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Arte & Psicose: A Obra de


Arthur Bispo do Rosário
Art & Psychosis: The Work of Arthur Bispo do Rosário

Arte y Psicosis: La Obra de Arthur Bispo do Rosário

Maria Cristina Poli &


Dalva Botelho Gandra
Mesquita

Universidade Federal do
Rio de Janeiro

http://dx.doi.org/10.1590 / 1982 – 3703001382013


Artigo

PSICOLOGIA: CIÊNCIA E PROFISSÃO, 2014, 34(3), 612-624


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PSICOLOGIA:
CIÊNCIA E PROFISSÃO, Maria Cristina Poli & Dalva Botelho Gandra Mesquita
2014, 34(3), 612-624

* Estudo desenvol- Resumo: Este trabalho se propõe a analisar o enlace entre clínica e pesquisa no campo da
vido com apoio fi-
nanceiro da Faperj Psicanálise e suas consequências na leitura do sujeito do inconsciente. Partimos, pois, da
(bolsa de Auxílio Ins- constatação de que, além dos casos clínicos, Freud também se valeu do estudo de artistas e de
talação e bolsa de
Iniciação Científica)
produções culturais. Em especial, no estudo da psicose, a contribuição precursora de Freud se
e CNPq (bolsa deu a partir da leitura das Memórias publicadas por Schreber. Foi pela leitura e análise desse
PIBIC – Iniciação livro que o psicanalista baseou suas principais teses acerca da paranoia. Neste artigo, destacamos
Científica).
sua proposição de que o delírio é uma tentativa de reconstrução do mundo, abalado pela crise
psicótica. A partir dessa leitura de Freud, buscamos analisar como, de modo similar, a obra de
um louco genial, Arthur Bispo do Rosário, demonstra a atualidade do método freudiano e a im-
portância de apreender a psicose, especificamente, nesse enlace com a produção cultural.
Palavras-chave: Psicanálise. Psicose. Arte, Bispo do Rosário. Paranoia (Psicose).

Abstract: This work intends to analyze the link between clinical and research in the field of psy-
choanalysis and its aftermath in reading the subject of the unconscious. Therefore we started at
the realization that, in addition to clinical cases, Freud also used the study of artists and cultural
productions. In particular, in studying psychosis, Freud’s precursor contribution came from
reading the published Memoirs of Schreber. It was by reading and analysing this book that the
psychoanalyst based his main theses about paranoia. In this article, we highlight his proposition
that delusion is an attempt to rebuild the world, shaken by the psychotic break. From this
reading of Freud, we seek to examine how, in a similar way, the work of a mad genius, Arthur
Bispo do Rosário, demonstrates the actuality of Freudian method and the importance of appre-
hending psychosis, specifically, this link with cultural production.
Keywords: Psychoanalysis. Psychosis. Art, Bishop of Rosario. Paranoia(Psychosis).

Resumen: Este trabajo se propone analizar el enlace entre clínica y pesquisa en el campo del
Psicoanálisis y sus consecuencias en la lectura del sujeto del inconsciente. Partimos, pues, de la
constatación de que además de los casos clínicos, Freud también se valió del estudio de artistas
y de producciones culturales. En especial, en el estudio de la psicosis, la contribución precursora
de Freud se dio a partir de la lectura de las Memorias publicadas por Schreber. Fue por la
lectura y análisis de ese libro que el psicoanalista basó sus principales tesis acerca de la
paranoia. En este artículo, destacamos su proposición de que el delirio es una tentativa de re-
construcción del mundo, sacudido por la crisis psicótica. A partir de esa lectura de Freud,
buscamos analizar cómo, de modo similar, la obra de un loco genial, Arthur Bispo do Rosário,
demuestra la actualidad del método freudiano y la importancia de aprender la psicosis, especí-
ficamente, en ese enlace con la producción cultural.
Palabras clave: Psicoanálisis. Psicosis. Arte, Bispo do Rosário. Paranoia (Psicosis).

Este trabalho de pesquisa se propõe a analisar de caso pautado na anamnese, que lhe per-
o enlace entre clínica e pesquisa no campo mite fundar a teoria psicanalítica. Uma teoria
da Psicanálise e suas consequências na leitura que, justamente, permite indicar o ponto de
do sujeito do inconsciente. Para tanto, parti- enlace estrutural entre esse singular e aquilo
mos da constatação da importância da escrita que é compartilhado em um determinado
do caso na obra de Freud (Chiantaretto laço discursivo. É a partir desse encontro
1999; Porge, 2007). É essa escrita e o modo que as categorias nosográficas - as neuroses,
como ela opera com o singular do sujeito, psicoses e perversão - atinentes à clínica psi-
rompendo uma tradição médica do estudo canalítica advêm.

