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Direitos autorais
Dedicatória
Nota da autora
Prólogo
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Epílogo
Referência
Agradecimentos
Livros deste autor
Direitos autorais © 2022 Rose Moraes
Os personagens e eventos retratados neste livro são fictícios. Qualquer semelhança com pessoas
reais, vivas ou falecidas, é coincidência e não é intencional por parte do autor.
Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida ou armazenada em um sistema de recuperação, ou
transmitida de qualquer forma ou por qualquer meio, eletrônico, mecânico, fotocópia, gravação ou
outro, sem a permissão expressa por escrito da autora.
— Você vai ficar despejando suas ignorâncias pra cima de mim logo
cedo, mãe?
— Olha como você fala comigo, Caique! É inadmissível você ainda
querer conferir algo que já fiz. — Minha mãe me olhava com ódio.
— Fui conferir porque você se envolveu. Sou o presidente daquela
empresa e a decisão final é minha. A senhora sabe muito bem que se tem
alguma conferência dessa importância, eu gosto de averiguar pessoalmente
e não pedir a terceiros. O papai era assim.
— Ah, agora eu sou “terceiros”? Caso você não se lembre, sou
acionista na empresa, senhor presidente; e sua mãe! E seu pai era um doido!
Onde já se viu ir pessoalmente conferir uma obra, isso não é para nós, os
Montenegro. — O semblante de soberba estava estampado em seu rosto.
— Você sempre deturpa o que digo. A construção desse shopping é
muito importante e já falei para a senhora que projetos grandiosos assim, eu
tomo as decisões diretamente, sem passar por ninguém. Tenho uma equipe
maravilhosa? Tenho, inclusive meu melhor amigo trabalha nela. Tenho a
senhora na empresa, apesar de ser sempre contrária ao que digo, mas tenho,
mas eu gosto de decidir tudo, afinal, sou o presidente. E a senhora foi dizer
ao Gustavo Meirelles, que eu iria autorizar a utilização de material de
qualidade inferior na construção. Jamais!!!! Já autorizei a compra do
material de melhor qualidade do mercado.
— Vai gastar dinheiro à toa. Você ama esbanjar.
— Esbanjar? Estou pensando na segurança das pessoas que irão
frequentar o local e ao mesmo tempo, trazer mais rendimento pra empresa.
Vamos consolidar o nome que já temos no mercado. Pare de tomar decisões
por mim. Quer me ajudar, dê sua opinião e vamos discutir juntos.
— Você é um idiota como o seu pai. Matheus estaria bem melhor à
frente da empresa.
— Pare de falar do papai. Ele não está mais aqui para se defender das
suas ignorâncias. A senhora é ambiciosa, quer manter a pose, mas
economizando onde não deve haver economia e não é assim que as coisas
funcionam, não quando somos donos da maior construtora do país. Temos
um nome a zelar e a senhora adora sustentá-lo por aí. E quanto ao Matheus,
você prefere ele, pois meu irmãozinho caçula é como a senhora, se não pior.
— Me poupe da sua ladainha, Caique. Esse seu eterno drama me irrita
mais do que me convence.
Observei aquela mulher que tinha o título de minha mãe, mas que
parecia me odiar, subir as escadas da nossa casa e me deixar ali, com mais
uma amostra do seu caráter.
Branca Montenegro era uma mulher ambiciosa, exibicionista e
preconceituosa. Este último, era com tudo que se possa imaginar. Odiava
pessoas pobres, negras, gays... A lista era extensa. E eu também não sabia
ao certo como ela se tornou mãe, uma vez que queria sempre manter o
corpo perfeito, por que ela se preocupava muito com a aparência também.
Só que com o passar dos anos, fui percebendo que era só comigo o seu
desprezo, pois minha irmã Beatriz ela paparicava e o Matheus, ah, esse ela
só faltava lamber o chão que ele pisava.
Meu pai, Augusto Montenegro, nos deixou havia um ano. Morreu em
decorrência de um grave tumor no cérebro e a falta que ele me fazia era
imensurável.
Meu velho construiu seu império de forma justa. Ele era um homem
honrado e de pulso firme, que comandava sua empresa na linha de frente,
mesmo tendo uma equipe para auxiliar. Jamais vi meu pai faltar ao trabalho
e delegar tarefas aos outros. Até hoje, sinceramente, não sabia como ele foi
se apaixonar por minha mãe, mas ficaram juntos por 25 anos e isso me
deixava perplexo tamanha a diferença entre eles.
Um pouco antes de morrer, meu pai me deu mais uma amostra de sua
confiança e amor, dizendo para mim, em uma cama de hospital, que eu era
seu maior orgulho e que ele me amava muito. Que ele iria descansar em paz
sabendo que eu continuaria com seus negócios. Que eu seria perfeito para
comandar sua empresa e que não deixaria nada faltar para minha mãe e
meus irmãos.
Isso enfureceu minha mãe na época, porque queria que o Matheus ou a
Beatriz assumisse a Presidência; assim ela comandaria por trás. Minha
irmã, coitada, não era uma fútil como minha mãe, mas não ligava para os
negócios da família. O negócio dela era a moda. Beatriz havia nascido para
isso e era estrela de grandes campanhas para marcas muito famosas. Seu
nome era forte nesse meio. Minha mãe adorava, pois ganhava roupas que
nem nas lojas tinham chegado e depois ostentava em jantares caríssimos.
Beatriz era muito independente e não seguia muito as loucuras que minha
mãe falava. Estava mais preocupada em cuidar da sua carreira que crescia
cada vez mais. A fama estava se consolidando.
Meu irmão caçula só queria usufruir do dinheiro da família e de vez
em quando batia ponto na empresa. Ele havia se formado em advocacia e
“fingia” que trabalhava lá. Coitado de mim se tivesse ele como referência
de advogado na empresa, já estaria tudo em ruínas.
Minha equipe era muito bem montada e ainda contava com pessoas
que iniciaram com meu pai. Isso me dava um suporte maravilhoso. Nela,
também estava meu melhor amigo, Saulo. Nós nos conhecemos ainda
adolescentes e essa amizade seguiu até os dias de hoje. Estudamos juntos na
mesma escola, na mesma faculdade e ele sim, era um excelente advogado.
Um verdadeiro exemplo de profissional e tinha a minha total confiança. O
irmão que eu não via em Matheus, via em Saulo.
Ele sempre foi meu ombro amigo. Sempre me ouviu quando eu
desabafava sobre a rejeição que sentia por parte da minha mãe, que era tão
contrária ao carinho e amor que meu pai me dava. Sobre meus embates com
Matheus, que parecia querer competir comigo desde que veio ao mundo,
sendo que sempre o tratei com carinho, com os cuidados de um irmão mais
velho.
E por fim, foi Saulo que me amparou quando perdi meu pai. Até hoje
não lidava com isso muito bem e chorava várias vezes, principalmente
quando estava em sua cadeira, na sala da Presidência da AGM Construtora.
Me senti sem rumo e sozinho, pela primeira vez na vida, sem meu pai
ao meu lado. E todos os dias tento ser o melhor e honrar seu nome, da
empresa e o de nossa família.
Com isso, acabava me deixando de lado. Foi muita coisa para absorver
e comandar depois que meu pai nos deixou. Hoje, aos 26 anos, não é fácil
ser quem eu sou, com tantas responsabilidades nas costas. Sendo o rosto da
minha família e da empresa, nenhum escândalo podia ter meu nome
envolvido, até porque, seria mais uma coisa para minha mãe ter contra mim.
Encosto-me no sofá ainda criando coragem para ir trabalhar. Essas
discussões logo cedo com minha mãe acabavam comigo e deixavam meu
humor em frangalhos. Olho em meu relógio e vejo que Saulo está para
chegar. Meu amigo hoje iria comigo, já que seu carro estava em revisão e
nós morávamos no mesmo condomínio de casas.
— Bom dia, senhor Caique. — Olho para Magnólia, nossa querida
governanta e sorrio para a mulher de cabelos brancos. Ela é a doçura da
nossa casa e seu carinho por mim me comove.
— Mag, sem o “senhor”. Bom dia — respondo e me levanto, indo
abraçá-la.
— Tenho medo da dona Branca ouvir e não gostar. Ela já me deu
várias broncas por isso — a senhora responde abraçada a mim.
— Ela foi para o quarto dela, no mínimo, para retocar aquela
maquiagem que nunca pode estar desfeita, mesmo sendo tão cedo.
— Já vai para a empresa?
— Vou, estou só esperando o Saulo. — A campainha tocou nesse
instante.
— Vou atender, deve ser ele — Mag respondeu.
Meu amigo entrou com seu bom humor habitual e deu um beijo
estalado no rosto de Mag, fazendo-a corar e veio até mim.
— Bom dia, patrão.
— Olha esse deboche. — Saulo riu.
— Vamos trabalhar?
— Vamos. Hoje tenho duas coisas muito importantes para fazer. —
Saulo me analisou e sabia que ele estava se perguntando o que era.
— Sei da inspeção na obra. Que outra coisa seria essa? — Uma
sobrancelha foi levantada em minha direção.
— Te conto no carro, vamos!
O tempo estava uma merda. Nublado, ventando e chovendo forte, nem
parecia o Rio de Janeiro. Fábio, meu motorista e segurança, abriu a porta
pra gente e quando Saulo e eu estávamos acomodados, ele nos levou para a
empresa.
Durante o percurso, subo a divisória do carro e logo, Saulo e eu, temos
privacidade.
— O que você está aprontando, Caique?
— E eu sou lá homem de ficar aprontando?
— É, realmente, você é certinho demais, até para o meu gosto.
— Não fale assim, você sabe mais do que ninguém das minhas
responsabilidades.
— Mas não precisa se anular por elas. Você nem vive, Caique. E você
sabe muito bem do que estou falando. — Encarei os olhos do meu amigo.
— Sei, mas, então, é sobre isso a outra coisa que irei fazer hoje. Vou
me encontrar com Natanael de novo.
— Justo ele?
— Por que você cisma com o rapaz?
— Ele não me passa confiança, só isso. Porra, vocês se conheceram no
banheiro de um evento e você logo ficou todo rendido. Me lembro dos seus
sorrisos naquela noite.
— Já estamos saindo há dois meses e estou adorando. Claro que não é
toda hora que consigo me encontrar com ele, mas o Nate não desistiu e isso
me mostra que também sente algo por mim. — Saulo suspirou. — E a
forma que nos conhecemos pouca importa, o conheci e gostei dele. Vou
julgar o rapaz por que o conheci no banheiro? Sério isso?
— Tá, só não quero que se machuque, ok? Você, apesar de ser um
empresário de sucesso e já ter 26 anos, não tem muita experiência com os
homens. E é por isso que falo que você tem que viver, se permitir a
conhecer pessoas. Mesmo que não seja intencional, você vive em uma
redoma, Caique. Fora esse Natanael, só saiu com mais dois e não deu certo.
— Minha mãe não pode suspeitar que sou gay, não agora. Não até eu
acabar essa obra do shopping e fazer dele um sucesso. É o primeiro projeto
grandioso que pego desde a morte do meu pai e sei que ela está só me
observando, esperando um deslize para me dar o bote. Depois ela vai ver o
empresário que sou. Daí, vou tomar as rédeas e me assumir, goste ela ou
não.
— Sabe que por mim você já tinha feito isso mas você se prende muito
ao que ela e os outros vão achar.
— Não é isso, é que, como ela é acionista, tenho medo de que ela faça
algo para me tirar da Presidência.
— Ela não faria isso.
— Há essa possibilidade, Saulo. Os outros acionistas gostam muito
dela também. Se ela arma um motim contra mim, eu caio. Minha mãe é
muito preconceituosa e, também fico com medo da exposição na mídia e o
quanto isso poderia nos afetar. Já presenciei clientes bem preconceituosos
no nosso ramo e você sabe o quanto isso me assusta. No fundo, não é minha
mãe que me preocupa e sim, em não conseguir cumprir a promessa que fiz
ao meu pai, de cuidar dos negócios da família. Me sentiria péssimo em
decepcioná-lo de alguma forma.
— Essa parte até juro que entendo, mas não queria que você se
anulasse por isso. — Suspirei e olhei pela janela quase não enxergando
nada por causa da chuva.
— Estava com saudade! Desta vez você demorou muito para achar um
tempinho pra mim. — Natanael estava ofegante, pois eu já beijava seu
pescoço, apertando sua bunda gostosa e ele tirava a minha gravata.
— Desculpa, meu lindo. Com esse novo projeto do shopping, tenho
ficado atolado de serviço.
— Tudo bem, eu te entendo.
— Homem, que fogo!! — Ri do comentário do cara lindo ao meu lado,
que estava me deixando todo apaixonado.
Tínhamos acabado de transar e realmente eu estava cheio de saudade
dele. Estava louco para tê-lo dentro de mim e hoje não lhe dei sossego.
— Promete que entende que preciso ir?
— Claro! Essa construção é importante para sua empresa. E que
sacanagem essa que sua mãe fez, hein?
— Pois é, por isso preciso ir pessoalmente ver como anda tudo e
acabar com essa história de material de baixa qualidade. Na minha empresa
não vai ter isso.
— Bota ordem, meu CEO. — Nós dois rimos.
Tomei um banho rápido enquanto Nate ficou na cama mexendo no
celular. Saí pelado mesmo, ganhei um olhar gostoso dele e comecei a vestir
meu terno para ir para o meu compromisso.
Quando me virei para ele, meu gatinho tinha um sorriso bonito no
rosto e antes de sair, ainda dei um beijo muito gostoso nele.
— Namora comigo? — perguntei e ele arregalou os olhos.
— Namorar?
— Sim, estou gostando muito de você, Natanael.
A reação dele não era a esperada por mim. Natanael ficou
constrangido, surpreso, assustado, tudo isso, menos empolgado.
— Olha, não precisa responder agora. Pode ser no próximo encontro,
ok?
— Tá bom. Não fica chateado comigo, você me pegou de surpresa.
— Claro que não estou. Já estou com saudades — disse e ele sorriu,
me dando um selinho nos lábios.
— Também já estou. Vai, senão você se atrasa, gatão.
Depois de mais um beijo, saí do motel em que estávamos e na garagem
Fábio já me aguardava com toda discrição. Sempre ligava para ele vir me
buscar, não podia correr o risco de alguém me ver saindo daqui. E eu
sempre que saía com Natanael estava com um carro diferente.
Além de terem a AGM Construtora, que já ganhou vários prêmios por
ser considerada a maior construtora do Brasil, meus pais sempre fizeram
parte da alta sociedade do Rio de Janeiro. Tanto meu pai, quanto minha
mãe, nasceram e cresceram neste meio e eu e meus irmãos nascemos em
berço de ouro. Nossa família sempre foi muito badalada: capas de revista e
eventos grandiosos. Até porque, os sócios do meus pais também eram
homens poderosos. Fui muito bem recebido quando assumi a Presidência e
senti o peso de estar representando Augusto Montenegro.
Por isso que evitava tanto os escândalos e não era assumido ainda, mas
Nate aceitando namorar comigo, eu enfrentaria tudo por ele, só precisava
acabar esse grande projeto que era tão importante pra mim.
— Desculpe fazer você vir aqui, Fábio.
— Que isso, senhor Caique. É meu trabalho, busco o senhor onde for.
— Mas um motel é um pouco ridículo, você não acha?
— Eu entendo a posição do senhor. É famoso e sabemos o quanto os
jornalistas ficam à espreita.
— Exatamente. Vamos para São Conrado agora.
— Sim, senhor.
(Natanael)
O acidente
— Meu Deus, essa chuva não para! — falei olhando pela janela.
— A meteorologia disse que a frente fria vai até sexta-feira — Fábio
responde. — E com essa chuvarada precisamos ter mais atenção.
— Isso mesmo — respondi, teclando com Saulo sobre o meu encontro.
— Vamos pegar algumas retenções, senhor Caique.
— Fazer o que, Fábio. O importante é chegarmos bem. Fica tranquilo.
Quase quarenta minutos depois e ainda estávamos na Alta Estrada
Lagoa Barra, pois em alguns pontos tinha muito trânsito. No momento que
pareceu melhorar e Fábio conseguiu andar sem parar tanto, meu telefone
tocou e vi o nome da minha mãe na tela. Revirei os olhos antes de atender.
— Que foi, mãe?
— O QUE FOI? VOCÊ TEM CORAGEM DE ME PERGUNTAR
ISSO?
— Ei!! A senhora está gritando por quê?
— OLHE A INTERNET, SEU IMBECIL. SEU PAI TERIA NOJO DE
VOCÊ NESSE MOMENTO.
Assustado com seu rompante, pedi a Fábio que me emprestasse seu
celular para não sair da linha com minha mãe e olhei na internet. A página
de um grande veículo de comunicação trazia uma foto minha, nu, de costas,
dizendo para todos que eu era gay e que finalmente deixava de ser tão
certinho. Aquilo me assustou por eu reconhecer que era uma foto de hoje.
— Mãe... — falei com a visão turva e o coração a mil.
— MÃE? AGORA VOCÊ VEM FALAR “MÃE”? Não sei quem é
você, Caique.
— CLARO QUE SABE QUEM SOU EU, PORRA! — Me
descontrolei e chorava ao mesmo tempo.
Quanto mais eu passeava pela internet, mais ia achando coisas falando
de mim e até da construção do shopping. E pior, vi outras fotos minha e
todas no mesmo motel que eu ia com o Natanael.
— Não acredito nisso!!!
— Você é um sem-vergonha, Caique. Olha o tipo de homem que
Augusto deixou na Presidência da nossa empresa. Aliás, homem você não
é. Uma bicha é o que você é!!!
—PARA, MÃE!!!! — gritei com ela.
— Senhor Caique, calma! Por favor, calma, o senhor pode passar mal
assim — Fábio falava preocupado, dirigindo, e volta e meia olhava para
mim. Eu estava desestabilizado, chorava e não acreditava no que via. Se as
fotos eram de quando eu estava com Natanael, só podia ter sido ele quem as
tirou, pois nem eram na rua e sim, dentro do quarto!
