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Fronteiraverso

Além da fronteira – volume 1


Além da escuridão – volume 2
Além das chamas – volume 3

Eastverso

Garotos mortos não contam segredos – volume 1


Garotos mortos não contam mentiras – volume 2
Garotos mortos não sangram – volume 3
Garotos mortos não descobrem verdades –
volume 4

Aquele garoto – volume 1
AquelA FESTA – volume 2
AQUELE GAROTO
Copyright © 2021 Mark Miller.

Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de 19/02/1998. Proibida a


reprodução deste livro, no todo ou em parte, através de quaisquer meios, sem a permissão
escrita do autor, exceto em casos de pequenas citações usadas em resenhas ou artigos
críticos.
Este livro é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares, organizações, eventos e
incidentes são, ou parte da imaginação do autor, ou usados de maneira ficcional. Quaisquer
semelhanças com indivíduos reais, vivos ou mortos, eventos ou lugares são inteiramente
coincidentes.

Os direitos morais do autor foram assegurados.

Leitura Crítica: Lucas Souza


Revisão: Amanda Gabriela, Sophia Ferreira
Diagramação: Bruno Louvres, Mark Miller
Capa e Ilustrações: Senara Sousa
Ilustração de Personagens © wantsgmarie
Emblema de Eastview © C. M. P. Vargas

Texto revisado segundo o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.


Primeira edição, 2021.
Para aqueles que, como eu e Dani, não sabem dizer ‘NÃO’. É simples, eu juro. Repita
comigo: NÃO!
Sumário

Sobre Eastview
Playlist

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AQUELA FESTA
Agradecimentos
Sobre O Autor
Eastview é um colégio particular de Ensino Médio fundado em 1903 pelo
benfeitor puritano Carlos Wolmer, localizado em Eastview, São Paulo.
Está na vanguarda da pesquisa acadêmica e intelectual. Aqueles que
se aventuram aqui - para aprender, pesquisar, ensinar, trabalhar e crescer -
se juntam a mais de um século de tradição e estudantes que buscam pela
verdade, conhecimento e pela construção de um mundo melhor.
Como a maior instituição de renome do Brasil, Eastview estará
sempre focada em criar oportunidades educacionais para os jovens que
representam o futuro da nação - e do mundo.
Esse livro possui uma playlist cuidadosamente organizada para
complementar a experiência de leitura. Acesse-a através do código abaixo
(abra a barra de busca do spotify, clique sobre o ícone da câmera e o
escaneie), ou busque pelas palavras-chave “Aquele Garoto – Playlist
Oficial” no serviço de streaming.
PRESENTE

P or dezesseis anos, imaginei como seria a sensação de ser popular.


Qual seria o sentimento de andar pelos corredores do colégio e ser
notado por todos.
Que tipo de roupa eu precisaria vestir para que aquilo acontecesse?
Certamente não o all-star sujo que usava ao invés dos sapatos sociais do
uniforme oficial do Colégio Eastview para Jovens de Elite.
E quando acontecesse, será que todos os garotos ao redor babariam
por mim, como eu babava por eles?
Será que eu teria um tanquinho trincado como o dos garotos do time
de futebol? Como o de Caspian Wolmer?
Eu sei, fantasia demais.
Mas meu momento de popularidade finalmente tinha chegado.
Dezesseis anos de uma vida nas sombras jogados no lixo. Os holofotes
estavam sobre mim.
E não podia ser por motivos piores.
Enri fecha a porta da cabine do banheiro bruscamente. O estampido
irritante ressoa pelo mármore perfeitamente polido do chão e teto do lugar.
Ele nos tranca logo em seguida, e me sento sobre o vaso sanitário com a
tampa abaixada. Me inclino à frente, e cubro meu rosto com as mãos,
tentando inspirar fundo. Mas não consigo. Meu peito pesa.
Aquilo é um pesadelo.
— Porra — vocifero para mim mesmo. Sinto a mochila escorregar
dos meus ombros, e cair no chão da cabine. Dentro dela está o notebook
responsável por toda aquela merda. — Porra. Porra. Porra. Porra. Porr—
— Se acalma, Dani — Enri me interrompe —, não tem motivo pra
entrar em pânico.
— Como assim não tem motivo? — Ergo os olhos em direção aos
dele. — A porra do meu blog acabou de vazar pra escola inteira, Enri, que
droga você quer que eu faça além de entrar em pânico?
Ele se encosta contra a porta selada da cabine. Estamos na última do
banheiro, então é improvável que alguém perceba nossa presença ali.
Descobrimos no ano passado que aquela cabine é um dos poucos lugares
neste colégio onde se pode ter alguma privacidade.
Enri descansa sua mochila no chão ao lado da minha. Ele parece
exasperado, mas por motivos severamente diferentes dos meus.
— Olhar as coisas pelo lado bom, talvez — responde.
— E que lado bom seria esse? — falo entre os dentes cerrados.
Enri fica em silêncio, e me lança um sorriso chocho de conforto, que
mais parece uma careta.
Respiro fundo. Volto a esconder o rosto entre as mãos. Curvo a nuca
ainda mais em direção ao chão, observando os azulejos brancos. A cada
segundo que passa, sinto a vergonha da humilhação pública me subir mais e
mais.
De alguma forma, de algum jeito inexplicável, meu blog secreto
acabou se tornando não tão secreto assim, e agora meus textos estão nas
mãos de todos no colégio, no bairro, na cidade.
Tudo. Absolutamente tudo que escrevi desde os dez anos, quando
ganhei meu primeiro computador e montei aquele blog estúpido.
Tudo nas mãos das pessoas que nunca deveriam ter acesso a esses
textos. Escrevi eles para desabafar, para ser uma forma de escape para mim
mesmo. E agora eles estavam por aí, soltos no mundo.
Que ódio. Que ódio. Que ódio. Que ódio.
Aquilo era um filme de terror.
E como em um bom filme de terror, aquele também começou no
acampamento de verão.
1 SEMANA ATRÁS

O k.acampamentos
Talvez não fosse bem um acampamento de verão. Em
de verão você geralmente escolhe ir, faz aquilo por
diversão.
Nesse, todos os alunos de Eastview estavam ali obrigatoriamente.
Foi uma forma que Wolmer encontrou de nos integrarmos socialmente —
ou alguma merda dessa, como se ele se importasse mesmo com integração,
ou qualquer coisa que não fosse a reputação da escola que sua família
fundou.
Bem, era o último dia. Todos sobrevivemos às infinitas palestras e
aulas sobre educação sexual, política e vida em sociedade, e estávamos
prontos para voltar pra casa e viver tudo o que não vivemos naquelas três
semanas, nos últimos sete dias antes do início do semestre.
Era a festa de encerramento do acampamento, e estava tão animada
quanto o enterro de um animal doméstico. Mas tudo bem. Seriam apenas
mais algumas horas.
Eu estava em um canto qualquer do salão, junto com os outros que
também haviam sido esquecidos no churrasco. Tinha perdido Enrique de
vista há muito tempo — e já estava começando a imaginar que nunca mais
o reencontraria.
Os garotos populares estavam no centro, discutindo sobre coisas
banais, tirando selfies e bebendo o álcool que levaram até ali escondidos de
Wolmer (de acordo com os rumores).
O time de futebol. A equipe de líderes de torcida. O time de
basquete, vôlei. Os patinadores, membros do coral. Todos estavam ali,
ficando lentamente bêbados enquanto aquela noite se afastava.
E, no centro de todos, estava ele.
Eu tentava não o encarar demais, mas era difícil. Ele tinha essa
espécie de magnetismo em seu entorno. Talvez fossem os bíceps. Talvez
fosse a pele brilhante e marrom-escura. Talvez fosse seu sorriso largo e
galanteador.
Galanteador. Quem fala esse tipo de merda?
Bem, não tinha como definir de outro jeito. O sorriso dele era
galanteador. Era perfeito.
Era absurdo imaginar que um cara como ele poderia se interessar por
mim. Era um completo delírio fantasiar que Caspian Wolmer sequer sabia
que Daniel Vinci existia. Quem eu era perto dele? Um ninguém — um nerd
esquecido, como Enri gostava de acentuar.
Mas, por algum motivo... Ali estava ele, olhando diretamente para
mim.
Olhei para os lados. Ele devia estar olhando para outra pessoa, certo?
Certo?
O olhar castanho dele — quase amarelo — continuou centrado em
mim. Olhei para baixo, para meu torso. Eu devia ter derramado bebida na
camisa, bagunçado o cabelo, feito alguma coisa estúpida para chamar sua
atenção.
Não era possível, não era possível que...
“Me encontra na sala do zelador.” Ele sussurrou, e então se afastou
calmamente de seus amigos populares.
Fiquei paralisado por um segundo. Olhei ao redor mais uma, duas,
três vezes. Onde estava Enri para me dizer se eu estava mesmo delirando ou
não?
Cas me lançou uma última piscadela antes de deixar o salão.
O segui logo em seguida. Devia ser alguma pegadinha.

Não era uma pegadinha. Minha cabeça batia contra as paredes da sala
apertada do zelador conforme continuávamos transando.
Meu corpo estava ali, estava presente, mas minha mente ainda estava
nas nuvens pensando que, de todos os garotos da escola, Caspian Wolmer
realmente tinha me escolhido, queria ficar comigo.
Aquilo quase fazia o desconforto de perder a virgindade ir embora.
Mas minha cabeça continuava batendo contra a parede quando ele
acelerava demais.
— Você pode ir mais... devagar? — pedi quando senti que estava
prestes a ter uma enxaqueca.
Ele fez uma expressão de susto, e se afastou um pouco.
— Foi mal, tô te machucando?
— Não, é só que... — Espalmei a parede atrás de mim. — Tô
batendo minha cabeça nessa parede aqui — abri um sorriso curto, me dando
conta da situação absurda.
Minha primeira vez estava sendo com o cara dos meus sonhos, no
chão frio de uma sala escura no acampamento de verão planejado pelo pai
dele.
Boa, Dani.
— Quer ficar por cima? — ele perguntou.
Engoli em seco.
— ... Claro... — murmurei.
Invertemos as posições.
— Porra — Cas reclamou quando foi sua vez de bater a cabeça na
parede.
Ri daquilo. Ele riu de volta. Continuamos transando por alguns
minutos. Ambos não conseguimos durar por muito tempo.
No final, deitamos de costas sobre o chão gelado, molhados de suor,
respirando fundo. O olhei de lado. Ele fechou os olhos e descansou um dos
braços sobre a testa. Estava com sono, percebi.
Eu também estava.
Analisei seu corpo com um pouco mais de cuidado, no silêncio
quebrado somente por nossas respirações. Ele era perfeito. Eu queria tocar
cada centímetro de sua pele, suada ou não.
Mas fiquei só no desejo mesmo.
Ele levantou em seguida, vestindo a calça e a camisa em questão de
segundos. Jogou a camisinha que usamos no lixo da sala — não queria
imaginar a cara do zelador quando entrasse ali na manhã seguinte. Esperava
que ele não resolvesse fazer um teste de DNA ou coisa parecida para
descobrir quem foram os delinquentes que transaram na sua sala.
Observei as costas de Cas por algum tempo, e então me levantei.
Catei minhas roupas perdidas no chão e as coloquei.
Ele se voltou para mim com um meio-sorriso no rosto. Entreabrimos
os lábios, mas não sabíamos exatamente o que dizer. Então, ficamos em
silêncio enquanto o momento se tornava mais e mais desconfortável.
Cas se recostou contra a porta, os braços largos cruzados sobre o
peito firme.
— O que você tá achando desse acampamento de verão? —
finalmente disse.
Me recostei na parede oposta. Escondi as mãos nos bolsos da calça.
— Uma droga — respondi, mas logo lembrei que estava
conversando com o filho do homem que tinha feito tudo aquilo. Arregalei
os olhos. — Quer dizer, eu sei que seu pai teve intenções boas quando... —
A risada dele, alta e contagiante, atrapalhou meu raciocínio. — Por que
você tá rindo?
— Não precisa fingir gostar do Augusto só porque está comigo,
Dani. Eu também odeio ele às vezes — falou com um sorriso levemente
cínico. Suspirou. — Esse acampamento de verão é uma merda. Tentei
convencê-lo de que a ideia era uma merda, mas ele não me ouviu.
Ri baixinho, para mim mesmo.
— Boomers — murmurei, lembrando do par de boomers que eu
tinha em casa, e que sempre achavam meus conselhos imaturos demais.
Ficamos em silêncio por mais alguns segundos, até ele o quebrar
outra vez, com mais uma pergunta aleatória:
— Tem algum plano pra essa última semana antes do início do
segundo ano?
— O básico. Ficar em casa, assistir Netflix. Talvez ir ao cinema.
— Parece bom.
Aquilo acendeu uma lâmpada em minha mente.
— O filme da Viúva Negra está em cartaz no Cinemark — falei em
um tom insinuante — se você quiser assistir...
Ele fez um biquinho com os lábios, e acenou, os olhos afastados dos
meus.
— Claro que eu quero assistir, o filme parece incrível.
— ... Comigo? — completei, e ele finalmente me encarou. Mas não
com o olhar que eu queria que tivesse.
Cas apertou os lábios, uma negação estampada em seu rosto.
— Oh... — foi o que respondeu por algum tempo. Então, se
aproximou, e tocou meus ombros, o olhar amarelo preso no meu. — Você é
muito legal, Dani. Muito legal, inteligente — olhos desceram até o meu
corpo — e gostoso... — Inspirou, e voltou a me fitar. Ele não era
exatamente sutil, como tinha acabado de descobrir. Mas ainda era Caspian
Wolmer, de qualquer jeito. — Mas ninguém pode saber que eu gosto de
você. — E eu ainda era Daniel Vinci, o nerd esquecido. Engoli em seco, e
minha saliva ganhou um gosto amargo. Ele apertou os lábios outra vez, e se
afastou em direção à porta da sala. — Te vejo no colégio — falou, fazendo
um pequeno gesto de adeus, e saiu.
— Claro... — falei para o nada quando a porta se fechou.
Naquele momento decidi não usar seu nome de verdade ao escrever
sobre aquilo no blog.
Eu tinha acabado de perder a virgindade, precisava falar sobre aquilo
com alguém. A única opção real — e o único amigo que tinha — era Enri,
mas não podia conversar com ele. Eu o conhecia. Ele faria perguntas
demais e, hora ou outra, eu acabaria revelando o nome do garoto cuja
identidade precisava manter em segredo.
Então, o blog era minha última opção. Era apenas levemente
diferente de falar sozinho, mas servia. Sempre serviu. Continuaria servindo.
Quando encerrei aquele post específico, na noite anterior, substituí o
nome de Cas por um pseudônimo. Algo que soasse distante e abstrato o
suficiente para afastar qualquer suspeita dele.
Algo que fosse curto e memorável, no entanto. Algo com que eu
ainda pudesse identificar quando relesse aquele post dali a dez anos.
Aquele Garoto.
presente

