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REALIDADE E FICÇÃO EM O ETERNAUTA

RESUMO

O Eternauta é uma história em quadrinhos argentina de ficção científica considerada por muitos
como uma das melhores de todos os tempos e certamente uma das mais importantes da HQ
argentina. Nela, o roteirista Héctor Oesterheld e o desenhista Solano López narram uma invasão
alienígena na capital portenha. A obra teve uma primeira versão, lançada originalmente de forma
seriada em 1957 na revista Hora Cero, edita pelo próprio Oesterheld. Em 1969 uma segunda versão
da mesma trama foi publicada na revista Gente, agora com desenhos de Alberto Breccia. Enfim, em
1976 foi publicada a segunda parte da trama, com desenhos de López e texto de Oesterheld, que não
chegou a ver o resultado impresso, uma vez que foi sequestrado e morto pela ditadura. Um dos
aspectos revolucionários da obra foi o fato do roteirista ter se colocado dentro dela, primeiro como
ouvinte-narrador e posteriormente como personagem que participa das ações narradas. Este recurso,
e outros, quebram a separação entre realidade e ficção de modo que o leitor veja a trama não como
fruto da imaginação dos artistas, mas como algo que pode acontecer. Este artigo analisa a obra O
Eternauta do ponto de vista das estratégias narrativas de verossimilhança adotados por Oesterheld e
seu impacto sobre o leitor.

PALAVRAS-CHAVE: Eternauta, Oesterheld, realidade e ficção

1 INTRODUÇÃO
No mundo atual, a linha que separa a realidade da ficção se torna cada vez mais
tênue. Boatos espalhados pela internet são tidos como verdadeiros, obras de ficção tomam
ares de realidade e muitas vezes a realidade é tida como ficção.
Segundo Borges (2014, p. ) as transmissões do ataque terrorista de 11 de setembro
foram acompanhadas, na TV francesa, por um aviso de que não se tratava de ficção.
Oliveira (2015) reporta um caso em que uma ficção se tornou real. Na cidade de
Macapá, após um longo período de falta de combustível, um radialista local intuiu que o
mesmo poderia voltar a acontecer e deu a notícia. O resultado foi uma corrida aos postos
por parte de quem ouvia o programa. Ao verem o movimento nos postos, outros motoristas
imaginaram que estava havendo outra crise de combustível, e engrossaram as filas. Como
os postos não estavam preparados para esse aumento súbito da demanda, o combustível de
fato terminou. Ou seja: a notícia falsa tornou-se verdadeira.
Na arte essa barreira vem sendo testada há bastante tempo: desde Edgar Allan Poe e
a notícia falsa de um balonista que estava atravessando o Atlântico (que fez estourar as
vendas do jornal que a publicava) até a transmissão radiofônica de uma adaptação do
romance Guerra dos Mundos, levada a cabo por Orson Welles, que acabou convencendo
milhões de pessoas que os EUA estavam de fato sendo invadido por extraterrestres.
Nos quadrinhos, um trabalho que se destaca por esse caráter de extrapolar a barreira
entre a ficção e a realidade é O Eternauta, obra seminal do roteirista Hector Oestherheld em
parceria com o desenhista Solano Lopez. A obra mistura essas duas categorias ao mostrar o
narrador, o roteirista, como personagem, a princípio apenas ouvinte e posteriormente ativo
na história. E, considerando-se que essa HQ se tornou uma metáfora da luta contra a
ditadura militar, o sequestro e desaparecimento de seu autor reforçam ainda mais essa
mistura entre realidade e ficção.

