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Índice

Sinopse:
Parte 1
1
2
3
4
5
6
7
Parte 2
8
9
10
11
12
13
14
15
16
17
18
19
20
21
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26
27
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29
30
31
32
33
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35
36
Parte 3
37
38
39
40
41
42
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55
56
57
58
59
60 Final
Epílogo
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mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer
sistema ou banco de dados sem autorização escrita da autora.

Esta é uma obra de ficção. Os fatos aqui narrados são produto da


imaginação. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou
situações da vida real deve ser considerado mera coincidência.

Título: A Bela e a Fera


Romance
ISBN – 9798851204357
Texto Copyright © 2023 por Josiane Biancon da Veiga
Sinopse:
Essa história nunca foi um conto de fadas...

Dez anos atrás, ele me abandonou grávida nas mãos de uma mãe
narcisista. Agora, aparecia, exigindo o filho que fez. Quando soube que a
criança não havia sobrevivido, jurou vingança.

Mas, nunca pensei que ele levasse isso tão a sério.

Nos porões de um castelo em uma ilha abandonada, Yan me fez


provar o sabor da dor e do prazer. Eu sabia que jamais voltaria a ser a
mesma depois de estar nas mãos dessa fera ferida.
Parte 1
1

Eu não podia esconder meu sorriso. A respeito de qualquer coisa,


minha boca insistia em mostrar os dentes.
O suor escorria pelo meu rosto, meus braços estavam cansados, e
ouvia seu Joaquim reclamar sem pausas que eu estava demorando para lhe
levar a argamassa que a betoneira fazia; ainda assim, eu não conseguia
esconder meu sorriso.
Eu sei que a vida é uma merda.
Acredite em mim. Eu sei.
E, apesar disso, ela tinha esses momentos espetaculares que eu mal
conseguia acreditar que fossem reais. Porque, no fundo, nem pareciam ser.
— Aqui está, seu Joaquim — disse ao homenzarrão que me aguardava
perto de uma parede de tijolos recém colocados.
— Demorou — ele reclamou.
— Eu sei. Mas, foi a betoneira. Acho que o motor não está
funcionando direito.
— Então faça uma caixa de madeira e prepare a massa no braço. Está
achando que é moleza? Na minha época não existiam betoneiras para
misturar o cimento, com a areia, a brita e a água. E nós fazíamos tudo com
uma enxada. Você tem muito que aprender.
Eu assenti, porque mesmo o humor azedo dele não mudaria meu dia.
Deus, como eu estava feliz...
Joaquim despejou o cimento pronto no seu balde, e me entregou o
outro para buscar mais. Enquanto eu fazia o trajeto, pensei em como cheguei
até aqui.
Eu era um sobrevivente. Órfão de mãe, deixado à própria sorte pelo
pai, eu vaguei de um lado para o outro nesse mundo amaldiçoado,
acreditando que tudo se resumia a dor, abuso e desespero.
Até ela aparecer...
Dos nove anos – data que minha mãe partiu -, até meus dezessete, tudo
que vi foi indiferença e dor. Eu estive em muitos abrigos do governo, e em
algumas casas de parentes – que me queriam quando a vida apertava e eles
precisavam da pensão da minha mãe – sem conhecer respeito ou amor.
Isso tudo até Catarina de Vaz cruzar meu caminho na biblioteca
pública da nossa cidade.
Eu ia até lá para fugir do mundo através dos livros. Ela ia para fugir da
mãe, que estava sempre lhe cobrando mais e mais por beleza, inteligência ou
sucesso. Para mim, Catarina era a jovem mais linda e inteligente que já vi, e
eu não entendia por que a mãe dela era tão cruel.
Nós nos tornamos amigos. Compartilhávamos histórias de nossas
escolas – eu a pública mais violenta, ela uma escola particular franciscana
em que só as pessoas mais ricas frequentavam.
O amor surgiu ao longo do ano. Entre uma das estantes empoeiradas,
nós trocamos nosso primeiro beijo. Nosso segundo, foi dado no escuro do
cinema que ficava próximo. Muitos outros vieram, e a cada um deles
começou a brotar uma urgência que não era mais sanada pelos beijos cada
vez mais exigentes e fortes.
Certo dia, nós simplesmente paramos diante de um hotelzinho
vagabundo no centro histórico. O lugar cheirava a mijo e parecia sujo, mas
era algo que eu podia pagar. Eu não pedi, e ela também não negou.
Nós dois perdemos a virgindade juntos. Estávamos tão apaixonados
que não conseguíamos mais ficar um longe do outro. Nossas mãos nos
buscava quase como nossas bocas. Nossas histórias separadas não pareciam
mais certas, queríamos construir uma juntos.
Queríamos ficar juntos.
Então eu completei dezoito anos. Formei-me no ensino médio e
comecei um cursinho para passar em uma universidade pública. Eu queria
estudar enfermagem, mas precisava de um emprego que pagasse bem para
poder ter alguma chance de ser aceito pela mãe de Catarina, assim comecei a
me preparar para prestar vestibular para medicina.
Foi quando uma bomba caiu sobre minha cabeça.
Catarina me disse que estava grávida. Nós sempre usamos camisinha,
mas eu sabia que, às vezes, acontecia alguma falha.
Eu devia entrar em surto, mas estava feliz demais para isso. Nunca
tive uma família, mas agora eu teria um filho. Mal conseguia acreditar
quando ela me disse, eu a abracei e a beijei com todo amor que transbordava
em meu peito.
“O que vamos fazer?” — Cat parecia muito preocupada. — “Minha
mãe não vai aceitar!”.
“Eu vou cuidar de você. E do bebê. Eu juro” — prometi.
Então eu saí do curso porque não podia mais pagá-lo. Comecei a
trabalhar na construção civil para juntar dinheiro. Eu precisava de um valor
rápido para conseguir alugar uma casinha antes que a barriga crescesse. E o
trabalho braçal com o senhor Joaquim me pagava bem, talvez porque
nenhum outro teria a paciência de aguentar os rompantes desse velho
pedreiro.
Eu estava tentando aprender o ofício. E Joaquim estava me ensinando
aos poucos.
— Ei, Yan — Joaquim gritou ao longe, enquanto eu abastecia a
betoneira com areia. — Consegui um novo trabalho para sábado e domingo.
Você quer ir?
Eu assenti. Não importava que eu não tivesse mais dias de folga. Eu só
precisava juntar uma grana, e então eu teria Catarina e o bebê para sempre
comigo.

∞∞∞
— Ela descobriu.
Catarina me contou com os olhos azuis transbordando lágrimas. Eu
segurei seus dedos entre os meus, tentando lhe transmitir força. Nós
estávamos sentados em um dos bancos da praça Otávio Rocha. O vento
gelado daquele inverno tornava o nariz pálido de Cat em uma cor viva, e ela
se esgueirou nos meus braços buscando calor.
— Dona Sofia vai ter que aceitar — eu lhe disse.
— Você não conhece a minha mãe — ela afirmou. — Ela é um
monstro! Nós precisamos fugir!
— Para onde, gata...?
Gata... Minha Cat...
— Qualquer lugar. Você já tem algum dinheiro, né? Eu vou vender
meu celular e algumas joias que meu pai me deu de quinze anos, antes de
morrer. A gente junta, e foge para bem longe. Você já é de maior e eu farei
dezoito daqui duas semanas. E somos jovens, podemos recomeçar em algum
lugar. Por favor... por favor, Yan... Não me deixe nas mãos dela... Ela é capaz
de tudo, Yan... Eu te imploro...
Eu a segurei nos braços.
— Cat, eu nunca vou te deixar — jurei. — Não fique desesperada.
— Então... amanhã à noite? Nos encontramos em algum lugar e vamos
direto para a rodoviária. Pegamos o primeiro ônibus que estiver partindo.
— Certo. Amanhã às 18, a gente se encontra ali no viaduto da
Conceição — fui mais explícito, já que ela claramente não conseguia pensar
direito.
Catarina assentiu. Eu nunca vi tanto alívio em seu rosto.
2

Sofia de Vaz era um monstro. Não daqueles horripilantes que sua


mente fantasia em pesadelos nas noites quentes. Sofia era de carne e osso,
loira e de olhos azuis, corpo bem esculpido por pilates e academia, roupas de
grife e sapatos caros... e, ainda assim, o pior dos seres já criados nesse
mundo.
— Você está grávida...
Eu levantei a face, encarando minha mãe. Eu não a chamava assim
desde que tinha cinco anos e ela me disse que tinha raiva de ser minha mãe.
Os motivos iam desde eu demorar para conseguir aprender a ler e escrever –
o que para ela era uma vergonha, um insulto toda vez que precisava ir em
uma reunião de pais no jardim de infância – até mesmo meu cabelo cheio –
loiro como o dela, mas com cachos como os de meu pai – e meus olhos azuis
claros demais e sem personalidade.
Eu era quase uma cópia física dela, mas ela via diferenças. E não
gostava das diferenças.
“Você não vai conseguir. Nunca consegue nada!”, “Você puxou a
família do seu pai, sem carisma”, “Você não é bonita como suas primas”,
“Você não é inteligente, terá que fazer um bom casamento, porque nunca
será ninguém na vida”, eram frases que eu era acostumada a ouvir desde
sempre.
Cada vez que ela dizia isso, meu pai apenas erguia os olhos, e fingia
que nada estava ouvindo. Ele odiava conflitos, então nunca contrapunha e,
por muito tempo, eu acreditei que ela estava certa. Afinal, se ela – minha
mãe – falava, e meu pai não negava, devia ser verdade.
Então eu sempre me escondia das pessoas. Eu não conversava muito,
não tinha amigos. Era gentil, porque não sabia ser outra coisa a não ser
gentil, mas nunca me aproximava demais de ninguém.
— Você está grávida – ela gritou, dessa vez. — De quem? Nunca te vi
com nenhum namorado! Ao menos me diga que é de algum filho de político
ou médico. Alguém de família muito rica!
Meu pai morreu quando eu tinha dezessete. Vergonhosamente, eu nem
pranteei sua morte. Não senti nada. Ele era como um fantasma que mal me
dirigia a palavra, eu mal o via. Ele costumava sair muito cedo para ir
trabalhar, e voltava tarde da noite. Aos finais de semana, minha mãe e ele
iam a festas que eu não era convidada. Nas férias, eles viajavam por meses,
ignorando-me, como se eu não existisse. Ele era quase um desconhecido.
— Ele não é de uma família rica — contei, porque não tinha escolha.
Minha mãe encontrou o exame de gravidez no lixo do meu banheiro.
Ela costumava entrar no meu quarto, ela invadia todo meu espaço, mas
nunca pensei que ela revirava meu lixo. Quando cheguei em casa, Sofia me
esbofeteou e eu me amedrontei. Não devia ter feito isso, porque quando ela
pegou meu ponto fraco, eu estava perdida.
Era sempre assim. Sofia era um monstro que sabia me manipular
muito bem.
Logo após a morte do meu pai, eu aproveitei a quase maioridade e
comecei a zanzar por Porto Alegre. Eu só queria ficar longe de casa, longe
de minha mãe. Quando eu descobri a biblioteca pública, aquela passou a ser
meu lar.
Eu vivia zanzando entre as estantes de livros velhos e com traças, me
jogando de cabeça no mundo de Erico Veríssimo, onde eu poderia vagar por
uma terra e por um tempo que minha mãe não me alcançasse.
Até que um dia meu caminho cruzou com Yan. Foi instantâneo. Eu o
vi, e soube que eu o esperava por todo esse tempo. Nós ficamos amigos, e
quando menos percebemos, estávamos trocando beijos.
E quando contei que estava grávida, ele não me rejeitou. Ao contrário,
sorriu como se aquele fosse o maior dos presentes. Nós não tínhamos nada
material, mas tínhamos um ao outro e, pela primeira vez, eu não fiquei com
medo.
— Como não é de uma família rica? Sua escola é uma das mais caras
do país! Que pais pobres colocariam o filho ali?
— Ele não estuda comigo.
— Onde ele estuda?
Eu neguei com a face. Eu não podia contar, porque sabia que ela o
destruiria. E nós já havíamos combinado de fugir no dia seguinte. Eu ainda
era menor de idade, mas se conseguíssemos ir para um lugar bem longe,
entrarmos em algum tipo de comunidade, podíamos ficar lá até eu completar
dezoito. Eu só precisava ficar longe de minha mãe até ser legalmente dona
de mim mesma.
Subitamente, outro safanão na cara. Eu pus a mão no meu rosto
dolorido, enquanto a ouvia me dirigir uma infinidade de palavrões,
surpreendentes até mesmo para ela.
Ouvi tudo calada, minha mão em meu ventre, um amor excepcional
que me fez servir de escudo ao bebê que ainda não se havia formado, mas
que já alimentava minha alma. Eu amava esse filho com um amor que nunca
recebi de Sofia. E isso me fez ter forças de aguentar os absurdos que ela
dizia, até minha mãe sair da nossa luxuosa cobertura, batendo a porta.
— Está tudo bem — eu disse, para mim e para meu filho. — Amanhã
à noite já estaremos longe, com o seu papai. E vamos ficar bem. Eu juro.
Era uma promessa que eu jamais conseguiria cumprir.

∞∞∞
Eu ouvi os passos dela no corredor. Escondi minha mochila
rapidamente embaixo da cama, enquanto me sentava no leito, aguardando
que abrisse a porta. Eu trancaria a porta se pudesse, mas nunca tive uma
chave. Então, apenas aguardei pela tortura psicológica, enquanto respirava
fundo e tentava acalmar meu coração.
Todavia, quando o rosto de Sofia apareceu, ela não parecia com ódio.
Ao contrário, foi a primeira vez que eu me lembrava de vê-la sorrindo e,
francamente, não parecia um sorriso falso ou coisa assim.
— Catarina... — ela disse meu nome de um jeito pausado. — Ah,
filha... eu esfriei a cabeça. Acho que precisamos conversar. Eu sou sua mãe,
eu não vou te deixar sozinha nesse momento.
Ela entrou no quarto. Agora, eu a via de corpo inteiro. Ela trazia uma
bandeja com dois sucos de laranja. Um ela pegou, e me estendeu o outro. Eu
aceitei, porque talvez... talvez uma parte de mim ainda fosse uma menina
ansiando pelo amor de sua mãe.
— Quem é o pai do bebê, Catarina?
— Eu... não quero dizer — admiti.
— O que eu vou fazer, filha? Matar o menino? Eu só quero conversar
com ele e falar como vamos proceder diante do ocorrido. O que está feito,
está feito. Agora, precisamos resolver as coisas. Vocês vão se casar? Como
ele vai sustentar o bebê?
Racionalmente falando, ela estava certa. Levei o suco aos lábios, era
tão saboroso, parecia tão doce.
— Eu não sei — admiti. — Ele é pobre, mas ele é trabalhador.
— Ele estuda?
— Ele está fazendo um cursinho pra prestar para medicina.
— Certo. E ele tem pais? Posso falar com os pais dele?
Eu bebi outro gole do suco, enquanto analisava as perguntas.
— Ele é órfão.
O tom dela me deixou leve. Quando percebi estar calma pela primeira
vez desde o resultado positivo, eu tomei outro gole. Ah, era tão bom um
momento de paz. Um, ao menos. Depois dessa tempestade, eu poderia viver
a bonança?
— Certo, filha... Como é o nome dele?
— Yan.
— Yan de quê?
— Leziér.
Por que eu estava contando? Eu simplesmente não conseguia parar de
falar.
— Você está com sono? Parece cansada...
— Eu só... — vou me acomodando entre os travesseiros, o copo cai
das minhas mãos, molhando o colchão ao meu lado. — A gente vai se
encontrar amanhã no viaduto perto da rodoviária...
— Meu amor! Você ia fugir de mim?
— Eu... — meus olhos pesaram eu os fechei.
Meu corpo então simplesmente ficou em um estado tão apático que eu
não conseguia me mexer. Ouvi passos, ouvi vozes. Dois homens surgiram no
meu campo de visão semicerrado. Eu queria reagir, mas não consegui,
mesmo quando meu corpo foi erguido da cama.
Eu sabia que não devia confiar em Sofia, mas nunca pensei que ela me
odiasse tanto.
3

— Já não devia estar fazendo algum efeito? — ouço a voz de minha


mãe ao fundo.Minha mente está tão nublada. Eu me esforço para abrir meus
olhos, uma luta desesperada para saber onde estou e o que está acontecendo.
— A demora pode ser porque você dopou a garota — ouço outra voz
feminina, um tom mais urgente, como se ela tivesse mais o que fazer do que
estar aqui, sendo aqui qualquer lugar em Porto Alegre.
Francamente, qualquer lugar mesmo.
Quando abro meus olhos, com muita dificuldade, eu não reconheço o
ambiente. Só sei que fede a um cheiro azedo de esgoto e sujeira. Estou
deitada numa maca com lençóis imundos, e aos meus pés minha mãe está de
braços cruzados, seus olhos indo da mulher ao relógio de pulso, e depois
volvendo a mulher.
— O que está acontecendo? — eu pergunto, minha voz tão lenta que
eu mal consigo entender direito o que eu mesma digo.
Uma parte de mim percebe que fui drogada. Provavelmente, uma dose
cavalar de algum dos muitos remédios de dormir que minha mãe ingere. Ou
outra coisa, só Deus sabe o que ela me fez tomar naquele suco de laranja.
— Ah, menina — a mulher me encara. — Logo termina.
Logo termina o quê?
Meu olhar caí nela, e eu estudo sua expressão de desdém. A
desconhecida tem cabelos cacheados que prende num coque cheio de frizz.
Seu cabelo está tão seco que parece gritar hidratação, mas nada se assemelha
ao seu olhar. É tão frio e morto.
Eu quero repetir a pergunta. O que está acontecendo? Onde estou? Por
que estou aqui? Mas, tudo é interrompido pela pior dor que já senti na vida.
Eu me encolho, gritando, as mãos no ventre, enquanto parece que sou
carregada para um buraco fundo, onde não consigo respirar.
Minhas costelas parecem quebrar, e a dor se espalha de uma forma que
eu sinto que não vou sobreviver.
— Mãe! — eu grito, implorando por ajuda, uma palavra que nunca
digo, e Sofia parece impressionada por eu estar falando-a.
— Seja forte, Catarina — ela ordena. Então se volta para a mulher. —
Na hora de fazer, elas não gritam assim.
A mulher dá um sorriso besta, enquanto puxa uma mesinha com rodas.
Eu posso ver um monte de instrumento cirúrgico ali. Começo a entrar em
pânico, mas ela põe a mão sobre mim e pede silêncio.
— Não vou fazer nada até você sangrar. A gente vai esperar a
hemorragia passar e depois eu vejo se preciso fazer uma curetagem.
— O quê? — eu não entendo o que ela diz.
Por que ela precisa fazer isso em mim? E como ela sabe que eu vou
sangrar?
— Fique tranquila que Carla é uma excelente enfermeira e já fez isso
um milhão de vezes...
O que ela fez?
Outra contração. E outra. E eu me retorci, sentindo meu núcleo molhar
de algo quente, que logo soube ser sangue.
— O meu bebê! — então tudo ficou claro.
Até esse dia, eu era a pessoa mais doce do mundo. Depois dele, algo
quebrou em mim, algo se partiu, levando consigo a gentileza daquela
Catarina cheia de sonhos e esperança. Agora só havia dor, raiva e desespero.

