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O Consórcio Dos Anômalos…

A juventude irá se autodestruir em breve… Qual é, Caiam na real! Estão se aproveitando uns dos
outros, todos nós sofremos uma inclusão terrível dentro do descarte. Vocês embebedam o
próximo de uma maneira tão ríspida, usando e abusando das particularidades, os medos,
ambições, qualidades, defeitos, memórias, surpresas, ganhos e perdas de um indivíduo,
para então, no final, rasgar, amassar, descartar e jogar na lixeira… a diferença, é que não
somos páginas, e sim pessoas. Por isso, sem pensar duas vezes, dedicarei esse teatro a
todos aqueles que tem a sensação de estarem afogados debaixo da terra, enforcados por
uma fobia social dolorosa, escravos do julgamento alheio, sem esperança diante de um
circo tão sujo de jovens imbecis, estes que vivem exibicionismos ignorantes, estúpidos e
libertinos. Não temam, nós iremos ridicularizar eles da maneira mais ignomínia possível…
bem vindos, degustem do contra!
1º Ato… O Inverno.
A manhã de trinta de julho de mil novecentos e noventa e dois nasceu tenebrosa… o frio albergou
um ápice sem medir escrúpulos. Quatro graus negativos. Lapa, ínfima região no interior do Paraná,
estava coberta pela geada. Pais e avós preparam café fresco, enquanto as poucas crianças corajosas
saíam de pijama para fora, desejando apreciar a "neve" caída na cidade. Telejornais anunciam uma
retrospectiva bubônica a respeito das crianças que desapareceram no estado desde a década de
oitenta. As famílias, amedrontadas por toda calamidade pública do "Caso Evandro", se tornaram
paranóicas.

Coberta e aquecida dentro de um modesto automóvel de cor preta, a Srta. Milenkovic fica surpresa
com o clima. Enquanto passava pelas ruas centrais, devaneios lotam a cabeça com memórias de
uma rotina cheia nas grandes capitais do leste europeu. "Já fazem quase três anos que estou
vagando pelas redondezas." Ah, sim, mas que grato vislumbre, ela largou poucas e boas após aceitar
o plano de Albert Ferenczi, para ministrar sociologia; além disso, ainda iria ser psicóloga, na
"Academia dos Imperialistas", internato destinado à alunos com deficiência física.

A instituição mencionada ganhou forte reconhecimento nacional no país de origem: Hungria. A


matriz, localizada na capital, abriu suas atividades na década de sessenta. Neste período, o Sr.
Ferenczi, já atuando como educador, aplicou uma venerável quantia em dinheiro da herança
familiar, colocando em prática uma coleção excêntrica de ideias. Claro, houveram duras críticas…
hoje em dia, o debate acerca da educação especial tem mais alcance, só que na época, os
escrúpulos eram estruturais. A Srta. Milenkovic admirava o cidadão por tais feitos.

Após alguns quilômetros fora do município, a professora foi recebida pelo porteiro, que aos prantos,
pelo frio desta manhã, lhe cumprimentou, abrindo passagem para que pudesse se dirigir até o
estacionamento do colégio. Com preguiça, ela manobrou o carro de maneira desleixada, já que o
fluxo de pessoas naquele horário da manhã não havia tido desenvolvimento. Modéstia à parte,
chegar ao trabalho antecipadamente era um colírio aos olhos, pois a Srta. Milenkovic estava com
carga horária dobrada nos últimos meses do primeiro semestre do ano letivo.

Em instantes, o próximo preceptor saudou o porteiro… Sr. Miyazaki. Disciplinado, categórico e


pontual. O cavalheiro logo avistou o carro da Srta. Milenkovic, foi até uma vaga próxima. Após
estacionar o veículo, pegou um casaco do banco ao lado e vestiu. Era domingo… Somente a moça
tinha de estar ali no dia de hoje, mas a curiosidade flerta na cabeça do professor de física. A
repercussão midiática que a miúda recém chegada teve foi histórica. Precisava bispar a situação das
próximas horas.

De imediato, a moça se retirou do carro. Fez uma careta de espanto ao se chocar com o frio.
Bisbilhota os bolsos, procurando uma carteira de cigarros. Após separar um e acender, se encostou
no automóvel, pensativa. Ocasiões como estas criavam ansiedade. Depois de uma tragada, o Sr.
Miyazaki foi ao seu encontro.

— Bom dia, Darya.

— Professor Miyazaki… Eu sabia. O senhor não conseguiu conter a vontade.

— Infelizmente. Precisava averiguar pessoalmente nossa nova educanda.

— Que beleza… O Sr. Ferenczi não queria alvoroço nesse dia, sabe?

— Sim, ciente. De nosso corpo docente, somente você foi convidada a marcar presença. Albert pode
ficar zangado, mas me entendo com ele mais tarde.

— É… a garota irá para sua turma.

— Como estão as expectativas?


— A ficha dela não é nem um pouco generosa. Esteve no hospital por quatro meses, encarando
cirurgias, trocando medicações com frequência, lidando com a pressão que foi imposta pela
televisão; sinceramente, vai ser um saco. As matrículas são feitas somente no horário comercial, só
que o diretor ordenou o processo de admissão para hoje.

