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EASTVIEW é o seu típico bairro do subúrbio de uma grande cidade: rico,

isolado e pacato. Até ALEXIS LUNA ser assassinado no colégio que tem o
mesmo nome do bairro. Ele era o presidente do clube de xadrez, adorado,
gentil, atencioso. E foi brutalmente estrangulado. As únicas testemunhas de
seu assassinato são dois garotos que têm sua própria leva de segredos.
TOMAS MINORI é o filho adotivo do delegado local do bairro.
Sua vida em Eastview, segura e calma, é a melhor que jamais teve. Edgar e
Laura são os pais que sempre sonhou ter. E Mateus Armani é o garoto de
seus sonhos: o atlético jogador de basquete em que todos veem potencial,
popular e adorado como Alexis, mas um pouco mais misterioso.
Embora nutra sentimentos complicados por Tomas, MATEUS é
contrário à ideia de trazer a relação dos dois à público, prendendo o jogador
de xadrez (e a si mesmo) a um ciclo de angústias e frustrações. Eastview é
mesmo o seu típico bairro de subúrbio: rico, isolado, pacato, e intolerante.
A tensão entre os dois garotos atinge o ápice quando o assassino de
Alexis os chantageia a ficarem calados sobre o que viram, sob a ameaça de
expor sua relação. Autoidentificado como E.V., a figura misteriosa parece
saber muito mais sobre Tom e Matt do que eles poderiam imaginar. Mesmo
com a relutância de Tomas, os dois concordam em jogar o jogo de E.V.,
mantendo o que sabem sobre a noite da morte de Alexis em segredo.
Diante da negligência de Mateus, e da forma macabra com que ele
reage ao descobrir que o assassinato de Alexis foi encoberto por E.V. para
parecer um suicídio, Tomas começa a duvidar da própria sanidade, da paz
que achou ter encontrado em Eastview e, principalmente... da confiança que
tem no garoto que ama.
Tudo está ruindo ao redor de TOMAS MINORI: ele não sabe mais em quem
confiar, não sabe mais se está seguro, e está próximo de perder sua bolsa em
EASTVIEW. Todas as tentativas de comunicação com MATEUS têm
falhado, e o jogador de basquete parece mais interessado em seu namoro de
fachada com uma garota qualquer do que com a figura que continua os
chantageando. A única pessoa que parece lhe transmitir qualquer tipo de
segurança é o SR. DUARTE, seu professor de biologia.
Após uma briga que abre uma rachadura em sua relação, os dois
garotos são alertados pelo diretor de Eastview que sofrerão sérias
consequências se aquilo voltar a acontecer (Mateus pode perder sua vaga no
time de basquete, e Tomas pode definitivamente perder sua bolsa). Mateus
mantém sua postura de negligência até serem dispensados.
Esperando por EDGAR, Tomas recebe uma nova mensagem de
E.V., com fotos dos dois garotos juntos antes do assassinato de Alexis. Ele
encaminha as mensagens a Matt, e finalmente consegue uma resposta
adequada. Os dois marcam de se encontrarem em um bosque no limite de
Eastview. Antes de deixar o colégio, Tomas percebe que FABIAN, ex-
melhor amigo de Alexis, está usando um sobretudo idêntico ao que E.V.
usava na noite do assassinato.
Tomas e Matt se reconciliam no bosque.
Certo de que Fabian é E.V., Tomas convence o jogador de basquete
a investigar a casa do garoto em busca de provas definitivas. Durante a
investigação, os dois quase são flagrados por Fabian, mas conseguem se
esconder a tempo.
Através de uma chamada do garoto com uma pessoa misteriosa,
eles descobrem que o sobretudo de Fabian não é único, mas parte de uma
coleção de cinco. Três deles estão em Eastview. Alexis e Fabian
presentearam um ao outro com as peças de roupas idênticas, o que significa
que o terceiro sobretudo em Eastview é o que foi comprado por E.V. Antes
de sair do quarto, eles conseguem descobrir quem é a pessoa no telefone com
Fabian: sr. Duarte.
Eles identificam a loja em que os sobretudos foram vendidos pela
etiqueta da peça de Fabian e deixam a casa sem serem pegos.
No caminho de volta, os dois garotos se desculpam, e a luz no fim
do túnel representada pela etiqueta parece ser a válvula de escape da tensão
erguida entre eles. Estão certos de que é apenas questão de tempo até
descobrirem a identidade do assassino de Alexis.
Quando entra em seu quarto, no entanto, Tomas se depara com uma
colagem de fotos suas e de Matt juntos, assim como uma mensagem deixada
em sangue por E.V. em uma das paredes.
E
RA UM DIA CONGELANTE DE JULHO, e, mesmo sob as camadas grossas
das roupas que as assistentes sociais escolheram pra mim, cada osso em meu
corpo tremia. Mas aquela era a última chance que eu tinha — a última chance
que qualquer um no orfanato teria — de encontrar um lar, uma família, antes
de sermos transferidos para a capital. Era assim que funcionava, uma das
assistentes me explicou. “As crianças mais velhas ficam na capital, as mais
novas no interior”. Por qual razão? Eu não sabia. Parecia uma desculpa cruel
para me afastar do pouco que eu conhecia.
Então mesmo que meus ossos tremessem, continuei firme atrás da
bancada na feira de adoção, encarando os rostos sorridentes de cada casal que
passava em minha frente, implorando com o olhar para que eles vissem como
eu era um garoto bom, como eu estava desesperado para continuar ali, entre
meus amigos, e não ser transferido para um lugar longe e desconhecido. Eu
não podia dizer coisa alguma a não ser que me perguntassem, logo fiquei
calado na maior parte da manhã.
Ao meu redor, garotos e garotas eram selecionados; um por um,
conforme o tempo passava. Os casais que participaram da feira naquele mês
pareciam particularmente felizes, as mães e os pais solos também. Famílias
inteiras passeavam entre as bancadas buscando seu novo membro. Eu ficaria
feliz com qualquer um deles.
Qualquer um.
Quando a manhã terminou, tentei não me abalar. Almocei sozinho,
escondido. Treinei meu sorriso, a postura correta. “Sorria o máximo que
puder”, as assistentes diziam. “E olhe-os nos olhos”.
E assim eu fiz ao longo da tarde inteira, mesmo quando os ventos
sopravam o anúncio de uma tempestade na hora do crepúsculo e o suéter que
eu usava já era inútil em me proteger do frio. Assim o fiz mesmo quando os
sons de risadas e conversas diminuíam lentamente à medida que os casais se
dispersavam e meus colegas eram encaminhados para suas novas famílias.
Mesmo quando não restava mais ninguém ao meu lado, mesmo quando eu
era o último órfão restante na feira.
Mesmo quando a noite chegou, e as assistentes me puxaram de
volta para o prédio do orfanato.
Quando comecei a empacotar as poucas coisas que tinha, meu
sorriso finalmente se apagou. As lágrimas silenciosas deixaram meus olhos:
silenciosas e amargas. Fiz tudo o que mandaram, e, mesmo assim, ainda não
tinha um lar, ainda não tinha uma família, ainda não tinha nada além de mim
mesmo.
Esperava apenas que São Paulo não fosse o lugar assustador que as
outras crianças costumam dizer. Eu não tinha razões para chorar. Era uma
nova oportunidade: talvez minha nova família estivesse me esperando lá. Em
algum lugar. De alguma forma.
Ou talvez eu fosse amaldiçoado demais para ter isso.
Fronteiraverso

Além da fronteira – volume 1


Além da escuridão – volume 2
Além da tempestade – volume 2.5
Além das chamas – volume 3
Além das cinzas – volume 3.5
Além do alvorecer (conto)
Além do crepúsculo (conto)

Eastverso

Garotos mortos não contam segredos – volume 1


Garotos mortos não contam mentiras – volume 2
GAROTOS MORTOS NÃO SANGRAM – VOLUME 3

Aquele garoto – volume 1
AQUELA FESTA – VOLUME 2
GAROTOS MORTOS NÃO SANGRAM
Copyright © 2021 Mark Miller.

Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de 19/02/1998. Proibida a reprodução deste
livro, no todo ou em parte, através de quaisquer meios, sem a permissão escrita do autor, exceto em
casos de pequenas citações usadas em resenhas ou artigos críticos.
Este livro é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares, organizações, eventos e incidentes são,
ou parte da imaginação do autor, ou usados de maneira ficcional. Quaisquer semelhanças com
indivíduos reais, vivos ou mortos, eventos ou lugares são inteiramente coincidentes.

Os direitos morais do autor foram assegurados.

Leitura Crítica: Brendon Idzi Duhring


Revisão: Brendon Idzi Duhring
Diagramação: Bruno Louvres, Mark Miller
Capa e Ilustrações: Senara Sousa
Ilustração de Personagens © Maísa Saraiva (@_maisart)
Emblema de Eastview © C. M. P. Vargas

Texto revisado segundo o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.


Primeira edição, 2021.
Para todos aqueles que querem entrar nessa história e proteger Tommy de todo mal, mas sabem que
seriam as primeiras vítimas de E.V. caso isso acontecesse :/
Sumário

