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isolado e pacato. Até ALEXIS LUNA ser assassinado no colégio que tem o
mesmo nome do bairro. Ele era o presidente do clube de xadrez, adorado,
gentil, atencioso. E foi brutalmente estrangulado. As únicas testemunhas de
seu assassinato são dois garotos que têm sua própria leva de segredos.
TOMAS MINORI é o filho adotivo do delegado local do bairro.
Sua vida em Eastview, segura e calma, é a melhor que jamais teve. Edgar e
Laura são os pais que sempre sonhou ter. E Mateus Armani é o garoto de
seus sonhos: o atlético jogador de basquete em que todos veem potencial,
popular e adorado como Alexis, mas um pouco mais misterioso.
Embora nutra sentimentos complicados por Tomas, MATEUS é
contrário à ideia de trazer a relação dos dois à público, prendendo o jogador
de xadrez (e a si mesmo) a um ciclo de angústias e frustrações. Eastview é
mesmo o seu típico bairro de subúrbio: rico, isolado, pacato, e intolerante.
A tensão entre os dois garotos atinge o ápice quando o assassino de
Alexis os chantageia a ficarem calados sobre o que viram, sob a ameaça de
expor sua relação. Autoidentificado como E.V., a figura misteriosa parece
saber muito mais sobre Tom e Matt do que eles poderiam imaginar. Mesmo
com a relutância de Tomas, os dois concordam em jogar o jogo de E.V.,
mantendo o que sabem sobre a noite da morte de Alexis em segredo.
Diante da negligência de Mateus, e da forma macabra com que ele
reage ao descobrir que o assassinato de Alexis foi encoberto por E.V. para
parecer um suicídio, Tomas começa a duvidar da própria sanidade, da paz
que achou ter encontrado em Eastview e, principalmente... da confiança que
tem no garoto que ama.
Tudo está ruindo ao redor de TOMAS MINORI: ele não sabe mais em quem
confiar, não sabe mais se está seguro, e está próximo de perder sua bolsa em
EASTVIEW. Todas as tentativas de comunicação com MATEUS têm
falhado, e o jogador de basquete parece mais interessado em seu namoro de
fachada com uma garota qualquer do que com a figura que continua os
chantageando. A única pessoa que parece lhe transmitir qualquer tipo de
segurança é o SR. DUARTE, seu professor de biologia.
Após uma briga que abre uma rachadura em sua relação, os dois
garotos são alertados pelo diretor de Eastview que sofrerão sérias
consequências se aquilo voltar a acontecer (Mateus pode perder sua vaga no
time de basquete, e Tomas pode definitivamente perder sua bolsa). Mateus
mantém sua postura de negligência até serem dispensados.
Esperando por EDGAR, Tomas recebe uma nova mensagem de
E.V., com fotos dos dois garotos juntos antes do assassinato de Alexis. Ele
encaminha as mensagens a Matt, e finalmente consegue uma resposta
adequada. Os dois marcam de se encontrarem em um bosque no limite de
Eastview. Antes de deixar o colégio, Tomas percebe que FABIAN, ex-
melhor amigo de Alexis, está usando um sobretudo idêntico ao que E.V.
usava na noite do assassinato.
Tomas e Matt se reconciliam no bosque.
Certo de que Fabian é E.V., Tomas convence o jogador de basquete
a investigar a casa do garoto em busca de provas definitivas. Durante a
investigação, os dois quase são flagrados por Fabian, mas conseguem se
esconder a tempo.
Através de uma chamada do garoto com uma pessoa misteriosa,
eles descobrem que o sobretudo de Fabian não é único, mas parte de uma
coleção de cinco. Três deles estão em Eastview. Alexis e Fabian
presentearam um ao outro com as peças de roupas idênticas, o que significa
que o terceiro sobretudo em Eastview é o que foi comprado por E.V. Antes
de sair do quarto, eles conseguem descobrir quem é a pessoa no telefone com
Fabian: sr. Duarte.
Eles identificam a loja em que os sobretudos foram vendidos pela
etiqueta da peça de Fabian e deixam a casa sem serem pegos.
No caminho de volta, os dois garotos se desculpam, e a luz no fim
do túnel representada pela etiqueta parece ser a válvula de escape da tensão
erguida entre eles. Estão certos de que é apenas questão de tempo até
descobrirem a identidade do assassino de Alexis.