S into vontade de vomitar imaginando que agora todo mundo sabe,


em detalhes, como perdi a virgindade.
Sentado no vaso, me recosto na parede atrás de mim, de olhos
fechados. Suspiro, tentando fazer com que parte daquela tensão desapareça.
Mas ela não desaparece. E, quando ouço vários garotos entrando no
banheiro de uma vez, ela aumenta.
Eles riem alto e conversam sobre algo. São muitas vozes falando
juntas, então tenho dificuldade para entendê-las. Quando se aproximam
mais da cabine, consigo identificar alguns deles.
São os malditos jogadores do time de futebol. É claro que é o time
de futebol.
— Você sabia que ele perdeu a virgindade no acampamento de
verão? — um deles fala.
Afundo no vaso, e volto a encobrir o rosto com as mãos. Enri fica
em silêncio, o ouvido atento para o que estão fofocando.
— Tá fudendo...
— O pior é que não tô.
— Com quem?
— Não tem um nome, só um pseudônimo: Aquele Garoto.
Eles ficam em silêncio por alguns segundos, provavelmente
analisando meu texto mais uma vez.
— Quem pode ser?
— Eu não sei, cara, mas isso é muito engraçado.
— Melhor primeiro dia de aula da história — ouço um high-five
sendo trocado, e eles vão embora.
Aquela interação parece aleatória demais para ter sido planejada. Se
aquilo é o que os garotos do time de futebol estão falando, não imagino o
caralho que está rolando entre as líderes de torcida, o grupo de ginástica, os
times de hóquei, vôlei, patinação no gelo, basquete. Os clubes de literatura,
teatro, música clássica. O coral. Os professores. O maldito sr. Wolmer.
Era humilhação demais para processar.
— Porra — vocifero outra vez contra minhas mãos.
— Como eu disse — Enri fala —, é melhor focar no lado positivo.
— Que droga de lado positivo é esse? — O encaro com fúria nos
olhos. Uma fúria magoada, porque sei para onde ele tentará levar aquela
discussão, sei o que vai falar, e não quero ouvir. Mas não tenho escolha,
pois estou preso em uma maldita cabine no banheiro com ele.
— Você e eu agora somos populares. O colégio e o bairro inteiro só
estão falando sobre o blog, você tinha literalmente uma página pra cada
cidadão petulante de Eastview.
E, mesmo já esperando que a conversa fosse para aquele lado, ainda
fico irritado.
— Está brincando, Enri? Esse é o lado positivo? — Nego com a
cabeça freneticamente. Desvio o olhar dos olhos pequenos e angulados de
Enri, de seus fios escuros perpetuamente bagunçados. — Quem seria tão
cruel ao ponto de fazer isso? Esses textos eram íntimos, deveriam ter
permanecido escondidos.
— Então por que você os escreveu publicamente, seu idiota?
— Porque eu não sabia que alguém seria cuzão ao ponto de fazer
uma coisa dessas.
Enri move a mandíbula de um lado para o outro, a expressão
debochada.
— Eu te amo, Dani. Sabe que eu amo. — Ele dá de ombros. — Mas
eu também teria vazado o blog se você tivesse me contado sobre ele antes.
— Volto a encará-lo, espantado. Enri se joga de joelhos no chão, e toca
minha coxa. — Não consegue ver que essa é a oportunidade que estivemos
esperando o ano passado inteiro? A oportunidade de nos tornarmos mais do
que as sombras da elite desse colégio, de nos tornarmos parte da elite.
Vivemos como nerds excluídos e esquecidos por muito tempo. Agora é o
nosso momento.
Aquilo só me deixa mais espantado.
— Que porra você tá falando, Enri? — Dou um tapa em sua mão,
afastando-a. — Eu nunca quis isso. Essas são as coisas que você queria que
fôssemos, não eu. Sempre estive bem sendo um nerd excluído e esquecido.
Nerds excluídos e esquecidos não precisam lidar com toda essa bosta —
tento meu máximo para manter a voz baixa. Apoio o cotovelo no apoio do
papel higiênico em uma das paredes laterais.
Enri se afasta um pouco, sentando no chão do banheiro, encostado
na porta da cabine. Ele apoia os cotovelos nos próprios joelhos, os olhos
amendoados centrados nos nós de seus dedos.
— Mas você nunca se importou com o que eu queria? Com o que
quero?
Inspiro profundamente uma, duas, três vezes. Me aproximo dele, e
tomo suas mãos entre as minhas.
— É claro que sim, não foi isso que quis dizer.
— Então me escuta. Por favor — ele me olha com os olhos grandes
e solícitos —, me escuta. Essa é a primeira chance que temos de ganharmos
alguma popularidade. E talvez seja a única. — Aperta minhas mãos. —
Talvez nunca mais tenhamos a mesma oportunidade. Você só pode escrever
uma certa quantidade de textos polêmicos na vida, eu suponho.
Me jogo contra a parede atrás de mim outra vez. Esfrego a testa,
buscando alguma luz no fim daquele túnel. Que porra eu devia fazer? Que
porra poderia ser feita?
— Você podia escrever o seu próprio blog — resmungo depois de
um minuto —, então subiríamos a escada da popularidade graças à sua
humilhação — completo em um tom irônico —, não à minha.
— Pare de ser tão dramático — ele reclama de volta. — Você não
está sendo humilhado.
Reviro os olhos. Como eu podia sequer pensar que discutir com Enri
naquele momento era uma boa ideia?
Tiro os óculos do rosto e esfrego meu nariz. Ouço novos passos
entrando no banheiro e se aproximando da cabine. São apenas quatro pernas
dessa vez, no entanto. Os dois garotos param em frente ao que assumo
serem os mictórios.
— Já adicionou eles no facebook? — um deles pergunta ao outro.
— Já. Tô seguindo no instagram também. — Faz-se uma pausa.
Ouço a vibração de um celular. — Os dois ninguéms já são as pessoas mais
seguidas do colégio.
— Quê? Tá brincando.
— Não tô. Olha aqui. — Outra pausa. Mais algumas vibrações.
— Porra — ouço-o falar em um tom de admiração.
Então, a ficha cai. Retiro meu celular do bolso frontal da calça e o
desbloqueio. Enri faz o mesmo.
Juntos, investigamos nossos perfis nas redes sociais. Quase setenta
mil seguidores no instagram. Duas mil solicitações de amizade no
facebook. Milhares de menções no twitter — não o abri para não me sentir
ainda mais sobrecarregado.
Zípers são fechados no lado de fora. Os garotos ligam as torneiras
das pias, e enxugam as mãos com jatos de ar quente em seguida.
— Os textos são bons — sua conversa continua. — Devíamos
imprimir alguns e colar pelos corredores.
— Isso seria legal — e deixam o banheiro.
Sinto vontade de enfiar minha cabeça no vaso e entrar no ralo.
Olho o instagram outra vez. Prints dos meus textos passam pela
timeline. Não tenho coragem de abrir a caixa de mensagens.
Mas Enri tem, e vira a tela do celular em minha direção com um
grande sorriso no rosto.
— Olhe isso. Minha dm tá lotada de pessoas perguntando sobre o
blog.
Olho sua caixa de entrada. Ele passa o dedo pela tela, fazendo as
dms rolarem, rolarem, rolarem, até o infinito.
— Quando é que você vai conseguir responder todas essas pessoas?
— falo, mesmo que estivesse pensando em mim mesmo quando fiz a
pergunta.
— Essa é a beleza da popularidade — ele diz com um brilho radiante
no rosto. — Eu não tenho que responder todo mundo. — Se aproxima, e
toca minha coxa outra vez. Guardamos os celulares nos bolsos. — Podemos
escolher as pessoas que queremos responder.
— E você acha que isso é uma coisa boa?
— Acho que isso é uma coisa maravilhosa.
— Vai tomar no cu, Enri. Tô cheio dessa merda. — Levanto do vaso,
e apanho minha mochila do chão. — Vou deletar o blog. — Jogo-a nos
ombros.
— De que merda você tá falando? — Enri se levanta do chão um
pouco desengonçado. Preciso pegá-lo pelo braço e ajudá-lo para que não
acabe escorregando e batendo a cabeça. — Você quer mesmo voltar a ser
um ninguém, invisível, a porra de um personagem no plano de fundo? —
vocifera quando consegue se equilibrar sozinho.
— Sim.
Ele inclina o pescoço para o lado.
— Mas eu não quero, Dani. — Bate o pé no chão, e continua
bloqueando minha saída da cabine. Ele é alguns centímetros mais alto e,
naquele instante, aquilo faz diferença. — Por favor. Eu nunca... — fala com
o tom um pouco mais suave. — Nunca tive algo assim antes. E tenho a
maldita certeza de que nunca terei.
Suspiro.
— É claro que você vai ter, Enri. — Toco um de seus ombros. —
Você é maravilhoso, divertido, uma pessoa incrível.
— E quem liga pra pessoas incríveis? — rebate. — Esqueceu onde
você estuda, Daniel Vinci? As pessoas só se importam com popularidade e
riqueza por aqui. Nós não temos a segunda. Nunca tivemos porra nenhuma,
mas agora temos a primeira, e você quer voltar a não ter nada?
Solto uma grande lufada de ar pela boca. Volto a me sentar no vaso,
mas minhas pernas balançam, inquietas.
— Vai ser melhor, Enri. Receber essa atenção toda vai ser prejudicial
pra nossa saúde mental. Por que você acha que a Britney raspou a cabeça
em 2007? Porque tava muito bem sendo perseguida vinte e quatro horas por
dia pelos paparazzi? Não. Ninguém aguenta isso por muito tempo.
— Mas ela não raspou a cabeça em 1999 logo depois que ficou
famosa. — Sua expressão muda de frustração e inconformação a simples
mágoa e decepção. — Quer saber, para de boiolagem, Dani. Faz a porra que
você quiser. Você só pensa no seu próprio umbigo, no que é melhor pra
você. — Ele se afasta da porta, liberando minha passagem. — Por que eu
jamais pensei que você se importava comigo?
Mas não saio. Ao menos, não ainda.
— Pare de fazer isso.
— O quê?
— Me manipular emocionalmente.
Ele estreita os olhos em minha direção, e abre a porta por conta
própria, indicando a saída do banheiro.
— Apenas faça o que quiser, Daniel — continua em um tom
passivo-agressivo. — De verdade. Eu... Não sei mais o que posso falar pra
enfiar um pouco de noção nessa sua cabeça. — Aperto os lábios, curvo a
nuca para baixo. Observo meus all-stars sujos, e os all-stars sujos de Enri.
Penso um pouco. Estamos juntos há dezesseis anos, desde que nascemos,
praticamente. Ele é mais do que um amigo pra mim. É o irmão que nunca
tive. E sempre enfrentamos tudo juntos. Ele não era a pessoa mais
agradável de se ter ao seu lado, em muitos momentos. Mas em outros era a
pessoa perfeita, o amigo perfeito. Ele tinha defeitos. Eu também tinha.
Pensei melhor naquela maldita situação. Aquilo era como acertar na loteria
para Enri. Era a chance de uma vida. Será que eu devia retornar um prêmio
que ganhei na loteria só porque não preciso dele? Mas e se as pessoas que
eu amava precisavam? — O que está fazendo? — ele pergunta depois de
um tempo. — Não vai deletar essa merda toda? — continua segurando a
porta aberta da cabine.
Respiro fundo.
— Não. Vou manter o blog no ar — digo com o queixo erguido.
Ele parece quase emocionado.
— Por quê?
— Porque eu me importo com você, seu cuzão. — Puxo a porta da
cabine e a fecho outra vez. Me jogo contra o vaso. — E porque aqueles
textos significam muito pra mim. Tenho o blog desde que meu pai me deu
meu primeiro computador.
— Qual deles?
Franzo o cenho diante da pergunta.
— Um MacBook Air de—
— Não, seu idiota — ele rebate. — Qual pai?
Solto uma risada curtinha, o tipo que só Enri consegue tirar de mim.
— Não importa.
Ficamos em silêncio. E, pela primeira vez desde que aquela merda
toda explodiu, me sinto confortável de alguma forma.
Enri umedece os lábios, e sugere:
— Você poderia simplesmente torná-lo privado.
— Então seria melhor comprar um diário físico.
— Ugh... — ele faz uma expressão de cansaço — quem tem tempo
pra isso?
Ergo uma das sobrancelhas.
— Eu tinha um antes de ganhar meu computador. — Então cerro os
dentes. — Mas tem razão, era horrível.
Ele também solta uma risada curtinha.
— Obrigado — fala, e é tudo o que precisa falar.
A merda já estava feita. Se eu excluísse o blog naquele momento,
apenas acabaria com a chance de Enri de tirar algum proveito da minha
vitória na loteria.
— Vamos enfrentar essa merda juntos. — O encaro com firmeza. —
Não vou absorver toda a humilhação sozinho.
Ele apanha minhas mãos.
— Não vou te deixar fazer isso. Estamos juntos, na riqueza ou na
pobreza.
E na riqueza ou na pobreza, sempre arranjamos uma forma de fazer
piadas sem graça como aquela. Rimos juntos, e me sinto cada vez mais