6 ANOS ATRÁS
OUTROS LIVROS DO AUTOR
Sobre Eastview
Playlist
Aviso de conteúdo

PARTE I
UM
Dois
Três
PARTE II
Quatro
Cinco
Seis
GAROTOS MORTOS NÃO DESCOBREM VERDADES
Agradecimentos
Sobre O Autor
Eastview é um colégio particular de Ensino Médio fundado em 1903 pelo
benfeitor puritano Carlos Wolmer, localizado em Eastview, São Paulo.
Está na vanguarda da pesquisa acadêmica e intelectual. Aqueles
que se aventuram aqui - para aprender, pesquisar, ensinar, trabalhar e crescer
- se juntam a mais de um século de tradição e estudantes que buscam pela
verdade, conhecimento e pela construção de um mundo melhor.
Como a maior instituição de renome do Brasil, Eastview estará
sempre focada em criar oportunidades educacionais para os jovens que
representam o futuro da nação - e do mundo.
Esse livro possui uma playlist cuidadosamente organizada para
complementar a experiência de leitura. Acesse-a através do código abaixo
(abra a barra de busca do spotify, clique sobre o ícone da câmera e o
escaneie), ou busque pelas palavras-chave “Garotos Mortos Não Sangram –
Playlist Oficial” no serviço de streaming.
O BAILE DE FORMATURA DE EASTVIEW ESTÁ SE
APROXIMANDO
E
NCARO A RUA ESCURA À MINHA FRENTE DA PARTE TRASEIRA
DA AMBULÂNCIA. Estou sentado sobre o solo de metal do veículo
tentando manter meus pensamentos em ordem. Meus pés balançam para fora
sem alcançar o chão enquanto inspiro profundamente o oxigênio gelado e
seco da máscara esverdeada. Meus pulmões se expandem, e meus ossos
tremem. Fecho os olhos.
Expiro.
Ouço conversas de policiais ao longe. Os galhos das árvores que
circundam as laterais da rua balançam conforme a brisa se torna mais
violenta, alertando a chegada de uma tempestade. As folhas soltas e mortas se
arrastam pelo concreto das calçadas.
Quando uma mão repousa sobre meu ombro, me sobressalto. Abro
os olhos subitamente.
— Inspire — o médico trajado de branco comanda com um olhar
apaziguador. Em seguida, ajeita a máscara de oxigênio em meu rosto. Inspiro
outra vez. Meu coração desacelera lentamente, as pancadas contra minha
caixa torácica se apaziguam à medida que o oxigênio extra alcança meus
pulmões. Não sinto mais como se fosse desmaiar a qualquer segundo.
— Isso. Exatamente assim.
Ele balança a cabeça de forma encorajadora enquanto sigo
respirando. O ar faz um som estranho ao passar pelo tanque de metal
esverdeado, atravessar a mangueira transparente, a máscara, e então minha
tranqueia. Encaro a rua escura por mais alguns segundos, então tenho um
relance do prédio da delegacia à minha esquerda.
— Olhe pra mim — diz, e obedeço como que por reflexo.
Não há identificação em seu uniforme branco. Ele retira uma
pequena lanterna prateada de um dos bolsos e a acende. A luz branca e forte é
direcionada diretamente aos meus olhos, mas não causa desconforto.
Examina o esquerdo, e então o direito. Engulo em seco.
— Siga meu dedo — ele dita baixinho. Ergue o indicador da mão
livre, passeando-o de um lado para outro em meu campo de visão.
Após alguns segundos, o exame cessa e a lanterna é desligada.
Finalmente me sinto confortável o suficiente para afastar a máscara de
oxigênio e respirar sozinho.
— Você se machucou em algum lugar? — Ele analisa a parte de
trás da minha cabeça, minhas têmporas, e então toca meu queixo, virando
meu rosto de um lado para o outro. Nego com a cabeça. Ele expira fundo, a
expressão de alguém incomodado em fazer seu próprio trabalho sem poder
reclamar. — Então não acho que há motivos pra se preocupar. Continue
inspirando fundo, e o pânico deve passar — completa com uma voz apática.
Vira de costas antes que eu sequer possa responder.
Mas a voz ansiosa e profunda de Edgar me impede de pensar nisso
por muito tempo:
— Tomas!
Ele vem do interior da delegacia em minha direção, o crachá da
polícia preso em seu cinto no lado oposto ao coldre em que guarda a arma.
Seus passos rápidos e pesados quebram a monotonia dos sons de galhos e
folhas que ocupavam a rua até então. Me alcança em alguns segundos e,
como o médico, repousa a mão em meu ombro. Mas, ao contrário dele, o
olhar de Edgar é cheio de preocupação genuína, o que me transmite
segurança pela primeira vez desde que tive uma crise de pânico em meu
quarto após ler a mensagem deixada na parede por E.V.
Com a outra mão, Edgar toca meu rosto. O brilho de cuidado
paternal em seus olhos me lembra dos momentos em que pensei que jamais
teria isso... Dois, três, quatro anos atrás, quando acreditava que nunca teria
uma família de verdade.
— Me desculpa, eu tô... — tento elaborar, mas minha garganta
falha. — Ainda tô tentando processar. — Desvio o olhar para baixo e volto a
cobrir metade do meu rosto com a máscara de oxigênio.
Edgar assente, mas a preocupação em seu rosto não diminui.
Esfrega a barba por fazer com uma das mãos e se afasta um pouco; a outra
mão repousa sobre a cintura. Ele olha em todas as direções da rua ao redor da
ambulância.
— Tá tudo bem — murmura mais para si mesmo do que para mim.
Minhas memórias do que ocorreu entre o momento em que abri a
porta do quarto e acordei na ambulância estão enevoadas. Tento recobrar o
que aconteceu, sem muito sucesso, até que uma inquietação repentina me
atinge.
— Onde está Laura? — questiono.
A atenção de Edgar se volta imediatamente para mim. Ele fica
confuso por um milésimo de segundo, até que se dá conta de que o pânico
mexeu com minhas lembranças.
— Ela ficou em casa com a Samara para analisar a cena do crime
— responde.
— Aquilo era sangue de verdade?
Afasto a máscara do rosto definitivamente. A corrente de oxigênio
que vaza por ela produz um chiado baixo e contínuo.
Edgar nega com a cabeça.
— Não temos certeza. Se for alguém apenas tirando uma com você,
ou comigo, então provavelmente não. Mas precisamos de uma análise mais
profunda para descobrir.
Mordo o lábio inferior e meu coração dispara outra vez. Um
calafrio atravessa minhas entranhas ao pensar que dessa vez não há
escapatória. Se E.V. usou sangue de verdade para escrever a mensagem,
Edgar e a polícia irão descobrir, e não conseguirei mais mentir para eles. E,
mesmo se milagrosamente houver uma maneira de encobrir tudo isso, não
acho que seja seguro seguir fazendo o que E.V. quer. Se está mesmo um
passo à nossa frente, então qualquer investigação que eu e Matt tentarmos
fazer por conta própria será inútil. Precisamos de mais ajuda. Precisamos da
ajuda de Edgar.
— Você tem alguma ideia do que acabou de acontecer? —
questiona. Sua voz adquire um tom sombrio e desconfiado: sabe que sei de
mais do que deixo transparecer. — Quem tirou aquelas fotos? Quem fez essa
merda, Tom?
— Eu... — inspiro com dificuldade. — Eu...
Ergo os olhos até os de Edgar por um instante. Pela posição em que
se encontra, bloqueando parte das luzes dos postes mais distantes, se parece
com uma sombra; seus traços mais peculiares se perdem em meio à
penumbra. A imagem — e as lembranças que isso traz à tona — quase me faz
vomitar.
— Foi E.V.? — insiste em um tom gélido. A brisa noturna se torna
ainda mais forte, balançando veementemente as dobras do uniforme de
Edgar. — Você sabe quem é essa pessoa? Sabe por que está tentando brincar
com você desse jeito? — Ele se reaproxima e sua mão retorna ao meu ombro.
Se inclina em minha direção, o olhar cada vez mais próximo do meu, de
modo que posso ver os vincos profundos entre suas sobrancelhas. — O que
aquela mensagem significa? — sussurra. — Tommy?
Meus lábios se entreabrem, prontos para responder. Todos os meus
neurônios insistem para que eu diga tudo a Edgar, ali e agora. Mas o único
som que sai da minha garganta é o de uma expiração profunda.
Não posso. Não ainda. Não sozinho. Deveria, mas não posso.
Odeio me sentir egoísta por fazer algo para o meu próprio bem,
mas, ainda assim, é como eu me sinto. Crescer sem ninguém, sem nenhum
vínculo afetivo substancial, me fez aterrorizado em decepcionar qualquer um
que demonstre o menor tipo de afeto em relação a mim. Não quero
decepcionar Edgar, mas também não posso decepcionar Matt. Concordei em
não falar porra nenhuma, então não falaria porra nenhuma. Mesmo assim,
Matt precisa saber que E.V. foi longe demais, que não vamos simplesmente
nos livrar desse psicopata deixando-o brincar com nossas vidas.
O olhar apreensivo e cheio de expectativas de Edgar continua sobre
mim por todo o tempo que meus lábios levam até se fecharem novamente.
Me desvencilho de seu toque em meus ombros e pulo para fora da
ambulância. O policial parece confuso, e não o culpo. Que tipo de filho faz as
mesmas coisas que estou fazendo?
— Preciso de um tempo sozinho.
Não tenho coragem de encará-lo novamente enquanto me afasto em
direção ao interior da delegacia. Caminho rápida e ansiosamente. Sinto o
peso de seu olhar confuso em minhas costas, mas tento ignorá-lo.
Alcanço a porta do prédio escuro e a abro, logo sou envolvido pelas
luzes artificiais e exageradamente brancas de seu interior. Há um corredor
logo à frente, que leva à sala de interrogatório e às celas provisórias. À
direita, estão as mesas de Scooper, Edgar e Samara. Mais ao fundo, salas que
eu não sei para que servem, nem tenho interesse em descobrir. Preciso de
algum canto silencioso e isolado de onde possa ligar para Matt e contar toda
essa merda que está acontecendo.
Me apresso pelo corredor antes mesmo que Scooper — o único
policial no prédio neste momento — possa notar minha presença. Há um
banheiro no fundo do corredor que já usei antes, então me direciono até ele.
À minha esquerda, uma larga janela de vidro separa as salas de interrogatório
do corredor. À direita, estão as celas da delegacia.
Alcanço o banheiro, abro a porta e me tranco. Não penso muito.
Pego o celular que esteve dormente no bolso de trás do meu jeans e clico no
número de Matt entre os meus contatos. Inicio a chamada e me sento sobre o
vaso fechado. Engulo em seco. Tenho a sensação de que as coisas não irão
melhorar nesta noite, de que há algo estranho, perturbador acontecendo.
Talvez seja meu pânico tentando voltar. Talvez não. De qualquer forma,
espero Matt me atender do outro lado.
A linha toca, toca, e nada, até que um som irritante denuncia o
encerramento da ligação.
Cerro os dentes e curvo meu corpo inteiro em direção ao chão.
Apoio minha testa com a mão livre, os olhos arregalados. Matt está me
ignorando novamente? Por que faria isso? Achei que tivéssemos nos
resolvido em bons termos antes dessa merda toda acontecer.
Refaço a ligação: mais um minuto de chamada e nenhuma resposta.
Meu estômago se revira. Endireito minha postura e me recosto na parede de
azulejos brancos e frios atrás de mim. Encaro a parede pálida do cômodo
minúsculo. Uma sensação amarga sobe por minha garganta, algo queimando
em meu esôfago.
Disco o número dele pela terceira vez.
— Atende a porra do celular, Matt... — resmungo. Tento afundar a
frustação e a inquietação em algum lugar profundo dentro do meu peito.
Falho miseravelmente.
Dizem que a terceira vez costuma ser a certeira, não é mesmo? Mas
dessa vez não é. O som irritante da chamada encerrada por falta de resposta
se eleva, e perco qualquer esperança de conversar com Matt antes de
responder as perguntas de Edgar — de verdade.
Sem coragem de levantar, olho a porcentagem da bateria do celular
na tela de bloqueio.
Merda. Meu carregador ficou no quarto, no qual provavelmente
não vou poder entrar até muito mais tarde. Desligo o aparelho para conservar
esses míseros—
Algo grande e pesado é jogado contra a pequena janela do banheiro
na parede oposta à porta. Cada músculo em meu corpo se tensiona, e o
celular cai da minha mão, se espatifando contra o piso.
Com o coração prestes a pular do peito, encaro a janela e deixo
escapar de meus lábios um suspiro de alívio ao perceber que o estrondo foi
causado por um galho. Um galho de árvore. Foi apenas um galho, seu idiota.