Quando entra em seu quarto, no entanto, Tomas se depara com uma
colagem de fotos suas e de Matt juntos, assim como uma mensagem deixada
em sangue por E.V. em uma das paredes.
E
RA UM DIA CONGELANTE DE JULHO, e, mesmo sob as camadas grossas
das roupas que as assistentes sociais escolheram pra mim, cada osso em meu
corpo tremia. Mas aquela era a última chance que eu tinha — a última chance
que qualquer um no orfanato teria — de encontrar um lar, uma família, antes
de sermos transferidos para a capital. Era assim que funcionava, uma das
assistentes me explicou. “As crianças mais velhas ficam na capital, as mais
novas no interior”. Por qual razão? Eu não sabia. Parecia uma desculpa cruel
para me afastar do pouco que eu conhecia.
Então mesmo que meus ossos tremessem, continuei firme atrás da
bancada na feira de adoção, encarando os rostos sorridentes de cada casal que
passava em minha frente, implorando com o olhar para que eles vissem como
eu era um garoto bom, como eu estava desesperado para continuar ali, entre
meus amigos, e não ser transferido para um lugar longe e desconhecido. Eu
não podia dizer coisa alguma a não ser que me perguntassem, logo fiquei
calado na maior parte da manhã.
Ao meu redor, garotos e garotas eram selecionados; um por um,
conforme o tempo passava. Os casais que participaram da feira naquele mês
pareciam particularmente felizes, as mães e os pais solos também. Famílias
inteiras passeavam entre as bancadas buscando seu novo membro. Eu ficaria
feliz com qualquer um deles.
Qualquer um.
Quando a manhã terminou, tentei não me abalar. Almocei sozinho,
escondido. Treinei meu sorriso, a postura correta. “Sorria o máximo que
puder”, as assistentes diziam. “E olhe-os nos olhos”.
E assim eu fiz ao longo da tarde inteira, mesmo quando os ventos
sopravam o anúncio de uma tempestade na hora do crepúsculo e o suéter que
eu usava já era inútil em me proteger do frio. Assim o fiz mesmo quando os
sons de risadas e conversas diminuíam lentamente à medida que os casais se
dispersavam e meus colegas eram encaminhados para suas novas famílias.
Mesmo quando não restava mais ninguém ao meu lado, mesmo quando eu
era o último órfão restante na feira.
Mesmo quando a noite chegou, e as assistentes me puxaram de
volta para o prédio do orfanato.
Quando comecei a empacotar as poucas coisas que tinha, meu
sorriso finalmente se apagou. As lágrimas silenciosas deixaram meus olhos:
silenciosas e amargas. Fiz tudo o que mandaram, e, mesmo assim, ainda não
tinha um lar, ainda não tinha uma família, ainda não tinha nada além de mim
mesmo.
Esperava apenas que São Paulo não fosse o lugar assustador que as
outras crianças costumam dizer. Eu não tinha razões para chorar. Era uma
nova oportunidade: talvez minha nova família estivesse me esperando lá. Em
algum lugar. De alguma forma.
Ou talvez eu fosse amaldiçoado demais para ter isso.
Fronteiraverso
Eastverso
Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de 19/02/1998. Proibida a reprodução deste
livro, no todo ou em parte, através de quaisquer meios, sem a permissão escrita do autor, exceto em
casos de pequenas citações usadas em resenhas ou artigos críticos.
Este livro é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares, organizações, eventos e incidentes são,
ou parte da imaginação do autor, ou usados de maneira ficcional. Quaisquer semelhanças com
indivíduos reais, vivos ou mortos, eventos ou lugares são inteiramente coincidentes.
6 ANOS ATRÁS
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Sobre Eastview
Playlist
Aviso de conteúdo
PARTE I
UM
Dois
Três
PARTE II
Quatro
Cinco
Seis
GAROTOS MORTOS NÃO DESCOBREM VERDADES
Agradecimentos
Sobre O Autor
Eastview é um colégio particular de Ensino Médio fundado em 1903 pelo
benfeitor puritano Carlos Wolmer, localizado em Eastview, São Paulo.
