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Psiquiatria e Saúde

Mental – prática clínica

20/02/2016

Ano letivo 2015/2016

Rita João Leite Dias Soares - Turma 3

Dr. Ricardo Moreira

Regência: Prof. doutor Manuel António Fernandez Esteves


Data e hora: 16 de Fevereiro de 2016; 10h30

Local: Internamento de Psiquiatria; Hospital de São João, Porto


Fontes de informação: Doente (não-fiável) e processo clínico

IDENTIFICAÇÃO

Nome: JCJA
Sexo: masculino
Idade: 54 anos de idade
Raça: caucasiana
Estado civil: divorciado
Naturalidade e residência: natural de Rio Tinto e reside actualmente no Porto
Profissão: Desempregado (área de restauração)

MOTIVO DE INTERNAMENTO

Doente internado através da UMPP em regime compulsivo por alterações do


comportamento com ideias delirantes de contéudo paranóide.

HISTÓRIA DA DOENÇA ATUAL

Doente sexo masculino, com 54 anos, com história de um internamento prévio durante
15 dias no Magalhães Lemos e abandono total por desição própria do seguimento nas consultas
e da medicação. Após ter regressado de França há mais ou menos 3 anos, ficou desempregado,
esgotando as suas poupanças, viu-se obrigado a sair do apartamento onde morou durante 1 ano.
Ficou alojado num abrigo da AMI, mas teve de sair de lá, tendo ficado a viver debaixo da ponte
(desde há cerca de 2 meses antes do internamento). Antes de ser internado foi pedida, pelos
Serviços Sociais, a sua transferência para um Albergue. O doente refere que 1 h após a sua
chegada ao albergue foi chamada a polícia que o trouxe ao SU de psiquiatria do HSJ. À

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admissão no SU referia ideias delirantes de prejuizo e persecutórias, diz que se tratou de uma
armadilha para o internar, uma vez que estava sossegado debaixo da ponte e ao ser internado
deixou lá todos os seus pertences, que quando voltasse já teriam desaparecido "fui agredido pela
polícia...há muita gente envolvida, foi a minha gestora, a segurança social...”.
Não identifica nenhuma situação que tenha despoletado o seu internamento.
Ao EEM apresentava-se vigil, orientado no tempo e no espaço, colaborante mas
recusando-se a elaborar sobre o motivo pelo qual foi internado. Franco auto-discuido. Sem
afasia, agnosia ou apraxia, com discurso coerente mas pouco fluente, humor neutro, com
alguma apatia, anedonia e desinteresse no que o rodeava. No entanto, notei alguma hostilidade
perante o facto de estar a ser interrogado novamente sobre a causa do seu internamento “eu
estava no meu sítio e tiraram-me de lá sem eu pedir”.
Não foi possível averiguar sobre a veracidade das suas respostas, por vezes sem sentido.
Pensamento paranóide persecutório sem atividade alucinatória ou outros distúrbios da perceção.
Sem ideação auto- ou hetero-destrutiva, nem ideação suicida. Sem insight da sua doença e
ignora a necessidade de tratamento.

ANTECEDENTES PESSOAIS

 Parto:
Assunto não abordado.
 Desenvolvimento inicial e infância:
Não refere anomalias do crescimento e desenvolvimento psico-motor.
 Percurso escolar e adolescência:
Tem completo o 8º ano de escolaridade.
 História conjugal e sexual:
Divorciado há 7 anos não mantendo qualquer contacto com a ex-mulher.
 História profissional:
Emigrou duas vezes para França durante 6 meses de cada vez para trabalhar na área da
restauração (no restaurante “Pedra Alta”) emprego arranjado pelo filho mais velho que está lá
emigrado. Regressou há 4 anos para Portugal, encontrando-se numa situação de desemprego até
hoje.
 Atividades extra-laborais:
Quanto às suas ocupações de lazer, diz não ter muito tempo por estar sempre a fazer
diversos trabalhos na construção civil “não tenho tempo, estou sempre a trabalhar” sic. No
entanto refere trabalhar nas artes gráficas, jardinagem e construção. Diz que é um artista. À
pergunta “O que faz na área das artes gráficas?” responde: “Pinto quadros, não é isso que os