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Em suas escritas de caso, porém, Freud não A carreira de Schreber como jurista, funcio-
referia apenas aos pacientes atendidos por nário do Ministério da Justiça do Reino da
ele. Também a análise e interpretação de Saxônia, evoluía regularmente, com promo-
obras de arte e de personagens como Leonardo ções sucessivas obtidas por nomeação direta
da Vinci foram fundamentais. Em especial, o ou eleição interna. Seu primeiro cargo foi o
caso de psicose ao qual dedicou um importante de escrivão adjunto, passando a auditor da
estudo – o caso Schreber – nunca foi atendido Corte de Apelação, assessor do Tribunal e
por Freud. Sua análise do caso se deu a partir conselheiro da Corte de Apelação. Em 1884,
das Memórias publicadas por Schreber. Foi torna-se vice-presidente do Tribunal Regional
pela leitura e análise desse livro que o psica- de Chemnitz. Sua ambição provavelmente
nalista baseou suas principais teses acerca da requeria algo mais, pois, no dia 28 de outubro
psicose paranoide. de 1884, concorreu às eleições parlamentar
pelo Partido Nacional Liberal. Nesta, sofreu
Depois dele, outros estudos clínicos se segui- uma fragorosa derrota. Tinha 42 anos, estava
ram, confirmando algumas e refutando outras casado há seis e tinha dezenove anos de
das observações do psicanalista. Pode-se, no carreira jurídica. Em um jornal da Saxônia
entanto, reconhecer um trabalho original por saiu, nesta ocasião, um artigo irônico sobre
parte de Freud na escrita desse caso. Sobretudo, sua derrota eleitoral, intitulado: “Quem co-
gostaríamos de destacar, sua proposição de nhece esse tal Dr. Schreber?”. Para quem
que o delírio é uma tentativa de reconstrução fora criado no culto orgulhoso dos méritos
do mundo, abalado pela crise psicótica. Ou dos antepassados e fora testemunha da ce-
seja, o psicanalista salienta, por meio de lebridade do pai, esse artigo trazia impressa,
Schreber, a função positiva que seu escrito como um insulto, a face pública do seu ano-
opera no seu restabelecimento, mesmo que nimato. O relato autobiográfico de Daniel
não tenha impedido outras recaídas. Paul Schreber se tornou um dos recursos
mais utilizados para o estudo da psicose,
Neste artigo, iremos nos deter, portanto, a visto que, ali, seus delírios são descritos de
esse aspecto da pesquisa, buscando demonstrar forma muito detalhada.
como, de modo similar, a obra de um louco
genial, Arthur Bispo do Rosário, demonstra a Freud, a partir da análise do relato autobio-
atualidade do método freudiano e a impor- gráfico de Schreber, postula que a paranoia
tância de apreender a psicose, especificamente, expressaria um mecanismo de defesa do
no enlace com a produção cultural. sujeito contra sua libido homossexual. Ele
também estabeleceu a projeção como
mecanismo característico da paranoia e sus-
Do delírio às Memórias de tentou que na redação das Memórias de um
Schreber: uma reconstrução doente de nervos observa-se a construção
do delírio. Sua tese se fundamenta no seu
Daniel Paul Schreber nasceu em 1842 e veio próprio modelo teórico para as psiconeuro-
a falecer em 1911. Provinha de uma família ses, baseado nos conceitos de fixação,
de burgueses protestantes, abastados e cultos, recalque e retorno do recalcado na forma
que já no século XVIII buscavam a celebridade de sintomas.
por meio do trabalho intelectual. Muitos de
seus antepassados deixaram obra escrita. Os O recurso à escrita por parte de Schreber ini-
livros de seu bisavô tinham por lema a frase cia após o período que ele descreve como a
“Escrevemos para a posteridade”. Seu pai, morte do sujeito. O início da elaboração das
Daniel Gottlieb Moritz Schreber, era médico Memórias e a retomada do investimento no
ortopedista e pedagogo, autor de livros sobre mundo são relatados pelo próprio do
ginástica, higiene e educação das crianças. seguinte modo:

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1 “A formação deli- Ao querer tentar dar ainda neste capítulo elas já sofreram diversas modificações. Já não
rante, que presumi- outros pormenores relativos à época que há se ouve muita das expressões que antigamente
mos ser o produto
patológico, é na pouco chamei de meu período sagrado, estou eram habituais (...) de modo que falar das
realidade, uma ten- bem ciente das dificuldades que se me ante- vozes, em grande parte pode ser definido
tativa de restabele- põem (...) remeto-me exclusivamente à me- como um simples zumbido na minha cabeça.
cimento, um pro- mória, uma vez que naquele período eu não (Schreber, 1995, pp. 210-211)
cesso de reconstru-
ção. Tal Reconstru- estava em condições de fazer qualquer ano-
ção após a catás- tação (...) Eu acreditava que a humanidade A escrita dos delírios funciona como recurso
trofe é bem sucedi- inteira tinha desaparecido, não havendo, por- para a localização do gozo. Esse elemento é
da em maior ou me- tanto, nenhum, sentido visível em fazer ano-
nor grau, mas nun- destacado por Freud. Segundo o psicanalista,
tações escritas. (Schreber, 1995, p. 74)
ca inteiramente; nas como já destacamos, o delírio não deve ser
palavras de Schre-
ber, houve uma pro-
percebido como uma expressão patológica,
É assim que o autor, na sua reconstrução do
funda mudança in- mas antes como um processo de reconstrução
mundo, empenha-se em um trabalho árduo
terna no mundo” que pode ser mais ou menos bem sucedida.1
(Freud, 1996, p. 78). da escrita. Esse trabalho tem início em 1896,
Porém, cabe ressaltar o quanto a precariedade
com notas em pedaços de papel, ganhando
desse recurso fica à mostra na ausência de al-
o formato de relatos em um diário em 1897.
guém que verdadeiramente acolha o seu en-
Torna-se, posteriormente, um conjunto de
dereçamento, como aspira Schreber em sua
rascunhos para as futuras Memórias, reunido
“carta aberta a Fleschsig” (Schreber, 1995, p.
em um caderno intitulado Minha Vida. Con-
27). Como diz Lacan (1985): “Em relação à
forme escreve Oliveira (2010, p. 166): “a
cadeia do delírio, se assim se pode dizer, o
elaboração minuciosamente ao longo de
sujeito nos parece ao mesmo tempo agente e
todos esses anos, tem para Schreber um
paciente. O delírio é tanto mais sofrido por
papel capital na sua luta para não se reduzir
ele quanto mais ele não o organiza” (p. 247).
à posição de objeto do gozo divino”.
No seminário sobre as psicoses, Lacan reco-
A escrita torna-se, para Schreber, um instru-
nhece em Schreber diferentes etapas de re-
mento do qual ele pode se valer perante os
construção em direção a uma atitude de
fenômenos alucinatórios que se impõem de consentimento progressivo. Schreber admite,
forma invasiva. Ele fala, com propriedade, pouco a pouco, que a única forma de sair
na argumentação sustentada para reaver seus da situação em que se encontra é aceitar
direitos civis: “diante da expressão escrita sua transformação em mulher. Com a con-
do pensamento todos os milagres se revelam cepção do delírio ao longo de sua escrita,
imponentes (...) e as tentativas de distrair Lacan revela o caráter processual da cons-
meu pensamento são facilmente superáveis trução delirante de Schreber.
quando posso me expressar por escrito”
(Schreber, 1995, p. 312). Assim, o delírio na medida em que é escrito
e publicado, constitui o instrumento inventado
Ao longo da elaboração das Memórias, por- por Schreber para localizar a interpelação
tanto, as alucinações são reduzidas. Ao ocupar que Deus lhe dirige, permitindo-lhe não re-
a posição do narrador de experiências muito
duzir-se a puro objeto do gozo divino.
particulares, Schreber promove o encadea-
mento significante do que se encontra “solto” A partir dessas contribuições que constituem
na forma de alucinação. Conforme seu tes- os fundamentos das contribuições da psicanálise
temunho: acerca da função do processo criativo na psi-
As Conversas das vozes mudam continuamente cose, analisaremos, na sequência, a importância
e até mesmo nesse período relativamente curto da arte de Arthur Bispo do Rosário na relação
em que me ocupo da realização desse trabalho, com a loucura que lhe afligia.

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2 Esse pedido, no
entanto, não foi rea-
Um labirinto de signos: a baseava-se na criação de esculturas, faixas e
lizado a fim de que reconstrução de Bispo do Rosário bandeiras, quase sempre reinterpretações des-
se pudesse preser- ses mesmos objetos, produzidos com materiais
var a beleza artística algumas vezes recolhidos do lixo.
do manto.
Arthur Bispo do Rosário produziu e colecio-
nou um universo de miniaturas numa cela
minúscula. Conjugou esforço, tempo e acor- Conforme afirmava, sua missão era a de
dos políticos para assegurar tantas obras que, recriar o universo, mostrando a sua percepção
ao entrar no quarto-forte de Bispo em fins do de mundo ao Pai. Para isso, deveria estar
ano 70, o olho embaralhava. Um labirinto de portando um uniforme, uma espécie de
signos roubava a cena. (Hidalgo, 1996, manto que ele também se dedicou a realizar.
p. 114) Esse manto, com o qual pediu para ser en-
terrado2, aproxima-se em muito dos trajes
Pouco se sabe da história de Arthur Bispo do da nobreza, com suas próprias dragonas e
Rosário em época anterior à sua internação condecorações.
na Colônia Juliano Moreira, no Rio de
Janeiro, onde morou por mais de 50 anos Bispo mostra desde o início de sua obra uma
até a sua morte. Sabe-se que é originário de obrigação com o seu dever. Existe método
uma cidade no interior de Sergipe, Japara- em sua produção e na escolha dos objetos
tuba, nascido em 1909 e descendente de mumificados com os fios de seu uniforme de
interno desbotado e esse método é seguido à
escravos africanos, foi marinheiro na juven-
risca ao longo dos 50 anos de produção de
tude, vindo a tornar-se empregado de uma
sua obra e de mais de mil peças produzidas.
tradicional família carioca. Também traba- (Morais, 1998, p. 30)
lhou na Light, companhia de energia elétrica
do Rio de Janeiro, entre 1925 e 1938, sendo
Como postula Frederico Morais (1998), Bispo
nesta época que foi acometido por um surto
do Rosário passou a produzir objetos com
psicótico delirante, às vésperas da comemo-
diversos tipos de materiais oriundos do lixo
ração dos festejos do Natal. Em sua crise,
e da sucata que, após a sua descoberta,
acreditava ter visto Cristo descendo à terra
seriam classificados como arte vanguardista
com sua corte de anjos azuis e de ter rece- e comparados à obra de Marcel Duchamp.
bido deste a missão de ser portador da Entre os temas, destacam-se navios (tema
mensagem perante Deus no dia do Juízo recorrente devido à sua relação com a Mari-
Final. Deveria recriar o universo, tornando- nha na juventude), estandartes, faixas de
se Deus de seu mundo, para então mísses e objetos domésticos.
apresentá-lo reconstruído ao Criador original
(Hidalgo, 1996).
A sua obra mais conhecida é o Manto da
Apresentação, que Bispo deveria vestir no
Ao ser internado em hospital psiquiátrico, foi dia do Juízo Final. Com ele, Bispo pretendia
diagnosticado como esquizofrênico paranoide. marcar a passagem de Deus na Terra. Os ob-
Viveu até o fim de sua vida na Colônia Juliano jetos recolhidos dos restos da sociedade de
Moreira, onde faleceu em 1989. Foi sempre consumo foram reutilizados como forma de
considerado como um interno produtivo e registrar o cotidiano dos indivíduos, preparados
colaborador. Inicialmente, trabalhou na cozinha com preocupações estéticas, onde se percebem
e, em razão de seu “bom comportamento”, características dos conceitos das vanguardas
foi-lhe concedida autorização para sair da artísticas e das produções elaboradas a partir
Colônia e regressar quando bem lhe conviesse. de 1960. (Morais, 1998, p. 187)
Porém, não há registro de que ele tenha
saído alguma vez. Portador da missão de A partir da Psicanálise, podemos afirmar que
apresentar o mundo perante Deus, ele co- Bispo utilizava os significantes como elemento
meçou a produzir objetos com os materiais pulsante em sua obra. Seu recurso à linguagem
que encontrava em seu cotidiano. Sua arte manipula signos e brinca com a construção