Está na vanguarda da pesquisa acadêmica e intelectual. Aqueles
que se aventuram aqui - para aprender, pesquisar, ensinar, trabalhar e crescer
- se juntam a mais de um século de tradição e estudantes que buscam pela
verdade, conhecimento e pela construção de um mundo melhor.
Como a maior instituição de renome do Brasil, Eastview estará
sempre focada em criar oportunidades educacionais para os jovens que
representam o futuro da nação - e do mundo.
Esse livro possui uma playlist cuidadosamente organizada para
complementar a experiência de leitura. Acesse-a através do código abaixo
(abra a barra de busca do spotify, clique sobre o ícone da câmera e o
escaneie), ou busque pelas palavras-chave “Garotos Mortos Não Sangram –
Playlist Oficial” no serviço de streaming.
O BAILE DE FORMATURA DE EASTVIEW ESTÁ SE
APROXIMANDO
E
NCARO A RUA ESCURA À MINHA FRENTE DA PARTE TRASEIRA
DA AMBULÂNCIA. Estou sentado sobre o solo de metal do veículo
tentando manter meus pensamentos em ordem. Meus pés balançam para fora
sem alcançar o chão enquanto inspiro profundamente o oxigênio gelado e
seco da máscara esverdeada. Meus pulmões se expandem, e meus ossos
tremem. Fecho os olhos.
Expiro.
Ouço conversas de policiais ao longe. Os galhos das árvores que
circundam as laterais da rua balançam conforme a brisa se torna mais
violenta, alertando a chegada de uma tempestade. As folhas soltas e mortas se
arrastam pelo concreto das calçadas.
Quando uma mão repousa sobre meu ombro, me sobressalto. Abro
os olhos subitamente.
— Inspire — o médico trajado de branco comanda com um olhar
apaziguador. Em seguida, ajeita a máscara de oxigênio em meu rosto. Inspiro
outra vez. Meu coração desacelera lentamente, as pancadas contra minha
caixa torácica se apaziguam à medida que o oxigênio extra alcança meus
pulmões. Não sinto mais como se fosse desmaiar a qualquer segundo.
— Isso. Exatamente assim.
Ele balança a cabeça de forma encorajadora enquanto sigo
respirando. O ar faz um som estranho ao passar pelo tanque de metal
esverdeado, atravessar a mangueira transparente, a máscara, e então minha
tranqueia. Encaro a rua escura por mais alguns segundos, então tenho um
relance do prédio da delegacia à minha esquerda.
— Olhe pra mim — diz, e obedeço como que por reflexo.
Não há identificação em seu uniforme branco. Ele retira uma
pequena lanterna prateada de um dos bolsos e a acende. A luz branca e forte é
direcionada diretamente aos meus olhos, mas não causa desconforto.
Examina o esquerdo, e então o direito. Engulo em seco.
— Siga meu dedo — ele dita baixinho. Ergue o indicador da mão
livre, passeando-o de um lado para outro em meu campo de visão.
Após alguns segundos, o exame cessa e a lanterna é desligada.
Finalmente me sinto confortável o suficiente para afastar a máscara de
oxigênio e respirar sozinho.
— Você se machucou em algum lugar? — Ele analisa a parte de
trás da minha cabeça, minhas têmporas, e então toca meu queixo, virando
meu rosto de um lado para o outro. Nego com a cabeça. Ele expira fundo, a
expressão de alguém incomodado em fazer seu próprio trabalho sem poder
reclamar. — Então não acho que há motivos pra se preocupar. Continue
inspirando fundo, e o pânico deve passar — completa com uma voz apática.
Vira de costas antes que eu sequer possa responder.
Mas a voz ansiosa e profunda de Edgar me impede de pensar nisso
por muito tempo:
— Tomas!
Ele vem do interior da delegacia em minha direção, o crachá da
polícia preso em seu cinto no lado oposto ao coldre em que guarda a arma.
Seus passos rápidos e pesados quebram a monotonia dos sons de galhos e
folhas que ocupavam a rua até então. Me alcança em alguns segundos e,
como o médico, repousa a mão em meu ombro. Mas, ao contrário dele, o
olhar de Edgar é cheio de preocupação genuína, o que me transmite
segurança pela primeira vez desde que tive uma crise de pânico em meu
quarto após ler a mensagem deixada na parede por E.V.