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artistas fazem? E faço esculturas.” Diz que faz jardinagem na via pública e em empresas
privadas, que o contratam para tal. Refere ainda que tem andado a requalificar as margens do rio
Douro, relvando-as e construindo lagos. Refere ainda que está a restaurar um castelo no
heroismo, utilizando para tal pedras, árvores e cimento à base de terra. Diz que é a Câmara que
o contrata e lhe arranja as ferramentas. Mostra-se esquivo quando lhe é pedido para explicar
como é contactado pela CMP e como é que faz para escolher as ferramentas que necessita. Diz
que as ferramentas aparecem. A CMP já sabe o que ele precisa. Mas ninguém lhe paga. Quando
confrontado com a impossibilidade de fazer as construções em causa com os materiais e
métodos que refere, mostra-se algo revoltado por estarmos a duvidar da sua arte, não
reconhecendo a falta de lógica do seu discurso. Diz que “Não vale a pena explicar-vos porque
vocês não percebem nada disto”.
 História médica passada e doenças concomitantes:
- Antecedentes psiquiátricos: Nega acompanhamento atual em Consulta de
Psiquiatria. 1 internamento em 2012 no HML, que durou 1 mês e meio por episódio psicótico.
Teve alta orientado para consulta que posteriormente abandonou por iniciativa própria. Refere
abandono total da medicação por decisão própria.
- Outros antecedentes médico-cirúrgicos: Nódulo da parótida - acompanhado em
consulta de Cx Geral. Ausência de antecedentes transfusionais. Sem alergias alimentares ou
medicamentosas conhecidas.
- Cuidados de saúde habituais: Alimentação pouco cuidada “como o que me dão”.
Número de refeições por dia é variável. Consumo esporádico de álcool “quando tenho
dinheiro”. Fumador mas o consumo de tabaco depende do que encontra ou do que lhe dão. Já
fumou haxixe, mas considera-se consumidor esporádico
- Medicação habitual: Antes de ser internado não cumpria qualquer medicação.
 Personalidade pré-mórbida:
Dificuldade em avaliar este parâmetro pela postura defensiva tomada durante a
entrevista.

ANTECEDENTES FAMILIARES

Tem dois filhos com cerca de 30 e 11 anos, com quem mantém muito pouco contacto.
Relações muito esporádicas com sobrinho e irmãos (refere que não é próximo da fámilia
“damo-nos bem mas só falamos quando são coisas muito importantes”). Quando perguntado se
a sua situação actual não era importante, o doente negou.
Nega antecedentes familiares de doenças crónicas (diabetes, hipertensão, dislipidemias)
e doenças cardiovasculares, pulmonares, renais, neoplásicas.

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ESTADO GERAL E EXAME PSÍQUICO

 Observação inicial:
Doente atento e colaborante, sem fácies característico, pele hidratada e corada.
Distribuição e textura pilosa normais. Estado geral regular, com algumas queixas do foro
estomatológico, tendo realizado exondontia que terá melhorado as queixas álgicas. Biótipo
endomorfo. Presença de algumas escoriações e hematomas na face e xantelasmas peri-oculares.
Aspeto descuidado, sem asseio e com vestuário adequado. Idade aparente superior a idade real.
 Exame psíquico:
- Postura e conduta: Permanece sentado durante a entrevista, mantendo uma postura e
atitude defensivas à entrevista médica.
- Estado de consciência e orientação: Doente vígil, consciente e orientado no tempo,
no espaço.
- Discurso: Colaborante mas recusando-se a elaborar sobre o motivo pelo qual foi
internado. Demonstrou algum desinteresse por algumas perguntas efetuadas, fugindo à
resposta, mesmo quando questionado diretamente. Conteúdo congruente com o estado
emocional. Sem afasia, agnosia ou apraxia, com discurso coerente mas pouco fluente.
- Humor: Humor neutro. Não manifesta ideação auto- ou hetero-destrutiva, nem
ideação suicida.
- Ideias delirantes, falsas interpretações ou distúrbios da perceção: Possível
iideação delirante de prejuizo e persecutório.

- Fenómenos compulsivos: Nega fenómenos compulsivos.


- Memória: Ausência aparente de alterações da memória imediata, recente e remota.
- Atenção, concentração, conhecimentos gerais e inteligência: Atento e concentrado
durante a entrevista. Raciocínio e compreensão aparentemente preservados.
- Atitude em relação à doença e ao tratamento: Sem insight para a doença.
Desvalorizando a sua doença e afirmando que "há muitas empresas lá fora a precisar do meu
trabalho.... estou a atrasar a minha vida toda cá metido" sic.. Ainda mais não reconhece
necessidade de tratamento.
- Funções psicofisiológicas: Sono: Sem dificuldade em adormecer e despertares
noturnos. Nega sonolência diurna. Apetite: preservado

RESUMO DA HISTÓRIA PESSOAL, FAMILIAR E FUNÇÃO PSIQUÍCA

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Doente sexo masculino, de 54 anos, divorciado, a residir debaixo de uma ponte há dois
meses e anteriormente num albergue. Tem 2 filhos, recebe RSI e tem o 8º ano de escolaridade
completado. Internado através da UMPP de forma compulsiva no dia 29/01/2016, por quadro
psicótico.

Não identifica nenhuma situação que tenha despoletado o seu internamento. Revela
ideias delirantes persecutórias ao dizer que se tratou de uma armadilha para o internar, uma vez
que estava sossegado debaixo da ponte. Refere também algum tipo de pensamento megalómano
“se quiserem ver o meu dom agora vão ter de pagar...”.

