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Psiquiatria e Saúde

Mental – prática clínica

20/02/2016

Ano letivo 2015/2016

Rita João Leite Dias Soares - Turma 3

Dr. Ricardo Moreira

Regência: Prof. doutor Manuel António Fernandez Esteves


Data e hora: 22 de Fevereiro de 2016; 10h30

Local: Internamento de Psiquiatria; Hospital de São João, Porto


Fontes de informação: Doente (não-fiável) e processo clínico

IDENTIFICAÇÃO

Nome: BAVSE
Sexo: masculino
Idade: 29 anos de idade
Raça: caucasiana
Estado civil: solteiro
Naturalidade e residência: natural de Miramar e reside actualmente em Valongo com a mãe e
irmão na casa de um homem de quem a sua mãe é cuidadora
Profissão: Desempregado (técnico de informática)

MOTIVO DE INTERNAMENTO

Doente internado compulsivamente através da UMPP onde foi conduzido com


Mandado de Condução emitido pelo Delegado de Saúde do ACeS Maia/Valongo no dia
16/02/2016, por heteroagressividade dirigida aos familiares e crenças inabaláveis e irredutíveis
perante a lógica de que está a ser prejudicado e perseguido.
Transferido para o HSJ no dia 18 de Fevereiro.

HISTÓRIA DA DOENÇA ATUAL

Doente sexo masculino, com 29 anos, com história de dois internamentos prévios desde
2014, no Magalhães Lemos. Desde então que abandonou a medicação por decisão própria e
eventualmente acabou por não comparecer às consultas de seguimento.
Na manhã do dia de internamento, o doente refere ter andado 28 km de biciclita (em
conversa com a mãe veio-se a saber que o mesmo terá feito isso vestido apenas de boxers).
Depois foi ter com os amigos e enquanto tomava café com eles, que “na verdade não querem

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saber de mim” (sic), recebeu um telefonema da mãe a pedir que voltasse para casa. Quando lá
chegou, deparou-se com a presença de dois agentes que o levaram à UMPP. À admissão no SU
diz ter falado com dois psiquiatras: o primeiro “tinha a mania que era bom mas na verdade era
um amador” (sic) e o segundo “um espanhol que me cumprimentou mas não lhe apertei a mão
porque tinha as mãos sujas....”(sic).
Diz que a polícia tem estado a vigiá-lo pelas suas publicações no facebook “foi lá a
polícia por causa das minhas publicações no facebook...as minhas ideias...deviamos ser todos
felizes, respeitar-nos a todos, brancos pretos, independentemento do sexo ou orientação
sexual...” (sic). Refere ser este o motivo do seu internamento.
Ao EEM apresentava-se vigil, orientado no tempo, espaço e pessoa, colaborante mas
opondo-se à abordagem de algumas temáticas "já respondi a isso tudo da outra vez que cá
estive" (sic).. Aspecto cuidado, notando-se que dá valor à aparência. Sem afasia, agnosia ou
apraxia, com discurso coerente e fluente. Alguma elação de humor, notei alguma irritabilidade
perante o facto de estar a ser interrogado novamente sobre certos assuntos, em particular aqueles
relacionados com as forças que o controlam no dia-a-dia, exteriores a Portugal. Dizia “Não
quero falar sobre isso… se quiserem saber vão ver meu FB… tenho duas páginas… toda a gente
pode ver… procurem por mim” (sic), levantava-se da cadeira onde estava sentado e depois
voltava pedindo desculpa pelo seu comportamento e que se quisessemos falar poderíamos falar
de tudo menos esses assuntos “não falo de coisas de lá de fora, eles são bons para mim” (sic).
Comportamento adequando, no entanto manteu alguma hiperfamiliariedade para connosco ao
longo da entrevista.
Não foi possível averiguar sobre a veracidade das suas respostas, no entanto algumas
das suas afirmações vão contra relatos médicos no seu processo clínico. Pensamento paranóide
persecutório “eles controlam o meu facebook” (sic) de teor de grandeza e místico (a certo ponto
da entrevista tira do bolso um saco que transporta consigo e que contém vários amuletos
representativos de várias religiões, incluindo um alho. Quando questionado acerca destes
amuletos refere que se destinam a protege-lo de “tudo e todos”. Diz fazer investigação por conta
própria e a coloca online por não confiar nas autoridades “Abram os olhos… Onde vocês
passaram já eu fui e vim três vezes” (sic).