— EU VOU TIRAR VOCÊ DA PRESIDÊNCIA DA EMPRESA,
CAIQUE! VOCÊ É UMA VERGONHA PARA NOSSA FAMÍLIA. UM
QUALQUER, UMA BICHA NOJENTA. MALDITA HORA QUE EU TE
TROUXE AO MUNDO!
Larguei o celular no banco e me entreguei ao choro com as mãos em
meu rosto. Minha vida estava destruída. Tinha sido arrancado à força do
armário e minha mãe faria um inferno. Perderia a Presidência e o que eu
mais temia aconteceria, iria ser uma decepção para o meu pai. Seu
sobrenome estava exposto de uma forma violenta a julgamento de todos.
Seria a chacota, talvez sócios encerrassem parcerias devido ao escândalo.
— O senhor está bem? — Fábio continuava aflito e eu não conseguia
me acalmar.
— Todos descobriram, Fábio! Todos descobriram que sou gay.
— Meu Deus, como isso?
— Foi o Natanael, tenho certeza. Tem fotos publicadas na internet de
momentos nossos dentro daquele quarto de motel.
— Jesus Cristo.
Meu telefone começou a tocar e Saulo apareceu na tela.
— SAULO, ME AJUDA!!!
— Caique, porra! Onde você está? Que merda foi essa que aconteceu?
Vou acabar com a vida desse sujeito! Foi ele, não foi?
— Com certeza, foi. Os momentos nossos registrados são dentro do
quarto. Ele esteve me fotografando esse tempo todo e não vi. Tem fotos de
mim dormindo, de mim no box, totalmente pelado, nossas pernas juntas. Eu
estava pensando que ele estava respondendo a mãe ou irmã, como ele dizia
e o infeliz estava era me fotografando!!!
— Vou revirar o Rio de janeiro todo atrás dele! Pode ter certeza e
processar todo mundo, até a redação! Onde você está?
— Na Estrada Lagoa Barra, o trânsito está muito ruim e não para de
chover. Eu estou desesperado, Saulo. Minha mãe vai me tirar da
Presidência! — Estava à beira de um colapso.
— Se acalma, Caique. Por favor, se acalma! Passa o telefone para o
Fábio.
— Calma, senhor Caique. Logo estaremos lá. — Fábio me olhou
brevemente apenas para falar isso e eu estendi o telefone para ele pegar.
Depois disso foi tudo rápido demais.
Uma árvore enorme caiu, devido ao temporal, em plena estrada,
fazendo uma van que estava na frente da gente se chocar violentamente em
seu tronco grosso e nosso carro entrou em sua traseira mais forte ainda.
Fábio nem teve chance de frear.
O barulho foi estrondoso e meu corpo foi tirado do banco de trás,
passei parcialmente por cima do banco do carona e meu rosto acertou com
toda força o painel do carro. Fiquei completamente tonto e sentindo uma
dor violenta no pescoço. Escutava de longe a voz de Saulo gritando no
telefone o meu nome. O aparelho estava caído no chão do carro. Quando
olhei para Fábio de relance, vi que o airbag se abriu e meu motorista foi
amparado por ele, mas parecia desmaiado.
Só que não tive nem chance de reagir ao que aconteceria. Escutei uma
buzina incessante e meio lento, olhei para trás, apoiando meus braços no
acento do banco, a tempo de ver um caminhão vindo em alta velocidade
sem frear e arregalei meus olhos, para em seguida ver e sentir o pior
acontecer.
O caminhão se chocou com nosso carro e uma dor alucinante me
apagou por completo.
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20/05/2014 15:52. Atualizado há 2 minutos
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20/05/2014 16:10. Atualizado há 1 minuto.
Por fim, apenas restou a dor que eu carregava de ver meu amigo
naquelas condições. Um homem bonito, poderoso, gentil, inteligente e que
sonhava em ser feliz sendo quem ele era de verdade, agora estava passando
pela pior situação da sua vida. Eu não conseguia aceitar, não me
conformava. Mas quando o médico foi taxativo, não tinha o que contestar.
Caique teve uma lesão torácica incompleta. Um milagre ter sido assim.
Ele perdeu os movimentos e a sensibilidade da cintura para baixo. Meu
melhor amigo estava paraplégico e eu não sabia como ele iria encarar, como
ele ia viver com isso. Dúvidas e mais dúvidas me assolavam e eu imaginava
que com ele seria pior. Fiquei inerte por dias quando eu soube. Quando o
desespero batia, eu chorava feito uma criança e só rezava para um milagre.
Agora estava aqui, sentado nessa sala de espera do hospital, esperando
a oportunidade de vê-lo de olhos abertos. Mas ao mesmo tempo morria de
medo, estava covarde, sem saber como contar a sua nova condição.
— Saulo, está tudo bem? — Olhei para o lado e Beatriz se sentava
perto de mim. — Já podemos vê-lo? Quando me ligaram daqui larguei tudo
e vim correndo.
— Ele está fazendo alguns exames, temos que esperar. E sua mãe e o
Matheus?
— Também virão, falei com eles.
— Hum.
— Não brigue mais com eles, Saulo. Vamos priorizar o Caique. Pedi
isso a eles também.
— Não consigo olhar na cara do seu irmão dissimulado e da sua mãe...
— Eu sei o quanto eles são difíceis, mas esses dias mamãe disse que
queria ver o Caique longe desse hospital.
— Desculpe, mas não acredito no amor de mãe dela. — Estava puto e
esgotado. Tudo que vi de Branca Montenegro nesses três meses que Caique
ficou em coma, foram suas tentativas de colocar Matheus na Presidência e
ela seguindo com a vida como se não tivesse um filho paraplégico em cima
de uma cama de hospital.
— Não vou contra seus pensamentos, sei bem a mãe que tenho. Mas
vamos pensar no Caique. A Presidência é dele, as tentativas da minha mãe
foram frustradas e você vingou meu irmão contra aquela revista. Vamos
focar agora nele, somente.
— Desculpe, estou cansado.
— Eu imagino, também estou. Preciso ver meu irmão bem e fora
daqui. Ele não merecia isso, não merecia.
Estava de cabeça baixa quando o médico veio até nós. Até aquele
momento nem Branca e nem Matheus haviam chegado. Dei graças a Deus e
prestei atenção no doutor.
— Ele chama por Saulo, é o senhor?
—Sim, eu mesmo. Sou o melhor amigo dele.
— Vamos entrar juntos. Conversarei com o paciente e será bom o
senhor estar presente.
— E eu, doutor? Sou a irmã dele, Beatriz.
— Senhorita Beatriz, peço que aguarde. Como ele chamou pelo senhor
Saulo, será melhor.
— Tudo bem, estarei aqui. Vai com calma, Saulo. — Olhei para
Beatriz e concordei.
Meu coração estava na boca e minhas mãos tremiam.
— Senhor Saulo, nesses casos, não adianta tentar amenizar, ele precisa
saber da verdade. Apenas vamos explicar tudo que ele precisa saber com
clareza e calma.
— Ele já desconfia?
— Deve estar desconfiando agora, antes ainda estava meio grogue.
Vamos passar naquela sala ali para fazer a higienização corretamente.
— Ok
Assim que entrei naquele quarto, Caique direcionou seus olhos até
mim. Tive uma vontade enorme de chorar por ver seus olhos abertos e por
ver medo, confusão e tristeza neles.
Me aproximei devagar e cheguei ao seu lado na cama. Havia uma
cadeira ali e eu me sentei. Seu olhar me seguiu em todos os meus
movimentos e agora ele me encarava.
— Oi — falei de forma baixa. — Como rezei para te ver acordado de
novo.
— Não me esconde nada. Preciso saber de tudo, de toda verdade. —
Sua voz estava extremamente rouca. Devia ser por causa dos tubos que
utilizou.
— Não vou esconder nada de você, jamais.
— Eu... — Sua voz embargou e meu coração apertou. — Eu não
sinto... minhas pernas. O que houve com elas? O que houve comigo? Meus
braços, mãos, cabeça e tronco se mexem, mas minhas pernas não.
— Você se lembra do acidente, certo?
— Tenho alguns trechos na memória, mas me lembro do caminhão
vindo em nossa direção. — Concordei com a cabeça e respirei fundo,
olhando para o médico que me autorizou com um leve balançar de cabeça a
falar.
— Seu acidente foi um engavetamento causado pela queda de uma
árvore naquele dia. Chovia muito e ela caiu em plena estrada não dando
chance a uma van que estava na frente de vocês e nem ao Fábio de frear a
tempo. Vocês entraram na traseira dela e em seguida um caminhão esmagou
vocês. Isso fez com que o carro em que você estava virasse uma sanfona
entre ele e a van.
— Jesus Cristo.
— Foi um milagre você sobreviver, Caique.
— E o Fábio?
— Ele não resistiu.
— Deus. — Caique fecha os olhos e vejo lágrimas descer por suas
bochechas.
— Nem ele, nem o motorista da van e do caminhão. A polícia
averiguou e depois de muita investigação, viram que o motorista do
caminhão não estava bêbado, ele teve falha nos freios na hora exata e não
teve como evitar a batida, pois estava rápido e já próximo a vocês. A polícia
concluiu que se os freios não tivessem falhado naquela hora, talvez tudo
fosse diferente.
— Fábio e ele devem ter morrido esmagados?
— Fábio, sim, mas o motorista atravessou o vidro do caminhão e foi
jogado na rua. Estava sem cinto. Sua única infração.
— E eu...
— Você foi socorrido de helicóptero depois que te tiraram das
ferragens e ficou em coma por três meses. — Caique tenta processar tudo e
leva as mãos à cabeça toda hora.
— Doutor, agora é com o senhor. Eu vou poder voltar a andar? — Vejo
o médico se endireitar e engolir em seco antes de falar.
— Infelizmente não. — Segurei meu choro nessa hora. — Caique,
você sofreu uma lesão torácica incompleta. E ela te fez perder os
movimentos e sensibilidade da lesão para baixo.
— Isso é paraplegia, certo? O que eu tenho? Se eu não movesse na
parte de cima seria tetraplegia.
— Isso mesmo.
— Como assim incompleta? O que isso quer dizer?
— Incompleta quer dizer que parte das vias que passam por sua
medula espinhal não foram afetadas por sua lesão.
— Isso parece ser bom, certo?
— O que você tem que ter ciência é que você fará tratamentos,
fisioterapias e com o tempo, por ela ter sido incompleta e pelo seguimento
que foi atingido, você pode recobrar alguma sensibilidade. Com o
tratamento é possível devido ao nível de sua lesão.
— Alguma? Só isso?
— Caique, a partir de agora, você tem que focar em você. Tudo que
fizer, pode trazer consequências boas ou não.
— Como assim?
— A lesão está recente, em sua chamada fase aguda e agora você não
sente nada. Mas com tratamentos adequados e sua força de vontade, você
pode vir a recobrar sensibilidade. Virão espasmos e tudo será a resposta do
seu corpo e do seu esforço. Nessa fase inicial você fará uso de sondas e
fraldas e até nisso os tratamentos podem ajudar, com o tempo, a você a
voltar a controlar suas necessidades fisiológicas e se ver livre delas. Como
sua lesão é incompleta, como te expliquei, ainda existem alguns
mecanismos de segurança da medula preservados, então ainda há uma
capacidade do sistema nervoso exercer algumas funções. Portanto, o
tratamento e o comprometimento com ele são de suma importância para que
você possa recobrar alguma sensibilidade e até movimentos abaixo de sua
cintura. Por isso que eu disse que as consequências podem ser boas ou não.
Só serão boas se você se comprometer.
— Mas andar...
— Não, isso infelizmente, não. Foque que, com os tratamentos
adequados, você poderá recobrar sua independência com o tempo. Houve a
lesão, mas de forma incompleta, então você tem essa chance. Muitos às
vezes não têm nem essa oportunidade.
Caique tapou o rosto e chorou copiosamente. Foi um choro
extremamente sofrido. Olhei aflito para o médico, que com um sinal me
mostrou que esse choro fazia parte. Ele agiu como alguém que vê muitas e
muitas vezes essa mesma cena e sabe o quanto o paciente precisa desse
momento.
Esperei ao lado do meu amigo em silêncio e o doutor também,
enquanto fazia algumas anotações em sua prancheta. Quando Caique se
acalmou um pouco, me olhou com os olhos vermelhos e de forma triste
para só depois se dirigir ao médico de novo. Este já tinha um olhar
carinhoso em sua direção.
— Desculpe, doutor, esqueci seu nome.
— Henrique.
— Doutor Henrique, esse tempo de comprometimento para essa tal
“independência” — Caique fez aspas com as mãos e o senti nervoso. —,
são semanas ou meses?
— Meses e anos.
— Minha vida acabou.
— Não diga isso, Caique. Você sobreviveu a um acidente terrível! —
Toquei seu braço.
— Pra quê? Pra ser um inválido? Pra ficar em cima de uma cama? Pra
ter alguém limpando minha bunda e trocando minhas fraldas?
— Calma, Caique.
— Saulo, deixe-o. Esse rompante faz parte, eu o compreendo. Caique,
eu entendo você, o que está sentindo.
— Desculpe, mas o senhor não entende nada. Tem suas duas pernas
funcionando normalmente.
— Caique!! Não fale assim com o doutor, cara.
— Tudo bem, Saulo. — O médico era extremamente calmo e
concentrado naquela situação. — Caique, sua recuperação e sua reabilitação
não será apenas física. Será neurológica também. Haverá fases e fases, por
isso eu disse que tudo depende do seu esforço e força de vontade. Em
minha profissão vi alguns desistirem quando tinham chances até melhores
que você de recuperação. Entendo sua raiva, seu desespero, mas como
médico, tenho o dever de ser bem franco: não há a possibilidade de voltar a
andar mas há muitas chances de melhorar sua qualidade de vida, de não
depender de ninguém, apenas de você mesmo. Não condicione sua vida à
cadeira de rodas, mas aos seus braços, sua mente e seu coração que por
alguma razão continua batendo. Você verá as fotos de onde foi tirado
naquele acidente, ninguém acreditava na sua sobrevivência. — Caique não
tirava os olhos do doutor.
— Tudo que eu preciso tem aqui?
— Sim, o hospital é completo para sua reabilitação. Mas se quiser
tentar outros métodos, dou todo o encaminhamento.
— Vou sentir dores?
— Sim. Quando os espasmos começarem, e você forçar seu corpo, elas
virão também. Você fará uso de medicamentos que te auxiliarão nesta parte.
Nossa nutricionista já está trabalhando em sua alimentação, até ela será
muito importante em tudo que você fará. Daqui a algum tempo, começará
sua fisioterapia e poderá fazer exercícios físicos e fortalecer seus músculos
dos braços. Um psicólogo será de suma importância para você e aqui no
hospital já tem um à sua disposição. Oferecemos tudo, Caique. Só preciso
do seu querer. Mas por hora, descanse, assimile tudo que falei. Você
acordou de um coma e só autorizei que tudo fosse dito a você por saber que
perceberia suas pernas. Jamais te deixaria sem respostas. Posso pedir sua
irmã para entrar?
— Apenas ela está aí?
— Que eu tenha visto, sim.
— Sua mãe e seu irmão estão vindo ainda — falei.
— Quero ficar um pouco com o Saulo, logo peço para ela entrar.
— Ok, com licença.
Observei o médico fechar a porta e olhei para Caique, que enxugava os
olhos e depois olhou para mim.
— Por que isso aconteceu comigo? Por que, Saulo?
— Não sei, meu amigo, mas o importante é que você está vivo!! E
acho que poderia ter sido até pior. Caique, você estava todo torto em meio a
ferros retorcidos, com várias fraturas e custaram a tirar você. Nunca
esquecerei aquela cena.
— Nunca mais vou ter ninguém — ele disse triste e com os olhos
cheios de lágrimas novamente.
— Não pense assim. Eu li muita coisa durante o tempo do seu coma.
Fui até em palestras, conversei com outros cadeirantes e meu amigo, sua
vida não acabou. Só precisamos que você queira lutar e com o tempo se
adaptar.
— Por que ele fez isso? Eu tinha me apaixonado, Saulo.
— Esse verme já pagou.
— O que aconteceu? O que você fez?
— Eu processei ele e a redação. Sei que ele perdeu o emprego. Mesmo
que existam pessoas que esperam motivos para humilhar os outros na
internet, você ganhou muito apoio quando eu trouxe à tona como sua
intimidade foi exposta. Muita gente apoiou você. E quanto ao vazamento de
que sua mãe tinha cogitado que você comprasse materiais de quinta para o
shopping, a convenci de dar uma declaração e invertemos tudo isso. A obra
segue a todo vapor conforme você idealizou. Aurélio assumiu a Presidência
até você voltar e é como se você estivesse ao lado dele. Os acionistas te
apoiaram também e sua mãe não conseguiu te tirar da Presidência.
— Mas ela tentou, não foi?
— Sim, mas perdeu por 13 votos a favor de sua permanência contra 4
e um dos votos era dela.
— Ela deve ter desejado a minha morte.
— Não diga isso, mas desisto de tentar entendê-la. Ela teve que assistir
boa parte da internet apoiando você, a sua orientação sexual e condenando a
forma que você foi arrancado do armário. Gente famosa nesse meio. O
preconceito dela desceu ardendo pela garganta, com certeza. — Um
pequeno sorriso se fez presente no rosto de Caique, mas logo sumiu.
— Estou com medo das pessoas, não consigo mais confiar.
— Nem pense nos outros agora, apenas em você.
— Eu tinha planos pra ele. E no fim descubro que só fui um furo de
reportagem.
— Fiz o que estava em meu alcance, mas Deus viu tudo e o que é dele
está guardado.
— As famílias, tanto do Fábio, quanto do motorista do caminhão e da
van, receberam assistência?
— Do Fábio, sim, toda. Mas sua mãe não permitiu para os outros.
Principalmente para o do caminhão.