∞∞∞
— Como você está? — minha mãe me indagou, no dia seguinte,
depois de quase vinte horas de agonia, hemorragia e lágrimas.
Pensei que fosse morrer antes mesmo de completar dezoito anos.
— Você parece péssima. Está com muitas olheiras. Carla disse que é
preciso se hidratar bastante. Água de coco... tome — ela me estendeu um
copo, que eu recusei com um safanão.
O copo voou para o chão.
Elas pensaram que eu não sobreviveria. Conversaram entre si, ouvi na
noite anterior. Minha mãe disse que eu precisaria ir ao hospital, mas Carla
falou que não podia, pois descobririam o que ela fez.
— Olha a bagunça que você fez! — Sofia ralhou.
— Eu te odeio — disse.
— Toda filha odeia a mãe. É natural. Mas, um dia vai me agradecer.
Poderá estudar, conhecer um homem rico e...
— Eu vou me vingar de você — jurei.
— Não fale bobagens.
— E da Carla. Vocês duas... podem se passar dez, quinze anos..., mas
eu vou me vingar.
— Uma pamonha como você? — ela debochou.
Ela estava certa. A Catarina que ela conhecia não matava nem uma
barata. Mas, eu mudaria. Pelo meu bebê que foi morto por elas. Eu me
vingaria.
— Quando você menos esperar. Quando estiver feliz. Quando estiver
no seu melhor momento. Será nessa hora que eu vou me vingar de você —
afirmei.
Minha mãe focou seu olhar em mim, como se estudasse minha
postura.
— Você devia estar me agradecendo.
— Você matou meu bebê.
— Bebê? Era só um amontoado de células.
— Era um ser vivo. E você o tirou de mim. Não tinha esse direito. Eu
nunca vou te perdoar. Aliás, não vou voltar para casa. Daqui, vou direto para
um hotel. Eu tenho o dinheiro que meu pai deixou para mim, e você vai
disponibilizá-lo e aceitar isso, deixando-me em paz, senão eu vou denunciá-
la a polícia e a sociedade. Todo mundo vai saber o que fez comigo.
Eu não sou idiota. Sabia que não aconteceria nada com ela, minha mãe
tem influência demais para que a justiça a prendesse ou coisa assim. Mas,
sentir o peso do olhar das pessoas julgando-a, a alta sociedade que ela
adorava mais que tudo...? Se isso saísse nos jornais, ela morreria.
Então, Sofia simplesmente se afastou daquele quarto vagabundo, em
algum lugar perdido da região metropolitana. Saber que eu estaria livre dela
até pareceu abrandar um pouco da dor que eu sentia.
Um pouco, mas não tudo.
Uma explosão de lágrimas me toma, enquanto eu resvalo para trás.
Meu corpo arde, mas minha alma está quase morta. E essa dor é maior do
que tudo.
4

A dona da pensão que eu morava desde os dezoito me encarou com


uma certa dúvida, enquanto fechava minha conta. Eu sempre pagava o
aluguel adiantado, mas a janta era um pagamento aparte. Normalmente, eu
comia qualquer coisa para economizar, mas em dias pesados da construção
civil, eu me obrigava a comer melhor e ir até o refeitório, onde ela anotava
tudo que eu pegava.
— Você está indo embora?
— Sim.
— Por quê? É algum problema aqui?
Talvez ela imaginasse que estivesse perdendo um bom cliente por
causa de outro hóspede, mas eu neguei rapidamente.
— Minha namorada está grávida — contei.
Era a primeira vez que eu falava isso em voz alta, pois quando fui
avisar sr. Joaquim de que iria embora de Porto Alegre, não disse o motivo.
— E você está fugindo disso, menino?
— Mais ou menos isso.
Eu não queria falar muito porque era algo pessoal, e eu mal conhecia
essa mulher, então apenas aceitei seu olhar de julgamento enquanto ela me
passava o valor dos jantares e eu paguei sem discutir.
Depois disso, rumei para a área onde Cat e eu nos encontraríamos.
Eram dezessete horas, mas eu estava ansioso, então me aproximei da
passarela ao lado do túnel e aguardei que Catarina aparecesse.
Havia muita gente andando por ali naquele horário. Moradores de rua
costumavam se esgueirar embaixo do concreto para se esconder do frio.
Quando o sol desaparecesse, a temperatura cairia rapidamente, e eu sabia
que seria uma noite difícil para quem morava naquele lugar.
Muitas vezes, no último ano do abrigo, eu me perguntava se esse
também seria meu destino. Mas, de alguma maneira, eu tive muita sorte. Cat
apareceu no meu caminho e me deu forças de buscar algo melhor. Buscar
trabalho e um lugar para morar. E agora eu estava procurando meu destino.
Dezessete e meia e nada de Catarina aparecer no horizonte. Eu ergui
meu olhar do meu relógio do Paraguai, me perguntando se ela se atrasaria. O
trânsito às vezes era complicado e ela morava do outro lado da cidade, na
área nobre, lugar que nunca pus os pés.
Minha garganta estava seca e eu olhei ao redor, procurando algum bar
para comprar água. Mas, eu tinha medo de me afastar do viaduto e me
desencontrar com Cat. Então, eu simplesmente respirei fundo, pigarreando e
tentando aliviar a garganta com saliva, enquanto olhava novamente para meu
relógio.
Dezoito horas e nada.
Dezoito e quinze.
Dezoito e meia. Podia ser só um atraso. Eu olhei meu celular velho,
tentando ver se ela tinha me mandado alguma mensagem. Era um Nokia
1100 muito ralado, comprado em segunda mão. Eu nunca tinha crédito, mas
Cat podia me mandar mensagens. Coisas curtas, porque ele não recebia
trechos longos. Mas, não havia nada informando por que do atraso.
Dezenove horas eu me perguntei se ela desistiu. Era a coisa racional a
fazer, talvez a mãe a tenha surpreendido com aceitação, e ela teria um lugar
seguro para cuidar do nosso bebê, enquanto eu estudava e me preparava para
poder lhe dar uma vida digna.
Ainda assim, eu fiquei aguardando.
Dezenove e quinze, dois homens fardados surgiram de repente do meu
lado.
— A identidade — um dele pediu, o tom meio urgente, meio raivoso,
e eu puxei rapidamente do bolso da camisa e entreguei.
O policial olhou o RG e depois me encarou.
— Tem alguma coisa aí com você?
— Só minhas roupas — expliquei, descendo a mochila das costas e me
preparando para abri-la.
Percebi que os dois trocaram um olhar significativo.
— O que faz aqui na região?
— Só estou esperando minha namorada.
— Sei... Abre a mochila — ele ordenou.
Puxei o zíper e mostrei a parte interna. Havia apenas calças, camisas e
cuecas. Eu nunca tive muita coisa.
— Vende drogas?
— Não.
— E o que é isso?
Então ele tirou um maço de erva do bolso. Eu arregalei os olhos,
tentando entender o que eu tinha a ver com a droga que ele trazia consigo.
— Não é meu — afirmei. — Você acabou de tirar do bolso...
— Cale a boca e coloque as mãos na cabeça! — ele avançou sobre
mim.
Alguns transeuntes cruzaram por nós, se afastando do caminho. Eu
parecia um leproso recebendo aqueles olhares carregados de julgamento. Um
julgamento por algo que não fiz.
— Não é meu — gritei.
Subitamente, estava no chão, meu rosto sendo esfolado contra o
concreto da passarela. Os dois homens forçaram seu joelho nas minhas
costas, e eu não conseguia respirar.
Nunca me envolvi com coisa errada. Mesmo nos piores momentos, eu
era o cara certinho que só queria ter uma vida justa e honrada. Enquanto eu
ia perdendo as forças, o ar faltando ao meu pulmão e o desespero jorrando
de mim em forma de lágrimas, eu percebi que justiça não existia em nosso
país, e que tudo estava corrompido.
5

Eu entro na sala reservada, um cheiro forte de alvejante faz minha


cabeça girar. Normalmente, esse lugar é podre, fedido e sujo, mas a sala que
recebe os advogados é um contraste dentro da Presídio Central.
Ergo meu olhar e percebo um senhor calvo, procurando algo nos
bolsos. Ele tem uma pasta preta em cima da mesa, e alguns papeis estão
espalhados de forma displicente.
— Como você não apresentou advogado, serei seu defensor público —
me explicou, enquanto mexia na papelada. — Você é o...?
Claramente, ele tinha uma lista de presos para atender aqui hoje. Então
eu não esperei que se importasse com a minha situação.
— Eu sou Yan — disse. — Eu sou inocente.
— Aham — ele mexeu a cabeça, como se ouvir essa frase fosse a
coisa mais padrão do mundo.
— Foi armado. A polícia já tinha a droga e...
— Olha, garoto... Se você assumir o que fez, eu consigo diminuir a
pena, até te tirar daqui. Mas, se ficar aqui tentando falar bobagem, pode
pegar alguns anos.
— Mas, eu sou inocente.
Olhando para mim de verdade desde que chegou, suspirou.
— Isso aqui não é um mundo idealizado.
— Me mandaram para o Central direto. E eu sou primário. Isso está
certo?
— Você quer falar de justiça no Brasil? Se contente se ainda não foi
estuprado na cadeia, com essa cara bonitinha. Aliás, você foi?
Neguei. Estranhamente, ninguém parecia me ver de verdade aqui
dentro.
— Faz parte de alguma facção? — indagou.
— Não. Eu estava trabalhando...
— Não estava — ele negou minhas palavras. — Tenho aqui papeis
que informam que você saiu do trabalho da construção civil. Também não
tinha endereço fixo...
Subitamente, me dou conta de que tudo estava estranhamente certo
para me pegar como um desses traficantes pé de chinelo que vive nas ruas e
vive para usar drogas.
— Eu sou inocente — murmurei, dessa vez sabendo que estava
ferrado.
O advogado percebeu meu desânimo. Soube então que eu havia
aceitado meu destino.
— Certo. Então vou pôr no processo que você vai assumir.
— Não. Eu não fiz nada. Eu nunca vou assumir algo que eu não fiz.
— Você ouviu alguma coisa que eu disse?
— Eu não posso ir contra minha honra — disse. — Eu vou ter um
filho. Como eu vou dizer ao meu filho para fazer sempre a coisa certa se eu
mesmo não fiz, por medo?

∞∞∞
As visitas de domingo traziam certo ânimo a esse inferno. Eu me pus
na janela, observando as crianças correndo lá embaixo, enquanto alguma
comida era posta em cestos artesanais pendurados por lençóis e erguidos
pelos presos aos andares superiores.
Tipo um elevador de comida. Alimento doado a quem não tinha
família e só podia assistir o reencontro lá embaixo.
Todo mundo se ajudava aqui. Claro, havia muita violência, mas
também havia certo companheirismo. Muitos até acreditaram que eu era
inocente quando lhes contei minha história.
Subitamente, um cesto aparece na minha janela. Sorri para Éder, que
puxa o lençol animadamente.
— Uma carteira de cigarros — ele disse, muito feliz.
Ele era meu colega de cela. Um dos muitos nesse lugar abarrotado de
gente. Mas, agora, estávamos sozinhos nesse lugar, enquanto víamos as
pessoas lá embaixo, no pátio.
— Ah, que maravilha — ele continuou. — Bolachas recheadas, e pão.
Pelas grades ele recolheu tudo, antes de soltar o cesto novamente, para
receber mais algum presente de gente piedosa.
— Sua família não veio hoje?
— Meu pai quer me dar uma lição — ele me contou. — Porque eu fui
idiota e pus a família toda em perigo.
Ele era filho da violência. O pai de Éder era líder de uma facção do
tráfico, e todos os irmãos e primos dele trabalhavam para seu pai.
— Sua audiência já saiu? — ele perguntou.
— Semana que vem. Eu pedi para o advogado mandar uma carta para
minha namorada. Preciso vê-la e contar o que aconteceu.
— A garota grávida? — ele questionou.
Conhecia a história porque eu recusei a companhia de uma das garotas
que servia a facção num oferecimento gentil que ele me deu num dos dias de
visita íntima. Éder e eu nos dávamos bem, especialmente porque eu não
parecia impressionado ou temeroso por quem ele era.
— Sim, Catarina. Ela é o amor da minha vida — eu narrei.
— O amor da sua vida vai colocar seus pezinhos de princesa nesse
quinto dos infernos? — ele indagou, e eu não sabia a resposta.
— Só quero vê-la uma vez, antes da audiência. Eu não quero que meu
filho venha aqui, depois. Esse lugar... não é um lugar para crianças —
admiti.
De repente, ouvimos passos no corredor. A grande maioria dos presos
estava na parte inferior do prédio, com suas famílias. E na nossa ala não
havia ficado ninguém além dos esquecidos por Deus nesse lugar.
— Ei... — um homem aparece ao fundo, pela porta destrancada,
encarando Éder. — Eu vim entregar um recado ao seu pai.
Éder era um jovem de dezoito anos. Tínhamos a mesma idade e,
acredito, ele tinha a mesma experiência que eu em lidar com valentões. Eu
nunca gostei de conflitos, e Éder era protegido pela família poderosa.
Quando ele se pôs de pé, preocupado, eu soube que as coisas aqui ficariam
ruins rapidamente.
Então o homem avançou. Ele tinha um estilete feito com um cabo de
caneta e uma gilete grotescamente enferrujada. Ele foi reto até Éder, e
começou a tentar acertá-lo na barriga. Fiquei momentaneamente travado,
vendo Éder tentar se proteger e desviar de uma morte lenta e agonizante,
quando reagi por instinto.
Éder era meu único amigo aqui. Eu não sei bem se amizade é uma
palavra que nos define, mas nós costumávamos conversar nesses dias
solitários e encarcerados. Ele me ouvia falar de Catarina e do meu filho, e
sorria diante do amor que eu demonstrava sentir.
E agora ele seria morto na minha frente. Então, saltei em cima do cara,
dando um mata-leão nele. O homem começou a lutar, mas eu fiquei tão
firme, havia uma raiva retida em mim. Estava preso injustamente, nesse
lugar horrível, e aquele homem pareceu representar toda a tristeza que eu
sentia.
Então pressionei meu antebraço no seu pescoço. E apertei. Apertei
muito. Ele desfaleceu e, quando eu soltei, o homem caiu no chão como um
trapo velho.
Nesse momento, guardas invadiram a cela. Eu imaginei que ele
levariam o cara, e no máximo me dariam uma surra por me envolver em
brigas. Talvez a solitária por alguns dias, seria natural. Mas, quando eles me
encararam após verificar a pulsação do homem, eu soube que minha
condição nesse lugar iria piorar e muito.
— Ele está morto.
6

Eu levei três semanas para me recuperar. Voltei a sangrar no terceiro


dia e a hemorragia foi tanta que achei que fosse morrer, mas Carla trouxe um
médico residente de um hospital e ele me medicou e me manteve sob soro
até que eu conseguisse voltar a ter alguma força.
— O senhor sabe o que ela fez comigo? — indaguei, quando
estávamos sozinhos. — Aprova isso?
— Não. Mas, não estou aqui para julgar Carla ou sua mãe... Estou aqui
para salvar você.
Ele devia denunciá-la. Eu fiquei tão magoada por ele sequer chamar a
polícia que quis saber o nome dele. Mas seria apenas mais um nome para eu
odiar. Então apenas aceitei o tratamento até conseguir me colocar de pé.
Nesse dia, minha mãe entregou meu celular, minha bolsa, uma mala com
roupas, e um cartão de débito com uma quantia boa, não a total que eu tinha
direito, mas o suficiente para que eu pudesse me recuperar.
Eu completei dezoito anos naquela cama suja, naquele quarto fétido. E
agora eu tinha um começo, só precisava encontrar Yan. Não sei exatamente
o que ele pensou na minha ausência, mas estava ansiosa para contar-lhe
tudo.
Eu precisava de alguém para compartilhar as minhas lágrimas.
Deixei aquele prédio numa quinta-feira. Fui direto para um hotel
defronte a praça que nós costumávamos nos sentar no Centro Histórico. O
aluguel era barato e eu precisava de uma pausa para pensar. No dia seguinte,
rumei até a pensão onde ele morava. Liguei para Yan no exato momento que
pus minhas mãos no celular, mas ele não atendeu nenhuma chamada, nem
respondeu a nenhuma mensagem.
O silêncio dele me apavorou. Será que pensou que eu havia desistido?
— Yan? — a dona da pensão indagou, assim que me atendeu na porta
e ouviu os motivos de eu estar ali. — Foi embora a semanas, menina.
— Embora?
— Sim, a namorada estava grávida e ele fugiu — ela me deu um olhar
muito sugestivo.
A sensação que eu tive foi de um soco no estômago.
— A senhora tem certeza?
— Sim, ele mesmo me disse.
— Mas, ele... Yan não é assim... — Murmurei, talvez tenha soado
como se eu implorasse que ela mudasse as próprias palavras.
Ela não mudou.
— Garota... todo homem é assim. Homem não presta. Só muda o
endereço, todos são iguais.

∞∞∞
Eu não a impedi de subir ao quarto quando Sofia chegou no hotel.
Abri a porta para ela, e aguardei sentada na cama que ela começasse sua
série de palavras tentando ser compreensiva sobre eu ter ido embora, e sobre
como achava que eu devia voltar.
Como toda cretina narcisista, ela não podia viver sem sua válvula de
escape. Ela precisava de mim em casa para criticar.
— Você sabe... está horrível, com olheiras profundas. Tem dormido,
querida?
Eu quase ri da frase. Querida? Ah, que filha da puta, desgraçada.
— Dormido? Como eu posso dormir depois de você ter matado meu
filho?
Ela deu os ombros, como se não fosse nada demais. Como se ela
apenas tivesse colocado uma blusa minha fora, ou trocado as cortinas do
quarto sem que eu autorizasse.
— E o garoto? Achei que ele estaria com você, aqui. Não iam morar
juntos?
De alguma maneira, Sofia sabia. Vi nos olhos dela a satisfação em me
ver derrotada. Talvez a dona da pensão tivesse razão, e por conhecer os
homens melhor do que eu, Sofia sabia que ele me deixaria sem olhar para
trás, fugiria da responsabilidade.
— Eu tentei te avisar, Catarina. Mas, você é teimosa e não me ouviu.
— Cale a boca... — disse.
— Ele só te usou. Fodeu, te engravidou, e depois fugiu. Você pode me
odiar agora, mas eu te salvei de ficar presa a uma criança sem pai. Eu te
salvei de...
Subitamente, eu fiquei cega. Meu corpo perdeu o controle, e eu
avancei em Sofia, desferindo nela um tapa tão forte que o som soou por todo
o quarto. Estranhamente, pareceu música aos meus ouvidos. Eu adorei a
sensação.
— Sua...
— Eu te disse para sumir da minha vida — minha voz soou com uma
acidez que me surpreendeu.
E me deixou tão... tão aliviada.
Repentinamente, eu percebi que eu podia descontar nos outros minha
raiva e dor. Especialmente em Sofia. Então, alcei que jamais voltaria a ser a
menina doce e delicada. Nunca mais. A vida me quebrou cedo demais, mas
só faria isso uma vez.
Eu nunca mais amaria ninguém. Eu nunca mais sentiria qualquer e
menor sentimento novamente.
7

O sol nasceu entre as grades daquela cela lotada. Um dos homens


roncava ao fundo, e isso me lembrava os dias no orfanato, quando o silêncio
era interrompido por algum ressonar tempestuoso de alguma criança vítima
de abuso.
A minha vida foi um inferno até agora. Seria por mais dez anos, sem
esperança de sair antes. Claro, Abel, o pai de Éder, depois de descobrir que
eu matei um homem para defender seu filho, me arrumou o melhor
advogado que pôde, mas homicídio não é algo que um advogado consiga
livrar tão facilmente o cliente. Como eu o matei por trás, a tese de legítima
defesa não foi aceita e, por mais que a juíza tenha recebido um agrado da
facção, minha pena não ficou menor que dez anos.
— Eu saio daqui mês que vem — Éder me disse, aparecendo ao meu
lado. — Vou para a ilha — ele explicou, num suspiro.
A ilha, pelo que me contou, era um tipo de QG da facção. Não era
muito habitada, mas era um lugar seguro quando um dos líderes precisava
desaparecer por um tempo.
— Mas, a gente conseguiu a transferência de uns caras de confiança.
Eles vão cuidar de você.
Encarei meu amigo. Era estranho que eu sentia essa amizade por uma
pessoa de tão baixa índole, o filho de um chefe do tráfico. Suspiro, dando de
ombros, enquanto percebo que não existe lado bom e lado ruim nesse país.
São todos do mesmo lado, alguns apenas encenando uma bondade que não
existe, enquanto na surdina atuam pelo mesmo fim: dinheiro e poder.
— Meu pai me disse que nossa dívida com você será eterna, Fera —
ele continuou, me dando o apelido que pegou depois que eu matei um
homem com o dobro do meu tamanho.
— Eu agradeço.
— E quando você sair, terá uma casa entre nós. Você e eu somos
irmãos por sangue, Yan — Éder afirmou e eu desviei meu olhar do sol e o
encarei.
Minha mão subiu e apertou seu ombro. Eu agradeci, porque era a
primeira vez na minha vida que recebia essas palavras.
— Dez anos parece tempo demais, Éder — suspirei. — Não sei se vou
sobreviver.
— Fera, era para você ter pegado vinte. Sei que parece horrível, mas é
a metade, e ainda vai sair jovem daqui. Ou talvez a gente consiga uma
liberdade provisória.
Eu não tinha esperança. Volvi meus olhos para o sol, seus raios
dourados me lembravam os cabelos macios de Catarina.
Nunca mais a vi. Nem soube qualquer coisa dela. Será que ela pensava
que eu a abandonei? Eu pedi para a máfia contar a ela o que havia
acontecido. Na minha última ligação com Abel, ele disse que não a haviam
encontrado, pois ela não morava mais com a mãe. Eu sei que esse não é um
lugar para Catarina vir, mas se ela pudesse me mandar uma carta dizendo
como está meu filho... A criança deve ter nascido no mês passado. Eu só
queria saber o nome dele. E que ele soubesse que eu nunca o deixei, que eu
não sou como meu pai que me abandonou, que mesmo preso eu lutaria para
reencontrá-lo, e que eu faria tudo por ele. Eu aguentaria todos esses anos,
nem que fosse apenas para vê-lo uma única vez.
Eu não tinha esperança de que Catarina me esperasse por dez anos.
Não quando ela sequer apareceu no nosso encontro. Mas, eu tinha esperança
de poder ser pai. Porque eu amei o bebê no exato momento que soube que
ele existia.

∞∞∞

Cinco anos depois...

