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Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre

Disciplina de Neurociência Clínica


Módulo Psiquiatria
Professor Avaliador: Ygor Arzeno Ferrão
Aluno: Luiz Felipe Alves Nascimento
Turma G

Estudo de Caso

O relato a seguir é oriundo da avaliação final do módulo de Psiquiatria da disciplina de


Neurociência Clínica, e foi realizado ao longo das 3 semanas. Os dados relativos a paciente,
entretanto, foram coletados durante anamnese em acompanhamento ambulatorial, sendo descritos
de forma sucinta da história psiquiátrica pregressa (extensa).

Apresento-me a paciente, digo o objetivo do meu acompanhamento naquela consulta, peço sua
permissão para estar presente, e afirmo que a paciente poderá falar livremente, sem julgamentos, e
que pode escolher não responder sempre que não se sentir confortável, e que informações ali
colhidas serão confidenciais e estão amparadas por sigilo médico.

ANAMNESE

ID: GBR, 19 anos, feminino, solteira (namorando), natural e procedente de Porto Alegre/RS,
desempregada, cursando ensino superior Letras, sustentada financeiramente pela mãe.
Fonte de informação: a própria paciente (boa confiabilidade)

QP: Acompanhamento psiquiátrico ambulatorial desde internação TS por ingesta medicamentosa.

Em uso: Lítio 900mg, Risp e Clor 25mg (refere boa adesão)

QDA: Paciente com diagnóstico prévio de THB tipo 1 e T de Personalidade Histriônica comparece
a consulta ambulatorial desacompanhada. Refere estar mais agressiva/iritada nas últimas 2 semanas,
com ideação de heteroagrassão (pensamento de atacar seu cachorro quando se irrita com ele), com
agitação psicomotora, insônia e perda de concentração nas atividades da faculdade. Refere não ter
fator desencadeante para os sintomas. Descreve sintomas de aumento da libido. Nega
comportamentos de risco e nega risco de autoagressão/suicídio. Afirma ter piorado o
relacionamento com a mãe após os sintomas. Refere enjoos acompanhados de dor abdominal após
alimentar-se, e atribui sintoma após aumento da dosagem de Lítio na última consulta (1 mês atrás).
Paciente refere não ter alucinações visuais e auditivas.

Refere ter iniciado com sintomas depressivos na escola (aos 14 anos), com períodos de
agravamento após mortes do pai, da avó materna e do término com ex-namorado. Relata também
algumas crises episódicas na escola em que apresentava muita irritabilidade, cerrava os punhos com
força e se autoagredia (arranhava-se) em posição fetal.

HPP: AS aos 14 anos por um primo que morava no mesmo pátio.


AS por ex-namorado aos 18 anos
AS anterior cometido pelo pai (não recorda idade)
TS por ingesta medicamentosa (paracetamol e antialérgicos) – todos os comprimidos que
tinha em casa

HF: Mãe THB


Pai Depressão
Avó materna Depressão

Antecedentes clínicos: Nega

HP: Paciente refere ser muito apegada à mãe, quem é seu centro de referência, e mais ainda a avó
materna (que faleceu quando tinha 15 anos). Refere nunca ter sido próxima do pai (falecido após
problema cardíaco). Teve um relacionamento abusivo na adolescência com rapaz de mesma idade
(ele cortava-se e enviava fotos pra ela após discussões). Ex-namorado costumava assediá-la
fisicamente para tentativa sexual, e a mesma recusava. Mencionou que usava estratégia de gritar
quando isso acontecia (ex-namorado parava). Relata episódio em que sofreu AS desse ex, e
terminou o relacionamento. O mesmo ameaçava se matar para retomar namoro. Mãe interviu e
conversou com pais do ex-namorado.

Paciente sempre teve boas notas e bom rendimento na escola. Sempre gostou muito de ler e
atualmente cursa Letras, ganhando bolsa mérito para estudar Pedagogia. Relata ter começado a
trabalhar em uma farmácia no dia anterior a consulta, mas teve uma crise de choro durante o
trabalho por motivo pequeno. Pediu demissão em seu 1º dia.

Refere isolar-se muito em casa, tendo dificuldade para sair (frequentemente irrita-se com locais
tumultuados e barulhentos). Refere ser metódica com seus estudos, mas ultimamente tem notado
uma maior dificuldade para concentrar-se.

Personalidade prévia: relata ter sido uma criança muito impaciente (não gostava de brincar com
outras crianças). Refere também ser uma pessoa mais isolada, percebendo-se mais irritada do que
uma pessoa normal. Refere que às vezes sente vontade de descontar a ira no cachorro quando esse a
irrita, mas menciona saber que isso é errado e essa ideia fica apenas no pensamento (não concretiza
a ação). Relata que quando isso acontece, tende a cerrar as mãos com muita força, até a ira passar, e
repete esse padrão para aliviar as crises. Às vezes, grita.

EEM

a) Aspectos da paciente: boa aparência e higiene, vestimentas extravagantes para ocasião (muitos
adornos e maquiagem), atitude sedutora, expressão teatralizada.