leve.
— Tanto faz.
Me levanto do vaso, pronto para deixar aquele banheiro.
Enri me abraça subitamente, no entanto.
Depois do susto inicial, correspondo seu abraço. Ele dá um pequeno
selinho no topo da minha cabeça.
— Me solta, seu passivo chato. — Afasto-o para longe, e abro a
porta da cabine.
Depois do que pareceram várias horas, finalmente deixamos aquela
cabine claustrofóbica — eu não sabia como as pessoas conseguiam transar
em espaços tão apertados.
— Pare de ser passivofóbico.
Estou pronto para responder algo igualmente idiota quando a voz do
diretor de Eastview soa sobre nossas cabeças, nos alto-falantes embutidos
no teto.
— Daniel Vinci — fecho os olhos, consigo ver a humilhação vindo
de longe como a brisa antes de uma tempestade — por favor, comparecer à
sala do diretor Augusto Wolmer.
L embra quando a Cersei fez a caminhada da vergonha em Game Of
Thrones? Quando teve que passar por aquele ritual público de
humilhação?
Pois é. Andar pelos corredores de Eastview, com todo mundo me
encarando com meu blog aberto nos celulares, tablets e notebooks, era
igualzinho. Talvez um pouco pior. Cersei, ao menos, não teve que fazer
aquilo cercada pelos seus companheiros do ensino médio.
Não tinham muitos corredores entre o banheiro e a sala do sr.
Wolmer, mas parecia que tinham. Me mantive firme, tentando ignorar as
risadinhas, os sussurros, os olhares de relance cheios de julgamento ou
fúria.
Enri tinha razão. Eles foram todos mencionados nos posts. Sou
muito observador — e isso não necessariamente é uma coisa boa. Mas
quando se é socialmente excluído em um colégio como Eastview, em um
bairro como Eastview, você aprende a desenvolver seus próprios
mecanismos de defesa. Aquele era o meu.
Esse bairro tem uma história de elitismo, como você pode imaginar.
Reza a lenda que Eastview na verdade foi o primeiro bairro colonizado no
país, mas os moradores quiseram se manter afastados da merda que estava
rolando no litoral. Disso, nasceu o bairro mais rico do país. O bairro
povoado apenas por aqueles que podem destruir sua vida se você olhar
errado para eles. O bairro dos governantes corruptos, dos empreendedores
egoístas, das celebridades cheias de si. E não havia nada que resumisse
Eastview melhor do que seu único colégio. O lugar onde os filhos das
pessoas mais poderosas do Brasil vinham para aprender sobre matemática e
destruir a vida uns dos outros.
Entende agora por que ser invisível nesse lugar pode trazer alguma
vantagem?
Ao meu lado, Enri continuava com um sorriso cínico e impertinente
no rosto. Diferente de mim, ele se encaixaria muito bem entre aquelas
pessoas. Eu só desejava conseguir chegar ao fim daquele dia com minha
sanidade intacta.
No penúltimo corredor antes da sala de Wolmer, cruzo com seu filho
— também conhecido como o cara que queria me manter como um caso no
sigilo. Cas ergue os olhos da tela do celular até mim, e não consigo decifrar
a expressão em seu rosto. Irritação? Decepção? Ele estava arrependido por
ter transado comigo? Talvez. Talvez não. Sua face era como uma folha em
branco.
Cruzo o último corredor, e dou de cara com o grupo de líderes de
torcida do colégio bloqueando o caminho.
São, ao menos, quinze garotas organizadas em uma formação
triangular. Aquela no centro, Maria Moreira — popularmente conhecida
como M&M — está com os braços cruzados, uma sobrancelha arqueada, o
queixo erguido e uma expressão de repulsa.
Tento contornar a formação, mas elas não deixam. Enri dá um passo
para trás, mas não me intimido.
— Pode sair do caminho...? — peço, impaciente.
O rosto de Maria se contrai diante do pedido e ela descruza os
braços. Sua mão encontra meu rosto no golpe mais dolorido que já recebi
na vida. O barulho do tapa preenche o corredor imerso em um silêncio
tenso.
Arregalo os olhos, completamente pasmo.
— Por que você fez isso? — vocifero.
— Pelas coisas horríveis que você escreveu sobre mim.
— Nunca escrevi nada horrível sobre você — respondo entredentes
imediatamente, sem me dar conta de que escrevi sim coisas horríveis sobre
ela.
Maria bufa, e balança seu rabo de cavalo dourado de um lado para o
outro antes de retirar o celular de um dos bolsos da saia azul e amarela
curta, desbloqueá-lo, e praticamente esfregar um dos posts do blog na
minha cara.
— Você disse que eu parecia uma boneca de pano dançante nas
finais de futebol do ano passado.
Dou um tapa no iphone, afastando-o do meu rosto. Ele cai da sua
mão, e se espatifa no chão. As catorze garotas atrás de Maria suspiram em
conjunto quando o aparelho se quebra.
— É porque você parecia — rosno de volta. — Sinto muito, alguém
devia ter te avisado.
Maria permanece encarando seu celular no chão por algum tempo,
antes de se virar lentamente em minha direção. Ela se aproxima com mais
um passo, um dos indicadores mirando meu peito como uma arma.
— E sabe do que não te avisaram, Daniel Vinci? — Ela tem esse
jeito estranho de movimentar a cabeça quando fala. É quase cômico. — Do
inferno em que vou transformar sua vida a partir de agora. — Retesa a
mandíbula, e se afasta. — Não sei de que buraco você saiu, não sei por que
resolveu escrever esses textos infantis que parecem prosa de segunda mão,
mas vai se arrepender de ter saído, vai se arrepender de cada palavra. E vou
enfiá-lo de volta nesse buraco, junto com sua família inteira... e qualquer
um que já tenha amado na vida.
Estreito os olhos.
— Isso devia ser ameaçador? — Ela arregala os olhos. — Percebe o
quão ridícula você soa?
Eu não sei o que ela planeja fazer — ou dizer — a seguir, mas seu
namorado, Nikolas Souza, se intromete antes daquela discussão escalonar.
— Ei, ei, ei... — Ele se coloca entre nós dois. Como a namorada, é
loiro e tem olhos azuis cintilantes. Mas não é um cuzão. — Está tudo bem
por aqui.
Ele afasta Maria para trás pelos ombros, e me lança um curto olhar
de arrependimento.
Aquilo me deixa mais tranquilo. Ao menos ainda existem pessoas
decentes naquele colégio.
— Não, não está — M&M resmunga.
— Maria, vamo lá — ele continua afastando-a, e logo uma distância
segura foi aberta entre nós.
— Isso não acabou aqui — grita para mim.
Nego com a cabeça sutilmente. Se eu ainda estivesse atualizando o
blog, aquilo daria um post e tanto.
As outras líderes de torcida seguem M&M até desaparecerem
daquele corredor — e, com alguma sorte, da minha vida.
Enri volta a se aproximar, e sussurra no meu ouvido:
— Ok, ela talvez seja um problema no nosso caminho em direção à
popularidade daqui pra frente.
O encaro de relance.
— Você acha?
A porta da sala de Augusto é aberta, e o diretor surge por ela, me
fuzilando com o olhar.
— Sr. Vinci, se importaria de entrar? — e aponta para o interior da
sua sala.
Aquilo não seria bom.
H ádaum relógio de ponteiros barulhento preso na parede acima
cabeça dele. Minha atenção se desvia para ele vez ou outra, mas logo
sou trazido à realidade pela voz grave e profunda do diretor:
— Acredito que estou falando para o bem de ambos quando digo
que esses posts devem ser retirados do ar imediatamente, sr. Vinci — ele diz
de forma monótona, quase ensaiada.
Expiro fundo. Tento não me intimidar.
— Não vou retirá-los do ar.
Ele pisca rapidamente.
— Perdão?
Pigarreio, e me ajusto na poltrona de couro que faz um barulho
estranho sempre que me movo. Tento evitar seu olhar inquietante. Como
aquele cara podia mesmo ser pai de Cas?
— Decidi que não vou retirar meus textos do ar — falo rápido —,
nem os deletar.
Ele se recosta na poltrona escura.
— Posso perguntar o que te levou a tomar essa decisão?
— Porque... — penso sobre a pergunta. E, melhor, penso sobre a
situação. Talvez Augusto só estivesse puto porque leu o que escrevi sobre
ele. E sobre isso ele não podia fazer nada. Não fazia sentido algum em lhe
dar mais justificativas do que precisava. — Eu não quero.
— Sr. Vinci... — ele diz em um tom repreensivo. Franzo o cenho. —
Percebe o quão danosa essa situação está sendo, para todas as partes
envolvidas? O Colégio Eastview para Jovens de Elite tem uma reputação a
manter erguida. — Se inclina um pouco sobre a mesa. — Este bairro tem
uma reputação a ser seguida.
Estreito os olhos antes de rebater no mesmo tom de voz repreensivo:
— E os textos são meus. Eu os escrevi. Eu os postei. Eu decido se
eles saem ou não do ar. — Abro um sorriso forçado no rosto. Entrelaço
meus dedos. — Você realmente acha que eu me importo com a reputação de
Eastview? — Em silêncio, Augusto me encara como se quisesse dizer algo
bem desagradável, mas não pudesse pelo desbalanço de poder envolvido
nessa reunião. Ergo o queixo. — Estou aqui para estudar, sr. Wolmer. É o
que sempre fiz. Nunca arrumei problemas com ninguém, nunca quis fazer
mais do que isso. Mas alguém expôs meus textos pra escola, e o dano já
está feito. — Desvio o olhar para o lado, para a estante de mogno que ocupa
uma parede inteira da sala, preenchida por volumes com capas de couro e
títulos dourados. Suspiro, e então retorno minha atenção ao diretor. —
Honestamente, se alguns comentários irônicos de um adolescente podem
fazer tanto mal à reputação desse colégio... então acho que a reputação já
não é tão boa pra começo de conversa.
Ele curva a nuca para baixo, e me encara de uma forma sombria.
— O que está insinuando, Daniel?
— Nada — respondo sem me intimidar por seja lá o que ele esteja
querendo com aquele olhar. — Foi por isso que me trouxe aqui?
Levanto da poltrona antes que ele possa responder, e caminho em
direção à porta.
— Três anos atrás uma pessoa se matou neste colégio, sr. Wolmer —
digo a ele. O semblante de Augusto se fecha ainda mais, imediatamente. Ele
aperta a superfície de madeira da mesa, e sua respiração pesa. — Acho que
essa é a mancha na reputação de Eastview que deveria estar esfregando e
tentando limpar com a própria língua. Não meus textos.
Deixo a sala com um suspiro aliviado, suando frio.
A última aula antes do almoço era de teatro. Eu já odiava
teatro. E odeio ainda mais quando a sala inteira simplesmente não
consegue tirar os olhos de mim.
Aquele dia estava durando para sempre.
O sinal toca. Deixo a sala sem maiores considerações. Caminho
pelos corredores lotados de pessoas em direção ao refeitório. Enri e eu nos
encontraremos lá.
Vejo páginas e mais páginas dos meus textos impressos colados nas
paredes, nos armários, nas portas de algumas salas. Tento ignorar. Me
esforço ao máximo para ignorar.
Porém, passo pela sala dos professores, e meu post sobre eles está
bem ali, colado no vidro. Aquele texto, confesso, é particularmente cruel. O
escrevi quando recebi uma nota injusta em um trabalho de teatro.
Me apresso em arrancar a folha dali, amassá-la e jogá-la no lixo.
Com sorte, ninguém a viu.
Inspiro fundo. Quantos outros sustos como aquele ainda terei?
— Dani? — a srta. Bardot me chama de dentro da sala.
Áurea é a professora mais jovem naquele corpo docente. E a única
que não me dava vontade de vomitar ao ficar por mais de dois minutos
sozinho no mesmo ambiente. Ela tem um sorriso convidativo no rosto e um
rabo de cavalo escuro.
Correspondo o sorriso e peço veementemente que ao menos ela não
tenha lido aquele texto.
Áurea abre a porta e, como se estivesse lendo meus pensamentos,
encara a lixeira na qual descartei a folha amassada.
— Áurea. Desculpe, eu só estava... — Ela arqueia as sobrancelhas.
Me embaralho na hora de explicar sem mencionar o post. — É melhor que
você não veja isso.
Ela me lança um sorriso torto, e encara algo às minhas costas.
— Mas eu posso ler aqueles?
Sigo seus olhos em direção à parede atrás de mim, repleta de cópias
idênticas do texto que acabei de jogar no lixo.
— Droga — resmungo, e sinto vontade de correr dali e me esconder
em algum lugar bem, bem recluso.
— Quer me contar o que aconteceu? — ela pergunta, novamente
com aquele sorriso convidativo estampado nos lábios.
Não tenho opção além de contar tudo a ela.

