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Ai se o meu filho falasse!!!

A mãe do Joãozinho tinha ido jantar fora. A baby-sitter, estava na sala a ver
televisão, pensando que o Joãozinho já tinha adormecido. Mas, o Joãozinho estava
de olho bem aberto. Às 21:30 começaram a chegar. Um a um. Para ninguém
desconfiar, como tinham combinado. Ao fim de alguns minutos estavam todos. O
Joãozinho na qualidade de anfitrião deu as boas-vindas. E aconteceu! Desataram a
falar, de coração aberto, alma escancarada. Entre um soluço e um sorriso, viraram
o seu mundo interior do avesso. Pareciam adultos num consultório. “A IBE” sabendo
deste plano secreto, por um informador, conseguiu introduzir um microfone oculto
no quarto do Joãozinho. Não revelamos a nossa fonte mas garantimos ser da
máxima confiança. Cá vai o registo da conversa.

Joãozinho (7 anos) – convoquei-vos para esta reunião, porque já é tempo de


falarmos daquilo que nos magoa. Eu, por exemplo, enfrento um problema terrível. O
meu pai é muito ciumento, porque a minha mãe dá umas baldas. O paizinho nem tem
a certeza de que eu sou seu filho, e então olha-me sem ternura nenhuma. Isso dói
muito! Dá-me vontade de não existir. Ele e a mãezinha estão sempre a brigar. Ontem
até houve uma enfermeira que me espetou uma agulha para tirar uma gota de sangue.
Dizem que é para confirmar o meu DNA, e saber se sou mesmo filho do meu pai. Se
não for nem sei o que ele vai fazer.
António (6 anos) – mas tu ao menos tens uma ideia de quem poderá ser o teu pai,
agora eu, eu apareci, apareci e pronto! ...
Joãozinho (7 anos) – como assim!?
António (6 anos) – o que eu ouço é que a minha mãe é solteira, não sei bem o que
isso significa mas acho que tem a ver com eu não saber quem é o meu pai, a mãe
para me consolar diz-me que eu sou fruto duma noite romântica na praia, pronto, na
praia vejam só! eu não sei o que pensar, apareci, pronto, olha ‘tou aqui, mas é muito
triste quando vem os meus anos e não tenho lá um pai, morro de inveja dos meninos e
meninas que têm pai, pronto! e é isso!
Jorginho (7 anos) – o meu problema não é, não ter pai, é não ter braços. Nasci sem
braços porque a minha mãe não me queria. Achava que era má altura. Então, tomou
uns remédios que os adultos tomam para abortar. É isso que os adultos chamam
àquilo que fazem de mal aos nossos amigos quando estão na barriga das mães. Só a
coisa não correu bem e eu vim ao mundo assim, sem braços ... na verdade seria
melhor não ter nascido. Acho que a minha mãe não gosta mesmo nada de mim.
Maria (9 anos) – não sei se vocês vão entender o que eu vou contar ... mas, é tão
difícil! Só de pensar fico toda a tremer ... (soluços)
Rita (8 anos) – vá lá, estamos aqui para te ajudar. Somos todos amigos ... vá!
Maria (9 anos) – eu sei! ... Bem! ... no outro dia à tarde, o meu tio estava muito
esquisito. Foi buscar-me à escola, como sempre, e depois começou a dar-me muitos
beijos, muitos, muitos! Dava-me abraços apertados, e punha mão no meu peitinho, e
beliscava ... depois quis abaixar as minhas calças e tirar-me as cuequinhas, e ... e ...
(soluços) eu comecei a chorar e gritar pela mamã. Ele estava muito vermelho, e a
respirar depressa ... finalmente soltou-me e levou-me para casa. Quando chegámos
disse à mamã que eu estava muito chata, e ela bateu-me e mandou-me para o meu