Sentimentos despertados no entrevistador: impaciência (paciente insiste em falar sobre si mesma em


todas as perguntas)

CASOMI APeJuCoL

Consciência: Lúcida (eixo vertical), Campo vivencial expandido (eixo horizontal)


Atenção: Hipervigil e Hipotenaz
Sensopercepção: Sem alucinações, com Hiperestesia (sons altos e luzes fortes)
Orientação: Orientada alo e autopsiquicamente
Memória: Não inferida clinicamente
Inteligência: Inferida como na média
Humor/Afeto: Eufórico, congruente
Pensamento: Lógico, tangencial, acelerado, prolixo, com ideia prevalente de ter TEA (sugestivo
pelo psicoterapeuta)
Juízo Crítico: Preservado
Conduta: Colaborativa, expansiva, sedutora, agitada
Linguagem: Taquilálica, verborrágica, logorreica, com fala pressionada e dramática
Hipótese Diagnóstica: THB tipo 1 em estágio de mania, sem sintomas psicóticos.

Conduta: Conforme discutida com Dr Ygor


- Psicoeducação
- Orientação de sinais de alerta e emergências se presentes
- Manter medicamentos em uso como primeiro plano, aumentando Risp 3mg (em
caso de falha, introduzir medicação quetiapina)
- Retorno em 14 dias (reavaliar enjoos)

DISCUSSÃO DIAGNÓSTICA

A paciente visivelmente apresenta-se em síndrome maníaca, pela sintomatologia


apresentada, história da doença atual e o sinal de euforia e taquipsiquismo bastante evidentes em
seu comportamento e pensamento. Além disso, paciente reserva quase que toda a comunicação na
entrevista a falar sobre si mesma (elação e egocentrismo), hipervalorizando aspectos da sua
personalidade e expressando-os de uma forma teatralizada. Alguns sintomas vegetativos presentes
(aumento da libido) mas sem comportamentos de risco quando perguntados. Sua atenção voluntária
está reduzida e a espontânea apresenta-se aumentada.

Segundo critérios diagnósticos para episódio maníaco, segundo DSM-V, são:

a) Período distinto de humor anormal e persistentemente elevado, expansivo ou irritável,


durando pelo menos 1 semana (ou qualquer duração se a hospitalização for necessária no manejo)
PACIENTE FECHA CRITÉRIO (duração de 2 semanas)

b) Durante o período de perturbação do humor, 3 ou mais dos seguintes sintomas persistirem


(4 se o humor é apenas irritável) e estão presentes em grau significativo
PACIENTE FECHA CRITÉRIO
1 Autoestima inflada/ grandiosidade
2 Necessidade de sono diminuída
3 Mais falante do que o habitual ou pressão por falar
4 Fuga de ideias ou experiência subjetiva
5 Distratibilidade
6 Aumento da atividade dirigida a objetos
7 Envolvimento excessivo em atividades prazerosas com alto potencial de consequências
dolorosas

c) A perturbação do humor é suficientemente severa a ponto de prejuízo acentuado no


funcionamento ocupacional, nas atividades sociais ou relacionamentos costumeiros com outros, ou
como meio para exigir hospitalização ou se existem aspectos psicóticos.
PACIENTE FECHA CRITÉRIO (mencionou que teve que pedir demissão no primeiro dia
de trabalho devido a crise)

d) Os sintomas não são explicados devido a efeitos fisiológicos de outras substâncias


(drogas de abuso, medicamentos e condição médica geral)
PACIENTE FECHA CRITÉRIO (não há medicação em uso que possa causar humor
maníaco, bem como condição patológica ou substância)

O uso do carbonato de lítio representa a primeira linha no tratamento do Transtorno de


Humor Bipolar ou Transtorno de Afeto Bipolar (antigamente conhecido como Transtorno Maníaco-
Depressivo). A despeito de seus benefícios psicofisiológicos nos pacientes, é importante a dosagem
frequente da Litemia, a fim de investigar possíveis intoxicações e efeitos adversos.
Em consulta com outra paciente, um dos residentes me explicou que antes de prescrever
exame de litemia como conduta, deve ser explicado para o paciente que a colheita de sangue deve
acontecer 12h após a última ingesta do comprimido, para não alterar o resultado do exame. Os
níveis recomendados do lítico sérico abrangem a faixa de 0,6 a 1,2 mEq/L, apesar de que quando
consultei a bula do remédio Carbolitium, vi que essa faixa varia de acordo com o estágio da doença
(fase aguda um pouco mais alta que a fase de manutenção).
A avaliação da função renal e tireoideana devem ser solicitados junto ao hemograma, para
prevenir intoxicação (comumente acima de 1,5 mEq/L). Quando há inadaptação ao medicamento,
outros estabilizadores de humor devem ser considerados. É contraindicado em pacientes com
insuficiência renal grave, bradicardia sinusal, insuficiência cardíaca congestiva e arritmias
ventriculares graves.