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de discursos, fragmentando a comunicação Arthur Bispo do Rosário


em códigos privados. Inserido em um contexto e a Arte Bruta
excludente, Bispo driblava a instituição a
todo tempo, recusando-se a receber trata- Bispo já evidenciara seu talento artístico no
mentos médicos. Todavia, dela retirava sub- período anterior ao início das internações psi-
sídios para elaborar sua obra e, assim, mesmo quiátricas. Há registro da elaboração de pe-
sendo marginalizado e excluído, é consagrado quenas esculturas de madeira e objetos diversos.
como referência da Arte Contemporânea Foi, entretanto, durante os 50 anos em que
brasileira. esteve internado na Colônia Juliano Moreira
que produziu a grande maioria de seus traba-
Como refere Lacan (1985, p. 106) sobre a lhos de pintura, escultura, bordado e colagens,
“dissolução imaginária” do psicótico, podemos com utilização de materiais os mais variados
entender que o desencadeamento da crise possíveis. Seus trabalhos foram expostos pela
de Bispo do Rosário produz, em compensa- primeira vez fora da Colônia em 1982, na
ção, uma hipertrofia da imaginação. Conforme mostra À Margem da Vida, organizada pelo
o psicanalista, essa forma de reconstrução crítico de arte Frederico Morais, no Museu de
promovida pelo delírio, quando da emer- Arte Moderna do Rio de Janeiro.
gência de manifestações psíquicas inusitadas
e ameaçadoras, é produzida em função da Entre 1989 e 1993, portanto depois da sua
carência de amarras simbólicas. morte, foram expostas seis mostras indivi-
duais da obra de Bispo em várias instituições
Entre 1985 e 1986, o médico que atendia culturais e museus do país, sob curadoria de
os pacientes do Pavilhão Ulisses Viana, na Frederico Morais. Tais eventos contaram com
Colônia Juliano Moreira, escreve sobre o um público de visitantes aproximado de 100
Bispo: mil pessoas. A exposição inaugural, no
Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro,
vem mantendo a mesma conduta permanece foi avaliada como de absoluto sucesso, pro-
em seu quarto, realizando diversos trabalhos
movendo publicação de reportagens,
manuais criados por ele. (...) calmo e orien-
ensaios e artigos em jornais e revistas no
tado, vive num mundo particular, onde se
julga iluminado e profetiza o fim do mundo
país. Internacionalmente, a obra de Bispo
brevemente. Está na terra para cumprir sua participou da mostra Viva Brasil em uma das
missão. Recusa qualquer medicamento. principais instituições culturais de Estocolmo,
(Morais, 1998, p. 07) na Suécia. Em 1995, representou o Brasil na
46ª Bienal de Veneza, reconhecidamente o
Com tantos anos de internação, no entanto, principal evento de artes plásticas do
sua vida pregressa desvanecia sob a vista mundo. A partir daí, surgiram uma série de
grassa da Psiquiatria. Nenhum dos internos convites para que se expusesse sua obra nos
escapava a essa condição, imposta pela Estados Unidos, México e Espanha.
reclusão em uma instituição total, mas Bispo
era a ovelha desgarrada de um rebanho sem A ressonância pública de sua vida e obra
rumo; sua obra seu espaço de resistência impulsionaram a realização de filmes: O Pri-
interna à homogeneização proposta à lou- sioneiro da Passagem, realizado por Hugo
cura. Como afirma Hidalgo (1996, p .43): “À Denizarte, O Bispo do Rosário por Helena
margem da vida na Colônia, ele se ilhava Rocha e Miguel Pozdoravski (Morais, 1998,
num pedaço de cela e se esforçava para p. 04). Alguns críticos de arte e artistas se
construir um outro mundo. Neste, Bispo mostraram particularmente atentos para a
era rei.” modalidade pouco convencional de Bispo

