiriamos que se
“¿
​ IGGINS & RAPHAEL, 1970, p.52).
expresara?”(H
16

3. CARÁTER EM FREUD

De início, tentamos encontrar a definição de caráter na obra de Freud.


Contudo, foi em meio a esta tarefa que chegamos a uma primeira constatação
importante sobre o tema: o termo caráter aparece de tal modo na obra freudiana que
se furta a uma única definição. Na mesma direção, Silva sustenta a ideia de que:

[...] caráter é um termo que aparece disperso na obra freudiana. Não tem
uma presença contínua e parece-nos difícil reconhecer, em Freud, uma
teoria do caráter propriamente dita (diferentemente do que ocorre com a
teoria das pulsões, por exemplo)” (SILVA, 2005, p.288)

​Ao encontro de Silva (2005), Bernardes em sua tese: “A concepção freudiana


do caráter” (2005) diz o seguinte: “nossa intenção neste estudo não foi a de chegar a
uma concepção precisa sobre o caráter, pois sabíamos de antemão ser isto uma
tarefa impossível” (BERNARDES, 2005, p.173). ​Sendo assim, caminhando na
mesma perspectiva de Bernardes (2005), abdica-se da procura de uma definição
única para o termo caráter na obra de Freud, de modo a buscar apreciá-lo nos
contextos em que o termo é empregado, percorrendo assim alguns deles.

3.1 Primeiras aparições do termo caráter

A primeira aparição do termo “caráter” nos textos freudianos foi em “Estudos


sobre a Histeria” (1893-1895). O caráter aparece como um conjunto de
características pessoais como a desobediência, a ambição etc. Nesse momento, o
caráter não ganha uma vinculação direta com a teoria, mas aparece apenas de
forma descritiva, intimamente ligado ao uso comum e moral do termo (SILVA &
ALBERTINI, 2001).
Posteriormente, vale ressaltar um trecho de 1900 localizado em “A
interpretação dos sonhos”, no qual Freud relaciona o caráter com traços de memória
da primeira da primeira infância. Segundo ele:
17

Aquilo que descrevemos como nosso caráter acha-se baseado nos traços
de memória de nossas impressões que causaram o maior efeito em nós - as
de nossa primeira infância - são precisamente aquelas que dificilmente se
tornam conscientes (FREUD, 1900/2012, p. 576).

Embora o trecho acima traga a afirmação de que os traços de caráter são


baseados em impressões da primeira infância, o tema não ganha um
desenvolvimento ao longo do texto, deixando tal afirmação aberta a interpretações.

​3.2 O caráter e sua relação com as pulsões parciais

Discutindo o legado deixado por Freud acerca do caráter, Kaufmann (1996)


sustenta a opinião de que tal noção se apoia em uma dupla hipótese: a da
“sobrevivência de uma organização pulsional pré-genital e do destino atribuído a
essa formação na história do sujeito” (KAUFMANN, 1996, p.75).
Notamos outros autores defendendo concepções semelhantes, como
Zimmerman, que em seu vocabulário contemporâneo de psicanálise (2001), indica
duas principais abordagens feitas por Freud acerca da noção de caráter.
Primeiramente, a noção de caráter descrita em “Três Ensaios sobre a Teoria da
Sexualidade” (1905), que está relacionada com o desenvolvimento psicossexual da
criança, e suas respectivas fixações (oral, anal e fálica). Dentro dessa mesma
abordagem encontra-se “Caráter e Erotismo anal” (1908), na qual o autor defende
que Freud privilegia o Id, sob a afirmativa de que o caráter, em sua configuração
geral, se forma a partir da pulsão. Em um segundo momento, a partir de “​O Eu e o
Id”, Freud começa a atribuir um maior peso ao Eu, passando a atrelar o caráter “às
representações, às identificações, e aos mecanismos defensivos” (ZIMERMAN,
2001, p. 63).
Neste tópico nos interessa o primeiro apontamento feito por Zimmerman,
aquele que relaciona o caráter ao desenvolvimento psicossexual. O segundo, por
5.
sua vez, será abordado adiante, em um capítulo à parte
Além dos textos já citados, Silva e Albertini (2001) destacam que, se em
“Caráter e Erotismo anal” (1908) Freud enfatiza a força do erotismo como elemento
fundante da constituição do caráter, em “Moral sexual civilizada e doença nervosa

5
Item 4.4 A dissolução do édipo e os processos identificatórios
18

moderna (1908)” segue-se o caminho oposto, dando maior ênfase na força da


repressão moral da sociedade sobre o aparato pulsional. Ainda cabe ressaltar que,
na visão desses autores, isto não deve ser visto de forma antagônica, mas sim como
duas extremidades diferentes do conflito entre as pulsões sexuais e a repressão
(SILVA & ALBERTINI, 2001).
Ao encontro da opinião de Zimmerman e Kaufmann, localizamos uma forte
relação feita por Freud entre o termo caráter e as pulsões parciais.
Para entender tal concepção do caráter, devemos nos ater ao fato de que
Freud defende que a sexualidade humana é marcada por um período pré-genital.
Nesse sentido, em um olhar freudiano, a criança desenvolve zonas erógenas além
das genitais, sendo que, por um período, as excitações em tais zonas preponderam.
As principais zonas erógenas descritas por Freud foram a boca e o ânus. Tais
zonas tem sua erogeneidade desenvolvida devido a estarem intimamente ligadas às
satisfações de necessidades básicas do sujeito, como a alimentação e a excreção.
Diz-se, portanto, que o prazer associado a tais zonas erógenas está apoiado na
pulsão de autoconservação.
Pode-se pensar que o bebê humano, diferente de algumas outras espécies,
nasce incapaz de cuidar do seu próprio corpo. Assim, sendo por um longo tempo
incapaz de sobreviver sozinho, cabe o intermédio de uma outra figura - um adulto -
que exerça o cuidado das funções básicas necessárias para a sobrevivência do
bebê.
Caminhando nesse sentido, pode-se dizer que a necessidade de nutrição e a
necessidade de esvaziar o intestino se tornam fontes endossomáticas que apoiam a
erotização da área da boca e do ânus, respectivamente. Desse modo, a saciedade
da fome, atingida por meio da sucção é acompanhada de uma sensação de prazer,
que posteriormente se tornará autônoma em relação ao seu apoio, se caracterizando
como uma pulsão parcial. Um exemplo é o ato de sugar os dedos, que embora não
satisfaça uma necessidade de nutrição, é capaz de promover prazer.
Como dito anteriormente, um texto que marca tal concepção foi "Caráter e
erotismo anal”, publicado em 1908. Nele Freud enfatiza que características como a
ordem, a parcimônia e a obstinação com frequência são resultados da sublimação
do erotismo anal. Desse modo, concluiu que os traços de caráter “são ou
19

prolongamentos inalterados dos instintos originais, ou sublimação desses instintos,


ou formação reativa contra os mesmo” (FREUD, 1908/1996, p.164). Neste sentido:

Quando bebês, parecem ter pertencido ao grupo que se recusa a esvaziar os


intestinos ao ser colocado no urinol, porque obtém um prazer suplementar do ato de
defecar, pois nos revelam que em anos posteriores gostavam de reter as fezes, e se
lembram - embora atribuam o fato mais facilmente em relação a irmãos e irmãs do
que a si mesmos - de ter feito toda uma série de coisas indecorosas com suas fezes
(FREUD, 1908/ 1996, p.160).

O termo sublimação é empregado em outros meios além do psicanalítico. Na


química ele significa a mudança de um corpo em estado sólido para o gasoso. O
termo também carrega consigo uma referência a palavra "sublime", correspondendo
a algo grandioso ou valorizado socialmente. No tocante à psicanálise, Laplanche e
Pontalis ​(1968/2001) alegam que Freud não chega a conceituar uma teoria da
sublimação. Entretanto, o termo ganha utilização em diversos momentos da obra de
Freud. Em 1905 o termo foi usado por Freud para fazer referência às atividades
humanas não relacionadas diretamente com a sexualidade, tais como a atividade
literária, artística e intelectual que, por sua vez, retiram sua força da pulsão sexual
(ROUDINESCO & PLON, 1998).
A formação reativa tem como marca uma atitude, sentimento ou então um
hábito que se forma no sentido oposto a um desejo reprimido. Desse modo, na
formação reativa o que está em jogo é uma reação contra um desejo reprimido que
se constrói por meio de uma exacerbação de seu par oposto, como, por exemplo, a
vergonha em contraste com o exibicionismo ou o ódio em contraste ao amor. Pelo
caminho da formação reativa passa a relação do caráter e o erotismo anal, pois “A
limpeza, a ordem e a fidedignidade dão exatamente a impressão de uma formação
reativa contra um interesse pela imundície perturbadora que não deveria pertencer
ao corpo” (FREUD, 1908/ 1996, p.161).

Aos prolongamentos inalterados das pulsões pode-se pensar na perversão.


6
Contudo, como veremos adiante ​em “Uma criança está sendo espancada" esta

6
Item 4.2 A construção da fantasia masoquista em “Batem numa criança”
20

posição reducionista não mais se sustenta, pois a perversão também passa a ser
situada no campo do complexo de Édipo e do recalque" (BERNARDES, 2005 p.59).
Em 1917, no escrito "Transformações dos instintos, em particular no erotismo
anal", Freud retoma a discussão de 1905 sobre a analidade e o caráter. No entanto,
nesse texto passa-se a discutir o aspecto simbólico que se relaciona com a
analidade. Tem-se a ideia de que no ato de defecar o bebê tem de abandonar o
prazer autoerótico advindo da retenção das fezes. O cocô, sendo ele um objeto
produzido com prazer pela própria criança, torna-se o equivalente simbólico a um
presente, o qual é destinado a um adulto em troca de amor. Nesse sentido o bebê
tem que decidir entre o narcisismo primário ligado ao autoerotismo e o amor pelo
objeto.
A defecação proporciona a primeira oportunidade em que a criança deve
decidir entre uma atitude narcísica e uma atitude de amor objetal. Ou
reparte obedientemente as suas fezes, ‘sacrifica-as’ ao seu amor, ou as
retém com a finalidade de satisfação auto-erótica e, depois, como meio de
afirmar sua própria vontade. Se faz essa última escolha, estamos na
presença de um desafio (obstinação) que, por conseguinte, nasce de um
apego narcísico ao erotismo anal” ​(FREUD, 1917/2010 p.139)​.

Um aspecto que vale ser ressaltado é que tais traços de caráter são
egossintônicos, ou seja, não são vistos como um problema para o próprio sujeito
que, por sua vez, tende a nem notá-los ou vê-los como uma caraterística de si. Em
contraponto ao traço de caráter, os sintomas frequentemente são destoantes em
relação ao sujeito, que tende a ver nele um empecilho sem sentido. Assim, pode-se
dizer que os sintomas são egodistônicos.
Portanto, levando em conta os apontamentos feitos acima, nota-se que Freud,
em alguns momentos de sua obra, relaciona o caráter com as pulsões parciais,
dando grande ênfase aos processos de sublimação e formação reativa.

3.3 O caráter como resistência no processo analítico

É no ano de 1916, no texto “Alguns tipos de caráter encontrados na trabalho


psicanalítico” que Freud reconhece no caráter uma possível dificuldade para o
tratamento psicanalítico. Neste texto, apesar de não se aprofundar na discussão,
21

Freud parece localizar no caráter uma possível fonte de resistência para a clínica do
sintoma. Segundo ele, no tratamento o médico não deve levar em conta apenas o
caráter, sendo que, mais que isso, ele deve se voltar em grande parte para o
sintoma e suas vicissitudes. Contudo, ao mesmo tempo ele enfatiza que “existem
resistências que o enfermo lhe opõe, e que tais resistências podem ser atribuídas ao
caráter do enfermo. Então é esse caráter que reclama primeiramente o seu
interesse” (​FREUD, 1916/2010,​ p.191).
Nota-se, portanto, que já no ano de 1916, Freud indicava que o caráter podia
funcionar como resistência para o processo analítico.