ANTECEDENTES PESSOAIS

 Parto:
Assunto não abordado.
 Desenvolvimento inicial e infância:

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Foi criado pela mãe (doméstica, actualmente com 68 anos) e padrasto (empresário no
ramo da pastelaria). O pai suicidou-se quando o Bruno tinha 5 anos. Muito boa relação com o
padrasto, a quem chama pai “a minha infância foi complicada ... o meu pai de sangue era mau e
não gostava dele ... matou-se quando eu tinha 5 anos. Tive outro pai negro que foi bom para
mim, educou-me e viu-me crescer”

Tem 1 irmão de 33 anos, apesar de ter contacto com ele dão-se muito mal, pois refere
que “ele gasta todo o seu dinheiro em cocaína” (sic). Refere ter tido um irmão que terá morrido
novo. Sobre este diz que um dia estava a chorar no quarto e pediu um sinal, nesse instante um
rapaz muito parecido com o irmão e com o mesmo nome que ele, adicionou-o ao facebook.
Acha que ele é o seu irmão, mantém contacto com ele apenas através do facebook “falamos de
coisas muita superficiais porque eles vigiam-nos” (sic)

A família tinha uma boa situação socio-económica até há cerca de 7 anos, quando a mãe
e padrasto se separaram, por dívidas da empresa.O padrasto está actualmente em Angola.

 Percurso escolar e adolescência:


9.º ano de escolaridade, posteriormente fez curso de técnico de informática equivalente
ao 12.º ano. Duas reprovações (3.º e 6.º anos)
 História conjugal e sexual:
Última ex-namorada desde há 4 anos. Posteriormente a ela não teve mais ninguém
“porque não apareceu ninguém especial” (sic). Está farto dela. Em conversa com enfermagem
sabe-se que o doente terá tido relação sexual com outra doente de psiquiatria, também internada
no serviço.
 História profissional:
De momento encontra-se desempregado mas diz ser missionário islâmico “transmito as
minhas ideias através do FB…. Mas faço outras coisas” (sic) mostrando-se relutante, agitado,
hostil e sem interesse em falar sobre este assunto. Trabalhou também como técnico informático
na Câmara Municipal de Valongo e apercebeu-se de grandes redes de corrupção “trabalhei para
a Dra. Trindade na CM de Valongo, vi muitos envelopes a cruzaram-se… o Rui Marques,
aquele que controla a iluminação do Porto subcontrata outras empresas para fazerem o seu
trabalho e mete o dinheiro ao bolso... o Marco António das Águas é outro” (sic).
 Atividades extra-laborais:
Quanto às suas ocupações de lazer, diz gostar de “trabalhar na terra” e na componente
electrónica.
 História médica passada e doenças concomitantes:
- Antecedentes psiquiátricos: Nega acompanhamento atual em Consulta de
Psiquiatria. Teve 2 internamentos prévios: 1º internamento compulsivo a 2/3/2014 por episódio

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maniforme com heteroagressividade “a minha vizinha partiu o espelho do carro do meu
amigo...parti-lhe o carro todo com estas botas e furei-lhe os pneus com uma faca” (sic). Alta
com o diagnóstico de Psicose tóxica. O 2ºinternamento a 26/05/2015 também por um quadro
psicótico com comportamento de agressividade heterodirigida e agitação psicomotora.
- Outros antecedentes médico-cirúrgicos: Hérnia do buraco de winslow com necrose
intestinal. Re-internado por diescência anastmótica tendo ficado com ileostomia.
- Cuidados de saúde habituais: Fumador de 10-20 cigarros/dia negando consumo de
álcool. Abstinente do consumo de drogas: há 5 meses de haxixe e há 3 anos de cocaína. Exagera
no consumo de cafeína, bebe 8 a 10 cafés por dia.
- Medicação habitual: Antes de ser internado não cumpria qualquer medicação.
 Personalidade pré-mórbida:
Dificuldade em avaliar este parâmetro, refere alterações do comportamento dos seus
amigos de Valongo para com ele, já desde antes do primeiro internamento. Não consegue
assinalar nenhuma alteração de postura da sua parte que justifique esta situação “eles tratam-me
como se fosse maluco ... têm inveja de mim, sempre tiveram” (sic).

ANTECEDENTES FAMILIARES

Reside e mantém contacto com a sua mãe (68 anos) e irmão (33). A família tinha uma
boa situação socio-económica até há cerca de 7 anos, quando a mãe e padrasto se separaram,
por dívidas da empresa.O padrasto está actualmente em Angola.