Conto tudo a ela, e Áurea me encara com uma expressão solene, em


silêncio. Talvez ela também esteja me julgando, como todos os outros.
Após alguns minutos reflexivos de silêncio, ela diz:
— Eu entendo como você se sente, de verdade. — Fico desconfiado.
Ela pensa um pouco sobre o que acabou de dizer. — Ok — revira os olhos
—, talvez não totalmente, mas sei como é ser exposto por um texto que
você não queria que viesse à público.
Arranco mais uma das cópias do meu texto sobre os professores da
parede. Áurea me ajuda. Já temos pilhas de papéis nas mãos, e ainda faltam
algumas dezenas.
— Isso já aconteceu com você? — questiono.
— Sim. — Suspira. — Era o primeiro ano do ensino médio. Tinha
esse garoto que eu gostava. Brandon. Ele era bem charmoso pra idade.
— Charmoso? Quem fala isso?
— Eu falo. Algum problema? — Ela finge uma expressão de ofensa.
Nego com a cabeça, rindo. Ela ri também, e continua: — Então, como eu
não sabia como... como falar com ele, acabei despejando todos os meus
sentimentos, esperanças e sonhos em uma carta. E aquilo me fez bem por
muito tempo. Nunca quis que ele a lesse de verdade.
Arranco mais dez folhas da parede até murmurar:
— Mas ele acabou lendo...
Áurea concorda com a cabeça, um brilho triste no olhar.
— Um mês antes do ano acabar — fala depois de arrancar uma folha
que estava particularmente bem colada —, quando até mesmo eu já tinha
esquecido que tinha escrito, a maldita carta foi parar na mão dele.
— Não fode... — Arregalo os olhos. — Ah, desculpa.
Ela ri.
— Nem me diga.
Nos concentramos em limpar a parede em frente à sala dos
professores por algum tempo. Depois que enchemos duas lixeiras com os
papéis, nos sentamos em um banco no corredor.
— Então, o que aconteceu? — pergunto, com interesse genuíno.
O brilho triste em seu olhar se acentua.
— Além dele me humilhar publicamente, fazendo dezenas de cópias
da carta e espalhando para os amigos babacas? Não muito.
— Sinto muito.
— Tudo bem. Pelo menos não deixei ele chegar perto desse corpinho
aqui. — Ela indica o próprio torso.
Acabo rindo por alguns segundos, até ficar levemente sem fôlego.
— E... — murmuro depois que as risadas cessaram — você
descobriu como ele conseguiu a carta?
Ela faz uma careta.
— É... essa é a parte triste.
— Tudo bem se não quiser contar.
Ela retira os óculos amarronzados do rosto, e observa suas lentes.
Quando os coloca de volta no rosto, prossegue com um tom sombrio:
— Minha mãe. — Entreabro os lábios. — Minha mãe achou a carta
no meu armário e enviou pra ele. — Tento não expressar muito choque, mas
aquilo me deixa perturbado. Com uma mãe dessas, quem precisa de
inimigos? — Ela confessou depois que fui levada ao pronto-socorro às
pressas em uma madrugada por desidratação depois de chorar por três dias
seguidos pelo que ele fez.
— Eu sinto muito mesmo, Áurea.
Ela abafa uma risada tenra.
— Está tudo bem, Dani. Chorar te deixa mais forte. E faz bem pra
pele das bochechas. — Toca na pele rosada do próprio rosto. — Você
também não sabe quem vazou os posts, não é?
— Não.
Ela ergue as sobrancelhas.
— Talvez tenha sido um de seus pais.
Pondero um pouco sobre a sugestão.
Será que meus pais fariam aquilo?
Não, é claro que não, por um motivo bem claro:
— Eles não sabem que o blog existe. — Nego com a cabeça.
Áurea abre um sorriso triste no rosto.
— Mas ninguém sabia que ele existia... até hoje.
Aquilo me pega desprevenido.
— Está certa.
Entro em uma espiral de desconfiança.
Será que Enri vazou o blog e mentiu mais cedo? Será que Cas o
vazou? Ou Maria? Nikolas? Ele pareceu mesmo bonzinho demais naquela
briga.
Quem foi essa maldita pessoa?
— Não importa quem foi, de verdade. — Áurea interrompe meu
raciocínio, e toca um dos meus ombros. — Logo, logo as pessoas vão
esquecer da existência do blog.
— E, quem sabe, da minha existência também.
Ela se aproxima um pouco mais, o semblante preocupado.
— Quando sentir que as coisas estão muito difíceis, se pergunte ‘eu
posso sobreviver por mais dez segundos?’. Se a resposta for ‘sim’, conte até
dez. Depois, refaça a pergunta, e continue contando até se sentir melhor. Foi
assim que sobrevivi à minha humilhação pública. Pode ajudar você
também.
Toco sua mão em meu ombro.
— Obrigado.
Ela me observa de forma contemplativa, e se afasta.
— De nada.
Sinto o celular vibrar no meu bolso. Apanho o aparelho, e vejo três
mensagens de Enri:
— Eu provavelmente devia correr pra almoçar com Enri — falo
depois de ler a última mensagem.
Levantamos do banco, mas antes de dar as costas a Áurea, decido
perguntar algo que vem me perturbando há meses:
— Como uma professora tão gente boa como você veio parar nesse
lugar?
Seu rosto se torna simultaneamente lisonjeado e ofendido:
— Eu gosto de trabalhar aqui. Me sinto como a garota legal entre os
professores.
O refeitório estava lotado e agitado como sempre. Eu já tinha
me acostumado ao cheiro de brócolis frio e pasta sem carboidratos, mas
naquele dia há mais um aroma no ar: o de atenção indesejada.
Coloco o primeiro pé no salão largo e azul, e todos os olhos se
voltam para mim. Fico parado até ver Enri acenando em uma mesa próxima
da máquina de vendas, e me aproximo dele com a nuca curvada para baixo,
fugindo das centenas de pares de olhos furiosos e julgadores.
Hae-Ji Kim está sentado na mesa, com os pés apoiados em uma
cadeira qualquer. Percebo tarde demais que as outras pessoas na mesa estão
o acompanhando — e, por consequência, me esperando. São cinco pessoas.
O clube de literatura, encabeçado por Layla Faheem.
Ela está sentada ao lado de Enri, com as pernas cruzadas e apoiadas
despretensiosamente sobre a cadeira mais próxima, um sorriso afiado nos
lábios, o hijabe salmão cobrindo sua cabeça e parte dos ombros sobre o
uniforme azul anil de Eastview.
Lhe dou um sorriso curto de reconhecimento, e sento na cadeira
mais próxima de Enri.
— Ei. — Jogo minha mochila sobre a mesa.
As atenções do clube de literatura se voltam totalmente a mim, como
o esperado. Me sinto incomodado novamente, sem fome alguma. Tento
evitar olhar diretamente para Layla.
— Onde você tava? — Enri escorrega da mesa e se senta ao meu
lado.
Olho ao redor no refeitório, e vejo folhas coladas em alguns pontos
estratégicos nas paredes.
— Retirando as cópias dos meus textos coladas nos corredores —
respondo, o cansaço e o estresse daquele dia começaram a me abater.
Encaro Enri diretamente pela primeira vez, e ele indica as pessoas ao seu
lado de forma nada sutil. Suspiro. — Ah, oi, gente.
Layla pigarreia e estende uma mão em minha direção.
— Prazer, Dani. — Trocamos um breve cumprimento. — Me
chamo Layla Faheem, sou a presidente do clube de literatura do colégio.
— Eu sei quem você é. Todos sabemos.
Olho para o buffet na parte central do refeitório. Meu estômago
revira. Se eu comer algo sólido, provavelmente vou vomitar. Ficarei só no
suco de ervas que Juan, meu pai, preparou pra mim mesmo.
Abro minha mochila, e apanho a garrafa térmica cinza que contém o
líquido verde.
— Espero que isso seja uma coisa boa — Layla responde sem perder
a expressão acolhedora do rosto.
— É claro que é. — Abro a tampa da garrafa com uma careta.
Como sempre, Juan a apertou demais. — As pessoas não te conhecem pelas
coisas horríveis e brutais que escreveu sobre elas em um blog que deveria
ser privado — resmungo, e dou um gole no líquido horrível, mas nutritivo.
Layla troca um rápido olhar com seus companheiros de clube, e
então retorna a atenção a mim:
— Sobre isso... — Há uma nuance de interesse em sua voz. Aquilo
me deixa curioso. Analisando melhor, também há algo estranho na
expressão de Enri. Ele está agitado demais, esfregando as coxas, mordendo
o lábio inferior. — Todos ficamos impressionados com a qualidade dos seus
textos. Sua escrita é fluida e tem muita personalidade.
Estreito os olhos.
— Obrigado...?
Enri ergue as sobrancelhas de forma animada.
Layla pigarreia e entrelaça seus dedos antes de finalmente dizer:
— Você aceitaria entrar no nosso clube? — Oh. Então aquele era o
motivo de tanta animação. Tomo mais um gole do suco frio de ervas, e miro
um lugar qualquer do refeitório. Diante do meu silêncio, Layla
complementa: — Nós somos reclusos, não abrimos muitas vagas todos os
anos, então esse é um convite bastante especial.
Porra. Eu teria dado tudo — ok, talvez não tudo, mas muito — para
entrar naquele clube no ano passado, mas agora...
O pensamento apenas me fazia ficar mais zonzo.
Fecho a garrafa térmica.
— Ah, obrigado, mas... — Já me senti especial o suficiente por um
dia inteiro. — Acho que já tenho muito no meu prato para um segundanista.
Acho que ela vai ficar furiosa, vai vociferar e me dizer que sou um
merda e um fracassado que não merece aquele convite, mas Layla mantém
o mesmo sorriso solene no rosto e inspira fundo.
— Bem... — Volta-se aos outros membros do clube mais uma vez.
Eles parecem aceitar minha recusa de forma madura demais pra um grupo
de adolescentes de dezesseis anos. — Pense sobre isso, tudo bem? —
Aceno. Ela desce da mesa e arruma a porção do hijabe que cobre os
ombros. As outras quatro pessoas a seguem. — O convite continuará válido
por algum tempo. — Ergue uma das sobrancelhas. — Mas não muito.
Aceno novamente.
— Eu vou.
Ela nos dá as costas, se afastando junto com o restante do clube.
Expiro fundo. Talvez eu fosse um merda e um fracassado por recusar
aquele convite. Layla e os outros pareciam algumas das poucas pessoas
decentes daquele colégio.
Observo meu reflexo distorcido na superfície metálica da garrafa até
Enri dar um tapa no meu ombro.
— Cara, no que você tá pensando? — ele diz em um tom de
assombro. — Esse clube é perfeito pra você. Ou já esqueceu que queria
entrar nele ano passado?
— Quero ser low-profile por enquanto, tudo bem? — rebato
impaciente.
Ele revira os olhos.
Meu celular vibra no bolso da calça.
Olho para Enri. O dele está perdido na mesa.
Que porra?
Apanho o aparelho. Fico boquiaberto por um mero segundo.
— Tenho que ir agora, Enri.
Guardo a garrafa térmica na mochila e a jogo sobre os ombros.
Levanto da cadeira.
— Ir? Pra onde? Não vai me deixar almoçar sozinho, vai?
Lhe dou um sorriso de canto antes de me afastar.
— Foi mal.
E udadevia ter desconfiado quando ele falou para encontrá-lo na sala
faxineira. Era a sala mais afastada do segundo andar. Ninguém ia ali
— nem mesmo a própria faxineira, com base no quanto aquela sala estava
bagunçada. Então é claro que ninguém encontraria Cas colocando a língua
dentro da minha garganta.
— Hm... — reclamo no meio do beijo quando ele me aperta demais
contra uma prateleira de produtos de limpeza. Aquele lugar é ainda mais
apertado do que a sala do zelador no acampamento de verão. — Hm... —
reclamo outra vez contra a boca dele quando um produto qualquer despenca
da prateleira. Por fim, ele se afasta. Observamos o galão transparente aberto
e o líquido verde se espalhando pelo chão. Cas se agacha para fechá-lo e o
devolve à prateleira atrás de mim. — O que te deu hoje?
Ele volta a envolver minha cintura.
— Nada, eu só... — Me dá um selinho curto. — Tô com muito tesão.
— Ele amassa o próprio rosto contra meu pescoço, fazendo uma trilha de
beijos que é, ao mesmo tempo, excitante e frustrante. Quando percebe que
não estou no clima, se afasta outra vez. A sala é pequena, então ele não fica
muito longe. — O que foi? Você não quer...?
— Não, é claro que quero. É que... — Esfrego a nuca, e suspiro.
Aquilo é desconfortável. — Nenhuma palavra sobre a bomba que explodiu
hoje?
Ele dá de ombros, os lábios entreabertos.