— Não acredito nisso.
— Ela disse que ele era culpado, mesmo eu mostrando que ele não
teve culpa. Foi um acidente, os freios falharam. Não me deixou de forma
alguma procurá-los para amparar. Desculpe.
— Não me peça desculpas, você não tem culpa.
— Você precisa de alguma coisa agora?
— Ficar sozinho.
— Por favor, Caique...
— Só me deixa ficar sozinho. Preciso apenas pensar e talvez dormir,
estou grogue pelos remédios.
— E sua irmã? Ela te ama muito.
— Também a amo, mas agora não quero ver mais ninguém, nem ela e
nem minha mãe e meu irmão.
— Tudo bem, meu amigo, descanse. Estarei sempre com você.
— Eu sei disso.
Capítulo 1
Dias atuais - 30/06/2022
Quando a senhora Flávia disse que eu podia entrar, rezei para todos os
santos que eu conhecia e pra Deus para que tudo desse certo. E lá no fundo,
para que ninguém aqui soubesse de quem eu era filho. Não sei, de repente
senti um medo danado disso. Talvez fosse porque eu estava mentindo pra
minha mãe e nunca se deve fazer isso. Se ela soubesse onde eu estava
tentando um emprego, ia ter um troço.
A sala era um espetáculo e meus olhos tentaram captar tudo que eu
pude naquele momento. Até me virar e vê-lo sentado à sua mesa. Era a
primeira vez que eu ficava de frente pra um CEO, uma pessoa muito
importante de uma empresa tão grande.
Engoli em seco, respirei fundo e dei passos firmes, sendo
acompanhado por um par de olhos muito bonitos que me olhavam com
simpatia. Isso sim já foi uma baita novidade.
— Boa tarde, senhor Caique.
— Boa tarde, Fernando. Seja bem-vindo a minha empresa. Sente-se,
por favor — ele respondeu e me sentei naquela cadeira muito confortável
sentindo três coisas: esperança, medo e um perfume tão gostoso que eu
sabia que jamais iria esquecer.
Na sequência eu passei pela entrevista mais confortável da minha vida.
Isso já começou no setor do RH, pois Michele foi muito simpática e
educada comigo, coisa que para um negro e desempregado no Brasil era de
se admirar.
Mas aqui, de frente para a pessoa mais importante da empresa, o
tratamento não foi diferente. Pelo contrário, ele foi ainda mais agradável e
atencioso. O senhor Caique, era até estranho pensar nele assim, pois nem
velho ele era, chutava no máximo uns 35 anos, mostrou-se preocupado
quando mencionei ser eu, o homem da casa e sua gentileza de incluir minha
irmã em um programa apenas para filhos de funcionários foi incrível. Não
sei como seria o trabalho, quer dizer, até sabia, só não conhecia o nível de
exigência deles. Mas já tinha certeza de que só sua educação e humanidade
comigo já valia qualquer coisa.
O medo inicial até havia sumido, Caique me deixou confortável.
Quando ele disse que o emprego era meu, senti meu coração quase sair do
peito tamanha força com que ele bateu. Nossa casa estava salva e não
teríamos que morar na rua.
Com meu padrasto não dava pra contar. Meu pai era filho único, meus
avós falecidos, de ambas as partes e minha mãe tinha apenas uma irmã e
não se dava bem com ela. Tia Tânia era um ser humano que só sabia
infernizar a vida dos outros. Se não conseguíssemos honrar com o aluguel,
era na rua que iríamos parar.
Mas com certeza a maior surpresa para mim no dia foi descobrir que
meu futuro patrão era deficiente físico. Quase não acreditei quando o vi
naquela cadeira que a princípio ficou disfarçada com seu blazer que estava
no encosto e por isso achei que ele estava apenas sentado em uma cadeira
qualquer. Senti uma pontada de dor em meu peito.
Quando fiquei de pé, após apertar sua mão e depois que ele terminou
de falar as últimas orientações, senti uma vontade absurda e inexplicável de
lhe pedir perdão. Fiquei surpreendentemente tocado por sua condição.
Um outro homem que também estava na sala e se chamava Saulo, me
acompanhou até a porta e com uma educação exemplar.
Agora, eu estava aqui, com as mãos tremendo, sem acreditar que havia
conseguido um emprego em um lugar tão bonito. E só voltei a realidade
com a senhora Flávia parando na minha frente.
— Tudo bem, Fernando?
— Ah, sim, me desculpe. Tudo bem! O emprego é meu — falei e sorri,
sendo correspondido por ela.
— Fico muito feliz em saber disso. Deixe-me te passar as coordenadas
finais.
Flávia me passou tudo que eu precisava saber. Falou sobre os
uniformes que eu receberia e que eles até davam o calçado. Falou do meu
crachá para acesso ao prédio, do setor que funcionava como refeitório para
os funcionários e do meu salário. Essa parte me fez sorrir ainda mais. Meu
horário seria de oito da manhã às 18 horas, de segunda à sexta. O setor que
eu ficaria responsável, eu saberia só daqui a quatro dias quando chegasse
para trabalhar. Fiquei feliz com isso, eu não precisaria andar por todos eles
limpando.
Observava Flávia preencher um papel com o endereço do lugar onde
eu deveria fazer meu exame médico, quando lhe fiz uma pergunta.
— O senhor Caique foi muito simpático comigo. Ele está como CEO
aqui há muito tempo? — Flávia me olhou e sorriu.
— Ele é um amor de pessoa. E sim, ele está. O senhor Caique é
presidente desta empresa desde que seu pai faleceu em 2013. Nunca houve
outro CEO além dele, quer dizer, apenas o vice-presidente que assumiu
quando ele sofreu um acidente em 2014.
Meu coração disparou tanto que precisei puxar o ar. Então era ele, o
senhor Caique era o CEO que vi tanto falar na internet e que sofreu o
mesmo acidente que meu pai. O caminhão do meu pai havia o deixado em
uma cadeira de rodas. Minha boca havia ficado seca de repente.
— Fernando?
— Ah, oi, desculpa! Me distraí.
— Aqui o endereço do consultório. Te esperamos no dia combinado.
Saí da empresa meio aéreo. Não sabia o que pensar de tudo isso, da
mentira pra minha mãe e do que o senhor Caique pensaria se descobrisse
quem eu era. Mesmo feliz por ter conseguido o emprego e a solução para os
nossos problemas, meu coração estava apertado por tudo. A imagem dele
naquela cadeira não saía da minha cabeça. E por mais estranho que
parecesse, eu me sentia culpado por isso.
Capítulo 3
Quando cheguei em casa naquele dia, minha mãe nem dirigiu uma
palavra a mim. Nem um “boa noite”. Fui aonde sabia que ela guardava as
coisas de nossa casa e coloquei o recibo dos aluguéis pagos.
Depois tomei um banho e brinquei um pouco com Juliana, enquanto
nossa mãe fazia o jantar. Observei materiais de costura espalhados no sofá.
— Ju, a mamãe costurou hoje?
— Sim. Pegou duas encomendas que ela disse. Acho que ela vai fazer
o vestido de noiva da Natália.
— Por que você acha isso?
— Porque hoje a gente viu vestidos numa revista.
— Que bom! Assim entra um dinheiro bom, né?
— Ela disse que quer ganhar muito dinheiro para pagar o aluguel.
A boneca da Ju que estava em minha mão chegou a cair no chão. Olhei
para a cozinha e fiquei observando dona Kátia lavando uma alface. Minha
mãe estava claramente rejeitando até a minha ajuda com as coisas da casa.
Não sabia como seria nossa convivência daqui pra frente depois do tapa que
ela me deu.
“Não a deixe te bater de novo.”
Pensei nas palavras de Caique e encostei minha cabeça no sofá. Ju e eu
estávamos sentados no tapete da sala. Era uma situação tão difícil, que eu
não sabia como administrar.
— A comida está pronta — ela disse da porta da cozinha e eu encarei
seus olhos. Eles estavam sérios em minha direção. Depois ela olhou para
minha irmã. — Vem, amor da mamãe. Vem jantar.
Meu coração apertou por sentir a diferença no carinho. Ela recebeu a
Ju de braços abertos e as duas foram comer. Ali sentado eu estava, ali
sentado eu fiquei. Mesmo com fome não tive forças para ir. A vontade que
eu tinha era de sair pela porta e sumir naquele momento.
Depois de um bom tempo, me levantei e resolvi dormir.
— Gosto dessa sua sala. É tão espaçosa. — Caique que tinha vindo
atrás de mim, parou sua cadeira perto do sofá onde me sentei.
— Eu gostei daqui por isso mesmo, por ser amplo. Fiz as adaptações e
me sinto bem aqui. — Olhava para ele e estava tranquilo por não ver mais
semblante de dor, mas a tristeza nunca dava uma trégua para os seus olhos.
— O que foi? Tô sujo? — Caique se olhou e eu sorri sem graça por ele ter
percebido que eu o reparava.
— Não, desculpe. Estava aqui pensando que estou tranquilo em não
ver mais em você o semblante de dor de horas atrás.
— Ela realmente passou, fique tranquilo. Não vou mais dar uma de
adolescente rebelde.
— Pois é, isso não combina com um CEO. — Caique riu da minha fala
e foi até perto das persianas e espiou lá fora.
— Nossa, ainda chove muito.
— Nem quero olhar aí fora. Vai me dar medo pela altura que estamos
por causa do vento. Você não tem medo do vento aqui em cima?
— Não. — Ele me olhou com uma cara engraçada. — Mas realmente
venta muito aqui se a janela estiver aberta em dias como esse.
Bocejei.
— Tem alguém cansado aí.
— Estou mesmo. Hoje a faxina no refeitório foi pesada.
— E eu acabei mudando a sua rotina.
— Não, nada de pedidos de desculpa de novo. Já falei que está tudo
bem.
— Obrigado por tudo. — Caique me olhava com um semblante bonito
e eu sorri para ele, ficando um pouco tímido de repente.
— É... Acho que vou dormir.
— Eu te deixei sem graça?
— Não...só estou tentando mesmo me acostumar com tudo isso.
— Tudo o quê?
— A ter um chefe bonzinho e estar na casa luxuosa dele. A ter minha
mãe me olhando torto por causa da minha sexualidade... enfim. Muita coisa
diferente na minha vida de repente.
— Pensei que eu tivesse passado do posto de chefe para amigo. — A
expressão dele foi linda ao dizer isso. Tive que sorrir.
— Passou, mas tecnicamente ainda é meu chefe, né?
— Realmente. — Caique sorriu. — Vou te acompanhar até o quarto de
hóspedes.
Fomos juntos e Caique me acomodou no quarto que ficava bem na
curva do corredor que levava para o seu.
— Esse quarto é muito bonito.
— A cama é bem fofa segundo o Saulo. Ele sempre dorme nesse
quando fica aqui.
— Posso fazer uma pergunta?
— Claro.
— Você e o Saulo, nunca...
— Não. Sempre fomos amigos mesmo. Desde o princípio isso ficou
bem claro entre nós.
— O Saulo namora? — Caique me olhou mais atento.
— Está interessado nele? — Até me assustei com sua pergunta. Não
era isso que eu queria aparentar com minha curiosidade.
— Não. Desculpa se pareceu isso. Foi só curiosidade mesmo. — Me
sentei na cama.
— Não, ele não namora. Saulo nunca se prendeu a isso. Enquanto eu
quero amar, como ele sempre fala, Saulo quer aproveitar a vida. Sempre
viajou bastante. Volta e meia tem um cara lindo agarrado ao seu pescoço ou
uma bela mulher.
— Ah, ele é “bi”?
— Sim. Ele ainda usa uma expressão ridícula: “não passo fome assim”
— Dei uma gargalhada.
— Já ouvi essa expressão de um amigo. Cada um com seu gosto e
todos sendo felizes.
— Pois é.
— Você já teve alguma mulher antes de se descobrir? — perguntei.
— Uma namoradinha aos 15 anos. Me lembro de ficar meio
traumatizado quando ela veio me beijar pela primeira vez. Detestei. Depois
de um tempo entendi por quê. E você?
— Nunca cheguei a beijar uma. Desde cedo entendi que gostava dos
“moleques da escola” — falei, fazendo aspas com os dedos e foi a vez de
Caique rir alto.
— Com base no que você me contou lá na cozinha, teve mais parceiros
que eu.
— Jura? Você? Bonito desse jeito? — Tão logo falei, fiquei sem graça.
Caique segurou o sorriso.
— Pra você ver que nem sempre ter olho azul ou dinheiro é garantia de
alguma coisa.
— Não fale assim.
— Mas é a verdade. Só que no meu caso é porque nunca me assumi
pra minha família e por eles estarem sempre na mídia, e consequentemente
eu. Queria evitar escândalos. Mas se soubesse que ia ser enganado da forma
ridícula que fui, preferia eu mesmo ter posto a boca no trombone. Ninguém
merece ser arrancado do armário à força.
— Sinto muito pelo que aconteceu com você. E vou ser sincero, não
sinto apenas por ter sido arrancado do armário, mas também pelo seu
acidente. — Caique me olhava sério. — Não encare nada como pena,
apesar de não ter como não sentir, desculpe.
Caique se aproximou e posicionou a cadeira na minha frente.
— O que eu mais gostei em você desde a entrevista, até esse momento,
foi que me olhou sem piedade. Mesmo que sinta pena. Você me olha e me
trata diferente de todos os outros. Você estranha o fato de estar na casa
luxuosa do seu chefe, mas a verdade é que nos demos bem desde o primeiro
instante. E isso se deve por você ser como eu.
— Como você?
— Sim. Uma pessoa boa, que não fica apontando as diferenças, apesar
delas existirem. Eu sou uma pessoa que nem ligo para classe social e você
também não. Nós temos muita coisa em comum, mesmo vivendo realidades
diferentes. Por isso o papo entre nós flui tranquilo, conversamos sobre
coisas que normalmente só amigos íntimos conversariam. Vai completar
ainda um mês que te conheço e sinto como se já te conhecesse há tempos.
— Sua mãe não pode nem sonhar com isso.
— Não pode mesmo. Não que eu deva alguma satisfação de quem eu
sou amigo, mas não quero você sendo atingido pelo ódio dela.
— Tenho que me policiar na empresa. Depois que pego intimidade...
— Revirei os olhos e Caique riu.
— Você não será um segredo da minha vida. Sou amigo de quem eu
quiser, mas vamos tentar evitar até onde der. Pelo menos na empresa,
principalmente.
— Mas eu só te vejo lá mesmo.
— Bom, pensei que algum dia você gostaria de vir tomar banho na
minha piscina de borda infinita. — Meu sorriso foi gigante e Caique revirou
os olhos sorrindo. — Que amigo mais interesseiro eu arranjei.
— Ei! — Como ele havia se virado, peguei uma almofada da cama e
joguei na cabeça dele. Caique olhou para mim, despenteado, com um
semblante assustado mas ainda assim segurava o riso.
— Você agrediu um deficiente? — Levantei uma sobrancelha.
— Que amigo mais dramático esse que arranjei. Desde quando uma
cadeira vai te impedir de tomar uma almofadada? — Seu sorriso foi lindo.
— Por isso gosto de você. Me vê como uma pessoa normal.
— Acredite, você é normal. Só não seria se fosse um alienígena. E
olha, não estou vendo nenhuma antena em você e continua branco que só,
não tem nenhum tom esverdeado.
— Você é doido! Isso sim. — Caique saiu rindo de mim e eu fiquei lá,
rindo dele. Estava feliz de proporcionar um sorriso naquele rosto tão bonito.
— Boa noite! — Ele gritou do corredor e eu respondi.
Depois ajeitei a cama para me deitar. Era tudo muito fofinho e
aconchegante. Tirei a camisa e a calça para dormir só de cueca. Odiava
dormir cheio de roupa.
Capítulo 10
Robert não veio até à porta da minha casa. Pedi que ele me deixasse
na esquina. Não queria os caras que ficavam aqui na entrada da comunidade
reparando naquele carro bonito e chamativo pela elegância.
Quando cheguei em meu portão, olhei para a esquina e vi que ele ainda
estava lá. Devia estar me esperando entrar. Assim que entrei, esperei um
pouco e olhei para fora de novo. O carro já tinha sumido.
Juliana logo pulou em meus braços quando cheguei.
— Tava com saudade, Fê!
— Eu também, meu amor. Dormiu bem?
— Dormi sim, na cama com a mamãe. Estava dando muito trovão e a
luz piscou algumas vezes.
— O temporal foi brabo mesmo. — Nessa hora percebi minha mãe na
porta da cozinha. Ela tinha pregadores presos na barra de sua blusa, devia
estar lavando roupa. Ela tinha um olhar mais sereno na minha direção.
— Oi, mãe. Bom dia.
— Bom dia, meu filho. Traga logo o seu macacão para lavar. — O
“meu filho” foi uma surpresa, mas ela logo voltou para os seus afazeres.
Fiz cócegas em Juliana, a beijei mais um pouco e fui para o meu
quarto. Estava tirando minhas coisas de dentro da mochila quando meu
celular fez barulho de mensagem no bolso da minha calça.
Assim que peguei e abri o WhatsApp, vi que era de um número que
não estava na minha lista de contatos, mesmo assim cliquei na mensagem.
Sentei-me na cama com as pernas bambas.
Caique: “ Oi, Fernando. Sou eu, Caique. Saulo me passou seu
contato. Acho que posso ter o telefone do meu amigo :)
Li três vezes a mensagem para ter certeza de que não estava vendo
coisas. Ele havia me mandado mensagem. Pediu ao Saulo o meu telefone!
Salvei seu número com as mãos tremendo e respondi.
Fernando: “ Claro que você pode ter o meu telefone :) afinal, você
é meu amigo ou não é? ”
Sorria igual a um idiota com o coração disparado, mas minha mãe na
porta me deu o maior susto.
— Estou esperando seu macacão até agora.
— Desculpa, mãe. Me distraí aqui. — Peguei o macacão e entreguei a
ela.