quarto de castigo. Não sei porque é que o meu tio mentiu à minha mamã ... (silêncio)
Rita (8 anos) – isso é muito injusto! Eu fico brava quando levo com injustiças! Ai fico,
fico! Dá-me vontade de crescer depressa e ser uma daquelas advogadas da televisão,
assim muita inteligentes, para por todos na cadeia. Ai vão ver se não faço isso! Ou eu
não me chame Rita de Lacerda! (aplausos) Então, no outro dia foi por causa da
cenoura. Eu não gosto de cenoura. Não gosto! E a minha mãe obriga-me a comer
cenoura, mas ela não come beterraba. E vai na volta, no outro dia perguntei-lhe
porquê? Porque é que tenho de comer cenoura. Porque faz bem! disse a minha mãe.
Só que eu descobri na escola que a beterraba também faz bem, mas ela não come
não é! Tá mal! É injusto! Olha só digo, eu cá quero crescer depressa para ser
advogada e não comer cenoura! (mais aplausos)
Joãozinho (7 anos) – assim é que é falar! E pelo que vejo não te vão faltar clientes!
Maria (9 anos), Jorginho (7 anos), António (6 anos) – apoiado, apoiado sim senhor!
Miguel (8 anos) – eu acho que não vou ser advogado, se calhar não vou ser nada.
Sou tão burro, sinto-me tão burro! ...
Rita (8 anos) – burro!!! Quem é que te disse isso!
Miguel (8 anos) – todos! (com voz triste) A minha mãe chama-me burro quando não
acabo os trabalhos de casa. O meu irmão mais velho diz que eu sou um choninhas,
porque me roubaram os ténis na escola. E o meu pai zangou-se comigo porque falhei
um pénalti, e disse que era mesmo um parvalhão. Até me amandou gafanhotos para a
cara.
Jorginho (7 anos) – é pá! Até o Jardel falha pénaltis. O que é que isso tem.
Miguel (8 anos) – é, e no outro dia lá na escola toda a gente se riu de mim porque
disse que a capital da Alemanha era Londres. Até a prof gozou comigo! (voz sumida)
Andreia (9 anos) – não fiques triste Miguel. Eu não compreendo metade das coisas
do mundo dos adultos, e eu não acho que seja burra, ‘tás a ver. Bem, é assim! A
minha mãe não mora com o meu pai, mas com outro homem, ‘tás a ver. Então esta
semana disse-me: Andreia, a menina tem de chamar pai ao Bernardo. Não admito
faltas de respeito. Bem, e isto em plena Loja das Meias, ‘tás a ver. Eu achei aquilo
uma falta de chá! Para cúmulo, nesse dia ao serão, vem a casa da minha mãe o meu
pai com outra mulher, e diz-me assim: Andreia, esta é a Sofia. A partir de hoje quero
que lhe chames mãe, OK!? Francamente, fiquei muito confusa! Nessa noite tive
pesadelos horríveis, e tenho medo de não acertar com os nomes correctos, ‘tás a ver.
Clara (7 anos) – tu, é como se tivesses dois pais e duas mães. Concordo que isso
deve ser super confuso. Mas vê só, os meus pais viajam tanto que eu mal os vejo.
Mandam-me presentes dos Estados Unidos, brinquedos da Áustria. O meu pai
telefona da Inglaterra, conta-me que lá há bué da luzes no Natal. Só que o que eu
queria era estar ao pé dele. Depois a mãe liga-me do Japão, entre uma reunião e
outra. Só me pergunta se tenho dinheiro que chegue. Nem me pergunta pela escola!
Eu trocava todos os brinquedos que tenho, por uma semana inteira com os meus pais.
(sons de concordância)...
De repente, ouve-se a porta da rua a bater. Devia ser a mãe do Joãzinho a regressar.
Vozes na sala. Passos pela casa. As crianças demonstraram uma capacidade invulgar
para o sumiço. Joãozinho, com o coração aos saltos, enfiou-se debaixo dos lençóis.
Ufa, foi por uma unha negra!