3.4 A dissolução do édipo e os processos identificatórios

Uma quarta possibilidade que se abre ao falar de caráter em Freud: trata-se


da relação deste com o complexo de édipo. É verdade que o tema do complexo de
édipo, em certa medida, atravessa outras abordagens do tema do caráter, de modo
que algo dele perpasse os demais tópicos deste trabalho, como se verá no próximo,
“Caráter e sua relação com o feminino e masculino”. O tema das identificações e o
tema da dissolução do complexo de édipo têm uma forte ligação, pois, dentre outros
motivos, toda dissolução edípica envolve abandono objetal e, por consequência,
processos identificatórios. Cabe ressaltar que, para além do aspecto identificatório,
como veremos, a dissolução do complexo de édipo é permeada por aspectos
conflitivos que marcam o sujeito de tal maneira que enraízam-se no seu caráter.
Além de “Caráter e erotismo anal”, no ano de 1916 Freud publica um outro
texto que trata diretamente do tema do caráter, sendo ele nomeado de: “Alguns tipos
de caráter encontrados no trabalho psicanalítico”. Nele, alguns tipos de caráter são
descritos, os quais foram denominados de: as exceções; os que fracassam no
triunfo; e os criminosos por sentimento de culpa. Para explicitar tais tipos, Freud
7
recorre fortemente à literatura, utilizando como exemplo os personagens Ricardo III

7
Ricardo III é uma peça baseada na figura verídica do rei da Inglaterra Ricardo III. Tal peça é de
autoria de William Shakespeare, e sua publicação data de um período entre 1592 e 1593
(​SHAKESPEARE, W. ​Ricardo III​. São Paulo: Imprensa Oficial - SP (IMESP), 2006).
22

8 9
e Lady Macbeth, de Shakespeare , e Rebecca, personagem criada por Ibsen . Além
da literatura, algumas vinhetas clínicas também são utilizadas.
Nos sujeitos que se comportam como se fossem exceções, Freud localizou
um intenso sentimento de injustiça. Tais sujeitos se posicionavam como
prejudicados, irritados perante a natureza e ao destino por desvantagens congênitas
e infantis. Além disso, Freud alega que nesses doentes sua neurose “ligava-se a
uma vivência ou um sofrimento que haviam tido nos primeiros anos da infância, do
qual sabiam serem inocentes e que podiam considerar uma injusta desvantagem
para sua pessoa” (FREUD, 1916/2010, p.193). ​Essas desvantagens fazem com que
esses sujeitos pensem que “já sofreram e renunciaram o bastante, que têm direito a
serem poupados de outras requisições, que não se sujeitam mais a qualquer
necessidade desagradável, pois são exceções e pretendem continuar a sê-lo”
(FREUD, 1916/2010, p.192). ​Aqui o exemplo literário dado por Freud é de Ricardo
III, personagem que se constrói como uma espécie de vilão, se vendo no direito de
cometer crueldades. Freud explicita sua hipótese citando uma fala do próprio
personagem Ricardo III, o qual diz:

A natureza cometeu uma grave injustiça comigo, ao me negar as belas


proporções que conquistam o amor humano. A vida me deve por isso uma
reparação, que eu tratarei de conseguir. Eu tenho o direito de ser uma
exceção, de não me importar com os escrúpulos que detêm os outros.
Posso ser injusto, pois houve injustiça comigo (SHAKESPEARE apud
FREUD, 1916/2010, p.194).

O segundo tipo de caráter trabalhado por Freud se baseia nas pessoas que
adoecem perante ao triunfo. Utilizando o exemplo da personagem Rebbeca, da peça
Rosmersholm de Henrik Ibsen, Freud enfatiza a dificuldade que a personagem tem
quando finalmente consegue se casar com Rosmer. A própria personagem diz: “É
justamente isso o mais terrível, que agora ​— quando toda a felicidade do mundo me
é entregue nas mãos ​—​, eu me tenha tornado uma pessoa cujo caminho para a

8
Lady Macbeth é uma personagem da peça teatral Macbeth, escrita por Shakespeare. A data da
publicação não é exata, sendo motivo de discussão entre os estudiosos da peça, que atribuem um
período situado entre ​1603 e ​16​11 ​(SHAKESPEARE, W. Macbeth. In: ​Shakespeare – tragédias​, vol.
I. Trad. de F. Carlos de Almeida Cunha Medeiros e Oscar Mendes. São Paulo: Abril Cultural, 1978)​.
9
Rebecca é personagem de uma peça escrita pelo dramaturgo norueguês Henrik Ibsen. Sua
publicação data de 1886 (​IBSEN, Henrik. ​Quando despertarmos de entre os mortos​/Rosmersholm.
Rio de Janeiro: ​Editora Globo​, 1985).
23

felicidade é obstruído pelo próprio passado” (FREUD, 1916/2010, p.206).​. Sem


entrar nos pormenores da história, cabe dizer que Freud relaciona a trama com um
sentimento incestuoso proveniente do complexo de édipo, que se relacionava à
fantasia de matar a mãe e tomar o seu lugar perante o pai. Nas palavras de Freud:
“ela estava sob o domínio do complexo de Édipo, ainda que não soubesse que no
seu caso essa fantasia geral se convertera em realidade” (FREUD,1916/2010,
p.211).
O terceiro tipo de caráter descrito por Freud ​— ​“Os criminosos por sentimento
de culpa” ​— , assim como os outros dois, encontra suas raízes na trama edípica
infantil. Freud relaciona o sentimento de culpa com o desejo de matar o pai e ter
relações sexuais com a mãe; nesse sentido o sentimento de culpa inconsciente seria
como um propulsor de uma certa necessidade de ser castigado. O raciocínio
utilizado por Freud parece ser inverso ao que poderíamos chamar de mais óbvio,
pois nesses sujeitos a culpa predomina antes do delito, sendo que posterior ao ato
criminoso tem-se a sensação de alívio. Mas qual seria esse alívio? A resposta é:
alívio da culpa inconsciente. Dessa forma, é a culpa inconsciente que impulsiona o
sujeito a cometer um delito e, por consequência, ser castigado, obtendo assim,
10
algum tipo de alívio .
Conjectura-se assim, baseado nos exemplos trazidos por Freud no texto de
1916, que o caráter se relaciona a conflitos advindos do édipo. Conflitos que, por sua
vez, não se dissolvem completamente e tendem a se repetir nas relações
posteriores. Aqui o caráter se mostra intimamente ligado à história do sujeito,
funcionando como uma solução para sentimentos advindos de conflitos infantis
ligados ao complexo de édipo. Assim, apelando para uma síntese didática, pode-se
dizer: “Permito me comportar como um vilão, pois me sinto injustiçado” (as
exceções); “Furto-me ao prazer do triunfo, devido à culpa inconsciente (os que

10
​Se inicialmente o bebê é uma majestade ​(FREUD, 1914/2010)​, posteriormente o mesmo passa a
ver o seu trono ameaçado. Podemos pensar na entrada no édipo com a inserção de uma terceira
figura na relação dual mãe-bebê, em outras palavras, quando a relação de completude que se cria
entre o bebê e a sua mãe ganha um novo personagem, inaugurando então uma dinâmica triangular.
Assim, a entrada no édipo do menino se dá pela inserção de um rival na sua relação com a mãe: o
pai. Nesse sentido, é sob a égide de uma rivalidade com o pai que o menino vai temer ser castrado
pelo mesmo, se encontrando em uma posição conflituosa frente ao seu desejo pela mãe. O conflito
se instaura entre os seus desejos libidinosos dirigidos à figura materna e o interesse narcísico que o
mesmo dirige a seu pênis, o qual é a ameaçado pela figura do pai castrador. Desse modo o complexo
de édipo no menino encontra seu declínio.
24

fracassam no triunfo); “Cometo crimes a fim de aliviar a minha culpa inconsciente”


(criminosos por sentimento de culpa).
Já a outra perspectiva referente ao caráter que localizamos e situamos
diretamente ligada ao tema do édipo, data do ano de 1923, no qual Freud parece
aproximar do Eu a noção de caráter. Trata-se da perspectiva adotada no texto "O Eu
e o Id", no qual Freud indica a importância da história das escolhas objetais sobre a
formação do caráter, alegando "[...] caráter do Eu é um precipitado dos
investimentos objetais abandonados, de que contém a história dessas escolhas de
objeto" (FREUD, 1923/2010, p.26).
Embora tais noções pareçam se aproximar devido a ambas se relacionarem à
história das escolhas de objetos, cabe dizer que, em contraste com a abordagem de
1916, em o “O Eu e o Id”, Freud parece indicar uma identificação mais direta com os
objetos. Assim, parece que o que o autor pontua é que, ainda que o sujeito
abandone certa relação objetal, alguma característica do objeto perdido tende a ser
assimilada ao caráter do próprio sujeito, como uma identificação.
Em suma, ambos os textos, cada um à sua maneira, nos revela um Freud que
pensa o caráter a partir da trama edípica. Em “Alguns tipos de caráter encontrados
no trabalho psicanalítico”, isso se evidencia em relação a sentimentos advindos de
conflitos infantis que acabam tendo como desfecho a formação do caráter do sujeito.
Em “O eu e o ID”, Freud, por sua vez, liga o caráter com a identificação com objetos
que foram investidos e posteriormente abandonados. Em ambas perspectivas, o que
Freud parece levar em conta é que tais objetos, embora abandonados, constituem
parte da história do sujeito, de suas relações, de suas identificações e, por
conseguinte, de seu próprio caráter.

3.5 Caráter e sua relação com o feminino e masculino

O termo caráter aparece, por vezes, ligado à condição de masculino e


feminino. Sabe-se que tal tema em Freud é demasiadamente complexo e que
abordar a questão em um sub-capítulo constitui-se em um grande desafio. No
entanto, evidenciou-se que os traços de caráter e a feminilidade/masculinidade
25

aparecem como questões importantes na obra de Freud, de modo que, ao falar de


caráter, isso não possa passar despercebido.
Em “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” (1905), o tema do caráter
aparece ligado à masculinidade na discussão sobre a inversão. Nele Freud diz o
seguinte:

O hermafroditismo psíquico ganharia em consistência, se a inversão do objeto


sexual fosse acompanhada ao menos de uma mudança paralela dos demais
atributos psíquicos, instintos e traços de caráter, conforme a alteração típica do
outro sexo. Entretanto, podemos esperar uma inversão de caráter desse tipo, com
alguma regularidade, apenas nas mulheres invertidas; nos homens, a plena
masculinidade psíquica é compatível com a inversão ​(FREUD, 1905/2016, p. 30​).

Aqui fica implícita a referência feita por Freud de um caráter masculino e um


caráter feminino. Além disso, utiliza também, no decorrer do texto, termos como
“​caráter psíquico da masculinidade” e “traços psíquicos propriamente femininos”.
Contudo, fica a pergunta: para Freud, o que são traços de caráter femininos e
masculinos? Ainda nos Três ensaios sobre a Teoria da Sexualidade, obtemos uma
pista:

Entre os gregos, em que aparecem entre os invertidos os homens mais masculinos,


está claro que não era o caráter masculino do garoto, mas sua semelhança física
com a mulher, assim como os seus atributos psíquicos femininos, a timidez, a
reserva, a necessidade de instrução e ajuda, que acendiam o amor do homem. Tão
logo o menino se tornava um homem, cessava de ser um objeto sexual para o
homem e tornava-se talvez ele próprio um amante de garotos (FREUD, 1905/2016,
p.33).

No trecho acima, ao descrever como atributos femininos a timidez, reserva e


a necessidade de ajuda e instrução, Freud parece designar à feminilidade
características socialmente instituídas. Contudo, nota-se como, nos Três ensaios
sobre a Teoria da Sexualidade, Freud, embora utilizando concepções e
nomenclaturas datadas, como o termo inversão e hermafroditismo psíquico, acaba
por questionar certo discurso da psiquiatria da época, defendendo, por exemplo, a
existência de uma sexualidade ainda na infância. Assim o Freud dos Três Ensaios
parece caminhar por dentro do discurso da psicopatologia sexual, mas ao mesmo
26

tempo apontar para fora dela, promovendo rompimentos e propondo novas


11
concepções .
Uma vez que já localizamos alguns traços que Freud nomeou de femininos e
masculinos, uma indagação importante a ser feita seria: de que lugar Freud tira tais
noções de traços de caráter feminino e masculino? Afinal, para ele, tais traços
emergem da natureza da feminilidade/masculinidade, do âmbito social ou do âmbito
psíquico?
Em uma nota de rodapé acrescentada em 1915 nos três ensaios, Freud
desmembra a questão em três sentidos: para ele o termo aparece “ora no sentido de
12
atividade e passividade, ora no sentido biológico , e também no sociológico”
(FREUD, 1905/2016​, p.139), alegando que o primeiro é o de maior proveito para a
psicanálise. Para adentrar na questão, peguemos o fio da sexualidade infantil.
Em 1924, Freud vem a afirmar que “anatomia é destino”, afirmação que
solicita maior detalhamento. Ao afirmar que anatomia é destino, o apontamento de
Freud nada tem a ver com uma tendência natural atribuída à condição biológica, pois
o que está em jogo é um desfecho edípico e, no caso da menina, pré-edípico.
Portanto, tal afirmação se aproxima da ideia de que não nascemos como uma tabula
rasa a ser preenchida, mas sim com um corpo que pulsa e, desse modo, nos
convoca desde muito cedo à significação. Assim sendo, é dentro de um cenário que
a criança busca respostas, procurando articular lugares com os personagens que lhe
são oferecidos. Tudo isso de maneira intensa, pois, afinal, é por dentro da trama que
a criança se localiza e o lugar em questão é o seu próprio.
Somos levados por Freud a pensar algumas indagações e formulações
tipicamente infantis, as quais ganham o nome de teorias sexuais infantis. Teorias,
pois são explicações construídas, se tratando de um conteúdo ficcional. ​Sexuais,
devido a responderem a questões que movimentam excitações no corpo do próprio
sujeito.