Respiro fundo e tento me desfazer do susto. Apanho o celular do chão. A tela
agora tem mais alguns arranhões agora. Ótimo.
Isso é estúpido. Estou desconfiado e me assustando até com minha
própria sombra. Estou na delegacia, o lugar mais seguro em que poderia
estar. Se há algum lugar em que E.V. jamais conseguiria me alcançar, é aqui.
Com esse pensamento e diante da minha incapacidade de contatar
Matt, me dou conta de que preciso pensar rápido, e sozinho. Se eu não contar
a Edgar o que sei, estarei traindo sua confiança, mentindo em sua cara mais
uma vez, e agora ele sabe que há algo de errado. E.V. resolveu deixar claro
para todo mundo que há algo de errado. Onde estão as porras de suas
mensagens de assédio agora? Deve saber que estou na delegacia, por isso está
silencioso.
Reflito um pouco mais. Contar o que sei a Edgar parece a opção
mais lógica, mas estarei quebrando a promessa que fiz a Matt. Além disso,
algo será permanentemente quebrado entre nós. As duas opções parecem
erradas de maneiras diferentes. Droga.
Inspiro. Expiro. Inspiro. Expiro.
Alguém então bate na porta.
— Tommy? — É Edgar do outro lado.
Não tenho mais como evitá-lo. A verdade é que Matt e eu não
ficaremos vivos por muito tempo se continuarmos com isso, provavelmente
acabaremos à sete palmos debaixo da terra, bem como Alexis. A única coisa
pior do que perder Matt seria vê-lo machucado.
Tomo minha decisão, mas antes preciso informá-la a Matt. Devo a
ele ao menos isso.
Levanto do vaso e encaro a janela do banheiro uma última vez.
Seria engraçado se eu a abrisse, me atirasse por ela e corresse para longe dali.
É o que meu coração me manda fazer, mas meu cérebro está cansado de
mudanças. Finalmente tenho uma casa. Finalmente tenho uma família.
Eastview é meu lar, e não deixarei mais um maldito psicopata perturbar isso
dessa forma.
Abro a porta.
— Eu vou te contar tudo — declaro, um pouco incerto, mas
decidido. Ergo a nuca até meus olhos encontrarem os orbes semicerrados do
meu pai adotivo.
— O quê? — Ele dá um passo para trás.
Saio do banheiro e fecho a porta atrás de mim.
— O que sei sobre E.V., sobre as fotos, sobre as mensagens... —
murmuro enquanto caminho pelo corredor de volta à recepção. — Vou te
contar tudo. — Edgar vem logo atrás de mim. — Mas preciso falar com Matt
antes.
Edgar me para com a mão em um dos meus ombros. Sou obrigado
a virar e encará-lo.
— Mateus Armani? — Ele ergue as sobrancelhas. — O garoto com
quem você brigou mais cedo? — Parece genuinamente confuso por um breve
momento, até que se lembra: — Tem algo a ver com aquelas fotos, não tem?
Esfrego minha própria nuca, fugindo de seu olhar questionador.
— É... — balbucio, mas acabo engasgando com minha própria
saliva. — É complicado — minha voz sai mais vacilante do que o normal.
Edgar ajeita o cinto escuro e pigarreia.
— Pois então trate de descomplicar isso agora, rapazinho. Não
estou entendendo o que está acontecendo, e não gosto disso, Tommy — diz.
Engulo em seco. — Sou seu pai, você precisa ser honesto comigo.
Isso me atinge como um soco no estômago. Me sentindo
enclausurado por aquela conversa, olho para trás, em direção à recepção. Por
que falar sobre Matt com Edgar, ou com quem quer que seja, é tão difícil?
— Eu sei disso, mas não posso... — me viro em direção ao policial
novamente. — Não antes de conversar com Matt. — Suspiro profundamente.
Afasto a mão da nuca e volto os olhos aos dele. — Eu fiz uma promessa,
Edgar. Sinto muito.
Algo nas feições do meu pai muda, e não da forma como eu
esperava. Ele cerra os punhos, ao passo que sua expressão congela pelo mais
breve dos segundos. Um brilho peculiar atravessa seu olhar. Um brilho frio e
feroz, do tipo que se vê nos olhos de um leão no instante antes de vê-lo cravar
seus dentes na presa indefesa mais próxima. E, tão rápido quanto apareceu,
aquele brilho se desfaz, deixando em seu lugar apenas o pai preocupado e
policial frustrado.
Quando finalmente abre a boca outra vez, sua voz tem um tom
ríspido incômodo, como o som de uma lâmina ao ser afiada em metal
enferrujado.
— Essa pessoa invadiu nossa casa, invadiu seu quarto, enquanto
sua mãe estava lá. Fotos do suicídio de Alexis? De você e Matt juntos em
uma floresta? A mensagem pintada em tinta que lembra demais sangue? —
Cada sílaba é cuspida com severidade. Há algo de bastante diferente nele.
Diferente o suficiente para fazer meu corpo se afastar inconscientemente. —
E você não pode me explicar por que fez uma promessa ao garoto que te
socou mais cedo? — Seu pescoço se inclina para o lado lenta e sutilmente.
Olho para trás pela segunda vez e penso na voz de Matt. Na maldita
voz de Matt. Na forma desesperada com que ele me pediu para manter tudo
em segredo. Me sinto acorrentado. Acorrentado a ele e acorrentado a Edgar.
Ambas as correntes me puxam para lados opostos e me despedaçam.
— Não foi um suicídio — as palavras pulam de mim antes que eu
possa hesitar.
Fecho os olhos. Paro de respirar. Por um momento, fico sozinho em
minha própria escuridão, contemplando a merda catastrófica que fiz. Mas não
há mais volta, não quando Edgar diz:
— O quê? — E toca meus ombros.
Minhas pálpebras se abrem vagarosamente e, embora um fundo de
dor comece a se intensificar em meu peito — sei que Matt jamais vai me
perdoar —, meus ombros relaxam. Estou falando a verdade. Estou ajudando a
todos com isso. É o que preciso fazer. Talvez o maior vilão desta história, até
mesmo mais que E. V., seja a situação fodida em que Matt e eu fomos
colocados.
— Alexis não se suicidou — falo ao reencontrar as íris escuras de
Edgar.
Como esperado, ele está atônito. Tem vincos profundos na testa, os
olhos estreitados e os lábios apertados, uma mistura de perplexidade e euforia
manchando sua expressão quase sempre calma e sábia.
— E como você sabe disso, Tomas? — murmura desconfiado. Sua
mão se afasta de mim e descansa sobre o coldre de sua arma: está alerta.
Reviro os olhos e mordo o lábio inferior tentando pensar na melhor
forma de explicar isso. Eu deveria mentir? Deveria tentar esconder a
participação de Matt? Mas como explicaria o caralho daquelas fotos na
parede?
Não havia uma forma boa de falar: existia apenas a verdade. Então
que fosse.
— Eu não tava fazendo um projeto idiota de mecânica naquela
noite. Tava em Eastview, e vi... — me interrompo. A lembrança daquela
noite, daquele corredor com as luzes piscando, do ambiente anormalmente
gélido, faz um calafrio atravessar minha espinha. — Eu vi Alexis ser
assassinado.
— Você o quê? — Ele explode, e sua voz ecoa pelos corredores da
delegacia.
Mesmo de longe, percebo quando Scooper deixa de fazer qualquer
merda que estivesse fazendo na recepção pra prestar mais atenção em nossa
conversa.
— Eu vi ele ser assassinado... — completo tentando ignorar a
cortina densa de incompreensão no rosto do meu pai. — Mas não consegui
ver quem era o assassino.
— E por que diabos você esperou até agora para me contar isso? —
A incompreensão se mistura a frustração e fúria.
Me sinto tão vil, tão nojento quando percebo que ter escondido essa
informação foi a coisa mais cruel que já fiz na vida. Cruel com os pais e
amigos de Alexis. Cruel com Fabian. Cruel com Edgar e todo o corpo
policial. Cruel com todos ao meu redor. E me sinto pior ainda ao perceber
que a fonte de toda essa crueldade... é alguém que amo.
— Porque... — balbucio outra vez, mas não engasgo. Inspiro fundo
e encaro meu pai. — Eu não estava sozinho quando aconteceu.
Ele não sustenta meu olhar por muito tempo no entanto. Observa o
chão por alguns segundos, a parede transparente à nossa esquerda e então o
chão outra vez. As peças sobre mim e Matt, as fotos e E.V. se encaixam em
sua cabeça antes mesmo que eu tenha que cuspir tudo.
Quando volta a me fitar, sua expressão parece apática, a tela branca
da morte de um celular que acabou de se espatifar no chão. Ele poderia
vomitar ali mesmo, gritar ou cair morto no chão: eu não conseguia ler nada
em seu rosto. Era como se vestisse a máscara branca sem expressão de
Michael Meyers sobre sua própria pele.
Arrepios navegam por minha nuca e penso em dizer alguma coisa
para retirá-lo daquele transe, mas, graças aos céus, não preciso. Um aviso
sonoro sai de seu rádio comunicador, e uma voz irritante soa do outro lado:
— Villareal, está na escuta?
Edgar pisca duas vezes antes de dar um passo para trás e apanhar o
aparelho. Ele desvia o olhar de mim e permanece distante enquanto responde:
— Estou. O que houve?
— Um arrombamento. Rua Ellantriz, 446.
— Ótimo — sussurra irritado para si mesmo antes de responder ao
rádio. — Não temos mais ninguém disponível?
Me afasto até me recostar na parede mais próxima. Cruzo as mãos
atrás das costas; meus dedos são os primeiros a sentirem o frio da janela de
vidro incorporada à parede que separa a sala de interrogatórios do corredor.
O que Edgar faria com aquela informação? Os policiais
conseguiriam descobrir quem é E.V. se encontrassem digitais ou alguma
porcaria dessas em meu quarto? Eu precisaria ficar aqui por muito mais
tempo? Poderia ser acusado de algo por ter escondido o que sabia até agora?
E quanto a Matt?
Minha cabeça roda, roda, roda, e eu não tenho resposta para
nenhuma dessas malditas perguntas.
— Não, senhor — a voz do outro lado do rádio comunicador
responde. É Samara.
Mas se Scooper está na recepção, não deveria ele receber qualquer
tipo de chamado? Por que um arrombamento seria reportado a Samara, e
então a Edgar?
E, mesmo em meio a tudo isso, não consigo deixar de me
perguntar: por que Matt não atendeu minhas inúmeras chamadas?
Me volto na direção da entrada da delegacia outra vez, o cenho
levemente franzido.
— Estou a caminho. — As palavras de Edgar me chamam atenção.
Olho para ele, que encarava a porção exposta do meu pescoço enquanto eu
estava voltado para a recepção. O policial desliga o rádio e o coloca de volta
no compartimento do cinto. — Fique na delegacia com Scooper. Quando eu
voltar, vamos ter uma conversa longa e séria — diz em uma voz gélida.
Expiro aliviado sem que ele perceba, e só então percebo o muro de
tensão que se ergueu entre nós desde que essa conversa começou. Eu só
queria que isso acabasse logo. Que tudo acabasse logo.
— Eu vou te contar tudo — murmuro para acentuar meu
arrependimento. — Sinto muito por não ter contado antes.
Ele inspira profundamente, e temo de que reaja de forma fria outra
vez. Mas o policial esfrega a barba por fazer e acena veementemente. Há
compreensão em seus olhos.
— Volto em uma hora no máximo — é tudo o que responde.
Aponta para o meu peito com o indicador como se me ordenasse a
permanecer neste exato local até que retorne. Posso ver que ainda há
preocupação e desconforto em seu rosto, mas quando me dá as costas e
caminha para fora da delegacia, algo me diz que estarei bem aqui, que estarei
seguro desde que continue dizendo a verdade, que não esconda mais nada de
ninguém.
E isso inclui Matt.
Preciso que ele saiba o que acabei de fazer pela minha própria
boca. É a única chance que tenho de ele não me odiar para sempre.
Encaro a extremidade do corredor, a porta do banheiro onde tentei
ligar para Matt. Meu celular está fodido, tentar usá-lo novamente é inviável.
Talvez o de Matt também esteja. Talvez ele não tenha me ignorado de fato, só
não atendeu por algum outro imprevisto.
Pelo que consigo calcular, Matt já deve estar em casa. Já que tentar
entrar em contato com ele por alguma rede social agora é inútil se ele estiver
mesmo sem celular, a linha fixa dos Armani é minha melhor alternativa para
conversar com ele antes que tudo isso exploda em nossos rostos. Com a saída
de Edgar, só resta Scooper na delegacia. Viro o rosto para a outra
extremidade do corredor e caminho até a recepção.
Ainda há um telefone que posso usar.