— Tentei entrar em contato com ela — Álvaro, o braço direito de


Abel, apareceu naquele domingo de visitas. — Mas, a mulher é o próprio
demônio.
Eu arqueei as sobrancelhas.
— Cat? Não... ela é tão doce...
— Doce? Ela gritou comigo quando me aproximei. Parece que está
começando um canal na internet. Tem alguns seguidores. Acho que uns mil,
no momento. Ela está chegando na Europa agora, foi estudar moda fora do
país.
Cinco anos se passaram, e eu não sabia o que o tempo havia feito com
minha gata, mas não imaginava que ela mudasse a personalidade, porque
para mim era difícil imaginar Catarina não sendo doce com as pessoas.
— E a criança? É menino ou menina?
— Não soube nada sobre a criança. Talvez ela esconda, agora, por
causa da carreira que está começando.
Havia muito barulho em nossa volta, no pátio da penitenciária. Eu
mordi um pedaço do sanduíche que ele trouxe, um manjar dos deuses
naquele lugar de comida horrível, onde alguns guardas até mijavam nas
panelas para fazerem os presos comerem em recipiente sujo.
— Eu mal posso esperar para sair daqui — disse. — E conhecer meu
filho ou filha.
— Faltam cinco anos agora. Não se meta em confusão. Soube que
matou um dos caras...
— Precisei. Ordem de Abel. O cara era de uma facção rival e estava
armando para pegar os nossos — murmurei.
— Tenha cuidado.
— Não se preocupe. Não sou mais um garoto. Simulei suicídio. E
ninguém questiona. Ninguém se importa com traficante.
— Certo, Fera. Não vou perguntar sobre seus métodos, porque sei que
sabe o que está fazendo. Abel costuma dizer que você é muito bom nisso,
quase tem dom para a coisa.
— E você não?
— Ora, eu sou um comerciante. Eu vendo a mercadoria, mas não
mataria uma barata.
Sorri diante da frase.
— Como está Éder?
— Está negociando no porto uma maneira de colocar a droga nos
cascos dos navios para envio à Europa. Anda ocupado, mas mandou
perguntar se quer que eu arrume celulares melhores para que você possa
acompanhar a tal Catarina pela internet.
Neguei. Eu nunca quis os aparelhos porque vê-la sem poder sequer ter
um contato me mataria. Eu não podia arriscar que Catarina me denunciasse
de alguma maneira por importunação ou coisa assim, e me fizesse aumentar
a pena. Precisava sair daqui, e não aceitaria um dia a mais do imposto nesse
inferno.
— Não quero. Estou bem — declarei.
Ele bateu de leve no meu ombro.
— Se tem algo que você não parece estar é bem, Fera — comentou.
De alguma forma, era real. Preso injustamente, forçado a me tornar
um assassino por sobrevivência... Não havia como eu não ser um monstro.
Mas, quando eu saísse daqui e encontrasse meu filho, eu esperava que a
criança fizesse o antigo Yan ressurgir.
Era por ele ou ela que eu suportava esse inferno.
Eu amava minha criança, e aguentaria tudo pelo momento de conhecê-
la.
Parte 2
8

Eu mal podia acreditar que fiquei dez anos nesse inferno sem
enlouquecer. Agora, enquanto o vento da liberdade balançava minhas
madeixas, eu fechei os olhos apenas para aspirar o perfume da rua, o cheiro
as árvores, o calor do sol que aquecia minha pele.
— Irmão — Éder veio na minha direção e me deu um abraço. Era
incrível como nós nos tornamos tão próximos por conta de um curto espaço
de tempo, dez anos antes.
Eu o salvei naquele dia. Ele me salvou em todos os demais, nunca me
permitindo ficar sozinho ou desamparado aqui. A Castle – como era
chamada a facção que o pai dele, Abel, gerenciava — esteve ao meu lado dia
após dia enquanto os meses e os anos iam passando.
— Eu nem acredito que consegui — disse a ele, enquanto recebia seu
abraço. — Estou livre. Sou um homem livre.
— É sim, irmão — ele afirmou, e sua frase trouxe euforia ao meu
coração. — Agora, venha! — apontou um carro escuro, à distância. — Papai
quer falar com você.
Eu sabia o que me esperava assim que saísse do central. Agora, eu era
a Fera, um dos assassinos de Abel. Não me importava com esse destino,
porque francamente, o peso das mortes começou a se tornar leve assim que o
tempo foi passando, e a quantidade de corpos se empilhando dentro daquela
cadeia suja.
Entramos no carro. Havia um motorista à frente, então Éder sentou-se
ao meu lado. Ele me estendeu um telefone celular, mostrando na tela um
número salvo.
— É o telefone da tal Catarina. Foi difícil conseguir, mas você poderá
falar com ela agora. Saber como está seu filho.
— Tem informações sobre a criança?
— Nada. Pelo jeito ela esconde muito bem o moleque, o que não é
estranho, pois é muito famosa. É uma das maiores influenciadoras digitais
do país. Mas, só a equipe que trabalha com ela tem acesso a Catarina.
Eu peguei o telefone na mão. A verdade é que eu não estava satisfeito
em simplesmente mandar alguma mensagem qualquer para ela. Uma parte
de mim queria vê-la, mesmo sabendo que, obviamente, jamais teríamos nada
novamente.
O tempo passou. O tempo é cruel.
Catarina devia ter a própria vida. Talvez até um marido, escondido do
público. Eu também segui em frente, a Castle sempre mandava meninas para
visitas íntimas, e eu aproveitei o sexo para me ajudar a passar o tempo.
Nunca senti por outra mulher o que um dia eu senti por Catarina, mas
reconhecia que o sentimento era coisa de adolescente deslumbrado,
apaixonado pela menina com quem perdeu a virgindade.
— E sabe alguma coisa sobre os guardas que armaram pra me
prender?
— Um deles foi expulso da PM. Outro, enviado para outra cidade fora
do estado. Estamos no encalço.
Não restava mais nada do antigo Yan em mim. E eu afoguei o que um
dia senti por Catarina na indiferença, porque sabia que não havia volta.
Aquele dia, o dia da nossa fuga, o dia que me incriminaram... Aquele dia
mudou tudo.
A Castle tentou avisá-la onde eu estava durante os anos. Nunca
soubemos se a mensagem realmente chegou até ela. Mas, isso não era
importante porque... mais uma vez... quando tivemos a chance de ficarmos
juntos, ela não apareceu.
E durante os dias que, à passos de tartaruga, fui passando atrás das
grades, não posso negar que alimentei certo ressentimento. Catarina não ter
aparecido me fez ficar esperando-a num lugar onde havia muito tráfico. Por
causa disso, eu fui preso.
Eu perdi dez anos trancado numa cela, cagando num buraco, lutando
para sobreviver todos os dias.
— Então ela é famosa... — suspirei.
— Muito. Lançou recentemente uma marca de perfumes que é líder de
vendas. Ela também é a nova cara da Dior no país.
Balancei a fronte.
— Eu... não vou ligar. Vou atrás dela. Me dê um endereço.
— Não vai conseguir contato. Como eu disse, ela é muito reclusa.
— Eu darei um jeito. Preciso ver o rosto do meu filho. Essa criança
me fez aguentar todos os anos preso. Só quero vê-lo... Diga a Abel que irei a
ilha assim que ver meu filho.
— Catarina não está na cidade. Foi ao Mato Grosso ao casamento de
uma amiga.
Ela tinha amiga? Era estranho pensar nisso, porque a Catarina que eu
conhecia era tão afastada das demais pessoas. Mas, mais uma vez, eu não era
a mesma pessoa, então ela também não devia mais ser.
Sem saída, abri a tela de mensagens do celular. Sob os olhos atentos de
Éder, eu escrevi um nome:
“Cat”.
Eu queria dizer muitas coisas a ela. Mas, eu acabei enviando a
mensagem com essa única palavra de três letras. Eu esperava que ela lesse e
me respondesse. Acho que ninguém mais a chamaria assim, então imaginei
que ela reconheceria o teor.
Olhei para fora. Porto Alegre passava, estranhamente moderna, pela
janela.
Eu não era mais o mesmo cara. Mas, uma parte de mim ainda era a
mesma:
“Eu quero ver o meu filho”.
Como a criança reagiria a um pai que nunca viu? A mãe o teria jogado
contra mim? Teria dito a ele que eu morri? Ou teria sido cruel ao ponto de
dizer que eu não me interessava em procurá-lo?
O celular vibrou. Eu olhei a tela, ansioso. Éder se espichou ao meu
lado, claramente também muito interessado.
O texto a seguir matou o resto de humanidade que havia em mim:
“Não existe filho. O bebê morreu. Foi abortado.”
9

Um dia, muitos anos antes, eu jurei que nunca mais amaria alguém.
Enquanto andava pela festa, num lugar idílico que tinha como cenário a
Chapada dos Guimarães, eu percebi que a pessoa que me mudou e me fez
amar novamente não foi outro homem.
Meu celular vibrou, e eu abri a bolsinha que trazia comigo e o peguei.
Era um malabarismo, uma taça numa das mãos, enquanto a outra lutava para
abrir o botão da bolsa e pegar o aparelho sem derrubar nada.
Ouvi o risinho baixo de Liliana na minha frente. Ergui os olhos e
encarei a noiva perfeita, enquanto me permitia suspirar de puro carinho por
vê-la tão feliz.
Não foi outro homem que me fez amar novamente. Foi essa garota,
minha melhor amiga, que surgiu na minha vida com dezessete anos, grávida,
sozinha, abandonada... Lili era como a antiga Catarina, e isso despertou algo
no meu coração. Eu pude salvá-la, algo que não fui capaz de fazer a mim
mesma.
— Por que está triste, Cat?
Cat...
Gata.
Eu sorri diante do apelido. Era raro alguém me chamar assim. Lorenzo
e Liliana [1]às vezes falavam, sem saber o quanto esse apelido me trazia más
memórias. Eu não falava muito da minha vida passada para eles, Lili sabia o
básico: dez anos antes eu fui abandonada grávida pelo único homem que
amei. O desgraçado sumiu quando soube do bebê, me deixando sozinha nas
mãos de uma mãe que se aproveitou de mim.
Eu não quero perder um segundo sequer com lembranças, mas as
coisas veem de supetão em momentos de festa, como esse. Ver Maria Elena
– a filha de Lili – estendendo os bracinhos para o pai, Lorenzo, me fazia
pensar no meu próprio bebê, morto num lugar sujo.
— Minha mãe está me procurando — contei a ela, que arqueou as
sobrancelhas. — Ela entrou em contato com a agência e disse que era um
caso de vida ou morte. E a agência deu meu número para ela. Agora vive me
ligando.
— Ela não pode fazer nada contra você.
— Me desculpe por isso... Eu não vou deixar isso me abater. Vou
melhorar e aproveitar muito sua festa de casamento. Prometo. Será que
Lorenzo tem algum primo bonitão para dançar comigo?
— Henrique estava de olho em você — Lili sorriu, e eu fiz uma cara
feia.
Não estava interessada nele, nem em homem nenhum. Yan me
estragou para todos, eu era incapaz de confiar novamente.
— Eu prefiro dançar com você — disse a ela. — Isso me deixaria com
fama de sapatão?
A dúvida era legítima. Qualquer coisa que vazasse sobre minha vida –
boato ou não – sempre prejudicava minha carreira. Às vezes, me perguntava
como meu público reagiria ao aborto que vivenciei anos antes. Acho que a
fantasia da princesa loira e perfeita que eu desempenhava nas redes sociais
cairia por terra.
— Agora é moda — Lili riu.
Era verdade. Tinha gente no meio fingindo ter desejo por pessoas do
mesmo sexo só pra ganhar fama. O tal Pink Money.
— Então, me dê a honra? — pedi e ela assentiu, rindo.
Era tão bom estar com ela. Minha melhor amiga era a pessoa que eu
mais confiava nesse mundo. Segurei no braço de Liliana e começamos a
andar em direção à pista de dança, quando meus olhos cravaram no celular,
diante do alerta de uma nova mensagem.
O número não era da minha mãe. Era desconhecido, mas eu soube
exatamente quem era quando vi as três letras brilhando na tela.
“Cat...”
Só uma pessoa me chamava assim, além das duas que estavam ali,
naquela festa.
“Eu quero ver o meu filho”.
Minhas pernas travaram, enquanto meu coração pareceu prestes a
explodir.
Yan...
Yan Leziér estava de volta.
— Cat? — Lili indaga quando me percebe travar entre o jardim e a
pista de dança.
Eu não quero estragar o casamento de minha melhor amiga com minha
melancolia. Lili e Lorenzo sofreram tanto para chegarem a esse momento. E
não era justo eu vir do Sul e minar esse momento com meus problemas.
— Eu só... eu só preciso respirar — digo a ela, me soltando das suas
mãos, dando meia volta e me afastando.
Enquanto corro em direção à enorme mansão adiante, buscando
qualquer lugar longe de todos, eu seguro o celular, lendo novamente a
mensagem.
“Eu quero ver o meu filho”.
Como ele se atrevia?
Entro pela porta da frente, consigo me aproximar da sala de estar, e
caio sobre uma poltrona. Eu devia bloquear o número, ou ignorar a
mensagem, fingir que nunca a vi, mas não consigo me impedir de começar a
digitar.
“Não existe filho. O bebê morreu. Foi abortado.”
Eu quero dizer mais coisas, mas não consigo.
A culpa é sua.
Desgraçado, você me deixou sozinha e o bebê morreu.
Frases e frases se montam na minha cabeça, mas nenhuma delas é
posta no celular. Eu jogo o aparelho longe, um choro compulsivo se forma
na minha garganta, e explode na minha alma. Eu caio para o lado na
poltrona, lágrimas molhando o tecido do móvel, enquanto mãos deslizam
pelas minhas costas, num carinho carregado de conforto.
— Catarina — a voz masculina me faz encarar Lorenzo. — O que
aconteceu?
Repentinamente, me dou conta de que Lili também está aqui. Ela foi
até o celular e pegou no chão. Pareceu chocada em ler o texto.
— Por favor, saiam — peço. — Não quero estragar o casamento de
vocês.
— Cat... Não fale bobagens. Nem haveria casamento sem você... —
Lorenzo disse. — Você é a maior responsável por Liliana e eu nos
reencontrarmos e por Maria Elena estar bem. Por favor, nos conte o que está
acontecendo.
Lili se aproxima e se ajoelha na minha frente. Lorenzo está ao lado
dela, e ambos me encaram apreensivos. Mas, eu não consigo dizer nada. Só
preciso me jogar nos braços deles, e ser amparada pela sua amizade.
A dor é tanta que não pode ser expressa.
10

O homem estava sentado diante de uma mesa de bar. Havia pilhas de


garrafas amontoadas ao seu redor. Sua cabeça estava baixa, e eu não tinha
certeza se valia a pena meter uma bala em sua cabeça ou não.
Olhei ao redor e vi uma câmera de vigilância. Eu não me importava de
aparecer no noticiário das seis, matando esse ex-pm, mas ainda não havia
conseguido colocar minhas mãos em quem mais importava: Catarina, então
não estava a fim de ter que me esconder na Ilha de Castle por causa de
merda bêbado como esse.
Suspirei.
Andei até a mesa e me sentei a sua frente. O movimento o fez erguer a
face e me encarar. Claramente, não me reconhecia, apesar de seu rosto surgir
em meus pesadelos há dez anos.
— Sargento Braga?
Ele ergueu os olhos e me encarou. Eram profundos e vermelhos, e não
pareceram temerosos.
— Está mal-informado — ele rebateu. — Não sou sargento há anos.
— O era, quando me prendeu — eu disse.
Ele sorriu, meio sem jeito, mas, de forma alguma, com medo.
— Veio me matar? — indagou. — É um favor que vai me fazer.
Eu tinha uma pistola Magnum na cintura, embaixo do casaco. O vento
gelado daquele inverno de junho me trouxe lembranças. A cidade
permanecia com o mesmo cheiro úmido de mofo e esgoto.
— Não. Só vim descobrir por que me prendeu.
— Eu posso dizer, se você me pagar mais uma — ele sorriu. — Meu
dinheiro acabou — contou, e eu não tinha certeza de que ele poderia me ser
útil mais bêbado, mas ainda assim fiz um sinal para o garçom trazer mais
uma garrafa.
Sentei-me diante dele. Estava curioso, muito mais do que com raiva.
— Eu nem sei quem é você — ele riu sem jeito, quando percebeu que
eu realmente lhe daria mais bebida. — Prendi muita gente nos meus anos de
serviço.
— Acredito que não tenha prendido muita gente inocente — apontei.
— Porque era meu caso. Você claramente me incriminou.
Então ele soltou uma gargalhada que era mais irônica do que cômica.
— Ah, rapaz... eu prendi muita gente inocente. Não é tão difícil, você
sabe...
— Por quê?
— O pessoal das facções, às vezes, só precisa se livrar de alguém sem
matar. Então eles pagavam bem para a gente afastar determinada pessoa por
um tempo. Muitas vezes, apenas para dar um susto. E isso me rendeu muito
dinheiro, até ser pego pela corregedoria.
Eu entendia isso. Ouvi muitos relatos assim na cadeia.
— Por que alguém de alguma facção iria querer se livrar de mim? Eu
não fazia parte de nada. Na época, eu era servente de pedreiro de dia e
estudava à noite.
Ele deu os ombros.
— Refresque minha memória. Onde prendi você?
— Na passarela perto da rodoviária. Eu estava com uma mochila cheia
de roupas, e você pôs drogas entre minhas coisas.
Ele arregalou os olhos, só então pareceu me reconhecer.
— Deus... isso faz tempo... — murmurou. — Você era um garoto, né?
— Tinha dezoito.
— Ah, não deve ter ficado preso muito tempo — deu os ombros. —
Era só um pouquinho de maconha a mais que uma quantidade de usuário. E
era primário. Por que está aqui?
— Eu fiquei preso dez anos. Na Central, eu tive problemas, e matei
um homem. Depois, me envolvi com a Castle — respirei fundo, tentando
não perder a cabeça. — Você mudou minha vida. Eu era uma pessoa quando
fui para lá, e agora eu sou outra completamente oposta.
A bebida chegou. Houve um silêncio pesado enquanto ele se servia de
um copo. O garçom trouxe um copo a mais para mim, mas eu nem fiz
menção de beber.
Só queria a verdade. Precisava da verdade.
— Não sou eu que deve odiar. Eu só fiz o que qualquer outro no meu
lugar faria. Pelo que me lembro, você se envolveu com uma garota de
família rica, e a engravidou. A mãe dela pagou uma pequena fortuna para
nós nos livrarmos de você. Ela só precisava de um tempo para a filha poder
tirar o bebê. Eu não lembro dos detalhes, mas acho que a garota armou para
você. Foi ela que marcou o encontro, né?
Por que Catarina faria isso? Por que ela me condenaria dessa forma?
Ela me disse que a mãe a odiava e pediu minha ajuda para fugir. Ela mentiu?
Talvez ela soubesse que eu nunca permitiria que ela abortasse. Que eu
seria uma pedra no seu caminho, exigindo ter o bebê. E isso a fez querer se
livrar de mim. Ricos não são tão morais, eles usam as pessoas e as descartam
facilmente, da forma mais simples que seu dinheiro pode comprar. Eu sei
disso, porque conheci muitos ricos pela Castle.
Puxei a carteira e joguei uma nota de cem sobre a mesa. Braga sorriu
quando viu o valor. Ele era só um bêbado fracassado, ansioso por mais
álcool. Ele não valia uma bala da minha pistola.
Mas, havia alguém que valeria cada uma delas.
Catarina me usou como distração em sua adolescência. Quando houve
uma gravidez, a história perdeu a graça, e ela se livrou de mim. Eu até podia
esquecer isso, não fosse o fato de que ela matou meu filho, num aborto.
Eu vou sequestrá-la. Escondê-la. Torturá-la. E depois, vou matá-la.
Porque é só isso que ela merece.
11