Com a outra mão, Edgar toca meu rosto. O brilho de cuidado
paternal em seus olhos me lembra dos momentos em que pensei que jamais
teria isso... Dois, três, quatro anos atrás, quando acreditava que nunca teria
uma família de verdade.
— Me desculpa, eu tô... — tento elaborar, mas minha garganta
falha. — Ainda tô tentando processar. — Desvio o olhar para baixo e volto a
cobrir metade do meu rosto com a máscara de oxigênio.
Edgar assente, mas a preocupação em seu rosto não diminui.
Esfrega a barba por fazer com uma das mãos e se afasta um pouco; a outra
mão repousa sobre a cintura. Ele olha em todas as direções da rua ao redor da
ambulância.
— Tá tudo bem — murmura mais para si mesmo do que para mim.
Minhas memórias do que ocorreu entre o momento em que abri a
porta do quarto e acordei na ambulância estão enevoadas. Tento recobrar o
que aconteceu, sem muito sucesso, até que uma inquietação repentina me
atinge.
— Onde está Laura? — questiono.
A atenção de Edgar se volta imediatamente para mim. Ele fica
confuso por um milésimo de segundo, até que se dá conta de que o pânico
mexeu com minhas lembranças.
— Ela ficou em casa com a Samara para analisar a cena do crime
— responde.
— Aquilo era sangue de verdade?
Afasto a máscara do rosto definitivamente. A corrente de oxigênio
que vaza por ela produz um chiado baixo e contínuo.
Edgar nega com a cabeça.
— Não temos certeza. Se for alguém apenas tirando uma com você,
ou comigo, então provavelmente não. Mas precisamos de uma análise mais
profunda para descobrir.
Mordo o lábio inferior e meu coração dispara outra vez. Um
calafrio atravessa minhas entranhas ao pensar que dessa vez não há
escapatória. Se E.V. usou sangue de verdade para escrever a mensagem,
Edgar e a polícia irão descobrir, e não conseguirei mais mentir para eles. E,
mesmo se milagrosamente houver uma maneira de encobrir tudo isso, não
acho que seja seguro seguir fazendo o que E.V. quer. Se está mesmo um
passo à nossa frente, então qualquer investigação que eu e Matt tentarmos
fazer por conta própria será inútil. Precisamos de mais ajuda. Precisamos da
ajuda de Edgar.
— Você tem alguma ideia do que acabou de acontecer? —
questiona. Sua voz adquire um tom sombrio e desconfiado: sabe que sei de
mais do que deixo transparecer. — Quem tirou aquelas fotos? Quem fez essa
merda, Tom?
— Eu... — inspiro com dificuldade. — Eu...
Ergo os olhos até os de Edgar por um instante. Pela posição em que
se encontra, bloqueando parte das luzes dos postes mais distantes, se parece
com uma sombra; seus traços mais peculiares se perdem em meio à
penumbra. A imagem — e as lembranças que isso traz à tona — quase me faz
vomitar.
— Foi E.V.? — insiste em um tom gélido. A brisa noturna se torna
ainda mais forte, balançando veementemente as dobras do uniforme de
Edgar. — Você sabe quem é essa pessoa? Sabe por que está tentando brincar
com você desse jeito? — Ele se reaproxima e sua mão retorna ao meu ombro.
Se inclina em minha direção, o olhar cada vez mais próximo do meu, de
modo que posso ver os vincos profundos entre suas sobrancelhas. — O que
aquela mensagem significa? — sussurra. — Tommy?
Meus lábios se entreabrem, prontos para responder. Todos os meus
neurônios insistem para que eu diga tudo a Edgar, ali e agora. Mas o único
som que sai da minha garganta é o de uma expiração profunda.
Não posso. Não ainda. Não sozinho. Deveria, mas não posso.
Odeio me sentir egoísta por fazer algo para o meu próprio bem,
mas, ainda assim, é como eu me sinto. Crescer sem ninguém, sem nenhum
vínculo afetivo substancial, me fez aterrorizado em decepcionar qualquer um
que demonstre o menor tipo de afeto em relação a mim. Não quero
decepcionar Edgar, mas também não posso decepcionar Matt. Concordei em
não falar porra nenhuma, então não falaria porra nenhuma. Mesmo assim,
Matt precisa saber que E.V. foi longe demais, que não vamos simplesmente
nos livrar desse psicopata deixando-o brincar com nossas vidas.