— EI, TOMMY — Scooper fala quando me aproximo vindo do corredor.


Caminho em direção à sua mesa. — Você tá bem depois do que aconteceu?
O policial de trinta e poucos anos tem o olhar pesado do que parece
ter sido um dia cansativo de trabalho. Apesar disso, sua voz é alta e
convidativa, menos grave do que a de Edgar. Mesmo sob o cansaço, ele me
recepciona com um sorriso cordial.
— Tô bem, obrigado — minto. Não posso deixar o resto da noite
atrapalhar meu raciocínio.
Scooper pigarreia e se acomoda melhor na cadeira de couro
sintético com muitas marcas de uso, o que gera um barulho irritante. Suas
mãos repousam sobre a mesa enquanto ele se inclina sobre ela. É quando
percebo as bandagens brancas que cobrem sua palma direita. Assim que nota
meu foco de atenção, afasta a mão enfaixada de vista, escondendo-a sob a
superfície da mesa.
— Foi um acidente idiota — explica com uma expressão
despretensiosa. Uma risada curta escapa de seus lábios em seguida. Ele
encara a superfície de madeira da mesa por um momento, como se
conseguisse enxergar sua mão machucada através dela, e então retorna o
olhar a mim. — Se você precisar de qualquer coisa, é só me fal—
— Na verdade, preciso — interrompo, ansioso demais. É vez dos
meus olhos desviarem até a mesa do policial. — Posso usar o telefone da
delegacia? — Encaro o objeto anil logo à minha frente.
Scooper deixa a postura correta de lado e se recosta na cadeira,
inclinando-se para trás. O som irritante do móvel ecoa pela delegacia vazia
outra vez. Ele não responde imediatamente, parece pensar no meu pedido por
alguns segundos, seus olhos pairando ora sobre mim, ora no telefone. Minha
ansiedade aumenta diante do silêncio, até que ele diz:
— Claro. Por quê?
— Tem uma pessoa com quem preciso falar — respondo, e meu
estômago se embrulha frente à conversa que terei com Matt. — Talvez ele
caia na real de que é algo urgente quando ver o número da delegacia —
continuo, um tanto perdido em meus pensamentos.
— Ele? — Scooper volta a ajustar a postura na cadeira.
— Como assim?
— Você falou “ele”.
Oh. Neste ritmo, logo estarei contando a Scooper sobre o
assassinato que eu e Matt estamos ajudando a encobrir.
— É um amigo. — Reviro os olhos.
A expressão do policial permanece enigmática por um tempo, não
responde de imediato. Depois, assente sutilmente e empurra o telefone em
minha direção.
— Boa tática — é tudo o que responde.
Me forço a abrir um sorriso curto em agradecimento e apanho o
maldito telefone. O aparelho tem fio, então não posso levá-lo para muito
longe de Scooper. Retiro o telefone do gancho, aproximo o microfone dos
lábios e o alto-falante do ouvido esquerdo. Me concentro até me lembrar do
número da linha fixa da casa de Matt, e o olhar curioso de Scooper não ajuda.
Engulo em seco. Depois de alguns segundos, digito cada número
no teclado. A linha toca. Me viro para encarar a parede e a porta aberta da
delegacia, fugindo do olhar desconfortante do policial na mesa. Tenho a
impressão de que ele se aproxima para ouvir a voz do outro lado, mas a
cadeira não faz o barulho irritante de antes, então pode ser coisa da minha
cabeça. Continuo encarando o lado oposto da sala, e meu coração
praticamente para quando a ligação é atendida:
— Alô?
Cerro os dentes diante da voz rígida e desagradável. Merda.
— Sr. Armani, o Matt tá em casa?
— Quem tá falando?
— Um amigo.
— Que amigo? — a voz se torna ainda mais ríspida e mais
desagradável.
Inspiro fundo, e cuspo:
— Ele tá ou não em casa? Tô ligando da delegacia, é uma situação
urgente.
— Espera... Eu reconheço a sua voz. — Aperto minhas pálpebras
com força. Tenho vontade de desligar, mas continuo firme. — Eu
reconheceria a voz de um viadinho em qualquer lugar. — Nego com a
cabeça. Inferno. Inferno. Inferno. Essa foi uma péssima ideia. — Por que está
ligando da delegacia? — ele continua, a voz mais próxima do telefone,
sussurrante. — Quer denunciar meu filho pelo soco que levou mais cedo?
— Não, eu não quero—
— Escute aqui, garoto: fique bem longe do meu filho. Eu conheço
sua raça. Sei o quanto são mesquinhos e inconsequentes. Não é o tipo de
companhia certa para Mateus.
Meu arrependimento se transforma em fúria em um piscar de olhos.
— O que você quer dizer? — questiono, a mandíbula rígida, o
coração acelerando mais e mais em meu peito.
— Quero dizer que você deve ficar o mais afastado do meu filho
que puder... se não quiser ter mais problemas.
O pai de Matt desliga antes que eu possa rebater. Fico em choque
por alguns segundos, meu peito subindo e descendo profundamente, o
telefone ainda encostado em meu rosto.
Esse homofóbico de merda. Esse maldito homofóbico de merda.
Esmago o telefone contra o gancho e me afasto da mesa de Scooper
com passos apressados e pesados.
— Tommy? — A voz do policial ecoa atrás de mim enquanto volto
ao corredor que leva às salas de interrogatório.
— Vou esperar pelo Edgar — respondo sem olhar pra trás. Cada
osso em meu corpo parece tomado por fúria, mas uma dor recrudescente
surge em meu peito ao pensar... pensar que Matt vive numa casa com um
monstro como aquele.
A
NOITE PARECE NÃO TER FIM.
Me curvo em direção à mesa no centro da sala de interrogação,
deito a cabeça sobre meus braços cruzados e fecho os olhos. Apesar do
cansaço, não tenho sono. Tenho apenas medo... e um senso de desespero que
só me lembro de ter sentido anos atrás, quando as feiras de adoção se
encerravam e eu era a criança que restava sem um lar.
Meus pensamentos me sufocam. Quero desligar minha mente de
tudo por um momento — apenas um maldito momento —, mas não consigo.
Meu celular está desligado, então estou longe das mensagens de E.V. Isso,
pelo menos, é uma vitória. Logo esse desgraçado estará aqui, nesta mesma
sala, nessa mesma delegacia, recebendo tudo o que merece.
Mas onde está Matt? A conversa com seu pai foi inútil para me dar
alguma ideia de sua localização. Será que está em casa? Teria outra coisa
para fazer depois de nos despedirmos?
E quanto a Edgar? Estou há quase uma hora esperando por ele
nesta sala. Certamente um arrombamento em Eastview não levaria tanto
tempo para ser solucionado, certo? Ou será que se tratava de algo mais grave?
Sinto uma corrente de vento fria acariciar minha pele apesar do
ambiente fechado da sala. Ajeito minha postura na cadeira desconfortável de
metal e dou uma olhada ao redor. As paredes da sala são pintadas de um tom
pálido de cinza, interrompidas apenas pela janela translúcida e o tom
amarronzado da porta à minha esquerda.
Engulo em seco. A temperatura da noite apenas está diminuindo,
não há motivos para me preocupar tanto. Matt certamente está seguro, e
talvez esteja com Babi. Edgar, por sua vez, tem quase vinte anos de
experiência como policial, sabe como se cuidar sozinho.
Eu deveria me preocupar mais é comigo mesmo.
Encaro o corredor através da janela e estreito os olhos. A delegacia
vazia e silenciosa no meio da noite me deixa calmo e desconfortável ao
mesmo tempo. Por um segundo, consigo me colocar no lugar de Alexis,
sendo asfixiado no chão do laboratório de biologia enquanto me encarava
através do vidro.
O pensamento me assombra.
Levanto da cadeira preparado para sair da sala de interrogatório
quando ouço um estampido alto e abrupto da direção da recepção da
delegacia. Soa como algo que foi derrubado no chão e quebrado com força.
Paro de me mover imediatamente. Cada músculo em meu corpo se
tensiona. Encaro o corredor através do vidro, meu estômago se embrulha.
Talvez não seja nada.
— Scooper? — chamo em um tom alto o suficiente para que ele
possa ouvir.
Algo em meu peito afunda enquanto aguardo pela reposta do
policial. Uma resposta que não vem. Ao invés disso, o som de algo se
partindo violentamente se repete.
Uma.
Duas.
Três vezes.
Merda.
Meu coração acelera. Meu cérebro me manda abrir a porta da sala e
voltar à recepção para ver o que está acontecendo. Meu corpo me manda
continuar ali e esperar até que Scooper me responda.
Me aproximo da janela do corredor, tentando enxergar algo na
direção da entrada da delegacia, mas não consigo: o corredor é extenso
demais. Apanho o celular de um dos bolsos do meu jeans e tento ligá-lo,
talvez aqueles 2% de bateria não tenham sido drenados. Mas é inútil, a
porcaria está totalmente morta. Porra.
Olho ao redor na sala: não há nada que eu possa usar como arma,
mesmo a cadeira e a mesa de metal são parafusadas no chão. A única coisa
que tenho para me defender é o celular desligado. Ótimo. Sigo sem me
mover, esperando que Scooper dê algum sinal de vida a qualquer momento.
Então ouço a porta da delegacia ser fechada.
Que caralho está acontecendo? Isso é demais para mim.
Engolindo meu senso de autopreservação, me aproximo da porta da
sala de interrogatório e a abro lentamente. Coloco o primeiro pé no corredor.
Aqui, as luzes no teto piscam e falham como se houvesse um problema na
fiação. Toda essa merda se parece demais com a noite do assassinato de
Alexis, só que desta vez estou sozinho.
Armado com meu celular, dou um passo de cada vez em direção à
recepção. De longe, noto que a porta da delegacia está fechada. Não sei por
que Scooper faria isso, especialmente antes de Edgar retornar. Tento
controlar minha respiração. As luzes do corredor continuam piscando, e o ar
fica cada vez mais frio.
Na recepção, as luzes piscam com mais intensidade; a fiação parece
estar em completo colapso. Scooper está sentado atrás de sua mesa de costas
a mim. Sua nuca está levemente curvada para baixo, talvez o cansaço tenha
lhe pegado no meio do turno e acabou dormindo.
Olho ao redor, buscando pelo que escutei ser quebrado. Não acho
nada.
— Scooper — me volto ao policial —, tá tudo bem?
Aguardo alguns segundos, esperando que meu tom tenha soado alto
o suficiente para acordá-lo. Mas não tenho resposta, apenas a visão de suas
costas sob as luzes oscilantes. Engulo em seco. Guardo o celular de volta no
bolso e me aproximo da porta da delegacia, Scooper deve tê-la fechado antes
de tirar seu cochilo. Tento puxar a maçaneta para dentro, mas não consigo
abri-la. Forço inúmeras vezes, mas a porta não se mexe. Está mesmo
trancada.
Ele simplesmente esqueceu que estou aqui?
— Merda — resmungo para mim mesmo. — Scooper — viro o
pescoço na direção dele —, preciso da chave. — Ele não se move, nem faz
menção de me responder. Sua nuca segue curvada para baixo, os membros
inertes. Tudo o que o ouço é o zumbido distante e irritante da fiação em
colapso da delegacia. Bufo e me aproximo do policial. — Talvez eu deva
esperar por Ed... — balbucio quando toco seu ombro e o faço virar em minha
direção.
A cadeira vira, e eu caio para trás.
— Porra!
Meus cotovelos e minha lombar sentem a maior parte do impacto
contra o piso frio e polido, mas é minha mente que é completamente fodida.
O peito de Scooper está completamente aberto: costelas brancas
quebradas e arrancadas da posição normal; um buraco vazio entre os pulmões
onde o coração deveria estar; sangue manchando a parte frontal de seu
uniforme, de seu rosto, de seu corpo. A nuca está curvada para baixo, os
olhos fechados. Mas ele não está dormindo.
Está morto.
Completamente horrorizado, cubro minha boca com as duas mãos,
abafando meus gritos, e me arrasto pelo chão até a parede oposta à mesa do
policial. Meus olhos se arregalam e algumas lágrimas gélidas de horror me
deixam. Por um momento, não consigo pensar, raciocinar, fazer qualquer
coisa além de me afundar nesta parede e encarar o corpo de Scooper.
Quem... quem poderia?
Quando esboços e retalhos da resposta começam a se formar em
minha mente, entro em desespero. Me levanto do chão. Meu estômago se
embrulha e, apesar da avassaladora vontade de vomitar, me forço a me
aproximar do corpo de Scooper novamente. Desta vez, para apanhar o
telefone de sua mesa.
Minhas lágrimas se intensificam quando alcanço o objeto. Fecho os
olhos, tentando fugir do horror da cena enquanto retiro o telefone do gancho
e digito o número de Edgar. Aperto o botão para iniciar a chamada, mas não
ouço nada do outro lado, nem mesmo o som irritante da conexão. Reabro os
olhos e puxo o fio escuro e emborrachado que conecta o aparelho à linha.
Está cortado pela metade.
O telefone cai de minhas mãos. Meu coração para de bater por um
segundo, minha visão escurece, o tempo desacelera. Fico paralisado. Até
lembrar da porta. Foi trancada por dentro, provavelmente com a chave de
Scooper. Se eu conseguir recuperá-la, estarei salvo.
Cerro a mandíbula e me forço a olhar para o corpo desfigurado do