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ao confeccionar obras sem consideração acatar a ordem recebida, usando então a arte,
pelas convenções acadêmicas, formalismos para retratar ‘tudo o que existe no mundo no
ou enquadramento estilístico. momento de sua passagem’. (p. 227)

O pintor francês Jean Dubuffet foi um dos É a partir de então que Bispo irá utilizar
primeiros a se interessar pela produção objetos e dejetos recolhidos no cotidiano de
artística de pacientes psiquiátricos e de outros sua permanência na Colônia para fabricar
artistas despossuídos de formação acadêmica. miniaturas (utensílios domésticos, maquetes
Denominou “Arte Bruta” a estas produções de esportes, etc.), produzir esculturas mumi-
atípicas inventadas a partir somente dos im- ficadas (elaboradas com a linha azul que
pulsos do artista. Em 1949, ele colocou em desfiava de seu uniforme interno), bordar
questão a forma de se denominar “arte de painéis nos quais escrevia com agulha e
doentes mentais” como se fosse algo distinto linha nomes de pessoas, países, aconteci-
da arte em si (Soares, 2000). mentos, acidentes geográficos.

Nessa mesma época, Arthur Bispo do Rosário A designação dessa forma de arte como “Arte
seguia seu rumo, compondo sozinho, re- Bruta” e a discussão acerca da chamada ‘arte
mando contra maré das incongruências da dos loucos’, porta em si questões cruciais. A
Colônia. “Não recebia o papel, a tinta e o absorção cultural de formas originais e diver-
carvão, mas desfiaria o próprio uniforme sas de manifestações expressivas e a incor-
para conseguir a matéria bruta de sua arte” poração de modelos informais, distanciados
(Hidalgo, 1996, p. 62). de uma lógica linear e coerente, são aspectos
em proliferação e que perpassam as mais di-
ferentes modalidades artísticas contemporâ-
Delírio e Arte neas (o cinema, a música, a literatura). E, se
isso ocorre no nível da arte, é porque con-
A arte nos confronta com percursos na con- siste em uma esfera de veiculação e retração
tramão. Assim, a potência de uma obra de daquilo que se vislumbra na totalidade do
arte está em nos permitir o desvio, a deriva, processo sociocultural.
o encontro de um enigma que não indica o
caminho, mas nos obriga ao movimento da A obra de Bispo do Rosário apresenta, em
imaginação. (Sousa & Tessler, 2007, p. 40) particular, além da originalidade de sua exe-
cução, a evocação imediata da figura de seu
O potencial artístico de Bispo confirmou-se autor e dos alicerces biográficos de sua ela-
enfaticamente após um episódio ocorrido em boração. Trata-se de alguém movido por de-
1967. De acordo com Frederico Morais, es- lírios místicos, situado, em relação aos padrões
tando internado na Colônia e recluso na soli- normativos, como “à margem”, conforme
tária após agredir outro interno (o que era diriam antigos teóricos sociais. Assim, é uma
denominado como função de “faxina” contra obra cuja intitulação categórica a situaria
a rebeldia de outros pacientes), foi acometido nos rótulos de estigma, exclusão, marginali-
por uma alucinação auditiva que dizia “Está dade social.
na hora de você reconstruir o mundo”.
E eis que a obra de Bispo desponta, nesse
Quinet (2006) caracteriza esse momento da estágio de produção cultural pós-moderna,
biografia de Bispo do Rosário como sendo: exercendo fascínio e admiração no público,
descortinando a inadiável necessidade de
desencadeante de sua criação como sintoma. redimensionamento dos valores, de inclusão,
A partir daí, Bispo nega-se a sair da reclusão a na multiplicidade de discursos, de uma ótica
qual permaneceu por sete anos, decidido a que abarque as alteridades.