— Achei que você não fosse querer falar sobre isso.
Oh. Eu estava ultrapassando alguns limites imaginários de nossa
relação sigilosa? As coisas deveriam ser 100% sexo, 0% sentimentos com
Cas? Como eu podia enganar meu coração e desligá-lo enquanto estávamos
juntos?
Eu queria saber o que ele achava. Era a única opinião que
importava.
— Sim, mas... todo mundo tá falando sobre. Então... — hesito um
pouco, mas sigo em frente — o que você achou dos posts?
Ele se apoia contra a parede e cruza os braços sobre o peito, da
forma exata que o fez na sala do zelador. Ali, ao menos, a luz estava ligada,
e eu podia ver cada uma das suas reações.
— Hmmm.... — Entorta os lábios para um dos lados. Uma covinha
sutil aparece na bochecha. Estala a língua, e esfrega a mandíbula antes de
responder com uma expressão duvidosa: — Você... escreve bem.
Porra. Ele é tão fofo. Abro um sorriso sem nem perceber. Fito meus
tênis sujos.
— Você não é a primeira pessoa que me diz isso hoje, Cas.
Ele volta a se aproximar. Uma das mãos envolve minha cintura, a
outra minha nuca. Nossos olhares se conectam. Ele está tão perto que
consigo sentir sua respiração densa e quente.
— Olha, eu não ligo, tudo bem? Acho que algumas dessas pessoas
mereciam ler o que você escreveu, talvez lhes ajude a cair na real. — O
polegar dele passeia sobre meus lábios, mas a mente parece presa em outra
coisa. — Mas... — aperta os lábios.
— Mas o quê?
— Você podia ter exagerado um pouco mais no tamanho do meu
pau, não é?
Espalmo as mãos em seu peito e o empurro para longe, tentando
controlar minha risada. Ele me segura pelo braço, e acabamos caindo juntos
naquela sala apertada. Bato o cotovelo, ele bate a cabeça. Mas não paramos
de rir. Ele me envolve com os braços totalmente.
— Cala a boca — falo.
— Mas foi uma sacada muito boa aquela do pseudônimo.
Minha risada — e o sorriso — se desfaz. Mordo a língua, e desvio
do olhar dele.
— Bem... — sussurro — você meio que disse que não queria que
ninguém soubesse, então...
— Eu sei. — Seus lábios retornam ao meu pescoço. Fecho os olhos.
Minhas mãos tateiam seu torso até a barra da camisa, e puxo-a para cima.
Ele me ajuda, e logo seu torso está desnudo. Fazemos o mesmo com a
minha. Minhas mãos traçam algumas das linhas de seu peitoral, descendo
pelo abdômen até o zíper da calça azul anil. Quando o toco, ele completa:
— Se você for continuar escrevendo, mantém o pseudônimo.
— O quê? — Franzo o cenho.
Ele murmura contra o meu ouvido:
— Pra que a gente possa continuar ficando.
Eu devia negar? Devia me abdicar da chance de ter uma relação às
escondidas com o cara dos meus sonhos?
Ou devia abraçar aquilo de peito aberto?
Eu não sabia. Mas o peito dele era forte e pesado contra o meu. E,
antes que percebesse, minha língua tomou a decisão por mim:
— Tudo bem...
F altavam cinco minutos para o fim do almoço, então tínhamos
que nos vestir às pressas.
Apesar de termos menos espaço, aquela vez foi melhor do que a
primeira. Eu podia visualizar as palavras com as quais descreveria aquilo no
blog mais tarde — caso toda aquela merda não tivesse acontecido.
No meio da bagunça que fazíamos tentando vestir as roupas certas e
não sair por aí usando a cueca um do outro, vejo um bottom de Hayley
Williams na mochila de Cas.
Fecho o zíper da minha calça e digo:
— Fã de Paramore?
Ele acompanha meu olhar até a própria mochila.
Solta uma risadinha curta enquanto coloca a camiseta azul.
— Todo mundo passa pela fase emo.
Abafo minha própria risada.
— Eu suponho.
Visto minha camiseta e jaqueta anil com detalhes brancos. Fecho
um, dois botões, e percebo que ele está me encarando com um sorrisinho no
rosto.
— O que foi? — ele fica em silêncio. Começo a puxar o tecido da
jaqueta, tentando ver as costas. — Tem alguma mancha, ou...
— Você é perfeito — Cas diz do nada.
Fico boquiaberto. Lisonjeado, mas boquiaberto.
Então, talvez...
As coisas não fossem 100% sexo com ele.
— Você também — digo, tentando esconder meu embaraço, mas ele
percebe de qualquer forma.
Joga a própria mochila sobre os ombros.
Faço o mesmo com a minha.
Eu devia perguntar o que éramos um pro outro? Devia... dizer pra ele
o que sentia?
E se ele não sentisse o mesmo?
— Cas... — começo, mas ele leva o indicador aos lábios.
— Shh.
Abre a porta da sala calmamente, coloca apenas a cabeça para fora e
olha os dois lados do corredor.
— Tá seguro. Eu saio primeiro. Você espera uns dois minutos e vem
depois.
Fico boquiaberto novamente. Daquela vez, pelos motivos errados.
Ele sequer volta a me encarar. Apenas deixa a sala, e fecha a porta
atrás de si. Sem um adeus, sem um beijo de despedida.
Suponho que não somos o tipo que dá beijos de despedida, de
qualquer jeito. Ali estava minha resposta: não somos nada um pro outro.
Eu era apenas um idiota.
Tenho a porra dos dois minutos até poder sair dali.
Pego o celular perdido em um dos bolsos da mochila, e abro a
página do blog.
Eu não deveria, sei que não deveria...
Mas com quem eu poderia falar sobre aquilo?
Por enquanto, eu só tinha a mim mesmo.
Faço o rascunho de um novo post.
“Um dia no inferno”. Soa bem.
G raças a Deus — se houver um Deus — aquela tarde passou mais
rápido do que a manhã. Pareceu voar, na verdade. Talvez porque eu já
não estava com ânimo ou forças para prestar atenção em nada.
Assisti às aulas com um olhar distante. Anotei o que achei que devia
anotar. Falei com Enri nos momentos em que precisei. Me arrastei de volta
para casa com a mente ainda presa em Cas, no convite de Layla, nas
ameaças vazias de Maria, na minha dedicação em suportar aquela
humilhação pública por Enri.
Honestamente, ser Daniel Vinci é uma merda.
Quando chego, meus pais não fazem perguntas demais sobre o blog.
Talvez o tenham visto. Talvez não. Apenas perguntam se estou bem.
Respondo o que devo para passar por eles e voar para o meu quarto.
Basta de drama por um dia — talvez pela vida inteira.
Retiro a mochila dos ombros, deixo-a sobre a cadeira da minha mesa
de estudos. Me jogo na cama. Cochilo por quinze minutos. Acordo com o
celular vibrando no bolso da calça — de onde esqueci de retirá-lo.
Resmungo até enfiar a mão no bolso, apanhá-lo e ver o nome na tela.
Atendo a chamada, os olhos fixos no vidro da segunda porta do meu
quarto (que dá acesso ao quintal da casa e a uma segunda abertura no muro,
caso eu queira sair sem avisar meus pais).
— Você acabou de me acordar — falo, observando a escuridão
noturna do outro lado do vidro da porta.
— Não ligo, seu cuzão — Enri responde em um tom exasperado.
— O que foi?
— Nada — mente. — Só estou ligando pra lembrar que você ainda
não me contou quem é “Aquele Garoto”. — Reviro os olhos. — Quem é
esse bad boy misterioso do acampamento de verão, Dani? Sou seu melhor
amigo, como ousa não me dizer quem é até agora, seu babaca?
Suspiro alto. Mais drama. Sento na cama, apoiado contra a
cabeceira, fitando meu computador ligado na mesa de estudos.
— Ele não é um bad boy. E eu quero te contar, juro. Quero muito. —
Fecho os olhos. — Mas é complicado.
— Por quê? — Ouço ele folhear alguma coisa do outro lado.
Provavelmente está fazendo algum dos trabalhos para entregar no dia
seguinte. — O cara tá no armário ainda? — Faz uma pausa. — Tem alguma
pessoa que esteja no armário naquela escola?
— Não, não é isso — rebato. E também faço uma pausa. Como vou
explicar aquilo sem parecer... um fracassado com baixa autoestima? — Ele
não quer... que sejamos vistos em público. Não quer que ninguém saiba que
estamos saindo.
— Ouch.
Bato minha cabeça contra a cabeceira.
— Pois é.
— Ele é um babaca, então — conclui, e o ouço se jogar sobre a
própria cama. — Por que você tá ficando com um cara desses, Dani?
— Eu não sei, Enri. Eu não sei. — Respiro fundo. — Ou melhor, eu
sei. Só não quero admitir — murmuro um pouco mais baixo.
— Está apaixonado por ele, não é? — Pisco longamente, mas não
consigo responder. Não quero mentir, mas também não quero dizer a
verdade. Então apenas fico em silêncio. E aquele silêncio é toda
confirmação que Enri precisa. — Oh, Dani... — fala em um tom penoso.
Aperto os lábios. Meus olhos começam a arder.
Eu não estava realmente prestes a chorar por causa daquilo, estava?
Que porra.
Lembro das palavras de Enri na cabine do banheiro.
— Ser um nerd invisível tem seus benefícios... mas também
malefícios.
— Ei... foi mal por isso, você sabe que eu não quis realmente dizer
que...
— Não se preocupe, seu idiota. Eu te conheço há dezesseis anos,
esqueceu?
Ele fica em silêncio, e quase consigo vê-lo acenando do outro lado.
— Espero que o sexo com ‘Aquele Garoto’ seja bom pra compensar
a aura de babaca que ele tem — diz em um tom um pouco mais
conformado.
Deito na cama novamente, encarando o teto branco do quarto.
— Ele não é babaca, só é... — engulo em seco — preocupado
demais com as aparências.
— Como todo mundo em Eastview.
— Como todo mundo em Eastview.
— Promete que me conta quando vocês se tornarem oficiais?
— Prometo.
— Okay, cuzão. — O ouço voltar a folhear alguma coisa. — Tenho
que fazer o trabalho estúpido da sra. Áurea agora — e desliga.
Afasto o celular da orelha, e continuo encarando o teto por alguns
minutos. Talvez dez. Talvez sessenta.
Aquele dia foi definitivamente coisa demais para processar. Ainda
não estava preparado para ligar as notificações dos apps de redes sociais
novamente. E tremia só de imaginar o que estavam falando sobre mim
neles.
Espero que Áurea esteja certa. Espero que as pessoas esqueçam
daquilo e sigam em frente com suas vidas logo, que aquele ímpeto de
popularidade desapareça tão rápido quanto começou.
Me apoio pelos cotovelos e ergo o rosto em direção ao meu
computador de mesa novamente.
Inspiro fundo. Caminho até ele. Abro a página do blog que rascunhei
enquanto estava na sala da faxineira.
Olho as palavras, leio e releio as frases. Eu realmente escrevo bem,
não escrevo? Ao menos naquilo eu podia ter algum tipo de confiança.
Prossigo com o texto, detalhando meu dia. O susto em descobrir que
o blog tinha vazado, toda a cena no banheiro, o confronto com Maria, a
reunião com Augusto. Tudo. Tudo. Tudo. Até meu novo encontro com
Aquele Garoto.
No final, me sinto leve. Leve e um pouco mais confiante. Eu iria
sobreviver àquilo. Iria sobreviver, e um dia Caspian Wolmer perceberia o
garoto incrível que estava deixando escorregar de suas mãos pela sua
obsessão com aparências
Alguém bate na segunda porta do meu quarto.
Me sobressalto, e viro o rosto para encontrar Nikolas Souza parado
no meu quintal, acenando na minha direção com uma animação quase
perturbadora.
N ikolas? — falo depois de abrir a porta do quintal. Olho ao redor dele,
ansioso pela possibilidade de Maria e suas líderes de torcida também
estarem ali.
Mas ele está sozinho.
— Pode me chamar de Nik, cara — responde, uma mão escondida
no bolso da calça jeans, outra esfregando sua nuca. Veste uma camiseta
branca, coberta por uma jaqueta leve azul-marinho. Meu cenho está tão
franzido que sinto vincos profundos em minha testa. — Você parece minha
mãe quando ela tá puta com alguma coisa.
— Como você chegou aqui? — pergunto exasperado.
Ele olha a rua além do muro e da porta aberta pela qual entrou.
— Todo mundo sabe onde você mora agora. E vi a porta lateral
destrancada, então resolvi entrar. — Arregalo os olhos. Ele encobre o rosto
com as mãos momentaneamente. — Sim, acabei de perceber o quão
estranho isso é. Foi mal.
Aquilo me faz rir. Ele ri comigo. Por algum motivo, esqueço que ele
praticamente invadiu minha casa.
Diferente de seus amigos (e especialmente de sua namorada),
