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Em “O que é literatura”, Eagleton (2006) busca definir o que é e o que não é

literatura. E em uma de suas caracterizações, o autor afirma que a literatura pode ser
definida a partir de referências a um mundo ficcional e imaginativo. Mas no mundo
atual, existe algo que não seja criado a partir de algum tipo de ficção? É possível
afirmarmos que existe uma realidade? Que tipo de ficção seria essa a que se refere o
autor? 

Nós não vemos as coisas como elas são e sim como conseguimos ver. Três
pessoas diante de uma mesma cena, provavelmente, irão descrever essa cena de
maneiras diferentes, porque são pessoas que apreendem o mundo de maneira diferente.
Cada uma toma a parte da "realidade" e a interpreta, descreve, sente, a sua própria
maneira. Veja bem, vamos supor que dentre três pessoas uma delas esteja em estado
delirante, isto é, esteja interpretando a "realidade" de uma maneira que não é
compartilhada pelas pessoas ao seu redor. Essa pessoa, de forma delirante, acredita que
Raul Seixas é o carpinteiro do Universo, o criador de todos os mundos, e que o fim do
mundo está próximo, pois (de maneira delirante) o próprio Raul o avisou através de uma
das letras de suas músicas. Vamos ainda supor, que as outras duas pessoas passem,
repentinamente, a compartilhar desse delírio da primeira pessoa. Em psiquiatria isso
recebe o nome de " délire à trois", ou delírio a três, em que uma pessoa entra em estado
delirante e outras duas deliram junto a ela. Se a pessoa que de fato delira é afastada das
outras duas, elas deixam de delirar.

Bom, podemos entender o delírio como uma ficção, um juízo distorcido da


"realidade", ou um tipo "especial" de imaginação. As duas primeiras pessoas que entram
e saem do delírio, entram e saem em diferentes ficções. Uma, muito restrita, e que é
momentaneamente compartilhada somente entre as três pessoas (de que Raul Seixas é o
carpinteiro do universo), e depois em outra, uma ficção que é compartilhada pela
maioria de nós, a de que o mundo foi criado por Deus, ou gerado através do big-
bang. Todas são ficções, mas não ficções no sentido de não-verdade, mas no sentido de
que são uma consequência dos diferentes modos de construir e apreender o mundo.

Os filmes, não seriam, assim como a literatura, um delírio não delirante


compartilhado? Todos sabemos que aquilo que assistimos e lemos não é a "realidade".
Temos conhecimento que nos filmes o que temos são atores encenando, mais ainda sim,
nos emocionamos. Sabemos que o que lemos em um texto literário, não é a realidade
factual. Mas ainda sim somos capazes de perder uma noite de sono, devido ao desfecho
inesperado de história lida por nós. E por qual motivo? Porque assinamos um contrato
imaginário de fingir que acreditamos naquilo. E de fato acreditamos. Não aconteceria,
de algum modo, guardada as devidas proporções, a mesma coisa com o que se costuma
chamar de realidade? Eagleton afirma o seguinte:

Alguns tipos de ficção são literatura, outros não; parte da literatura é


ficcional, e parte não é; a literatura pode se preocupar consigo mesma
no que tange ao aspecto verbal, mas muita retórica elaborada não é
literatura. A literatura, no sentido de uma coleção de obras de valor
real e inalterável, distinguida por certas propriedades comuns, não
existe (EAGLETON, 2006, p.16).

Pensar a literatura, e o texto literário, nos ajuda a refletir sobre a ficção no


mundo atual. Embora haja um movimento que busque elitizar a literatura, e definir que
o que é literário a partir de uma suposta “qualidade” de ficção, a literatura não se limita
a um tipo ficcional supostamente elevado. Nesse momento o qual vivemos, em que os
valores de verdade são constantemente questionados, compreender que não existe uma
realidade pronta, definitiva, e superior e sim diferentes modos ficcionais de construção
da realidade, pode nos auxiliar na busca da compreensão do mundo, e no entendimento
de que não existem verdades objetivas, e sim verdades ficcionais que são
intersubjetivamente compartilhadas, durante um período social-cultural específico.
Referência

EAGLETON, Terry. O que é a literatura. In: Teoria da literatura: uma introdução. Tradução de
Waltenir Dutra. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 1-24.

EAGLETON. Conclusão: crítica política. In: Teoria da literatura: uma introdução. Tradução de
Waltenir Dutra. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 293-328.

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