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3 Literalmente: “que Bispo do Rosário agia sob influência de vozes gédia de Édipo Rei, por exemplo, enquanto
comove, emociona”
(DICIONÁRIO Ale-
alucinatória que lhe diziam o que fazer. ficção que encena o núcleo da constituição
mão-Português, Conforme Quinet, diferentemente da criação subjetiva. Também, sua recorrência ao termo
2009, p. 197). pela sublimação, a criação pelo sintoma im- Ergreifung3 para indicar o efeito de ser “to-
plica o tratamento da Coisa (das Ding) só cado” por uma obra, ser verdadeiramente
que, desta vez, há o esvaziamento do gozo. capturado por ela. Uma obra de arte seria,
Daí que a forma do sujeito barrar a Coisa se então, uma espécie de armadilha para o su-
dê por meio de sua arte. O sintoma é, assim, jeito, uma captura deste que estaria, com
entendido como uma modalidade criacionista sua dor e beleza, escondido de si mesmo: o
de o sujeito lidar com o gozo para não ser inconsciente.
aniquilado. Esse é o caso da obra de Bispo
que, com sua arte, faz um “inventário do Freud, no entanto, não se dedicou a trabalhar
mundo”, povoando-o de objetos que con- sobre a especificidade da criação artística na
densam, despedaçam, partilham o gozo da psicose. Deu-nos a indicação preciosa de
Coisa de modo a não ser invadido por ela. que nesse o inconsciente se expressa “a céu
Sua obra é, portanto, fruto de um intencional aberto”, o que permitiu que muitos artistas,
inventário do mundo, advindo da impossi- entre eles os surrealistas, aproximassem a
bilidade de reconstrução pela via única do loucura da criação. Devemos a Lacan o de-
delírio que, no seu caso, era constituído senvolvimento das questões relativas à clínica
pela missão de representar a existência da da psicose aportando uma leitura sobre o
terra junto ao Criador. tema da criação que não a idealize ou ro-
mantize. Em síntese, tem-se a tarefa na Psi-
Arthur Bispo do Rosário, incitado pelas canálise de considerar a obra do artista louco
vozes, fazia arte com os objetos de seu dia a sem desmerecer seu sofrimento.
dia, criando para si próprio uma ressignifica-
ção do mundo. É preciso notar que, em ne- Como vimos, o sujeito psicótico é invadido
nhum momento, ele fez qualquer tipo de por um gozo, sob a forma de sofrimento, de
trabalho envolvendo santos ou imagens de angústia, de despedaçamento do corpo, de
cunho religioso normativo, ou que tenha vozes e outros fenômenos da ordem do in-
produzido imagens em tela ou desenhos de suportável. Ademais, conforme escreve Quinet
qualquer tipo. A reinterpretação do mundo (2006, p. 221), será
que realizava era-lhe absolutamente singular,
pois ao fazê-lo, reinterpretava a si e ao para lidar com esse gozo que invade e diante
mundo a sua volta estabilizando uma signifi- da ausência do significante que poderia contê-
cação em seu delírio. lo, [que o psicótico] usará o recurso do delírio
e ou da arte, sendo ambos da ordem da criação,
criação sui generis, pois não passa pela ordem
estabelecida da cultura que é estruturada sim-
Psicose e Criação bolicamente segundo a ordem do pai simbólico,
do Nome-do-Pai. Quando referida à arte
A importância da arte para a construção da cultural, a criação pode ser articulada ao
obra de Freud é notória em diferentes textos conceito de sublimação, teorizado por Freud,
que trabalham tanto o tema da produção como um dos destinos da pulsão sexual.
artística como os efeitos estéticos produzidos
no espectador. Conforme indica Rancière Além de ser significante da paternidade, o
(2009), a arte tem uma importância funda- Nome-do-Pai sustenta o neurótico diante da
mental na fundação da Psicanálise: ela dá vertigem e até mesmo da angústia diante da
testemunho da tese freudiana do inconsciente. borda, do limite da cadeia simbólica. Uma
vez que, conforme Lacan (1991), toda criação
Isso é perceptível em diferentes aspectos da implica no tratamento da Coisa (das Ding), o
argumentação freudiana. Seu recurso à tra- artista tenta fazer surgir na tela, nos objetos,

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nas letras, o que resta do gozo perdido pela um caminhar. Considerando o uso ou posse
inscrição do significante da filiação. Esse, o desse objeto por aquele que apresenta uma
Nome-do-Pai, na medida em que é inscrito deficiência, a bengala pode restituir a capa-
no sujeito barra seu acesso à Coisa, esvazian- cidade em algum momento perdida; sua
do-a de gozo, esvaziamento que tem para o fragilidade como instrumento de apoio, no
sujeito o significado da castração. entanto, pode também sofrer os efeitos de
uma ruína, fazendo sua função despencar.
Assim, é esse gozo da Coisa, do qual o
sujeito na neurose sofre de nostalgia, gozo Do mesmo modo, os delírios são para os
perdido desde sempre, que o artista tenta psicóticos uma espécie de “bengala imagi-
evocar no espectador. Ao fazê-lo, ele traz à nária” que surge como meio de sustentação
baila a temática da castração, produzindo para o sujeito. Sustentação daquilo que se
certa suspensão. Essa situação, que deveria faria sentir aos pedaços, como queda e frag-
provocar horror, horror da castração, o artista mentação, não fosse a significação, mesmo
a escamoteia (produz um velamento) com a que frágil, que o delírio lhe confere. A mate-
arte, fazendo emergir a fruição estética, o rialidade desse delírio pode ser observada
prazer que a arte normalmente propicia. As- tanto na escrita das Memórias por Schreber,
sim, a arte, no sentido cultural e sustentada como a produção da “Arte Bruta” por Arthur
pelo Nome-do-Pai, se organiza em torno do Bispo do Rosário.
vazio da Coisa, povoando esse vazio com os
objetos imaginários que tanto satisfazem nos- Antes da primeira crise, o psicótico encon-
sos devaneios. tra-se muitas vezes sustentado subjetivamente
em uma relação dual, com um duplo imagi-
Já na psicose, por não haver essa mediação, nário. Por falta do significante do Nome-do-
a criação, conforme indica Quinet (2006), é Pai, o psicótico encontra compensação em
uma tentativa de recriar ou reconstituir o ela uma série de identificações com personagens
que falha na simbolização e que joga o nos quais se apoia. Lacan (1988) compara
sujeito no vazio da significação. O delírio esta situação pouco estável do sujeito antes
busca, portanto, preencher as lacunas do do desencadeamento psicótico a um ban-
discurso e restabelecer uma lógica que se quinho de três pés, ao qual falta o quarto pé
quebrou (Quinet, 2006, p. 221). que lhe daria estabilidade.