Nikolas é fofo. Não fofo como Cas. Fofo como um filhote de golden
retriever. Os fios amarelos e os olhos grandes ajudavam na comparação.
— Relaxa — digo depois que as risadas cessaram. Abro a porta do
quarto um pouco mais. — O que você tá fazendo aqui?
— Eu vim pra... — engole em seco — pedir desculpas pelo que
aconteceu com a Maria mais cedo. Você sabe que ela não vai realmente
transformar sua vida num inferno ou qualquer merda que tenha falado, não
é?
Cruzo os braços sobre o peito, e consigo conter meu sorriso.
— Não precisa pedir desculpas. — Desvio o olhar para baixo, para o
espaço vazio entre nossos corpos. — Maria foi o menor dos meus
problemas hoje. Não foi nada em comparação ao sr. Himas, que me colocou
em detenção durante o fim de semana inteiro pelo meu post sobre ele.
— Não brinca.
— Queria eu estar brincando — reviro os olhos.
Agora que voltei com o blog, posso fazer um post especial sobre a
detenção.
Nik esconde as duas mãos nos bolsos, a expressão ainda imersa em
preocupação.
— Sinto muito, Dani, deve estar sendo uma merda essa situação
toda.
Aceno sutilmente.
— Bem isso.
Ficamos em silêncio por alguns segundos. Ele olha sobre meus
ombros, em direção ao computador na mesa.
Sigo seu olhar, me arrependendo imediatamente por ter deixado a
porra daquele rascunho aberto.
— Vai continuar atualizando o blog? — ele pergunta.
Fecho os olhos e forço um sorriso falso no rosto, tentando pensar na
melhor coisa a dizer.
Devia contar a verdade a ele? Devia sequer confiar nele?
Nik era o namorado de Maria, afinal de contas. O namorado legal,
bonito e simpático. Mas, ainda sim, seu namorado. E se tudo aquilo fosse
um plano pra me humilhar ainda mais?
Não sei. Talvez fosse só minha paranoia falando.
— Sim — respondo. Penso um pouco, e complemento: — Talvez
assim eu possa retomar um pouco de controle sobre o que é exposto, ou
não.
Nossos olhares voltam a se encontrar. O semblante dele está mais
sóbrio.
— Saquei. — Abre um novo sorriso nos lábios, mais despretensioso,
manso. — Posso dizer que também tô curioso pra descobrir quem é Aquele
Garoto.
Solto uma lufada de ar pelo nariz.
— Entre na fila.
Me afasto da porta, e abro passagem para que ele entre no quarto.
Nik ergue as sobrancelhas, mas faz como indicado. Fecho a segunda porta.
Sento na minha cama. Ele senta na cadeira giratória da mesa de
estudos e volta-se a mim.
— Escuta... — Inclina-se um pouco à frente, os dedos cruzados,
encarando o chão. — Sei que começamos com todo aquele drama de Maria,
mas... que tal se você aparecer no treino de futebol amanhã? — Ergue o
olhar até o meu. Entreabro os lábios, surpreso e assustado. Ele pigarreia, e
completa: — As finais interestaduais estão chegando em alguns meses, e
agora estamos começando a intensificar o ritmo.
Ele faz o pedido em um tom tão suave que quase parte meu coração
ter que recusá-lo.
— Obrigado, mas... — Só de me imaginar no mesmo espaço que
Maria tenho um treco. — Provavelmente não é uma boa ideia. Não gosto
muito de futebol. — Faço uma careta de desinteresse.
Ele se ergue da cadeira.
— Bem... — Suspira. — Eu adoraria te ver por lá, se você mudar de
ideia. Mas não encana com isso. — Caminha até a porta do quintal.
Repousa a mão sobre a maçaneta. — Então, tô indo nessa.
Me preparo para levantar da cama e lhe dar adeus, mas meu pai entra
no quarto naquele instante, sem bater na porta, sem qualquer tipo de
anúncio.
— Dani, jantar em quinze minutos — fala, e se interrompe logo que
percebe a presença de Nik no quarto. Ele tem um pano de prato branco no
ombro. Parece surpreso por um segundo, e então me lança um sorriso
animado. — Eu não sabia que tínhamos companhia. Esse é um dos seus
amigos de Eastview?
Levanto da cama e aceno.
Nik corresponde ao sorriso do meu pai, e se aproxima dele com uma
mão estendida.
— Prazer, Nik.
— Gasper.
Eles trocam os cumprimentos — e o que eu desejava ser também seu
adeus. Nik faz menção de deixar o quarto, mas antes de se virar em direção
à porta, algo parece encaixar em sua mente.
— Gasper Vinci? — Franze o cenho em direção ao meu pai. Então,
arregala os olhos como se tivesse visto um fantasma. — A lenda do
futebol?
Ah, porra.
O sorriso no rosto de meu pai se alarga.
— ... Sim... — responde. Ele me lança um novo olhar. Tento
implorar com os olhos para que ele não prolongue demais aquilo, mas é
inútil. — Você gosta de futebol?
— Tá brincando? — Nik se exaspera, completamente boquiaberto.
Volta-se a mim: — Puta merda, você é filho de Gasper Vinci?
— Sim — respondo, e me jogo na cama, fitando o teto. Aquilo pode
demorar.
— Meu Deus, você é o meu ídolo. — Nik se aproxima de Gasper e o
cumprimenta novamente. — Assisti e reassisti todos os seus jogos com meu
pai. Nós te adoramos.
Meu pai solta uma risada alta e gostosa.
— Bem, falando desse jeito você vai me fazer corar.
— Cara... — Nik continua balbuciando. Gira sobre o próprio eixo,
observando detalhes do meu quarto. — Não acredito que tô na casa de
Gasper Vinci.
Meu pai me fita de relance. Me apoio nos cotovelos, o rosto
impaciente.
— Gostaria de jantar com Gasper Vinci e sua família? — ele
pergunta.
Pulo da cama, e afasto os dois, puxando Nik por um dos braços até a
porta do quintal.
— Não. Não. Não. — Nego veementemente. — O Nik precisa ir
agora, temos um trabalho muito chato de literatura pra entregar amanhã.
Não é mesmo, Nik? — Toco a lateral de seu rosto, e o faço me encarar. —
Por favor... — falo sem voz.
Ele arregala os olhos, olha meu pai, então eu, então meu pai e eu
novamente.
No fim, acaba acenando com a cabeça.
— Claro... sim... o trabalho.
Gasper suspira, e apanha o pano de prato dos ombros. Quase me
sinto mal por privá-lo daquele jantar que certamente seria bastante
divertido — pra eles, não pra mim.
— Uma pena. — Aperta os lábios, e se aproxima da porta do quarto
por onde entrou, que leva ao interior da casa. — Mas passa por aqui
qualquer dia desses, Nik. Adoraria conhecer mais amigos do Dani que
gostam de futebol, já que ele... — Faz uma expressão de desgosto.
— Pai... — repreendo.
Ele revira os olhos, e dá de costas.
— Foi um prazer, Nik — diz antes de sair completamente do quarto.
— O prazer foi meu — o garoto de fios amarelos responde.
O empurro para mais próximo da porta, e abro.
— Cara... — resmungo — tenta não parecer tão apaixonado pelo
meu pai da próxima vez.
Ele faz aquela expressão fofa de arrependimento de novo.
— Nossa, foi mal. Fiquei até tonto por alguns segundos aqui. — E
esfrega a própria nuca. De novo, esqueço que estava irritado com ele. —
Teu pai é uma lenda. — Se aproxima da porta.
— Sim, eu sei disso.
Ele caminha para fora do quarto. Observo suas costas. Quando ele se
vira em minha direção outra vez, tem uma expressão convicta no rosto.
— Agora você tem que ir ao treino amanhã, por favor.
— Eu disse que não gosto de futebol — rebato. Me apoio na porta
aberta. — E não sei nada sobre.
Ele ergue uma sobrancelha.
— Posso te ensinar.
Cruzo os braços sobre o peito.
— Eu não quero.
Junta as mãos em uma posição de prece.
— Vamo lá, por favor... — insiste com aqueles olhos azuis grandes e
profundos.
Cerro os dentes. Por que os garotos daquela escola tinham que ser
um pé tão grande no saco? Todos eles. Sem exceção. Eu inclusive.
Penso um pouco. Ele acabou de desistir do jantar com meu pai
porque pedi, afinal de contas. E parece realmente ser uma boa pessoa.
Uma boa pessoa cercada de pessoas horríveis, sim, mas ainda uma
boa pessoa.
— Se eu concordar, você me deixa voltar pro meu blog agora?
— Sim.
Suspiro uma, duas, três vezes, sem acreditar no que eu estava
fazendo. No fim, respondo:
— Tudo bem. Vou estar lá.
E aquela decisão me enche de medo e excitação, ao mesmo tempo.
Eu teria que arrastar Enri para aquele treino.
— Boa — Nik praticamente grita, como se tivesse acabado de
marcar um gol ou algo assim.
— Agora sai daqui.
O enxoto em direção à porta aberta no muro.
Ele concorda e começa a se afastar. Observo suas costas outra vez.
Ele tem um jeito relaxado até ao andar, diferente do ritmo sempre frenético
de Cas.
Quando chega na porta, ele diz:
— Fala pro seu pai que eu tenho uma bola autografada dele que—
— Tchau, Nik.
Fecho a segunda porta do quarto.
Sento na cadeira e observo o rascunho aberto do meu post. Observo.
Observo. Observo.
Decido não mencionar Nik nele, mas quando minhas mãos tocam o
teclado, o seu nome é tudo o que consigo digitar.
Nik. Nik. Nik. Nik. Nikolas Donavan. Namorado de Maria Moreira.
Melhor amigo de Caspian Wolmer. O primeiro goleiro transsexual a jogar
nas interestaduais do país.
O garoto com o sorriso mais reconfortante que eu já tinha visto.
Porra. Eu não estava... não estava mesmo...?
Oh, porra.
Outra pessoa bate na segunda porta do quarto. É Cas.
Aperto publicar no post antes de pensar duas vezes e desligo o
computador.
N ão sei o que sinto vendo-o ali. Surpreso, definitivamente. Com
medo, também.
Abro a porta.
— Cas? — Me apoio sobre o vidro. — O que você tá fazendo aqui?
Enri estava certo. Ele parecia um bad boy. A jaqueta de couro. As
roupas escuras. A calça rasgada no joelho.
Mas, quando abriu a boca, sua voz estava mais suave do que a de
Nik.
— Eu... — Passa uma das mãos sobre os fios crespos. Ele está
nervoso, percebo. É a primeira vez que vejo Caspian Wolmer nervoso. E...
por minha causa? — Eu queria pedir desculpas.
Ergo as sobrancelhas, os lábios abertos.
— Por...?
Ele aperta os lábios.
— Por estar sendo um cuzão com você. — Respira fundo, e retrai os
ombros. Há sinceridade e ansiedade em sua voz. — Não quero que fique
com a impressão de que não gosto de você, ou que não me interesso por
você além do sexo. Tudo bem? Eu só... — Expira pela boca. — Preciso de
um pouco mais de tempo, Dani. Eu gosto de você. Realmente gosto de
você.
Ali estava ela. A confissão que esperei na sala da faxineira. Mas de
que utilidade ela tinha ali? No quintal da minha casa? Qual era a utilidade
em saber daquilo se na frente de qualquer outra pessoa era como se não
existíssemos um para o outro?
— Eu sei disso — respondo em um tom sóbrio, e cruzo os braços. —
O problema é que ninguém pode saber que você gosta de mim, não é?
Ele entreabre os lábios, mas fica calado. Olha para os próprios pés.
Depois de um tempo, responde:
— Por enquanto.
Aperto os lábios.
— Sim, claro — murmuro com um tom de ironia.
— Podemos dar passos pequenos de cada vez.
— Tipo?
— Você pode ir pro treino de futebol amanhã comigo.
Merda. Foi minha vez de ficar calado. Olho ao redor, sem motivo
algum, apenas admirado em como o destino era sarcástico.
Sou filho de um dos jogadores de futebol mais conhecidos do
mundo, e odeio tudo que tem relação com o esporte. Mesmo assim, tenho
dois jogadores querendo me levar para assistir um de seus treinos. Dois
jogadores do mesmo time. Dois melhores amigos.
E eu achei que aquele dia já tinha sido dramático o suficiente.
— Tem certeza? — pergunto pra ele quando me desvencilho dos
meus próprios devaneios.
Ele se aproxima, e toca minha cintura.
— Sim. — Me empurra para trás, e entramos juntos no quarto. Ele
chuta a porta do quintal, e ela se fecha. — Espero que hoje não tenha sido
um dia tão horrível pra você — comenta enquanto me fita profundamente.
— Eu vou sobreviver.
Sua mão sobe até o meu rosto, e seus lábios encontram os meus.
Me perco por alguns momentos. Ele retira a jaqueta de couro e a
joga no chão.
Quando percebo, já estou deitado na cama.
— Tenho que descer em dez minutos pro jantar.
Ele sobe fazendo uma trilha de beijos no meu pescoço, até alcançar o
meu ouvido.
— Só vamos precisar de cinco — sussurra.