2 FICÇÃO E REALIDADE
Antes de tratarmos da realidade e ficção na obra de Oeterheld e Lopez, cumpre
analisar esses termos.
O senso comum trata a realidade como algo dado. O mundo “real” é visto como algo
pronto, externo ao observador.
Na filosofia, esse modo de ver é representado pela corrente representativista, em que
o conhecimento gerado pela nossa observação do mundo é uma representação fiel de uma
realidade independente do conhecedor: “Segundo essa teoria, nosso cérebro recebe
passivamente informações vindas já prontas de fora (...) O mundo conteria ‘informações’ e
nossa tarefa seria extrai-las dele por meio da cognição”. (MARIOTTI in: MATURANA;
VARELA, 2001, p. 7-8)
Visto sob esse ponto de vista, a realidade é o oposto da ficção. Realidade passa a ser
visto como verdadeiro, concreto, em oposição ao ficcional, que é visto como mentira,
fingimento.
No entanto, como lembra Ivete Lara Walty (1986, p. 5), “Lendo sempre, poderá se
surpreender ao perceber o quanto a ficção esconde a chamada realidade e, como, através da
ficção, pode-se desvendar o real enquanto processo, fruto das relações dos homens entre si
e com a natureza”.
A separação entre realidade e ficção teria sido demarcada, na filosofia, com
Aristóteles: “Aristóteles construiu paradigmas antitéticos que foram decisivos para as
configurações opostas entre literatura, história e arte”. (BORGES, 2014, p. 79)
Para Aristóteles (2003) a poesia não se difere da história pelo fato do poeta escrever
em versos e o historiador em prosa, mas pelo fato de que o historiador escreve sobre o que
aconteceu e o poeta sobre o que poderia ter acontecido. Dessa forma, fica estabelecida uma
separação concreta entre ficção, vista como imaginação, e a história, a realidade, vistas
como fatos concretos. Embora o próprio Aristóteles considere que a poesia faça uso de
personagens reais, define que esse uso tem como objetivo apenas a verossimilhança (uma
percepção que, apesar de ainda separar drasticamente história e poesia, é mais avançada do
que outras que viriam depois).
Com o advento do racionalismo, essa dicotomia se tornou ainda mais marcada. A
ficção se tornou lugar de fantasia, do artista, enquanto, do outro lado, ficavam os homens
sensatos, racionais, cumprindo funções utilitárias. Nessa visão, a realidade é a expressão
pura da verdade, em detrimento da imaginação, vista como imaginação pura e simples. A
ficção é compreendida como fingimento, construção da imaginação, relato ou narrativa que
resulta de uma interpretação subjetiva de um acontecimento e até mesmo com falácia.
Segundo Luis Costa Lima (apud BORGES, 2014 p. 58), o advento da razão
contribuiu para a “repressão do campo da ficção, relegando a poesia e à arte condição
subalterna de fingimento, mentira e irreal”.
Borges (2014), no entanto, lembra de Umberto Eco, que, no livro Passeios no
bosque da ficção questiona até que ponto esta difere da verdade histórica e pergunta-se o
que acontece quando o leitor mistura os papeis e considera como reais personagens fictícias
e vice-versa (nesse sentido, vale lembrar um exercício literário do próprio Eco, com
Baudolino, que trata exatamente desse tema).
Ainda Eco, em A obra aberta, afirma que toda narrativa é ambígua, espécie de
cristal, refratando diretamente a luz de cada intérprete: “a única leitura confiável de um
texto é uma leitura equivocada, que a existência de um texto só é dada pela cadeia de
respostas que evoca e, que, como Todorov sugeriu maliciosamente, um texto é apenas um
piquenique onde o autor entra com as palavras e os leitores com o sentido.” (ECO apud
BORGES, 2014, p. 82)
De fato, no mundo contemporâneo, ficção e realidade deixam de ser vistos como
opostos.
A própria questão do que é, daquilo que é verdadeiro ou não, é colocada
em jogo. E as novas tecnologias colaboraram em muito para isso. Hoje é
muito fácil adulterar dados,manipular imagens e criar perfis virtuais que
podem se passar perfeitamente como algo que, de fato, existe; algo real,
tão real quanto a própria realidade. (SCHABBACH, 2014, p. 2)

No mundo atual, em que as pessoas vivem envoltas em meios de comunicação, elas


passam a ser envoltas também por mundos ficcionais e virtualizados, com comunidades
virtuais, identidades virtuais, passam a viver esse mundo muitas vezes com maior
intensidade que o assim chamado mundo real: “De algum modo, a linha entre o que é real e
ficcional começa a desaparecer, ao menos quando se trata de percepção”. (SCHABBACH,
2014, p.5)
Segundo Augé (apud BORGES, 2014, p. 16) o audiovisual produz “um novo
regime de ficção, e esse regime se instaura afetando nossa vida social a ponto de nos fazer
duvidar da realidade”.