11
​Ainda nos Três ensaios sobre a Teoria da Sexualidade, em uma nota de rodapé acrescentada em
1915, Freud passa a utilizar o termo homossexual, sendo que, posteriormente, em 1920, é
acrescentada uma outra nota que defende o uso do termo “homoerotismo”, proposto por Ferenczi.
Ademais, Freud defende a existência de dois tipos de homoerotismo: o homoerótico no sujeito, que
se sente e se comporta como mulher, e o homoerótico no objeto, que é viril e apenas troca o objeto
feminino por um do mesmo sexo.
12
Na concepção biológica o que está em jogo é a atividade do espermatozóide masculino em
contraponto ao óvulo feminino (FREUD, 1905/2016).
27

Para fins deste tópico, podemos citar três teorias sexuais infantis descritas por
Freud: a teoria do nascimento cloacal; a concepção sádica do coito; a ideia de que
todos os seres humanos, inclusive os seres femininos, têm um pênis. Essas três
concepções infantis nos interessam por elas terem em comum o fato de serem
atravessadas por uma única temática: a diferenciação sexual.
A noção de que os bebês são trazidos por uma cegonha ou que eles nascem
pelo ânus, assim como as fezes, foi descrita por Freud como uma fantasia infantil
comum. Não raro após a chegada de um irmão essa pergunta é reanimada por
intensos sentimentos de inveja e ciúmes de modo que a pergunta se transforma em
“De onde vem este bebê intrometido?” junto a: “Que a cegonha o leve de volta!”
(FREUD, 1908/1974, p. 147).
Outra fantasia infantil localizada por Freud é a interpretação da cena sexual
como algo agressivo. A criança, ao ter contato com um conteúdo sexual adulto (o
coito dos pais), pode interpretá-lo como sádico. Nesse caso, frequentemente é a
figura paterna que é vista como o agente agressor. É verdade que Freud alerta para
o fato de que a cena sexual nem sempre é presenciada, podendo ser um mero fruto
da fantasia do sujeito.
Uma dessas teorias infantis nos é de maior interesse. A crença da existência
de um único órgão sexual: o falo. Em termos de teorias sexuais infantis podemos
pensar que é por meio da negativa (não ter o falo) e da positiva (ter o falo) que a
diferenciação sexual se articula. Contudo, a coisa não cessa no ter ou não ter, indo
adiante: o menino, ao localizar a falta na menina, se sente ameaçado, pois “se ela
não tem é por que lhe foi tirado!”, logo ele também se vê sob a ameaça de perder
aquilo. A menina, por sua vez, ao se deparar com a sua ausência, achará que algo
ou lhe foi arrancado ou não lhe foi dado, se sentirá prejudicada frente ao menino
melhor aparelhado e, por conseguinte, desenvolverá intensos sentimentos de inveja.
Nas palavras de Freud, a menina “sucumbe à inveja do pênis, que deixa traços
indeléveis em seu desenvolvimento na formação do caráter, e mesmo em casos
f​avoráveis não é superada sem grande dispêndio psíquico” (FREUD, 1931/2010,
p.280).
Em relação às fases psicosexuais, Freud diz: “Os dois sexos parecem
atravessar da mesma forma as primeiras fases de desenvolvimento da libido”
28

(FREUD, 1931/2010, p.271), chegando a atribuir em 1933 a presença do mesmo


montante de agressividade na menina durante a fase sádico-anal. Freud conclui:
“Temos de reconhecer que então a garota pequena é um pequeno homem”
(FREUD, 1933/2010 p.271).
Podemos nos perguntar por que o raciocínio de Freud o leva a pensar na
menina como um pequeno homem, quando a questão da diferença sexual parece
nos levar diretamente para a ideia de que no início existem pessoas e não homens e
mulheres. Nesse ponto, notamos que o pensamento de Freud está calcado na
polaridade homem-mulher, o que o leva a emparelhar ativo-fálico-masculino e
passivo-castrado-feminino. No entanto, vale elucidar: o fio que liga o masculino ao
ativo-fálico e o feminino ao passivo-castrado diz respeito à posição adotada frente à
castração, uma vez que estes só ganham sentido articulados com os outros dois
pares.
Em termos anatômicos pode-se conjecturar que a razão de Freud dizer que a
menina se faz inicialmente masculina se deve à relação de equivalência entre o
clitóris da menina e o pênis do garoto. Para Freud, no início da masturbação infantil
da menina as excitações advêm do clitóris que, nesse momento - no qual a vagina
ainda seria desconhecida - é tomado como um pequeno pênis. Desse modo,
inicialmente, a menina também seria fálica e, portanto, masculina.
Nesse sentido, pode-se dizer que a feminilidade, na perspectiva de Freud, é
inicialmente, inexistente. A passagem para a feminilidade ocorre com a questão da
castração e, por conseguinte, com a percepção da diferença dos sexos.
Embora o tema da anatomia ganhe importância na obra de Freud, nota-se
que essa importância só se dá por meio da sua articulação com a fantasia. Dito de
outro modo, cabe dizer que o que importa de fato não é anatomia, mas sim a
fantasia com que o sujeito a recobre. Isso fica evidente no texto de 1933, quando
Freud, flexibilizando suas próprias conjecturas anteriores, diz:

Até mesmo na esfera da vida sexual humana os senhores verão logo como
é inadequado fazer o comportamento masculino coincidir com atividade e o
feminino, com passividade. [...] As mulheres podem demonstrar grande
atividade, em diversos sentidos; os homens não conseguem viver em
companhia dos de sua própria espécie, a menos que desenvolvam uma
grande adaptabilidade passiva. Se agora os senhores me disserem que
esses fatos provam que tanto os homens, como as mulheres são
29

bissexuais, no sentido psicológico, concluirei que decidiram, na sua mente,


a fazer coincidir “ativo” como “masculino” e “passivo” com “feminino”. Mas
advirto-os que não o façam. Parece-me que não serve a nenhum propósito
útil e nada acrescenta aos nossos conhecimentos. [...] Poder-se-ia
considerar característica psicológica da feminilidade dar preferência a fins
passivos. Isto, naturalmente, não é o mesmo que passividade, para chegar
a um fim passivo, pode ser necessária uma grande quantidade de atividade
(FREUD, 1931​/​201​0, p. 116).

A advertência de Freud descrita na citação acima pode nos causar certo


embaraço e até, por vezes, revelar uma contradição de Freud. Contudo, podemos
dizer que nesse trecho Freud parece encontrar o limite dos termos passivo-ativo; dito
de outro modo, ao dizer que para fins passivos se faz necessário uma certa dose de
atividade, Freud parece provar um pouco da insuficiência que a binaridade
passivo-ativo representa.
Ainda pensando nos traços de caráter femininos e masculinos, em 1937, em
seu escrito denominado “Análise terminável e interminável”, Freud parece dar um
lugar importante para dois complexos: o da inveja do pênis na menina e o do temor
da castração no menino. Embora, em tal texto, Freud não aposte na completa
resolução dos conflitos advindo da castração, ele diz: “podemos consolar-nos com a
certeza de que demos à pessoa analisada todo o incentivo possível para examinar e
alterar sua atitude para com ele” (FREUD, 1937/1996, p. 139).
Além das ligações do feminino/masculino com o caráter, também se faz
importante apontar as articulações feitas por Freud no que se refere ao aspecto
pulsional. Em 1905, Freud afirma que a libido é sempre, por natureza, masculina.
Nas palavras de Freud:

De fato, se pudéssemos dar um conteúdo mais definido aos conceitos


"masculino" e "feminino", também se poderia afirmar que a libido é, por
necessidade e por regra, de natureza masculina, apareça ela no homem ou
na mulher, e independentemente de o seu objetivo ser homem ou mulher"
(FREUD, 1905/2016, p.139)”.

Posterior a essa colocação, no ano de 1924, Freud relaciona diretamente


feminino e masoquismo, chegando a nomear um tipo específico de masoquismo de
“masoquismo feminino”, se referindo a ele como expressão da natureza feminina​.
Contudo, quando Freud começa desenvolver o tema, notamos que, embora ele
30

utilize o termo “natureza” - termo este que aponta para um caráter inato - pouca
articulação é feita com o mesmo. Uma possível articulação é a afirmação de que ​“O
masoquismo feminino que estivemos descrevendo baseia-se inteiramente no
masoquismo primário, erógeno, no prazer no sofrimento ​(​FREUD,1924/2010, ​p.170).
Sobre o tema do masoquismo feminino, conclui-se, portanto, com base nas
colocações feitas por Freud, que ele não é equivalente ao masoquismo erógeno,
embora se baseie inteiramente nele. Assim sendo, nota-se um determinado emprego
feito por Freud do termo “natureza”, uma vez que o que podemos denominar de
natural seria referente ao masoquismo erógeno.
O masoquismo feminino, por conseguinte, se materializa em fantasias de
surra. Segundo Freud: “o conteúdo manifesto é: ser amordaçado, amarrado,
golpeado, chicoteado de maneira dolorosa, maltratado de algum modo, obrigado à
obediência incondicional, sujado, humilhado” (FREUD, 1924/2010, p.169).
Caminhando nesse sentido, ​concluímos junto com Freud que tal masoquismo ganha
o nome de feminino por se constituir em uma fantasia na qual o conteúdo coloca “o
indivíduo numa situação caracteristicamente feminina; elas significam, assim, ser
castrado, ser possuído ou dar à luz” (FREUD, 1924/2010, p 169).
31

4. CARÁTER MASOQUISTA EM FREUD

4.1 A construção da fantasia masoquista em “Batem numa criança”

Os casos aqui descritos foram publicados por Freud no ano de 1919 — pouco
tempo antes da pulsão de morte emergir oficialmente como conceito —, em um texto
chamado “Batem numa criança”. Nele podemos notar o raciocínio utilizado por Freud
para chegar a construção de fantasias que têm como centralidade o tema do
masoquismo-sadismo. O texto leva em conta o material de seis casos clínicos,
sendo eles relativos à análise de quatro mulheres e dois homens.
Freud (1919) inicia o texto declarando que a fantasia “batem numa criança” é
trazida por muitas pessoas que o procuram para tratamento psicanalítico, seja por
histeria ou por neurose obsessiva. Após a confissão de tal fantasia, pouco conseguia
ser associado, de modo que uma forte resistência se instaurava, despertando
sentimentos de culpa e vergonha.

Quem é a criança que apanhava? A que tinha a fantasia ou uma outra? Era
sempre a mesma criança ou, frequentemente, qualquer outra? Quem batia
na criança? Um adulto? Quem, então? Ou a criança fantasiava que ela
mesma batia numa outra? Para todas essas questões não havia uma
informação esclarecedora, mas apenas uma tímida resposta: “Não sei nada
mais; batem numa criança” (FREUD, 1919/2010, p.222/223).

Outra característica apontada por Freud é que ela geralmente surge investida
de prazer e não raro se conclui em um ato de satisfação autoerótica. Contudo, tal
satisfação é um tanto quanto velada; quando o sujeito presenciava uma cena de
castigo, o que se sentia era um misto de excitação e forte repulsa. De uma forma
geral, o sujeito não se deleita com cenas nas quais a criança punida sofre graves
ferimentos.
As lembranças referentes a tais fantasias antecedem aos seis anos de idade.
No entanto, muitas as vezes elas são associadas ao período escolar, quando a
criança assistiu à cena de um professor castigando outras crianças. Segundo Freud,
embora a cena escolar possa tê-la despertado ou fortalecido, elas já existiam
32

anteriormente e sua origem é mais antiga que tal período. Assim sendo, a orientação
técnica feita por Freud é:

[...] deve ser visto como psicanálise correta apenas o trabalho analítico que
logra remover a amnésia que esconde ao adulto o conhecimento de sua
vida infantil desde o início dos dois aos cinco anos, aproximadamente). [...]
Sublinhar a importância das primeiras vivências não implica subestimar o
peso das vivências posteriores; mas essas posteriores impressões da vida
falam com clareza pela boca do paciente, enquanto o médico tem de erguer
a voz em favor da infância (FREUD, 1919/2010, p.225).

A fantasia em que “batem numa criança” é um constructo final de um


processo no qual, ao longo do tempo, foi se transformando no seu conteúdo. A
ênfase dada no texto é nos casos em que as crianças são meninas (quarto dos seis
casos). Nelas localizou-se uma certa tipicidade nas transformações da fantasia. Já
nos meninos, Freud parece ver algo de diferente: “[...] as fantasias de surra dos
homens relaciona-se outro tema, que deixarei de lado nesta comunicação” (FREUD,
1919/2010, p.226).
Até chegar em seu formato final, a fantasia “batem numa criança” passa por
três fases. O seu processo tem as raízes no complexo parental, no qual a menina se
fixa no pai, desenvolvendo intensos afetos por ele. Embora nesse período a mãe se
torne uma poderosa rival pelo amor do pai, a articulação feita por Freud, para
entender tal fantasia, não é com a figura materna, mas sim com a figura de uma
outra criança: um irmão. Nesse sentido:

Há outras crianças no ambiente, poucos anos mais velhas ou mais novas,


das quais a criança não gosta por uma toda espécie de motivos, mas
sobretudo porque tem que dividir com elas o amor dos pais [...] Se é um
irmão ou uma irmã menor (como em três dos meus casos), a criança o
despreza, além de odiá-lo, e tem de presenciar como ele é alvo do afeto que
os pais, enceguecidos, sempre reservam para aquele que nasceu por último
(FREUD, 1919/2010, p.228).