Lacan, em seu seminário sobre as psicoses, Nem todos os tamboretes têm quatro pés.
escreve: “um delírio deve ser julgado em pri- Há aqueles que ficam em pé com três. Con-
meiro lugar como um campo de significação tudo, não há como pensar que venha faltar
que organizou um certo significante” (Lacan, mais um só senão a coisa vai mal. Pois bem,
saibam que os pontos de apoio significantes
1988, p. 141). É nesse sentido que o trabalho
que sustentam o mundinho dos homenzinhos
do analista na clínica da psicose não difere
solitários da multidão moderna são em número
substancialmente da clínica da neurose: é muito reduzido. É possível que de saída não
preciso deixar o sujeito falar para que aquilo haja no tamborete pés suficientes, mas que
que é da ordem do real, não simbolizado, ele fique firme assim mesmo até certo mo-
possa encontrar ali um meio de inscrição. mento, quando o sujeito em certa encruzilhada
de sua história biográfica, é confrontado com
este defeito que existe desde sempre. Para
Bengalas imaginárias designá-lo, contentamo-nos até o presente
com o termo Verwerfung. (p. 231)
A palavra “bengala” tem, no uso comum, o
sentido de suporte e apoio. Materialmente, O sujeito psicótico é, pois, levado a servir-se
a bengala é um bastão, um bordão que tem de “bengalas” imaginárias que, no entanto,
a função de amparar alguém, permitindo não lhe dão apoio quando ele tropeça no

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buraco da significação ausente. O termo Para concluir: a obra como


pré-psicose, expresso pelos fenômenos ele- metáfora delirante
mentares, deve ser tomado ao pé da letra,
diz Lacan, de que o sujeito chegou à beira
A natureza deu ao artista a capacidade de
do buraco. Dessa maneira, o que mantém o exprimir seus impulsos mais secretos, desco-
esquizofrênico estabilizado, ou pelo menos nhecidos até por ele próprio, por meio do
fora do surto, são as bengalas imaginárias, trabalho que cria; e estas obras impressionam
sustentadas no eixo narcísico, bengalas das enormemente outras pessoas estranhas ao
quais ele se dispõe como uma forma de se artista e que desconhecem, elas também,
relacionar consigo mesmo e com o mundo. a origem da emoção que sentem. (Freud,
Na medida em que há uma dissolução ima- 2006, p. 218)
ginária, essas bengalas não servem mais de
sustentação para o sujeito. Tem-se aí, a pre- Pesquisar a relação entre arte e psicose é
sentificação do real e, consequentemente, o aventurar-se a penetrar em um universo
desencadeamento do surto psicótico. denso e complexo. Na clínica psicanalítica,
seja com pacientes neuróticos ou psicóticos,
É neste momento que a produção artística a realidade que nos ocupa é a realidade psí-
pode restituir ao sujeito sua significação, re- quica, aquela criada pelo próprio sujeito
construindo a “bengala” perdida. A função que está ali e que sofre. Trata-se de uma
do belo de modo geral, na cultura, produz realidade cifrada e inscrita em uma rede sig-
efeitos imaginários que vêm a fazer suplência nificante que possui lacunas, vazios de signi-
nos vazios da significação. As artes, dizendo ficação, mais ou menos abrangentes e im-
de forma muito rápida, oferecem uma imagem portantes conforme a estrutura com a qual
que responde (mesmo que não satisfaçam) estejamos lidando.
a nossa ânsia de representações ideais.
Como já indicamos, as criações e obras de
Assim, as suplências, bengalas imaginárias na arte são construções que podem permitir ao
clínica, são marcas da diversidade dos fenô- sujeito uma sustentação subjetiva também
menos do acontecer psíquico. Como consta- na neurose, mas, sobretudo, na psicose. Para
tamos nessa pesquisa, para o psicótico, a rede Lacan (1985), trata-se de reafirmar essa con-
significante é lacunar, apresentando falhas em cepção abordando a metáfora delirante como
pontos importantes de amarragem da signifi- uma “solução elegante” para ordenar o caos
cação. Na psicose, a foraclusão do significante significante.
do Nome-do-pai impede o deslizamento do
sentido. É neste lugar que os fenômenos deli- No caso de Schreber, revisitado acima, os
rantes, alucinatórios, se produzem. dois elementos principais do sistema delirante
são sua transformação em mulher e sua re-
Como dissemos, a construção delirante vem lação favorecida com Deus. A metáfora de-
instaurar uma forma de realização muito lirante produzida é a significação de ser
própria de reconstrução. No delírio, vamos “Mulher de Deus”. Assim como o Nome-
encontrar uma construção imaginária que do-Pai na neurose, esse significante tem
permite um desgarramento daquilo que por função de ponto de basta. Com isso, há li-
vezes se impõe como perseguidor e intole- mitação do gozo, anteriormente avassalador.
rável. Por meio de uma produção como as A metáfora delirante, portanto, tem função
Memórias de Schreber e a criação artística organizadora, permitindo nova ordem sim-
de Arthur Bispo do Rosário, esse imaginário bólica ali onde não estava havendo nenhuma
ganha consistência. Em alguns casos, como e possibilitando a recomposição do imaginário.
indica Lacan acerca da obra de James Joyce,
essa forma de escrita pode até fazer às vezes Conforme indica uma importante observação
do significante foracluído. de Freud (2006, p. 286):

