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DEPRESSÃO:

UM CASO CLÍNICO

André Luiz C. Netto


Thaís Simões
Gabriela Serfaty

RESUMO

A depressão maior é um transtor- tormento: “ Doutor, não consigo mais fazer


no frequente, crônico, mais comum em nada do que fazia antes. Minha vida está
mulheres e com elevado prejuízo funcio- uma porcaria. É isso que devo ser mesmo,
nal e risco de suicídio. Este trabalho tem uma grande porcaria.”
como objetivo apresentar um caso clínico As dificuldades em dormir à noite
exemplificando e discutindo o diagnóstico e o pouco apetite passaram a ser uma cons-
de depressão maior e fatores de risco de tante em sua vida.
suicídio. No entanto, o que mais chamava
atenção era seu isolamento: “Passei a não
PALAVRAS-CHAVE: Depressão; Risco fazer mais nada. Eu, quando não estava
de suicídio; Caso clínico. dormindo, ficava com meu filho. Ficar
com ele me fazia lembrar um pouco a mi-
nha esposa”.
ANAMNESE Exceto pelo filho, L.A.F diz estar
sem vontade de continuar a viver e sente-
IDENTIFICAÇÃO: L.A.F., 30 anos, mas- se injustiçado por Deus e sozinho pela falta
culino, branco, viúvo, natural do Rio de Ja- de apoio dos colegas de trabalho e da sua
neiro, estudante de nível superior e traba- família.
lhador da área de saúde, em nível técnico. Paciente procurou a psicóloga do
curso universitário com queixas de difi-
MOTIVO DA CONSULTA: “Não tenho culdades nos estudos e tristeza, e foi en-
mais vontade de viver.’’ caminhado ao Programa de Prevenção de
Suicídio.
HISTÓRIA DA DOENÇA ATUAL:
L.A.F compareceu à consulta psiquiátrica HISTÓRIA PESSOAL:
relatando estar se sentindo desanimado, Natural do Rio de Janeiro, L.A.F
choroso,triste e “revoltado com as pessoas é o filho mais velho de uma prole de cinco
ao seu redor”. filhos.
Tal quadro clínico teve início em Apresentou desenvolvimento tan-
2008, quando sua mulher, com quem foi to psicomotor como cognitivo dentro dos
casado por seis anos, faleceu de distrofia padrões de normalidade.
muscular progressiva. Foi criado apenas pela sua mãe
Desde então, L.A.F passou a ter e não teve contato com seu pai,diz que
dificuldades no trabalho. Assistir às aulas e durante sua infância sempre se sentiu
focar atenção nos estudos era outro grande sozinho,sua mãe e seus irmãos não davam

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muito atenção a ele. ciativo, com predomínio do tema morte re-


Estudou no Colégio Naval e “não lacionado à esposa e ideias de menos valia
tive grandes amigos com quem poderia e suicídio (há duas semanas);
contar’’. •Linguagem: Não apresenta erros de por-
Conta que na sua formatura não tuguês que comprometam a compreensão,
compareceu ninguém da sua família. Ele utiliza linguagem coloquial;
disse que este momento não significou •Consciência do eu: Preservada;
nada para eles, apesar dele ser o único filho •Humor: Tristeza Vital;
a ter completado o segundo grau. •Psicomotricidade: Inibição psicomotora,
L.A.F comenta que sempre foi um comprometendo atividades laborativas e
sujeito tímido e reservado, não teve muitos estudantis;
amigos durante a sua infância e a sua ado- •Vontade: Hipobúlico;
lescência, não mantendo um bom relacio- •Pragmatismo: Hipopragmática;
namento social com os demais familiares. •Consciência de morbidade: Presente;
Não costuma solicitar ajuda da família. •Vida Instintiva: Diminuição significativa
L.A.F não teve nenhum relacio- da libido, insônia terminal e hiporexia;
namento estável até conhecer Thais, aos 24 •Aspectos Valorativos: Católico, no entan-
anos, com quem se casou e teve seu único to, distante da igreja após a morte de sua
filho de seis anos. esposa.
Sua mulher era seu grande apoio.
Após seu falecimento, L.A.F continuou
morando no mesmo apartamento com seu HIPÓTESE DIAGNÓSTICA
filho e sua sogra que, segundo ele, é a úni-
ca pessoa que o ajuda a criar seu filho. Episódio Depressivo Grave com Ideação
Suicida (CID-10: F32.2); Distimia(CID-10:
F34.1).
EXAME PSICOPATOLÓGICO