policial em busca de suas chaves. Não há nada além do telefone e alguns
papeis sobre a mesa dele, nem parece haver um molho de chaves preso em
seu cinto. Droga. Talvez esteja em um dos bolsos de sua calça, ou talvez
esteja—
As luzes piscam, mas desta vez ficam apagadas por mais tempo. Na
breve escuridão, entre meu desespero e os pensamentos caóticos, ouço o
molho de chaves ser balançado no mais suave dos movimentos. Metal
encontra metal, o estampido estranhamente delicado que duas chaves fazem
ao se tocarem.
Em meus ossos, em minhas entranhas, sei quem está balançando o
molho de chaves de Scooper antes mesmo das luzes voltarem a iluminar a
recepção. Quando voltam, uma figura coberta por um sobretudo longo e
grosso está à minha direita.
N
ÃO HÁ TEMPO PARA PENSAR. Não há lugar para me esconder. Não há
ninguém na delegacia além de mim e E.V. A porta está trancada e as chaves
estão em uma de suas mãos. Na outra, está um longo e afiado machete
coberto de sangue.
Não tenho nada com o que possa me defender. Mesmo se a arma de
Scooper estivesse por perto, eu não saberia como usá-la. Não há nada afiado
o suficiente para desafiar o machete. Além disso, as sombras que cobrem o
rosto de E.V. parecem mais cínicas do que quando o vi asfixiar Alexis. Sei
que ele quer me matar.
Por isso, quando as luzes piscam novamente, corro na direção
oposta a dele. Cruzo o corredor e fixo os olhos na porta amarronzada do
banheiro em seu fim, o único lugar em que terei qualquer chance de
sobrevivência. Não tenho as chaves das celas ou da sala de interrogatório,
mas posso trancar o banheiro por dentro. A porta é de madeira, o que
significa que terei alguns segundos — minutos no máximo — até ele
arrombá-la com a lâmina.
É minha única maldita chance.
Corro sem olhar para trás, sem pensar em nada além do meu desejo
desesperado de sobreviver. Estou fodido. Estou completamente fodido.
Mesmo que por um milagre alguém apareça na delegacia neste momento, não
tenho certeza se será o suficiente para parar E.V.
Scooper certamente não foi.
As luzes do corredor piscam intensamente como as da recepção.
Ouço os passos pesados do assassino de Alexis atrás de mim: está correndo.
Não olho para trás para ver o quanto, mas sei que está próximo.
A porta do banheiro está entreaberta. Me atiro contra ela nos passos
finais e a tranco imediatamente antes do machete de E.V. penetrar na madeira
com violência, rompendo-a como se fosse uma folha de papel. Caio para trás,
no chão, e bato a parte de trás da cabeça na parede oposta à porta. Não sinto a
dor, meus sentidos estão completamente entupidos de adrenalina. Estou sem
fôlego. Sem defesa. Sem saída.
Observo estupefato a lâmina do manchete ficar presa entre as
farpas da madeira cortada e então ser puxada para trás bruscamente. Levanto
do chão e me mantendo o mais afastado o possível da porta.
— O que você quer? — grito para o outro lado da porta, enfurecido
e exasperado. — Eu não falei nada, o que mais você quer de mim, porra? —
Nenhuma voz ecoa do outro lado. Ao invés disso, faz-se um longo período de
silêncio. Não há sons de passos, machetes rasgando madeira ou mesmo
respirações. É como se E.V. tivesse desaparecido em pleno ar. — Uh? Ou
você só gosta muito de matar garotos inocentes? — insisto mais alto, mas não
ouço nada em retorno.
Durante o breve momento de silêncio, me dou conta do caralho de
um detalhe crucial: a janela do banheiro. Ergo o pescoço para cima e, dito e
feito, ali está a maldita. Como não pensei nisso antes? A pancada na cabeça
deve ter me dado uma concussão ou algo do tipo.
Tenho uma saída. Tenho uma maldita saída.
Preciso ficar na ponta dos pés e esticar meus braços até seus limites
para alcançá-la, mas consigo abrir a tranca frágil que a mantém fechada. O
espaço é muito apertado — claustrofobicamente apertado — e não tenho
certeza se consigo passar por ele. Talvez sim, talvez não. Terei que me enfiar
por ela para descobrir.
Antes de fazê-lo, no entanto, ouço a lâmina do machete de E.V.
passar pela porta. Me volto para trás e encaro o buraco aberto na madeira. Ao
invés de sombras e luzes piscantes do outro lado, me deparo com a única
imagem que jamais pensei que veria: o olho do assassino de Alexis e de
Scooper.
Ele me fita diretamente. Não consigo analisar muito de sua
expressão ou ver o resto de seu rosto, mas a íris está ali, clara como o dia.
Sua cor é a primeira pista que tenho de sua identidade, ainda assim, perco
todas as minhas forças por um instante.
Não pode ser. Não pode ser. Devo estar alucinando.
Ele não perde muito tempo no contato visual, no entanto. Seu olho
desaparece do buraco na porta e logo o machete volta a rasgar a madeira de
forma impiedosa.
— Merda!
Ele continua dilacerando a última barreira entre nós de maneira
brutal. Não tenho mais tempo a perder, então me agarro na janela e me
impulsiono para cima. Meus braços e minha cabeça passam facilmente, mas
meus ombros ficam presos.
— Ugh... Merda.
Tento não me desesperar. Esmago o ombro direito contra a lateral
da janela e consigo abrir uma brecha suficiente no lado esquerdo para esticar
meu braço um pouco mais, impulsionando o resto do corpo de pouco em
pouco. Repito o processo ao menos dez vezes até meus ombros estarem
livres, o resto do meu torso e minhas pernas deslizam para fora sem
problemas.
A queda é alta, e minha cabeça é a primeira a encontrar o concreto
duro que recobre a parte de trás da delegacia. Tento usar meus braços para
me proteger, mas não tenho muito sucesso. Meu pescoço torce para trás e o
resto do meu corpo despenca sobre meus ombros. Ouço algo torcer entre
meus ombros e minha clavícula, o mundo inteiro gira logo em seguida.
Deitado no chão, sinto dores agonizantes irradiarem da minha testa
e do ombro direito, provavelmente o torci. Toco minha testa com a mão
esquerda e sinto um largo corte. Meus dedos se mancham com meu próprio
sangue.
Não consigo me mover por segundos longos e dolorosos. Minha
cabeça parece prestes a explodir. Sinto agonia apenas de pensar em mover o
ombro torcido. Fico no chão, gemendo, concentrado em minha respiração.
Depois do que parece ser um ou dois minutos, percebo que os sons do
machete de E.V. dilacerando a porta do banheiro pararam completamente.
Ele está vindo atrás de mim. Merda.
Mordo minha língua e grito baixinho para mim mesmo quando
tento me colocar de pé. Preciso me apoiar na parede atrás de mim com a mão
esquerda para não cair. Lágrimas escapam a cada movimento, sangue escorre
da testa até o queixo. Preciso encontrar alguém, qualquer um que possa me
ajudar. O corpo de Scooper ainda está na recepção, então quem quer que
tenha as chaves e consiga entrar pela porta de entrada o encontrará
imediatamente, logo se dará conta do tamanho da merda que está
acontecendo.
Dou alguns passos à frente, mas paro logo em seguida para analisar
meus arredores. Não há muita coisa na parte de trás da delegacia: alguns
arbustos, uma rua deserta e totalmente escura, e um carro.
Um maldito carro estacionado em uma das vias da rua.
Não penso duas vezes: corro na direção dele. Ou melhor, tento
correr. Os passos rápidos são tortuosos, e a dor em meu ombro apenas
aumenta. Tento segurá-lo, mas o toque quase me faz desmaiar. Mordo meu
lábio inferior tão profundamente que a pele se rompe, mas sigo em direção ao
carro. Inspiro rápida e profundamente, a adrenalina que antes me dominava já
me deixou quase completamente. Agora só sinto medo e angústia.
Apesar de tudo isso, consigo alcançar o carro. Parece ser o veículo
de Scooper. Tento abrir a porta por fora, puxando-a com toda minha força,
mas está trancada. É claro que está. Engulo em seco, me desesperando. Soco
o vidro da porta, tento arrombá-la com toda a força do meu braço esquerdo,
mas é patético. Estou perdido.
Pelo menos até desviar o olhar para o chão e encontrar minha
salvação: um tijolo avermelhado. Suspiro. Me agacho. Apanho o objeto
pesado e frio. Observo o centro da janela do assento do motorista e, com um
impulso que faz meus olhos revirarem de dor, atiro o tijolo contra o vidro.
O vidro quebra em algumas dezenas de pedaços e o alarme do carro
dispara imediatamente. O som irritante fere meus ouvidos de tão perto que
soa. As luzes dos faróis também piscam em aviso.
Enfio a mão na parte interna da porta e tento achar a maldita tranca;
basta isso e estou salvo. Dois bipes soam e o alarme do carro é desligado, os
faróis se apagam. É quando ouço o balançar do molho de chaves de Scooper
atrás de mim outra vez e fico paralisado.
Mesmo que eu consiga entrar no carro, a chave está naquele molho.
Cada músculo em meu corpo se retesa. Sinto tanta raiva de mim
mesmo e do psicopata atrás de mim que a dor em meu ombro desaparece pelo
mais breve dos segundos. Retiro meu braço do interior do carro. Lentamente,
me viro em direção à parte de trás da delegacia.
E.V. está ali, o molho de chaves com o controle do alarme do carro
balançando em uma das mãos, me provocando, e o machete na outra.
Não tenho mais para onde correr. Em qualquer direção, em
qualquer cenário, ele me alcançará rapidamente, seja por conta do meu ombro
torcido ou dos meus sentidos que lentamente parecem desligar. O corte em
minha testa tampouco parece superficial, provavelmente vou apagar em
breve.
— O que você quer? — grito entredentes. Minha mandíbula está
tensa pela dor, mas não deixo que isso transpareça em meu rosto. Não darei a
ele essa última vitória. — Não acha que me deve uma maldita resposta antes
de rasgar minha garganta com essa coisa? — Ele desvia a atenção de mim
para o machete por um momento. — Por que você fez tudo isso? Por que
matou Alexis? Por que tirou aquelas fotos? — A íris que vi no buraco da
porta invade minha mente. Uma lágrima de mágoa deixa meu olho quando
me dou conta de quanto tempo passei próximo dessa pessoa, da pessoa que
cometeu todas essas atrocidades. — Confiei em você — é o que digo em
resposta à mágoa. A atenção de E.V. volta a mim. Ele abaixa o machete e o
molho de chaves. — Mas nem todos os monstros vivem no escuro, não é
mesmo?
Espero por uma resposta, ou qualquer coisa que indique que há
uma pessoa sob aquele capuz, e não o monstro saído direto de meus piores
pesadelos. Mas não recebo nada. Nenhum sinal de arrependimento. Nenhum
sinal de humanidade.
Penso em estender a conversa, ganhar tempo até que alguém
chegue na delegacia. Entreabro os lábios, mas E.V. se prepara para atirar algo
em minha direção. Me sobressalto e dou um passo para trás, imaginando que
o machete voaria em minha direção. Mas, na verdade, noto o molho de
chaves em frente aos meus pés.
Semicerro os olhos na direção do pequeno círculo de metal que
envolve as chaves e então para o psicopata que o atirou. E.V. inclina o
pescoço para o lado, mas não se move.
Não há motivo algum para esperar qualquer coisa positiva vinda
dele. Não acredito que simplesmente queira me deixar escapar. Talvez esse
seja algum tipo de jogo, como as mensagens que enviou. Talvez a chave da
ignição do carro nem mesmo esteja ali. De qualquer forma, estamos
separados por alguns metros, e não perderei mais um segundo pensando no
que passa por sua mente.
Apanho o molho de chaves e abro a porta do carro com
movimentos bruscos. Inspiro e expiro freneticamente no assento do motorista
até achar a chave da ignição, separada no molho junto ao controle do alarme
do carro.
Olho pela janela quebrada: E.V. não se moveu, continua me
encarando de forma macabra, o pescoço levemente inclinado. A imagem me
dá calafrios, mas meu coração acelera quando finalmente encaixo a chave na
ignição. Euforia toma conta de mim quando me dou conta de que finalmente
conseguirei escapar.
Um sorriso de alívio se abre em meu rosto. Olho para E.V. uma
última vez antes de dar partida, então o sorriso em meu rosto morre de forma
abrupta. Com a mão livre, E.V. apanha uma arma de um dos bolsos do
sobretudo e a aponta em minha direção.
É como se o tempo passasse mais devagar por um instante. Dou
partida no carro e arranco com a maior velocidade que consigo em direção à
escuridão da rua em minha frente. Tenho a sensação de que não vou
conseguir, de que mesmo que a mira dele esteja longe de mim, ainda há algo
que possa fazer para me parar.
Por alguns segundos, o carro continua deslizando sobre a rua sem
interrupções. Fico preso no paradoxo de sensações criado pela angústia de
saber que E.V. tem uma arma apontada para minhas costas, mas mesmo
assim estar fugindo dele. Um paradoxo que não dura muito.