Segundo Bauman (apud SCHABBACH, 2014, p. 3):


Para descobrir o que, no mundo real, é verdadeiro e o que é falso,
tenho de tomar muitas decisões difíceis e nunca efetivamente
garantidas a respeito da confiança que eu investiria em algumas
comunidades, mas negaria a outras – direta ou indiretamente,
dizendo-o explicitamente, ou endossando tacitamente as suposições
que confirmam suas opiniões e, assim, atestam a correção da crença
em pauta.

Num mundo em que ficção e realidade se imbricam de maneira tão orgânica, em que
anúncios publicitários parecem mais reais que a realidade, com seus sanduiches perfeitos e
pessoas felizes, a arte tem respondido com obras inquietantes, que refletem sobre essa
situação e colocam em xeque nossas certezas. Entre elas a clássica história em quadrinhos
O Eternauta.
3 O ETERNAUTA
El Eternauta é uma história em quadrinhos seriada, publicada no semanário Hora
cero, escrita por Oesterheld e desenhada por Francisco Solano López.
Segundo Paulo Ramos (2011), o personagem é uma das figuras míticas nacionais, ao
lado de Carlos Gardel, Evita Perón e Che Guevara.
A série surgiu em 1957, quando, decidido a lançar uma revista seriada semanal, o
roteirista indagou de um dos principais desenhistas de sua editora que tipo de quadrinhos
gostaria de fazer, ao que López respondeu que preferia fazer algum tipo de ficção científica
realista. Oesteherld escreveu a obra em decorrência de seu fascínio pela história de Robison
Crusue, que, por infortúnio do destino, se vê sozinho em uma ilha deserta. Mas,
paradoxalmente, o Eternauta quase nunca está só. Embora a história refletisse sobre a
solidão do homem preso, cercado não mais pelo mar, mas pela morte, a verdade é que o
protagonista sempre está acompanhado de família, amigos. Ele é um herói de grupo, que
não age sozinho: “Agora, pensando melhor, vejo que talvez seja essa ausência de um herói
central que faz de O Eternauta uma das minhas histórias que recordo com mais prazer. O
verdadeiro herói de O Eternauta é um herói coletivo, um grupo humano” (OESTERHELD;
LOPEZ, 2011, p. 5). Esse aspecto do quadrinho tem sido destacado como o principal
aspecto político da história: a ideia de que não existem heróis solitários, mas heróis
coletivos.
A estreia aconteceu na primeira semana de 1957, no suplemento Hora Cero
Semanal. Era a terceira revista lançada pelos irmãos Jorge Mora e Hector. Ambos
escreviam histórias, mas Oesterheld ficava encarregado da maior parte da produção.
Semana a semana, a história foi evoluindo, mistérios aumentando, personagens
aparecendo e se mostrando tridimensionais, a exemplo dos Mãos, usados pelos invasores
para coordenar as ações dos alienígenas, que se revelam não serem vilões, mas apenas
obedeceram ordens para não serem mortos. A cada semana a série foi ganhando mais
leitores.
Em 1969, a convite da revista Gente, Oesterheld reescreveu a trama numa
perspectiva mais adulta e politizada (nessa versão, os países de Primeiro Mundo entregam a
América Latina aos extraterrestres, o que explica a invasão a Buenos Aires) e com desenhos
de Alberto Breccia. Essa versão foi mal-recebida pelo público e pelos editores, que
reclamavam sobretudo do desenho pouco convencional de Breccia – e o roteirista foi
obrigado a abreviar o roteiro, apressando a ação para que a história terminasse, o que é
irônico, já que Breccia hoje é considerado um dos melhores desenhistas de quadrinhos de
todos os tempos.
Em 1976 foi lançado um álbum compilando a primeira versão, que teve ótima
aceitação, o que levou a editora Record a encomendar para o roteirista e desenhista uma
continuação da história. O Eternauta II foi publicado em capítulos mensais a partir de
dezembro de 1976 e finalizado em abril de 1978. O roteirista não chegou a ver essa versão
impressa, pois foi preso pela ditadura argentina em abril de 1977. Provavelmente morreu na
prisão, assim como suas quatro filhas, duas delas grávidas.
Segundo Paulo Ramos (OESTERHELD; LOPEZ, 2011, p. 9), “Oesterheld vive na
memória do leitor argentino. Muito disso por conta das reedições de suas histórias,
principalmente El Eternauta, que se verteu num dos símbolos culturais do país”.
Exemplo dessa importância cultural foi a polêmica, em 2011, quando a campanha da
candidata Cristina Kirchner mostrou o ex-presidente Nestor Kirchner caracterizado como o
Eternauta, com a roupa isolante e o óculos de mergulho, chamando-o de Nestornauta. A
oposição questionou o uso político de um dos símbolos nacionais e a polêmica gerou
diversas matérias na imprensa argentina e até no Brasil.
.
4 REALIDADE E FICÇÃO EM O ETERNAUTA
Realidade e ficção se misturam desde a primeira prancha. Nela vemos o roteirista
Oeterheld, chamado na história de Gérman, em seu escritório às três da manhã, produzindo
seus roteiros. É quando surge uma estranha figura à sua frente, que inicialmente ele toma
por um fantasma. Mas, olhando as mãos do homem percebe que aquelas mãos rugosas, com
veias marcadas só podiam ser deste mundo. A figura usava uma estranha roupa, de um
material nunca visto, que não se assemelhava a algodão ou plástico. É o Eternauta, que lhe
pergunta o que faz. Germán responde que está escrevendo uma história em quadrinhos.
“Um roteirista de quadrinhos! Que casualidade eu vir, entre todas as casas, vir parar
justamente nesta”, diz o Eternauta, antecipando que suas palavras em breve farão parte de
um roteiro. E, enquanto se recupera, conta sua história.