— Está tudo bem?
— Sim, está. Por quê?
— Estou te achando acelerado.
— Impressão sua. Está tudo bem. — Dona Kátia concordou com a
cabeça e ia saindo do quarto, mas voltou. Eu tinha sentado na minha cama
de novo.
— O seu patrão é muito educado. Ele falou que eu liguei pra você? Ele
que me atendeu.
— Falou sim. Eu esqueci meu telefone no quarto dele quando o ajudei
a se deitar. O Caique é muito educado sim.
— Caique... você fala dele com intimidade.
— Ele me pediu que não o tratasse por “senhor” fora da empresa. E ele
realmente não é velho.
— Quantos anos ele tem?
— Tem 34 anos.
— Novo ainda. E deficiente. Como isso aconteceu? Ele nasceu com
algum problema ou foi acidente?
— Acidente há alguns anos. — Minha mão tremia, enquanto eu
respondia.
— Tadinho. Mas ele leva a vida bem, né?
— Leva sim. — Não ia comentar sobre sua depressão, era algo íntimo
dele.
— Bom é que ele tem dinheiro e condições mais favoráveis para viver.
Nosso país para os deficientes é péssimo.
— PcD.
— O quê?
— O termo certo a ser usado é PcD: pessoa com deficiência.
— Não sabia.
— Nem eu, ele que me ensinou. — Minha mãe sorriu de forma
carinhosa e se sentou ao meu lado na cama.
— Ele parece gostar muito de você. — Meu coração parou na
garganta, enquanto eu tentava entender o que ela queria dizer com aquilo.
Confesso que estava mais preocupado em saber se ela falava de
sentimentos, no caso, os dele, do que com alguma cisma de que eu pudesse
estar tendo algo com meu chefe.
— Por que a senhora está dizendo isso?
— Eu sei que você conversou com ele sobre a nossa discussão. Ele me
disse. — Engoli em seco. — E ele também me pediu com todo carinho que
não brigasse mais com você. — Com certeza eu ia ter algum problema no
coração até o fim dessa conversa. Ao mesmo tempo meu celular fez barulho
de novo e eu estava louco para ver se era ele.
— Mãe, eu...
— Me desculpe — ela pediu de cabeça baixa e as lágrimas já
inundavam os meus olhos. — Eu perdi a cabeça naquele dia. Não é fácil pra
mim aceitar algo assim, fui criada de outra forma, com outros
ensinamentos. Mas eu sei que tenho que respeitar as suas escolhas.
— Eu não escolhi ser assim. — Minha mãe me olhou. — A gente não
escolhe ser gay, nós somos assim. Gostar de alguém do mesmo sexo que o
nosso não é uma opção. É a minha orientação sexual.
— Tenho muito medo. — Sua voz embargada cortou o meu coração.
— Vejo tantas coisas na internet e no jornal. Passa toda hora na TV jovens
que sofreram preconceito, que foram esfaqueados, mortos. Eu sei que eu
errei ao te bater e talvez isso me iguale a essas pessoas.
— Não diga uma coisa dessas, mãe.
— Mas é a verdade, meu filho. A primeira violência partiu de mim e
isso é inadmissível. Mas não posso mudar o passado, só te pedir perdão
pelo que fiz. Eu vou tentar aceitar, só te peço paciência comigo.
— Você não é obrigada a aceitar ou achar bonito. Só te peço respeito,
mãe. Não tenho como mudar, é o que sou.
— Só não fica com esse Ricardo, pelo amor de Deus. — Minha mãe
revirou os olhos e segurei o riso.
— Por que essa implicância com ele?
— Porque o vejo sempre com uma pessoa diferente. Ele é de todo
mundo. Já que vou ter que aceitar um genro, que pelo menos seja um rapaz
decente. — Foi inevitável pensar no Caique, mas sacudi minha cabeça para
tirar tamanho absurdo. Não sabia de onde estava vindo isso.
— Se serve para a senhora ficar tranquila, eu nunca gostei dele. Nunca
tive sentimentos amorosos. Ricardo é mais meu amigo.
— Mas ele te beijou!
— Ah, mãe... — Cocei minha cabeça sem graça. — Eu sou homem,
né, tenho minhas necessidades.
— Tá bom, Fernando. Não precisa falar mais nada não. — Ela
suspirou em pé, já na porta do quarto. — Só tome cuidado, ok? Por favor. E
se previna!
— Pode ficar tranquila que sempre me preveni.
— Tudo bem. Hoje o almoço é sopa. Esquenta lá que vou lavar seu
macacão.
Assim que minha mãe saiu, olhei meu celular.
Caique: “ Fico feliz de não ter ganhado uma bronca. E da próxima
vez que meu motorista te levar, quero que você fique na porta de casa.”
Fernando: “Seu carro é muito bonito e chama atenção. Minha casa
fica perto da entrada da comunidade e lá ficam uns caras estranhos e
com armas. Não queria que eles vissem. E além do mais, Robert me
esperou entrar para ir embora.”
Fiquei com o da próxima vez... da mensagem na cabeça. Haveria
próximas vezes? Suspirei.
Caique: “ Estou aqui na cozinha vendo que ainda tem o seu arroz
gostoso e que deixou frango temperado na minha geladeira.”
Fernando: “ Sim! Até esqueci de avisar. Você só tem que grelhar.”
Caique: “ Queria você almoçando aqui comigo. O apartamento
acabou ficando vazio depois que você foi embora.”
Quase caí pra trás ao ler aquilo e me levantei da cama precisando ir até
a janela respirar um pouco. O que estava acontecendo?
Fernando: “ Vou almoçar a sopa da minha mãe e a propósito, o
que você fez com ela?”
Caique: “Como assim?”
Fernando: “ Ela me recebeu diferente e agora pouco tivemos a
conversa mais importante da minha vida. Ela me pediu desculpas pelo
tapa e disse que vai tentar me entender. Me contou também que você
conversou com ela.”
Caique: “ Fico muito feliz em saber disso. Eu apenas fui sincero e
disse a ela que seu filho era um rapaz incrível, um menino de ouro.”
Meu sorriso não saia do meu rosto.
Fernando: “ Obg por isso.”
Caique: “Obrigado por ter surgido na minha vida.”
Ok. Depois dessa eu precisava sair desse telefone. Meu coração estava
igual a um maluco aqui, batendo desesperado e minha cabeça a ponto de
dar um nó.
Fernando: “Preciso ir esquentar a sopa do almoço.”
Caique: “ Vai lá. Estou terminando aqui. Logo minha fisio vai
começar.”
Fernando: “Bom almoço.”
Caique: “ Pra você tbm.”
Fui esquentar a bendita sopa completamente no mundo da lua. Nunca
quis tanto que chegasse uma segunda-feira para que eu fosse trabalhar.
— Está tudo bem, filho? — minha mãe me perguntou da porta do
quarto.
Após o almoço, eu resolvi deitar um pouco só que não dormi. Até
estava sonolento, mas não consegui parar de ler e reler as mensagens do
Caique. Isso estava me deixando confuso, ansioso e pensativo.
— Está sim, mãe. Tô cansado e fiquei aqui deitado um pouco. Cadê a
Ju?
— Está na casa da Laurinha brincando de boneca. A mãe dela veio me
pedir. Estou te achando meio aéreo desde a hora do almoço. Foi por causa
da nossa conversa?
— Não, fica tranquila. Gostei muito da nossa conversa. Só estou
pensando em tudo mesmo. Na nossa vida, no meu trabalho...
— Nunca te perguntei, no seu trabalho não tem ninguém chato, não?
Sempre tem um. — Me virei de lado e encarei minha mãe.
— A mãe do Caique. O ser mais desprezível que já conheci na vida. —
Mamãe arregalou os olhos e veio se sentar perto de mim.
— Meu Deus, meu filho. Ela fez algo com você?
— Já foi ignorante e preconceituosa. — Admiti. Mamãe ia se levantar
já puta, mas segurei seu braço e a fiz se sentar novamente. — Caique me
defendeu dela em todas as vezes. — Seu olhar se suavizou um pouco. —
Sinceramente, mãe, ainda tento entender como uma mulher daquela pôs no
mundo o Caique. O irmão dele é outro insuportável e o queridinho da
mamãe pelo que pude entender. Apenas a irmã se salva. Caique fala com
muito carinho dela.
— Esse rapaz... o seu chefe, o Caique, ele parece ser uma pessoa muito
boa pelo que você fala e pela forma que ele falou comigo.
— Ele é sim. — Meu sorriso não foi capaz de esconder a minha
admiração. — Ele se preocupa com seus funcionários, nos trata com
carinho e atenção. — Ainda sorria, enquanto falava e traçava um desenho
imaginário no braço da minha mãe.
Ela tocou meu queixo e me fez olhar em seus olhos. Conhecia aquele
olhar, ela estava me estudando.
— Posso ver uma foto dele? — Meu coração veio na boca. E se ela
reconhece ele como o CEO do acidente? Mas acho que não. Mamãe
também evitava ver fotos desse dia.
Como ele agora estava nos meus contatos e eu nos dele, conseguia ver
sua foto no aplicativo de mensagens e ela era linda. Mostrei a minha mãe.
— Nossa! Como ele é bonito! — Minha mãe me olhou e voltou sua
atenção para a foto. — Que olhos lindos, tão azuis...
— Sim, ele é bem bonito. Mas o mais lindo dele é seu interior. Mesmo
machucado pela vida, ele consegue ser gentil com todos.
Minha mãe me devolveu meu celular e se levantou. Foi para perto da
janela e de lá ficou com um olhar pensativo olhando para a rua.
— Ele não pertence ao nosso mundo, meu filho. Por mais que peite a
mãe e seja um homem independente, ele tem grandes responsabilidades. É
um CEO, essa gente é famosa e muito rica. Se a mãe é desse jeito, quem
entrar na vida dele, ela fará um inferno.
— Por que a senhora está falando isso pra mim? — Ela me olhou com
carinho.
— Para que você corte o que está nascendo em seu coração pela raiz,
enquanto dá tempo. Depois que enraíza, dói e machuca deixar para trás. —
Me sentei na cama e a olhava atento.
— Mas do que a senhora está falando?
— Do que vi em seus olhos quando falou dele. Há muito mais do que
apenas admiração.
— Não, mãe. Olha...
— Fernando, você é meu filho. Eu sei ler você. Por isso está tão aéreo
hoje. Ontem você dormiu lá. Mesmo que não tenha acontecido nada, esteve
mais perto, mais na intimidade dele, com ele. Isso mexe com a gente. Você
o ajudou em um momento ruim. O pegou nos braços para deitá-lo na cama.
Essa admiração já deve ter mudado em alguma parte do caminho e você
nem percebeu. Quanto mais próximo, mais mexido irá ficar. — Engoli em
seco. Palavras me faltaram. — Se a mãe já foi preconceituosa com você e
eu imagino o porquê, só irá aumentar se ela ver vocês envolvidos.
— E que “porquê” seria esse?
— Você é pobre, não pertence a mesma classe social que ele. Ele é
rico, CEO. Você é preto e ele, branco de olho azul, de família importante,
enquanto nós somos “favelados” para gente como eles. É nesses termos que
gente como a mãe dele, se refere a pessoas como nós. Ela não vê
sentimentos, apenas enxerga o preconceito. — Meus olhos se encheram de
lágrimas na hora.
Eu estava sentindo tanta coisa diferente, que não parei para pensar
nessa perspectiva. Mas balancei minha cabeça negando. Negando tudo que
eu podia. Ele não era assim, ele não ligava para nada disso, mas
principalmente, e essa parte me fez ficar murcho, ele não me via dessa
forma. Caique só não queria se envolver com ninguém.
— Ele não é assim, mãe, mas... não se preocupe. Não tenho realmente
chance alguma e nem é por todas as nossas diferenças.
— É pelo que, então?
— Ele se decepcionou muito. Não quer ninguém em sua vida. Sou
apenas amigo.
Minha mãe veio até mim e se abaixou na minha frente com as mãos
em meus joelhos.
— Eu não quero que você sofra, mas quero que saiba que não existe
essa de “não querer ninguém”. Quando a gente se apaixona, os medos
perdem força e as decisões viram borrões nas lembranças. Ele pode não ser
como ela, mas essa história não vejo como poderia acabar bem. Me
preocupo com você, meu filho.
— Eu vou tomar cuidado. Minha cabeça está confusa e nem sei o que
pensar direito.
— Se essa mulher fizer algo com você, eu dou na cara dela.
— Fica calma. Não vai acontecer nada. — Dei um beijo na testa da
minha mãe.
Depois que ela saiu do meu quarto, continuei pensando tanto, que
cheguei a adormecer e só fui acordar na hora do lanche.
Capítulo 12
Fernando,
Queria brigar com você por não ter me lembrado do seu
aniversário quando nos falamos ontem. Sorte que sou um homem
organizado e tinha colocado em minha agenda eletrônica. Te desejo
tudo de melhor em sua vida. Muita saúde e paz. Amor e conquistas.
Continue sendo esse cara tão especial.
Um grande abraço,
Caique
Fiquei passando a mão pela letra dele no papel e me vi sorrindo por ele
ser tão organizado a ponto de não esquecer meu aniversário.
— Abre a caixa, Fê! — Voltei ao planeta Terra pela voz da Ju e
comecei a abrir a caixa.
— Minha nossa, ele não fez isso!
Segurava em minhas mãos uma camisa linda, rosa e super maneira. Na
mesma hora me levantei, tirei minha camisa e a vesti. Caique sabia meu
tamanho por ver que suas roupas davam em mim.
— Uau!! Que gato! Tinha camisa também?
— Sim, nessa caixinha, mãe.
— Quem te mandou tudo isso, filho?
— O Caique — falei e olhei pra minha mãe. Não vi nenhum semblante
fechado nela. Dona Kátia me olhou com carinho.
— Como ele sabe o seu tamanho? — Uma sobrancelha foi levantada
em minha direção.
— Na sexta, antes dele dormir um pouco, ele me pediu que pegasse
qualquer roupa sua para vestir e ficar à vontade. Vesti uma camisa e uma
calça de moletom. Temos a mesma altura e largura. Foi assim que ele
soube. — Minha mãe riu. — Eu só não esperava mesmo é que ele se
lembrasse. Comentei tem um tempo e foi tão rápido.
— Ele é atencioso.
— Muito. Vou guardar minha camisa.
Fui para o meu quarto e depois de guardar meu presente, resolvi
mandar uma mensagem.
Fernando: “Amei meu presente surpresa. Não precisava se
incomodar. Você foi na rua pra isso?”
A resposta chegou rápido.
Caique: “Você merece. E não, não fui à rua. Tenho meus meios de
conseguir. Feliz aniversário mais uma vez.”
Fernando:”Obg! Mesmo assim você é doido. Nunca tinha recebido
rosas na vida.
Caique: “Espero que tenha gostado delas.”
Fernando: “Eu amei, de verdade.”
Caique: “Fico muito feliz. Amanhã nos vemos.”
Fernando: “Sim! Amanhã!”
Eu só sabia sorrir desde que saí do banho mais magnífico que já tive.
Me sentia cansado, mas um cansado bom, de homem satisfeito. Minhas
duas mãos acariciavam uma pele gostosa e fresca pelo banho. Fernando
estava com a cabeça em meu peito, com um de seus braços envolvendo
minha cintura e uma de suas pernas jogadas sobre as minhas.
Cheiro seus cabelos e observo seu ressonar tranquilo. Ele se entregou
ao sono assim que deitamos em minha cama. Agora com a playlist
desligada, o apartamento estava em um silêncio gostoso e nós dois
iluminados pelo meu abajur. Quando deitamos aqui já eram 18 horas e
agora deveriam ser por volta das 19.
Eu não consegui dormir. Estava feliz demais com tudo que sentia.
Nosso sexo não teve penetração, mas isso não foi empecilho para nada. Dei
e senti muito prazer apenas com nossos beijos e podendo tocar em seu
corpo.
Fechei meus olhos pensando em tudo que duvidei, mas Fernando em
minutos me mostrou que sim, eu era capaz de dar e receber prazer. Acho
que nunca serei capaz de esquecer a cena dele se sentando em meu colo, na
minha cadeira. Me senti tão foda naquele momento, em poder conduzi-lo,
em poder carregar o homem que estava mexendo com tudo dentro de mim,
mesmo que não fosse com meus braços e em pé. Mas eu o estava
carregando e isso era o que importava.
— Suas mãos passando assim em minhas costas está tão bom — ele
disse baixinho, sonolento e me fez sorrir mais.
— Está gostoso te ter aqui assim, em meus braços, dormindo
descansado após transarmos.
Fernando levantou sua cabeça, apoiando em seguida em meu peito e
me olhou.
— Eu gostei muito de transar com você — ele disse na lata, de forma
crua e sexy.
— Vai querer fazer de novo em algum momento? — Seu sorriso de
lado foi lindo.
— Não tenha dúvidas disso. — Segurei em seu rosto e trouxe seus
lábios até mim.
— Estava aqui pensando. E desde já me desculpe pela comparação,
mas não há como não fazer. Minhas duas relações após meu acidente, não
foram assim. Entre a gente foi tão diferente.
— Por isso que te disse que não foi culpa sua. Que não era porque
você não conseguiu uma ereção que seria o errado. As pessoas que
estiveram com você que não eram para estar com você. Cada um tem um
jeito de agir e pensar.
— A forma como você reagiu aos meus toques, me fez sentir querido,
desejado.
— Porque essa era a verdade. Tudo que sinto é verdadeiro. Eu desejo
você, Caique. — Fernando passou a mão em meu peito e depois em meu
rosto. — Pra mim você é como qualquer outro homem. Aliás, tem só uma
diferença.
— Qual? — Fiquei ansioso por sua resposta.
— Você é o cara mais especial que já conheci. Não que os outros
tenham sido ruins, mas com nenhum eu senti metade do que você tem me
feito sentir. E não digo apenas hoje, onde tivemos mais intimidade. Até
mesmo antes, em nossas conversas. Tudo sempre foi diferente.