Um impacto atinge a parte de trás do carro e perco a direção. Tento
fazer uma curva logo à frente, mas os pneus deslizam sem o comando do
volante e o veículo capota.
Sinto o exato momento em que fico de cabeça para baixo. Em
seguida, meu corpo é esmagado pelo teto do carro e atirado de um lado a
outro: estou sem cinto de segurança. O carro capota uma única vez na rua,
mas é o suficiente para destruir quaisquer chances que eu poderia ter de
escapar, qualquer ideia de que E.V. me deixaria escapar com vida e,
principalmente, o suficiente para levar embora minha consciência...
Ouço a estrutura do carro se espatifar ao meu redor. Estilhaços de
vidro cortam meu rosto e meus braços. Quando abro os olhos, tudo o que
vejo são sombras e manchas escuras, minhas pálpebras sequer têm força para
continuarem abertas por muito tempo. Mas, antes de se fecharem novamente,
vejo uma silhueta parecida com a de E.V. se aproximando. Desta vez, tem um
sorriso no rosto. Um sorriso largo que não lembra em nada um ser humano.
Ele se agacha ao meu lado.
— Vá pro inferno... — digo com meu último suspiro. As palavras
saem asfixiadas e quase inaudíveis.
— Shhh — é a última coisa que ouço antes de tudo se tornar vazio
e escuridão.
P
ARO NO PRIMEIRO SINAL VERMELHO DESDE QUE DEIXEI TOM
SEGURO EM CASA. Retiro as mãos do guidão e me inclino para trás no
banco da moto. Olho ao redor: tudo completamente deserto. Nem sequer um
sinal de vida em Eastview depois que anoitece.
Costumo pensar que as pessoas deste bairro são simplesmente
muito reclusas. Mesmo meu pai não me deixava sair de casa à noite até meus
quinze anos. Há algo de macabro no silêncio destas ruas depois que escurece,
algo que eu não sei bem o que é nem poderia explicar caso me perguntassem,
mas que está aqui, bem em minha frente.
Bem como meus sentimentos por Tommy, sentimentos esses que
não sei explicar, nem posso explicar. Eu o amo. Mas, às vezes, desejo que
não amasse, e logo me arrependo desse pensamento. É difícil amar uma
pessoa que você sabe que está machucando. Eu só queria poder libertá-lo
disso, poder terminar tudo e fingir que não o amo. Mas fico devastado com o
simples pensamento de perdê-lo, e mais devastado ainda sempre que vejo seu
olhar de mágoa, de decepção. Me sinto morto por dentro por tudo pelo que o
faço passar.
E não sei como ajeitar as coisas. Me assumir para o meu pai seria
uma sentença de abandono e rejeição. Desde a morte da minha mãe, ele não é
mais o homem que eu costumava conhecer. É como se ele tivesse morrido
com ela, e deixado para trás apenas uma carcaça fria e cheia de ódio. Ódio
direcionado a mim ou a qualquer um que o desafie. O mesmo ódio que o
treinador Fleet, que Wolmer, que todos neste bairro parecem ter.
Odeio este bairro de merda. Sempre odiei.
Às vezes, tudo o que quero é pegar minha moto, uma mochila com
roupas e dinheiro, Tommy, e fugir daqui pra sempre. Queria ter a coragem de
propor isso a Tommy, de dizer a ele tudo o que sinto, como me sinto... Mas,
não, as palavras sempre ficam presas na garganta. A voz agressiva do meu
pai invade minha mente, seguida do olhar de reprovação de Fleet e do tom
repreensivo de Wolmer. Assim meu discurso acaba afogado nessa
necessidade asfixiante de provar a eles que mereço o que tenho, que Mateus
Armani se encaixa em Eastview tão bem quanto qualquer um.
Talvez minha mãe soubesse o que fazer em uma situação como
essa. Talvez ela tivesse um de seus conselhos certeiros para me dar. Talvez
ela pudesse fazer eu me sentir seguro quando tiver que enfrentar todas essas
pessoas. Por Tommy. Por mim.
Não termino as coisas com Tomas me convencendo de que vou
contar tudo a todos em breve, que vou deixar de machucá-lo em breve, que
vou poder sair dessa teia de mentiras e segredos em breve. Mas esse em breve
nunca chega. E tenho dúvidas se chegará. Toda essa situação com E.V. me
provou uma coisa: sou um covarde egoísta. E fui um covarde egoísta durante
minha vida toda.
O sinal se abre, mas estou preso demais em meu monólogo interno
para ligar. As ruas estão desertas, então não faz diferença. Pego meu celular
de um dos bolsos, levanto o visor do capacete e abro as últimas mensagens
que troquei com Tommy.
Sou um covarde apaixonado por alguém corajoso como Tommy.
As histórias sobre sua infância no orfanato e as coisas que precisou suportar
até ser adotado por Edgar e Laura são horríveis. Verdadeiras histórias de
horror. E ele aguentou tudo aquilo. Depois de se mudar para Eastview, me
conheceu e suportou tudo pelo que eu o fiz passar. Todas as mentiras que
contei. Todas as vezes em que agi com negligência. Todas as vezes que
escondi o que realmente sentia sob essa armadura de garoto durão.
E agora ele está suportando toda essa situação com E.V. sozinho...
Outra vez.
Como posso deixar isso acontecer? Como posso machucar dessa
forma uma pessoa que amo?
Engulo em seco. Me sinto envergonhado e furioso comigo mesmo.
Não tenho uma reposta. Se eu não fosse tão covarde, me socaria neste
momento.
Ao menos vale a pena fazer tudo isso pela aprovação do meu pai e
dessas pessoas que virariam as costas para mim no segundo em que
soubessem quem realmente sou? Por que gostar de garotos altera tão
profundamente os sentimentos dessas pessoas por mim?
Estou tão cansado dessa merda. Tão cansado de me sentir
manipulado pelo ódio dessas pessoas, de deixá-las controlar cada aspecto da
minha vida. Talvez seja inútil tentar esconder a verdade de meu pai e de todo
mundo no fim das contas.
Agora só consigo pensar que talvez Tommy e eu devêssemos ter
avisado a polícia sobre E.V. na noite do assassinato de Alexis. Se tivéssemos
feito isso, Tommy não teria que passar pelo que passou nos últimos dias, nem
E.V. teria tanta vantagem sobre nós. Esse desgraçado já foi longe demais.
Cerro os dentes.
— Cut & Scissors... — murmuro para mim mesmo.
Abro o aplicativo de mapas no celular e digito o nome da loja. O
endereço aparece na tela: Rua Ellantriz, 446. Fica no centro de Eastview, a
alguns quilômetros daqui e a poucos minutos de moto.
Encaro o resultado da pesquisa no aplicativo de mapas por algum
tempo e abro as mensagens de Tommy outra vez. Clico sobre seu contato e
expando a foto de perfil. Suspiro. Está decidido. Não posso mais deixá-lo
lidar com a pior parte dessa situação. Que se foda minha sexualidade, o cara
que eu amo está sob risco de vida nas mãos daquele psicopata.
É hora de deixar de ser um covarde egoísta.
Vou trazer justiça àquele desgraçado sem que Tommy precise
continuar se arriscando. É assim que vou consertar as coisas entre nós, então
vou propor a fuga. Se ele aceitar, iremos embora. Se não, vou sozinho. De
qualquer forma, não é como se eu fosse conseguir viver em paz neste bairro
depois que a verdade for revelada.
Coloco o celular no silencioso e abaixo o visor do capacete. Aperto
o guidão com as duas mãos e acelero em direção àquela maldita loja de
roupas.
A
LCANÇO A LOJA EM DEZ MINUTOS.
— Aí está você — murmuro diante do letreiro de letras grandes e
brancas.
É um prédio de dois andares, branco e amarelo. O terreno tem
recuos entre os prédios ao redor, como se tivesse sido colocado naquele lugar
muito tempo depois de todo o resto. Apesar de não ter mais nada fora do
usual, algo na loja me deixa incomodado, dispara meu coração e deixa meus
sentidos em alerta.
Inspiro fundo. Não posso voltar atrás agora.
Estaciono a moto a alguns prédios de distância para não denunciar
minha presença ali. Retiro o capacete e o prendo no guidão, guardo as chaves
em um dos bolsos e caminho em direção ao prédio, hiperatento aos meus
arredores. Não há nada nem ninguém por perto. Ótimo.
Me aproximo da vitrine de vidro. A escuridão da rua dificulta
identificar o que há no interior da loja, mas o silêncio me faz acreditar que
não há ninguém ali. Não há movimento algum até onde posso ver, e todas as
janelas do andar superior estão fechadas. Há manequins por toda parte, no
entanto. Suponho que é o que eu devia esperar de uma loja de roupas.
Me afasto da vitrine e me aproximo da porta, que, apesar de ser de
madeira, também possui uma parte de vidro na metade superior. Não preciso
forçar muito a pequena maçaneta dourada para descobrir que está trancada.
Eastview é uma comunidade tão fechada que as pessoas tendem a deixar suas
portas destrancadas durante a noite, então não deixo de ficar atordoado por
um breve segundo. Mas que seja, talvez o dono não coloque tanta confiança
em seus vizinhos.
Retiro a jaqueta de Eastview e a enrolo em meu punho direito. Olho
para os dois lados da rua antes de socar o vidro da porta com força suficiente
para quebrá-lo. O vidro se rompe e minha mão sai intacta. Desenrolo a
jaqueta e a visto novamente. Alcanço a fechadura interna da porta através do
vidro quebrado e a destranco.
A porta faz um barulho irritante e agudo ao ser aberta apesar de eu
tomar todo o cuidado possível. Meus ombros ficam tensos. Se houver alguém
aqui, descobriu a a minha invasão neste momento. Fico parado diante da
porta semiaberta esperando a entrada de alguém a qualquer segundo, mas
nada acontece. Estou mesmo sozinho.
Deixo um pequeno suspiro de alívio escapar e entro de vez na loja,
a porta se fecha atrás de mim. O interior do prédio é maior do que seu
exterior faz aparentar. Há manequins de várias formas e tamanhos espalhados
ao longo do andar, alguns de membros isolados, outros de estatura maior do
que uma pessoa normal teria. Há também ternos, vestidos, diferentes peças de
roupas e rolos longos de tecido, além de uma enorme estante de livros que
cobre a parede lateral esquerda.
Os manequins não parecem organizados de maneira coesa. Na
verdade, exceto pelos da vitrine, todos parecem posicionados de maneira
aleatória pelo ambiente, mais obstruindo do que ajudando a passagem de
alguém pelas peças. Além disso, todos parecem dispostos em posturas
estranhas, como se tivessem parado em pleno movimento quando me
aproximei da vitrine. Braços torcidos para cima, colunas inclinadas baixo,
pernas paradas no meio de um passo e cabeças voltadas para todos os lados,
algumas delas para mim.
É absurdo ficar assustado com uma coisa dessas, são apenas
manequins. Mas o contraste entre seus corpos inertes e brancos e à escuridão
do resto da loja realmente me deixa transtornado. Talvez a loja seja linda e
convidativa com as luzes acesas, mas, em meio às sombras, é macabra.
Ou talvez eu só esteja paranoico com o crime que estou cometendo.
Reviro os olhos e inspiro fundo. Desvio minha atenção dos
manequins estranhos e me concentro no que vim fazer aqui: descobrir a
identidade de E.V.
Me aproximo do balcão da recepção junto à porta e dou as costas
aos manequins. Vasculho o local em busca do computador onde as compras
são registradas, mas não há nada além de um livro com capa de couro e
páginas amarelas sobre o balcão. Meu cenho se franze. Uma loja como esta
não faria seus registros em papel hoje em dia, não é? Mas, quando abro o
livro, é exatamente o que encontro: descrições detalhadas de peças e nomes
de clientes. Solto uma lufada de ar pela boca.
— Que merda é essa? — sussurro para mim mesmo.
Um sorriso de descrença se abre em meu rosto ao folhear o livro.
Mas quando ouço algo cair atrás de mim, me sobressalto.
Cada pelo em meu corpo se arrepia. Me viro bruscamente para
observar os manequins e minha mandíbula se tensiona. Se houver alguém
aqui, estou fodido. Fito cuidadosamente cada parte da loja, cada manequim,
cada peça de roupa, mas não encontro nada fora do lugar.
Bom, quase nada. O braço do manequim mais próximo de mim
parece ter se movido. Seu corpo continua na mesma posição, mas o braço que
estava apontado para cima alguns segundos atrás está para baixo agora.
Vincos se formam em minha testa. Talvez o braço tenha só girado para baixo
por ação da gravidade, estou preocupado demais.
Volto minha atenção ao livro. Passo todas as páginas até chegar nas
mais recentes. Percebo que tudo foi escrito com a mesma caligrafia, o dono
deve odiar qualquer coisa relacionada à tecnologia para continuar registrando
as coisas dessa forma. Por fim, chego ao que me interessa: os registros das
compras dos três sobretudos.
Os dois primeiros estão associados aos nomes de Alexis e Fabian.
Nada de novo. Suspiro fundo. Coloco um dedo sobre o nome de Alexis na
planilha e o arrasto para baixo, ansioso para identificar quem é o terceiro
comprador. Meu coração dispara quando finalmente encontro o registro da
terceira peça, feito apenas horas depois da compra de Alexis e Fabian.