•Aparência: Cuidada, no entanto, com bar- CONDUTA


ba por fazer e roupa com tonalidade escu-
ra; Antidepressivo Venlafaxina 75mg.
•Atitude: Apática; Encaminhamento para Psicoterapia Indivi-
•Consciência: Vígil; dual.
•Orientação: Orientado globalmente; Telefone de contato com o plantão de psi-
•Atenção: Hipovígil, Hipotenaz; quiatria, 24h.
•Sensopercepcão: Paciente não relata, e Retorno agendado para 3 dias.
não se observam alterações no campo da
sensopercepção;
•Memória: Sem alterações significativas; DISCUSSÃO
•Inteligência: Dentro dos parâmetros de
normalidade; É uma unanimidade que a depres-
•Pensamento: Forma: Organizada são é um dos maiores problemas de saú-
Curso: Lentificado, com au- de pública no mundo, associada ao pior
mento do período de latência entre pergun- funcionamento e ao maior número de dias
tas e respostas; afastados do trabalho.
Conteúdo: Real, Autodepre- Os primeiros relatos sobre a exis-

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tência da melancolia datam da civilização transtornos depressivos e transtorno bipo-


greco-romana e são descritos em persona- lar. Os transtornos depressivos, então, são
gens bíblicos como o rei Saul no antigo subdivididos em transtornos depressivos
testamento, e mitológicos, como na Ilíada maiores (Episódio único ou recorrente) ou
de Homero. Foi Hipócrates, no século IV e Distimia. Esta subdivisão diagnóstica não
V a.C., quem descreveu a melancolia (mé- exclui a sobreposição destes diagnósticos7.
las = negro; cholé = bile). Hipócrates con- A melancolia é caracterizada por
siderava que as afecções mentais eram fe- um episódio grave de humor triste ou apre-
nômenos subjacentes ao desequilíbrio dos ensivo, não remissivo e não reativo, com
quatro humores: sangue, bile amarela, bile início agudo, por um período de, no míni-
negra e fleuma. Afirmava que o medo ou a mo, duas semanas e comprometimento das
depressão prolongada significavam melan- atividades diárias do indivíduo. Na melan-
colia, uma condição associada à aversão ao colia, ainda ocorrem alterações da psico-
alimento, fraqueza, apatia, insônia, irrita- motricidade e sintomas vegetativos, além
bilidade e inquietude2. de poder cursar com sintomas psicóticos8.
Estudos epidemiológicos sobre As principais características que separam a
depressão, em particular o National Co- depressão melancólica da não melancólica
morbidity Survey (NCS), mostram taxas são: alteração psicomotora, humor triste,
bastante elevadas de prevalência do trans- falta de reatividade, delírios de autorrepro-
torno depressivo maior (TDM), de 25% vação e falta de interesse. O alentecimento
em mulheres e 12% entre os homens3. psicomotor e os sintomas delirantes são
Muitos autores consideram estes sintomas cardinais nesta distinção.
índices excessivamente elevados. No en- A etiologia dos transtornos de-
tanto, se a depressão é superdiagnosticada pressivos ainda não está bem esclarecida,
na população geral, por outro lado existe sendo atribuída a múltiplos fatores como:
um grande grupo de pacientes deprimidos hereditário, psicológico, cognitivo e am-
que passam despercebidos por seus médi- biental. A ação sinérgica destes diferentes
cos, ou seja, subdiagnosticados4. fatores sobre este indivíduo, em um deter-
A depressão masculina é um tema minado momento da vida deste, provavel-
menos falado do que a feminina porque os mente explicaria o adoecimento de forma
homens são mais resistentes em abordar depressiva4.
com seus médicos seus problemas emocio- No entanto, este adoecer não se dá
nais. Tal resistência tem a ver com aspectos de forma semelhante entre homens e mu-
ligados à masculinidade deste indivíduo, lheres. Seja pelas diferenças hormonais,
seu papel social e sua imagem profissional, sociais ou mesmo culturais, as evidências
familiar e pessoal5,6. sugerem que homens podem manifestar a
Muitas vezes, os sintomas depres- depressão de maneira diferente das mu-
sivos podem estar mascarados com o con- lheres: comportamentos violentos ou abu-
sumo excessivo de álcool, de medicações sivos, raiva inapropriada ou injustificável,
psicotrópicas ou mesmo drogas ilícitas. comportamento de fuga ou de risco como
Winston Churchil, primeiro-ministro bri- beber abusivamente ou dirigir de maneira
tânico durante a Segunda Guerra Mundial, imprudente e ideação suicida9.
chamou de “cão negro” a depressão que o Para a depressão maior, segundo
perseguia. o DSM (Diagnostic and Statistical Manual
Quanto aos critérios diagnósticos, of Mental Disorders), dentre os critérios de
os transtornos do humor são divididos em exclusão, o critério E diz que: “Os sinto-