O olhar apreensivo e cheio de expectativas de Edgar continua sobre
mim por todo o tempo que meus lábios levam até se fecharem novamente.
Me desvencilho de seu toque em meus ombros e pulo para fora da
ambulância. O policial parece confuso, e não o culpo. Que tipo de filho faz as
mesmas coisas que estou fazendo?
— Preciso de um tempo sozinho.
Não tenho coragem de encará-lo novamente enquanto me afasto em
direção ao interior da delegacia. Caminho rápida e ansiosamente. Sinto o
peso de seu olhar confuso em minhas costas, mas tento ignorá-lo.
Alcanço a porta do prédio escuro e a abro, logo sou envolvido pelas
luzes artificiais e exageradamente brancas de seu interior. Há um corredor
logo à frente, que leva à sala de interrogatório e às celas provisórias. À
direita, estão as mesas de Scooper, Edgar e Samara. Mais ao fundo, salas que
eu não sei para que servem, nem tenho interesse em descobrir. Preciso de
algum canto silencioso e isolado de onde possa ligar para Matt e contar toda
essa merda que está acontecendo.
Me apresso pelo corredor antes mesmo que Scooper — o único
policial no prédio neste momento — possa notar minha presença. Há um
banheiro no fundo do corredor que já usei antes, então me direciono até ele.
À minha esquerda, uma larga janela de vidro separa as salas de interrogatório
do corredor. À direita, estão as celas da delegacia.
Alcanço o banheiro, abro a porta e me tranco. Não penso muito.
Pego o celular que esteve dormente no bolso de trás do meu jeans e clico no
número de Matt entre os meus contatos. Inicio a chamada e me sento sobre o
vaso fechado. Engulo em seco. Tenho a sensação de que as coisas não irão
melhorar nesta noite, de que há algo estranho, perturbador acontecendo.
Talvez seja meu pânico tentando voltar. Talvez não. De qualquer forma,
espero Matt me atender do outro lado.
A linha toca, toca, e nada, até que um som irritante denuncia o
encerramento da ligação.
Cerro os dentes e curvo meu corpo inteiro em direção ao chão.
Apoio minha testa com a mão livre, os olhos arregalados. Matt está me
ignorando novamente? Por que faria isso? Achei que tivéssemos nos
resolvido em bons termos antes dessa merda toda acontecer.
Refaço a ligação: mais um minuto de chamada e nenhuma resposta.
Meu estômago se revira. Endireito minha postura e me recosto na parede de
azulejos brancos e frios atrás de mim. Encaro a parede pálida do cômodo
minúsculo. Uma sensação amarga sobe por minha garganta, algo queimando
em meu esôfago.
Disco o número dele pela terceira vez.
— Atende a porra do celular, Matt... — resmungo. Tento afundar a
frustação e a inquietação em algum lugar profundo dentro do meu peito.
Falho miseravelmente.
Dizem que a terceira vez costuma ser a certeira, não é mesmo? Mas
dessa vez não é. O som irritante da chamada encerrada por falta de resposta
se eleva, e perco qualquer esperança de conversar com Matt antes de
responder as perguntas de Edgar — de verdade.
Sem coragem de levantar, olho a porcentagem da bateria do celular
na tela de bloqueio.
Merda. Meu carregador ficou no quarto, no qual provavelmente
não vou poder entrar até muito mais tarde. Desligo o aparelho para conservar
esses míseros—
Algo grande e pesado é jogado contra a pequena janela do banheiro
na parede oposta à porta. Cada músculo em meu corpo se tensiona, e o
celular cai da minha mão, se espatifando contra o piso.
Com o coração prestes a pular do peito, encaro a janela e deixo
escapar de meus lábios um suspiro de alívio ao perceber que o estrondo foi
causado por um galho. Um galho de árvore. Foi apenas um galho, seu idiota.
Respiro fundo e tento me desfazer do susto. Apanho o celular do chão. A tela
agora tem mais alguns arranhões agora. Ótimo.
Isso é estúpido. Estou desconfiado e me assustando até com minha
própria sombra. Estou na delegacia, o lugar mais seguro em que poderia
estar. Se há algum lugar em que E.V. jamais conseguiria me alcançar, é aqui.