— Eu confesso pra você que tinha pegado aversão de me envolver. A
decepção que sofri me machucou. Quebrou minha confiança em um nível
absurdo. E junto com tudo que passei depois, foi um fiasco o conjunto da
minha vida. Mas quando você surgiu com seu sorriso tão bonito, nem
minhas barreiras foram capazes de frear tudo que meu coração começou a
sentir.
— O que tudo isso quer dizer?
— Eu ainda não sei, juro. Mas está gostoso tudo que estou sentindo.
— Fiz um carinho em seu rosto.
— Também não sei nomear, mas sei que ficar assim — Fernando
cheirou meu peito, me fazendo fechar os olhos. — está sendo bom. —
Olhava para ele encantado agora. — Estou todo esparramado em cima de
você.
— Sinto de leve um peso bom nas pernas. — Fernando sorriu.
— Precisamos pensar no seu jantar.
— E no seu, né?
— Posso fazer um macarrão pra gente. O que acha? Você gosta?
— Hummm, eu gosto sim.
— Eu vi que tem na despensa.
— Ele é todo seu, mas se quiser, podemos pedir algo também. Não
precisa ficar cozinhando.
— Eu gosto, sério.
— Então, tudo bem.
Ficamos mais um pouco de chamego e Fernando se deitou na cama,
comigo por cima dele. Era incrível como a gente se encaixava bem. Me
virei, ficando com meu tronco por cima de seu peito. Ele me beijou todo
entregue e isso era algo que nem em sonhos imaginava mais pra mim.
Jantamos uma macarronada deliciosa que ele fez e tive que implicar
com ele, pois se sujou todo de molho e isso rendeu boas risadas. Ele estava
escovando os dentes e eu estava no closet pegando uma camisa para dormir,
quando meu telefone tocou e estranhei, mas era Saulo.
— Oi, Saulo. Aconteceu algo?
— Não, meu amigo. Só ligando pra saber de você. Dormi a tarde toda
e agora não tenho sono pra dormir. Está tudo bem? Foi bom seu filme com
o Fê?
— Foi maravilhoso. Ele está escovando os dentes para dormir — falei
sem pensar, ainda mais porque não tinha segredos pro Saulo. Mas só aí me
liguei que não tinha comentado de fato o que vinha acontecendo e que hoje
se concretizou.
— Ele está aí ainda? Vai dormir na sua casa? — Fiquei sem saber
como agir, mas tentei ser natural. Precisava conversar com ele.
— Vai sim. Choveu muito, só agora pouco amenizou e ele acabou
ficando aqui. Já jantamos e vamos dormir — falava com Saulo de costas
para a entrada do closet e não vi que Fernando me olhava.
— Ah... — A falta de uma resposta melhor por parte de Saulo me
mostrou que ele ficou confuso e sem entender de fato tudo que estava
acontecendo.
— Amanhã nós conversamos, ok? Preciso falar com você.
— Só me responde uma coisa: você está bem? Feliz?
— Como há muito não me sentia.
— Tudo bem então. Amanhã conversamos. Mande um abraço pro
Fernando. — O corte na intimidade com o nome do Nando não passou
desapercebido por mim.
— Ok. Descansa, senão amanhã vai estar com cara de coruja. — Saulo
riu e disse que eu estava imitando ele, que sempre falava assim comigo se
eu não dormia direito.
Assim que desliguei e me virei, vi Fernando sentado na cama. Não
fiquei sem graça, mas reparei que ele me encarava.
— Era o Saulo. — Levantei o telefone mostrando a ele.
— Ele sabia que eu viria aqui?
— Sim, eu comentei que íamos ver um filme.
— E agora estranhou o fato de eu dormir aqui de novo.
— Sim, mas expliquei da chuva. — Fernando abaixou a cabeça e
apertava a cama nas beiradas onde segurava. — Ei, o que foi? — Me
aproximei dele.
— Saulo é um amigo muito bacana. E te ama de verdade. Será que ele
vai aceitar o que está acontecendo?
— Primeiro, sim, ele é meu melhor amigo. Segundo, eu decido o que é
melhor pra mim. O que eu quero, nem ele e nem ninguém interfere nisso.
Mas, por outro lado, ele gosta muito de você também. Acho que só uma
pessoa nesse planeta que Saulo ia tentar me impedir de ficar a qualquer
custo, mas com toda razão.
— O João Miguel.
— Ele mesmo. Saulo o odeia.
— Você vai amanhã contar pra ele?
— Vou. Não tenho segredos com ele e vai estar muito óbvio, não vou
conseguir disfarçar. E se eu não falar, aí sim ele ficará chateado, tentando
entender por que escondi isso dele. — Peguei na mão de Fernando. —
Olha, não quero que você se sinta pressionado com nada disso. Estamos
ficando como qualquer um ficaria. Estamos curtindo essa coisa gostosa que
surgiu entre nós. Falar pro Saulo não é uma sentença de que você está preso
a mim e que se não der certo, ele vai te odiar, nada disso. Ele é só meu
amigo.
— Não estou me sentindo pressionado. Comigo não tem isso. Sou
bastante sincero com as coisas que quero e sinto.
— Quero que seja mesmo. Quero que me fale tudo, o que está
gostando e o que não está. Somos adultos e o que mais me encantou em
você, foi justamente o fato de não condicionar a forma de me tratar, de se
relacionar comigo, com o fato de eu ser um PcD. Você está me tratando
como trataria qualquer outro homem.
— Não.
— Não?
— Não. Não estou te tratando como trataria qualquer outro homem.
— Como assim? — Fiquei confuso. Fernando estava sério.
— Nada com você é como com qualquer outro homem. É tudo
melhor... é tudo diferente. Nunca senti nada do que estou sentindo, nunca
fui tratado como estou sendo. E confesso que isso está me deixando com
medo. — Sorri com carinho para ele. — Está tudo fora do meu controle,
entende? Sinto como se pudesse chorar por dias se algo te ferir, ou sentir
um ciúme violento a ponto de voar no pescoço de alguém.
— Vem cá. Senta aqui.
Abaixei os braços da minha cadeira e Fernando veio para o meu colo
como mais cedo. Nossa, como eu amava isso!
Uma vez sentado, ele me abraçou apertado e pela primeira vez, desde
que o conheci, o senti vulnerável. Invertemos o papel nessa hora. Ele
sempre tão forte e eu sempre frágil, agora era eu o forte e ele parecia um
menino precisando de carinho.
— Nunca passou pela minha cabeça conhecer alguém como você
nessa vida, Nando. Considero isso um presente.
— Tem coisas sobre mim que você ainda não sabe.
— Mas temos todo o tempo para nos conhecermos, não esquenta com
isso. — Fiz ele olhar para mim. Seus olhos úmidos me cortaram o coração.
— O mais importante você já me mostrou, isso aqui. — Coloquei meu dedo
em seu peito. — Esse coração enorme que você tem. Em menos de um mês
ele já me fez sorrir mais do que já sorri em meus anos de vida.
Principalmente nos últimos oito anos. — Ele deu um sorriso bonito, de
lado. — Mas me fala, você seria mesmo capaz de voar no pescoço de
alguém por ciúmes de mim? — Seu sorriso se tornou perverso e sexy.
— Não tenha dúvidas disso. Ninguém mexe com o que é meu. — Foi
minha vez de sorrir.
— Sou seu então?
Fernando não me respondeu com palavras, ele me tascou um beijo que
me deixou mole em cima da cadeira.
— Acho que já está respondido — ele disse ao final do beijo e eu mal
raciocinava.
— Muito bem respondido. Vamos nos deitar?
— Vamos.
Foi maravilhosa a sensação de jogar uma coberta sobre mim e
Fernando que estava novamente sobre o meu peito. Dormi em paz e me
sentindo feliz.
A empresa não era a mesma coisa sem ele. Tudo estava chato e até o
meu serviço estava cansativo e irritante hoje. Depois da hora do almoço,
após regar as plantas do andar, estava ajudando a Soraia a guardar as louças
que ela tirou o dia para lustrar e deixar a postos para uma reunião
importante que teria na próxima semana, quando Saulo entrou na copa.
— Fernando, tenho um documento importante para o Caique e preciso
que você vá levar até ele, por favor.
— Ca-claro. — Fui pego de surpresa e até gaguejei. Saulo estava
realmente sério e estranhei.
— Me acompanhe, por favor. — Olhei para Soraia e ela me deu tchau.
Saulo parou na mesa da Flávia e também falou com ela.
— Flávia, o Fernando vai ser dispensado agora. Preciso enviar um
documento urgente para o Caique e ele vai levar o documento pra mim. De
lá poderá ir para sua casa.
— Posso pedir ao office boy que leve bem rápido, se preferir, senhor
Saulo. Ou escanear por e-mail.
— Não. Quero que seja o Fernando e Caique prefere assim também.
Ele quer o documento original e não escaneado. Ele não está podendo se
levantar e o Murilo teria que entrar e ele nunca fez isso. Ele prefere o
Fernando que já esteve em sua casa.
— Tudo bem então, sem problemas. Pode ir, Fernando. Até amanhã.
— Até amanhã, Flávia — respondi meio tenso. A frase “ele não está
podendo se levantar” estava ecoando na minha cabeça.
— Fernando, esse é o envelope. É algo muito importante, ok? — A
seriedade de Saulo estava me matando e eu estava sem graça de perguntar
mais pelo Caique já que ele não me dava abertura.
— Ok.
— Assim que estiver pronto, avise na recepção da entrada que a Lúcia
irá chamar um táxi pra você.
— Sim.
Saulo foi embora me deixando até com dor de cabeça. Fui rápido ao
vestiário, troquei de roupa e nem tomei banho. Na recepção, falei com a
mulher mais linda que já tinha visto na vida. Lúcia era negra, com lindas
tranças de tom caramelo e um amor de pessoa. Parecia uma modelo. Ela
sempre foi muito simpática comigo.
Assim que meu táxi chegou, entrei nele com o coração a mil e fui para
casa de Caique. Meu celular vibrou no bolso da calça e quando olhei, era
uma mensagem de Saulo.
Saulo AGM: “ Abre o envelope que está com você.”
Franzi a testa e fui abrir o documento tão importante. Era um e-mail
impresso do Caique para o Saulo.
------------------------------------------------------------
De: caiquemontenegro@agmconstrutora.com.br
Para: saulorodrigues@agmconstrutora.com.br
Assunto: Me salve
Caro amigo,
Você pode, por gentileza, liberar o Nando? Estou precisando
urgentemente da boca dele. A saudade já está me deixando irritado.
Já chega essa cama chata onde me encontro deitado.
Atenciosamente,
Caique, um CEO desesperado.
----------------------------------------------------------
Caro chefinho,
Como sou um funcionário exemplar, atenderei a sua solicitação.
Mandarei seu funcionário levar um documento muito importante até
sua casa e em instantes ele chegará.
Atenciosamente,
Saulo, o advogado pervertido.
--------------------------------------------------------
Assim que saí da minha reunião, fui em direção a minha sala, mas
antes olhei para o corredor e não vi Fernando.
— Guilherme, o Fernando ainda está aqui dentro?
— Não, senhor Caique. Ele está no 10º andar limpando a sala da dona
Branca. Ela solicitou. — Senti todo o sangue do meu corpo gelar.
— Ele está a quanto tempo lá?
— Uns 20 minutos.
Movimentei rápido a minha cadeira e passei rápido pela recepção indo
para o elevador. Enquanto esperava aflito, olhei para Guilherme e ele
também me olhava nervoso.
— Guilherme, o Fernando fica somente neste andar. Qualquer
chamado, seja minha mãe, meu irmão, a Vanessa, qualquer um, eu quero ser
comunicado imediatamente. Posso estar em uma reunião importantíssima,
mas você pode me interromper, ok?
— Sim, senhor. Me desculpe por não avisar.
— Tudo bem, você não sabia.
Desci com o coração aos pulos e passei pela recepção do andar
bufando de raiva. A secretária me olhou assustada, provavelmente pela
minha expressão. Já perto da porta pude ouvir a voz da minha mãe falando
alto.
“Eu mando onde eu quiser e farei de tudo para defender minha família
de pretos imundos como você. E agora você vai sair daqui com os
seguranças que irei chamar. Aqui você não trabalha mais.”
Empurrei aquela maldita porta com toda força e tanto ela quanto
Fernando me olharam assustados.
— A senhora está redondamente enganada — falei e ela me olhou com
aquela pose altiva que eu detestava.
— Essa empresa é minha também. — Ela cuspiu as palavras com ódio.
— Mas eu sou o presidente e a palavra final é minha. Portanto, o
Fernando ficará exatamente onde ele está. — Meu namorado andou para
perto de mim e segurei em sua mão. Ela estava gelada e ele com um olhar
assustado.
— Ela já sabe de nós — ele disse baixinho.
— E que bom que já sabe que estamos juntos. Assim me poupa de
ficar contando da minha vida pra você.
— Você é um boçal!!! — Ela gritou, vermelha de tanta raiva. — Vai
levar mais um golpe, seu imbecil. Olha pra esse cara, o que ele vai querer
com você além do nosso dinheiro? O que você pode dar a ele como
homem?
— Bom, passei o final de semana fodendo bem gostoso com ele. —
Fernando apertou minha mão com força e me olhou assustado. Já minha
mãe, ficou com tanto ódio, que bateu com a mão em alguns porta-retratos
que tinham na sua estante e jogou tudo no chão. O barulho foi enorme e a
secretária veio correndo.
— Dona Branca! Posso ajudar?
— Chame os malditos seguranças para tirar esse verme daqui!! — ela
gritou e Estefani me olhou.
— Não chame. Se tiver que chamar alguma coisa, chame só um
hospício pra ela. Não quero nenhum segurança aqui e feche essa porta. — A
secretária fechou a porta, mas ela foi aberta em seguida por Matheus, meu
irmão.
— O que está acontecendo aqui, mãe? — O filhinho da mamãe entrou
falando e olhou para minha mão unida a de Fernando e foi para perto da
nossa mãe.
— Seu irmão é um imbecil!! Está me destratando por causa desse
sujeito. Não me deixou chamar os seguranças para tirá-lo daqui e disse
coisas obscenas pra mim. Já está aprendendo direitinho a ser um favelado.
— Revirei os olhos com o teatro.
— Olha só, a senhora que me ofendeu primeiro...
— Pode ir calando a sua boca, sujeito. — Dei um tranco em minha
cadeira quando Matheus veio cantar de galo pra cima do Fernando e entrei
entre os dois.
— Você que veja bem como vai falar com ele. De todos dessa
empresa, é o que menos pode abrir a boca para falar dessa maneira com
alguém. Não passa de um parasita que suga o dinheiro da família. Finge que
trabalha e vive em farras. Sabe se lá mais o que faz por aí. Então não venha
dar uma de machão pra cima dele e nem de mim. Quem provocou tudo foi
ela — Apontei pra minha digníssima mãe que já tinha até parado de chorar
seu choro fingido e me olhava com nojo e raiva. Se ela pudesse, naquele
momento, arrancava minha cabeça. — Ela que veio ofender a gente. A mim
e a ele. Tudo porque soube que estamos juntos.
Quando Matheus ameaçou falar, eu falei mais alto.
— Cala sua boca que ainda não terminei. — Ele deu um passo para
trás. Nunca tinha falado com eles assim. — Para encerrar essa reunião
desagradável em família, eu vou falar uma única vez: Fernando e eu
estamos namorando, não é da conta de vocês e nem de ninguém. E sim, isso
se tornará público porque não tenho motivos para escondê-lo. Ele não saíra
desta empresa e quero que o respeitem. Mais uma ofensa contra ele e
processo os dois. Vamos, Fernando.
Esperei meu namorado pegar seu carrinho e saímos os dois daquela
maldita sala, mas eu ainda ia voltar, só queria tirar Fernando dali e deixá-lo
em segurança.
“Se para o Matheus você nos amar e não fazer o mesmo pelo Caique
está tudo bem, para mim não está.”
— Eu não queria que ele descobrisse assim, não queria. Eu não queria
que isso viesse à tona. Eu não queria.
Fiquei repetindo aquilo ali sozinha e Matheus chegou e me encontrou
chorando no sofá.
— Mãe!! O que aconteceu? — O abracei e chorei mais.
— A Bia esteve aqui. O Caique escutou a nossa conversa. Sua irmã me
disse coisas horríveis e tudo isso é culpa daquele marginal. Ele já está
acabando com a nossa família — disse aos prantos nos braços do meu filho.
— Meu Deus, o Caique ouviu? Ela disse como ele está? Nem sabia
que a Bia vinha hoje. — Olhei para o Matheus.
— Disse que ele ficou arrasado e foi até no túmulo do seu pai.
— E o que a senhora está sentindo sabendo disso?
— Não sei. Não sei explicar. É estranho. Nunca quis que ele soubesse
disso. Era algo meu. Só que agora ele sabe e a culpa é daquele marginal!
Tudo começou por causa dele.
— Eu já pedi a um amigo para investigar e até sexta teremos algo
sobre esse sujeito. Meu amigo é bom nessas coisas.
— Ele estava na casa do seu irmão! — Matheus balançou a cabeça em
negativo.
— Caique é burro mesmo. Não tem jeito, mãe. — Olhei mais para o
Matheus e o achei estranho.
— Filho, seus olhos estão muito vermelhos. Está sentindo algo neles?
Não está ardendo? — Ele logo se levantou.
— Devo estar com alguma irritação.
— Precisa ir a um oftalmologista. E se for conjuntivite?
— Vou esperar até amanhã e vejo o que faço. Esquece isso, estou
preocupado com você.
— Vou ficar bem, meu filho. Só quero ver aquele sujeito longe de
nossa família.
— Ele vai, mãe. Vamos conseguir nos livrar dele.
Capítulo 22
Despertei com Caique balbuciando algo e quando olhei para ele, meu
namorado suava e balançava a cabeça negando algo. Seu coração estava
disparado e uma de suas mãos apertava o edredom com força, enquanto a
outra apertava a mim.