Nega antecedentes familiares de doenças crónicas (diabetes, hipertensão, dislipidemias)


e doenças cardiovasculares, pulmonares, renais, neoplásicas.

ESTADO GERAL E EXAME PSÍQUICO

 Observação inicial:
Doente atento e colaborante, sem fácies característico, pele hidratada e corada.
Distribuição e textura pilosa normais. Estado geral regular, sem algumas queixas. Biótipo
endomorfo. Aspeto cuidado, asseado e com vestuário adequado (mostra-se interessado na
roupa). Idade aparente igual a idade real.
 Exame psíquico:
- Postura e conduta: Permanece sentado durante a entrevista, levantando-se algumas
vezes quando questionado sobre assuntos que não quer abordar. Volta por livre vontade ou
então após ser convencido.

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- Estado de consciência e orientação: Doente vígil, consciente e orientado no tempo,
no espaço.
- Discurso: Colaborante mas recusando-se a elaborar sobre certas temáticas. Conteúdo
congruente com o estado emocional. Sem afasia, agnosia ou apraxia, com discurso coerente,
fluente, expontâneo mas um pouco lentificado pela medicação.
- Humor: Humor neutro. Não manifesta ideação auto- ou hetero-destrutiva, nem
ideação suicida.
- Ideias delirantes, falsas interpretações ou distúrbios da perceção: Ideação delirante
de prejuizo e persecutório com conteúdo megalómano e místico “Lá fora é muito melhor, os
portugueses vendem-se por trocos e eu detesto isso … Em Angola andava de mercedes,
blindado, com bandeirinhas de diplomata … Eu lá fora sou diplomata” (sic).

- Fenómenos compulsivos: Nega fenómenos compulsivos.


- Memória: Ausência aparente de alterações da memória imediata, recente e remota.
- Atenção, concentração, conhecimentos gerais e inteligência: Atento e concentrado
durante a entrevista. Raciocínio e compreensão aparentemente preservados.
- Atitude em relação à doença e ao tratamento: Sem insight para a doença.
Desvalorizando a sua doença e a necessidade para ser tratamento.
- Funções psicofisiológicas: Sono: Sem dificuldade em adormecer e despertares
noturnos. Nega sonolência diurna. Apetite: preservado

RESUMO DA HISTÓRIA PESSOAL, FAMILIAR E FUNÇÃO PSIQUÍCA

Doente sexo masculino, de 29 anos, solteiro, a residir actualmente em Valongo com a


mãe e irmão na casa de um homem de quem a sua mãe é cuidadora. Tem o 9.º ano de
escolaridade e posteriormente realizou curso de técnico de informática equivalente ao 12.º ano.
Internado através da UMPP de forma compulsiva no dia 16/02/2016, por
heteroagressividade dirigida aos familiares e crenças inabaláveis e irredutíveis perante a lógica
de que está a ser prejudicado e perseguido.
Não entende porque foi obrigado a ir ao SU, no entanto refere que a polícia tem vigiado
o seu facebook e as ideias que costuma colocar na WWW podem estar envolvidas nesta
situação. Apresenta actividade delirante essencialmente de conteúdo persecutório, de grandeza e
místico.
Doente vigil, orientado no tempo, espaço e pessoa, colaborante mas opondo-se à
abordagem de algumas temáticas "já respondi a isso tudo da outra vez que cá estive" (sic).
Aspecto cuidado, notando-se que dá valor à aparência. Sem afasia, agnosia ou apraxia, com
discurso coerente e fluente. Alguma elação de humor, notei alguma irritabilidade perante o facto
de estar a ser interrogado novamente sobre certos assuntos. Comportamento adequando, no

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entanto manteu alguma hiperfamiliariedade para connosco ao longo da entrevista. Sem
atividade alucinatória ou outros distúrbios da perceção. Sem ideação auto- ou hetero-destrutiva,
nem ideação suicida. Sem insight da sua doença e ignora a necessidade de tratamento.