Exalo um suspiro diante das latas, naquela prateleira de


supermercado.
A despeito da insistência de Lorenzo e Lili para que eu ficasse em Mato
Grosso, sabia que precisava voltar para Porto Alegre e seguir minha vida. Eu
tinha muito trabalho a fazer, e os dois estavam em lua de mel. Seria muita
falta de semancol ficar na casa deles, nesse momento. Além disso, eu não
tinha por que fugir. Ok, Yan mandou mensagem sobre o bebê e isso podia
me dar ataques de pânico, mas depois da minha resposta atravessada – que
me fez ter rompantes de choro – ele sumiu de novo. Melhor assim.
Puxo uma das latas e observo os ingredientes. Sinceramente, fazia
tantos anos que eu não fazia compras que estava perdida nesse lugar. No
fundo, eu sempre fui uma dondoca, já que quando morava com minha mãe,
eram as empregadas da casa que enchiam a despensa e, mais tarde, foram
minhas assistentes que iam ao supermercado.
Mas, desde que Lili foi embora, meses antes, eu não me adaptei a mais
ninguém. E precisava cumprir aquelas pequenas tarefas do dia a dia. Sair de
casa era uma tortura para mim, ver gente me incomodava, mas o que mais eu
podia fazer?
Por trabalhar com minha imagem, eu precisava estar impecável. Isso
incluía meu peso, mantido através de uma alimentação rígida e controlada.
Eu mesma cozinhava, aprendi quando estive um período na Itália,
estudando, só não estava conseguindo cozinhar agora porque estava
começando a faltar temperos em casa.
Soltei a lata no meu carrinho de compras. Meus pés doíam muito, já
que estava num salto de dez centímetros. Eu devia ter colocado um tênis,
mas... mais uma vez: imagem impecável. Se alguém me visse e tirasse uma
foto, precisava manter minha imagem de “princesinha” das redes sociais. Eu
era quase uma Barbie, cabelos loiros, alta, magra... usava roupas claras,
saltos altos. Por algum motivo isso fazia um estrondoso sucesso, e me dava
muito dinheiro. De alguma forma, se tornou meu lugar seguro.
A Catarina do canal no Youtube não sofria de pânico nem tinha um
passado tenebroso.
Todavia, minha personalidade contrastava demais com a fantasia que
criei para as redes sociais. Eu não era doce e gentil, e precisava me conter
quando estava em público, para não explicitar minha cara costumeiramente
azeda.
Meu carinho estava cheio. O supermercado estava quase vazio, talvez
pelo horário. Nove horas da noite não é um horário que as pessoas costumam
fazer compras. Então suspirei de alívio quando vi um caixa vazio. Comecei a
ir naquela direção, mas parei antes quando avistei um mostruário com
chocolates, acreditando que não faria mal nenhum em comer um.
Afinal de contas, eu estava em dieta restrita a tanto tempo. Podia me
permitir um pequeno tablete.
Passei minha mão por alguns, talvez tentando captar qual meu corpo
desejava mais, quando percebi uma barra de chocolate branco e preto, ao
leite, que parecia apetitosa demais. Peguei a barra no exato instante que ouço
uma voz feminina antipática atrás de mim.
— Pode não pegar o chocolate?
Olho para trás e vejo uma mulher baixa, de óculos de aro preto, e
cabelos num rabo de cavalo desleixado. Ao lado dela, há um garotinho que
me encara com olhos desafiadores.
— Desculpe?
— Você está pegando chocolate na frente do meu filho e ele vai querer
também. Então pode não pegar?
Que porr*a é essa?
— Eu não entendi — murmurei.
— O que não entendeu? Não pode ter empatia por uma mãe que não
quer dar chocolate às nove horas da noite para seu bebê?
Bebê? O garoto tinha uns nove anos, no mínimo.
Minha língua queimou de vontade de lhe dar uma resposta malcriada,
mas lembrei que isso podia ganhar uma proporção maior do que eu desejava.
Então simplesmente peguei uma caixa inteira, despejei-a no carrinho, e saí
em direção ao caixa.
A mulher começou a me xingar alto. Incrível como ela não queria dar
chocolate ao filho, mas estava lhe dando uma lição de palavrões ao vivo,
sem nenhum receio.
Nesse ponto, os poucos olhares do supermercado já começavam a
girar para nós, e eu me esforcei para segurar a língua. Meu público era
adolescente, ou jovem adulto. Ninguém ali parecia me reconhecer, mas,
ainda assim, eu temi que alguém me apontasse um celular, e eu perdesse
meu novo contrato exclusivo com uma marca de luxo. Só precisava conter
minha língua e meu temperamento por alguns meses, e colocaria as mãos em
uma fortuna.
— Boa noite, senhora — a caixa me cumprimentou, parecendo ignorar
a mãe me xingando próximo. — A senhora faz parte do nosso clube de
benefícios?
— Não.
— Gostaria de fazer nosso cadastro?
— Não, obrigada.
— É rápido. Só preciso do seu CPF e...
— Por favor, pode passar as compras?
— A senhora vai perder os descontos e...
Ai, meu Deus do céu.
O que eu não daria por um cigarro agora?
Eu não fumo porque faz mal para a pele, mas eu até tragava algumas
vezes, quando morei na Europa e ninguém me conhecia.
— Então, a senhora quer fazer parte do nosso clube de benefícios e
contar com descontos exclusivos?
Encarei a caixa, não acreditando que ela continuava a falar mesmo eu
tendo negado. O mais louco é que a mãe prosseguia matracando nas minhas
costas sobre como as mulheres de hoje são incapazes de serem gentis com as
mamães solo que não conseguem comprar chocolate para seus rebentos.
— Passe... as minhas... compras — eu mandei, as palavras batendo
nos meus dentes enquanto saiam, fazendo com que a caixa arregalasse os
olhos. Então giro em direção a mãe e falo, bem alto. — Isso é problema seu,
não meu. Então cale a sua boca antes que eu mostre ao seu bebê como fazer
uma vaca parar de berrar.
Houve um silêncio cruel no lugar. A caixa pareceu apressada – talvez
me temesse, não sei — e logo eu pude fazer o pagamento.
Eu saí do supermercado, indo em direção ao estacionamento vazio.
Bom, não totalmente vazio, havia uma van estacionada perto do meu carro, e
uns outros dois carros próximos. Eu aciono o botão do alarme, destrancando
o porta-malas que abre e se eleva. Assim que possível, já começo a colocar
as sacolas no lugar.
Merda!
Eu odeio sair de casa. Eu odeio as pessoas.
Por mim, nunca mais veria outro ser humano na minha vida.
Não era totalmente justo, porque havia aquelas meia dúzia de gente
que eu gostava, como Lili, Lorenzo, Elsa – a tia dele – mas... Sinceramente...
Onde estava o apocalipse zumbi quando se precisava dele?
Ouço um som de porta sendo aberta. Provavelmente é a van, que eu
acredito ser do supermercado. Eu ignoro o barulho porque só quero colocar
minhas compras no porta-malas e ir embora daqui o mais rápido que puder.
Voltar para minha vida escondida, onde não preciso suportar ninguém além
de mim.
Subitamente, porém, sinto uma presença atrás de mim. Eu me viro
rapidamente, antes que um saco seja colocado na minha cabeça. Eu quero
gritar, e tento me contorcer, mas sinto um beliscão na lateral do meu pescoço
e então eu afundo na escuridão.
12

Meus olhos estavam pesados. Eu gemi baixo, enquanto tentava me


mexer. Meu corpo estava amortecido, talvez fosse o fato de que eu estava
deitada em um chão horripilantemente duro e áspero, concreto, acredito.
Tudo dói, especialmente minha cabeça. Tento me mover, mas meus pulsos
estão atados para trás, e eu não tenho forças para tentar ganhar impulso e
ficar, ao menos, de joelhos.
Tento abrir os olhos. Mais uma vez, e outra.
Eu fui sequestrada? Não era uma surpresa, afinal, qualquer pessoa
com dinheiro nessa merda de país está à mercê de tal coisa. Eu só precisava
que eles me dissessem quando queriam e isso terminaria.
Era isso. Mantenha a calma, Catarina...
— Ah, Deus... — eu murmuro, minha cabeça lateja tão forte que eu
sinto lágrimas nos olhos.
E nem sou acostumada a chorar. Com os anos, aprendi que lágrimas
eram simplesmente irrelevantes. Chorei na semana passada, mais por conta
do álcool misturado a lembranças dolorosas, do que a sentimentos. Liliana
até pareceu surpresa em me ver chorar.
— Que bom que está acordada, Cat... Quase temi que o sedativo te
tivesse feito bater as botas. Não pode morrer. Não ainda.
A voz era profunda, tão dura que eu me assustei. Uma parte de mim a
reconhecia, mas o tom de Yan havia mudado. A adolescência ficou para trás,
assim como os agudos de sua voz. Agora ele era rouco, grave... quase seco.
Ainda assim, eu soube que era ele por conta do apelido.
Meu corpo inteiro tremeu quando eu o ouvi.
Lentamente, meus olhos se abriram, revelando a imagem de um
homem alto e musculoso diante de mim. Bem diferente do menino adorável
que, às vezes, surgia na minha mente.
— Yan? — indaguei, ainda precisando de uma confirmação.
Ele passou a mão pelo cabelo escuro. Seus olhos pretos penetraram em
mim, enviando um uma mensagem poderosa.
— Oi, Cat — ele disse.
Eu tentei me situar. Onde estava? Parecia um calabouço, um porão
escuro e úmido. Ao fundo, eu podia ouvir um som bonito, quase como o mar
batendo em rochas, mas não tinha certeza. Era o tipo de ruído branco que eu
jogava no celular quando precisava dormir e nem o zolpidem fazia efeito.
— Onde eu estou?
— Isso importa, Cat? O que interessa que é nunca mais vai sair daqui.
Eu tentei entender o que ele queria dizer. Meu corpo inclinou para
frente, tentando ganhar impulso para ficar de joelhos. Eu estava perdendo o
fôlego com a barriga pressionada no chão.
— Yan — eu chamei, tentando conseguir qualquer ajuda dele.
Nem sei por quê. Esse cara era o maior filho da puta que já cruzou
meu caminho.
Ainda assim, ele se aproximou, e segurou minhas mãos atadas. Então,
me puxou para cima, girando-me e me permitindo ficar sentada.
Só então eu pude olhá-lo de verdade. E o que eu vi me deixou em
pânico. Seus olhos pareciam mortos, como se não houvesse uma alma dentro
do seu corpo. Sua mandíbula se apertou enquanto ele olhava para mim,
como se estivesse vendo a mesma coisa.
Um pouco é verdade. Eu morri com meu bebê, anos atrás.
Tentei respirar pausadamente, buscando uma calma que eu estava
longe de sentir. Yan desapareceu por dez anos. Quando me abandonou, foi
grávida. Então apareceu exigindo o filho, e quando disse que a criança foi
abortada, ele não entrou mais em contato.
Até então.
Ele me sequestrou? Por quê?
Lágrimas se formam nos meus olhos, porque olhar para ele, mesmo
Yan estando tão diferente, ainda era difícil. Eu tinha tanta mágoa desse cara.
Eu o odiava mais que tudo nesse mundo.
— Preciso de água — disse a ele, quando minha garganta secou.
Não sei se era pelas lágrimas ou por qualquer outra coisa.
Yan me observou alguns segundos, então começou a andar pelo porão.
Tudo até então estava envolto em uma névoa, e eu não conseguia absorver as
imagens, mas conforme ele ia andando, pude perceber uma cama de ferro e
uma pia perto de um vaso sanitário.
Percebi que estava em uma cela.
Ele pegou um copo. O encheu. Volveu na minha direção, e eu estendi
as mãos para pegar o objeto, quando senti que ele atirou a água na minha
cara. Se eu tivesse qualquer força, nesse momento voaria no seu pescoço,
mas a verdade é que eu estava tão amortecida que mal conseguia entender o
que estava acontecendo.
Passei a língua pela minha boca molhada, lambendo a água.
— Você é tão tentadora, Cat...
Não fazia a menor ideia do que ele queria dizer. O encarei novamente.,
tentando me concentrar o suficiente para entender as palavras.
— Yan... Por que estou... aqui? — balbuciei.
— Você não sabe? Está presa, Cat, porque cometeu um crime... Você
matou meu filho.
Eu quase ri.
— Um filho que você não procurou por dez anos? Você é um merda
— afirmei, e era exatamente o que eu pensava.
Yan se inclinou para mim.
— Cat... você vai implorar pela morte — ele jurou, fazendo com que
eu me arrepiasse.
Estranhamente uma gargalhada explode em mim, tão inconveniente
quanto surpreendente. Eu mal me reconhecia, enquanto ria
desesperadamente, sem conseguir me conter.
Eu vou implorar pela morte? Esse merda acha mesmo que pode me
assustar? Eu sou tão oca e vazia que não há nada para ele destruir. Estou
vivendo no automático há tanto tempo que nada me deixa em pânico.
— O que você vai fazer comigo? Me bater? Me estuprar? Ah, me
poupe, Yan. Aliás, que merda você se tornou? Está diferente demais. O que
andou fazendo nesses dez anos?
Ele me encarou como se não acreditasse que eu não estivesse
chorando e implorando por perdão.
— Eu estou numa facção — ele contou, não pareceu orgulhoso,
apenas esclarecedor.
— Você é um traficante? — cuspi as palavras.
Que nojo.
— Um faxineiro. Apenas limpo a sujeira.
Arqueei minhas sobrancelhas, tentando compreender o que ele queria
dizer. Pegando meu olhar, ele sorriu lentamente.
— Eu podia te matar facilmente, Cat. Um tiro à queima roupa no
estacionamento do supermercado, ou uma invasão ao seu prédio, tão
porcamente protegido por um porteiro de meia idade e sistemas de segurança
de segunda mão. Mas, o que você fez comigo, por todos esses anos, merece
um pouco mais de requinte. Então, sinta-se orgulhosa: não é com todos que
eu planejo uma morte memorável. Normalmente, eu me livro de corpos da
forma mais prática possível.
Minha boca se abriu e fechou. De repente, Yan buscou algo num
armário no fundo do porão. Eu não podia ver direito o que era, mas imaginei
que fosse uma arma. Se ele me matasse agora, seria um favor que me faria.
Todavia, ele agarrou meu pescoço. Seu toque me causou um arrepio
indesejado, e eu cravei meu olhar nele, tentando entender por que meu
coração batia tão forte e apressado.
— Yan — implorei, quando percebi uma coleira de metal, presa tão
forte no meu pescoço que quase não me deixava respirar. — Yan... — repeti,
quando vi uma corrente presa à coleira.
Como uma cadela, ele estava me prendendo. Me acorrentando. Ele
soltou minhas mãos da corda, mas estava me mantendo presa a algo pior.
Pela primeira vez, eu fiquei com medo. Não pela situação, mas porque
o oxigênio começou a me faltar. Uma crise de pânico como eu não sentia a
anos me tomou, e eu gritei.
— Yan! — gritei, dessa vez houve lágrimas de medo, e eu soube que
iria morrer. Mas, não rapidamente, não sem antes ser torturada por ele.
O olhar de Yan me encontrou novamente. Nós nos encaramos, talvez
uma fração do que éramos. Ele foi meu primeiro e único homem, e agora ele
estava me torturando. Como ele se atrevia? Foi ele que me abandonou
grávida. Era eu que o odiava.
Então ele soltou a coleira, destravando um pedaço da corrente,
fazendo com que eu conseguisse recuperar o ar. Nós continuamos a nos
encarar, eu quase o agradeci por esse pequeno ato, mas recuperei a razão
antes de abrir a boca.
— Você ainda é tão bonita, Catarina — ele disse. — Quando éramos
crianças, eu fiquei encantado porque era tão perfeita, e estava me dando
bola. Eu era um moleque sem amor, e acreditei que você era a mulher da
minha vida.
Um brilho diabólico surgiu em seus olhos antes de ele prosseguir:
— Sabe... talvez a gente devesse brincar junto, pelos velhos tempos,
antes de eu acabar com você.
— Você vai me estuprar? Você caiu tão baixo assim?
— Estou ao seu nível, gatinha...
Yan parecia psicótico. Como se fosse apenas um fantasma do antigo
garoto que namorei. Agora ele era cruel, desumano, e parecia estar se
divertindo com o medo que estava me despertando.
— Por que você não me mata logo? — indaguei. — Termine com isso.
— Meu filho morreu rápido? — ele questionou. — Abortos nunca são
rápidos, não é? Como você fez? Arrancaram ele aos pedaços do seu útero,
ou você tomou remédios e o desmembrou depois?
As lembranças me tomaram de assalto. Eu nunca falava sobre o
aborto, mesmo com Lili. Ela sabia que fui submetida, mas sem detalhes,
porque aquilo havia sido a pior experiência que alguém podia passar.
Vestígios de sangue surgiram na minha mente. Minhas pernas
esquentaram, como se o sangue volvesse a cair. Eu não consegui conter as
lágrimas, e caí para o lado, enquanto convulsionava num choro desesperado.
Com um aceno de cabeça, Yan se levantou e saiu sem dizer mais nada.
Parecia que ele estava, até então, tentando descobrir meu ponto fraco. Agora,
ele sabia qual era.
13

Não tinha tanta graça com ela amortecida pelo sedativo. Seu tom de
voz era pastoso, como se estivesse com dificuldade para falar, e Catarina
nem tentou lutar, mesmo que uma parte dela entrasse em pânico quando
percebeu a corrente.
Era difícil entendê-la. Algum traço de sua alma vazia de piedade se
mostrou para mim, seu olhar apagado como se não houvesse brilho nem
esperança. Mas, por alguns segundos, algo queimou ali. E isso me fez recuar.
Eu deixei o porão, subindo pelas escadas que levavam a parte superior
do castelo. Lá fora, pelos vidros bem limpos, era possível ver a praia ao
longe, dois ou três homens caminhando por ali, fazendo a guarda. Ao fundo,
o mar parecia calmo e constante, seu som era tão acolhedor que eu mal
conseguia me imaginar longe daqui.
Mas, a vida nesse castelo é temporária. Eu terei que voltar à ativa,
cumprindo as ordens de Abel. Matar era a única coisa que eu sabia fazer
com maestria. Não um dom, porque não nasci com isso, mas uma função que
me coube bem nos momentos de dificuldade.
Cruzei um dos corredores. Meu pensamento centrado agora em
Catarina. Eu podia matá-la facilmente a hora que eu quisesse, mas algo me
impediu até então. Provavelmente, lutava por ouvir dela qualquer desculpa
que justificasse suas ações. Uma parte de mim, a parte idiota de um jovem
sonhador, ainda queria perdoá-la.
— Ei, Fera — ouço uma voz feminina às minhas costas e me volto
para ver Mirella vindo em minha direção.
Ela está sorrindo, seu corpo curvilíneo se molda com maestria num
vestido curto que mostra muito do seu corpo. Talvez um pouco mais do que
um homem quer ver para se sentir atiçado.
— Oi — respondo.
Ela é uma marmita. Daquelas que o grupo consegue nos bailes funks.
Antigamente, as marmitas eram compradas, você pagava caro por prostitutas
que atendessem aos membros da Castle. Mas, a revolução sexual agora nos
trouxe esse benefício. Para que pagar, se meninas como Mirella se ofereciam
de graça, desejosas em ter um bandido para cuidar delas?
— Éder me disse que você trouxe uma garota para o porão — sua voz
soou enciumada.
Revirando os olhos, balancei a cabeça.
— Não é o que parece — disse.
— Eu adoraria ser trancada por você num porão — ela disse,
aproximando seu corpo de ampulheta do meu. O cheiro dela me lembrava
algo doce, como bala de morango. Eu podia fodê-la agora, talvez aliviasse
um pouco meu estresse com a chegada de Catarina. — O que acha?
Sorri. A maioria dos homens ali viam Mirella como apenas mais uma
marmita. Mas, eu sabia que ela tinha mais que sexo a oferecer. Era
inteligente e parecia entender nuances no ar. Uma parte de mim sabia que
Mirella estava tentando descobrir por que um assassino como eu havia
sequestrado uma influencer da internet.
Tirando Éder, Abel e Álvaro, ninguém mais conhecia meu passado.
Mirella queria sabê-lo para criar um vínculo comigo. E não havia como
saber se isso seria algo bom.
— Você sabe... — murmurei. — Ela está trancada como uma cadela,
com coleira e tudo — meu olhar varreu seus lábios.
Mirella sorriu.
— Quer delícia — murmurou. — Talvez você queira me levar lá para
tratar nós duas como cachorras.
Ri baixinho, porque era impossível não ser dominado pela ideia de ter
ambas as mulheres de quatro para mim. Não que esse tipo de pensamento
fosse comum à minha pessoa. Francamente, nunca pensei em Catarina
assim. Nas minhas noites solitárias na cadeia, imaginava que um dia pudesse
voltar a fazer amor com ela, cuidá-la e venerá-la como sempre o fiz quando
transávamos. Mas, depois que sai e descobri a cretina que ela era, não me
importava mais.
— Talvez um dia — disse. — Na frente dela — apontei com a face em
direção ao porão. — Acho que ela nunca assistiu algo ao vivo. Vamos
mostrar como se faz?
Ela se aproximou, colando seu corpo ao meu novamente. Seus dedos
resvalavam pelo meu pescoço, e ela abriu os lábios, ansiosa para me receber.
Eu podia sentir sua cavidade batendo de leve meu pau, parecendo provocar
algo que eu, como homem, não podia negar.
Mas, negaria.
Hoje, eu não estava com cabeça.
— Ei, Mirella — dei um passo para trás. — Hoje não. Estou ocupado
— disse. — Você sabe se Éder chegou ao Castelo?
— Não. Mas, eu vi Abel — ela me respondeu. — Ele trouxe novas
garotas para servi-lo. Estou começando a achar que ele está se cansando das
antigas.
Havia um pouco de ciúmes em seu tom, e eu sorri.
— Ninguém pode se cansar de você, querida. É linda, doce e delicada.
E faz sexo de uma forma que deixa qualquer homem aqui duro como uma
pedra. Agora, me dê licença. Vou até Abel.
Voltei a caminhar. Cruzei por vários corredores e por salas bem-feitas,
planejadas com maestria. Eu não fazia ideia de como Abel conseguiu
construir esse lugar, tão longe de tudo, numa ilha perdida no oceano. Enfim,
o dinheiro é algo que rompe barreiras.
— Meu filho — ele disse, quando me viu. Aproximou-se e meu deu
um abraço tão carinhoso que eu realmente, de alguma maneira, senti como
se ele fosse meu pai.
Eu aceitava esse sentimento com todo meu coração. Afinal, eu não
tive um pai. Quando eu pensava no meu filho com Catarina, lá no presídio,
sempre havia o desespero em pensar que a criança pudesse achar que foi
abandonada. Porque eu sabia a dor que era não ter um pai.
Eu chorei por uma criança que nem existia. Eu era patético.
— Soube que trouxe a loira bonita da internet para cá — ele
comentou, quando nós nos sentamos à mesa.
— Sim. Ela está no porão.
— Achei que fosse matá-la imediatamente — ele apontou. — Uma
mulher que mata um bebê não merece piedade. No nosso tribunal, a pena é
de morte.
— Eu sei — concordei. — Eu farei isso. Só preciso de um tempo.
Havia frutos do mar sobre uma travessa. Eu não comia aquela “comida
de rico”, então apenas observei o alimento sem interesse.
— Ainda gosta dela?
— Não. Não sinto nada.
— Só ódio pelo que percebo.
— Por causa dela, fiquei dez anos preso — lembrei-o. Não era algo
que se perdoava fácil. — Ainda preciso mastigar a informação do que ela
fez. Quando Catarina não respondeu nenhuma mensagem de advogado, eu
simplesmente pensei que ela seguiu em frente. Nunca me passou pela mente
que ela fosse a responsável pela minha desgraça. Ela podia ter terminado
comigo, mas não bastava... precisava me arrasar antes.
— O ódio, muitas vezes, anda de mãos dadas com o amor.
Eu o encarei com ironia. Não acreditava nisso. Não a amava, do
mesmo jeito que ela também não sentia nada. Mesmo o breve fogo que vi
entre nós era brasa adormecida. E não havia combustível que nos acendesse
novamente. Ela acabou comigo, e agora eu acabaria com ela.
Alguém chamou Abel de um lado. Ele se levantou, e ouviu o recado.
Então me disse que precisava ir resolver alguns assuntos. Eu voltei a encarar
a travessa enquanto ele saía, me dando conta de que Catarina não comia
nada desde a noite anterior, quando foi presa.
Eu podia deixá-la morrer de fome, mas eu também queria que tivesse
tempo de planejar minha vingança. Mais que isso, eu precisava dela
acordada, não apática, sabendo que estava compreendendo tudo que ocorria.
Fui até a cozinha. Peguei outra travessa, enquanto cruzava por uma
das empregadas.
— Onde tem pão? — indaguei.
A mulher correu pegar alguns pães franceses e brioches. Eu ajeitei
tudo sobre um prato, e peguei uma jarra com suco. Havia água na cela, então
não sei por que peguei o suco. Me senti um pouco idiota fazendo isso.
Voltei pelo mesmo corredor. Agora ele estava vazio, e pude descer as
escadas do porão sem ser importunado. Entrei na cela, e caminhei até a
pequena mesa de ferro ao lado da pia.
— Eu trouxe pão — disse a ela.
Então a vi. Enrolada, os joelhos até o peito, e a cabeça baixa. Ela
parecia tão pequena e sem esperança, presa pela coleira, os cabelos não
havia secado desde que joguei a água nela, e pareciam grudado em sua testa.
— Catarina?
Ela não respondeu.
Nada. Nenhum retorno. Claro, havia o efeito da droga, mas ela já
devia estar acordado da apatia. Seu estado desesperançoso me deu raiva.
— Fale comigo — ordenei. — Me responda quando eu falar com
você.
Nada.
— Você está se entregando tão fácil, Catarina... Eu esperava mais de
você. Esperava que lutasse — disse, a tensão se aproximando tão rápido.
Eu podia sentir como a situação parecia pesada, como se houvesse
toneladas sobre nós.
— Me mate logo — Sua voz falhou quando falou.
Soltando um suspiro, eu disse:
— Muito fácil, Cat. Você merece algo muito pior que morrer de uma
forma rápida.
14