Na primeira fase, que diz respeito ao período mais arcaico, a criança que
apanha é sempre outra, em geral um irmão menor. Esse suposto irmão menor sofre
os castigos de um outro adulto que embora apareça obscuro por um tempo,
posteriormente tende a ser reconhecido na figura do pai. Aqui podemos sintetizar
essa primeira etapa na seguinte frase: “Meu pai bate na criança”, ou então, mais
33

precisamente “Meu pai bate na criança que odeio”. Assim a criança passa a associar
a surra no irmão como uma retração do amor do pai; dito de outro modo, a criança
“Logo compreende que apanhar, mesmo quando não dói muito, significa uma
retração do amor e uma humilhação” (FREUD, 1919/2010, p.228). Nesse sentido
cabe uma nova configuração à nossa síntese: “Meu pai não ama esse outro, ama
somente a mim”.
Freud demonstra imprecisão em assimilar esse primeiro momento como
masoquista ou sádico. Tal imprecisão é explicitada nas primeiras páginas do texto:
“A fantasia não é certamente masoquista, então talvez queira chamá-la de sádica,
mas não se deve perder de vista que a criança que fantasia não é jamais aquela que
bate” (FREUD, 1919/2010, p.226). Em um segundo momento, após descrever as
três etapas da fantasia, Freud retoma a questão do sadismo dizendo:

A fantasia, evidentemente, satisfaz o ciúme da criança e depende da sua


vida amorosa, mas é também vigorosamente apoiada por seus interesses
egoístas. Permanece então duvidoso que se possa designá-la como
puramente sexual; mas tampouco nos arriscamos a chamá-la de “sádica”.
Sabemos que, aproximando-se da origem, costumam desaparecer todas as
características sobre as quais habitualmente construímos nossas
diferenças. Então, de forma semelhante à profecia que as bruxas fizeram a
Banquo, talvez possamos dizer: não claramente sexual, tampouco sádica,
mas o material de que surgirão depois as duas coisas (FREUD, 1919/2010,
p.229).

No trecho supracitado, o sadismo não surge em oposição ao masoquismo,


mas sim à pulsão sexual. A dúvida que Freud parece discutir é em relação à
questão: “A cena é sádica ou sexual?”, e a resposta dada é que ambos
componentes coexistem e, mais que isso, nascem amalgamados de modo que
somente posteriormente se separariam.
Embora seja atribuído certo conteúdo sexual a esse primeiro momento, em
uma coisa Freud é veemente: tal conteúdo não encontra desafogo em um ato
masturbatório. O que a criança vivencia é um primeiro despertar da sexualidade, no
qual o sujeito experimenta algo como um pressentimento do que serão suas metas
sexuais definitivas.
Na segunda fase ocorrem algumas mudanças. A pessoa que bate continua
sendo o pai, mas a figura do irmão menor é substituída pela própria criança que
34

fantasia. Nesse sentido, existe uma inversão, na qual ela se torna masoquista, uma
vez que a própria criança que fantasia se vê castigada. A nova situação surge
acompanhada de prazer, diferente do que ocorria na primeira fase. Podemos
sintetizar essa fase na frase: “Sou castigada pelo meu pai”. A explicação é que
devido ao sentimento de culpa que se liga ao primeiro momento da fantasia, o
sujeito experimentaria uma inversão.
Pensando nesse caso, Freud diz: “que eu saiba, é sempre assim, a
consciência de culpa é o fator que transforma o sadismo em masoquismo” (FREUD,
1919/2010, p.231). Contudo, nesse mesmo texto encontramos a afirmação de que
este certamente não é conteúdo inteiro do masoquismo, pois “também o impulso
amoroso deve ter o seu quinhão” (FREUD, 1919/2010, p.231). Tal possibilidade diz
respeito a outro raciocínio: “Meu pai me ama” se transforma em “Meu pai me bate”.
Esse segundo formato de fantasia refere-se a uma degradação da organização
genital que tende a se formar em sujeitos que alcançaram a genitalidade e,
posteriormente experimentaram uma regressão à fase sádico-anal. Dessa forma, ser
golpeado “é não só o castigo pela relação genital proibida, mas também o substituto
regressivo para ela”. Desse modo, não só consciência de culpa, mas também
erotismo estão interligados e “essa é, enfim, a essência do masoquismo” (FREUD,
1919/2010, p.231).
Essa segunda fase, diferente da primeira, não é uma lembrança exata, sendo
ela uma construção da própria análise. Nas palavras de Freud: “Em nenhum caso
ela é lembrada, não chegou a tornar-se consciente. É uma construção da análise,
mas nem por isso menos necessária” (FREUD, 1919/2010, p.227). Embora o sujeito
não possa se lembrar, Freud ressalta sua importância: “Não só por continuar
atuando mediante a fase que a substitui; pode-se também demonstrar efeitos sobre
o ​caráter que provêm diretamente de sua forma inconsciente” (FREUD, 1919/2010,
p.236, grifo nosso).
A terceira fase experimenta grande similaridade com a primeira, pois a
criança que fantasia tende a sair novamente de cena, se tornando um mero
espectador. Assim, o sujeito que apanha passa a ser outra criança, não
representada por uma figura específica, de modo que “ao serem questionadas, as
pacientes dizem apenas: Eu estou olhando, provavelmente” (FREUD, 1919/2010, p.
35

227). É verdade também que tais cenas não são necessariamente de surras,
podendo ganhar outros contornos, como castigos e humilhações de outra espécie.
Também existe uma característica similar à segunda fase: a cena é acompanhada
de uma forte excitação sexual, permitindo a satisfação masturbatória. Desse modo, a
fantasia experimenta nova inversão, tornando-se novamente sádica.
Nessa estruturação final a figura do pai é substituída por outra equivalente,
como um professor ou algum outro que ocupe um suposto lugar de autoridade.
Podemos remontá-la na frase: “Meu pai está batendo na outra criança, ele ama
somente a mim”, porém, somente a primeira parte (Meu pai está batendo na outra
criança) parece ser mantida, enquanto a segunda (ele ama somente a mim) se
mantém longe da consciência devido à repressão.
Embora o conteúdo manifesto pareça ser sádico, se levarmos em conta seu
conteúdo inconsciente, tenderíamos a vê-lo como masoquista, pois “todas as
crianças indefinidas que levam surra do professor são, afinal, substitutos da criança
mesma” (FREUD, 1919/2010, p.232).
Até então acompanhamos Freud na construção da fantasia da menina. Cabe
dizer que Freud não localiza um caminho único para o masoquismo no menino e na
menina. Embora o texto de 1919 dê uma importância maior à fantasia da garota,
Freud também discorre acerca de suas diferenças em relação ao garoto.
O segundo momento da fantasia de surra no menino, semelhante à menina,
tende a ser associado à figura do pai. Contudo, o significado é outro; se na menina o
segundo momento de sua fantasia masoquista ligava-se a uma mescla de excitação
sexual e sentimento de culpa, no menino, por sua vez, tal fantasia se relaciona
diretamente a uma necessidade de amor, seu conteúdo sendo: “Sou amado pelo
meu pai”, que no terceiro momento experimenta uma mudança no objeto: “Sou
amado pela minha mãe”. Nesse sentido a fantasia do menino é passiva. Como o
menino experimenta uma mudança de objeto (quem bate é a mãe e não mais o pai),
ele pode manter uma atitude feminina e uma escolha objetal heterossexual.
Embora Freud localize diferenças entre a fantasia de surra no menino e na
menina, em ambos os casos tende a localizar o sadismo como primário, delegando
ao masoquismo uma formação secundária. Baseando-se nos casos estudados,
Freud afirma: “Parece confirmar-se, primeiramente, que o masoquismo não é uma
36

manifestação de instinto primária, mas surge de uma reversão do sadismo contra a


própria pessoa, isto é, pela regressão do objeto” (FREUD, 1919/2010, p. 235).

4.2 Além do princípio do prazer e a emergência da pulsão de morte

Perpassa a obra de Freud a ideia de que o funcionamento mental é regido por


um princípio do prazer, que se exprime na tendência do psiquismo em buscar o
prazer e evitar o desprazer. Contudo, Freud, ao longo de seus escritos, discorre
acerca de empecilhos que colocam a soberania deste princípio em questão. Em
“Além do princípio do prazer” (1920), encontramos uma sintetização das dificuldades
que tal princípio enfrenta.
A primeira grande dificuldade é a própria realidade, que se impõe ao sujeito
de forma que ele precise negociar com as restrições do mundo externo. Devido à
necessidade de adaptação à realidade externa, o princípio do prazer é modificado,
dando origem ao princípio da realidade. Assim, o princípio da realidade forma um par
com o princípio do prazer. Um não suprime o outro, pois, por mais que a longo
prazo, o princípio da realidade também busca a satisfação.
Outra dificuldade que o princípio do prazer encontra se relaciona a conflitos e
cisões dentro do aparelho psíquico. Tais conflitos e cisões dizem respeito a prazeres
antigos, advindos de fases anteriores do desenvolvimento, os quais reivindicam seu
lugar em organizações mais complexas e, devido à incompatibilidade de suas metas
ou exigências, sofrem repressão, se tornando incapazes de formar uma unidade
com o Eu.

Em consequência do velho conflito que resultou em repressão, o princípio


do prazer experimentou nova ruptura, justamente quando certos instintos
laboravam, conforme o princípio, para obter novo prazer. Os detalhes do
processo pelo qual a repressão transforma uma possibilidade de prazer
numa fonte de desprazer ainda não são bem compreendidos ou não podem
ser claramente expressos, mas certamente todo desprazer neurótico é
desse tipo, é prazer que não pode ser sentido como tal” (FREUD,
1920/2010, p.124).

Embora a realidade e as cisões do Eu sejam empecilhos para o cumprimento


do princípio do prazer, o terceiro apontamento feito por Freud se refere à existência
de uma compulsão à repetição, que ganha um papel central. Freud tomou como
37

analisadores os sonhos dos veteranos de guerra, as brincadeiras das crianças, as


chamadas neuroses de destino e a transferência com o analista.
O termo neurose traumática não foi uma invenção da psicanálise, este já era
utilizado na psiquiatria (LAPLANCHE & PONTALIS, 2001). Freud teve contato com
veteranos de guerra que sofriam de tal afecção psíquica. Estes sujeitos, quando
dormiam, eram perturbados por sonhos que os colocavam novamente frente a
momentos de terror. No entanto, quando acordados, se ocupavam muito pouco das
lembranças da guerra, aparentando uma certa frieza em relação aos acontecimentos
vividos.
Observando a brincadeira de seu próprio neto, Freud tece uma relação entre
a neurose traumática e as brincadeiras de crianças. O garoto, ​de apenas 18 meses,
pouco chorava ou exprimia insatisfações quando sua mãe saía. Na brincadeira
observada por Freud, ele arremessava um carretel para fora do berço ao mesmo
tempo que pronunciava a palavra ​“Fort” ​(foi embora); em seguida puxava o carretel
novamente para dentro do berço, sendo que, quando o objeto retornava para seu
campo de visão ele dizia “​Da” (está aqui). A interpretação feita por Freud foi que o
jogo representava a ausência (Fort) e a presença (Da) da mãe. Neste jogo de
desaparecimento e reaparecimento o garoto repetia uma situação potencialmente
traumática (a ausência da mãe).
Além da brincadeira de seu neto, Freud dá outros exemplos, como um menino
que jogava os brinquedos e gritava “Vá para a gue(rr)a!”, após seu pai ter sido
convocado para servir o exército, ou a menina que, após ter ido a uma consulta
médica, passou a brincar de médica, tomando ela mesma o lugar de doutora. Em
tais casos, Freud enxergou uma certa reversão da passividade em atividade, mas
também, de um modo geral, tais conteúdos pareciam remeter a certa necessidade
de domínio de algo que o sujeito viveu como desprazeroso.
De maneira similar à repetição que se dava no sonho dos veteranos de guerra
e na brincadeira das crianças, Freud localiza a presença da repetição no próprio
setting analítico. Assim, os pacientes tenderiam a repetir seus conflitos edípicos na
sua relação com o analista, fazendo de sua neurose uma neurose de transferência.
Na relação analítica essas repetições servem como resistências, de modo que o Eu,
38

sob domínio do princípio do prazer, as utiliza para manter o conteúdo reprimido


longe da consciência, fazendo com que o desprazer seja evitado.
A situação da compulsão à repetição já havia sido trazida por Freud em um
13
momento anterior . Contudo, em “Além do princípio do prazer”, a questão é
retomada sob o olhar investigativo de Freud, que parecia procurar resposta para a
pergunta: "Mas em que relação com o princípio do prazer se acha a compulsão de
repetição, a manifestação de força do reprimido?" (FREUD, 1920/2010, p.132).
Uma das respostas dadas por Freud é que a repetição gera ao mesmo tempo
desprazer e prazer, pois é um desprazer para o Eu e uma satisfação para o Id.
Portanto, a compulsão à repetição “não contraria o princípio do prazer, é desprazer
para um sistema e, ao mesmo tempo, satisfação para o outro” (FREUD, 1920/2010,
p.132). No entanto, tal resposta não daria conta de todos os casos: “Mas o fato novo
e digno de nota, que agora temos que descrever, é que a compulsão à repetição
também traz de volta experiências do passado que não possibilitam prazer, que
também naquele tempo não podem ter sido satisfações” (FREUD, 1920/2010,
p.132).
Naquilo que podemos nomear de “neurose de destino” se encontram sujeitos
que não necessariamente apresentam um sintoma, mas que tendem a repetir certos
desfechos em suas relações. Alguns exemplos dados por Freud: homens que são
sempre abandonados por seus protegidos; homens cujo desfecho de toda amizade é
serem traídos; sujeitos que tendem a repetir as mesmas fases em seus
relacionamentos com suas amantes, dentre outros. Um aspecto interessante ao falar
dessa espécie de repetição é que ela ocorre de maneira egossintônica, pois ela se
estabelece como parte do próprio caráter do sujeito.