FIM DO LIVRO UM
N as últimas semanas, Cas não conseguia tirar as mãos de mim.
Na sala da faxineira, no banheiro, no depósito atrás do refeitório.
Pode chutar um local de Eastview. Nós provavelmente já transamos lá.
Não sei o que aconteceu com ele desde o dia em que meu blog
vazou, mas ele estava em um transe-por-dani. E eu estava feliz em ser o
Dani em questão. Porém, havia um problema.
Tudo o que a gente fazia era transar. Não conversávamos sobre nada
— absolutamente nada.
Nós transávamos muito, sim. Mas era como se não tivéssemos
intimidade alguma. Eu não sabia nada sobre a vida pessoal dele, e ele não
parecia ter interesse em saber sobre a minha.
E aquilo...
Aquilo deveria incomodar menos do que incomodava de verdade.
Nós não éramos um casal, afinal de contas. Ou éramos?
Ainda não podíamos ser vistos juntos em público, então
provavelmente não. Mas esse era o problema. Eu não sabia o que éramos,
não conversávamos sobre isso.
Será que existe algum casal que tenha começado daquele jeito?
Algum casal que fez as coisas ao contrário (primeiro o sexo, depois o
relacionamento)? Ou será que eu e Cas éramos... diferentes?
— ... É tão estranho — a voz de Enri me tira do monólogo interno.
Pisco várias vezes até perceber que estive desligado da realidade por
alguns minutos. Observo o campo de futebol à frente, onde o time de
Eastview está treinando em mais uma manhã ensolarada antes das finais
interestaduais. Como por um impulso magnético, meus olhos pairam sobre
Caspian. Ele era um dos atacantes do time. Fecho os olhos. Preciso parar de
me concentrar no torso musculoso e suado dele. É por causa daquilo que
não tínhamos conversado sobre droga nenhuma até agora.
— Uh? — me volto a Enri. — O que é estranho?
Ele solta uma lufada de ar pela boca, cruza os braços e se recosta
sobre o banco que ocupa na arquibancada.
— Hello? — Ergue as sobrancelhas. — Estou falando com você há
meia-hora Dani — diz em um tom irritado —, não ouviu nada do que eu
disse?
— Sim, é claro — rebato rapidamente. Suas sobrancelhas se erguem
ainda mais, me incitando a continuar. Mas percebo que estou mentindo. —
... mas o que você disse?
Ele revira os olhos, e os desvia para o campo de futebol. Ou, melhor,
para o prédio azul e gigantesco de Eastview um pouco além do campo.
Enri parece ponderar sobre algo.
— É muito estranho como Heitor Ruchert só me liga quando quer
transar. Me sinto usado.
Ah.
Fico desconcertado — tanto por sua escolha de palavras quanto pelo
assunto em questão.
— Sim... — murmuro, e arrumo os óculos no rosto — é muito
estranho.
Ele faz uma careta de desagrado, e semicerra os olhos.
Não sei de onde surgiu o interesse de Enri em Heitor, ou de Heitor
em Enri. Os dois não tinham nada em comum, não compartilhavam uma
aula sequer em seus horários.
Honestamente, acho que Enri merece mais do que Heitor. Se eu
ainda sou ridicularizado pelos posts do blog, o presidente do clube de LOL
do colégio é conhecido... por outras coisas.
— Talvez nós devêssemos D.A.R. — Enri diz depois de alguns
minutos.
— Definir A Relação?
— Yes.
Naquele momento, alguém chuta a bola com força suficiente para
fazê-la viajar até a arquibancada. Meus reflexos funcionam pelo menos uma
vez na vida, e consigo apanhá-la antes de acertar meu rosto e quebrar meus
óculos — e meu nariz, provavelmente.
Cas se aproxima do limite do campo, e perco o ar por um segundo.
Tento me concentrar em seus olhos. Juro que tento. Mas o suor sobre sua
pele marrom-escura o faz cintilar a cada movimento.
Merda. Estou fazendo de novo, não estou?
Pigarreio.
Ele me fita sem demonstrar emoção alguma — talvez meu uniforme
do clube de xadrez não seja a coisa mais sexy do mundo — e faz um gesto
com as mãos para que eu lhe passe a bola. Assim o faço. Ele me dá as
costas sem um mero gesto de agradecimento.
Fico frustrado. Mais frustrado do que o normal.
— Não acha que tá um pouco cedo pra isso? — falo a Enri. O
absurdo de sua relação com Heitor ainda fazendo minha cabeça girar. —
Quer dizer... vocês estão saindo juntos há algumas semanas.
E, por algum motivo, me sinto mal imediatamente depois de dizer
aquilo. Estou projetando minhas inseguranças, e as incertezas sobre minha
relação com Cas na relação de Enri. Isso não é justo.
E graças aos céus ele não pensa muito sobre minha afirmação.
— Exato. Já passamos tempo demais sem D.A.R.
Aceno sutilmente. Desvio o olhar para Cas outra vez. Será que nós
também tínhamos passado do tempo de definirmos nossa relação? O que
aconteceria quando finalmente fizéssemos aquilo?
O apito do sr. Fleet soa. O treino está encerrado. Alguns outros
alunos na arquibancada se levantam e começam a retornar ao prédio
principal.
No meio do campo, Cas e Nik trocam um high-five breve e se
abraçam em seguida. O time todo os cerca depois, assim como as líderes de
torcida.
Maria puxa Nik para longe do grupo principal, e os dois discutem
sobre algo.
Cas passa os braços sobre os ombros de Anita Silva, melhor amiga
de M&M. Ela parece animada em estar abraçada com ele. Quem não
estaria?
Porém, algo estranho acontece, e vai além da animação de Anita: os
dois trocam um selinho curto.
Aquilo faz meu estômago revirar.
Enquanto ser visto comigo em público ainda estava fora de
cogitação, Cas podia beijar, abraçar, trocar carícias e afeto com quem
quisesse. Desde que não fosse eu.
Ele olha para trás, em minha direção. O sorriso em seu rosto se
desfaz quando percebe que eu vi aquilo, mas ele não faz menção alguma de
se aproximar, de se desculpar ou explicar. Apenas retorna a atenção a Anita,
e os dois caminham juntos em direção ao prédio de Eastview.
Minha frustração se torna fúria. Me volto a Enri, suspirando fundo.
— Eu tenho algo pra te contar.
Ele estreita os olhos na direção de Maria e Nik, que continuam
discutindo ferrenhamente sobre algo.
— Acha que as extensões de M&M são falsas também?
Toco em seu braço, fazendo-o se voltar para mim. Deixo as palavras
saírem de minha garganta antes que minha mente tenha tempo demais para
impedi-las:
— Aquele Garoto é Caspian Wolmer.
Enri arregala os olhos, assustado, como se tivesse acabado de ouvir a
notícia sobre a morte de Michael Jackson outra vez. Seu olhar se alterna
entre Caspian e eu uma, duas, dez vezes. Até murmurar de forma melódica
e aguda:
— Porra — e entrar em uma crise existencial.
Começo a me exasperar também.
— Isso é tudo o que você tem a dizer? — pergunto, tenso.
Ele curva a nuca para baixo, deixando para trás a postura
despretensiosa de antes. Várias coisas parecem passar por sua mente. Talvez
ele esteja tentando colocar as peças do quebra-cabeça no lugar, talvez não
acredite que um cara como eu realmente possa ter um caso secreto com
Caspian Wolmer.
De qualquer forma, quando volta a falar, sua voz possui um fundo de
mágoa:
— Como você pôde esconder de mim que o garoto misterioso com o
qual vem transando é Caspian?
— Já te disse que ele me pediu pra manter tudo em segredo.
Ele cerra os dentes e aperta os lábios.
— Sim, de outras pessoas Dani, não do seu melhor amigo. — Seu
olhar vagueia perdido pelo campo quase vazio em nossa frente (M&M e
Nik foram os únicos que continuaram no local, sua discussão parecia sem
fim).
Inspiro fundo.
— Você sabe que eu sou bom em guardar segredos.
Ele entrelaça os dedos, os cotovelos apoiados nos joelhos, os ombros
tensos. Até que parece finalmente digerir a informação.
Se joga contra o assento, mais relaxado.
— Mas por que tá me contando agora? — Não tenho uma resposta
simples para aquilo. Ele fita o campo de futebol outra vez, e a lembrança do
selinho trocado por Cas e Anita volta à sua mente. — Ah... — Faz uma
expressão de contemplação. — Vocês tão em um relacionamento aberto?
— Não sei que merda de relacionamento nós temos — respondo
com um sorriso triste. Suspiro, lembrando de todas as vezes em que
estivemos juntos naquelas semanas. — Às vezes ele é o cara mais legal do
universo. E às vezes acho que não tenho importância nenhuma pra ele.
Enri envolve meus ombros com o braço, e toca no meu peito.
— Sabe o que isso significa, não sabe? — pergunta em uma voz
suave. Fico confuso até ele completar: — Vocês precisam D.A.R. — Miro o
campo outra vez, onde as sombras de Cas e Anita estiveram alguns minutos
atrás. — E a festa na fogueira de hoje é a oportunidade perfeita.
Retiro seu braço dos meus ombros.
— Não Enri, é melhor eu não ir. Você sabe que esse tipo de festa não
é pra mim.
— Tá brincando? — ele rebate bruscamente. — Você já me
convenceu a não ir ano passado, nesse ano precisamos ir — fala,
acentuando cada palavra com um toque do indicador no meu peito. — Além
do mais — solta uma risadinha curta e suspeita. —, tenho a impressão de
que Heitor Ruchert tem planos para nós nessa noite.
— Então você vai simplesmente me abandonar pra transar com um
cara qualquer?
Seu rosto se fecha completamente.
— Como você vem fazendo desde que as aulas começaram, quer
dizer? — Aperto os lábios. Ele está certo. Fiquei tão focado em Cas nas
últimas semanas que sequer parei para pensar nos sentimentos de Enri.
Talvez a relação dele com Heitor não seja tão absurda assim. Talvez eu que
não tenha dedicado tempo suficiente para entender como aquilo aconteceu.
De qualquer jeito, me senti um merda. Queria me desculpar, mas ele se
apressou a completar: — É claro que não. — E um sorriso dissimulado se
abriu em seu rosto. — Mas vamo lá, vai ser divertido. É a única noite do
ano em que Eastview parece mais uma república universitária do que um
colégio de prestígio. Garotos sem camisa, uma fogueira do tamanho de uma