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mas não são melhor explicados pelo luto, ção em geral. Portanto, os antidepressivos
ou seja, perda de um ente querido, os sin- devem ser utilizados em casos de risco de
tomas persistem por mais de dois meses ou suicídio iminente, tomando cuidado com a
são caracterizados por acentuado prejuízo quantidade de medicação disponibilizada e
funcional, preocupação mórbida com des- com a cautela de fornecer telefone de con-
valia, ideação suicida, sintomas psicóticos tato para o caso de alguma intercorrência
ou lentificação psicomotora”10. 9,11
.
Em relação à terapêutica, as de-
pressões melancólicas respondem melhor
aos tratamentos biofarmacológicos quando REFERÊNCIAS
associados à psicoterapia, nos seus mais
diferentes modelos. A droga de escolha 1.Teng CT; Rev Bras Med – Vol 64 – Edição Espe-
cial – Dez 2007.
para início do tratamento para melancolia
2.Goodwin FK e Jamison K; Manic Depressive Ill-
são os antidepressivos, particularmente os ness; 2007
inibidores seletivos de recaptação de sero- 3.Nock MK et al; Mental Disorders, Comorbidity
tonina por possuírem menos efeitos colate- and Suicidal Behavior: Results from National Co-
rais do que os antidepressivos tricíclicos. morbidity Survey Replication; Mol Psychiatric;
Mar 2009
Se após 7 a 10 dias o paciente não apresen- 4.Del Porto JA; Bipolar Disorder: Evolution of Con-
tar melhora alguma da sintomatologia com cept and Current Controversies; Rev Bras Psiqui-
uma dose eficaz de antidepressivo, reco- atria; 26 (Suppl 3) 2004.
menda-se associar um antipsicótico atípico 5.Angst J and cols; Gender Differences in Depres-
sion: Epidemiological Finds from European De-
por um curto intervalo de tempo. Na au-
pres I and II Studies; European Archives Psychia-
sência de resposta com a associação entre tric Clinical Neuroscience 252; 2009.
antidepressivo e antipsicótico, o próximo 6.Piccinelli M, Wilkinson G; Gender Differences in
passo é a utilização de agentes duais, como Depression – Critical Review, Br j Psychiatric
a Venlafaxina descrita no caso clínico ou Dec 2000; 177: 486-92.
7.Classificação de Transtornos Mentais e de Com-
um inibidor da enzima monoaminoxidase. portamento da CID-X: Descrições clínicas e di-
Se após essas etapas, com doses eficazes e retrizes diagnósticas, OMS, Porto Alegre, Art
por um período adequado, o paciente não med, 1993.
obter resposta é indicada eletroconvulsote- 8.Parker G; Defining melancholia: the primacy of
psychomotor disturbance; Acta Psychiatrica
rapia8.
Scand 2007: 115 (Suppl. 433): 21-30.
Os fatores de risco para suicídio, 9.Ilgen MA and cols; Exploratory data mining analy-
como sexo masculino, idade avançada, sis identifying subgroups of patients with depres-
abuso comórbido de substâncias, história sion who are at high risk for suicide; J Clin
de tentativa prévia de suicídio, história fa- Psychiatry, 2009 Nov; 70: 1495-500.
10.American Psychiatry Association. Diagnostic
miliar de suicídio, perda recente, nunca ter and Statistical Manual of Mental Disorders
se casado e sintomas psicóticos auxiliam (DSM IV). Washington DC: American Psychia-
os profissionais de saúde mental a questio- tric Association; 1994.
narem sobre pensamentos e planos suici- 11.Simon GE et al; Suicide Risk during Antidepres-
sant Treatment. Am J Psychiatry 2006, 163(1):
das. Existem relatos que sugerem um risco
41-7.
aumentado de suicídio em alguns pacien-
tes que tenham iniciado tratamento com
antidepressivos. Entretanto, em estudo re-
cente, observou-se que, após a introdução
de terapia antidepressiva, o risco de suicí-
dio chegou a níveis comparados à popula-