Com esse pensamento e diante da minha incapacidade de contatar
Matt, me dou conta de que preciso pensar rápido, e sozinho. Se eu não contar
a Edgar o que sei, estarei traindo sua confiança, mentindo em sua cara mais
uma vez, e agora ele sabe que há algo de errado. E.V. resolveu deixar claro
para todo mundo que há algo de errado. Onde estão as porras de suas
mensagens de assédio agora? Deve saber que estou na delegacia, por isso está
silencioso.
Reflito um pouco mais. Contar o que sei a Edgar parece a opção
mais lógica, mas estarei quebrando a promessa que fiz a Matt. Além disso,
algo será permanentemente quebrado entre nós. As duas opções parecem
erradas de maneiras diferentes. Droga.
Inspiro. Expiro. Inspiro. Expiro.
Alguém então bate na porta.
— Tommy? — É Edgar do outro lado.
Não tenho mais como evitá-lo. A verdade é que Matt e eu não
ficaremos vivos por muito tempo se continuarmos com isso, provavelmente
acabaremos à sete palmos debaixo da terra, bem como Alexis. A única coisa
pior do que perder Matt seria vê-lo machucado.
Tomo minha decisão, mas antes preciso informá-la a Matt. Devo a
ele ao menos isso.
Levanto do vaso e encaro a janela do banheiro uma última vez.
Seria engraçado se eu a abrisse, me atirasse por ela e corresse para longe dali.
É o que meu coração me manda fazer, mas meu cérebro está cansado de
mudanças. Finalmente tenho uma casa. Finalmente tenho uma família.
Eastview é meu lar, e não deixarei mais um maldito psicopata perturbar isso
dessa forma.
Abro a porta.
— Eu vou te contar tudo — declaro, um pouco incerto, mas
decidido. Ergo a nuca até meus olhos encontrarem os orbes semicerrados do
meu pai adotivo.
— O quê? — Ele dá um passo para trás.
Saio do banheiro e fecho a porta atrás de mim.
— O que sei sobre E.V., sobre as fotos, sobre as mensagens... —
murmuro enquanto caminho pelo corredor de volta à recepção. — Vou te
contar tudo. — Edgar vem logo atrás de mim. — Mas preciso falar com Matt
antes.
Edgar me para com a mão em um dos meus ombros. Sou obrigado
a virar e encará-lo.
— Mateus Armani? — Ele ergue as sobrancelhas. — O garoto com
quem você brigou mais cedo? — Parece genuinamente confuso por um breve
momento, até que se lembra: — Tem algo a ver com aquelas fotos, não tem?
Esfrego minha própria nuca, fugindo de seu olhar questionador.
— É... — balbucio, mas acabo engasgando com minha própria
saliva. — É complicado — minha voz sai mais vacilante do que o normal.
Edgar ajeita o cinto escuro e pigarreia.
— Pois então trate de descomplicar isso agora, rapazinho. Não
estou entendendo o que está acontecendo, e não gosto disso, Tommy — diz.
Engulo em seco. — Sou seu pai, você precisa ser honesto comigo.
Isso me atinge como um soco no estômago. Me sentindo
enclausurado por aquela conversa, olho para trás, em direção à recepção. Por
que falar sobre Matt com Edgar, ou com quem quer que seja, é tão difícil?
— Eu sei disso, mas não posso... — me viro em direção ao policial
novamente. — Não antes de conversar com Matt. — Suspiro profundamente.
Afasto a mão da nuca e volto os olhos aos dele. — Eu fiz uma promessa,
Edgar. Sinto muito.
Algo nas feições do meu pai muda, e não da forma como eu
esperava. Ele cerra os punhos, ao passo que sua expressão congela pelo mais
breve dos segundos. Um brilho peculiar atravessa seu olhar. Um brilho frio e
feroz, do tipo que se vê nos olhos de um leão no instante antes de vê-lo cravar
seus dentes na presa indefesa mais próxima. E, tão rápido quanto apareceu,
aquele brilho se desfaz, deixando em seu lugar apenas o pai preocupado e
policial frustrado.