Meu peito afunda e me sinto subitamente confuso, perdido. Dou
um passo para trás e esbarro em algo. Me viro, sobressaltado, e dou de cara
com o manequim mais próximo de mim.
— Que porra é essa? — resmungo mais alto do que gostaria.
Meus lábios se entreabrem e meus olhos se arregalam. Tenho
certeza de que essa porra estava mais afastada da última vez em que olhei.
Certeza absoluta. A cabeça também parece levemente mais inclinada em
minha direção. Merda. Preciso dar o fora deste lugar o mais rápido possível,
minha cabeça está tentando me sabotar.
Me aproximo do livro de registros novamente e arranco a página
com a identidade de E.V. Enquanto isso, não tiro os olhos do manequim. Os
buracos onde seus olhos deveriam estar parecem assustadores sob a
penumbra da loja. Fecho o livro e guardo a página roubada no bolso interno
da minha jaqueta. Sigo encarando fixamente o manequim com vida própria
até algo atrás dele chamar minha atenção.
Há um livro sobre o piso, grosso e grande. Deve ser o que ouvi cair
antes. Na estante, um lugar vazio na prateleira mais alta parece ser o local de
onde o livro despencou. Tudo em mim grita para ir embora daqui, mas talvez
seja melhor levar comigo algo além da folha de papel para despistar a polícia
ou mesmo E.V.
Me aproximo do livro rapidamente e o apanho do chão, é mais
pesado do que aparentava. Preciso abri-lo para me certificar de que não há
nada fora do usual em seu interior. E não há mesmo, é apenas papel e tinta.
Mas o que está disposto nestas páginas é definitivamente estranho. Absurdo,
quase. Estreito os olhos e aproximo a página aberta do rosto. Agora tenho
certeza de que minha mente está me sabotando.
Fecho o livro por um instante para ler o título na capa.
Em seguida, reabro na mesma página de antes. Atônito, dou um
passo para trás, os olhos fixos nos retratos feitos à mão. É quando esbarro em
algo.
Pulo de susto e me viro para o mesmo manequim de antes. O objeto
esteve atrás de mim esse tempo todo, mas agora está a metros de sua posição
original; os globos oculares vazios, grandes e brancos estão fixos em meu
rosto como se quisessem comunicar algo.
Neste instante, qualquer resquício de coragem me deixa
completamente. Fecho o livro e me afasto do manequim e da estante.
Desajeitado, esbarro em tudo pelo caminho. Aquele manequim não estava ali.
Não estava ali. E não há nada que possa me convencer do contrário.
Assustado, corro até a saída da loja. Mas, no segundo em que viro
as costas para girar a maçaneta, ouço uma voz:
— Pra onde você acha que tá indo?
C
ADA OSSO EM MEU CORPO TREME DIANTE DA VOZ PROFUNDA E
RÍSPIDA. O susto me deixa paralisado por alguns instantes, e penso em
simplesmente abrir a porta e tentar minha sorte correndo daqui, mas minha
intuição me diz que é uma péssima ideia. E, quando finalmente me viro para
encarar a dona da voz, tenho a confirmação disso.
Uma senhora de cinquenta anos, talvez sessenta, está parada no
canto mais afastado do andar. Os cabelos brancos — cinza em meio à
penumbra — estão arrumados para trás em um coque firme. Um xale cobre
seus ombros e parte de seu vestido branco e florido. Sua figura entra em
grande contraste com a espingarda de dois canos que aponta diretamente para
mim, o tipo de arma que achei que só veria em filmes.
Com movimentos dolorosamente tensos, ergo minhas mãos para o
alto, o anuário de Eastview em uma delas.
— Me desculpa — começo incerto e perturbado —, minha intenção
não era... roubar a senhora... ou machucá-la. — Gaguejo um pouco e tomo
algumas pausas entre as palavras para processar uma rota de fuga, mas não
consigo pensar em nada. Qualquer passo em falso e o gatilho pode ser
disparado. Estou preso neste maldito lugar. — Eu não tenho nenhuma arma
comigo.
Faz-se um silêncio longo e sinistro. A senhora não tira os olhos de
mim, nem o cano de sua arma faz qualquer menção de se abaixar.
— O que está fazendo aqui? — finalmente pergunta ao semicerrar
os olhos.
De relance, vejo o livro de registros sobre o balcão.
— A senhora é a dona da loja?
— O que você está fazendo aqui? — insiste, empunhando a
espingarda com mais afinco.
Inspiro fundo e dou um passo para trás. Ergo minhas mãos um
pouco mais ao alto.
— Procurando por uma informação — respondo. Meu coração
parece prestes a saltar do peito. — Uma informação que talvez salve a minha
vida... e a de um amigo.
Ela inclina o pescoço para o lado sutilmente.
— Que tipo de informação?
Mordo minha língua. Eu deveria contar tudo àquela senhora
estranha? E se ela trabalhasse para E.V.?
— Um nome — é tudo o que digo.
Ela aponta para o livro em minhas mãos com a arma.
— E esse nome está no anuário?
Observo o volume pesado.
— Me desculpa, eu... Eu vi as imagens e... — tento elaborar, mas o
choque dos retratos que estão nas páginas ainda me deixa atordoado.
Diante de meu semblante perdido, a mulher finalmente abaixa a
arma. Abaixo meus braços lentamente, o olhar fixo na capa do livro como se
eu pudesse enxergar os retratos nas páginas. Resolvo deixá-lo sobre o balcão
ao meu lado, certificando a mulher de que não pretendo roubá-lo.
— Não se preocupe, criança — ela diz em um tom menos severo.
— É mentira, certo? — Estreito o olhar em sua direção. — É algum
tipo de pegadinha... ou piada. — Franzo o cenho. — Esse anuário não pode
ser verdadeiro.
A senhora comprime o lábio inferior. As sombras sobre seu rosto
parecem se tornar mais escuras quando ela desvia o olhar de mim para estante
de livros pela primeira vez.
— Mas o que significa ser verdadeiro? Algo é verdadeiro só por
que você acredita que é? O ato de acreditar é capaz de tornar certas coisas...
verdadeiras... ou falsas? — pergunta de maneira reflexiva.
Não tenho vontade alguma de tentar responder, nem acho que ela
queira que eu responda. Uma sensação fria e desagradável me atinge no
estômago. Só quero sair dessa merda de lugar o mais rápido possível.
— Me diga, jovem rapaz: — ela prossegue — você acredita em
Deus?
Vincos se formam em minha testa. Entreabro os lábios, mas não
respondo imediatamente. Isso é um truque? Algum tipo de jogo macabro?
— Sim — respondo desconfiado.
Um sorriso estranho se abre lenta e assustadoramente nos lábios da
mulher.
— Então, o simples fato de você acreditar nele... o torna
verdadeiro? E se ele não existir? Sequer importa? O poder está em acreditar:
está nos meios, não nos fins.
Olho ao redor em busca alguma pista de que caralhos está
acontecendo, mas tudo o que vejo são manequins e peças de roupas.
— Eu não entendo... — murmuro.
A senhora dá um passo em minha direção. Está longe demais para
me alcançar, mas me sinto encurralado de qualquer forma. Seus olhos
ganham um brilho sombrio, repulsivo. Seu sorriso se alarga ao dizer:
— Mateus Armani, você acredita no Diabo?
Sou tomado por um emaranhado de sentimentos: confusão sobre
desconfiança, sobre medo, sobre desconfiança, sobre confusão. A espingarda
está abaixada agora, posso tentar correr para fora daqui a qualquer instante,
mas então encaro o anuário de 63 sobre o balcão novamente. A
incompreensão sobre os retratos em suas páginas mantém meus pés grudados
no lugar.
— Eu suponho... — balbucio baixinho — que sim.
Ela dá mais um passo em minha direção.
— A maioria das pessoas acredita apenas naquilo que as convém
— seu tom se torna distante e mais profundo —, moldam suas realidades a
partir dos pedaços e das crenças que as deixam confortáveis. — A senhora
caminha até a estante de livros e passa as pontas dos dedos sobre as
lombadas. — A mesma coisa acontece aqui em Eastview. Não há verdades,
ou mentiras... Há apenas aquilo em que você acredita.
Ela apanha um livro qualquer da prateleira mais alta — a mesma do
anuário. Seu olhar permanece vazio, como se sua mente estivesse presa em
outro lugar, outro momento.
— Reza a lenda que, séculos atrás, durante os julgamentos de
Salém, um pequeno grupo de bruxos e bruxas conseguiu fugir da morte certa.
Rumaram direto para cá, para o solo onde eu e você estamos pisando. — Há
algo em sua forma de narrar, nos trejeitos e traços em seu rosto que me
mantém hipnotizado pela história. — Quando a civilização brasileira não era
nada além de um embrião, quando as noites eram longas e misteriosas, o
pequeno grupo se alojou aqui. — Seus olhos encontram os meus novamente.
— Em troca de vida eterna, fizeram o que nenhum outro clã de bruxos tinha
feito até então: venderam suas almas ao Diabo. — Suas sobrancelhas estão
erguidas, o tom mais afiado.
Algo na forma como ela recita essa última frase me faz ficar
boquiaberto. É quase como se estivesse narrando algo real. Mas não pode ser,
certo? Não existem bruxos, bruxas, ou qualquer coisa do tipo. Todo mundo
sabe disso.
A senhora não parece saber, no entanto, pois continua com o
mesmo tom convicto de antes:
— O Diabo tomou suas almas de bom grado. — Passa a palma de
uma das mãos sobre a capa do livro que segura, limpando-a. Não tenho a
mínima ideia de que livro se trata, nem quero descobrir. — Ele deu o que os
bruxos pediram — pisca longamente —, mas com uma pequena condição...
— O sorriso estranho volta a se desenhar em seus lábios. — Havia uma
cláusula no contrato, se você quiser chamar assim. A cada dez anos, sangue
jovem e inocente deve ser derramado sobre a terra em que o pacto foi feito
para renová-lo. Sem sangue derramado... — diz em uma voz melódica —,
sem vida eterna. E assim eles perseveraram através dos séculos. — Desvia o
olhar de mim e suspira. — Mas, é claro, isso é apenas uma história de terror
de um livro muito, muito antigo.
Ela bate com um dos indicadores na capa dura do volume em suas
mãos e o coloca de volta na estante. Suas mãos ficam vazias. Olho para o
balcão novamente em busca do anuário e um calafrio me atinge. O livro não
está mais ali.
Isso já é merda demais para que eu consiga processar.
— Espera... Onde tá? — Me aproximo do balcão para analisá-lo
um pouco melhor. O único volume restante é o livro de registros.
— Perdão? — ela responde.
— O anuário... Eu deixei bem aqui...
Com o cenho franzido, me viro para a mulher e encontro a porra do
livro em suas mãos. Sua expressão é confusa e inocente.
Uma descarga de adrenalina me atinge. Meus joelhos enfraquecem.
Me viro em direção ao balcão novamente. O que está acontecendo aqui?
— Não tenho ideia do que você está falando. — Ela devolve o livro
que tem em mãos ao espaço que o anuário deixou ao cair. Quero protestar,
mas quando ela se vira para mim novamente, seu semblante severo faz
quaisquer palavras que eu tinha a dizer morrerem em minha garganta. —
Agora, sugiro que saia da minha loja antes que as autoridades cheguem.
Acionei a polícia dez minutos atrás. Pelas minhas contas, deverão chegar aqui
a qualquer minuto. — O terror da situação é superado pelo meu alívio ao
ouvir essas palavras. Ela não precisa repetir o comando, me viro em direção à
porta imediatamente. — Foi um prazer conhecê-lo, Mateus — sua voz soa
atrás de mim enquanto dou o fora da loja.
O choque por finalmente descobrir a identidade de E.V. foi
superado por toda essa situação bizarra. Ainda assim, enquanto caminho até a
moto, minha mente trabalha em mil hipóteses diferentes para explicar por que
essa pessoa fez tudo o que fez. Por que assassinar Alexis? Por que fazê-lo no
colégio? Por que nos stalkear?
De qualquer forma, sei a verdade, e tenho provas. Posso finalmente
acabar com esse pesadelo. Que os motivos sejam descobertos pelas
autoridades, Tommy e eu já passamos por merda o suficiente.
As ruas ainda estão desertas e silenciosas. Quando sento na moto,
cubro minha cabeça com o capacete e coloco a chave na ignição, me dou
conta de mais uma coisa.
Eu nunca disse meu nome à dona da loja.
DIRIJO EM DIREÇÃO À DELEGACIA, ensaiando de novo e de novo o
discurso que terei que fazer para explicar toda essa merda.
Em uma rua deserta qualquer, cruzo com outro carro: uma viatura
policial. Reconheço a silhueta de Edgar, pai de Tommy, imediatamente.
Indico a ele que vou estacionar na calçada ao lado com o sinal de alerta e
então a seta. Quando paro, praticamente pulo da moto.
Edgar estaciona o veículo próximo a mim, desce do carro com uma
expressão desconfiada.
— Mateus? — Ergue uma das sobrancelhas. — O que está
fazendo?
— Escuta, Edgar... — Não perco tempo com conversa mole. Me
aproximo do policial. — Eu sei que isso vai parecer loucura, e que você
provavelmente não vai acreditar em mim, mas Alexis não se suicidou. Ele foi
assassinado. E eu sei quem é o assassino.