— Não, pai. Por favor, não me deixa aqui — ele disse e chorou, um
choro sofrido, das lágrimas escorrerem.
— Amor! Amor, por favor, acorda. Caique, acorda! — Ele abriu os
olhos e olhava tudo ao redor assustado, até que me viu. — Você estava
sonhando.
— Eu sonhei com o dia que meu pai morreu. — Seu olhar triste me
dava pena.
— Seu coração está disparado. — Caique colocou sua mão por cima
da minha. — E sua mão está gelada, meu amor. Vou pegar água pra você,
ok?
— Desculpe te acordar.
— Está tudo bem.
Me levantei e fui até a cozinha. Robert dormia tranquilo com um braço
sobre o rosto. Peguei água pro Caique e voltei para o quarto. Ele logo se
apoiou no braço e bebeu a água que eu trouxe. Não deixei de perceber sua
mão tremendo enquanto segurava o corpo.
— Obrigado.
— Não vai trabalhar amanhã — pedi e ele me olhou conforme se
deitou. — Tira um dia de folga. Não foi fácil o que você descobriu. Imagino
o quanto deva estar doendo.
— Vem cá. — Caique me puxou para os seus braços e me deitei por
cima dele com a cabeça em seu peito. — Eu fico com você. — Olhei para
ele.
— É... eu não pensei que eu ficaria. Podem falar da minha falta.
— Não vão, desde o momento que eu ligar falando dela. Preciso que
cuide de mim.
— Dengoso.
— Você está fazendo isso comigo.
Nos abraçamos e dormimos embolados debaixo do edredom. No dia
seguinte, acordei primeiro e Caique estava ferrado no sono. Me levantei
devagar e fui escovar meus dentes. Ao passar pelo quarto da minha mãe,
espiei lá dentro e vi Juliana dormindo. Mamãe já tinha se levantado.
Ao me aproximar da sala, vi que Robert também já tinha se levantado
e suas roupas de cama estavam devidamente dobradas. Logo ouvi sua voz e
a da minha mãe vindo da cozinha.
Cheguei devagar e eles conversavam tomando uma xícara de café.
Robert falava algo de seu país e mamãe prestava atenção e perguntava sobre
sua família. Eles estavam tão entretidos, que nem me viram chegar. Quando
dei “bom dia”, mamãe quase deu um pulo da cadeira e Robert se
empertigou todo, ficando como uma estátua. A vontade de dar uma
gargalhada veio forte, mas me segurei.
— Bom dia, gente.
— Bom dia, Fernando — Robert respondeu sem me encarar.
— Bom dia, meu filho. Acordou cedo. — Fiquei pensando, eu
acordava cedo todo dia. Qual era a novidade?
— Vim ver o café pro Caique e o Robert. Comprar pão.
— Eu fui lá, meu filho. Já comprei tudo. Fiz café fresquinho —
mamãe falava e mexia na geladeira. Ela ficou tímida? Foi isso? Muito
esquisito esses dois.
Me sentei ao lado de Robert e só aí ele me olhou.
— Caique teve um pesadelo esta noite.
— Ele ainda está muito abalado pelo que houve?
— Sim, Robert. E como está... — Fiquei olhando para o homem na
minha frente e pensava que ele era como um pai pro Caique. — Você o trata
como um pai, sabia? — Vi seus olhos brilharem e ele abaixou o olhar,
depois olhou pra minha mãe e pra mim novamente. Ficou completamente
sem jeito.
— O maior sonho da minha vida sempre foi ser pai — ele disse e
prestei mais atenção em suas feições. — Quando fui selecionado para
trabalhar com ele, nosso primeiro contato foi por telefone e gostei do som
de sua voz. Da calmaria que ela me passou. E ao vê-lo pessoalmente, eu só
quis protegê-lo de tudo. Na minha cabeça, enfiei que nada o machucaria,
absolutamente nada. Dou minha vida por ele. Criei um carinho de pai, eu
acho. — Até minha mãe tinha ficado paralisada escutando.
Pela minha visão periférica vi Caique parado e ele havia escutado
tudo. Soube no momento em que o olhei de frente e vi que enxugava uma
lágrima que tinha escorrido pelo seu rosto. Olhei para Robert de novo e ele
tinha a cabeça baixa. Ficou assim o tempo todo enquanto desabafou
comigo.
— Seu carinho é muito bonito, Robert. E sinceramente, não vejo nada
que te impeça de ter um amor de pai por ele. — Robert sorriu fraco de
cabeça baixa, como se achasse que não era digno disso e foi nessa hora que
Caique chegou ao lado dele e tocou seu braço.
O pobre levou um susto tão grande que ficou pálido e sem graça, mas
Caique segurou em sua mão e ele as olhou unidas.
— Ontem descobri que não sou filho legítimo do meu pai — Robert
arregalou os olhos. —, e isso está doendo muito. Ele sempre foi e sempre
será meu pai. Ele me deu amor e me criou. Nada muda. Mas quero que
saiba que ouvir suas palavras agora foi muito bom. Você tem meu carinho,
confiança e amizade desde o início. Eu deixo você ser um pouco meu pai
também.
Estava vendo a hora que o Robert iria desabar, mas ele se segurava ao
máximo.
— Sinto muito pelo que descobriu.
— Só mais uma facada com relação a minha mãe. Agora entendo por
que me despreza tanto.
— Não absorva isso. O senhor é muito mais do que isso.
— Não vamos mais usar o senhor, ok? Sou apenas o Caique para as
pessoas que estão em meu coração. — Robert sorriu tão lindo que me
derreti todo. O homem tinha ganhado o dia. Olhei para minha mãe e a
coitada se debulhava em lágrimas perto do fogão. — Agora preciso usar o
seu banheiro, Kátia.
— Ele é todo seu, meu querido — ela respondeu, fungando o nariz.
— Eu te ajudo, amor. Vamos.
Acompanhei Caique até o meu banheiro e me xinguei por não pensar
nesse problemão.
— Ca, vai ser difícil aqui. Meu banheiro não tem acessibilidade
nenhuma pra você. Não pensei nisso. Desculpa.
— Calma, amor. Sempre tem um jeito. Consigo passar para o seu vaso
de boa, basta travar a cadeira. E o melhor você tem.
— O quê?
— Aquele chuveirinho ali. — Sorri.
— Estou com medo de te deixar só.
— Só aviso que talvez eu molhe um pouco o chão.
— Pode molhar o quanto precisar, eu enxugo. Promete me chamar se
tiver dificuldade?
— Prometo.
Observei Caique ir à pia primeiro e escovar seus dentes. Ele havia
trazido uma necessaire com seus objetos pessoais. Depois o deixei sozinho
para sua higiene particular. Ele levou cerca de meia hora no banheiro e
quando saiu de lá estava tranquilo e satisfeito. Para que ele não se sentisse
incomodando, fui logo secar o chão e nem estava tão molhado assim.
Juliana acordou um tempinho depois e mamãe nos explicou que hoje
ela não tinha aula. Havia dedetização em sua escola. Minha irmã ficou
super dividida para quem dava atenção naquele café da manhã. Bom, minha
mãe e eu fomos esquecidos. Caique e Robert eram a atração.
Sua gargalhada foi alta quando ela passeou no colo de Caique pela
casa. E gritou quando Robert a pegou e a levantou no alto como se ela
estivesse voando. Riu tanto que soluçou.
— Não vou trabalhar hoje, Robert. Já avisei ao Saulo e ao Guilherme
que nem eu e nem o Fernando iremos. Coitado do Guilherme, começou
ontem e já se viu no meio de tanta confusão.
— Ele é gente boa, Ca. Vai tirar de letra — falei.
— Estou a sua disposição — Robert respondeu.
Barulho de tiros chamou a nossa atenção e Robert que estava sentado
no sofá, levantou rápido com a mão na cintura. Ali eu descobri que ele
andava armado.
— O que é isso? — ele perguntou. — Foram tiros, não é?
— Sim. Quando fui comprar pão, já vi uma movimentação de policiais
no início da rua. E esses tiros são os caras do morro avisando que eles irão
entrar — minha mãe falou e foi em direção a janela, mas Robert a segurou
pelo braço na hora.
— Não chegue perto da janela, Kátia. É perigoso.
— Fique tranquilo, Robert. Ainda não começou. Quando tudo começa,
é bem diferente e o barulho, ensurdecedor. — Ela foi até a janela e nos
contou que carros de polícia subiam a rua. — Caique, não estou te
expulsando da minha casa, mas é melhor você sair logo daqui. Não sei
como ficará depois.
— Não vou sair daqui e deixar vocês. Todo mundo vem junto comigo.
— Caique estava sério como nunca vi.
— Meu querido, estou acostumada. Ficarei lá no meu quarto com
Juliana e estaremos seguras. Vá com ele, meu filho. Já que hoje ele não irá
trabalhar, cuide mais um pouco dele. — O carinho na voz da minha mãe era
palpável.
— Isso não é um assunto negociável, Kátia. Vocês duas virão comigo e
o Fernando. Com certeza você tem telefone de algum vizinho pra ligar
depois pra saber se já acalmou tudo por aqui. Não vou embora deixando
vocês. — Minha mãe arregalou os olhos com o modo CEO do Caique e foi
até ele e segurou em suas mãos.
— Não se preocupe. Tenho um vestido de noiva para terminar e
ficaremos bem. Amei ter você em minha casa e saiba que sempre será bem-
vindo aqui. Sempre. — Dona Kátia deu um beijo na testa do meu namorado
e ele ficou todo emocionado.
— Poxa, Kátia...
— Sem discussões. Vai pra casa em paz. — Minha mãe olhou pra
mim. — Filho, por que vocês não dão um passeio no shopping pra distrair
um pouco? Caique pode ir ao shopping, não é?
— Claro que posso. Já falei pro Nando que quero fazer todos os
programas com ele.
— Ótimo! Filho, vou aproveitar e te dar duas contas pra pagar, tá bom?
Assim não preciso sair e elas vencem hoje.
— Pode me dar mãe. — Olhei para o meu amor. — Quer conhecer o
shopping de Madureira? — perguntei rindo.
— Quero tudo com você!
Caique colocou uma roupa reserva que havia trazido além do terno de
trabalho e eu me arrumei e coloquei a camisa que ele tinha me dado de
presente de aniversário.
Enquanto nos arrumávamos, mamãe foi com Robert tirar o carro da
casa do vizinho e Juliana estava inconformada que Robert e Caique iriam
embora.
— Nossa, eu escolhi muito bem. Você ficou uma delícia com essa
camisa. — Sorri para o meu namorado.
— Gostei da sua roupa também. — Caique vestia uma calça creme e
uma camisa branca. Nos pés colocou um tênis bonito. — Está preparado
para ser visto em público comigo?
— Eu te amo e não irei esconder você.
Já com as contas de casa no bolso, uma Juliana de bico e minha mãe
dando tchauzinho, Caique e eu fomos para o Madureira shopping. Sabia que
agora minha mãe fecharia a casa toda e ficaria segura lá em seu quarto com
a Ju trabalhando. Era triste, mas já estávamos acostumados com a violência
a nossa volta. Só que Caique não se conformava.
— Elas tinham que ter vindo com a gente.
— Minha mãe ficará bem. Não fica preocupado. — Caique não se
conformou, mas teve que aceitar.
Descemos no estacionamento e fui ao lado de Caique. Robert ficou
mais afastado nos dando privacidade, mas estava com os olhos no meu
namorado.
— Vamos logo pagar as contas da sua mãe?
— Sim, melhor. A loteria deve estar vazia esse horário.
Só que não estava, tinha uma fila horrorosa.
— Poxa, não demos sorte.
— Tem fila de prioridade. Me dá aqui.
— Tem certeza?
— Claro. — Caique foi com minhas contas e até me afastei para
esperar por ele.
— Você vai ficar bem? Por que não liga pra sua irmã vir aqui?
— Ela me avisou que foi na casa de uma grande amiga que não via há
um tempo. Vou ficar bem. Ir pra sua casa, conhecer sua mãe e irmã, passear
com você, me fez um bem danado.
— Pena que encontramos aquele sujeito. Comentou com Saulo?
— Nem se prenda a isso. João Miguel é passado. Mas foi até bom
descarregar o que estava entalado. E não, não falei com o Saulo isso por
telefone. Esse assunto é delicado e meu amigo esquentado. Nem comentei
também que fui pra sua casa, quero contar pessoalmente.
— Vai trabalhar amanhã, né?
— Vou. Minha vida tem que seguir. Só mesmo aceitei seu conselho de
relaxar um pouco e foi realmente muito bom. Vou ter muito assunto para
falar com minha psicóloga. Vai pra casa, tem que aproveitar que agora está
calmo. Por mim até elas estavam aqui junto com você.
— Um dia trago elas aqui, tá bom?
— Eu te amo — Caique disse e eu o beijei com amor. — Você é tão
importante na minha vida. Tão especial.
— Você que é na minha. Nunca se esqueça disso.
Fui para minha casa. Já eram 19:30 quando cheguei e a rua estava
silenciosa. Ficava sempre assim depois de uma operação na comunidade.
Pelo caminho, ainda pude ver pneus queimados que foram usados para
impedir o avanço da polícia.
Assim que entrei, Ju veio me receber e minha mãe atrás. Ambas
estavam bem e ganhei um beijo da minha rainha.
— O jantar está pronto, filho.
— Estou com um pouco de fome.
— Cadê o tio Caique e o tio Robert? A mamãe me contou que o tio
Caique é seu namorado. — Olhei pra minha mãe com um sorriso no rosto e
ela ficou toda sem jeito. Era um grande avanço.
— Ele ficou na casa dele, quietinho e bem. Ia ler um livro. Ele adora.
E o Robert foi para casa por hoje. Ele precisa descansar também.
— Foi bom o passeio, meu filho?
— Foi ótimo, mãe. Caique ficou encantado com o Madureira
Shopping. — Nós dois rimos. — Acho que namorando comigo ele vai se
tornar povão. — Minha mãe riu alto.
Observei a Ju correr para o quarto e suspirei olhando pra minha mãe.
— Tivemos surpresas também. Um ex dele trabalha lá e veio falar com
ele.
— Mas aqui?
— O nome dele é João Miguel. Foi a maior decepção amorosa do
Caique.
— E ele ainda falou com esse sujeito? — As mãos na cintura da minha
mãe, fizeram ela ter a mesma postura falando do Caique, como falava de
mim e do Ricardo.
— Ele precisava muito. Falou poucas e boas. Disse que se sentiu mais
leve.
— Você morreu de ciúmes pelo visto. Está me contando com um bico
maior que seu rosto. — Revirei os olhos.
— Queria quebrar a cara daquele mané.
— Se acalme. Foque que o Caique hoje está com você e não com ele.
Meu olhar parou no rosto da minha mãe. Ela era tão linda. Mesmo com
dois filhos e muitas pancadas da vida, minha rainha era um mulherão.
— Por que está me olhando tanto?
— Por dois motivos: quero fazer um elogio e contar uma coisa. A
senhora é muito linda e se um dia quiser ter alguém, jamais vou impedir. A
senhora merece ser feliz.
— Por que está falando isso agora?
— Vi a forma que Robert olhava pra senhora.
— Eu nem reparei nesse moço, meu filho. — Levantei uma
sobrancelha para ela. — Tá, não posso negar que ele é muito bonito e
chama atenção com aquele tamanho todo, mas olhe pra mim.
— Estou olhando e cheguei à conclusão que você é linda e merece ser
feliz, só isso. Com o Robert ou com qualquer outro.
— Ok. Mas o que você quer me contar?
— É sério.
— Está me deixando com medo.
— Não fique. Mas senta aqui. — Peguei as mãos da minha mãe a
trouxe para o sofá. — Eu te amo, mãe e até hoje só tive dois segredos para a
senhora.
— Dois? — Seus olhos se arregalaram um pouco.
— Sim. Minha sexualidade foi um deles.
— Mas isso nós resolvemos.
— Exato. Agora o outro, é uma coisa que omiti da senhora.
— Estou ficando nervosa, Fernando.
— Não fique. Apenas me ouça e procure me entender. É tudo que te
peço.
— Tudo bem.
— O nome da empresa onde trabalho não é SWG engenharia. —
Havia dado outro nome, de outra empresa na Barra para esconder o nome
verdadeira da empresa do Caique.
— E por que você mentiu sobre isso?
— Porque sou funcionário da AGM Construtora. — Minha forma de
falar foi calma e deixei que ela processasse o que eu tinha dito. À medida
que ela entendeu onde eu estava, se levantou do sofá e levou as mãos na
boca.
— Eu não acredito nisso, Fernando! Você está trabalhando na empresa
daquela gente? Daquela gente que acusou seu pai do acidente que também o
matou? — Seu timbre de voz até aumentou.
— Não existe “aquela gente”. Existe o Caique que você conheceu e
gostou muito. — Sua boca se abriu e sua expressão era de susto, raiva,
angústia e confusão. — Você o conheceu, mãe. Ele também estava naquele
acidente. Mas o mais importante é: ele sabe que foi apenas um acidente. Ele
sabe que meu pai não teve culpa de nada e ainda se culpa de não ter ajudado
a família do motorista do caminhão. Mas se você insistir que ainda existe
“aquela gente”, uma única pessoa se enquadra nesse termo: a mãe dele. —
Respirei fundo para me acalmar um pouco. — Foi essa mulher desprezível,
que eu já tanto te falei, que acusou o papai e não o Caique. Foi ela, que
mesmo com as provas, queria acusar alguém para manter a farsa de que se
importava com a vida do filho.
Me levanto e fico na frente da minha mãe.
— Essa mulher quis que o próprio filho morresse ali para se livrar do
fardo de ser mãe dele. — Minha mãe chorou sofrido e se afastou de mim,
indo para um canto da sala. De lá ela me olhou com o rosto banhado de
lágrimas.
— Por que você foi justo pra lá?