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Depressão: um caso clínico

ABSTRACT

Major depression is a common disorder, sis of major depression and suicide risk
chronic, more common in women, with factors.
a high functional impairment and suicide
risk. This paper aims to present a clinical KEYWORDS: Depression, Suicide risk;
case illustrating and discussing the diagno- Case report.

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TITULAÇÃO DOS AUTORES

Luiz Augusto Brites Villano Lilian Oliveira e Cruz de Aragão


Professor Adjunto da Faculdade de Ciências Médicas/ Psicóloga do HUPE/UERJ.
UERJ; Mestre em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medi-
cina Social da UERJ; Doutor em Psiquiatria e Psicologia Marcos C.F. Baptista
Médica pela Universidade Federal de São Paulo. Médico psiquiatra e psicanalista. Professor colaborador
e Coordenador do Setor de Psicoterapia e Psicanálise da
Abdon L.G. Nanhay UDA de Psiquiatria/FCM/UERJ.
Professor Docente da Secretaria Estadual de Educação do
Rio de Janeiro; Médico pela Faculdade de Ciências Médi- Osvaldo Luiz Saide
cas/UERJ. Livre-Docente e Professor Adjunto de Psiquiatria; Coor-
denador do PROEXA – Programa de Extensão em Alco-
Amaury José da Cruz Junior ologia (UERJ).
Vice-Presidente da Sociedade Brasileira de Perícias Mé-
dicas; Médico da Equipe do Proexa/UERJ; Médico Perito
Sheila Abramovitch
Judicial; Médico do Trabalho.
Professora adjunta de Psiquiatria da Infância e Adolescên-
cia da Faculdade de Ciências Médicas da UERJ.
André Luiz Carvalho Netto
Médico psiquiatra, com Residência na especialidade no
Silvana A.T. Ferreira
HUPE/UERJ.
Doutora em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina
Social da UERJ; Professora da disciplina de Psiquiatria do
Emylucy M P Paradela Departamento de Especialidades Médicas da Faculdade
Professora visitante do Departamento de Medicina Inter- de Medicina da UERJ.
na da Faculdade de Ciências Médicas da UERJ; Mestre e
Doutora em Saúde Pública pelo Instituto de Medicina So-
Thaís Simões
cial da UERJ; Especialista em Geriatria pela Associação
Médica psiquiatra, com Curso de Especialização na espe-
Medica Brasileira.
cialidade na FCM/UERJ.

Gabriela Serfaty
Médica Residente de Psiquiatria do HUPE/UERJ.

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