Puxei a pequena mesa para perto de onde ela estava. O barulho do


ferro raspando no chão ecoou pela cela, quase como se fosse uma cena de
um filme de terror, daqueles feitos de baixo orçamento, com atores ridículos.
Pus a jarra ali, e a bandeja com os pães. Só depois disso, puxei uma
cadeira e me sentei ao lado da mesa. Catarina permaneceu parada, imóvel,
com a cabeça baixa, durante todo o momento.
— Então... O que fez da vida depois de matar meu filho? — indaguei,
puxando assunto.
Eu queria estabelecer exatamente o que estava diante de mim. A
garota que me apaixonei era uma ilusão.
— Você não tem internet? Não sabe?
— Bom, onde eu estive, não costumava usar internet. Me fale,
Catarina... Como ficou famosa?
Ela ergueu a face. O dia ainda estava alto, mas o porão não tinha
nenhuma abertura, então o breu escuro pareceu dançar em sombras sobre sua
face pálida. Uma lâmpada amarela pendurada no teto a deixava ainda mais
misteriosa.
— Eu fui para a Europa. Morei na França, na Itália. Alguns meses na
Irlanda. Estudei moda. Fiz cursos em um boticário. Entendo de perfumes e
toda sorte de coisas fúteis que não importam a ninguém.
— Por que voltou ao Brasil?
— Não sei — pareceu sincera. — Simplesmente voltei. Comprei um
apartamento bonito com a herança do meu pai, e comecei a gravar vídeos
para a internet, dando dicas de como se vestir, de como escolher
maquiagem... E então a coisa ficou séria, eu comecei a receber propostas de
publicidade, e a ganhar muito dinheiro.
— Então foi uma coisa boa para você?
Sem resposta. Seu olhar pareceu em dúvida.
— O bebê ter morrido?
— Você perguntando isso? — ela rebateu. — Você nunca procurou
saber dele em dez anos. Se ele tivesse vivido, estaria quase entrando na pré-
adolescência sem nunca ter visto a cara do pai.
Era verdade. E isso me doía tremendamente.
— Quando éramos namorados, você me disse que seu pai o
abandonou depois de sua mãe ter morrido. Você teria feito a mesma coisa.
Meu estômago queimou. E por culpa de quem? Desviei meu olhar
dela, e volvi a bandeja. Peguei um dos pães ainda quente. O cheiro aqueceu
meu paladar e eu suspirei de prazer quando o mastiguei.
Voltei a olhar para Catarina e ela me observava comer como se nunca
tivesse visto um pão antes.
— Está com fome? — indaguei. — Deve estar com fome. Não come
nada desde ontem.
Joguei um pão no chão. O olhar dela seguiu o pão e pareceu em
dúvida se devia comê-lo ou não. Por fim, estendeu as suas mãos para o
alimento, mas eu gritei antes que ela pudesse tocá-lo.
— Não com as mãos! Pegue com a boca. Como uma cadela que você
é!
Ela se encolheu. Eu me pus de pé e avancei na sua direção. Catarina
ergueu as mãos, como se quisesse se defender, e eu vi as marcas vermelhas
das cordas em seus pulsos.
Tão apavorada... tão medíocre. Isso devia me dar muito prazer, mas eu
estava vacilando como não acontecia há dez anos.
Agachei-me diante dela. Nosso olhar cruzou novamente. Havia
lágrimas coroando seu olhar, e algo quebrou na minha alma.
Talvez o cheiro dela. Talvez a memória de quando eu era um cara
bom.
Deus... Como ela ainda era linda. Provavelmente, muito mais que a
Catarina adolescente. Agora ela tinha uma maturidade, uma força em sua
expressão.
Minha mão se ergueu. Eu toquei seu rosto, meus lábios queimando na
vontade de beijá-la.
Só uma vez... para matar a saudade.
Mas, ao invés disso, eu soltei a coleira e voltei ao meu lugar na
cadeira.
— Pelos velhos tempos, sente-se e coma. Eu trouxe um suco. Você
deve estar faminta.
Ela estava. Soltando um gemido trêmulo, ela esforçou-se para ficar em
pé. E nem tentou me atacar, apenas foi ao outro lado da mesa, levando as
mãos até o pão e o levando a boca como faminta.
15

Um dia eu o amei mais que tudo nessa vida. Agora, não restava nada.
Esse homem diante de mim não era nada além de um psicopata.
Meu corpo ainda um tanto dormente consegue chegar até a mesa. Eu
agarro um pedaço de pão enquanto caio sobre a outra cadeira. Estou faminta,
conforme vou acordando do sedativo, sinto meu estômago doer. Não peço,
simplesmente pego um copo de suco e bebo rapidamente, antes que ele
possa me impedir. Um pouco do suco caí do meu rosto, molhando a mesa.
Não me importo.
Yan, do outro lado da pequena mesa, me observa em silêncio. Eu
resvalo meu olhar para ele alguns segundos, uma parte de mim percebendo
como ele se tornou um homem bonito. É ridículo pensar nisso, mas
comparando com minhas memórias, agora ele era mais masculino, mais
forte, e mais alto. Eu costumava pensar em mim mesma como um ser
assexual, depois do que aconteceu. Mas, não podia negar que algo nele me
fazia queimar.
As lembranças, provavelmente. O primeiro amor. Não é algo que você
esquece facilmente.
Meu olhar fixa no pão de novo. Pego outro pedaço. Sim, algo em Yan
me faz queimar, mas ele é puro gelo. Ele está tão frio que machuca. E todas
as acusações... como ele pode dizer que eu matei o bebê? Quando foi ele que
me abandonou sozinha?
Ele foi embora sem olhar para trás. Deixando-me com dezessete anos,
nas mãos de Sofia. Eu era só uma menina que não sabia me defender. Os
pensamentos que me tomam, quase me fazem fraquejar e chorar diante dele.
Estou tão esgotada, física e emocionalmente, que penso que não vou
aguentar seja o que for que ele esteja planejando.
— Onde estou? — pergunto, não tenho certeza do que ouço, parece
com o mar.
— Em uma ilha.
A resposta me surpreende.
— Uma ilha?
— Sim. Um amontoado de terra que pertence a Castle.
Castle? Eu ouvi falar sobre isso no jornal. Eles eram tão poderosos
quanto o CV ou PCC. Isso era assustador.
— Como você entrou nisso?
Não havia como aquele menino doce que me amava em tardes frias
em hotéis de segunda classe, ser o mesmo homem diante de mim. Mas,
apesar da roupa cara e do olhar selvagem, havia algo nesse Yan que me
remetia àquele outro.
— Como eu entrei? — ele murmurou. — Ah, Cat... Como você acha?
Sua pergunta parecia ser uma resposta que eu devia conhecer. Mas,
francamente, não fazia ideia do que ele estava falando. Meu cérebro
começou a pensar, tentar lembrar se ele conhecia alguém na época que
poderia apresentá-lo a organização, ou... não sei...
— Por que estou aqui?
— Já te disse. Não basta morrer. Você tem que sofrer.
Eu corri minha língua ao longo do meu lábio inferior. Apesar do suco,
estava tão seco que ardia. Não foi um gesto proposital, mas percebi o olhar
de Yan vagando sobre minha boca.
— Mais?
— Mais? — ele riu. — O que você já sofreu, Cat? Passeando pela
Europa ou sendo famosa na internet?
Ele não sabia, porque ninguém sabia, que eu chorava todas as noites
no travesseiro.
Peguei outro copo de suco. Bebi novamente. Meus lábios ardiam,
provavelmente pela maresia.
— Você tem namorado, Cat? — ele indagou, a pergunta quase me fez
rir.
— Não.
— Que pena. Adoraria pegar o cara e te foder na frente dele.
Era uma ameaça de estupro? As palavras me assustaram. Nesse
momento, segurava o copo e acabei soltando-o porque minhas mãos tremiam
tanto que eu não podia mantê-lo entre os dedos.
O suco caiu sobre meu colo, me sujando e melecando com seu líquido
doce. Minha roupa estava suja do chão, mas agora eu ficaria pegajosa, e isso
quase me fez chorar, não fosse o susto que tive quando ele se pôs de pé e foi
até minha corrente.
— O que vai fazer? — indaguei.
Yan tirou uma chave do bolso e abriu o cadeado da corrente na parede.
Eu fiquei solta agora, ainda de coleira, mas solta. Repentinamente, esse
homem veio na minha direção, e eu pensei em correr, e o faria, se minhas
pernas obedecessem.
Ele me puxou. Eu fiquei em pé com dificuldade.
— O que vai fazer? — repeti.
Precisava da resposta, mas também a temia.
— Está fedendo a boceta e suor.
Eu não tomava banho desde a manhã do dia anterior. Eu não sabia
quantas horas faziam, mas estava quente aqui e não havia sequer um
ventilador. Então, é claro que eu suei, e é claro eu não estava cheirando bem,
mas não esperava que ele fosse tão explícito.
— Aonde vamos? — perguntei, quando ele começou a me puxar para
a saída.
— Seu cheiro não me deixa pensar — ele murmurou, então soube que
ele iria me permitir um banho.
A porta abriu e eu vi um corredor onde uma escadaria nos esperava ao
fundo. Ele caminhou rápido, me puxando, machucando meu pescoço com o
ferro, enquanto me guiava para cima.
Esse lugar era feito de pedras. Era escuro e gelado aqui fora. Um
contraste com a cela. Eu gemi de dor quando tropecei nas escadas e caí de
joelhos. Soube que havia ralado quando me virei para ver o estrago. Estava
sangrando, e não era a única coisa devastada em mim.
— Está me irritando com essa frescura — ele disse, puxando a
corrente de novo, enquanto eu tentava me reequilibrar.
Meus olhos não estavam acostumados a claridade, depois de mais de
vinte e quatro horas naquele quarto escuro, arderam quando chegamos na
parte superior. Eu gemi, cobrindo-os, e estava tão exausta que não conseguia
sequer observar onde estávamos e como eu poderia planejar fugir daqui.
Subitamente, travamos. Yan abriu outra porta e entramos. Era um
quarto bonito, quase tão rico quando o meu, em casa.
— O quê...? — comecei, mas ele me cortou.
— Tire a roupa. Você vai tomar banho.
16

Conforme o efeito da droga estava passando, eu fui percebendo a


realidade horrível. Yan não era mais o garotinho com quem eu perdi minha
virgindade em momentos únicos na adolescência. Ele também não era o
idiota que me abandonou grávida, no máximo um covarde. Esse cara diante
de mim era seco, frio e calculista.
E, por mais que ele me alimentou e me deu de beber, ainda me corroía
a forma como me olhava.
— Eu não vou tirar a roupa na sua frente — perseverei, tentando meu
máximo para me opor as suas vontades.
Estudei sua expressão à minha negativa. Eu só tinha que entendê-lo,
para conseguir escapar dele. Mas, tudo em Yan era uma incógnita.
— Vai sim! — ele afirmou, seu tom era manso, firme e neutro.
Eu senti ânsia de vômito nesse momento. Provavelmente, a perda do
efeito da droga também me trazia mais que a percepção da minha situação,
me jogava à realidade e a tudo que poderia me acontecer.
Em noites solitárias, eu sonhava que as coisas haviam sido diferentes.
Eu sonhava que não perdi meu bebê, e que Yan nunca me abandonou. E
então pensava em seus beijos, no seu toque. Me perdia em lembranças que
me faziam bem.
Todavia, sempre soube a verdade. E esta não era um conto de fadas.
O pão e o suco subiram pela minha bile. Eu podia sentir o ácido na
minha boca, provavelmente fruto do estresse. Ergui a mão quando minha
visão ficou turva, e acabei me escorando em seu peito.
— Acha que vai me seduzir, Catarina? Sua cara bonitinha não tem
qualquer efeito em mim.
— Não... Eu... — E então eu convulsionei.
Vomitei em cima dele. Não que me culpasse, porque ele merecia, mas
era vergonhoso vomitar sobre uma pessoa. Não havia muita coisa no meu
estômago, mas o suco em excesso produziu uma gosma branca com cheiro
forte.
E, ainda assim, Yan não moveu um passo. Ele recebeu meu vômito
com a respiração pausada e o rosto incrédulo. Quando, enfim, tudo parou, eu
quase caí no chão, sobre o vômito, não fosse ele me segurar.
A pele dele estava quente. Parecia tão suave.
— Droga, Cat — ele disse. — Olha a merda que fez — murmurou,
entre os dentes, mas não parecia irritado.
Ele me levou até uma cadeira. Eu me sentei, subitamente tão cansada.
Suja, suada e agora coberta de vômito... O que diriam meus fãs se me vissem
assim? Ergui meus olhos e observei Yan. Ele estava tirando a camisa, e pude
ver seu peito desnudo, coberto por pelos escuros.
Estava tão bonito... Era diferente do garoto Yan. Agora ele era
másculo, musculoso... Quase com sabor de pecado. Desviei meu olhar do
seu abdômen definido e duro, descendo os olhos sob uma linha de pelos que
desaparecia sob o cós de sua calça.
O que diabos estava acontecendo comigo? Por que eu olhei?
Ele jogou a camisa cheia de vomito no chão. Usou-a para limpar o
chão, não parecia horrorizado ou com nojo. Era mais como se fosse uma
coisa normal.
— Como pode colocar as mãos nisso? — indaguei, as palavras meio
retorcidas. Eu mesma não conseguia nem olhar direito para os excrementos
que saíram da minha boca.
— Estou acostumado. Pessoas prestes a morrer costumam cagar ou
mijar na roupa. Algumas vomitam. Não é como se fosse a primeira vez que
alguém despejasse o que tem no estômago sobre mim.
Como ele mudou. Quando jovens, líamos Shakespeare na biblioteca, e
ele parecia tão doce falando sobre Romeu ou Hamlet. Agora, não havia mais
nenhum pedaço de sua gentileza.
— Fala disso com tanta naturalidade.
— Morrer não é bonito. Muita gente acha que ser assassino é quase
romântico, mas não há nada de belo em matar. Especialidade se envolver
tortura. — Ele levou o pano até o lixo do banheiro, e então voltou. — Depois
eu mando limpar melhor — disse. — Venha — me estendeu a mão.
Meus olhos se estreitaram para ele, me dando conta de que ele queria
que eu tirasse a roupa quando ele mesmo já estava sem a camisa.
— Me deixe sozinha e eu tomarei banho.
— Para você tentar se matar com a mangueira do chuveirinho? — ele
riu. — Nem pensar. Há um chuveiro grande aqui, que cabe nos dois.
O que ele queria dizer com “nós dois”?
Ele levou a mão até minha corrente e a puxou para cima, me fazendo
ficar em pé. Então, me mostrou algo em sua mão.
— Vou destrancar a coleira. Mas, não se esqueça, não é a corrente que
te mantêm presa. Se te atrever a tentar fugir, vai pagar caro. Não que possa
escapar da ilha, mas não quero que os outros homens achem que sou idiota
em permitir uma mulher frágil como você saia das minhas mãos.
Foi com alívio que eu recebi a abertura da coleira. Uma parte de mim
se sentiu mais humana no exato momento que ele me destrancou. Conforme
estava voltando as minhas plenas faculdades mentais, ia percebendo o jogo
que ele fazia.
Yan queria me desumanizar. Só Deus sabia por quê. Talvez fosse mais
fácil me matar se ele não me visse humana.
Minhas mãos subiram para o meu pescoço e eu o massageei, sentindo
uma pequena ardência onde o ferro fez atrito. Fechei os olhos por um
segundo, e quando o abri novamente, pude ver o olhar de Yan sobre mim,
como se ele estudasse cada pedaço da minha expressão.
Eu hesitei. Estávamos um diante do outro, sujos e fedidos, e ainda
assim era como se estivéssemos nos vendo pela primeira vez em dez anos.
E então, como veio, o momento se foi. Yan levou a mão até meu
antebraço e me puxou. Cruzamos o quarto, meus pés vacilando conforme
nos aproximávamos do banheiro.
Entramos.
Era um banheiro todo em mármore. Havia uma banheira de
hidromassagem com um fundo em vidro, que dava direto para a vista do
mar. Mas, ele nem olhou para ela, me levando para um box escuro, onde um
chuveiro grande me esperava.
— Tire a roupa — ordenou, mais uma vez.
— Não — recusei. — Não na sua frente.
— Por que não? Esqueceu-se que eu já vi esse corpo em várias
oportunidades? Esqueceu-se que eu me lambujei no seu sexo centenas de
vezes? Que eu lambi seus seios, que eu fodi sua boceta, que eu coloquei
minha boca em lugares inimagináveis?
Não. Eu nunca me esqueci disso. E, conforme ele ia falando, eu sabia
que ele também nunca esqueceu.
17