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4 “No auge de sua Os delírios dos pacientes parecem-me ser Sem que algum dia tivesse saído de sua cela
doença, Schreber equivalentes das construções que erguemos para visitar exposições ou folhear revistas de
convenceu-se da
iminência de uma no decurso de tratamento analítico – tentativas arte em alguma biblioteca sofisticada, Bispo
grande catástrofe: de explicação e de cura, embora seja verdade fez nos anos 60 assemblanges (...) A lógica for-
fim do mundo. (...). que estas, sob as condições de uma psicose, mal com que Bispo envolve seus trabalhos
O fim do mundo é a não podem mais do que substituir o fragmento antecipa certos aspectos da nova cultura
projeção de sua ca-
tástrofe interna: seu de realidade que está sendo rejeitado no pre- inglesa (...). Os textos costurados de Bispo
mundo subjetivo sente por outro fragmento que já foi rejeitado lembram os manuscritos de Joaquim Torres-
chegou ao fim” no passado (...). Tal como nossa construção Garcia, nos quais se funde palavra e imagem.
(Freud, 2006, p. 76). só é eficaz porque recupera um fragmento (...) O manto e as demais roupas de Bispo
de experiência perdida, assim também o remetem aos parangolés de Hélio Oiticica,
delírio deve seu poder convincente ao ele- tanto quanto sua cama-nave assemelha-se à
mento de verdade histórico que ele insere no casa-ninho de Oiticica em sua residência
lugar da realidade rejeitada. nova-iorquina ou Éden que ele expôs em Sus-
sex, Inglaterra.
Podemos verificar que Schreber formula em
sua escrita o quanto sua tarefa consistia em A obra de Arthur Bispo do Rosário vazou as
reparar a catástrofe que atingira seu mundo.4 fronteiras do hospício, do Rio de Janeiro, do
Freud (2006, p. 78) escreve que por meio Brasil, da Europa, e ancorou na Suécia. Por
do delírio: meio da arte, o inconsciente a “céu aberto”
do psicótico, que escancara a falha na
o paranóico constrói-o de novo, não mais es- cadeia simbólica e na produção de significa-
plêndido, é verdade, mas pelo menos de ma- ção, pode incluir os pontos de ruptura da
neira a poder viver nele mais uma vez. cadeia significante, na inscrição de um novo
Constrói-o com o trabalho de seus delírios. A laço do sujeito com o mundo. A criação,
formação delirante, que presumimos ser pro- como procuramos demonstrar neste artigo,
duto patológico, é, na realidade, uma tentativa
é a via pela qual o sujeito pode passar do
de restabelecimento, um processo de recons-
singular ao coletivo. Isso vale tanto para o
trução.
sujeito em sofrimento como para a própria
Como vimos, também Arthur Bispo do Rosário teoria psicanalítica, que, por meio de seus
se utiliza do delírio, da missão recebida de ser conceitos, busca circunscrever a particulari-
portador da reconstrução do mundo perante dade de cada trabalho de transferência.
Deus no dia do Juízo Final. Ele deveria tornar-
se deus de seu mundo, para então apresentá- Podemos dizer, por fim, que, para criar, é
lo ao Criador original. Desse modo, torna preciso deixar aparecer a sede que cada um
literal a forma como o homem comum vê o tem de se apresentar ou representar. Não
artista: como criador de um novo mundo. para preenchê-la, mas deixar que surja, que
se faça a busca do que falta a dizer. Sempre,
Nas palavras da biógrafa de Bispo, Luciana ainda, mais. Como vimos, a leitura da clínica
Hidalgo (1996, p. 195): passeia pela escrita da cultura.

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Maria Cristina Poli


Doutora em Psicologia pela Universite de Paris, França. Docente da Universidade
Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro – RJ. Brasil
E-mail: mcrispoli@terra.com.br

Dalva Botelho Gandra Mesquita


Graduação em Psicologia pela Universidade Veiga de Almeida, Rio de Janeiro – RJ. Brasil
E-mail: dalvagandra@yahoo.com.br

Endereço para envio de correspondência:


Rua Pasteur, 250 – Fundos. Praia Vermelha. CEP 22290-240. Rio de Janeiro, RJ. Brasil

Recebido 14/05/2013, Aprovado 12/12/2013.

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