Esse “eterno retorno do mesmo” não nos surpreende muito, quando se trata
de um comportamento ativo da pessoa em questão e nós descobrimos o
traço de caráter permanente de seu ser, que tem de manifestar-se na
repetição das mesmas vivências (FREUD, 1920/2010, p.134).

13
Ver: FREUD, Sigmund. Recordar, repetir e elaborar (1914). In: ​Observações psicanalíticas sobre
um caso de paranoia relatado em autobiografia ("o caso Schreber"), artigos sobre técnica e outros
textos​. tradução e notas Paulo César de Souza – São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
39

Assim, tomando como base o destino das pessoas, a neurose de


transferência e também os sonhos traumáticos, Freud afirma: “sentimo-nos
encorajados a supor que na vida psíquica há realmente uma compulsão à repetição,
que sobrepuja o princípio do prazer” (FREUD, 1920/2010, p.135). Chega então a
propor a existência de uma pulsão de morte, que leva o sujeito a se colocar
repetidamente em situações dolorosas (ROUDINESCO & PLON, 1998).
14
Freud cita o princípio do Nirvana em dois textos centrais para a discussão
da pulsão de morte: “Além do princípio do prazer” (1920) e “Problema econômico do
masoquismo” (1924). O termo é utilizado para exprimir a tendência do aparelho
psíquico em abolir a excitação, mantendo o nível de tensão o mais baixo possível.
Alguns autores defendem que a ideia de um nivelamento de tensão havia sido
abordado por Freud anteriormente, sendo possível encontrar um germe da pulsão de
15
morte naquilo que Freud denominou em 1895 de ​princípio da inércia e da
constância (AZEVEDO; MELLO NETO, 2015).
Conjectura-se assim que a pulsão de morte consiste no retorno a um estado
anterior, inorgânico, no qual prepondera a quietude da morte. Segundo Freud:

Se é lícito aceitarmos, como experiência que não tem exceção, que todo ser
vivo morre por razões internas, retorna ao estado inorgânico, estão só
podemos dizer que o objetivo de toda vida é a morte, e,
restrospectivamente, que o inanimado existia antes do vivente (FREUD,
1920/2010, p.149).

A partir da pulsão de morte, Freud reinventa seu dualismo pulsional. Se


anteriormente o dualismo estaria no par pulsão de autoconservação e pulsão sexual,
agora ele se encontra em um outro: pulsão de vida (Eros) e pulsão de morte
(Thanatos), sendo que a primeira diz respeito a ​uma energia que impele à ação e a
outra que leva à inanição (AZEVEDO; MELLO NETO, 2015)​. No entanto, as antigas
concepções não são excluídas desse novo dualismo, pois, pulsão de
autoconservação e pulsão sexual são abarcadas na pulsão de vida.

14
Termo empregado no meio psicanalítico por ​Barbara Low em “​Psycho-Analysis. A Brief Account of the
Freudian Theory​. ​Abingdon-on-Thames​: ​Routledge​ (2013/​1920​).”
15
Ver “Projeto para uma psicologia científica (1950[1895])” In:: FREUD, S. Edição standard brasileira
das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. v. 1. Rio de Janeiro: Imago, 1990, p. 385-529.
40

Assim chegamos a uma pequena, mas interessante cadeia de relações: o


princípio do Nirvana exprime a tendência do instinto de morte, o princípio do
prazer representa a reivindicação da libido, e a modificação dele, o princípio
da realidade, a influência do mundo externo (FREUD, 1924/2010, p.168)

Neste novo dualismo pulsional, Freud retoma a questão do par


masoquismo-sadismo questionando: “Mas como pode o instinto sádico, que visa a
ferir o objeto, ser derivado do Eros conservador da vida?” (FREUD, 1920/2010
p.163). A resposta dada por Freud é a seguinte:

[...] o instinto parcial complementar ao sadismo, o masoquismo, deve ser


entendido como uma reversão do sadismo para o próprio Eu. Mas em
princípio não há diferença entre uma volta do instinto para o Eu, desde o
objeto, e a volta desde o objeto para o Eu, de que aqui tratamos agora. O
masoquismo, a volta do instinto contra o próprio Eu, seria então, na
realidade, um retorno a uma fase anterior dele mesmo, uma regressão. Em
um ponto a descrição que ali se fez do masoquismo necessitaria de
correção, por ser demasiado exclusiva; o masoquismo também pode ser
primário, algo que ali pretendi contestar (FREUD, 1920/2010, p.164).

Nota-se então que Freud contradiz seus escritos anteriores e afirma a


existência de um masoquismo primário. Pode-se dizer que a pulsão de morte abre
caminho para o surgimento da conceituação do masoquismo erógeno que viria a ser
postulada.
Em o “Problema econômico do masoquismo” (1924), Freud amadurece a
questão do masoquismo como um componente pulsional primário. Ele conceitua a
existência de três tipos de masoquismos: masoquismo erógeno, masoquismo
feminino e masoquismo moral.
O masoquismo erógeno é a base primária para todos os outros tipos,
exprimindo-se diretamente no prazer na dor. De início, a pulsão de vida e de morte
estariam amalgamadas, sendo que só posteriormente a libido desvia parte da pulsão
de morte para o mundo exterior, sob a forma de pulsão de destruição (sadismo).
Assim, é no restante, que não foi desviado, que deve ser reconhecido o masoquismo
erógeno.
Outro tipo de masoquismo, aquele que Freud denomina como feminino,
parece ser, dentre os três tipos, o mais fácil de ser percebido (FREUD, 1924/2010).
Ele consiste na própria existência da fantasia masoquista que, semelhante aos
41

casos descritos em “Batem numa criança”, carregam conteúdos que remetem a: “ser
amordaçado, amarrado, golpeado, chicoteado de maneira dolorosa, maltratado de
algum modo, obrigado à obediência incondicional, sujado, humilhado” (FREUD,
1924/2010, p.169). Contudo, vale ressaltar que, diferente de tal texto, na
conceituação feita em 1924, Freud concedeu ao masoquismo uma qualidade
primária, “Assim, o masoquismo feminino é inteiramente baseado no masoquismo
primário, erógeno, caracterizado pela ligação estabelecida entre o prazer, de
natureza libidinal, e a dor, produto da pulsão de morte” (ROUDINESCO & PLON,
1998, p. 683).
O terceiro masoquismo descrito por Freud, o masoquismo moral, tem uma
íntima relação com o sentimento de culpa inconsciente. Neste tipo de masoquista
não se verifica uma relação tão direta com o objeto, se quem o faz sofrer é “uma
pessoa amada ou outra qualquer não faz diferença; pode ser causado também por
poderes ou circunstâncias impessoais, o verdadeiro masoquista sempre oferece a
face quando vê perspectiva de receber uma bofetada” (FREUD, 1924/2010, p.173).
Dito de outro modo, não parece haver diferença na forma de sofrimento, o que vale é
sofrer, seja lá por qual meio. Isto leva Freud a dizer que tal tipo de masoquismo não
tem uma relação direta com a pulsão sexual, embora ele não descarte
completamente tal questão (FREUD, 1924/2010).
Além das formas de masoquismo descritas, Freud mantém a crença da
existência de um masoquismo secundário, na qual o sadismo projetado para fora,
retorna para dentro tornando-se novamente componente masoquista. “Não
ficaremos surpresos de ouvir que, em determinadas circunstâncias, o sadismo ou
instinto de destruição voltado para fora, projetado, pode ser novamente introjetado,
voltado para dentro, desse modo regredindo à sua situação anterior” (FREUD,
1924/2010, p.172).

Neste tópico, retomamos brevemente o caminho traçado por Freud até chegar
em sua concepção mais madura do masoquismo. Se inicialmente o masoquismo era
tomado como uma formação secundária, fruto do retorno do sadismo para o Eu,
posteriormente, após a conceituação da pulsão de morte e do masoquismo primário,
essa fórmula experimenta uma inversão, sendo o masoquismo um componente
42

original primário e o sadismo uma formação secundária. Além disso, abordamos as


demais concepções de masoquismo: masoquismo moral, masoquismo feminino e
masoquismo secundario. Feito isto, buscaremos no próximo tópico, analisar as
proximidades do masoquismo com o caráter.

4.3 Masoquismo: caráter ou sintoma?

Um primeiro passo frente à nossa pergunta é arriscar uma distinção entre


caráter e sintoma. Localizou-se em Freud um trecho em “A predisposição à neurose
obsessiva (1913)”​ ​na qual existe uma tentativa em distinguir caráter e neurose:

No campo do desenvolvimento do caráter encontraremos as mesmas forças


instintuais que vimos atuando nas neuroses. Mas uma clara separação
teórica entre os dois é dada pela circunstância de que falta, no tocante ao
caráter, o que é próprio do mecanismo da neurose, o malogro da repressão
e o retorno do reprimido. Na formação do caráter, a repressão ou não atua
ou atinge sem dificuldade a sua meta, substituir o reprimido por formações
reativas e sublimações. Daí os processos da formação de caráter serem
menos transparentes e acessíveis à análise do que os neuróticos (FREUD,
1913/2010, p.254/255).

As forças pulsionais em jogo no caráter e neurose são as mesmas, se


diferenciando apenas pelo destino em que elas tomam. A neurose se caracteriza por
uma repressão que experimentou o seu fracasso, promovendo o retorno do
reprimido em forma de sintoma. Já o caráter é fruto ou da ausência de repressão ou
de uma repressão bem consumada, na qual ocorrem sublimações ou formações
reativas (FREUD, 1913/2010).
Embora exista um esforço de Freud em separar caráter e neurose, nota-se
que tal separação não se dá em oposição. O caráter, assim como o sintoma,
também exprime tendências patológicas; Freud demonstra isso ao relatar que
algumas mulheres, ao perderem sua função genital, tornam-se briguentas,
espezinhadoras e arrogantes, avarentas e cobiçosas. Segundo Freud: “​entendemos
que tal mudança de caráter corresponde ao estágio pré-genital sádico-erótico-anal,
em que descobrimos a predisposição à neurose obsessiva” (FREUD, 1913/2010, p.
255).
43

Segundo Albertini (2015), sintoma e caráter têm diferenças importantes: o


sintoma destoa do próprio Eu do sujeito, que tende a vê-lo como algo patológico. Já
o caráter não é facilmente perceptível, pois ele é tomado como parte do Eu, sendo a
sua origem fruto de construções históricas mais complexas do que as verificadas
nos sintomas.
Nessa mesma linha, Bernardes (2015) ressalta que, embora as formações de
caráter também possam ser prejudiciais e patológicas, elas são estruturações
estáveis e inaparentes, pois o sujeito está adaptado a elas. Devido a isto,
compreende-se que sejam menos acessíveis à análise.
Como vimos, Freud delega à pulsão de morte (Thanatos) um lugar inato na
constituição dos sujeitos. Contraposto a ela existe uma pulsão de vida que busca
formas de atenuar sua tendência mortífera, desviando-a em parte para o exterior em
forma de destruição ​(FREUD, 1923)​. O montante de pulsão de morte que
permanece no interior junta-se à libido, originando o masoquismo erógeno, o qual se
exprime no prazer na dor. Desse modo, Freud demarca a capacidade de sentir
prazer na dor como algo que se presentifica — ​em menor ou maior grau — em todos
os sujeitos, delegando a isto um ​status de normalidade. Com isso, descarta-se a
possibilidade do prazer na dor ser, ​a priori​, percebido pelo sujeito como patológico.
Embora o masoquismo erógeno se aproxime mais de um componente sem
forma definida (diferente do masoquismo feminino, por exemplo), ele corresponde a
um componente constitutivo, presente em todos os sujeitos. A objeção de que nem
todos assumem atitudes claramente masoquistas parece válida. No entanto, o
masoquismo erógeno deve ser analisado para além de sua manifestação no mundo
externo. Reich (1933), raciocinando a partir da segunda tópica do aparelho psíquico,
ressalta que, para além do comportamento manifesto, o caráter se exprime em uma
dinâmica interna:

[...] a atitude masoquista reflete-se não só no comportamento em relação a um


objeto, mas também dentro do próprio masoquista. As atitudes originalmente
dirigidas para os objetos são também (e isso é frequentemente importante) mantidas
para os objetos introjetados, para o superego (REICH, 1933/1998, p.226/227).