Figura 1 – A introdução do roteirista na história aumenta a verossimilhança e mistura realidade e


ficção.
Fonte: ZONA NEGATIVA. Disponível em: http://www.zonanegativa.com/semana-hgo-el-
eternauta-%E2%80%9Csave-buenos-aires-save-the-world%E2%80%9D-alex-fernandez/. Acesso
em: 11 maio 2015.

A presença do roteirista, figura real, configura aquilo que Aristóteles chamava de


verossimilhança:
Na tragédia, os poetas recorrem a nomes de personagens que existiram,
pela razão de que o possível inspira confiança. O que não aconteceu, não
acreditamos imediatamente que seja possível; quanto aos fatos passados,
não discutimos a possibilidade dos mesmos, pois, se tivessem sido
impossíveis, não teriam se produzido. (ARISTÓTELES, 2003, p. 44)
Em O Eternauta essa relação é mais complexa. Os fatos narrados são contados, para
uma pessoa real, como havia descrito Aristóteles, mas tratam de fatos futuros. Essa
estratégia insere verossimilhança na trama desde a primeira página. Paulo Ramos (in: logia
de OESTERHELD; LOPEZ, 2011, p. 9) lembra que a história era contada “como se estivesse
acontecendo naquele exato momento, fora da casa de quem lia a história”.
A história contada por Oesterheld é a invasão extraterrestre a Buenos Aires (a
história não deixa claro se o resto do mundo também foi invadido – na versão posterior, de
1969, as potências de primeiro mundo entregam a América Latina aos invasores). A capital
argentina é tomada por uma névoa mortal, que deixa os protagonistas presos em casa,
vendo as pessoas morrerem na rua ao terem contato com os flocos. Posteriormente, para
conseguir sair, o protagonista usa um traje de mergulho, origem de sua icônica roupa.
O leitor acompanha a saga dos sobreviventes em sua luta contra o invasor e suas
linha de ataque formadas por seres capturados em outros planetas conquistados.
O final, especialmente, nos interessa. Após receberem uma transmissão radiofônica
a respeito de uma zona de segurança defendida por militares, os sobreviventes (O Eternauta,
sua esposa Elena, sua filha Martita, Favalli, Mosca, Franco e Pablo) se dirigem ao local em
um caminhão.
No local marcado, encontram um grupo de militares que se mostram amigáveis, mas
logo em seguida exigem que eles entreguem as armas. Apesar de uma desconfiança inicial,
os sobreviventes decidem entregar as armas, ao perceberem que os soldados não têm
telediretores instalados em suas nucas (que os transformaria em homens-robôs). Mas
Franco percebe o ardil: os aparelhos estão, na verdade, instalados nos fuzis que estes
seguram.
O que se segue é um verdadeiro triller e uma amostra de como Oesterheld manejava
o suspense e ação com maestria.
Os sobreviventes tentam fugir no caminhão, mas um grupo de burgos os impede.
Depois uma nave semelhante a um disco voador faz tombar o caminhão.
Os homens se escondem numa trincheira e Favalli elabora um plano: ele e os outros
irão atirar nos soldados, para distrai-los, enquanto Juan, Martita e Elena pegam os trajes
isolantes no caminhão. Mas, na verdade se trata de um estratagema para salvar o trio, como
fica claro quando o local em que eles estão, assim como o caminhão, são bombardeados.
Segue-se uma sequência melancólica, em que Juan e sua família, escondidos na
trincheira, veem um grupo de soldados se aproximar, entre eles Favalli, Mosca, Franco e
Pablo, agora transformados em homens-robôs.
Sem o caminhão, sem os amigos, os três parecem perdidos.
Mas Juan, ao ver a nave pousada no solo, resolve se esconder ali e, talvez, fazê-la
funcionar. Quando os homens-robôs se aproximam, ele resolve arriscar, mexendo nos
controles. A nave então viaja não no espaço, mas no tempo. Quando dá por si, Juan Salvo
está em um local deserto, onde encontra um dos dedos, envelhecido, que lhe informa de que
estão no continum 4. Juan descobre que a máquina, chamada de Cosmo esfera, o jogara em
uma dimensão fora do espaço e do tempo.
O protagonista passa a percorrer os contínuos, em busca de sua esposa e sua filha,
até ir parar no escritório de Oesterheld, onde conta sua história.
Ao saber que está no ano de 1959, quatro antes da invasão, o Eternauta percebe que,
naquele tempo, sua esposa e sua filha estão vivas e corre para encontrá-las. Germán tenta
avisá-lo do perigo que correria caso ele se encontrasse consigo mesmo.
Ao dobrar uma esquina, o Eternauta depara-se com a pequena Martita, que corre
para seus braços gritando “Papai, papai!”. O desenho de Solano é eficaz ao mostrar o
personagem no escuro, preservando a surpresa final.
Quando Germán se aproxima, percebe que aquele não é mais o Eternauta. É Juan
Salvo, mas de 1959. Estabelece-se um diálogo em que Juan diz que é a primeira vez que vê