Doente vigil, orientado no tempo e no espaço, colaborante mas recusando-se a elaborar


sobre o motivo pelo qual foi internado. Franco auto-discuido. Sem afasia, agnosia ou apraxia,
com discurso coerente mas pouco fluente, humor neutro, um pouco hóstil, com alguma apatia,
anedonia e desinteresse no que o rodeava. Pensamento paranóide persecutório sem atividade
alucinatória ou outros distúrbios da perceção. Sem ideação auto- ou hetero-destrutiva, nem
ideação suicida. Sem insight da sua doença e ignora a necessidade de tratamento.

DIAGNÓSTICOS DIFERENCIAIS

1. Perturbação esquizofrenia-like - Perturbação delirante persistente: Esta é uma


entidade clínica caraterizada pelo desenvolvimento insidioso de um sistema delirante duradouro
(mais de 1 mês) e inabalável de conteúdo persecutório "fui agredido pela polícia...há muita
gente envolvida, foi a minha gestora, a segurança social...” e megalómano “se quiserem ver o
meu dom agora vão ter de pagar...” A clareza e ordem do pensamento não estão alterados, as
ideias como se unem num determinado contexto lógico para formar um sistema delirante total.
Neste doente, em particular, está presente um delírio notório no seu discurso principalmente
quando o clínico apresenta várias justificações que comprovam como o seu pensamento está
errado e o mesmo responde “não vale a pena explicar-vos porque vocês não percebem nada
disto”. A presença de humor congruente com o discurso e a ausência de episódios de mania e
depressão são, também, a favor deste diagnóstico.

2. Esquizofrenia do tipo paranoide: Esta doença é caraterizada pela presença de


delírios, normalmente com conteúdos persecutórios, autorreferentes, o que acontece com o
nosso doente. No entanto a ausência de alucinações principalmente auditivas, e o discurso
coerente e lógico fazem com que este diagnóstico seja menos provável.

3. Perturbação comportamental induzida por substâncias: Se esse for o caso, o


comportamento paranóide do doente alterações do humor poderá ser explicado por este

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comportamento abusivo. Apoiando este diagnóstico está o facto de as filhas referirem um
consumo abusivo de álcool previamente a este internamento. No entanto, não está reportado
nenhum comportamento abusivo de substâncias em nenhuma outra altura, nem no seu último
internamento. Contra este diagnóstico estão também os factos de actualmente o doente referir
um consumo esporádico da substância ilícita (haxixe) e de haver uma ausência de evolução
psicopatologica do doente

EXAMES AUXILIARES DE DIAGNÓSTICO

1. Hemograma, ionograma, função renal, transamínases e função tiroideia normais.


2. Serologia para sífilis negativa. Marcadores HVC, HBV, HIV negativos.
3. Pesquisa de DAU expansivas intra- ou extra-axiais.
4. TC CE sem contraste (SU): Sem hemorragias ou imagens sugestivas de lesões
expansivas intra- ou extra-axiais. Não se evidencia lesão traumática aguda intracraniana.
Restantes achados intracranianos em tudo similares ao estudo de 08/11/2015.

DIAGNÓSTICO DEFINITIVO

Face às evidências apresentadas, o diagnóstico mais provável será a Perturbação da


personalidade do tipo delirante crónica.

TRATAMENTO

O tratamento para a perturbação delirante crónica deve ser combinado entre


farmacoterapia e psicoterapia.
Neste caso em particular é aconselhado o uso combinado de um antidepressivo
(sertralina ou fluoxetina) com um antipsicótico (haloperidol, risperidona, olanzapina,
aripripazole ou ziprasidona). Em casos refratários, a clozapina pode ser uma opção de um
antipsicótico. No caso do nosso doente ele estava a fazer como antidepressivo o lorazepam e
como antipsicótico a risperidona (per os 3mg 1+0+1 e risperdal Consta 50mg IM 14 em 14
dias).
Relativamente à psicoterapia este deve ter como objetivo o desenvolvimento de
competências sociais e interpessoais, estabilização psicopatológica, promoção de adesão
terapêutica e reabilitação cognitiva.

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PROGNÓSTICO

Num doente com um distúrbio esquizofrénico é fundamental a correta adesão


terapêutica, nos casos de esquizofrenia resistente 30% dos doentes nnao respondem ao
tratamento com antipsicóticos.
Normalmente este tipo de doentes tem o seu insight afetado e não reconhece a sua
doença, deixando de tomar a medicação prescrita no hospital. No caso deste doente existe um
grande risco de isto acontecer, pois, para além de esta situação já ter acontecido, o doente
desvaloriza a sua doença, achando que está bem psiquicamente. Afirmando mesmo "não estou
aqui voluntariamente e sei muito bem como está a minha saúde.... há muitas empresas lá fora a
precisar do meu trabalho.... estou a atrasar a minha vida toda cá metido" sic..
Relativamente ao seu comportamento e postura defensivos o prognóstico não é
favorável pois falta-lhe apoio familiar, vivendo sozinho existe menor controlo relativamente a
este problema.
Estudos indicam que 2/3 dos doentes irão apresentar sintomas moderados a severos e
incapacidades funcionais significativos e 1 em cada 10 doentes irá apresentar sintomas
psicóticos persistentes, não remitentes, ao longo do curso da doença.

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