Ainda assim, não era meu corpo que ele viu. As lembranças de Yan
se remetiam a uma Cat adolescente, completamente apaixonada. Eu
amadureci, e amor romântico não fazia mais parte dos meus pensamentos.
Meu corpo era apenas um instrumento de trabalho, um cabide para colocar
coisas bonitas, à venda, mas não para os olhos dele.
Yan se adiantou, aproximando-se do chuveiro. Ele o abriu, e eu pude
ver a água quente caindo forte no banheiro.
— Não se preocupe com seus cabelos — ele disse, e eu arqueei as
sobrancelhas, sem entender. — A água é mais limpa que a do continente.
Eles tem uma vertente na ilha para consumo, e dessalinizam a do mar para
banho.
Eu não estava pensando em como a água podia danificar minhas
madeixas. Meu pensamento estava longe disso. Meu problema era arrancar
minha roupa na frente dele. Será que Yan era tão insensível assim?
— Por favor — tentei, mais uma vez. — Me deixe sozinha para tomar
banho.
Yan voltou-se para mim. Seu sorriso parecia demoníaco. Eu me
assustei com isso, e então o eu o empurrei. Seu corpo ficou embaixo do
chuveiro, e a visão de sua pele molhando na água quente, me fez entrar em
surto.
Meu coração bateu tão forte que doeu. Lágrimas começaram a se
formar, um amor que eu não queria... — que eu não sentia! — ... volveu ao
meu coração. Então, eu girei na direção contrária e tentei sair do banheiro.
Não estava mais presa na corrente, e podia correr. Meu corpo já estava
ficando acordado das drogas e eu podia tentar chegar ao mar. Se eu pudesse
me atirar no penhasco e terminar com isso, seria a melhor coisa.
Mas, sequer cheguei à porta do banheiro. Uma mão envolveu meu
cabelo em um punho, e me puxou para trás. Eu gritei, pela dor e pela
humilhação. E, estranhamente, porque era Yan que estava fazendo isso. Por
que ele insistia em me ferir mais do que já fez?
— Não me faça perder a cabeça, Cat — ele sussurrou contra meu
ouvido. Seu corpo duro apertando o meu. Sua mão livre espalmada na minha
barriga, minhas costas chocadas com sua frente.
Eu senti sua ponta apertando meu bumbum. Lágrimas cobriram meus
olhos enquanto tentei lutar.
— Me solta — dessa vez minha voz soou mais alta, e eu percebi que
estava voltando ao normal. Minha torpeza estava me deixando. Talvez fosse
o vômito ou o pânico, mas o efeito das drogas não estava mais presente.
— Catarina, você acha que eu não bateria em você se ousasse me
desafiar? — Ele bufou em resposta. — Eu odeio tanto você que seria fácil
esmagar seu crânio com as minhas mãos.
Mas, ao invés disso, ele subiu a mão espalmada. Tocou suavemente
meu pescoço, e então meu rosto, segurando meu queixo, fazendo com que eu
girasse a cabeça para ele.
Estava tão perto. Seu hálito acariciou meu nariz, e eu fechei os olhos.
Subitamente, perdi o controle da minha própria ação. Fechei os olhos porque
esperava seu beijo. Na verdade, queria seu beijo. O pensamento intruso e
inesperado foi cortado pela forma obtusa que ele me soltou.
— Tire a roupa! — gritou. — Agora!
Eu não me mexi.
— Você quer dificultar as coisas, Catarina? Eu posso simplesmente te
acorrentar de volta, e eu mesmo arrancar sua roupa. Ou eu posso te colocar
de volta no porão e jogar baldes de água na sua cabeça, deixando que
apodreça de frio lá. É isso que quer? Sofrer ou tomar um banho quente para
tirar seu vômito de você?
Francamente, eu não sabia o que era pior. Cada cena se tornava ainda
mais pavorosa e não havia cenário positivo. Então, assenti, enquanto fui
puxando a blusa para cima.
Eu tirei a calça depois, sem conseguir erguer meus olhos para ele e ver
sua expressão. Quando, por fim, o encarei, não havia nada que me dissesse o
que ele estava pensando.
— Tire o resto — ele mandou.
Eu sei que fiquei apavorada com essa possibilidade. Vendo minha
insegurança, Yan avançou, puxando tão forte o sutiã, que o rasgou contra
minha pele. Eu gritei assustada, mas quando ele levou a mão até minha
calcinha, eu fiquei dominada por uma raiva que não sentia a muito tempo.
A tanto tempo...
Desde que conheci Lili, minha vida entrou num marasmo de amizade.
Eu praticamente não odiava mais ninguém. Mas, o toque dele na minha
intimidade, me fez esquecer de proteger meus seios, enquanto eu pulava
contra ele.
Houve uma pequena luta.
— Olhe só... Minha pequena gatinha mostrou as unhas.
— Seu filho da puta — reagi, tentando me libertar das suas mãos e
enfiar meus dedos dentro dos seus olhos.
— Minha mãe nunca foi uma puta, ao contrário da sua. Como vai sua
relação com ela, agora que perceberam que são tão iguais?
Não fazia ideia do que ele estava falando. Repentinamente, ele
conseguiu pegar o tecido da minha calcinha. O tecido frágil foi removido
num único golpe. Eu gritei em desespero, enquanto tentava levar as mãos
para cobrir meu pequeno monte.
Mas, a verdade é que não estava fazendo meu melhor. Meus seios
eram grandes e eu sabia que ele estava vendo minhas aréolas, enquanto seu
olhar deslizava para baixo, aonde pequenos pelos claros apareciam na minha
virilha.
Eu costumava me depilar por higiene, mas estava sendo relapsa desde
que o inverno começou. Aqui na ilha, o tempo não era tão gelado, mas ainda
assim meus pelos se eriçaram diante do seu olhar.
— Entra no chuveiro — ele mandou.
Sua voz fez minha boceta apertar. Era estranho que ele ainda tivesse
esse poder. Lembro-me de o desejar tanto quando jovens que sequer senti
muita dor na primeira vez. Tanto é que quis uma segunda vez, poucos
minutos depois da primeira.
Passei por ele e entrei no chuveiro. Estava de costas para ele, a
vergonha não me permitia encará-lo. A água quente me tocou, e eu fechei os
olhos, enquanto sentia meu corpo aquecendo.
Parecia que fazia mil anos que eu não tomava um banho, e eu suspirei
de alívio, conforme o vômito e o mal cheiro foi me deixando.
— Você quer que eu te esfregue ou vai usar o sabonete sozinha? —
sua voz rouca atrás de mim me lembrou que Yan ainda me observava.
Eu agarrei o sabonete ao lado. O perfume inundou meus sentidos,
conforme eu ia passando-o pela pele. Tentei ser rápida para não me tornar
um espetáculo aos seus olhos, mas a verdade é que eu não sabia o que
aconteceria quando eu terminasse, então fiquei receosa em terminar.
Peguei o shampoo de Yan. Não conhecia a marca, mas serviu ao
propósito de me limpar. Como fiquei deitada por muitas horas no chão, meu
cabelo estava empapado de poeira. Um cheiro suave de rosas me tomou. Eu
quase podia sentir calma enquanto a água me confortava.
Mas, por fim, acabou. E então eu saí do box. Yan estava do outro lado
do banheiro, escorado na pia. Seus olhos eram fixos e havia muito mistério
no jeito que ele me encarava.
Uma parte de mim se perguntava se ele gostou do que viu, ou se os
anos acabaram por tirar de mim a beleza de antigamente.
Não havia como saber. Eu não conheço esse novo homem e não sou
capaz de alçar o que ele pensa. Nem o tipo de mulher que ele curte.
Não que isso me importe.
Ele estendeu a toalha branca para mim. Eu teria que libertar meus
seios ou minha boceta para pegá-la. Minhas mãos ainda tentavam me
proteger, o que era estranho, porque ele viu tudo enquanto eu me banhava.
Por fim, decidi que os seios eram menos importantes, e peguei a
toalha. Nesse momento, meus olhos baixaram e eu vi a protuberância na
calça. Desviei meu olhar rapidamente, enrubescendo.
O que estava acontecendo comigo?
18

Deus... Como ela ainda era linda.


Talvez mais do que eu me lembrava. Muito mais. Durante as semanas que
planejei sequestrá-la, assisti seus vídeos na internet. Sabia que continuava
belíssima, tanto naturalmente ou usando maquiagem pesada. Mas, vê-la nua
remetia a algo mais. Algo que ninguém nas redes sociais tinham, algo que
foi só meu.
Só meu...
Catarina ficou de costas para mim no chuveiro. Ela tinha curvas
suaves e sua bunda era grande. E muito branca. Eu quase ri pensando que ela
nunca pegava sol. Era um contraste com as morenas com quem eu
costumava trepar. Aliás, eu nunca pegava loiras porque ainda tinha meus
traumas do amor que um dia nutri por essa aqui, no chuveiro.
Ela ergueu as mãos para lavar o cabelo. Sua bunda empinou quando
fez isso, e eu quase precisei me impedir de ir até ela e afogar meu cacete
entre suas nádegas. Como ela gemeria, agora? Será que ainda sussurraria
meu nome com urgência, me pedindo por mais?
Quando ela terminou, desligou o chuveiro e saiu do box, tentando se
proteger. Um dos braços sobre os seios, e a outra mão tentando impedir uma
visão completa dos seus grandes lábios. Minha boca secou de vontade de me
colocar de joelhos agora, e lamber sua entrada. Fiquei duro com o
pensamento, e ela percebeu.
Estendi a toalha. Cat soltou o braço que prendia os seios, e eu vi
aqueles dois montes gêmeos aparecendo diante de mim. Os bicos estavam
duros, e talvez ela também sentisse vontade.
Será que eu poderia... uma última vez... antes de destruí-la?
Ela se cobriu com a toalha. Seu rosto estava vermelho, e eu podia ver
o quanto parecia desconfortável. Eu iria dizer alguma coisa, nem sei o quê,
mas um som de batida na minha porta me cortou.
— Seque-se. Há roupas para você no armário — disse, enquanto saía
do banheiro.
Cruzei pelo quarto, e me aproximei da porta. A abri.
— Senhor Abel vai precisar dos seus serviços nessa noite — uma das
jovens que atendiam no castelo avisou.
Eu assenti, porque trabalho é trabalho e eu sempre poderia voltar para
terminar o que eu tinha a fazer com Catarina. A garota me entregou um
envelope e eu fechei a porta, volvendo para o quarto. Abri-o e li um nome
qualquer, com um endereço aproximado.
— Que roupa é essa? — ouvi Catarina antes de ela surgir no quarto,
usando um vestido curto e apertado.
Eu sorri diante da visão.
As marmitas adoravam usar aquele tipo de roupa. E eu havia pedido
algumas roupas assim para Mirella, que me entregou sem reclamar, apesar
de eu saber que estava transbordando de ciúmes por eu estar preocupado em
vestir outra garota.
Mas, a verdade é que não pensava em vestir Catarina. Minha intenção
era humilhá-la. Catarina era do tipo de mulher que usava roupas sofisticadas,
de alto padrão, grifes assinadas por estilistas famosos. E agora ela estava
vestida como qualquer garota, com roupa de liquidação, extremamente
vulgar.
Para sua arrogância, era um tapa na cara.
— É... eu até gostei — ela murmurou, e então eu soube que o tapa era
na minha cara.
— Você gostou?
— Eu gosto de pouca roupa. Ando pelada em casa — ela despejou, e
eu arregalei os olhos.
Estava me provocando? Não parecia. Mas, a antiga Catarina nunca me
falaria isso, a antiga Catarina que costumava se cobrir sempre que
terminávamos o sexo não andaria nua em lugar nenhum.
— Está zoando?
— Por quê? Não posso gostar de roupas transparentes?
— Você não costumava se vestir assim.
— Não que você saiba.
Seu tom era quase como um desafio. Eu quase sorri diante do fogo que
parecia exalar dela. Reconhecia o sentimento: era raiva.
— Tem razão, eu não fazia ideia de quem você era. Mas, agora eu sei
que não vale nada.
— Eu? Eu não valho nada? E você? Você não presta. Nenhum fio de
cabelo da sua cabeça vale um mísero centavo.
Eu não entendia por que havia tanto ácido em seu tom. Por que me
odiava, sendo que foi eu que passei dez anos preso por causa dela?
— Com certeza, para você, eu não valho, já que sua raça só se importa
com dinheiro e nome importante. O valor de uma pessoa, para vocês, é bem
diferente do que para mim.
Ela arqueou as sobrancelhas. E eu podia ficar horas aqui debatendo
com ela, não fosse o fato de que eu sairia da ilha antes do sol se pôr. Olhei a
corrente no chão, imaginando se devia prendê-la novamente.
— Se não tentar nada estúpido, eu te permito ficar sem a coleira —
disse. — Mas, se fizer qualquer movimento que me irrite, vou te colocar de
novo no porão, presa à parede.
Catarina estudou minha proposta. Quando ela assentiu, vencida, eu
sorri.
— Siga-me — disse a ela, e então deixei o quarto.
Havia um quarto vazio ao lado do meu, eu sabia. O Castelo tinha
muitos quartos, já que era usado por muita gente, mas eu sempre preferia o
lado oeste, local onde o sol não pegava a maior parte do dia, e se tornava o
canto mais isolado. Depois de tantos anos dividindo um pequeno espaço com
muitos outros homens, eu gostava da solidão.
Abri a outra porta, a poucos passos da minha. Entrei. Era um lugar
mais simples, mas ainda assim era melhor que o porão. Apontei a cama para
Catarina, e ela obedeceu, sentando-se.
— Você fica aqui. Não saia daqui. Eu irei me ausentar por algumas
horas.
— Posso ter meu celular?
— Está bêbada? — rebati. — É claro que não.
— Pode, ao menos, avisar minha amiga que estou bem. Liliana vai
ficar muito preocupada.
Quem?
— O que seus parentes ou amigos vão pensar não me importa.
— Liliana vai sofrer — ela pareceu vacilante pela primeira vez. — Só
mande uma mensagem como se fosse eu, dizendo que estou dando um
tempo... O nome dela está nos contatos. “Lili”. Por favor... Ela ainda está
amamentando, pode até mesmo empedrar. Por piedade.
Minha mandíbula apertou, e eu não respondi seu apelo.
— Parece que essa garota é importante para você.
Nosso olhar cruzou, e uma parte de mim se deliciou em vê-la
temerosa, em pânico.
— Eu te mato — Catarina murmurou.
Ora, ora... parece que Cat tinha um ponto fraco por baixo dessa
couraça de arrogância e estupidez.
— Sempre há um lugar para uma garota no Castelo. Ela é bonita? Os
homens gostam das morenas de cabelos lisos e grandes. Ela é desse tipo? Ou
é mais uma princesinha como você?
Subitamente, ela avançou. Foi tão surpreendente, e eu não estava
esperando. As mãos de Catarina tentaram atingir meu rosto, e toda ela
pareceu forte enquanto caía sobre mim. Ela era só fúria e raiva. Estava
espumando. Eu tropecei para trás enquanto tentava conter suas mãos de me
atingir, e então estávamos ambos no chão, nos engalfinhando como dois
selvagens.
E, subitamente, não estávamos mais lutando. De repente, nossas mãos
deixaram de tentar lutar e passaram a tocar. O corpo de Cat sobre o meu me
fez gemer, e então minha boca buscou a dela.
Eu a beijei como se apenas estivesse com tanta saudade... Era como se
eu estivesse esperando minha vida inteira por isso.
Nossas línguas se tocaram. O gosto dela ainda me lembrava bala de
morango. Ela se mexeu no meu colo, afundando mais a língua. Eu comecei a
chupar sua boca, querendo mais, porque repentinamente, nada mais bastava.
Meu pau ficou duro. Desci minhas mãos pelo seu corpo, segurando
seu bumbum, trazendo seus quadris para mim, mais fundo, mais fundo... eu
queria tirar a roupa dela e me afundar na sua carne, e faria isso, se Catarina
não parecesse acordar do que quer que estivesse acontecendo, e se afastasse,
assustada, segundos depois.
Ela engatinhou para trás. Suas costas tocaram a cama, e ela pareceu
acuada, talvez imaginando o que teria acontecido se algum traço de
racionalidade não a houvesse tocado.
Rindo, balancei a cabeça.
— Parece que algumas coisas não mudam — disse, depois de tudo. —
Você ainda me deixa duro como uma pedra.
Deixei-a e fui até o guarda-roupas. Peguei o mesmo casaco que usei
quando a sequestrei. A ilha não era um lugar frio, mas ainda era inverno no
continente.
— Tenha uma boa noite, Cat. Quando eu voltar, continuamos nossa
conversa.
E então fui cumprir minhas obrigações.
19

Parei a BMW S1000 na escuridão daquele canto sem iluminação do


Capão do Corvo, aquela praça bonita de Canoas, região metropolitana de
Porto Alegre. Eu vi meu alvo ao longe, numa roda de amigos, bebendo e
fumando como se não houvesse ninguém para impedi-lo de cometer as
bobagens da juventude.
Suspirei. O garoto parecia ter uns dezoito anos, idade que eu tinha
quando minha vida acabou. Havia nele um ar de inocência, como se os dias
fossem infinitos e ele estivesse disposto a viver todos. Isso podia ter
acontecido se ele não houvesse se metido com drogas, e para se livrar de
uma dívida com a Castle, armado para entregar dois dos nossos traficantes
para a polícia.
Abel odiava prisões, porque elas sempre significavam que haveria
muito dinheiro para o judiciário, dinheiro esse que ele poderia usar para
expandir os negócios. Alguns de nós estávamos adentrando no Nordeste.
Outros de nós, no Centro Oeste. Esse tipo de empreitada exigia muito
esforço e grana.
O celular no meu bolso vibrou. Não era o meu. Era o de Catarina, que
eu havia colocado no bolso do casaco assim que a peguei no estacionamento.
Eu o desliguei tão logo a sequestrei, mas agora eu o religuei, apenas para
bisbilhotar sua vida enquanto esperava o momento certo de pegar aquele
garoto drogado.
Puxei o aparelho. Havia uma infinidade de mensagens da tal Lili, a
pessoa que a fez surtar no quarto. Ignorei essas mensagens, porque logo
abaixo havia dezenas de outras mensagens com um nome masculino:
Lorenzo.
Meu estômago queimou de raiva, apesar de eu saber que não devia
sentir isso.
Eu não tinha nada a ver com a vida de Catarina, o que ela fez nesses
dez anos não era da minha conta. O que me importava é que, para viver sua
vida, ela matou meu filho.
Era imperdoável.
Abro uma das mensagens:
“Estou preocupado. Você não me ligou ontem à noite”.
Uma bola vem na minha direção. Uma criança surge atrás dela. Ela
sorri para mim, deve ter uns nove ou dez anos. Idade que meu filho teria. Eu
sequer pude ver seus olhos uma única vez.
— Desculpe — a criança disse quando a bola atingiu a moto.
Eu sorri, enquanto o pequeno pegava seu brinquedo de voltava em
direção à praça. Já era noite, mas havia bastante gente aqui. Volvi meus
olhos de volta para o grupo do alvo, e ele continuava lá, rindo algo, falando
bobagens.
Volto meus olhos para o celular.
Outra mensagem do Lorenzo:
“Cat, cadê você?”
Cat... Outro homem a chamava assim. Aperto o celular nos dedos,
uma raiva sem controle me tomando. Eu quero matá-la por dar a outro o
direito de chamá-la com o apelido que eu lhe dei.
O que mais ela já deu a outro que me pertenceu?
“Cat, estou te ligando desde ontem. Vou chamar a polícia se não me
atender!”.
“Cat, estou indo para Porto Alegre. Lili vem comigo. Vou bater na sua
porta!”
O grupo se movimentou, e eu ignorei o celular, volvendo-o novamente
ao bolso. Meu alvo ficou em pé e estendeu a mão até uma garota. Os depois
começaram a se distanciar, em direção à uma área fechada de mata. Era um
lugar de trilha, eu havia visto brevemente enquanto seguia o rapaz.
Desci da moto. Cruzei a praça pelo melhor local que pude, o que havia
mais breu, e cheguei até área da mata. Eles haviam ido pela direita, e eu fui
traçando o mesmo caminho. Estava queimando de raiva, não do garoto, mas
sim de Catarina e do tal Lorenzo. Eu queria matar esse desgraçado, e
provavelmente faria isso assim que soubesse quem ele era.
Repentinamente, gemidos. Eu não precisei pensar muito para saber
porque o par saiu do grupo de amigos e se embrenhou entre as árvores. Me
esgueirei nas sombras, enquanto ia me aproximando.
— E a camisinha? — a garota indagou.
— Eu não uso camisinha — ele disse. — Aperta demais.
— Mas, você disse...
Então eu o vi tentando forçar a situação. A garota tentou empurrá-lo,
mas o garoto riu, como se fosse tudo muito divertido. Apesar de ela estar
aqui por vontade própria, aprendemos com Abel que sempre é estupro
quando uma mulher demonstra não querer, e você insiste.
Francamente, eu não sabia antes de Abel falar. Ele, com certeza, era o
pai que eu não tive. Aprendi muito com ele, já que era inocente demais
quando fui preso. Eu só tive uma única garota, e ela nunca se negou, ao
contrário, na maioria das vezes era Catarina que pedia por sexo.
— Ei! — ralhei, alto, a voz grave fazendo com que ele a soltasse. —
Deixe a menina — ordenei.
Ela tentou sair, mas ele permaneceu segurando seu braço.
— Sai fora, cara — ele mandou, e eu quase ri.
Dei alguns passos na direção deles. Puxei a garota com força, e ele
soltou quando percebeu meu olhar e meu tamanho. Ao se ver livre de ambas
as mãos, ela saiu correndo.
— Ok, cara... ela já foi. Eu vou também — ele disse.
— Não. Não vai — me pus no seu caminho.
— Eu já a deixei ir — ele perseverou. — Não quero problemas.
Então, rapidamente, eu lhe dei um forte soco na face, não o suficiente
para quebrar seu crânio, mas o suficiente para desestabilizá-lo e o rapaz cair
no chão, assustado.
Quando estava no chão, eu puxei meu celular e comecei a gravar.
— Por sua traição a Castle, Abel o condena a morte.
Puxo rapidamente o celular, antes que o rapaz consiga ter uma noção
do que vai acontecer. Uma parte de mim sabe que é só um jovem idiota e
imaturo, e a morte é uma punição grande demais. Mas, não sou pago para ser
o juiz. Eu sou pago para ser o carrasco.
Então eu puxo o gatilho. O som contido pelo silenciador é apenas um
curto suspiro antes do corpo despencar para o lado.
Levo a pistola para a cintura novamente, meus olhos observando o
morto. O rapaz morreu de olhos abertos, e eu pensei em como a mãe dele se
sentiria quando soubesse que ele estava morto. Uma parte de mim sempre
ficava triste pelos pais. Eu sabia o que era perder um filho. Era uma lástima.
Então eu simplesmente volvo pelo mesmo lugar, cruzo pelos jovens
que ainda estão conversando nos bancos da praça. Não vejo a garota que
fugiu, e não me importo. Se ela pensasse um pouco melhor, entenderia que
esse não é um lugar para ela. Se eu tivesse uma filha, iria querer que ela se
mantivesse longe de matas fechadas com caras que ela acabou de conhecer.
Subo na moto.
Puxo novamente o celular.
“Serviço finalizado. Limpo. Uma testemunha, mas ela mal me viu na
escuridão”.
Guardo o celular. E então me preparo para voltar ao litoral. Mal posso
esperar para pegar um barco, e reencontrar Catarina.
20