— Porque foi o que apareceu. Lembra que te contei que fui à obra e
não tinha serviço e depois recebi a ligação? Isso foi tudo verdade. Eu só
omiti o lugar mesmo. Mãe, eu não me perdoaria se você e Juliana fossem
parar na rua. Eu teria vergonha do homem que sou se tivesse deixado que
isso acontecesse. Eu chorei debruçado no caixão do meu pai e prometi a ele
que cuidaria de você, custasse o que fosse. — Paro um pouco de falar e com
as mãos na cintura, olho para o chão. — Quando a Flávia naquele dia me
disse o nome da empresa, eu quis entender o que a vida queria de mim.
Porque justo aquela empresa estava me chamando. Daí eu pensei em suas
palavras para justificar ter usado o dinheiro que dei e não ter pagado o
aluguel. Você colocou comida em casa, mãe. Não pensei em mais nada e
fui. Eu precisava.
— Devia ter me falado.
— Você não me deixaria ir. Eu honrei o sobrenome do meu pai indo
naquela entrevista. — As lágrimas rompem a barreira nessa hora e enxugo
meu rosto de forma ríspida. — Eu só não esperava ... — Encaro minha
mãe. — Não esperava conhecer o Caique. Não esperava descobrir na
entrevista que ele era o CEO que tanto vi falar na internet que tinha sofrido
o mesmo acidente que meu pai. Pensei até que pudesse ser alguém antes
dele. Mas não era. Ele hoje está em uma cadeira de rodas por causa daquele
maldito acidente que também tirou a vida do meu pai e nenhum dos dois
tem culpa de nada. Eu amo os dois demais. — Não consigo mais me
controlar e choro sentado no sofá. Até que sinto a mão da minha mãe em
meu ombro e olho para ela.
— Eu gostei tanto dele.
— Ele é um amor de pessoa, mãe. É, depois do meu pai, o homem
mais maravilhoso que já conheci na minha vida. É generoso, carinhoso,
amigo e um chefe maravilhoso para os seus funcionários. Foi tudo uma
fatalidade da vida. Deus me tirou um e me deu o outro. Mas esse veio para
ser meu amor. — Enxugo mais uma vez o meu rosto e fico mexendo nos
meus dedos enquanto falo. — AGM Construtora é por causa do nome do
pai dele: Augusto Montenegro. Ele se orgulha tanto do império do pai. O
ruim no meio disso tudo é aquela mulher que leva o título de mãe dele.
— Eu senti pena, não nego, de vê-lo naquela cadeira. Mas ao mesmo
tempo senti uma força muito grande vindo dele. — Minha mãe sorri. —
Quando olhei dentro dos seus olhos tão lindos, senti um carinho enorme por
ele.
— E ele sentiu por você. Estava todo bobo com você o servindo e o
chamando de filho. Ele nunca teve esse carinho, mãe.
— Como uma mãe pode fazer isso com um rapaz tão bom?
— Não tenho essa resposta. Bom, agora a senhora sabe os dois
segredos que tive em minha vida. Não escondo mais nada da senhora e
nunca mais esconderei. — Minha mãe toca em meu rosto.
— Ele sabe, meu filho? Do seu pai?
— Não. Mas vai saber. Como aconteceu tudo isso com ele ontem,
decidi contar primeiro pra senhora e até sexta conto a ele.
— Converse como falou comigo. Passei anos odiando tudo e todos que
tivessem ligação com esse lugar. Mas também acho que ter conhecido ele
primeiro, me fez compreender melhor tudo que você me contou agora.
— Desculpe por ter escondido isso, mas o emprego foi muito
importante. Inclusive, aqui as contas pagas. — Estendi os recibos pra minha
mãe.
— Mas o dinheiro está todo aqui, Fernando.
— Só falta o do Uber que vim agora. Caique que pagou essas contas.
Ele entrou na fila e não vi quando usou o próprio dinheiro.
— Um CEO na fila de uma loteria? — Minha mãe riu.
— Ele adorou, tá? E também hoje recebi meu salário e não foi
descontado aquele vale. Até briguei com ele, mas não se tem argumentos
com um empresário, mãe. Oh, homem difícil. Então usei o seu dinheiro só
para vir de Uber. Não queria que o Robert viesse aqui de novo com aquele
carro. Não depois do problema de hoje.
— Esse rapaz não existe.
— Sem saber, sem ter a mínima ideia, ele está ajudando a família do
motorista do caminhão e amando o filho dele.
— Ele vai te entender, tenho certeza.
— Assim espero, mãe.
Dormi aquela noite mais leve e ainda mais decido a me abrir com o
Caique. Meu amor merecia a verdade.
Na manhã seguinte, cheguei em meu trabalho e fui direto para o
vestiário. Já estava de uniforme e apenas terminava de fechar o cadeado
quando Saulo entrou e trancou a porta.
Estranhei esse comportamento mais o encarei tranquilo.
— Bom dia, Saulo.
— Bom dia. — Seu tom e semblante estavam estranhos. Pensei logo
em Caique. Havia falado por mensagem com ele cedo, mas só de trajeto até
aqui era 1 hora.
— Aconteceu algo? O Caique está bem?
— Ele está bem. Está vindo para a empresa.
— Por que você está estranho e até trancou a porta ao entrar?
— Por que escondeu que é filho de Armindo Viana? O motorista do
caminhão que sofreu o acidente junto com o Caique. — Engoli em seco e
dei um passo para trás.
Não sabia como ele havia descoberto. Poderia ser pelos meus
documentos, mas isso não era suficiente já que havia pessoas com nome
iguais no mundo. Meu pai não era nenhum caso raro. Eu só sabia de uma
coisa, precisava ficar calmo para explicar, pois com Saulo, qualquer
comportamento estranho, ele acharia que eu estava mentindo.
— Como soube disso?
— Pegando referências suas. Um ex-patrão seu comentou que seu pai
morreu em um grave acidente de caminhão. Na hora não lembrei do nome
do seu pai, tive a sensação de já ter visto, só que não lembrei. Mas ontem,
ao ver uma bendita reportagem mencionando esse acidente novamente, o
nome dele estava lá. — Saulo caminhou calmamente em minha direção
com as mãos no bolso. — E se me restasse alguma dúvida, você acabou de
confirmar. — Seu olhar era afiado em minha direção. Respirei fundo.
— Eu não vou negar. Era meu pai sim. Eu tinha 18 anos na época
quando o perdi. Mas imagino que já tenha passado de tudo pela sua cabeça,
não é mesmo?
— E você acha que não há motivos pra isso? Além do histórico do
Caique, você esconde uma coisa dessas.
Me afastei dele e comecei a falar andando pelo vestiário.
— Jamais imaginei que meu currículo fosse selecionado para que eu
trabalhasse aqui. Antes disso, eu só evitava ver publicações que
mencionassem esse dia e tinha gravado na cabeça o nome da empresa. Nem
o nome do Caique eu sabia, pois se referiam muito a ele como o CEO da
AGM na época. Graças a Deus as reportagens foram diminuindo com o
tempo.
— Foram mesmo. Só vi essa ontem porque teve um acidente na
mesma estrada e mencionaram outros que aconteceram por lá. — Saulo
continuava sério.
— Mas quando a Flávia me ligou e falou que era daqui, eu quase não
acreditei. — Olhei para Saulo. — Mas foi no pior momento da minha vida.
Eu precisava demais, eu te contei isso. Estava correndo o risco de ir com
minha família pro olho da rua. Então tive que pensar rápido e aceitei.
Morrendo de medo, mas aceitei. Menti pra minha mãe, inventei outro nome
de empresa e vim.
— Por que mentiu pra ela?
— Ela não me deixaria vir. Ia preferir ir para a rua. — Saulo engoliu
em seco. — A Branca foi bem cruel em acusar meu pai.
— Eu sei disso. Mostrei todas as provas para ela e mesmo assim
aquela mulher não me escutava.
— Menti pra minha mãe e vim entregando a Deus o meu destino. Só
queria um trabalho, Saulo. Só queria honrar a promessa que fiz sobre o
caixão do meu pai de cuidar da minha mãe. E olha que na época nem tinha
a Ju. Nunca pensei em vingança, se for isso que passou pela sua cabeça.
Sou só um pobre e trabalhador, que precisava de um emprego.
— Mas por que esconder isso, Fernando?
— Porque eu vim trabalhar, mas não esperava conhecer o Caique. Não
esperava conhecer um cara tão formidável. Eu soube pela Flávia, no dia da
entrevista, que ele era o CEO do dia do acidente. Cheguei até a pensar que
fosse outro antes dele, mas Flávia garantiu que após a morte do senhor
Augusto, houve apenas ele. — Dou um sorriso fraco e me sento no banco
que há ali. — E descobri isso depois de passar pela entrevista mais foda da
minha vida. Onde conheci um chefe humano, carinhoso e atencioso. Um
homem como poucos. Cheguei a me sentir culpado pela sua deficiência.
— Não diga besteiras. Nem você e nem seu pai tem culpa de nada. Foi
um acidente.
— Eu sei disso, mas não consegui evitar. E depois... veio a amizade e...
o amor. — Olhei para Saulo. — Eu não esperava me apaixonar, muito
menos por ele. Só que aconteceu e eu fui remoendo isso dentro de mim e
vendo a melhor maneira de contar. Tentei algumas vezes, mas fui
interrompido. Tinha decido contar esta semana, aí ontem veio essa bomba
toda. — Me levanto e vou para perto de Saulo. Paro na sua frente. — Até
sexta irei contar a ele. Ontem contei pra minha mãe.
— Como ela reagiu?
— Levou um susto e chorou, mas expus meus motivos assim como
estou expondo pra você. Mas ela também ficou apaixonada pelo Caique.
— Ela o viu? Quando?
— Caique não comentou ainda com você, mas depois que você e
Beatriz saíram da casa dele na segunda, ele foi comigo para minha casa. —
Saulo arregalou os olhos. — Conheceu minha mãe e minha irmã. Ele e
Robert dormiram lá com a gente. — Saulo me olhava abismado. — Ontem
seu amigo estava passeando comigo em pleno Shopping de Madureira,
pagou uma conta na loteria, tomou sorvete, comemos no McDonald's e... —
Meu semblante se fechou só por me lembrar daquele cara.
— E?
— Esbarramos com o tal de João Miguel.
— O quê? — Se eu antes achava que a cara do Saulo estava feia,
estava redondamente enganado. — Vocês viram aquele merda?
— Pior que vimos. Quase quebrei a cara dele. — Saulo ameaçou sorrir
nesse momento. — Derrubei até o sorvete dele. O idiota estava
uniformizado, devia trabalhar em alguma loja de lá. Aí ele ameaçou vir pra
cima de mim e Robert interveio.
— E o Caique nisso tudo? Como ele ficou?
— Pediu para ficar sozinho com ele. — Saulo já ia explodir em
xingamentos, mas o segurei. — Disse poucas e boas para ele. Ele disse que
precisava desabafar. Fiquei puto na hora, com um ciúme filho da puta, mas
entendi o lado dele. Depois disso continuamos nosso passeio e depois
fomos pra casa dele.
Respirei fundo e foi minha vez de colocar as mãos no bolso.
— Eu não sou como esse cara, Saulo. Eu amo de verdade o Caique. Só
simplesmente foi uma coincidência eu ser filho do homem que sofreu o
mesmo acidente que ele. Um dia na casa dele, Caique me confessou que se
sentiu culpado todos esses anos por nunca ter ajudado a família do homem
do caminhão. Foi difícil segurar minhas lágrimas naquele dia.
— Ele hoje ajuda e ama o filho dele.
— Foi exatamente o que eu disse pra minha mãe ontem.
— Cara, que louco tudo isso.
— Eu sei. Só espero que ele me entenda.
— Ele te ama, Fernando. Conte a ele.
— Eu vou contar sim. Ter dito ontem a minha mãe me deu mais
coragem. Acho que no fundo sempre tive medo de que ele me comparasse
ao João Miguel se soubesse disso. Medo de que ele duvidasse do meu amor.
Não sou nenhum mentiroso ou enganador. Só fiquei com medo.
Saulo ficou me olhando um tempão e me surpreendendo, se aproximou
e me deu um abraço.
— Me desculpe. Quando descobri, fiquei até pálido. Só vinha na
minha cabeça que o Caique poderia estar sendo vítima de outro plano
maldito. Foi o Guilherme que me acalmou e me pediu que te ouvisse
primeiro.
— O Guilherme? — Olhei para Saulo.
— Sim, ele estava em minha sala e viu o momento que descobri.
Contei um pouco do Caique para ele e conversamos.
— Eu vou contar, tá? Não se preocupe.
— Se precisar de ajuda, me grita.
— Pode deixar.
Quando fui para o meu setor, estava com minhas pernas bambas.
Encarar a desconfiança de Saulo era difícil. O homem era como um touro
para defender o Caique, mas no fundo eu gostava disso, meu amor tinha um
amigo incrível.
Eu vinha da sala de reunião quando Caique chegou e sorriu para mim.
Deixei meu carrinho onde estava e fui até ele, lhe dando um beijo nos
lábios.
— Bom dia, meu CEO.
— Bom dia, gostosura da minha vida.
Ouvimos um suspiro e foi Guilherme que chegava a estar apoiado nas
mãos vendo a cena. Quando viu que o olhamos, ficou todo desconcertado.
— Melhor que Netflix, não é? — Caique soltou, me fazendo cair na
gargalhada e Guilherme não sabia onde enfiava a cara, além de ficar todo
vermelho. Até Caique riu dele. — Relaxa, Guilherme. Vai virar um tomate
vermelho desse jeito.
Fomos rindo pra sala do Caique e deixei meu mais novo amigo
sorrindo e todo tímido.
Ainda estava desconcertado quando Saulo chegou no andar. Ele me
olhou assim que saiu do elevador e veio assim até minha mesa.
— Por que você está com as bochechas vermelhas desse jeito? Seu
olhar havia sido quente em minha direção, se não fosse impressão minha.
— Ah, fiquei desconcertado com o senhor Caique beijando o Fernando
aqui na minha frente. Ele ainda disse que devia ser melhor que Netflix. —
Saulo gargalhou e eu fiquei preso em seu sorriso, mas disfarcei, claro.
— Esse meu amigo está muito saidinho.
— Conversou com o Fernando?
— Sim. Ele me esclareceu tudo e confio nele. Não vi mentiras em seus
olhos. E olha que sei ver um mentiroso de longe.
— Ele então é mesmo filho do homem?
— Sim. Mas vai contar ainda essa semana ao Caique.
— Graças a Deus.
O dia estava tranquilo. Reuniões, atendimentos, Fernando limpando
tudo e eu atolado de papéis. Senhor Caique ficou feliz e tranquilo ao falar
com minha prima no telefone e ela contar que sua cirurgia tinha sido ótima.
Na hora do almoço, Fernando saiu com o senhor Caique e Saulo.
Achei que tinham ido ao refeitório, mas eles não estavam por lá. Quando eu
retornava para o andar, vi os três entrando, mas eles não me viram.
— E o que você achou dele vermelhinho? — Fernando perguntou
rindo.
— Achei uma graça, mas eu já tinha te dito que achava o Guilherme
bonito. — Arregalei meus olhos e vi que falavam de mim. — Mas parou aí,
Fernando. Já falei que não me envolvo com ninguém da empresa, é minha
regra primordial e além do mais, ele é muito novinho, não tem experiência.
Não estou aqui pra criar ninguém.
— Não fale assim, Saulo. O garoto não é nenhuma criança.
— Pra mim é, ora.
Observei eles subirem e voltei para o refeitório para beber um pouco
de água. Pelo caminho de volta vim suspirando. Era como eu pensava,
Saulo era inalcançável. Eu não servia pra ele e ele nem me conhecia direito.
Eu era uma criança pra criar, segundo suas palavras e não queria me meter
com homem assim. Estava farto de decepções.
Sempre tive o dedo podre para homens, dos três que me envolvi,
nenhum prestou e o último foi pior. Os dois primeiros tinham minha idade,
mas depois acabei me encantando por um homem de 28 anos quando eu
tinha apenas 19. Diogo foi um abusador, um homem nojento, que só
pensava em si e me menosprezava. Nosso namoro durou dois anos, anos
esses que sofri terror psicológico, apanhei, fui estuprado e humilhado.
Flávia foi minha salvação, ela denunciou esse infeliz e recebi uma
medida protetiva com relação a ele. Preso ele não ficou, pagou uma fiança
alta e respondeu em liberdade. Não deu muita coisa pra ele esse processo,
mas pelo menos tinha se afastado e soube por Flávia que um dia ela o viu e
ele estava acompanhado de uma mulher grávida. Ele carregava outra
criança. Coitada.
Fiquei um pouco traumatizado e passei a evitar situações que eu sabia
que iriam me machucar. Saulo era uma situação: bonito, inteligente,
cheiroso, mais velho, tudo que eu gostava em um homem. Contudo, eu já
tinha minhas respostas. Ele não se envolvia com ninguém que trabalhasse
com ele e não queria me criar. Confesso que essa última doeu.
Meus pais sempre me chamaram de infantil, dizendo que eu não sabia
o que queria da minha vida e que por isso era essa aberração. Só que
mesmo quando mais novo, eu sempre soube tudo que queria pra mim, só
não tive pessoas ao meu lado, apenas a Flávia.
Eu não era uma criança que precisava ser criada. Era um homem que
precisava de amor, carinho e proteção alguma vez na sua vida. Digo isso na
parte romântica, pois minha prima me dava todo apoio. Corria atrás, todos
os dias, dos meus sonhos. Tinha concluído meus estudos, me formei e agora
lutava por um emprego.
Cheguei em minha mesa um pouco cabisbaixo. Cada vez que uma
pessoa me menosprezava de alguma forma, doía muito. Cresci ouvindo que
não era capaz das coisas e conforme me assumi, isso só piorou. Talvez
ainda chegasse o dia que alguém iria olhar pra mim e me dar valor. Alguém
que iria acreditar em mim, me ouvir, pedir conselhos, me fazer sentir que eu
era alguém a ser enxergado.