Quando finalmente abre a boca outra vez, sua voz tem um tom
ríspido incômodo, como o som de uma lâmina ao ser afiada em metal
enferrujado.
— Essa pessoa invadiu nossa casa, invadiu seu quarto, enquanto
sua mãe estava lá. Fotos do suicídio de Alexis? De você e Matt juntos em
uma floresta? A mensagem pintada em tinta que lembra demais sangue? —
Cada sílaba é cuspida com severidade. Há algo de bastante diferente nele.
Diferente o suficiente para fazer meu corpo se afastar inconscientemente. —
E você não pode me explicar por que fez uma promessa ao garoto que te
socou mais cedo? — Seu pescoço se inclina para o lado lenta e sutilmente.
Olho para trás pela segunda vez e penso na voz de Matt. Na maldita
voz de Matt. Na forma desesperada com que ele me pediu para manter tudo
em segredo. Me sinto acorrentado. Acorrentado a ele e acorrentado a Edgar.
Ambas as correntes me puxam para lados opostos e me despedaçam.
— Não foi um suicídio — as palavras pulam de mim antes que eu
possa hesitar.
Fecho os olhos. Paro de respirar. Por um momento, fico sozinho em
minha própria escuridão, contemplando a merda catastrófica que fiz. Mas não
há mais volta, não quando Edgar diz:
— O quê? — E toca meus ombros.
Minhas pálpebras se abrem vagarosamente e, embora um fundo de
dor comece a se intensificar em meu peito — sei que Matt jamais vai me
perdoar —, meus ombros relaxam. Estou falando a verdade. Estou ajudando a
todos com isso. É o que preciso fazer. Talvez o maior vilão desta história, até
mesmo mais que E. V., seja a situação fodida em que Matt e eu fomos
colocados.
— Alexis não se suicidou — falo ao reencontrar as íris escuras de
Edgar.
Como esperado, ele está atônito. Tem vincos profundos na testa, os
olhos estreitados e os lábios apertados, uma mistura de perplexidade e euforia
manchando sua expressão quase sempre calma e sábia.
— E como você sabe disso, Tomas? — murmura desconfiado. Sua
mão se afasta de mim e descansa sobre o coldre de sua arma: está alerta.
Reviro os olhos e mordo o lábio inferior tentando pensar na melhor
forma de explicar isso. Eu deveria mentir? Deveria tentar esconder a
participação de Matt? Mas como explicaria o caralho daquelas fotos na
parede?
Não havia uma forma boa de falar: existia apenas a verdade. Então
que fosse.
— Eu não tava fazendo um projeto idiota de mecânica naquela
noite. Tava em Eastview, e vi... — me interrompo. A lembrança daquela
noite, daquele corredor com as luzes piscando, do ambiente anormalmente
gélido, faz um calafrio atravessar minha espinha. — Eu vi Alexis ser
assassinado.
— Você o quê? — Ele explode, e sua voz ecoa pelos corredores da
delegacia.
Mesmo de longe, percebo quando Scooper deixa de fazer qualquer
merda que estivesse fazendo na recepção pra prestar mais atenção em nossa
conversa.
— Eu vi ele ser assassinado... — completo tentando ignorar a
cortina densa de incompreensão no rosto do meu pai. — Mas não consegui
ver quem era o assassino.
— E por que diabos você esperou até agora para me contar isso? —
A incompreensão se mistura a frustração e fúria.
Me sinto tão vil, tão nojento quando percebo que ter escondido essa
informação foi a coisa mais cruel que já fiz na vida. Cruel com os pais e
amigos de Alexis. Cruel com Fabian. Cruel com Edgar e todo o corpo
policial. Cruel com todos ao meu redor. E me sinto pior ainda ao perceber
que a fonte de toda essa crueldade... é alguém que amo.
— Porque... — balbucio outra vez, mas não engasgo. Inspiro fundo
e encaro meu pai. — Eu não estava sozinho quando aconteceu.
Ele não sustenta meu olhar por muito tempo no entanto. Observa o
chão por alguns segundos, a parede transparente à nossa esquerda e então o
chão outra vez. As peças sobre mim e Matt, as fotos e E.V. se encaixam em
sua cabeça antes mesmo que eu tenha que cuspir tudo.