— Incomum, com toda certeza. Senti pena, a família teve de enfrentar um bocado de processos nos
tribunais, fora opinião pública polarizada a respeito do caso. Que coisa…

— Em alguns minutos já estarão aqui. Rezo para que não tenham feito uma viagem conturbada. Ah,
e também, o Sr. Ferenczi acabou de sair de Curitiba. Logo chega. Quis vir conversar com os pais da
menina.

— Ele não estava fora do Brasil? Não acredito, desmarcou uma série de compromissos e reuniões
acadêmicas a fim de ver uma única aluna?

— Estranho, não é? Também fiquei surpresa. Maria já irá abrir a recepção. Separou materiais
escolares, uniformes, cronograma das aulas. Caroline vai começar amanhã já… você bem que podia
esperar. Deus me livre, domingo, na nossa folga, de pé essas horas, com esse frio absurdo.

O professor soltou risos, e ficou um pouco embaraçado, estava fazendo papel de intrometido. Bem
dizer que já é uma unanimidade que todos os mestres sentiram uma ansiedade de estar ali no
domingo para receber a guria com maior número em manchetes, rádios e programas de televisão
do país, mas como o Sr. Miyazaki ficaria aos cuidados acadêmicos e disciplinares da adolescente,
não segurou a vontade de espiar a misteriosa chegada.

— Ah, céus! Macacos me mordam… agora não voltarei para casa. Inclusive, Darya, terá mesmo a
coragem para se apresentar e orientar aquela família com esse cheiro de cigarro? Achei que tinha
parado de fumar.

— Eu já desisti… toda vez que penso em parar, depois de breves minutos meu cérebro me engana.
Promessas em vão, dou com a língua nos dentes. O Albert vai endoidar se descobrir. Impressionante
como ninguém mais pode fumar na santa paz, em todo lugar, em todas as pessoas vemos opiniões
contra o tabaco.

— A ciência fazendo uma tentativa de preservar a saúde da população. Meu pai fumou a vida inteira,
e o caixão foi prematuramente o destino dele. Tá certo, todo mundo é suscetível aos contratempos
da vida, ninguém sabe o dia de amanhã, mas usufruir do tabagismo é trazer a morte para mais
perto de você.

— É bom que venha mesmo… Gastei minha juventude enfiada em livros, teses e pesquisas. Não
construí família, a que tenho não vejo faz muito tempo. Então, morrer de velhice, solitária em uma
cadeira banda, não rola. Então acho que vou continuar consumindo esse prazer mortal.

— Não poderia ter sido tão existencialista como agora… por que não quis casar, ter filhos?

— Se morando sozinha, minha vida já é um turbilhão, já imaginou tendo uma criança para cuidar?
Os alunos são meus filhos. Me dão um baita trabalho, estresse. Mesmo assim, ainda tenho um amor
e gratidão enorme. Provas, sessões de terapia, planejamento de aulas, trabalhar fora de horário…
nesse caos não existe espaço para criar uma criança, ou lavar roupa e fazer comida para homem.

— A vida de professor é um porre mesmo. Mas aí vai do planejamento e vontade. O espectro familiar
é enraizado em nós desde criança. Por isso a trajetória é vendida para nossa sociedade como um
sonho. Ter um diploma, achar uma pessoa bacana e aderir o matrimônio, tá na cabeça. Minha
esposa quer ter mais um agora… O Arthur vive me dizendo que gostaria de ter um irmão, ou irmã.

— Assim, eu entendo que o ciclo familiar gera bons frutos e uma sensação de prazer enorme.
Imagina só, ver como teu filho está crescendo, por cada etapa, ter a experiência de ser um pai ou
uma mãe, deve ser único! Mas, não sei se tenho cabeça para isso. Já que estamos falando desse
assunto, assistiu os jornais hoje? Cada dia que passa tão descobrindo e teorizando mais sobre o
"Caso Evandro".
— Deus me livre, Darya, é doentio o responsável por esse crime, e o desaparecimento de vários
outros pequeninos. Hoje em dia a gente vê de tudo, e mesmo assim fico tão surpreso com uma
barbaridade dessas. Esquartejaram o corpo daquele garoto… O bairro onde resido é seguro, só que
minha esposa tá tão paranóica que deseja mais uma pessoa cuidando do Arthur e da babá.

— O Sr. Ferenczi vai contratar mais seguranças armados, para atuarem no pátio central e nos
dormitórios. Além do mais, teremos um toque de recolher. Após o horário de jantar no refeitório,
ninguém deve ficar vagando por aí.

— É, a gerência da Academia após nosso horário fica nas mãos dos monitores, enfermeiros. Ter
indivíduos capazes de proteger os alunos desse tipo de ameaça é vital, acho que Albert fez uma boa
escolha. Melhor prevenir do que remediar, até os estudantes concordam com a decisão imposta. Ou
a polícia pega o assassino, ou a população acha o sujeito e faz um linchamento em público.

— Não quero nem pensar nisso, Sr. Miyazaki. Tá quase na hora receber a bomba do mês. Vai ser
difícil lidar com a bichinha… uma última tragada no meu cigarro e você já pode sair daqui, a não ser
que deseje enfrentar a fúria do diretor. — Dito e feito. A professora jogou a bituca longe, tirou as
cinzas do casaco e foi ao banheiro. Precisava ao menos amenizar aquele cheiro forte.

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