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Nada

Francisco sempre foi um menino levado. Sua mãe sempre me contava de suas
artimanhas mirabolantes. Era como se todos os dias, Francisco acordasse e decidisse que iria
construir alguma coisa. Sempre essa mente criativa, até demais. Sua mãe, uma mulher linda e
nova, engravidou de Chico com apenas 18 anos. Com a ausência paterna, Chico foi criado
pela sua mãe e sua avó materna.
Desde cedo, por essa falta do pai, sua mãe, Alice, sempre priorizou que Chico
frequentasse um psicólogo.
– Como está se sentindo hoje? – pergunta Tina, psicóloga de Chico desde os seus 6
anos de idade.
– Estou animado! Este vai ser meu último ano no colégio, quero aproveitar ao
máximo – respondeu Francisco, balançando a perna 30 vezes a cada 5 segundos, como um
jovem ansioso.
Mas Chico estava animado mesmo era para as aulas de ciência. Sonhava em estudar
física espacial e astrofísica, seus interesses pela área sempre o levaram para o caminho das
descobertas. Criava objetos com coisas velhas em sua casa e, certa vez, conseguiu consertar
os fios elétricos de uma tomada velha com apenas 9 anos de idade. Um risco tremendo.
Na escola, sempre tinha muitas amizades. Todo mundo amava Chico. Inteligente,
simpático. Nas provas, ajudava todo mundo, e pela sua esperteza, nunca foi pego passando
cola para seus colegas, já que criava diferentes maneiras para fazer isso. Sempre muito
carinhoso, era amigo de toda a escola.
Era uma segunda-feira, início do terceiro ano. Ele estava animado para ver seus
amigos e fazer cálculos físicos. Foi um dia cheio de risadas e de alegrias. Chico sentia que
seria o seu ano. Um ano de provas de vestibulares, que nunca lhe causaram medo, ele ficava,
na verdade, ansioso para que elas chegassem logo. Sua jornada para se tornar um astrofísico
estaria cada vez mais perto. Sua vida era isso. Física, amigos e sua família.
– O Ministério da Saúde confirmou, nesta quarta-feira (26/2), o primeiro caso de novo
coronavírus em São Paulo. O homem de 61 anos deu entrada no Hospital…
– Chico! Vem ver isso – chamava sua mãe avó da sala – Aquele tal coronavírus
chegou aqui. Está passando no jornal.
Chico parou tudo para assistir.
Poucos dias depois, decretava-se a quarentena nacional e mundial.
Sem escola, apenas aulas online. Preso em casa, em seu quarto, só saindo para
comprar os remédios de sua avó.
– Está me ouvindo direitinho? – perguntava Tina, sua psicóloga, através de uma tela
do notebook de Chico, durante uma chamada de vídeo.
– Sim, estou ouvindo. Bom dia – respondeu Chico, sem falar muito, o que não
costumava fazer.
Foi uma sessão longa para ele. Ele não gostava de conversar através da tela de seu
computador. Ele ficava envergonhado de aparecer do jeito que ficava em casa, mas sua
preguiça de trocar de roupa era maior. Ele dizia que estava tudo bem, que ele estava usando
do momento de quarentena para desacumular matérias atrasadas. Desligava a câmera, e já
começava a ficar entediado. Não conseguia sentar para estudar. Sua preocupação era com a
doença, que matava milhares de pessoas por dia. Tinha medo.
Durante os próximos 7 meses, Chico só pensava em uma coisa. “E se o vírus não
tivesse infectado a primeira pessoa? E se nada disso estivesse acontecendo?”. Eram
exaustivos dias sem poder sair, preocupado com sua avó e com sua mãe. Preocupado com o
seu futuro. Ele queria estar vivendo seu último ano do melhor jeito possível. Aproveitar tudo.
De repente, assistindo “Dark”, uma série da Netflix, Chico tem uma ideia. Construir
uma máquina do tempo. Ele tinha tudo para isso. Materiais e a ciência em seu cérebro. Ele só
queria reverter aquela realidade. E assim começa sua jornada de construção de sua máquina
do tempo, durante os próximos muitos meses que ainda virão.