Minha boca ainda queimava com o gosto dele. Nunca pensei que
beijá-lo depois de tantos anos ainda teria aquele sabor quase puro, como se a
vida não houvesse sido só devastação.
Quando ele se foi, fiquei sentada na cama, atormentada por
lembranças. As mãos, a boca, a forma como ele fazia amor. E então, o
terrível dia que fui drogada e que me fizeram o aborto. Minhas pernas
molhadas de sangue. Meus dias naquela cama suja imaginando que iria
morrer.
Depois, minha busca por Yan. A descoberta que ele me abandonou,
fugiu quando soube que eu estava grávida.
Eu o odiava mais que tudo nessa vida. Eu tinha que odiar. Eu
precisava.
Deslizo meus dedos pela minha boca, a saliva de Yan ainda parecia
estar ali. Ele tinha gosto de cravo e menta. Isso não mudou.
Me ergo da cama. Eu preciso sair daqui. Não posso permitir que esse
cara me enlace em seu jogo cruel. Ele me abandonou, e age como se fosse o
contrário. Ele claramente me culpa pelo aborto, quando jamais fui a
responsável.
Pela primeira vez, eu olho ao redor. É um quarto grande, as paredes
feitas à pedra. É um lugar quase místico, e muito rico. Não duvidava da
qualidade, já que ele falou que estava em uma facção. Os traficantes, hoje,
são os homens mais poderosos do país. Que eles tivessem uma ilha
particular para refúgio quando precisassem nem devia me surpreender.
Ando ao redor, procurando uma janela. Eu poderia pulá-la, mesmo que
fosse alta. Eu não me importava mais em morrer, apesar de saber que Lili
sofreria pela minha ausência. E Lorenzo. E a filha deles, Maria Elena. Oh,
Deus... hoje eu tinha amigos, e tinha uma família. Eu não poderia apenas
sumir sem achar que não deixaria um rastro de dor para trás.
Ainda assim, começo a andar pelo quarto. Vou até o banheiro. É bem
mais simples do que pertence a Yan, mas ainda assim é muito bonito. Eu
vejo uma pequena abertura atrás do chuveiro, uma saída de ar, e vou até ela.
De lá, posso ouvir o vento e as ondas quebrando na praia. Eu também ouvi
os cachorros latindo. E se eu prestasse muita atenção, podia ouvir o som de
risadas femininas.
Abandonei a abertura, porque eu jamais conseguiria passar por ela.
Voltei a cama, e me deitei sobre os lençóis macios. Apesar de eu ter dormido
a maior parte do tempo que estou aqui, ainda assim estou cansada.
Fechei os olhos.
Quanto tempo Yan pretende me manter aqui?
Quanto tempo até ele se sentir satisfeito o suficiente e então me matar
ou me deixar ir embora?
Abro os olhos.
Quanto tempo até eu perder meu contrato com a famosa marca de
grife? E meus vídeos no Youtube? E quanto dinheiro eu estou perdendo,
presa aqui?
Oh, Deus... e meu cabelo sem meus shampoos caros, minha pele sem o
skincare?
Quando eu voltar, se é que vou voltar, estarei um bagaço e levarei
semanas para me recuperar.
Meu trabalho era minha maior segurança. Tirando Lili e Lorenzo, as
redes sociais eram o único lugar que eu me sentia amada.
De repente, um barulho na fechadura da porta. Eu abro meus olhos,
imaginando que Yan voltou, mas sem ter certeza, já que não fazia muito
tempo que ele saiu. Repentinamente, a porta abre e eu vejo uma mulher
bonita entrando. Eu a encarei com surpresa, apesar de saber que havia
mulheres aqui.
— Oi — digo, carregada de esperança de que ela me ajude.
A garota devia ter no máximo uns vinte anos. Ela estava vestindo uma
saia curta e uma blusa que só cobria os seios. Era magra, cabelos longos e
escuros, soltos, um pouco rebeldes na franja. Bonita como poucas que eu já
vi, e já vi muitas mulheres bonitas em desfiles de moda.
— Sou Mirella — ela se apresentou. — Você é diferente do que eu
pensava. É velha — apontou. — Quantos anos tem? Uns trinta? E é branca
como se nunca tivesse visto o sol. É bonita, mas é esquisita. E velha, já
disse? O que Yan quer com uma velha como você?
Ela não parecia me odiar, mas também não parecia satisfeita com a
minha presença.
— Yan tem um monte de garotas, você sabe? Todas amam servir a ele.
Tive sorte de ser escolhida para foder com ele uma vez. O melhor domingo
da minha vida. Ele é gostoso, é quente. E ele tem uma pegada... Você já
experimentou?
Eu não respondi, porque ainda estava tentando entender a implicação
do que ela disse. Ele teve um monte de mulheres bonitas como ela, enquanto
eu passei os últimos dez anos chorando pelo abandono e a dor de perder meu
filho?
A raiva queimou no meu ventre. Eu queria matá-lo. Se eu tivesse
sorte, alguém faria isso por mim nessa última saída dele.
— Ah, qual é? Não vai responder? — ela deu os ombros. — Yan
falava de você para os caras do grupo. Nunca me disseram o que ele dizia,
mas imagino que você foi o tipo de foda inesquecível. Qual seu segredo? Dá
o cu? Eu faço anal às vezes, mas acho que Yan não gosta, porque ele nunca
quer. Talvez você chupe como um traveco... Sabe que os gays são os
melhores chupadores de pau que existe, né? Mas, Yan nunca quis
experimentar um travesti. Então, eu me pergunto o que ele viu numa
branquela como você...
Ela volveu para trás. Enquanto tagarelava sem controle, arrastou um
carrinho do corredor. Nele havia um pedaço de torta fria, e um copo de uma
bebida escura e borbulhante, que eu pensei ser Coca-Cola.
— Coma — ela ordenou, assim que colocou o carrinho na minha
frente.
— Onde está Yan? — eu perguntei, enquanto pegava o copo de
refrigerante e tomava um gole.
Ela sorriu.
— Ele foi matar alguém.
O silêncio tomou conta do quarto por alguns segundos, enquanto eu
olhava assombrada para ela.
— O quê?
Era como se matar alguém fosse o mesmo que trocar de camisa. Sua
frieza me deixou pasma.
— Meu Deus — eu murmurei.
— Coma — ela me cortou. — Eu não posso ficar muito tempo, sabe?
Éder vai chegar essa noite, e disse que me trouxe um presente — ela
inclinou a cabeça, feliz. — Os homens da Castle são tão gentis...
Castle...
Eu já tinha ouvido falar. Não lembro se Yan comentou algo, ou se vi
no noticiário.
— Mas, Yan é diferente — ela apontou. — Éder é bom, Abel é
generoso, Álvaro é doce... mas Yan... Yan me faz ver estrelas.
Eu peguei o garfo e comecei a comer. Estava com fome, já que
vomitei todo o pão que Yan havia me trazido. Mirella se sentou numa
poltrona perto da cama, e começou a falar. Pelo jeito, ela amava o som da
própria voz. Ela ficou cerca de cinco minutos inteiros me dizendo como Yan
era bom de cama, e como ela queria ser exclusiva dele.
— Você está apaixonada por ele? — perguntei, não sei por quê.
Francamente, não me importava.
Pela primeira vez, ela ficou em silêncio.
— Sabe... — murmurou, depois de tudo. — Um dos guardas iria trazer
seu jantar, mas eu pedi para fazer isso. Porque queria vê-la, saber como é.
Porque... eu não gosto de rivais. Eu me livrei de todas as garotas que
agradaram Yan, nesses últimos anos.
Era um aviso. Eu não devia me atrever a ficar no caminho dela.
— Se você não reparou, não estou aqui porque quero. E, como você
disse, sou velha. E você é jovem, cheia de energia. Bonita. Não tem por que
se preocupar.
Eu podia ver o ódio irradiando dela. Era a primeira vez que via algo
assim.
— Se eu não tivesse motivos para me preocupar, não precisaria estar
aqui.
Terminei de comer a torta. Mirella então pegou o carrinho, e começou
a sair com ele.
— Só não fique no meu caminho, e eu não mato você — ela disse, e
então saiu.
Me matar? Ela teria que entrar na fila, primeiro. Yan estava avançado
nessa direção há muito tempo.
21

O dia já estava amanhecendo quando o helicóptero pousou no lado


norte da ilha. O ar da manhã bateu em meu rosto, e eu suspirei de alívio por
voltar a estar em um ambiente tão calmo. Eu nasci e passei a maior parte da
minha vida em Porto Alegre. Mas, agora, toda a região parecia cheia demais,
com muito barulho, muito trânsito e muitos problemas. Precisava respirar e o
ar da região metropolitana parecia tenso demais.
Acenei para o piloto, que sequer desligou os motores e voltou
novamente à ativa. Rumei pela calçada de pedras, e fui me aproximando do
castelo. Tudo estava silencioso, mas quando entrei na cozinha, pude ver
Mirella lá, escorada em um balcão, uma taça de vinho nas mãos e um olhar
estranho no rosto.
— Algum problema? — perguntei.
Ela largou a taça de lado. A manhã estava um pouco fria, mas Mirella
estava vestida como sempre, com sua pouca roupa.
— Eu perguntei a Éder sobre a loira no quarto. Eu sei quem ela é, mas
não sei por que está aqui. Éder não quis me contar, mas deixou escapar que
ela é parte do seu passado.
Arqueei as sobrancelhas. Eu não estava a fim de narrar minha vida
para uma marmita.
— E?
— Por que ela está aqui?
Poderia simplesmente não responder, mas acabei dizendo:
— Porque Catarina foi a responsável por todas as coisas ruins que já
me aconteceram.
— Então a mate. Ou a mantenha no porão para os outros caras usarem.
Mas, não a deixe guardada em num quarto bonito como se ela fosse alguma
coisa preciosa.
A menção de outros caras tomarem Catarina me enervou. Eu já estava
suficientemente incomodado com o tal Lorenzo enchendo o celular dela de
mensagens. Antes de desligar o aparelho, tão logo cheguei a FreeWay, ele
ainda mandou mais umas cinco mensagens informando que a polícia já
estava a par do desaparecimento.
Talvez ele pensasse que isso amedrontasse um sequestrador. Mas, eu
nem me importava.
— Por que está incomodada? Ela nem tem contato com você.
— Fui levar a comida da princesinha, ontem à noite. É uma arrogante,
presunçosa, se acha superior porque nasceu em berço de ouro. Tratou-me
muito mal.
— Então não vá mais levar a comida dela. Não deixei isso destinado a
você, de qualquer forma. Eu pedi a uma das criadas para fazer isso. Por que
ela repassou o serviço a você?
— Estava ocupada e eu só quis ajudar.
De repente, ela se aproximou. Sua mão bateu no meu peito, num
carinho que não pedi.
— Ela mexe com você? — indagou.
— Não.
— Então, a mate... por favor?
— Quando chegar a hora certa, provavelmente — resmunguei.
— Se ela te faz ficar duro... bem, você nunca quis uma loira, mas eu
posso pintar os cabelos. Ou você pode ficar com uma das garotas da
comunidade. Tem uma loirinha nova lá na Restinga que está louca para
servir a Castle.
Silêncio. Francamente, o que eu devia responder?
— Ela é velha... Que idade tem?
— Ela é alguns meses mais nova do que eu.
— Mas, o peitinho dela não é mais tão duro. E nem tão cheio como os
meus. Eu sei que você gosta do meu tamanho.
Mirella tentou me beijar. Seu corpo resvalou no meu, e a garota se
apertou contra meu pau, mexendo, tentando causar qualquer reação. Mas,
não havia nada.
— Você devia procurar sobre ela na internet. É uma influencer famosa,
e considerada uma das mulheres mais bonitas do país. Não devia desprezá-la
tanto assim — murmurei.
Não sei por quê. Não me importava aquela rivalidade idiota.
— Eu vi as fotos dela no Insta. Mas, francamente, ela não é tão bonita
sem maquiagem
Ao contrário, ela era bem mais bonita sem maquiagem. Especialmente
depois dos lábios vermelhos por meus beijos.
Respirei fundo, desviando os pensamentos novamente. Me afastei de
Mirella, enquanto zanzava pela cozinha. Ainda era muito cedo, as moças que
trabalham na cozinha não haviam levantado de suas camas, então eu mesmo
arrumei um sanduíche e uma xícara de café.
— Yan — Mirella balbuciou meu nome, como se pedisse algo.
Algo que eu não daria a ela.
— Estou ocupado — resmunguei, e então saí da cozinha com a
bandeja nas mãos.
22

Abri meus olhos no exato momento que a porta se abriu. Era Yan, e
eu quase fiquei aliviada por ser ele, já que a visita da tal Mirella me abalou.
Sentei-me na cama quando ele entrou no quarto, acendendo as luzes. Pude
ver uma bandeja em suas mãos, e imaginei porque ele estava me
alimentando, quando era claro que queria me machucar e destruir.
Talvez apenas para me manter viva por mais tempo.
— Trouxe seu café da manhã — ele disse, pousando a bandeja sobre a
cama.
Nós nos encaramos, havia mistério em seus olhos.
— Coma — ordenou, em seguida, me fazendo queimar.
Estava cansada. A visita de Mirella despertou algo em mim. Eu não
conseguia identificar o sentimento, mas podia vislumbrar a raiva. Ele teve
uma vida, enquanto eu estive afundada em dor por dez anos.
— Foda-se você e o seu café da manhã — disse, entre os dentes.
Um brilho surgiu em seu olhar, e eu me perguntei o que ele iria fazer
com a minha recusa.
— Vai fazer greve de fome? Não vai aguentar três dias.
Ele começou a andar pelo quarto. Pegou uma cadeira e a puxou para
perto da cama. Sentando-se, cruzou as pernas como um padre diante de um
confidente.
— Está chateada? Eu é que devia.
— Você?
— Seu macho disse que vai chamar a polícia. Mandou dezenas de
mensagens.
Meu macho?
Suspirei, porque ele devia estar louco. Enfim, peguei o sanduíche e
tomei um gole do café. Foda-se a greve de fome que durou poucos segundos.
Repentinamente, decidi que não daria o gosto a Yan de me destruir pela
segunda vez.
— Não faço ideia de quem seja meu macho, mas te garanto que “a sua
mulher” fez pior. Ela ameaçou minha vida.
Yan riu.
— Está falando de Mirella?
Inclinando-se para frente, seus olhos escuros fixaram nos meus.
— Está com ciúme?
— Além de vender, também consome drogas? — rebati.
— Ah, está com ciúmes, sim... Não mudou em nada. Quando está
irritada, fica enrubescida embaixo dos olhos.
— Talvez minha irritação não seja ciúmes, e sim por estar presa.
— Mirella e eu temos uma longa história. Ela me serviu em algum
domingo solitário, quando eu via os outros caras perto de suas famílias e eu
não tinha ninguém.
— Tipo, num acampamento para criminosos?
Esperei para ver se ele negaria ou ficaria surpreso pela minha
sugestão.
— Mirella me aqueceu. De muitas formas, não apenas sexualmente.
Mas, ela não é minha exclusiva. Ela serve a qualquer um do grupo que a
queira.
— Como ela pode aceitar isso?
— Ela cresceu sem família. Eu sei como é, porque eu também passei
pelo mesmo. Mas, eu tive a sorte de nascer homem. Enfim, Mirella começou
a ir aos bailes da comunidade, onde alguns dos nossos traficavam, conheceu
pessoas, começou a se envolver com a Castle. Tornou-se uma queridinha de
Abel, por isso está aqui. Na Ilha só as preferidas de Abel podem permanecer.
— Abel? Quem é?
— O chefe.
— Você realmente é traficante? — indaguei, estava curiosa em saber
mais dele.
— Só assassino. Alguém tem que limpar a bagunça. Este não é um
negócio tranquilo, você deve imaginar.
— Como pode ter mudado tanto?
— Eu precisei. Não tive escolha.
Houve um silêncio pesado entre nós. Eu terminei o sanduíche e o café,
minha mente focada no que ele havia dito.
Ele precisou? O que aconteceu depois de ele fugir de mim e do bebê
que eu esperava?
Uma parte de mim queria saber. Uma parte de mim queria perguntar.
Mas, outra me dizia que, seja lá o que ele passou, foi mais que merecido. E,
acima tudo, nada disso era problema meu.
— Quem é Lorenzo? — ele indagou.
Então me dei conta de que Lorenzo era o “macho” de quem ele falava.
Eu sorri, desgostosa.
— Eu não vou perguntar duas vezes, Cat. Se não responder, eu
facilmente encontro o cara e o mato.
Volvi novamente meu olhar para ele. Sim, ele falava sério.
— É um amigo.
— Amizade colorida?
— Não... Ele é marido de minha melhor amiga. É um irmão.
Por que eu estava justificando? Talvez porque eu temesse que ele
realmente cumprisse a ameaça.
— Ele mandou muitas mensagens para você — apontou.
— Liliana ainda amamenta. Com certeza, Lorenzo está me procurando
para que ela não o faça. Lorenzo é como um irmão para mim – repeti, para
não restar dúvidas.
Ele estudou minha resposta.
— Você não tinha amigos — ele murmurou.
— Quando éramos adolescentes, eu era uma menina massacrada pela
mãe. Agora, eu sou uma mulher, dona do meu destino.
Dona do meu destino? Eu quase ri do meu próprio absurdo.
— Sim, você mudou. Mas, não tanto quanto imagina. Ainda tem uma
réstia do olhar que...
A frase parou no meio. Eu perdi meu ar porque nós estávamos nos
encarando como se ainda fôssemos apaixonados. Mas, a vida nos separou, e
a dor instalada não tinha volta.
Repentinamente, porém, uma mão agarrou meu pescoço enquanto ele
acomodava seu corpo entre minhas pernas. Eu devia lutar, me debater, gritar,
berrar, mas eu não fiz nada, enquanto ele simplesmente saltava da cadeira e
ia até a cama. Yan pressionou sua virilha na minha e eu fechei os olhos ao
sentir sua ereção batendo de leve em mim.
Oh, Deus... Eu não conseguiria resistir.
Eu o odiava..., mas não conseguiria resistir.
Deitei minha cabeça para trás, enquanto a boca de Yan começou a
travar um caminho perigoso no meu rosto. O hálito dele me arrepiou e eu
senti lágrimas se formando nos meus olhos, porque eu queria tanto...
Ele empurrou sua virilha de novo. Sua ponta começou a esfregar na
minha parte de baixo e minha vulva estremeceu e apertou.
— Yan — eu murmurei seu nome.
O som da minha voz, todavia, interrompeu o que quer que estivesse
acontecendo. Então veio o vazio e o novo abandono, quando Yan afastou o
próprio corpo. Meus olhos se abriram no exato instante que ele caminhava
para longe de mim.
— Yan — tentei chamá-lo novamente.
Mas, ele saiu batendo a porta.
23