Na redacção de “A Missionária” esta gravação foi recebida com muita


consternação. Decidimos chamar alguns especialistas em diversas áreas, para nos
ajudar na análise destes testemunhos. Estavam à volta da mesa, João Bondoso –
teólogo; Eduardo Politicamente Correcto – sociólogo e Vanda Coca Bichinhos –
psicóloga. A conversa desfiou-se ao sabor da emoção de cada um:

Eduardo Politicamente Correcto – eu acho que a comunicação social não deveria


ter acesso a estes testemunhos. O que é que vão fazer com este material? Divulgar a
informação e gerar uma espécie de paranóia colectiva.
Vanda Coca Bichinhos – que disparate! Isso é ridículo! As feridas profundas, na sua
identidade e auto-estima que estas crianças sentem, devem ser denunciadas. A Maria
que foi assediada sexualmente pelo seu tio, tem direito a ser protegida. A sexualidade
faz parte da identidade do ser humano. Quando isso é afectado durante a formação do
carácter da pessoa há consequências graves, como depressão, ausência de sono,
alimentação desregrada, mau aproveitamento escolar, mudança de comportamento
em casa, enfim! É um acto brutal que compromete o futuro afectivo da Maria.
João Bondoso – eu concordo com essa análise. Jesus também acharia isso mesmo,
porque em certa ocasião: “qualquer que fizer tropeçar uma destas crianças ... melhor
lhe fora que se lhe pendurasse ao pescoço uma grande pedra de moinho, e fosse
afogado nas profundezas do mar” (Mat 18:6). São palavras fortes que revelam a
gravidade da situação aos olhos de Deus, à imagem de quem fomos criados.
EPC – tretas! Então se já desde a antiguidade clássica, os filósofos se deleitavam com
orgias em que faziam desfilar crianças reservadas para o seu prazer carnal .. não me
parece que seja grave! É mesmo uma orientação sexual alternativa e que de acordo
com o psicólogo americano Kinsey, defende o direito das crianças à expressão sexual
sem repressão.
VCB – aí temos de ir mais devagar. Esse relatório Kinsey é discutível e erra em duas
áreas chave. Primeiro: ignora que grande parte das crianças sujeitas a pedofilia, são
assassinadas. Isto acontece porque o abusador é movido por uma compulsão sádica
que busca o prazer pela transgressão. O desejo perverso cala a voz da consciência,
com a promessa dum gozo que tendo-se realizado, não fica satisfeito. A culpa só
funciona como remorso mórbido que vai despoletar uma fuga para a frente, com novo
mal.
JB – isso em termos teológicos é um tipo de vertigem moral (no sentido de atracção
fatal). Milan Kundera trata o assunto no livro lindo “A insustentável leveza do ser”. Ou
seja a ausência de peso moral. Acho que é o apóstolo Tiago que diz que “o pecado
sendo consumado gera a morte”. E diz ainda que “as guerras e contendas vêm dos
prazeres que militam na nossa carne” (Tia 4:1).
VCB – exacto! Mas há um segundo aspecto a ter em consideração. Um dos factos
mais aterradores, é o número de crianças que são abusadas por familiares bem
conhecidos da família. Pensamos que há gente estranha que agarra a criança
desprotegida e a leva para o turismo sexual, e que isso é a norma, e que só acontece
lá muito distante na Tailândia. Mas as estatísticas não sustentam essa fantasia. Os
abusos são praticados na nossa vizinhança, por pessoas com quem nos cruzamos
todos os dias no super-mercado. É uma drama camuflado, mas perto de nós.
EPC – se eu pudesse inflectir aqui um pouco a nossa conversa eu gostaria de registar
a atitude sonhadora da Rita que quer crescer depressa para ser advogada e não ter
que comer cenouras. Faz lembrar os versos do Gedeão: “cada vez que um homem
sonha o mundo pula e avança como bola colorida nas mãos duma criança”. Ser