casa, muita bebida.
— Sabe que não podemos beber, certo?
Ele ri com escárnio.
— Nem mesmo você acredita nisso. — E sentamos em silêncio na
arquibancada por alguns minutos.
Enri tinha razão. Eu provavelmente não teria outra oportunidade tão
boa quanto aquela para entender o que Cas queria com tudo aquilo.
Observo M&M e Nik discutindo no campo. Havia muito que eu e
Cas devíamos ter discutido também. Muita coisa que ficou apenas
subentendida, muita coisa que precisava ser explicada.
E eu já estava exausto. O sexo era bom no começo. Mas agora só
tinha se transformado em uma inconveniência que nos impedia de dar o
próximo passo.
Estava decidido: não haveria mais sexo entre nós até que
discutíssemos que droga estávamos fazendo naquela relação.
E, por aquilo, eu podia esconder o meu desagrado por festas e
acompanhar Enri naquela noite.
— Então... — Enri murmura depois de um tempo. — Caspian tirou
sua virgindade?
Expiro pela boca.
— Sim... — era desconfortável e libertador, ao mesmo tempo,
confessar aquilo em voz alta.
Enri retira o celular de um dos bolsos da calça, e o gira nas mãos
enquanto as engrenagens em sua mente também parecem girar.
— E Caspian não quer que ninguém saiba disso... por causa da
popularidade dele?
Meu cenho se franze. Observo o semblante reflexivo dele de relance.
— Sim...
— Mas... você é popular agora.
A afirmação me pega desprevenido.
— Mas não como ele — rebato, um pouco desconfiado.
Vincos se formam na testa de Enri.
— Está desiludido? Você é literalmente a única coisa da qual essa
escola consegue falar nas últimas semanas.
Fecho os olhos.
— Obrigado por me lembrar disso.
Ele nega com a cabeça.
— Meu ponto é: vocês dois são populares agora. Caspian não tá no
armário, todo mundo sabe que ele é bi. Então... — e a cada palavra, meu
peito fica mais pesado — qual é o problema?
— O problema?
Faz um gesto sugestivo e tenso com as mãos.
— Por que vocês continuam sem poder interagir, conversar, como
duas pessoas do mesmo nível de popularidade?
Curvo a nuca para baixo, em direção ao chão da arquibancada. Tento
pensar em uma resposta boa, no motivo pelo qual concordei com aquilo,
pelo qual concordei em manter a identidade de Cas um segredo no blog.
Mas Enri estava certo. O Dani de agora não era mais o Dani de três
semanas atrás, ou do acampamento de verão. As coisas mudaram.
Então por que Cas não tinha mudado também?
— ... Eu não sei — respondo depois de me sentir exausto em busca
de uma resposta melhor.
Ele dá um tapa forte em minha escápula.
— Viu? — diz em um tom animado. — Você precisa ir na festa da
fogueira e conversar com ele sobre isso.
Engulo em seco, e aceno.
— Você tá certo.
Ele se recosta de forma descontraída no banco, e um sorriso largo se
abre em seu rosto.
— Sempre estou.
Enri desbloqueia seu celular e analisa algo ali. Só consigo mirar o
campo outra vez, sentindo um vazio estranho dentro de mim.
Eu amo Cas. Aquela foi a razão que me fez aceitar ser apenas um
segredo em sua vida.
Mas estou cansado de ser um segredo. Prefiro ficar sozinho a
continuar com aquilo.
O que significa que... dependendo de como a festa se encaminhar
naquela noite...
Esse será nosso fim.
— O que dois bebês lindos como vocês tão fazendo fora do berço?
— ouço a voz de Nik antes de perceber que ele se aproximou da
arquibancada e está sentando na fileira de bancos à nossa frente.
Respiro fundo, e deixo todo aquele monólogo melancólico para trás.
Me concentro no sorriso convidativo de Nik. Ou, melhor, tento, já que ele
também está sem camisa.
— Bom dia pra você também — Enri rebate sem erguer os olhos da
tela do celular.
Dou um sorrisinho de cumprimento ao goleiro do time, e percebo, ao
longe, o olhar furioso de Maria direcionado a mim.
Nik entreabre os lábios para dizer algo, mas Enri o interrompe:
— Vou ter que ir agora, Dani. — Levanta do banco em um pulo,
alegria estampando cada parte do seu rosto. — Heitor Ruchert acabou de
me convidar para uma rapidinha na sala da faxineira no segundo andar.
— Claro... — murmuro, uma risada ameaça deixar minha garganta,
mas acaba ficando presa.
Então... eu e Cas não éramos os únicos que usávamos a sala da
faxineira?
— Você ainda precisa trabalhar muito nas suas cantadas, Nik — Enri
diz antes de virar de costas e se afastar.
— Eu sei... — o goleiro replica. Minha mente se perde na conversa
que terei com Cas naquela noite. O que deveria dizer? Como deveria dizer?
O que as pessoas fazem quando precisam D.A.R? — Dani? — Nik diz.
— Ah, desculpa. — Afasto aqueles pensamentos. — Eu tava só...
— Tá tudo bem? — Ele pula de uma fileira de bancos para outra, e
senta ao meu lado.
— Sim, é só que... — Suspiro. Seria um erro muito grande conversar
sobre aquilo com Nik? Ele era o melhor amigo de Cas, afinal de contas.
Talvez pudesse me dar algum tipo de informação que fosse útil na conversa
que teríamos à noite. — Tem esse cara que eu gosto muito — penso
cuidadosamente no que dizer. —, mas acho que ele não gosta de mim da
mesma forma.
Nik entrelaça os dedos e me fita de maneira curiosa.
— E por que você acha isso?
Mordo o lábio inferior. Me recosto no banco, o olhar preso no gol
mais distante do campo.
— Ele tá sempre com os amigos dele, me evitando. Acho que só
conversa comigo quando precisa se sentir bem consigo mesmo... — dou de
ombros. — ou quando precisa de alguma outra coisa — finalizo em um tom
triste.
— Isso não é verdade — Nik rebate em um tom inconformado.
— O quê? — Encaro seus olhos azuis profundos.
Ele engole em seco, e se afasta um pouco.
— Qualquer um seria sortudo de sair com você, Dani. Esse cara
talvez... — move a mandíbula de um lado pro outro. — ainda não tenha
achado a forma certa de... uh... dizer pra você o que sente.
É fofo ver Nik tentando me aconselhar naquela situação. Será que se
ele soubesse que estávamos falando de Caspian manteria aquela opinião?
Nego com a cabeça.
— Duvido disso, ele já teve várias oportunidades. — Chuto uma
tampa de garrafa perdida no chão da arquibancada para longe, tentando não
me concentrar em como estava triste.
Nik fica em silêncio por alguns segundos. Talvez minhas aventuras
amorosas não sejam tão interessantes para ele, de qualquer jeito.
O goleiro do time ainda era uma incógnita para mim. Ele era ótimo,
sem dúvidas. Uma pessoa ótima e genuinamente agradável de se estar ao
lado. Mas por que parecia tão interessado em mim?
E por que para ele... ser visto comigo em público não era um
problema tão grande quanto era pra Caspian?
— Ele tem um namorado? — ele pergunta em um sussurro abafado.
O selinho de Cas e Anita me vem à mente imediatamente.
— Namorada — corrijo com um estalar da língua.
Nik se mexe desconfortavelmente no assento, olha ao redor, inspira e
expira fundo.
— Se esse cara não tivesse uma namorada... — fala em um tom tão
suave que sou impelido a encará-lo. — ele com certeza faria de tudo pra te
mostrar o quanto gosta de você, porque ele gosta. — Acena com a cabeça.
Há um brilho de convicção contagiante em seu olhar.
Talvez ele saiba que estamos falando de Cas, afinal de contas. Talvez
Cas tenha falado de mim para seu melhor amigo (um sinal de que não
queira manter nossa relação em segredo por muito mais tempo).
Aquilo afasta a tristeza, e me dá um pouco de esperança. Um sorriso
singelo se abre em meus lábios.
— Obrigado, Nik.
Ele aperta um dos meus ombros.
— Vem pra festa da fogueira hoje? — pergunta com um sorriso
sugestivo nos lábios.
— Acho que vou — respondo com segurança.
Ele se levanta do banco, e contrai os músculos das costas.
— Te vejo lá então, Dani — faz um gesto de despedida antes de se
afastar.
LEIA AQUELA FESTA AGORA
E, bem assim, nasce uma lenda.
A história de Dani, Cas, Nik e cia é simplesmente a coisa mais
divertida que escrevi em muito tempo. Espero que você tenha se divertido
lendo tanto quanto me diverti escrevendo.
Muito obrigado às pessoas incríveis que trabalharam comigo nesse
texto: Lucas, Amanda e Sophia. O talento de vocês me deixa assustado.
Senara e Bruno seguem sendo meus companheiros mais próximos
quando se trata do visual dos livros, e não vejo isso mudando tão cedo.
Obrigado demais pela dedicação e pela paciência de vocês, e também por
suportarem meus surtos sempre que recebo de volta um design pelo qual me
apaixono hehehe
Obrigado a todo mundo que apoiou esse lançamento e aos meus
leitores maravilhosos, às pessoas que compraram este livro na pré-venda
antes mesmo que qualquer marketing sobre ele tivesse sido feito. Vocês me
dão força e energia para seguir escrevendo e publicando, e não canso de
dizer o quanto os amo.
Espero reencontrá-los logo logo para o próximo capítulo na história
desses personagens (se você pensou que já teve drama demais nesse livro,
espere até ver o que tenho separado para o próximo *risada maligna*).
Um beijão,
Mark.
MARK MILLER É ESCRITOR PELA MANHÃ, estudante de medicina pela
tarde, e leitor voraz pela noite. Nasceu na região norte do Brasil, mas
mudou-se para São Paulo aos 14 anos de idade.
É uma pessoa de hábitos noturnos, o que talvez explique sua
obsessão por café. Não gosta de climas muito quentes, ou muito frios, adora
conhecer a cultura de outros países e ama gatos.
Escreve pelo simples desejo de ver mais representatividade em
histórias usualmente dominadas pelo imaginário heteronormativo, buscando
leitores que, como ele, desejam ver mais personagens LGBTQ+ em
posições de protagonismo.

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Twitter: @markmillerbooks
Instagram: @markmillerbooks

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