DIAGNÓSTICOS DIFERENCIAIS

1.Perturbação esquizoafectiva: Este diagnóstico é caracterizado por componentes


mistas de esquizofrenia e transtorno afetivo. Este doente apresenta actividade delirante de
contéudo persecutório, místico e de grandeza pensamento caracterizado por delírios
persecutórios, místicos e de grandeza (típicos da esquizofrenia), por outro lado o doente
também apresenta sintomas maniformes: ideias sobrevalorizadas de grandiosidade, aumento da
energia, desinibição do comportamento, elação de humor e redução da necessidade de sono
(típico da mania da Perturbação Bipolar).
2. Esquizofrenia do tipo paranoide: Esta doença é caraterizada pela presença de
delírios, normalmente com conteúdos persecutórios, autorreferentes, o que acontece com o
nosso doente. No entanto a ausência de alucinações principalmente auditivas, o discurso
coerente e lógico e a ressonância afectiva preservada fazem com que este diagnóstico seja
menos provável.

3. Perturbação afetiva bipolar: Este diagnóstico também deve ser discutido. No


entanto o doente não parece relatar nenhum surto depressivo o que vai contra este diagnóstico.
Tem também outro conjunto de sintomas mais característicos de um quadro de esquizofrenia
como os delírios persecutórios presentes em todo o seu discurso. Contra este diagnóstico está
também o facto de o doente não conseguir manter-se funcionalmente activo após a resolução
dos surtos passados com a toma da medicação.

4. Perturbação comportamental induzida por substâncias: Se esse for o caso, o


comportamento paranóide do doente alterações do humor poderá ser explicado por este
comportamento abusivo. Apoiando este diagnóstico está o consumo passado de haxixe e
cocaína que poderá ter levado ao 1º internamento. Contra este diagnóstico está o facto de
actualmente o doente estar abstinente de qualquer substância psicoactiva, comprovado pelos
resultados de pesquisa para estas substâncias terem sido negativos.

EXAMES AUXILIARES DE DIAGNÓSTICO

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1. Hemograma, ionograma, função renal, transamínases e função tiroideia normais.
2. Pesquisa de DAU negativo para todos os tóxicos procurados

DIAGNÓSTICO DEFINITIVO

Face às evidências apresentadas, o diagnóstico mais provável será Perturbação


Esquizoafectiva.

TRATAMENTO

O tratamento para a perturbação esquizoafectiva deve ser combinado entre


farmacoterapia e psicoterapia.
Neste caso em particular é aconselhado o uso combinado de um estabilizador de humor
(ex: lítio, carbamazepina, divalproex) com um antipsicótico (haloperidol, risperidona,
olanzapina, aripripazole ou ziprasidona). No caso do nosso doente ele estava a fazer
haloperidol, lorazepam 2,5 mg ao deitar e aripripazole (Maintena) 400mg IM 28/28 dias.
Relativamente à psicoterapia este deve ter como objetivo o desenvolvimento de
competências sociais e interpessoais, estabilização psicopatológica, promoção de adesão
terapêutica e reabilitação cognitiva. A dificuldade nesta vertente põe-se na impossibilidade de
realizar psicoterapia durante a actividade delirante, tendo em conta que esta é uma crença
inabalável e irredutível perante a lógica, a relação médico-doente poderá ficar comprometida.

PROGNÓSTICO

Num doente com distúrbio esquizoafectivo o prognóstico é de certa forma reservado. É


fundamental a correta adesão terapêutica, no entanto, olhando para os antecedentes psiquiátricos
deste doente e tendo em conta que já deixou de tomar a medicação sem aconselhamento
médico, a probabilidade de ocorrer novamente é alta. Normalmente este tipo de doentes tem o
seu insight afetado e não reconhece a sua doença, o que também não contribui para o
prognóstico destes doentes
No entanto, o seu prognóstico é melhor do que aquele de indivíduos com esquizofrenia,
nestes doentes mesmo após o surto e a toma da medicação os doentes não têm a capacidade de
regressar à sua vida normal ou seja, deixa de ser activo, e não têm preservada ressonância
afectiva, tendem a afastarem-se progressivamente da vida social. No caso do doente, o seu
componente afetivo permite-lhe ter um maior suporte social, apesar de recentemente ter-se
isolado dos amigos e família, tendo-se mantido em casa grande parte do seu tempo.

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Alguns estudos indicam que cerca de 47% dos doentes com esta patologia entram em
remissão ao fim de 5 anos, e um quarto destes tem um correto funcionamento social após 2 ou
mais anos. Devo salientar também o papel fundamental da família e amigos para o bom
prognóstico deste doente, deverá ser explicado a estes que quanto mais contacto com estes o
doente tenha melhor será o seu outcome.

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