o roteirista e entra com a família.
Inicia aqui um jogo narrativo perspicaz, que tem como objetivo mais uma vez
misturar realidade e ficção.
Gérman inicia um monólogo, em que acredita que tudo não passou de um sonho:
Isso só tem uma explicação.... que eu sonhei tudo, que o eternauta e sua
história não passaram de uma aluninação... isso mesmo: o Eternauta foi
fruto da minha imaginação... mas, é possível que a imaginação ofereça
tantos detalhes? Será possível que tudo tenha existido só na minha
cabeça? Se pudesse achar um jeito de provar que tudo não passou de
invenção... já sei o que fazer! Vou até a loja de ferragens... lá deve
trabalhar um garoto chamado Pablo! Deve ter uns oito ou nove anos
agora... mas... (OESTERHELD; LOPEZ, 2011, p. 369)
O objetivo aqui é incutir no leitor o sentido da descrença, leva-lo a desacreditar da
história, tendo-a como sonho e, portanto ficção.
Mas, virada a página, temos um close do roteirista espantado, olhando para algo que
só se revela no quadro seguinte: trata-se de Favalli, Posky e Lucas, aproximando-se da casa
de Juan para uma partida de truco.
Os três personagens, em especial Favalli, que o leitor acompanhou ao longo de mais
de 300 páginas, são familiares ao leitor. A hábil narrativa de Oesterheld os caracterizou
perfeitamente, como se fossem pessoas reais. Ao vê-los, Gérman sai do estado de descrença
para o de suspensão de descrença, o que fica evidenciado em sua fala seguinte:
Esses homens devem ser Favalli, Posky e Lucas... estão vindo jogar truco
com Juan Salvo, como todas as noites... como na noite da nevada! Nem
preciso procurar o Pablo... quer dizer que é verdade! Que o que o
Eternauta me contou é verdade e não um sonho meu. Ele esqueceu tudo ao
voltar ao passado! Ao reencontrar sua família! Isso quer dizer que a neve
mortal realmente cairá sobre a terra em 1963... que daqui a quatro anos, os
Eles lançarão sobre nós sua terrível invasão... que fazer? Que fazer para
evitar tamanho horror? Será possível evitá-lo publicando tudo o que o
Eternauta me contou? Será possível? (OESTERHELD; LOPEZ, 2011, p.
360)
Identificado com o roteirista, pessoa real, tornado personagem, o leitor assina o
pacto de verossimilhança. Não se trata de um sonho, de ficção, mas de fato real, tanto que
ali está o roteirista, um ser real, acreditando nos acontecimentos aos ver os três
personagens.
Se hoje o impacto dessa sequência é grande, deve ter sido ainda maior em 1959,
quando a história foi publicada, pois o roteirista a termina com um apelo, um aviso: talvez
seja possível evitar todos aqueles acontecimentos terríveis e dramáticos produzindo-se uma
história em quadrinhos, como aviso para os fatos vindouros. É possível que muitos leitores
tenham acreditado mesmo que quatro anos depois Buenos Aires seria devastada por uma
nevasca mortal.
Ao ser convidado a escrever a segunda parte do Eternauta, Oeterheld fez questão de
imbricar ainda mais realidade e ficção.
A segunda parte começa exatamente quando termina a primeira: Germán está à
frente da casa de Juan Salvo, vendo seus amigos chegarem para jogar truco e, embora
percebendo que os acontecimentos são reais, ainda indeciso sobre sua própria sanidade. Ele
volta para seu escritório e, ao visualizar o local em que lhe foi contada a história, os fatos
narrados aparecem para ele como um turbilhão em que os anos também vão passando:
1959-1963-1970-1976. O desenho de Solano López o faz aturdido, agarrando a cabeça em
desespero, gritando para si: “Basta! Basta! Basta!”.
Em desespero, ele volta a procurar Juan Salvo, mesmo sabendo que será tido como
louco ou bêbado. Ao ser introduzido à casa, começa a enumerar detalhes sobre seus
ocupantes, inclusive sobre os visitantes, na tentativa de convencê-los. Ao ser-lhe mostrado
um jornal que mostra a data de agosto de 1959, irrompe um novo paroxismo e ele revela
que não só a história é verdadeira, como ele a fizera publicar na forma de história em
quadrinhos: “Ela foi publicada duas vezes em revista! E uma terceira vez em livro, em
1976!”.
Há aqui todo um paradoxo temporal, já que Germán está no ano de 1959, mas,
embora o desenho o mostre neste ano, a mente do roteirista está em 1976, ano que a
segunda parte foi escrita.
O curioso da sequência é que o fato da história ter sido publicada é contado como
prova de que a narrativa é real. Ou seja: dentro da narrativa, a ficção é prova de realidade.
Com isso, Oesterhel habilmente reintroduz o pacto de verossimilhança, agora para as novas
gerações: 1976 passa fazer parte do contínuo-tempo da história e a publicação da história
em quadrinhos que o leitor tem em mãos é prova de que os fatos são reais.