Pensando em dinâmica interna é interessante notar que, ao abordar o tema


das instâncias psíquicas, Freud utiliza, embora vagamente, termos como “caráter do
44

id” e “caráter do Eu”. Além disso, no que se refere ao Supereu, Freud diz: “O
super-eu conservará o caráter do pai” (FREUD, 1913/2010, p. 255). Com isso
entende-se que o supereu é uma instância severa de caráter sádico que tem suas
origens no complexo de Édipo. Assim:

Quanto mais forte é o complexo de Édipo [...] (sob a influência da


autoridade, da instrução religiosa, do ensino, das leituras), mais severa
será, posteriormente, a dominação do Super-eu sobre o eu como
consciência moral, ou até como sentimento de culpa inconsciente
(ROUDINESCO ​&​ PLON, 2002, p.215).

O sentimento de culpa inconsciente é relacionado por Freud ao tipo de


caráter já citado anteriormente, nomeado de “criminosos por sentimento de culpa”
(FREUD, 1916). O período em que tal caráter foi descrito antecede à formulação do
masoquismo erógeno. Não à toa Freud aponta que, após ser castigado, o que se
experimenta é um alívio e não um prazer. Isso se deve ao fato da ênfase ser dada à
culpa, ou seja, ao sadismo do Supereu.
Posteriormente, ao falar de masoquismo moral, a discussão do sentimento de
culpa inconsciente é retomada sob a luz das novas formulações. Se em 1916 a
ênfase recai sobre o intensificado sadismo do Supereu, em 1924 a ênfase incide
“sobre o próprio masoquismo do Eu, que anseia por castigo, quer do Super-eu, quer
dos poderes parentais externos” (FREUD, 1924/2010, p.177). Contudo, Freud não
descarta a possibilidade do Supereu ser tomado por uma hipermoral. Na verdade, a
relação do Eu e do Supereu é de complementaridade: “o sadismo do Supereu e o
masoquismo do Eu complementam um ao outro e se juntam para produzir as
mesmas consequências (FREUD, 1924/2010, p.178)". Além disso cabe ressaltar o
masoquismo secundário como uma forma de intensificar a severidade do Supereu.
Para Freud isso é comum, devido à sociedade, reprimir tal impulso. Sobre isso,
Freud diz:

A volta do sadismo contra a própria pessoa acontece regularmente na


repressão cultural dos instintos, que impede boa parte dos componentes
instintuais destrutivos da pessoa tenham aplicação na vida. Pode-se
imaginar que esta porção refreada do instinto de destrutividade que retorna
do mundo exterior também é acolhida pelo Super-eu sem tal transformação,
e eleva o sadismo deste para com o Eu (FREUD,1924/2010, p.178)
45

Freud atrelou o caráter à resistência, localizando nele empecilhos para o


andamento do processo analítico (FREUD, 1916). Uma das explicações dadas por
Freud é que a resistência se coloca sob o terreno do princípio do prazer, pois seu
objetivo é evitar o desprazer (FREUD, 1920). Contudo, após a pulsão de morte,
outras leituras se tornam possíveis; em “O eu e o Id” (1923), Freud alerta que o
sentimento inconsciente de culpa “encontra satisfação no fato de estar doente e não
desejar renunciar ao castigo de sofrer” (FREUD, 1923/2010, p.47). Duas propostas
opostas para entender a resistência: a primeira que enxerga a resistência como uma
forma de evitar o desprazer e a outra aponta para uma dificuldade na renúncia do
sofrimento (que em certa medida é prazeroso).
Assim, conclui-se que com a invenção da pulsão de morte e, posteriormente,
à própria ideia de masoquismo erógeno, o Eu ganha um status de masoquista. Com
isso, pode-se concluir que todo sujeito é capaz de experimentar certa dose de
masoquismo em seu caráter, podendo ele mesmo tirar algum tipo de prazer em sua
doença.
46

5. O CARÁTER MASOQUISTA EM REICH

Como já havíamos assinalado, a entrada de Reich na “Sociedade Vienense


de Psicanálise” ocorre no mesmo ano que a pulsão de morte emerge oficialmente
como conceito (1920). O tema da pulsão de morte não aparece diretamente em seu
primeiro escrito “Conceitos de pulsão e libido de Forel a Jung” ​(1922). ​No entanto,
Reich parece conhecer o texto que Freud expôs à pulsão de morte, uma vez que ele
escreve: “em ​Além do Princípio do Prazer Freud expandiu sua explanação da
motivação pulsional em várias direções” ​(REICH, apud REGO, 2005, p.19). ​Assim,
parece que Reich não concordou ou não percebeu a nova proposta de Freud que
sustentava uma oposição entre pulsão de vida e pulsão de morte​ (REGO, 2005).
No texto “Caráter impulsivo” (1925) Reich chega a citar a ideia de um
masoquismo primário, contudo não diz se concorda ou discorda de tal concepção.
Ademais, em “Psicopatologia e sociologia da vida sexual” (1927), dedica um capítulo
ao tema da agressividade, associando-a à estase libidinal. Em uma passagem é
citada a pulsão de morte, acompanhada de alguns questionamentos referentes à
sua importância.

No livro O ego e o id, Freud apresenta os dois instintos fundamentais - o


Eros e o instinto de morte (instinto sexual/instinto de destruição, amor/ódio) -
como sendo as duas tendências polares que regem o organismo, bem como
as reacções psíquicas. A oposição destes instintos manifesta-se também e
de forma muito nítida, na ambivalências da maioria das atitudes mentais.
Mas qual é a importância relativa destes dois instintos? Terão eles uma
influência recíproca e qual? Hoje, é fácil mostrar que a intensidade do
instinto de destruição (isto é, das suas manifestações, do ódio, da
agressividade, da brutalidade e do sadismo) depende ou da possibilidade
actual de satisfação sexual ou da pressão exercida pela estase somática da
líbido ​(REICH, 1927/1975, p. 209/210).
16

Em 1932, no escrito “O caráter masoquista”, Reich aborda a questão do


masoquismo alegando obter novas explicações, as quais caminhavam em conjunto
à concepção antiga do masoquismo. Ao se referir ao ano de 1927, Reich diz: “A
questão de como se pode lutar pelo desprazer, isto é, de como ele pode se tornar

16
Essa citação causa estranheza por situar a apresentação da pulsão de morte no escrito “O ego e o
Id”. Ainda mais estranho é o fato do texto conter uma nota de rodapé que localiza “O ego e o Id”
numa coletânea denominada “Ensaios de psicanálise” (1951), sendo que o texto foi publicado por
Reich em 1927.
47

prazer, já andava no ar, mas eu não tinha nenhuma contribuição a fazer naquela
altura” (REICH, 1933/1998, p. 224). O que dá a entender, como hipótese, é que
Reich nunca acreditou na existência da pulsão de morte, mas como o tema do
masoquismo ainda era enigmático, preferiu não se posicionar, até que tivesse
alguma contribuição sobre o tema.

5.1 Um caso clínico

Aqui descreveremos um caso atendido por Reich de um paciente que


desenvolveu um caráter tipicamente masoquista. Tal caso foi apresentado em seu
texto “O caráter masoquista” (1932), sendo, posteriormente, incorporado ao livro
“Análise do Caráter” (1933). Nele, podemos notar o raciocínio usado por Reich para
explicar sua teoria do masoquismo, a qual se opõe a concepção adotada por Freud
a partir de 1920, em que passa a crer na existência de um masoquismo erógeno que
se sustenta a partir da existência da pulsão de morte. Nota-se também o manejo
clínico adotado por Reich, o qual se baseia em sua proposta de análise do caráter.
O paciente analisado queixava-se de ser socialmente apático e incapaz de
trabalhar. Embora não tivesse interesse por relações sexuais, ele se masturbava
durante horas. O cenário era específico: Ele virava de bruços espremendo e
apertando seu pênis, enquanto imaginava uma pessoa batendo-lhe com um chicote.
Assim que sentia estar prestes a ejacular, interrompia o ato, esperando o
abrandamento da excitação para retomar a masturbação. Repetia esse movimento
por horas até que, por fim, tomado por exaustão, ejaculava. Após a masturbação, o
paciente se sentia “quebrado, extremamente cansado, incapaz de fazer qualquer
coisa, masoquista, atormentado” (REICH, 1933/1998, p. 227).
Durante a análise, o paciente se portava de forma polida. Falava sobre nobres
planos para o futuro. Ele queria ser matemático e desenvolveu uma fantasia que
consistia em imaginar que estava vagando por uma bosque na Alemanha “[...]
cogitando um sistema matemático que pudesse calcular e modificar o mundo inteiro”
(REICH, 1933/1998, p 227).
Aqui vemos a técnica de análise do caráter desenvolvida por Reich. Esta
proposta técnica consistia em iniciar o trabalho analítico pela superfície, para que só
48

depois fosse adentrando em conteúdos mais internos. Isso é de suma importância


para um bom andamento do processo analítico, pois o caráter funciona como uma
forma de afastar-se dos conteúdos aflitivos, trabalhando a favor da resistência.
O caráter polido e a fantasia de matemático foram interpretados como
compensação do sentimento de inutilidade que o inundava após o ato masturbatório
tipicamente anal. A fantasia de matemático, puro e assexuado, funcionava como
uma formação reativa construída em contraposição à “vadiagem na cama” que o
fazia sentir “sujo” e “ordinário”.
A interpretação surte efeito e, após a primeira camada do caráter do paciente
ter sido trabalhada, outra se instaurou. O paciente começou a agir de forma
provocativa e teimosa; toda vez em que Reich lhe dirigia alguma pergunta, o
paciente respondia: “Não, não darei! Não, não darei!”. A análise dessa postura levou
a lembranças de um período entre os 4 e 5 anos de idade, no qual ele se
comportava com semelhante teimosia. O próprio paciente vinculou seu masoquismo
atual a esse período, lembrando-se de suas primeiras fantasias de surra (que
ocorreram por volta dos 7 anos de idade). Nessas fantasias, imaginava-se deitando
nos joelhos de alguém e sendo surrado; além disso, nesse mesmo período, se
trancava no banheiro e tentava chicotear-se.
Na teimosia do paciente observa-se um traço de caráter tipicamente anal,
“Não darei, Não darei!” é uma atitude típica da fase anal, na qual criança se recusa a
esvaziar o intestino, retendo as fezes para obter uma satisfação autoerótica anal.
Uma lembrança que antecede a fantasia dos 7 anos de idade se revelou por
volta do segundo ano de análise. Aos 3 anos, enquanto brincava no jardim, se sujou.
Seu pai enfureceu-se com a sujeira, levou-o para dentro de casa e o deitou em uma
cama para surrá-lo. “O menino deitou-se imediatamente de barriga para baixo e
esperou pelas palmadas com grande curiosidade, misturada com angústia”.
Enquanto o pai o surrava, experimentou um sentimento de alívio.
A primeira lembrança masoquista não remetia a uma experiência de prazer,
mas sim de alívio, que consistia no fato de ter sido poupado de um dano maior (no
seu órgão genital). Nesse sentido, não se trata de uma preponderância da pulsão de
morte sobre a pulsão de vida.
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A masturbação do paciente representava um movimento defensivo, no qual


“[...] o pênis tinha de ser protegido; era preferível baterem-lhe nas nádegas do que
sofrer qualquer dano no pênis”. Assim, “O que originalmente era um medo de
punição, tornou-se mais tarde o desejo masoquista” (REICH, 1933/1998, p. 229).
Frente à nova camada de caráter do paciente, os esforços interpretativos não
surtiram efeito e Reich começou a imitá-lo; assim, quando o paciente recorria ao seu
“Não, não quero!”, Reich o repetia. Esta “técnica da imitação” não é algo comum,
segundo Reich: “Foi a própria situação analítica específica que me levou a adotar
essa medida. Eu não teria ido tão longe de outro modo” (REICH, 1933/1998, p.230).
Em certo momento, o paciente deixa escapar um chute involuntário e Reich o
incentiva a liberar seus movimentos, o que desperta enorme estranheza ao paciente.
Contudo, logo começa a se revirar no divã de forma violenta. Quando Reich
interpreta sua relação com o pai, dizendo que suas tentativas de defendê-lo eram
sinal do ódio que sentia por ele, o paciente foi tomado por um caráter
assustadoramente violento.
Reich aponta a necessidade de sustentação de tal situação, de modo que
“Era a única maneira de ele reexperimentar a neurose infantil de maneira completa e
com os afetos correspondentes - e não apenas como uma recordação” (REICH,
1933/1998, p.230).
Compreende-se de que o caráter provocativo do paciente remetia a uma
“provocação aos adultos”, que na transferência se repetia sob a forma de
provocação ao analista. “Mas por que ele fazia provocações?” (REICH, 1933/1998,
p.230). As provocações podem ser entendidas como parte dos recursos defensivos
que o paciente carrega em seu caráter. Em uma análise esses recursos se
materializam na forma de transferência negativa.
O que o masoquista quer não é aliviar sua culpa mediante à punição, mas sim
induzir o analista a cometer uma ação inadequada, conforme o seu protótipo infantil.
A repetição consiste em dar uma base racional à reprovação: “Veja como você me
trata mal”, “Você é mau; não gosta de mim; pelo contrário, trata-me horrivelmente;
tenho razão em odiar você” (REICH, 1933/1998, p. 231). Embora tal mecanismo
forneça uma justificativa para a raiva e, por conseguinte, um alívio da culpa, está
50