“Flora curtiu seu storie”. “Flora: Eu amo essa banda, Chico!!! Não sabia que você
gostava de Arctic Monkeys”. Chico pega seus celular e vê as notificações de Flora. Do nada
seu coração acelera diferente. Flora. Havia uns 2 meses que ele a havia conhecido, através de
um jogo online no Discord. Ela era de sua cidade, mas nunca haviam se visto. De primeira já
gostou dela de um jeito diferente. Mas, fora dos jogos nunca haviam conversado. Ele nunca
conseguiu mandar mensagem, sempre a vergonha presente.
“Amo!!!...”. Deletar. “Oi, Flora, tudo bem? Adoro essa banda…”. Deletar. Se sentia
mal por não conseguir sequer mandar uma mensagem. Finalmente, pensou: Isso não vai dar
em nada mesmo. “Gosto demais, qual sua música favorita do álbum AM?” Enviar. E foi
assim que começou os melhores momentos da quarentena de Chico.
Todo dia eles conversavam. Todo dia encontravam algum momento do dia,
geralmente pela noite, para jogar algum jogo juntos, mas a verdade era que eles nem eram
muito criteriosos com a escolha do jogo. Queriam mesmo era passar horas em chamada,
rindo, contando da vida do outro, compartilhando sentimentos.
Eles começaram a se amar, de verdade. Mesmo sem poder se tocar, na primeira vez
que fizeram uma vídeo chamada, sentiram algo em comum. Saudade. Mesmo sem nunca
terem se visto pessoalmente, nem se tocado. Quando Flora percebeu o que sentia por Chico,
não perdeu tempo. “Chico, oi. Diante da nossa realidade, pensando que esse vírus pode me
infectar e eu simplesmente parar de existir, quero deixar claro para você que eu estou te
amando. Não ia falar isso assim se fosse outra realidade, mas não quero perder tempo. Se
você sentir por mim o mesmo, me liga hoje 23:59. Se não, bem, vou saber sua resposta.
Depois decido se vou ou não querer continuar conversando com você todos os dias. Acho que
não, por isso, me liga! Beijo”.
O que você acha que aconteceu? Óbvio. Ele estava perdidamente louco naquela
menina linda, com cabelos pretos enrolados. Foi o início de uma linda história. Eles
contavam juntos os dias para se verem. Ela amava escutar Chico falar sobre coisas científicas
e ele amava ouvir Flora contar de sua paixão pela música. Eles finalmente se encontraram,
meses depois, julho de 2021, quando começou a aplicar a primeira dose da vacina. Eles se
amavam, mas..
– Meu Deus, finalmente… – dizia Chico, diante sua construção de meses.
Sua máquina do tempo, que Chico apelidou como Lora, estava pronta. Não era muito
bonita, mas parecia que daria certo. Era bem grande. Tinha uma cápsula enorme, era onde a
pessoa ficaria.
Então, depois de mandar inúmeras fotos de sua máquina para Flora, Chico só pensa
em testá-la. Para quando iria? Se desse certo ele viraria um héroi. Ele estava tão ansioso para
testá-la, mal sabia ele…
“Estou entrando! Vou colocar para voltar para ontem, deixei uma carta na sua mochila
hoje, no almoço, para que você tenha uma prova de que a viagem no tempo deu certo, quando
eu voltar para te contar a experiência! Estou muito animado para te encontrar e ver sua
reação. Eu te amo, Flora. Com amor, seu Chico.” Enviar.
02/08/2020.
“ Hoje é domingo, 2 de agosto, e o Brasil tem 2,7 milhões de casos confirmados de
coronavírus. O número de mortos pela Covid-19 no país é de mais de 93 mil. Segundo dados
do consórcio de veículos de imprensa, julho foi o mês com mais mortes pela doença no
Brasil…”
Chico errou ao colocar a data na máquina. Para que nossa história pudesse existir, ele
deveria ter colocado 02/08/2021. Por um número, nós nunca nos conhecemos. E eu, que antes
do Chico, lutava todos os dias para tentar ficar viva, já que a depressão tomou conta de mim,
depois de perder minha mãe, meu pai e meu irmão para o Covid, não vi mais sentido em ficar
viva. Vivi por meses com um vazio no peito, de que faltava alguma coisa. Faltava alguém
além da minha família. Hoje sei quem faltava. Era Chico, o meu Chico, que por um erro de
digitação, nunca me conheceu, nunca me permitiu conhecê-lo.

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