5 CONCLUSÃO
Quando foi perguntado que tipo de história gostaria de desenhar para o novo
suplemento semanal que Oesterheld estava lançando, o desenhista Solano López respondeu
que queria desenhar ficção-científica, mas que fosse realista, séria: “que os protagonistas
tivessem uma identidade natural e crível, que facilitasse a identificação dos leitores com os
personagens, permitindo-lhes sentir os acontecimentos como algo real, algo que ocorre de
verdade”.
Ao que parece, o roteirista seguiu à risca o pedido do desenhista, construindo uma
obra tão verossimilhante que se tornou verdadeira na mente dos leitores, transformando-se
um dos maiores clássicos dos quadrinhos mundiais, uma obra em consonância com o
mundo contemporâneo, que mistura realidade e ficção.
Quando Oesterheld desapareceu nos porões da ditadura argentina, mais uma vez
realidade e ficção se misturaram:
O sumiço repetino, porém, só serviu para elevar a imagem do Eternauta,
fundindo o personagem ao seu próprio autor, a símbolo da luta contra a
ditadura. O personagem é até hoje visto como um representante daqueles
que desapareceram (ou melhor, “foram desaparecidos”) sem deixar pistas.
Stencils de Juan Salvo usando seu uniforme enquanto caminha podem ser
vistos nas paredes por toda a capital argentina (imortalizando também a
memória do ilustrador Solano López, que viera a falecer em Agosto de
2011). São como espectros daqueles que não estão mais aqui fisicamente,
mas continuam vagando pelo imaginário e pelas lembranças sem jamais
serem esquecidos. (CORADINI, 2015)