Quando volta a me fitar, sua expressão parece apática, a tela branca
da morte de um celular que acabou de se espatifar no chão. Ele poderia
vomitar ali mesmo, gritar ou cair morto no chão: eu não conseguia ler nada
em seu rosto. Era como se vestisse a máscara branca sem expressão de
Michael Meyers sobre sua própria pele.
Arrepios navegam por minha nuca e penso em dizer alguma coisa
para retirá-lo daquele transe, mas, graças aos céus, não preciso. Um aviso
sonoro sai de seu rádio comunicador, e uma voz irritante soa do outro lado:
— Villareal, está na escuta?
Edgar pisca duas vezes antes de dar um passo para trás e apanhar o
aparelho. Ele desvia o olhar de mim e permanece distante enquanto responde:
— Estou. O que houve?
— Um arrombamento. Rua Ellantriz, 446.
— Ótimo — sussurra irritado para si mesmo antes de responder ao
rádio. — Não temos mais ninguém disponível?
Me afasto até me recostar na parede mais próxima. Cruzo as mãos
atrás das costas; meus dedos são os primeiros a sentirem o frio da janela de
vidro incorporada à parede que separa a sala de interrogatórios do corredor.
O que Edgar faria com aquela informação? Os policiais
conseguiriam descobrir quem é E.V. se encontrassem digitais ou alguma
porcaria dessas em meu quarto? Eu precisaria ficar aqui por muito mais
tempo? Poderia ser acusado de algo por ter escondido o que sabia até agora?
E quanto a Matt?
Minha cabeça roda, roda, roda, e eu não tenho resposta para
nenhuma dessas malditas perguntas.
— Não, senhor — a voz do outro lado do rádio comunicador
responde. É Samara.
Mas se Scooper está na recepção, não deveria ele receber qualquer
tipo de chamado? Por que um arrombamento seria reportado a Samara, e
então a Edgar?
E, mesmo em meio a tudo isso, não consigo deixar de me
perguntar: por que Matt não atendeu minhas inúmeras chamadas?
Me volto na direção da entrada da delegacia outra vez, o cenho
levemente franzido.
— Estou a caminho. — As palavras de Edgar me chamam atenção.
Olho para ele, que encarava a porção exposta do meu pescoço enquanto eu
estava voltado para a recepção. O policial desliga o rádio e o coloca de volta
no compartimento do cinto. — Fique na delegacia com Scooper. Quando eu
voltar, vamos ter uma conversa longa e séria — diz em uma voz gélida.
Expiro aliviado sem que ele perceba, e só então percebo o muro de
tensão que se ergueu entre nós desde que essa conversa começou. Eu só
queria que isso acabasse logo. Que tudo acabasse logo.
— Eu vou te contar tudo — murmuro para acentuar meu
arrependimento. — Sinto muito por não ter contado antes.
Ele inspira profundamente, e temo de que reaja de forma fria outra
vez. Mas o policial esfrega a barba por fazer e acena veementemente. Há
compreensão em seus olhos.
— Volto em uma hora no máximo — é tudo o que responde.
Aponta para o meu peito com o indicador como se me ordenasse a
permanecer neste exato local até que retorne. Posso ver que ainda há
preocupação e desconforto em seu rosto, mas quando me dá as costas e
caminha para fora da delegacia, algo me diz que estarei bem aqui, que estarei
seguro desde que continue dizendo a verdade, que não esconda mais nada de
ninguém.
E isso inclui Matt.
Preciso que ele saiba o que acabei de fazer pela minha própria
boca. É a única chance que tenho de ele não me odiar para sempre.
Encaro a extremidade do corredor, a porta do banheiro onde tentei
ligar para Matt. Meu celular está fodido, tentar usá-lo novamente é inviável.
Talvez o de Matt também esteja. Talvez ele não tenha me ignorado de fato, só
não atendeu por algum outro imprevisto.
Pelo que consigo calcular, Matt já deve estar em casa. Já que tentar
entrar em contato com ele por alguma rede social agora é inútil se ele estiver
mesmo sem celular, a linha fixa dos Armani é minha melhor alternativa para
conversar com ele antes que tudo isso exploda em nossos rostos. Com a saída
de Edgar, só resta Scooper na delegacia. Viro o rosto para a outra
extremidade do corredor e caminho até a recepção.
Ainda há um telefone que posso usar.