— Guilherme para o Planeta Terra? — A voz de Saulo me tirou dos
meus pensamentos. Eu já estava na minha mesa e mexia em minha caneta.
Olhei para ele, para o seu rosto bonito e senti desapontamento. Talvez
nem amizade poderíamos ter. Se eu era uma criança pra criar, o que ele
haveria de querer conversar comigo? Acho que nem meus assuntos iriam
servir para ele.
— Desculpe, me distraí. O senhor precisa de alguma coisa? — Suas
sobrancelhas se juntaram.
— Aconteceu algo?
— Não.
— Você está estranho.
— Impressão sua.
— Eu já disse que não precisa me chamar de senhor.
— Prefiro. Estou em meu trabalho e não tenho intimidade com
ninguém aqui. O tratarei como trato o senhor Caique. — Ele se endireitou
todo e senti que cutuquei o seu ego.
— Ok, como quiser.
— Deseja algo?
— Não mais. Me viro. — Saulo saiu andando e entrou no elevador.
Melhor assim, muito melhor assim. Sem intimidades.
Capítulo 24
Jamais pensei que entraria em uma cadeia. E ainda mais por um dos
meus filhos. Os três sempre receberam a melhor educação e estudo. Sempre
tiveram do bom e do melhor e hoje, os três possuíam profissões dignas.
Mas aqui estou eu, indo ver Matheus, justo ele, que foi me causar
tamanha decepção. Sou levada à uma sala estranha e fria e logo depois um
policial enorme trouxe meu filho.
— Mãe! — ele diz assim que me vê, mas estou parada e logo me
sento. O policial sai, nos deixando a sós.
Matheus se senta na minha frente e fica me olhando.
— Não vai falar comigo? — ele pergunta.
— Estou ainda tentando processar como você veio parar neste lugar.
— Mãe, eu posso explicar...
— Explicar o que, Matheus? Esse tempo todo eu chamando aquele
Fernando de marginal e você que estava sendo um.
— Não sou um marginal!! — Ele bateu na mesa com força me
assustando. Aquele não era meu filho. Seus rompantes me davam medo.
— O que é então? A palavra certa é qual? Traficante? Você levou
drogas para o nosso maior bem. Manchando o nome do seu pai, da empresa.
Justo você...
— Justo eu o que? O seu filho preferido? — Como aquilo doía, meu
Deus. — Desculpa não ser perfeitinho como o cadeirante lá.
— Não fale assim dele.
— AHHH — Matheus começou a rir descontrolado, parecia um
maluco. — Você não tem vergonha, não é?
— Vergonha de que?
— De que? De maltratar o seu filho a vida inteira, INTEIRA!!! E
agora que estou aqui você cair de amores por ele?
— Não estou caindo de amores por ninguém. O assunto aqui é entre eu
e você. Você que mencionou o Caique e ele não tem nada a ver com o
assunto. E sabe por quê? — Fiquei com raiva. — Ele pode ser o que for,
mas sempre foi honesto, até demais para o meu gosto, mas sempre foi. E
mesmo com tudo que passou na vida dele nunca se sujeitou a usar drogas
ou fazer coisas erradas. Você me decepcionou, Matheus. Eu amo tanto você,
meu filho. Mas isso está difícil de suportar.
— Eu não gosto daquela empresa! Não gosto de trabalhar!
— Como pode dizer isso? Se não trabalharmos, não manteremos os
negócios do seu pai!
— E por que ele não me colocou como presidente?
— Neste momento vejo que foi uma sábia decisão — falei sem
remorso e Matheus se levou rápido, derrubando a cadeira.
— Pois fique com sua empresa e aquele presidente de merda que você
não sabe nem quem é o pai!
— Você me respeite!! — Me levantei com raiva.
— Você deveria ter vergonha de como tratou seu filho todos esses
anos. Estou com ódio dele, mas se eu fosse tratado por você como ele foi,
nossa, eu te odiaria, mãe.
— Posso saber por que está nesse assunto? Me atacando desse jeito?
Você que fez a merda e eu que tenho culpa? Eu te dei amor, e nem isso dei a
ele. Te dei educação, estudo e fui para você a mãe que não fui para ele. E
agora, olhe onde ele está e onde você está. Concluímos então que não tem
nada a ver uma mãe e sim o caráter, não é? — Isso o atingiu em cheio.
— Veio aqui pra que? Me humilhar?
— Não, te ver e tentar entender o porquê de tudo isso. E também
avisar que estou acompanhada do advogado que o Saulo conseguiu para
você. O nome dele é Diogo Magalhães e ele vai te defender e talvez, ainda
hoje, consiga que você responda em liberdade.
— Imaginei que o amiguinho queridinho do meu irmão não iria me
defender.
— Ainda bem que você sabe. — Respiro fundo e ajeito minha roupa.
— Só quero deixar uma coisa clara para você, Matheus. Na minha casa, no
meu lar, onde vivi ao lado do seu pai, drogas não irão entrar. Esse apoio
você não terá de mim. Aliás, enquanto estiver envolvido nisso, não ficará
perto de mim. Se decidir se tratar, terá a mãe que sempre esteve ao seu lado.
— Eu não tenho mais casa pra ir? É isso?
— Casa você tem, mas sem drogas. E se chegar alterado perto de mim,
na minha casa não fica mais. Ou aprende na marra, ou pode me esquecer.
— Você vai ter coragem de me abandonar assim? — Seus olhos
estavam cheios de lágrimas.
— Não estou te abandonando, mas deixando claro que quero meu filho
de volta e não o que estou vendo na minha frente.
— E se eu não conseguir?
— Já sabe o tipo de mãe que eu sei ser. Mesmo ficando morta por
dentro, não estarei ao seu lado para ver sua queda. Porque é isso que
acontece com quem usa essas coisas. No início é festa, tudo maravilhoso.
Mas com o tempo, a droga suga sua alma e toda vida em você e eu não
quero ser testemunha disso. Não iria aguentar.
Fui para perto da porta.
— O advogado irá entrar. A sua chance de fazer tudo diferente começa
agora.
Assim que saí da sala e dei a vez ao advogado, desabei. Chorei muito.
Meu peito parecia que estava comprimido e meu segurança veio ao meu
encontro.
— Dona Branca, a senhora está bem?
— Não, mas vou me recompor. Vamos sair deste lugar.
Carlos me acompanhou até o carro e assim que me vi dentro dele,
enxuguei meu rosto.
— Vamos para casa?
— Vamos.
No caminho me vi ligando para o Caique.
— Oi, Branca. — Odiava a forma que ele se referia a mim agora, mas
jamais iria admitir.
— Vim ver seu irmão.
— Hum.
— Por favor, Caique. Mostre um pouco de consideração.
— Você me pedindo isso? Mas tá legal, vamos lá. Como ele está?
— Péssimo. Descontrolado. Ele até me ofendeu.
— Ele vai voltar pra casa quando sair de lá?
— Pra onde mais seu irmão iria? Mas já dei meu aviso a ele. Se ficar
mexendo com drogas, não ficará perto de mim.
— Vai conseguir virar as costas para o seu filho?
— Caique, por favor... — Minha voz embargou e ouvi o suspiro dele,
mas foi uma voz mais longe que me chamou atenção.
“Amor, não seja tão ríspido. Sei que é difícil pra você, mas ouça.”
Era aquele sujeito. Ele devia estar com Caique em sua casa. Isso me
fez pensar que nem conhecia sua casa, mas eu escolhi assim.
— O Matheus ficou em uma cela diferenciada? Você sabe?
— Sim, o oficial que me recebeu disse isso. Ele tem nível superior e
não tem antecedentes criminais.
— O advogado já foi vê-lo?
— Sim. Quando saí de lá, deixei ele entrando para falar com seu
irmão.
— Eu já ouvi falar desse Diogo Magalhães. Ele é bom.
— Assim espero. Aquele lugar é horrível. — Chorei de novo.
— Você foi sozinha?
— Fui. Não quis deixar sua irmã ir junto. Ela até se ofereceu. Mas li
não é lugar para minha filha.
— Onde você está agora?
— No carro indo para casa.
— Procure descansar, logo ele volta pra casa. Diogo deve conseguir
um habeas corpus. Deseja mais alguma coisa? — Abaixei minha cabeça e
vi minhas lágrimas caírem em minha saia. Já balançava a cabeça em
negativa antes mesmo de responder.
— Não. Não preciso de mais nada.
— Vou desligar então.
— Ele está aí?
— Ele quem?
— O Fernando.
— Sim, está.
— Ok. Bom dia pra você.
Eu mesma deliguei o telefone e fui chorando até minha casa.
— Filho, você tem certeza? Não acha cedo não? Assim, quem sou eu
para falar isso, mas o mundo hoje está tão diferente. Pode parecer egoísmo,
mas como vou ficar sem você? Não estou dizendo com relação a trabalho,
eu me viro, mas...
— Você vai comigo.
— O que?
— Caique quer vocês junto. Ele disse que não vai deixar a Ju e você
aqui. Ele quer as duas morando com a gente.
— Mas vocês indo morar juntos é o início da vida de casados, a gente
vai atrapalhar.
— Claro que não. Eu já não durmo no Caique várias vezes? Já
passamos disso, mãe. O que a gente quer é não ter mais que se separar para
eu vir pra cá. Ele disse que sente muito minha falta.
— Dá um frio na barriga isso.
— Eu sei. Também estou sentindo. Mas sabe quando o seu coração
tem uma certeza que nem seu cérebro acompanha? O meu tá assim.
— Você está apaixonado, meu amor. Aliás, vocês dois. É normal e
muito bonito essa vontade de viver tudo isso. Como o Caique é um rapaz
com posses, pra ele se torna mais fácil.
— Vem comigo, mãe. Não quero deixar vocês.
— Me deixa pensar nisso tudo?
— Deixo. Em dezembro nosso contrato aqui teria que ser renovado.
Temos até dezembro para decidir tudo.
Me senti tão leve, que nem sabia explicar. Perdoar fazia parte e se em
algum momento eu não fiz isso com essas pessoas, era porque não estava
pronto. Agora, eu só queria seguir em frente e ser feliz só com sentimentos
bons dentro de mim.
Um dia falaria para o Matheus também, agora ele estava sem o celular,
mas eu já tinha o perdoado há um tempo.
Deixei o celular na mesa da sala e voltei para os braços do amor da
minha vida, o lugar que eu queria ficar até quando Deus me permitisse. Ele
havia me dado uma segunda chance quando me deixou vivo naquele
acidente e agora eu iria começar a aproveitar de verdade.
— Amor, onde você estava?
— Apenas fui na sala.
— Fazer o que? — Fernando perguntou, já se embolando em mim de
novo e de olhos fechados.
— Me libertar de uma vez por todas. — Beijei sua cabeça. — Dorme,
estou aqui com você e sempre estarei.
— Tchau, Fernando!
— Até mais, Alice.
Me despedia de uma menina da minha sala na faculdade. Finalmente
estava fazendo minha tão sonhada faculdade de Designer Gráfico. Estava
adorando o curso e conhecendo um monte de gente nova.
Era só mais uma das coisas que meu amor realizava em minha vida.
Havia sido presente do Caique. Eu agora não fazia parte da equipe de
limpeza da AGM, era secretário e futuramente, assim que estivesse
formado, trabalharia com toda a parte de marketing da empresa. Minha mãe
estava eufórica com as mudanças em minha vida.
Robert já me aguardava na porta da faculdade. Caique não abriu mão
disso, mas então insisti que podia ser outro para não fazer com que Robert
fosse pra lá e pra cá, mas aí foi o próprio Robert que não concordou. Ele era
protetor comigo e o meu padrasto oficialmente.
Minha mãe e ele assumiram o relacionamento e tinha tempos que eu
não via dona Kátia tão feliz. Era Deus no céu e minha mãe na terra para o
Robert. E o amor dele por ela, vinha para mim e Ju também. Minha irmã
era louca pelo Robert que fazia todas suas vontades.
Com isso, mamãe e ela só ficaram na minha casa com o Caique por
cinco meses. As duas foram morar com Robert que vivia perto de nós, no
mesmo condomínio, só em blocos diferentes. Foi aí que entendi como ele
conseguia estar sempre perto do meu amor a qualquer hora que fosse.
— Como foi a aula, Nando?
— Foi ótima. Teve umas matérias bem complexas, mas que vou dar
mais uma estudada depois.
Gostava dele me chamando de Nando. Gostava muito do carinho.
Ninguém substituiria meu pai, mas Robert tinha ganhado um espaço
enorme em meu coração. O quartinho da Ju ficou intacto na minha casa
para quando ela fosse pra lá, mas agora tinha outro em sua nova casa, que
novamente Caique fez questão de deixar do jeito que ela gostava.
— O Caique foi ver a Branca?
— Deixei ele lá antes de vir te buscar. É estranho saber que ela está
numa clínica. Uma mulher tão altiva. Mas sei que é tudo por conta do
Matheus.
— Foi barra pra ela acompanhar o julgamento dele e vê-lo condenado.
A sorte foi que o juiz permitiu que ele continuasse na clínica e fazendo
trabalhos comunitários.
— Mas para uma mãe não é fácil ver seu filho ser condenado, usar
tornozeleira eletrônica e revoltado como ele está. Matheus tem um longo
caminho. Ele não reagiu nada bem também com a perda do seu cargo na
empresa e com a condenação.
— Mas o que ele fez foi errado, tava na cara que iam tirar ele — falei.
— Ele quase comprometeu a imagem da empresa. Não foi um funcionário
qualquer, mas um dos herdeiros, né?
— Realmente.
— Falaram tantas coisas na internet, expondo ele.
— Uma terra perigosa, essa tal internet. — Robert concluiu.
Meu marido tinha ido ver a mãe em uma clínica onde ela estava
internada havia quatro dias. Branca sofreu um colapso nervoso após a
condenação do Matheus e vir aguentando a situação de vê-lo na clínica e
ainda por cima desferindo ódio contra ela. O filho que ela tanto amou agora
a maltratava.
Ela tomou um vidro de remédios inteiro um dia em sua casa e foi
encontrada pela empregada no chão de seu quarto. O telefonema chegou em
nossa casa de madrugada e foi um desespero. Saulo que chegou primeiro lá
por morar no mesmo condomínio e Caique e eu fomos direto no hospital.
Beatriz estava grávida. Tinha reatado com o ex-namorado e ambos se
casaram em outro país em uma cerimônia simples, mas extremamente linda.
Caique acompanhou tudo pela internet, a irmã fez isso especialmente para
ele e a mãe. Ambos não puderam sair do Brasil naquele momento diante da
proximidade do julgamento do Matheus.
E com a gravidez, tanto o Caique quanto o marido de Bia, não acharam
bom que ela ficasse vindo pra cá diante dos fatos que aconteciam. A
imprensa estava igual a um urubu em cima da nossa família e Bia não podia
ficar sofrendo estresse.
Com isso, Branca ficou sozinha. Sua companhia eram os empregados.
Caique não foi mais na casa da mãe, mas por um pedido meu, ele ligava
sempre para saber notícias. Eu sentia que ele queria também, mas tentava se
segurar. Meu amor tinha um coração de ouro.
No fim das contas, Branca Montenegro acabou sem ninguém. Os três
filhos estavam longe dela: um por estar em uma clínica para dependentes
químicos e condenado pela justiça, uma por estar se preservando já que
esperava um bebezinho e o outro porque ela sempre deixou bem claro que
não o amava. Então um dia ele cansou. Era triste, mas tudo foi ela mesma
que procurou.
— Sua mãe fez o bolo de fubá que você pediu.
— Hummm, estava com vontade de comer. Passo lá mais tarde pra
pegar.
— Tá bom.
Resolvi mandar uma mensagem para o meu amor. Ia chegar em casa,
comer algo e ir pra empresa.
Fernando: “ Ca, como está aí com a Branca?”
Caique: “Ela vai precisar de tratamento psicológico e psiquiátrico.
O médico foi taxativo. Ela entrou em depressão. Pelo menos está
concordando com tudo”
Fernando: “Como você está?”
Caique: “Não gosto dessa situação. Nem sei como contar pra Bia.
Vou na casa da Branca agora organizar tudo por lá com os
empregados.”
Fernando: “Não seria melhor uma companhia pra ela?”
Caique: “Vou ver isso também.”
Eu o sentia cabisbaixo com tudo. Caique já havia tomado sua decisão,
não seria mais próximo de Branca. Ela tinha conseguido o que queria no
fim das contas, que o filho se afastasse dela, mas ele não deixava de, por
trás dos panos, cuidar dela de certa forma. Esse era o homem que eu amava.
Robert me deixou em casa e foi ao encontro de Caique. Eu almocei,
tomei um banho e enquanto me arrumava no quarto, me lembrava da nossa
noite de amor de ontem. Tinha sido perfeita.
Me deixei na cama e quase podia sentir sua boca e aquelas mãos
mágicas em mim. Caique estava leve, passando por suas questões mais
delicadas com mais força e isso me fez lembrar da conversa que tive com a
psicóloga dele há um tempo.
Obrigada a todos por terem chegado até aqui. Por lerem mais uma obra
minha. Obrigada de verdade por todo carinho, por esperarem ansiosamente
a história do Caique.
Obrigada a Deus por me permitir mais uma vez trazer uma linda história
para vocês.
A minha amiga Valéria Nascimento por mais uma vez me dar um apoio tão
grande como sempre. Não sei o que seria de mim sem você. Você tem o
meu coração, saiba disso.
A minha amiga Tai Medeiros que é minha segunda irmã nesta vida, por
estar sempre ao meu lado.
A Aika Ilustra que fez a arte mais linda do mundo do meu casal. Ela captou
todo o amor expresso neste livro sem conhecer a história.
E por fim a Flávia Costa e Flávia Borba por serem as amigas mais incríveis
que tive o prazer de conhecer nesta vida. Amo muito vocês, meu amores!!
Obrigada a todos de coração!
Rose Moraes
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