Tratava-se aí não de um recurso de verossimilhança, mas da própria realidade se


imiscuindo e se misturando com a ficção.

BIBLIOGRAFIA
ARISTÓTELES. Arte poética. São Paulo: Martin Claret, 2003.

NUNES, Fábio Oliveira. O fake na web arte: incursões miméticas na produção em arte e tecnologia
na rede internet. Disponível em:
http://www.anpap.org.br/anais/2012/pdf/simposio1/fabio_oliveira_nunes.pdf.

BORGES, Rosane da Silva. Ficção e realidade: as tramas discursivas dos programas de TV. Tese
apresentada ao programa de pós-graduação em Ciências da Comunicação da Escola de
Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo. Disponível em:
http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27153/tde-15072009-223157/pt-br.php. Acesso em: 21
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OESTHERHEDL, Héctor; LÓPEZ, Francisco Solano. O Eternauta. São Paulo: Martins Fontes,
2011.

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OLIVEIRA, Ivan Carlo Andrade de. O boato gasolina:


como uma notícia falsa criou uma crise de combustível em Macapá. Portcom. Disponível em:
http://portalintercom.org.br/anais/norte2013/resumos/R34-0059-1.pdf. Acesso em: 21 jan. 2015.

WALTY, Ivete Lara Camargos. O que é ficção. São Paulo: Brasiliense, 1986.

DUARTE JÚNIOR, João Francisco. O que é realidade. São Paulo: Brasiliense, 1989.

MATURANA, Humberto; VARELA, Francisco. A árvore do conhecimento. São Paulo: Palas


Athena, 2001.

SCHABBACH, Leonardo. Ficção e mídia na pós-modernidade: a busca por um processo


reflexivo. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação da Escola de Comunicação da
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Disponível em:
http://www.pos.eco.ufrj.br/publicacoes/mestrado/dissertacoes_2011.html. Acesso em: 13 jun. 2014.
CORADINI, Henrique Fernandes. Oesterheld, o Eternauta e o regime militar argentino. Disponível
em: http://lounge.obviousmag.org/aleatoriedades/2013/07/oesterheld-o-eternauta.html. Aceso em 17
maio 2015.

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