FIM DO LIVRO TRÊS


E
STOU MORTO.
Escuridão recobre minha visão em todas as direções.
Estou morto.
Não há nada além de trevas e vazio.
Estou morto.
Luzes piscam pausadamente sobre minhas pálpebras,
interrompendo a escuridão.
Estou morto?
Sinto os músculos do meu rosto se contraírem pela primeira vez.
Não estou morto.
Tento abrir os olhos, mas não consigo. As pálpebras parecem
coladas no lugar. Lentamente, tomo ciência dos outros músculos do meu
corpo, embora não possa movê-los. Minhas costas estão deitadas sobre uma
superfície rija, talvez um colchão velho, talvez o chão. É fria e
desconfortável. Meus braços estão inertes. Minhas pernas também. Meus
pulmões inspiram e expiram de forma lenta - talvez lenta demais.
Quando as luzes piscam e a escuridão sobre minhas pálpebras é
interrompida, sinto uma descarga de energia. Sem conseguir me mover, conto
as vezes em que as trevas oscilam. Uma. Duas. Vinte.
Quando chego a cinquenta, meus dedos tremem. Meus músculos
despertam. Abro os olhos abruptamente, sugando o ar em minha volta como
se nunca antes tivesse respirado. Um som estranho sai da minha garganta. O
ar dói ao entrar nos pulmões. Levo as mãos ao pescoço por reflexo. Suspiro
alto, e me curvo à frente. A superfície sob mim afunda um pouco quando
sento. É um colchão duro.
— Achei que você nunca fosse acordar — uma voz imponente ecoa
pelo ambiente escuro.
Fico paralisado. Um calafrio atravessa minha espinha, mas não
tenho tempo de processá-lo. As luzes piscam outra vez. E.V. está em frente
ao colchão, me fitando de cima, sem capuz, sem sobretudo, seu rosto exposto,
seus olhos me mirando como duas armas engatilhadas.
E quando fala novamente, sinto os disparos em minha alma.
— Senti sua falta, amor.
NÃOOOO. TOMMY, NÃOOOO.
Uou. Estamos aqui. Realmente estamos aqui. Metade dessa história
já se passou e, como vocês devem ter percebido, a partir desse livro, tudo
ficará ainda mais intenso. Sei que o infame sr. Duarte acumulou uma fanbase
muito grande, e sua ausência nesse livro não passará despercebida. Não se
preocupem, ele estará de volta no próximo livro.
Garotos Mortos é uma série de cinco novelas, mas optei por
compilar as duas últimas em um último livro duplo pra satisfazer todos vocês
fãs de calhamaços. Sendo assim, os dois últimos livros da série (Garotos
Mortos Não Descobrem Verdades e Garotos Mortos Até o Final) estarão
juntos no quarto volume publicado (Garotos Mortos Não Descobrem
Verdades), que chegará nas mãos de vocês em janeiro. Eu sei que vocês
devem estar desesperados nesse momento, mas são apenas três meses (meses
que eu preciso para me dedicar a assuntos pessoais).
Muito obrigado a todo mundo que ajudou esse livro a se tornar o
que é nesse momento (especialmente o Brendon, que me salva
repetidamente). Senara e Bruno, vocês são meus amores. May, obrigado pelo
talento e pelo carinho na arte oficial desse livro.
Obrigado aos parceiros que me ajudaram durante o lançamento e
panfletaram essa série como se o mundo fosse acabar. O carinho de vocês é
muito importante pra mim.
E, claro, obrigado a cada leitor maravilhose que está tão envolvide
e surtade com essa história como eu. Não canso de dizer o quanto os amo.
Até 2022, caro eastviewer, e que esse ano finalmente traga tudo o
que os últimos dois anos não nos trouxeram. Sejam boas pessoas, e lembrem-
se sempre: não é possível fazer ligação direta em carros modernos ;)
Amo a todes <33
MARK MILLER É ESCRITOR PELA MANHÃ, estudante de medicina pela
tarde, e leitor voraz pela noite. Nasceu na região norte do Brasil, mas mudou-
se para São Paulo aos 14 anos de idade.
É uma pessoa de hábitos noturnos, o que talvez explique sua
obsessão por café. Não gosta de climas muito quentes, ou muito frios, adora
conhecer a cultura de outros países e ama gatos.
Escreve pelo simples desejo de ver mais representatividade em
histórias usualmente dominadas pelo imaginário heteronormativo, buscando
leitores que, como ele, desejam ver mais personagens LGBTQ+ em posições
de protagonismo.

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Table of Contents
6 ANOS ATRÁS
OUTROS LIVROS DO AUTOR
Sobre Eastview
Playlist
Aviso de CONTEÚDo
PARTE I
UM
Dois
Três
PARTE II
Quatro
Cinco
Seis
Garotos mortos não DESCOBREM
Agradecimentos
Sobre O Autor

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