criança é isto: sonhar! E toda a criança deve ter esse direito bem reservado. Uma
sociedade que amputa os sonhos duma criança é retrógrada.
JB – estou a gostar de o ouvir. Não parece muito na linha do que disse há pouco.
EPC – não! Não venha com essa! São coisas diferentes!
JB – pronto! Não está cá quem falou! Agora quem falou sobre o assunto duma forma
luminosa, foi Jesus que disse: “deixai vir a mim os pequeninos e não os embaraceis,
porque dos tais é o reino de Deus” (Luc 18:16). E nesta frase fabulosa Cristo dá toda a
dimensão da capacidade sonhadora das crianças. Só uma criança, na sua pureza,
sonha com o céu. O adulto tende a ganhar o céu! Seja por boas acções, deveres
cumpridos, ou boa moral. Só uma criança sonha directo com o céu. Sem lutar por ele!
Daí que Cristo acrescente: “quem não receber o reino de Deus como uma criança de
maneira nenhuma entra nele” (Luc 18:17).
VCB – essa é uma ideia bonita. Uma das minhas brigas, vai no sentido de alertar as
pessoas para a arte do sonho, inerente a cada criança. É urgente, a meu ver, mobilizar
toda a sociedade para desenvolver acções preventivas usando todas as redes de
atendimento. É urgente sensibilizar as pessoas para a riqueza da adopção, aplicando
também políticas de combate à exploração comercial de crianças. Eu sei que é um
pouco idealista da minha parte. Mas, o que é preciso é não nos acomodarmos às
razões que habitualmente são dadas, para justificar o atropelo dos direitos da criança.
Como, a estrutura socio-económica, a disfunção familiar, ausência de educação dos
pais, crescimento do consumismo, migração urbana, discriminação racial, os
computadores, etc. Enquanto não deixarmos de ver a criança como mercadoria, não
haverá nenhuma criança que possa sonhar e brincar em paz.
JB – bem de acordo com a Bíblia esse estado idílico só acontecerá quando Cristo
voltar: “as praças das cidades se encherão de meninos e meninas que nela brincarão”
(Zac 8:5). Vejam que paraíso! Livre e despreocupado.
EPC – tenho dificuldade em ser assim tão optimista. Afinal Deus não morreu!? Hoje o
que está a dar é o ocultismo da Nova Era. A agonia do espírito e a dessacralização do
corpo. E as crianças nunca poderão dar uma ajuda espiritual à humanidade.
JB – pois eu penso que podem. Jesus disse que: “da boca de pequeninos e crianças
de peito, Deus tirou o perfeito louvor” (Mat 21:16). As crianças são o sinal claro dum
futuro com esperança Por isso a Bíblia aposta naquilo a que eu chamo a cadeia de
transmissão. Ou seja passar dos pais para os filhos, a Palavra que engloba a
revelação de Deus e a Salvação que Ele oferece; o exemplo que se traduz na
experiência do dia e das noites, e que faz o elo de ligação entre gerações; e a história
que fala das manifestações soberanas de Deus na vida do Seu povo e da Igreja. Não
podemos como sociedade, abrir mão desta responsabilidade. Os Israelitas tinham
tanto prazer nesta função social que cantavam: “o que ouvimos e aprendemos, o que
nos contaram nossos pais, não o encobriremos a nossos filhos; contaremos à geração
vindoura, os louvores do Senhor e o seu poder e as maravilhas que fez” (Sal 78:3-4).

Cortamos aqui os pensamentos dos especialistas. Entretanto, informações de


última hora chegadas à nossa redacção dão conta dum movimento cívico na defesa
dos direitos das crianças. A Maria fundou a APAV, Associação de Apoio à Vítima. O
Jorginho encheu-se de coragem e fundou a CERCI. A Rita e a Clara, juntaram-se e
fundaram a Compassion (Agência de Adopção) ... Um belo dia, juntaram-se todos ao
almoço e tiveram uma ideia genial: UNICEF. São eles os sócios fundadores.

Samuel Nunes

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