também não é a sua função central (REICH, 1933). O que se encontra no cerne da
questão é um profundo desapontamento no amor.
A exigência de amor se baseia no medo de ser abandonado, o qual fora
experimentado no começo da vida. O masoquista não suporta ficar só, “Ser
abandonado é morrer - o fim da minha vida”, dizia um paciente atendido por Reich.
A função inicial do comportamento do paciente era provocar o analista até
que ele se enfurecesse. Contudo, como a resposta do analista não foi condizente,
uma função secundária se instaurou: o paciente se soltava cada vez mais, de modo
a testar o quanto o analista suportaria sem retirar o amor e recorrer a punição. Ele
não deseja a punição, mas sim obtém prazer por meio da neutralização do medo
(REICH, 1933).
Nesta fase do tratamento a postura provocativa se intensificou e Reich
passou novamente a espelhar o comportamento do paciente, chegando ao ponto de
se jogar no chão, gritar e espernear. De início, o paciente reagiu ficando atônito, mas
posteriormente começou a rir e a analisar a postura adotada por Reich, o que
permitiu o andamento da análise.
O que se revelou no comportamento do masoquista é que a maneira
provocativa de agir é a sua forma de pedir amor. O caráter masoquista reinvindica
amor da seguinte forma: “Veja como sou infeliz - ame-me!”, “Você não me ama o
suficiente - é mesquinho comigo!”, “Você tem de me amar; vou forçá-lo a me amar.
Se não me amar, vou deixá-lo irritado!”. A forma do caráter masoquista buscar a
simpatia é por meio da infelicidade. Segundo Reich: “Esse mecanismo é específico
do caráter masoquista. Não é encontrado em qualquer outra forma de neurose, e se
isso acontece o aspecto masoquista correspondente no caráter também está
presente” (REICH, 1933/1998, p.233).
O que o masoquista exprime é uma exigência excessiva de amor. Essa
necessidade de amor se deve a uma predisposição à angústia, “Há uma correlação
direta entre a atitude masoquista e a exigência de amor, por um lado e, por outro, a
tensão desagradável e a predisposição à angústia (ou perigo de perda de amor)”
(REICH, 1933, p. 233). A tentativa do masoquista em aplacar a angústia por meio do
amor está sempre fadada a malograr, pois jamais consegue se livrar da tensão
interna, “Assim, o sentimento de sofrimento corresponde a um fato concreto, que é a
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excitação interna aguda e contínua acompanhada da predisposição para a angústia”


(REICH, 1933/1998, p. 233).
A couraça masoquista é completamente inadequada, pois reivindica amor por
meio de provocações à pessoa amada, o que resulta em um aumento do medo de
perda do amor e, por conseguinte, um aumento da tensão, do mesmo modo que
intensifica o sentimento culpa. A pessoa amada se encontra atormentada e, desse
modo: o masoquista “[...] se torna tanto mais enredado na situação de sofrimento
quanto mais se empenha em se desembaraçar dela” (REICH, 1933/1998, p. 233).
Após a análise do ódio e do medo que sentia em relação ao pai, o paciente
pôde ter ereções, parou de se masturbar de forma masoquista e começou a sentir
desejos genitais. A sua primeira tentativa de se relacionar com uma mulher foi um
fracasso, mas levou a análise de seu amor pela mãe.
Junto ao primeiro esboço de genitalidade, angústias vieram à tona, tais quais:
“a vagina é um lamaçal cheio de cobras e vermes; o falo é cortado na extremidade;
mergulha-se num abismo e não se encontra saída” (REICH, 1933/1998, p. 234).
Embora ele sentisse atração por outras pessoas, ainda assim ele era tomado
por um sentimento de aperto e constrangimento. Frente a qualquer fracasso ele
retornava a fantasia masoquista; queixava-se que seu estado de sordidez era o
mesmo de sempre.
Em suas tentativas de aproximação com as mulheres, o paciente revelou que
sempre que surgia um rival, era tomado pela ideia de ter um pênis pequeno e se
afastava imediatamente da mulher desejada.
Ao se relacionar sexualmente, conseguia se manter potente, no entanto,
permanecia insatisfeito. Após o ato sexual, era acometido pela ideia de que havia
contraído sífilis. Certo dia, mostrou o pênis à Reich, perguntando-o se estava
infeccionado. Reich interpretou que tal ato remetia a um prazer exibicionista e sua
análise o levou a conteúdos infantis.
Em sua infância, o paciente obtinha prazer em mostrar as nádegas à mãe
que, por sua vez, demonstrava grande interesse pelas funções excrementícias,
acompanhando-o ao banheiro até os 10 anos de idade. A isso se deve o fato dele ter
passado para a fase genital por meio da exibição do pênis. Contudo, ao contrário da
postura em relação às nádegas, a mãe o proibiu rigorosamente de exibir seu genital.
52

A repressão de tais tendências deram origem a uma inibição do comportamento; em


suas relações sexuais atuais o paciente não deixava que o seu pênis fosse olhado
ou tocado.
Com rompimento da repressão de tais conteúdos, o paciente pode sublimar
suas tendências exibicionistas por meio do trabalho. Passou a dedicar-se à profissão
de fotógrafo, obtendo grande prazer nesta atividade.
A entrada na fase genital por meio do exibicionismo, seguido da frustração e
de repressão é específico do caráter masoquista. Alguns traços de caráter se ligam
diretamente a isto, como comportamentos inseguros e desastrados. É típico do
masoquista uma incapacidade em receber elogios; o paciente atendido por Reich,
embora ambicioso na escola, não podia suportar ser visto como um bom aluno: “Se
tivesse continuado a ser um bom estudante, ter-me-ia imaginado nu diante de uma
grande multidão com um pênis excitado” (REICH, 1933/1998, p. 239). Frente ao
exibicionismo reprimido, o masoquista experimenta uma formação reativa que o leva
a “uma paixão pela autodepreciação para não se sobressair” (REICH, 1933/1998,
p.239).
O paciente atendido por Reich deixa clara a falta de segurança que
experimenta o caráter masoquista: “Sinto-me sempre como um oficial que, com grito
de vitória e espada desembainhada, marcha à frente de suas tropas e de repente, ao
olhar para trás, descobre que ninguém o seguiu” (REICH, 1933/1998, p.239).
A repressão do exibicionismo genital torna o masoquista incapaz de receber
elogios. Ser elogiado é o equivalente a se ver nu frente à multidão com o pênis
excitado. Desse modo, para não sobressair, adota comportamentos
autodepreciativos como forma de impedir que a tensão aumente.
O caráter masoquista exprime uma intensa necessidade de amor e,
consequentemente, extrema dificuldade de perdas objetais. Incapaz de demonstrar e
reivindicar amor por vias diretas, o masoquista recorre a uma forma disfarçada e
distorcida de demonstração afetuosa. A aproximação com o objeto amado é feita
através de provocações, queixas e autodepreciações; estratégia fadada ao
insucesso, uma vez que tende a intensificar os sentimentos de vergonha e fracasso
que o sujeito experimenta.
53

Todo esse complexo gera um sentimento de ataxia interna, na qual o sujeito


não consegue se desvincular. O sujeito não busca o sofrimento de forma primária,
como meio de obtenção de satisfação. Pelo contrário, o que o masoquista busca é
obter prazer e evitar o desprazer.

5.2 Erogeneidade da pele: a proposta de Reich para o masoquismo erógeno

A crença de que o masoquista sente o desprazer como prazer é posta em


questão por Reich. Somente após ter duvidado da veracidade desse fato foi possível
chegar à sua proposta de erogeneidade da pele. O masoquista não busca a dor,
mas sim o prazer. Contudo, o seu fracasso nesse empenho “o induz a perceber
sensações que são experimentadas como prazerosas pela pessoa normal, como
desprazerosas quando excedem uma certa intensidade” (REICH, 1933/1998, p.
225).
Como vimos, é característico do masoquista o apego excessivo aos objetos,
que se evidencia em uma extrema necessidade de amor. Tal necessidade se liga ao
medo de ser abandonado, que remete a experiências infantis de abandono e
desapontamento amoroso.
O medo de ser abandonado é expresso em contraponto à experiência de
acaloramento, ou seja, “... se baseia diretamente no medo que surge quando se
perde o contato de pele com a pessoa amada” (REICH, 1933/1998, p. 234).
Assim, em contraponto à frieza do abandono, o masoquista procura o calor do
contato, o que lhe é oferecido na experiência de surra. Aqui, se acha a base erógena
do masoquismo; o que é desejado é o “calor da pele - a intenção original não é um
desejo de dor. O objetivo de ser chicoteado não é sofrer dor; antes, a dor é
suportada por causa da “queimação” (REICH, 1933/1998, p. 235).
O caráter masoquista se torna suscetível à angústia devido à forma
fracassada de obter descarga de tensão, o que provoca a estase da libido. A sua
busca por amor e calor é uma forma de diminuir a tensão causada por este
represamento libidinal. Tal processo pode ser verificado fisiologicamente, diferente
da pulsão de morte, a qual Reich alega ser uma construção metafísica.
54

Em termos fisiológicos, a angústia se manifesta com a diminuição do fluxo


sanguíneo na periferia do corpo (contração dos vasos periféricos). Por outro lado, o
aumento do fluxo sanguíneo nesta área é um atributo típico do prazer.

Não é fácil compreender por que razão o contato corporal com a pessoa
amada tem o efeito de dissolver a angústia. Com toda probabilidade, isso
pode ser explicado pelo fato de , fisiologicamente, o calor corporal, no
sentido acima descrito, e a inervação da periferia do corpo, na esperança de
proteção maternal, dissolverem, ou pelo menos aliviarem, a tensão interna
(REICH, 1933/1998, p.235).

Diferente da proposta do masoquismo erógeno constitutivo, o que o caráter


masoquista experimenta é uma forma cronificada e adoecida de pedir amor. A
hipotese da existência de prazer na dor é descartada, e substituída pela ideia de que
a erogeneidade do masoquista liga-se ao processo de aquecimento da pele que o
remete a experiências de cuidado e proteção. Assim, o desprazer na verdade é
suportado graças ao aquecimento da pele. Este processo não coloca em questão a
soberania do princípio do prazer, pelo contrário, se baseia totalmente nele.

5.3 A formação do caráter masoquista e sua base específica

Torna-se impossível, para Reich, entender a gênese do masoquismo partindo


da premissa de que ele se liga à necessidade de punição ou ao sentimento de culpa
reprimido. Embora as autopunições sejam capazes de promover alívio, elas só
afetam a superfície da neurose; o núcleo do caráter masoquista localiza-se - como
em toda neurose - no conflito entre o desejo sexual e o medo de punição
correspondente á sua realização (REICH, 1933).
Todo caráter neurótico experimenta um distúrbio genital, de modo a ter sua
capacidade de obtenção de prazer afetada. Semelhante a outras neuroses “[...] não
é o desprazer que se torna prazer, mas exatamente o contrário; por meio de um
mecanismo que é específico do caráter masoquista, todo prazer que aumenta para
além de uma certa medida é inibido e transformado em desprazer” (REICH,
1933/1998, p.246).
55

Voltemos ao caso clínico descrito anteriormente. Assim que o sujeito


experimentou o primeiro esboço de sua genitalidade, obteve ereções e se empenhou
em ter relações sexuais, evidenciou-se que:

[...] enquanto a sensação de prazer fosse fraca, a fantasia genital


permanecia; porém, assim que o prazer começava a aumentar, quando,
segundo o paciente, aquela “sensação de derretimento” passava a tomar
conta dele, ficava com medo; sua pelve se tornava espástica, em vez de
relaxada, e transformava o prazer em desprazer (REICH, 1933/1998,
p.246).

A sensação descrita como derretimento é vista por Reich como uma


manifestação de prazer própria do orgasmo. No masoquista, ela é acompanhada de
medo e, por conseguinte, desprazer. O desprazer era acompanhado da angústia de
que o pênis era um saco cheio de líquidos, prestes a estourar. Segundo Reich:

Aqui temos a prova incontestável de que, nos masoquistas, não é desprazer


que se torna prazer, mas exatamente o contrário: por meio de um
mecanismo que é específico do caráter masoquista, todo prazer que
aumenta para além de uma certa medida é inibido e transformado em
desprazer (REICH, 1933/1998, p.246).

O mesmo é válido para a compulsão à repetição, na qual o objetivo parece


ser reexperimentar uma situação desagradável. Na verdade, trata-se do contrário: o
objetivo é atingir o prazer. No entanto, são despertados sentimentos de medo,
angústia e frustração, que ocultam o objetivo inicial, fazendo parecer que a meta é o
desprazer. Nesse sentido: “podemos concluir que uma compulsão à repetição para
além do princípio do prazer não existe; os fenômenos correspondentes podem ser
explicados dentro da estrutura do princípio do prazer e do medo de punição”
(REICH, 1933/1998, p.247).
Devido à evitação de qualquer manifestação intensa de prazer, resta ao
masoquista fixações em prazeres relacionados à zona anal, que são suportáveis
devido sua baixa intensidade. Desse modo, o aparelho genital incorpora tais
fixações, que perturbam sua capacidade de obtenção de prazer.
A libido é direcionada à analidade que demonstra-se incapaz de dar vazão a
tensão. A genitalidade é inibida, o pouco contato com ela gera angústia e desprazer,
56

devido ao medo. A consequência dessas perturbações é a estase da libido, que


torna o masoquista ainda mais suscetível à angústia.
Pode-se verificar isto no caso relatado. Entre os 3 e os 6 anos de idade o
paciente desenvolveu medo de sentar no vaso sanitário, decorrente da fantasia de
que algum animal rastejante poderia penetrar-lhe o ânus. A fim de evitar o banheiro,
passou a reter as fezes, o que, por sua vez, gerou o medo de evacuar nas calças;
“Quando alguém evacua nas calças, apanha do pai” (REICH, 1933/1998, p.243).
A dificuldade em ir ao banheiro deu à mãe mais um motivo para se atentar às
atividades intestinais do filho. Com isso o paciente encarou uma contradição: por
parte da mãe a condição anal despertava interesse; por parte do pai ela despertava
punição.
O prazer gerado pelos movimentos intestinais era acompanhado do medo de
punição do pai. Como forma de aliviar a tensão desse conflito o sujeito
identificava-se com o agressor de modo a ele mesmo aplicar o castigo temido. Além
disso, como apresentado anteriormente, a entrega aos castigos anais-passivos é
uma forma atenuada e substitutiva do castigo dirigido ao genital.