DIAGNÓSTICOS DIFERENCIAIS

Transtorno de Personalidade Borderline

O THB pode mimetizar um quadro maníaco do TPB, apresentando características clínicas


em comum que muitas vezes causam confundimento em termos de diagnóstico diferencial, o que
poderia implicar em terapêutica inadequada. Fatores associados a sua sintomatologia,
etiopatogênese e marcadores neuroendócrinos são fundamentais para estabelecer uma clara divisão
entre os transtornos.

O TPB, diferentemente do THB, é duradouro, permeando durante toda a vida do indivíduo,


em maior ou menore intensidade. O THB tem característica de humor efêmero e oscilatório ao
longo da vida, variando entre humor normal e alterado. A cronologia da variação de humor também
é um marcador que os diferencia, sendo que no THB o humor varia em dias, semanas ou até meses,
enquanto que no TPB essa mudança tende a ser abrupta, quase simultânea, e também mais
recorrente.

A professora Carolina Blaya me explicou também que, para diferenciar os dois, um


marcador importante poderia ser a presença de sintomas dissociativos. O TPB tende a ter uma
identidade menos definida, enquanto que o THB tende a ter uma identidade mais sólida, como no
caso da nossa paciente, que relata saber quem é e o que quer.

Depressão

O diagnóstico de THB é caracterizado por dois polos ambivalentes (a mania e a depressão).


Essa bipolaridade muitas vezes pode apresentar-se em estágios diferentes da vida, sendo que um
paciente pode apresentar 10 anos de humor deprimido e só depois um episódio de mania. O que
diferencia esses dois diagnósticos, de maneira mais grosseira, seria que a presença do episódio de
mania amplifica o transtorno para uma personalidade que transita entre dois polos, em vez de
unipolar, como no caso da Depressão.

A professora Juliana Tramontina me explicou que, além disso, os mecanismos


fisiopatológicos das duas condições são diferentes. A respeito da depressão, por exemplo, os
fármacos da ordem dos inibidores de recaptação seletiva de serotonina podem não ser tão eficientes
para o episódio depressivo do transtorno de personalidade bipolar, uma vez que, nessa
fisiopatogenia bipolar, podem haver outros mecanismos envolvidos além do balanço competitivo no
sítio recaptador por ação farmacológica e o up/down regulation, e essa hipótese, apesar de ter
crescido ultimamente, ainda carece de estudos e investigação.

Sendo assim, um fármaco IRSS poderia não ser eficaz para solucionar os problemas da
paciente, e esse “desempenho ruim” do fármaco que já tem eficácia comprovada sugere suspeitar
que talvez o diagnóstico seja diferente da um transtorno de humor depressivo (além da descrição
detalhada da sintomatologia e observação fenomenológica em consulta).

PLANO DE TRATAMENTO

Levando em conta o diagnóstico principal e a ausência de comorbidades, a conduta


adequada seria manter os estabilizadores de humor (mantendo o lítio, aumentando a risperidona e
mantendo a cloro), estimulando atividades prazerosas e relaxantes, fazer psicoeducação com a
paciente e com a família (orientando os sinais de alerta e a conduta em casos de emergência),
estimular a continuidade da psicoterapia (mesmo a paciente dizendo que não teve muita
compatibilidade com o terapeuta), fazer reforço positivo em relação aos eventos positivos da sua
vida (a paciente foi elogiada por ter conseguido bolsa de estudos por mérito acadêmico). Realizar
manejo com a família, identificando contatos de emergência, redes de apoio, e educando sobre o
transtorno.

Como alternativa terapêutica em caso de ineficácia do tratamento escolhido, considera-se a


introdução do medicamento quetiapina (já conversado com a paciente, que inclusive refere ter
familiaridade com ele porque a sogra já toma), indicando boa adesão.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION. Diagnostic and Statistical Manual of Mental


Disorders, Fifth Edition (DSM-V). Arlington, VA: American Psychiatric Association, 2013.
Kaplan, H.I; Sadock, B.J. Compêndio de Psiquiatria- Ciências do Comportamento e Psiquiatria
Clínica. 11ª ed. Editora Artes Médicas, Porto Alegre, 2017.
Medicamentos em Saúde Mental. Autoras: Giovanna Duarte Hayanna Caetano de Souza Daniela
Santana de Souza Maria Clara Dourado Marcol. Universidade Federal de Goiás. Disponível em
https://files.cercomp.ufg.br/weby/up/93/o/Medicamentos_Saudavelmente_finalizado.pdf?
1573048496 Acessado em 20/07/2021

MAZER, Angela Kaline. Diagnóstico diferencial entre transtorno afetivo bipolar e transtorno
de personalidade borderline fundamentado na história de estresse precoce e em avaliação
psiconeuroendócrina. 2013. Dissertação (Mestrado em Saúde Mental) - Faculdade de Medicina de
Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, 2013. doi:10.11606/D.17.2013.tde-
20052014-085440. Acesso em: 2021-07-23.

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