5.4 O conflito básico do neurótico e a origem do masoquismo

Recusando situar o conflito neurótico em uma antítese interna (pulsão de


vida-pulsão de morte), Reich localiza-o o centro do conflito na relação entre
exigências libidinais e mundo externo. As neuroses "são manifestações de um
choque entre um impulso libidinal, que luta incessantemente por expressão, e o
medo de punição que inibe e o impele de se traduzir em ação" (REICH, 1933/1998
p. 261).
Essa concepção direciona o problema da miséria neurótica para o campo
social, pois a origem do conflito básico de toda neurose encontra suas raízes na
forma como tratamos e educamos as nossas crianças. No caso do paciente
retratado no tópico acima, Reich ressaltava a forma como o pai tratava seus filhos: o
pai de nosso paciente beliscava os filhos nas nádegas e tinha prazer em lhes dizer
que os “esfolaria vivos” caso se comportassem mal. Sobre isso, Reich comenta:
“Assim, temos o quadro típico de uma situação triste e miserável, cujas raízes
57

devem ser remontadas não a fatores biológicos, e sim puramente sociológicos”


(REICH, 1933/1998, p. 244).
Do conflito central derivam-se novos aspectos conflitivos. Se a primeira fonte de
desprazer advém do conflito da libido com o mundo externo, logo isto se interioriza,
criando a primeira contradição interna: a libido almeja satisfação (direcionar-se para
o mundo externo); já os impulsos do Eu querem a preservação por meio da evitação
do perigo (impedindo a libido de direciona-se para fora). Com o impedimento da
exteriorização libidinal, ela se represa (estase), criando uma tensão interna. “A
primeira antítese, excitação sexual-angústia, é apenas o reflexo intrapsíquico da
antítese principal Eu-mundo externo, que então se torna a realidade psíquica da
contradição interna: Eu desejo - eu tenho medo" (REICH, 1933/1998, p. 260).
Se inicialmente sente-se medo frente ao perigo externo​, ​posteriormente, esse
medo é interiorizado de modo a criar um conflito interno. Em meio ao conflito "Eu
desejo - Eu tenho medo" o sujeito experimenta uma angústia real, que fomenta a
estase devido a impedir a satisfação da libido. Com o aumento do represamento
libidinal, intensifica-se ainda mais a angústia real. Dito de outro modo, se a angústia
real se manifesta inicialmente como forma de antecipação do perigo, posteriormente,
com o represamento da libido ela é intensificada pela angústia de estase. Com isto o
sujeito fica em um ciclo sem fim: estase libidinal → intensifica a angústia real → fuga
da libido para dentro → aumento da estase libidinal.
Além da “fuga para dentro” existem outros recursos para diminuir a tensão,
como a tentativa de se distanciar externamente por meio do aparelho locomotor
(fuga muscular), ou então a eliminação da fonte de perigo, que surge como um
impulso destrutivo direcionado a um objeto externo frustrador e punidor, a fim de
destruir a fonte de perigo. Esse impulso destruidor pode se juntar com a libido dando
origem ao sadismo.
Contudo, é possível haver uma dupla frustração, pois além do mundo externo
frustrar a sexualidade, também pode frustrar os impulsos destrutivos e sádicos, pois
em tais impulsos também está presente o medo da punição.

Toda frustração da libido provoca intenções destrutivas que, por sua vez,
podem se transformar facilmente em sadismo, pois este engloba o impulso
libidinal e o destrutivo. Por outro lado, a tendência destrutiva é fortalecida
58

pela propensão à angústia e ao desejo de evitar ou resolver a tensões que


induzem ao medo na forma destrutiva usual. Contudo, dando a emergência
de cada novo impulso provoca a atitude punitiva do mundo externo,
segue-se uma cadeia sem fim, cujo primeiro elo é a inibição que induz ao
medo da descarga libidinal (REICH, 1933/1998, p. 261).

Na concepção de Reich, é da frustração do impulso destrutivo e do sadismo


que se origina o masoquismo. Essa reversão do sadismo em masoquismo está
longe de ser uma tendência primária; ela se localiza de forma tardia: “Isso se
confirma pela observação direta de crianças” (REICH, 1933/1998, p. 262).
Desse modo, entende-se que o caráter masoquista falha na tentativa de se
aproximar de forma genital, assim como não consegue reagir por meio de
tendências destrutivas na tentativa de eliminar a fonte de perigo. Com isso adota a
postura típica do masoquista, que busca resolver as tensões internas de modo
disfarçado, por meio de reivindicações distorcidas de amor, a fim de ter um alívio
mínimo de tensão.
Como forma de contestar a proposta de Reich, podemos nos perguntar: mas
e o desejo de tirar a própria vida? Pode-se dizer que o suicídio é expressão de um
desejo de paz, de nada (de nirvana); no entanto, ele nada mais é do que uma
reinvindicação da vida, que, sem solução para suas tensões internas insuportáveis,
deseja acabar com desprazer por meio do auto-aniquilamento. Em outras palavras, o
desejo de tirar a vida surge quando a única solução para o alívio é a morte.
Assim, aquilo que foi atribuído à pulsão de morte pode ser remontado dentro
do princípio do prazer. O sujeito não busca a destruição por uma tendência biológica
primária que o leva a buscar o sofrimento, mas sim por consequência de frustrações
reais “causadas por nosso sistema social ou por outras influências do mundo
externo” (REICH, 1933/1998, p. 262).
Em síntese, podemos dizer que o desenvolvimento da neurose não tem como
base uma antítese interna biológica (Eros-Thanatos), mas sim externa e social
(Pulsão-Mundo Externo). Por fim, podemos sistematizar o conflito neurótico da
seguinte maneira:
59

Antítese Descrição

Pulsão - Mundo Externo


ou O mundo externo frusta a satisfação libidinal.
Eu - Mundo Externo

O conflito inicial externo é interiorizado, de modo


a criar a primeira contradição interna: A libido
Libido - Angústia insiste em se externalizar e a angústia impede
esse movimento promovendo um aumento da
tensão (angústia de estase).

Sadismo - Angústia Uma das formas de reagir a frustração é por


ou meio da destruição da fonte do perigo. No
Sadismo - Amor entanto, o impulso sádico também pode ser
frustrado devido ao amor (ambivalência) ou
então ao próprio medo de punição.

Sadismo - Masoquismo O masoquismo surge como uma formação


secundária, derivada do sadismo frustrado.
60

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como visto, embora Reich entre para a Sociedade Psicanalítica de Viena em


1920, ano da publicação de “Além do princípio do prazer”, nota-se que ele não
assimila em seu corpo teórico o conceito de pulsão de morte. Para Reich a
existência da pulsão de morte torna-se um empecilho para o avanço da concepção
social da neurose.
Nas leituras referentes ao caráter em Freud, notou-se que o uso do termo
“caráter” empregado pelo o autor é bastante disperso, não se chegando a uma teoria
sobre o caráter. Contudo, o tema aparece numerosas vezes, se ligando
principalmente aos temas da feminilidade/masculinidade, das pulsões pré-genitais,
dos processos identificatórios e da resistência.
A concepção de caráter em Reich se baseia totalmente no primeiro dualismo
pulsional postulado por Freud (pulsões sexuais - pulsões do Eu). Nele, Reich atribui
ao mundo externo, punidor e repressor da sexualidade as causas da neurose.
Na perspectiva adotada por Reich a neurose não é somente individual, mas
também social. A raiz do conflito neurótico se encontra na forma como as ideologias
tornam as pessoas rígidas e incapazes de obter satisfação, devido à forma
mesquinha com que lidam com sua sexualidade.
Assim, entende-se que, por um lado, o caráter oferece uma proteção contra o
mundo externo e, por outro, é uma formação que busca dar equilíbrio energético ao
sujeito. Desse modo, ele corresponde totalmente ao princípio do prazer, cumprindo a
função de evitar o desprazer e buscar o prazer.
Com a introdução da segunda dualidade pulsional (pulsão de vida - pulsão de
morte) a ênfase do conflito neurótico recai em um conflito interno que se baseia na
imbricação contínua destas pulsões. Com isso a crítica social perde força, dando
lugar a uma disputa interna, baseada em uma pulsão de morte primária.
Uma das críticas feitas por Reich é que a pulsão de morte não tem verificação
biológica, sendo um conceito que busca explicar muitas coisas, sendo incapaz de
explicar a si própria. Diferente disso, o princípio do prazer pode ser fisiologicamente
verificado como um processo de tensão-descarga-relaxamento.
61

Se, em uma primeira teoria do masoquismo, Freud considera-o uma formação


secundária, fruto do retorno do sadismo para o Eu, posteriormente (1920), em uma
segunda postulação, passa-se a entendê-lo como uma formação primária, fruto da
pulsão de morte que permaneceu no Eu.
Contraposto a isso, verificamos que todos os escritos de Reich utilizam como
raciocínio a primeira teoria do masoquismo. Embora ainda sem trazer grandes
contribuições ao tema do masoquismo, em “Psicopatologia e Sociologia da Vida
Sexual” (1927), já se encontra o tema da agressividade relacionado diretamente à
estase sexual. Adiante, em “Caráter Masoquista” (1932) o rompimento com a pulsão
de morte fica evidente. Nele Reich vai elaborar uma teoria para o masoquismo que
contesta a pulsão de morte. Neste texto deixa claro que para ele a única pulsão que
existe é a de vida.
Como vimos, Reich distingue agressividade de sadismo. A agressividade é
uma reação natural que visa o alívio da angústia por meio de um ataque à fonte do
perigo que o ameaça. Sua transformação em sadismo se deve ao acréscimo do
componente sexual, que ocorre devido à estase da libido. Existe uma relação direta
entre destrutividade e o represamento das energias sexuais: quanto maior a estase,
maior a tensão e, por conseguinte, maior irritabilidade e destrutividade. Desse modo,
na concepção de Reich, o masoquismo surge em antítese com o sadismo, sendo
uma construção tardia do desenvolvimento (nota-se que crianças pequenas não
carregam traços masoquistas), na qual o próprio sadismo foi frustrado, seja pelo
medo da punição ou pelo próprio amor (ambivalência).
Se antes (1914) Freud ressalta a severidade do Supereu sádico,
posteriormente, com o segundo dualismo pulsional, a ênfase recai em um Eu
masoquista, que procura por si só a dor como possibilidade de obter prazer. Aqui
encontra-se outra oposição: Reich não aceita a ideia de que o masoquista sente
prazer no lugar do desprazer, para ele o que ocorre é o inverso: sente desprazer
quando deveria sentir prazer. Desse modo, a base específica de todo caráter
masoquista é a incapacidade de suportar o prazer, quando este atinge níveis mais
elevados.
Com a invenção da pulsão de morte e a concepção de masoquismo erógeno,
Freud concebe a existência de um masoquismo primário e constitutivo; nesse
62

sentido todos os sujeitos seriam um pouco masoquistas, sendo este um conteúdo


egossintônico, pois quem é masoquista é o próprio Eu. Isso leva a algumas
colocações como a ideia de que os sujeitos são capazes de encontrar satisfação no
fato de estarem doentes, de modo a não desejarem renunciar ao castigo de sofrer.
Para Reich isso seria inconcebível; tais concepções levam a desculpas do
tipo: “O paciente não progride em sua análise pelo fato de ter uma preponderância
de pulsão de morte”. Portanto, para o autor, além de impedir o avanço da psicanálise
no campo social, a pulsão de morte impede o desenvolvimento da clínica,
encerrando a questão em uma constituição inata que busca o sofrimento. Frente a
isso o analista se torna impotente, pois ele nada pode fazer.
Conclui-se que Reich formula sua teoria acerca do caráter com base primeiro
dualismo pulsional descrito por Freud (pulsão sexual - pulsão do Eu). Em 1932,
quando amadureceu seu entendimento em relação ao masoquismo, expôs uma
teoria que busca demonstrar clinicamente a inexistência da pulsão de morte. Para
Reich a única pulsão existente remete à vida. As manifestações destrutivas
(masoquismo-sadismo) são formações posteriores que devem a sua existência à
miséria neurótica que é propagada por meio de uma sociedade sexualmente rígida.
63

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