Ian não voltou naquele dia. Uma parte de mim o agradeceu por isso.
Eu não estava preparada para enfrentar seja lá o que ele despertou. A
verdade é que ele foi o único homem da minha vida. Não conheci outro além
dele. E meu corpo entrou em um ciclo de desejo tão logo ele voltou a se
aproximar.
O beijo.
O cheiro.
O corpo.
Era vergonhoso.
Eu queria me esconder de mim mesma. Cavar um buraco no chão e
entrar nele. Como eu podia ainda sentir meu coração acelerar por esse
homem? Depois de tudo que ele fez?
Pior, agora ele era um assassino, membro de uma facção! Onde estava
meu mínimo de dignidade?
As horas passaram arrastando-se naquele dia terrível. Eu estava
manchada pela desonra. Uma parte de mim justificava que era o fato de estar
presa a ele que me fez sentir tal coisa. A síndrome de Estocolmo ou coisa
parecida. Mas, eu sabia que isso não era real.
Às seis da tarde eu comecei a sentir fome. A única coisa que tinha no
estômago era o sanduíche que ele trouxe de manhã. Claro, eu era
acostumada a jejuns longos para manter meu peso, mas comecei a ter dor de
estômago. Era fome física e psicológica.
Me levantei da cama, ansiosa para esmurrar a porta e pedir que alguém
me trouxesse algo para comer. Eu podia comer um boi inteiro, só pela minha
ansiedade. Subitamente, todavia, quando cheguei a porta, percebi que ela
estava destrancada.
Yan esqueceu de trancar quando saiu apressado, ou isso era um teste?
Um tipo de desculpa para me levar de volta ao porão?
Ele não precisava de desculpas para me levar ao porão!
Abri a porta e dei passos vacilantes para fora. Praticamente, me
arrastando lentamente. Dali, eu podia ouvir vozes animadas e música ao
longe. A cada passo que eu dava no corredor, imaginava que Yan apareceria,
pegando-me em flagrante. Contudo, quando cheguei ao fim do corredor e
percebi uma longa escada me levando para uma área em aberto – um tipo de
salão – eu soube que ele realmente havia se esquecido de trancar a porta.
Era isso. Eu podia sair. Podia fugir. Podia a digna morte me jogando
nas rochas que cercavam a ilha.
Então me pus a correr. Estava um pouco fraca, mas estava
determinada. Desci as escadas, de dois em dois degraus, e na parte inferior
enxerguei uma porta há uns cem metros. Mais uma vez, correr. Minhas
pernas estavam tão rápidas que eu sabia que se tropeçasse voaria no chão.
Todavia, subitamente, trombei em um homem. Ele não era muito alto,
talvez uns cinco centímetros a mais que eu. Tinha a minha idade
aproximada, cabelos escuros e pele pálida.
— Oi — ele sorriu. — Você eu não conheço — apontou. — É nova
aqui?
Ele parecia tão gentil. Repentinamente, contudo, suas sobrancelhas
arquearam e ele pareceu se lembrar de mim.
— Você é Catarina de Vaz.
Por mais que o rosto dele não parecesse deixar a gentileza, e sua
expressão permanecesse doce, o fato de ele saber quem eu era me
desestabilizou. Minha crença de que poderia escapar sumiu diante dos meus
olhos, e eu acabei me esgueirando para os braços dele – só Deus sabe por
que – enquanto chorei como uma criança que havia esfolado o joelho.
Eu estava tão sozinha. Tão triste e desamparada. E ele pareceu tão
educado.
— Você não devia estar aqui — ele murmurou, sem me afastar.
— Me ajude, por favor...
— Olhe, eu até poderia fazer isso. Eu sou filho do chefe, sabe? Mas,
ninguém se mete com Yan. E, vamos ser sinceros, ele tem motivos para te
odiar.
Ele tem motivos para me odiar? Do que diabos ele estava falando? Eu
era a única aqui que podia odiar alguém!
— Você já tentou pedir perdão a ele? Yan é todo nervosinho e tal, mas
ele tem um bom coração.
Pedir perdão? Eu preferia que ele me queimasse viva, tirasse meu
escalpo, do que pedir qualquer desculpa àquele filho da puta.
— Eu acho melhor te levar ao quarto. Você está naquele ao lado do
dele, né? Yan está na festa, mas vou lá pedir para ele ir até você quando...
Ele continuou a falar enquanto eu ia entendendo que Yan estava em
uma festa regada a mulheres enquanto eu estava agonizando no quarto por
culpa dele.
— Cara, você é tão bonita — ele murmurou, enquanto segurava meu
braço e me fazia retornar pelo mesmo caminho que havia feito até então. —
Agora entendi por que Mirella está surtando. Sabia que ela pediu sua cabeça
para meu pai?
Começamos a subir as escadas, quando uma voz poderosa nos fez
travar.
— Éder? — Era Yan.
Eu girei meu rosto para encará-lo. Era a primeira vez que o via depois
do nosso beijo. Meu coração acelerou, e eu senti lágrimas nos olhos.
Eu o odiava, mas uma parte de mim se perguntava se ainda havia
resquícios do amor que um dia nutri por ele.
Temia a resposta.
24

Eu congelei. Não havia como fingir que não havia tentado escapar. O
que Yan faria com essa informação? Ele se daria conta de que estava
perdendo tempo comigo, tentando me punir? Ou voltaria a me trancar no
pior lugar dali, o porão?
Havia ainda uma terceira alternativa: a coleira. Eu não queria pensar
nela. A coleira me dava calafrios.
Então, surpreendentemente, ergui meu queixo. Foda-se! Ele iria me
matar, não é? Ele jurou isso. Mas, eu morreria de cabeça erguida. Esse
homem tirou tudo de mim, ele me traumatizou de tal maneira que nunca
mais consegui me apaixonar de novo. Quem ele achava que era para me
culpar por um aborto de quem era o maior culpado?
Foi minha mãe que me forçou naquela clínica. Me dopou e acabou
com minhas esperanças e sonhos. Mas, não dava para esquecer que quando
isso aconteceu, Yan já havia fugido.
— Éder? — ele repetiu. — O que diabos...?
Seu tom ainda era calmo e frio. Seus olhos não expressavam nada.
Havia uma certa hostilidade, talvez, mas ele parecia um tanto pastoso,
provavelmente bebeu mais do que devia, e isso mascarou sua reação.
— Ah, estou levando Catarina para o quarto — Éder disse, como se
não fosse nada demais.
Como se ele não tivesse me pegado tentando escapar.
Um leve sorriso malicioso se forma nos lábios de Yan.
— Quer participar da festa, Cat? — ele perguntou. — Quer rebolar no
meu colo enquanto a música estoura meus tímpanos?
Ele estava sendo grosseiro, e quando deu um passo para frente, eu
recuei. Pela primeira vez, ele realmente me assustou.
— Vou levá-la para o quarto — Éder voltou a falar.
Ele foi quase... protetor. Trocamos um olhar, e eu sei que expressei
gratidão pela forma como ele sorriu para mim.
— Por que não vamos para a festa? — Yan insistiu. — Acha que é
melhor que as outras garotas? Sabia que quando uma delas fica grávida, ela
não tira? Nenhuma delas mata uma criança inocente. Elas são marmitas, mas
são muito mais decentes que você.
Eu não conseguia responder. Senti que Yan provavelmente queria que
eu dissesse alguma coisa para ele poder apertar meu pescoço, mas nenhuma
palavra saía de mim. Então ele avançou, e teria me pego, não fosse o fato de
Éder ter ficado no caminho.
— Chega! — a voz de Éder rompeu e quebrou a postura arrogante de
Yan.
— Você sabe o que ela fez — Yan murmurou, como se tudo isso fosse
justificado ao amigo.
— Você está tendo a sua vingança. A garota foi sequestrada. É questão
de tempo para a imprensa começar a levantar comentários sobre seu sumiço.
Você está atraindo muita atenção, e nós aceitamos isso porque... enfim...
você é meu irmão, Yan. Mas, tudo tem um limite.
— Você quer que eu a mate? Termine com isso?
— No momento, só quero levá-la de volta ao quarto.
Esse embate é interessante. De alguma maneira, Éder parece ter algum
tipo de poder sobre Yan. Algo como respeito. Eu não conheço a história
deles, mas estou aliviada pela aparente proteção.
Éder se voltou novamente para mim, segurando meu braço. Ele
começou a me guiar para a escada novamente. Eu cruzei meu olhar com Yan
mais uma vez, e pude ver um brilho de diversão nos olhos dele, como se ele
quisesse me dizer que mais tarde ele iria até mim e me faria arrepender por
tudo.
25

Os dias se passaram como se o tempo fosse uma roda sem freios.


Acabei por perder a contagem do tempo depois de algumas semanas. Havia
dias que eu sequer sabia se era dia ou noite, trancada nesse quarto sem
janelas.
Será que a polícia já sabia sobre mim? Será que encontraram meu
carro no estacionamento do supermercado? Lili desconfiaria de que meu
captor era meu ex-namorado que me abandonou grávida na adolescência?
E, caso soubessem, o que poderiam fazer? Eu estava em uma ilha
longe da costa. Como me encontrariam aqui?
Com os dias, uma parte de mim começou a torcer para Éder convencer
Yan de que devia me matar. Era o objetivo final, não era? Eu já estava sendo
por demais torturada, com comida controlada e idas ao banheiro
acompanhada de criadas ou de Mirella, que me estudava com nítido ódio
toda vez que vinha.
A porta destrancou.
Eu sabia que era Yan, apesar não ter aberto meus olhos para vê-lo. Eu
quase podia identificar a forma como ele pisava no chão ou como ar ficava
tenso quando ele aparecia.
— Já foi no banheiro hoje? — ele perguntou.
— Sim.
— E banho?
— Não.
— Então vamos. Eu tenho pressa — ele disse.
O que importava eu tomar banho?
— Está se tornando uma relaxada, Cat — ele murmurou.
Abri meus olhos. O encarei. Ele estava vestindo um terno escuro, o
colarinho aberto mostrando pelos escuros do seu peito.
— Deixe-me em paz — murmurei.
Só queria fechar meus olhos e dormir. Estranhamente, eu estava
completamente exausta apesar de não ter saído da cama mais que duas vezes
hoje.
Subitamente, uma mão agarrou meu tornozelo, me puxando da cama.
Eu caí no chão, gritando, susto e raiva me dominando.
— Seu desgraçado! — berrei, chutando as mãos dele.
— Ótimo, Cat... estava sentindo saudade desse fogo nos seus olhos.
Ele queria alguém a altura para odiar. E queria que eu desse isso a ele.
Que eu fosse a cadela que ele esperava, quando na verdade o único cretino
aqui era ele.
— Eu lamento o dia que me apaixonei por você. Se eu pudesse voltar
no tempo, nunca teria entrado naquela biblioteca.
— Se você pensa assim, o que acha que eu penso? — rebateu.
Silêncio. Os olhos dele pareciam pesados sobre mim, quase afiados, ao
ponto de perfurar. Eu desviei meu olhar dele, e me coloquei de pé. Comecei
a andar em direção ao banheiro, mas ele me interceptou.
— Aqui não. No meu banheiro — ordenou.
Eu já estava sendo frequentemente violada com seus olhares durante o
banho, e também com os olhares dos empregados do castelo. Intimidade e
privacidade parecia não fazer mais parte da minha vida, então eu
simplesmente andei atrás dele, enquanto ele me guiava em direção ao
próprio quarto.
Mais uma vez, admirei como era bonito. Grande. Bem decorado. Mas,
o que mais importava era a grande janela que mostrava que ainda era dia,
talvez um final de tarde. Eu quase chorei quando vi a luminosidade. Fazia
tanto tempo que eu estava trancada que quase me esqueci como era o sol.
— Tire a roupa — ele ordenou, quando chegamos ao banheiro.
Eu podia recusar, mas sabia que não adiantaria de nada. Então, eu
simplesmente comecei a puxar o vestido para cima, mas travei quando o
percebi tirando o casaco e depois a camisa.
— O que está fazendo?
— Vamos tomar banho na banheira.
Eu assisti, enquanto ele desabotoava a camisa, lentamente, seus olhos
fixos em mim. Quando ele a retirou completamente, suas mãos voltaram-se
ao cinto.
— Ficou maluco? — indaguei. — Eu não vou tomar banho com você.
— Vai sim — ele disse, e então baixou a calça.
Eu sei que fiquei enrubescida, porque meu rosto esquentou de tal
forma que eu mal conseguia acreditar. Minha boca abriu quando ele tirou a
cueca.
Ele estava maior. Maior do que eu lembrava. Bom, eu lembrava de um
garoto de dezoito anos, e agora ele era um homem de quase trinta. Seu corpo
agora era mais avantajado, mais musculoso, mas foi seu pau que me
surpreendeu. Ereto, firme, grande e roliço. Pesado.
— Vai ficar me estudando até amanhã ou vai tirar a roupa?
Ergui meus olhos para ele.
— Você vai ter que me matar para me estuprar — disse. — Porque
viva, juro por Deus, decepo seu pau com a boca.
Ele soltou uma gargalhada divertida.
— Se tem uma coisa que homens como eu não toleramos é estupro,
Cat. Você nunca leu jornais? Assistiu noticiário? Estupradores são sempre
mortos por minha gente. Agora, tire a roupa e entre na banheira.
Era um tom calmo. Ainda assim, era firme e eu me vi sem escolha.
Puxei o vestido, o arrancando pela cabeça. Eu estava sem calcinha e sutiã
porque simplesmente ninguém havia me dado peças íntimas para usar, e as
minhas sumiram no primeiro dia.
Eu entrei na banheira. Era enorme, quase uma piscina. Ela borbulhava
água quente, e a hidro aliviou meus músculos tensos. Por sorte, havia
espuma e pude puxá-la para cobrir meus seios. Ele entrou logo atrás de mim,
e sentou-se há uns dois metros, recostando-se para trás, os braços estirados
na borda, o rosto deitado. Ele parecia estranhamente exausto.
Ficamos em silêncio. Estava hesitante se devia dizer alguma coisa ou
simplesmente deixá-lo quieto enquanto aproveitava o banho. Uma parte de
mim indagava quanto tempo ele perderia o interesse em ficar me
humilhando, e quando isso se tornaria, por fim, o assassinato.
Eu já quis morrer antes. Quando perdi meu filho. Quando a dona da
pensão me disse que Yan fugiu. Mas, nada se comparava a esse atual
sentimento de impotência, de estar presa ao lado de quem eu odiava tanto.
— Cat — ele murmurou, me fazendo volver para ele.
Seus olhos estavam abertos agora. Ele me encarava como se me
desnudasse.
— Já sabem que você está desaparecida — ele contou. — Aquela sua
amiga Liliana está fazendo um escarcéu na mídia. O marido dela é muito
poderoso. Você não mentiu quando disse que Lorenzo não era seu amante.
Imagens de uma Lili desesperada me tomaram, e eu fiquei preocupada
com ela.
— Posso mandar uma mensagem para ela. Para dizer que estou bem?
— Mas, você não está bem — ele apontou.
— Ela está amamentando. Não é bom para ela que...
— É a segunda vez que me sugere isso. Não sabia que era tão
preocupada com crianças, quando você já matou uma.
Como ele pode ser tão cruel?
— Sim, Cat... Vou te permitir mandar uma mensagem a tal Liliana.
Para aliviar um pouco as notícias.
Eu me senti tão grata a ele por permitir isso. Quando expressei em
palavras, ele riu.
— Eu só quero aliviar a pressão. Abel acha que devia estar morta, e
Éder pensa que devíamos soltá-la e terminar com isso. Nenhum está me
forçando a tomar uma decisão, mas eu sei o que pensam.
— Então por que não decide logo?
— Não sei — admitiu. — Eu gosto de ver você depois de um dia
cansativo.
Quase ri do deboche.
— Nunca vou entender como você se envolveu nisso.
— Eu tenho sorte — ele apontou. — Pobre, sem estudo, sem família...
Acabar me tornando um membro da Castle foi simplesmente a melhor coisa
que me aconteceu.
Uma vez, no passado, ele havia dito que eu era a melhor coisa que já
lhe havia acontecido. Como tudo nele, essa frase também foi uma mentira.
— Você não sente remorso pelas pessoas que mata?
— As pessoas fazem suas próprias escolhas. Algumas escolhem se
drogar sem pagar, outras escolhem as facções rivais, outras escolhem
simplesmente serem filhas da puta. Eu apenas faço justiça as suas próprias
escolhas.
— Justiça? Está longe disso.
— Esse é o nosso país. Ou você aceita, ou você morre de desgosto.
Ele mudou tanto. Ele não tinha a menor consideração pelas pessoas
que matava, isso ficava claro no seu olhar.
— Você não parece feliz — eu disse. — Faz o que quer, mas não
parece feliz.
— Feliz? — um sorriso se forma no seu rosto cansado. — Felicidade
não existe.
— Para que viver, se não há esperança?
— No meu caso, eu vivi por sua causa.
Suas palavras causaram uma tempestade em minha alma. Os jatos
poderosos da hidromassagem em nada se comparavam com a forma como
seu tom acariciou minha pele. Sei que lágrimas surgiram nos meus olhos,
mas eu tentei subjugá-las.
— O que quer dizer?
— Eu vivi para reencontrar você e conhecer meu filho. Mas, então,
tudo acabou.
Ele estava certo. Tudo acabou, especialmente o sentimento que um dia
eu senti por ele. A lembrança do aborto me corroeu, e eu simplesmente me
esgueirei contra a borda da banheira, fechando os olhos, tentando ignorar a
dor que me tomava.
Tudo acabou. E, estranhamente, nada parecia acabado.
26

Abri meus olhos naquela manhã com a certeza de que havia mais
alguém no quarto. Eu me preparei para encarar Yan enquanto me sentava na
cama, mas foi o olhar de Éder que eu recebi em retorno.
Ele não parecia ameaçador, apesar de eu saber que era um bandido.
— Yan não está. Foi resolver problemas fora da ilha, então eu trouxe
seu café da manhã — ele disse, pousando uma bandeja no meu colo.
Não recusei o que ele me deu. Eu o encarei enquanto erguia a xícara e
tomava um gole do café quente.
— Você também é um assassino?
— Eu? — ele riu. — Não... não... Sou mais um negociante.
De drogas. Um bandido de qualquer maneira.
Houve mais um breve silêncio. Comi enquanto ele permanecia ao meu
lado. Comecei a analisá-lo e compará-lo com Yan para buscar semelhanças.
Contudo, diferente de Yan que estava sempre usando terno escuro, Éder
parecia simplesmente informal. Calças jeans e camisa branca.
— Sabe, eu assisti alguns dos seus vídeos. Você é muito simpática e
gentil diante das câmeras.
— Eu seria agora também, se não fosse uma prisioneira.
— Não foi o que Álvaro disse — riu. — Um dos nossos uma vez
tentou falar com você, e o colocou pra correr.
Havia um breve olhar de gentileza nele, então um vislumbre de
esperança passou por mim.
— Você pode me ajudar? Me deixar ir?
No momento em que ele balançou a cabeça negativamente, a
esperança dentro de mim morreu.
— É muito complicado, Catarina. Eu posso, mas isso custaria minha
amizade de muitos anos com a Fera. E, sabe... Lealdade é uma coisa séria
entre nós.
Eu imaginava.
— Fera... Por que o chama assim?
— Ah, Yan é muito... como eu posso dizer? Quando ele explode de
raiva, ele se torna mais forte e implacável. Eu já o vi matar um homem só
apertando sua garganta. — Ele percebeu meu olhar de horror. — Ah, o cara
mereceu. Foi julgado e condenado pelo nosso tribunal depois de espancar o
enteado de três anos, colocando a criança no Hospital.
— Para isso existe lei. Deviam permitir que a justiça o prendesse e...
— A polícia o prendeu, mas o juiz lhe deu liberdade provisória e ele
fugiu. Então a gente pegou o cara e trouxemos para nosso próprio
julgamento. É assim que funciona no mundo real, Catarina. Talvez gente rica
como você saiba o que é justiça, mas para quem nasceu e cresceu na base da
cadeia alimentar, temos que fazer nossa própria lei.
Assenti. De alguma forma eu entendia isso.
— E o que Yan vai fazer comigo? Acho que já se passou um bom
tempo desde que me prendeu.
— Não faço ideia o que ele pensa. Inicialmente, pensamos que ele a
torturaria até a morte no porão, mas então ele a trouxe para cima, e está te
alimentando.
— Você não pergunta a ele qual é sua intenção? Eu prefiro que ele
mate logo do que me mantenha presa aqui para sempre... Eu sei que vou
ficar louca aqui, se é que já não estou ficando.
— Bom, você merece isso... Você matou o filho dele.
— Por que repetem isso como um mantra?
— E não é verdade? Não fez um aborto?
— Não foi assim que aconteceu. Eu simplesmente não fui até algum
lugar fazer um aborto.
— Não?
Desviei meus olhos dele. Nunca falava desse assunto, e eu nem
conhecia esse homem para falar algo tão íntimo e pessoal. E tão doloroso.
— Talvez explicar o que aconteceu seja seu passo a liberdade. Yan
precisa saber. Não diga nada a mim, mas pense no assunto, e pense em se
abrir com seu ex. Yan pode te perdoar.
— Eu é que devia perdoá-lo. Ele me abandonou, grávida.
— Te abandonou? — as sobrancelhas de Éder se ergueram,
inquisitivas. — Você não sabe o que aconteceu com Yan?
Alguma coisa na pergunta dele me alarmou.
— O que aconteceu? Ele fugiu quando soube que eu estava grávida!
Éder negou com a face. Então eu me preparei para enchê-lo de
perguntas, mas ele se levantou e se foi, antes que eu pudesse continuar.
O que havia naquela história que eu não sabia?
27

Odiava aquela comida. Maçã na salada de batatas parecia algo


ilógico para mim. Nunca misturava doce com salgado, frutas com legumes,
ou coisas assim. E agora eu encarava o prato me perguntando quando eu me
tornei esse fresco que escolhe a própria comida, quando há menos de três
meses, eu passei necessidades na prisão.
— Você sabe — Álvaro disse, enquanto mexia o garfo na massa com
molho branco, outra coisa que eu não tinha coragem de comer. — Quando as
pragas invadem as plantações, a gente tem que usar um bom inseticida — ele
comentou, e Abel deu de ombros.
— Matar todas as pragas não é bom. Depois que os pequenos insetos
são mortos, aquele “inseticida do governo” ´pode querer ir incomodar os
gafanhotos — ele disse, e eu tive certeza de que eles não estavam falando
sobre plantações.
Havia um boato de que uma das maiores facções do Rio de Janeiro
estava querendo meter o bedelho no Sul. Aqui era nosso lugar, e Abel dizia
que tínhamos que proteger o território, mas sem chamar muito a atenção.
— Para isso temos a Fera — ele apontou com a cabeça, me encarando
— Você não vai comer? — indagou, depois de um tempo, percebendo meu
prato intocável.
— Quando eu pedi salada de batatas, não pensei que colocariam
manga e maçã nela — suspirei, chateado.
Abel riu, volvendo para Álvaro.
— Ele é muito chato para comer. Só gosta do básico: arroz, feijão e
bife.
Álvaro riu como se fosse algo engraçado, o que eu não achava que era.
Um dos garçons apareceu com uma garrafa de vinho. Ele começou um
discurso sobre quão velho e de boa safra era aquela garrafa, e Abel assentiu,
pedindo que servisse uma taça. Após experimentar, ele sorriu como se
realmente fosse o maior dos apreciadores da bebida tinta, e então solicitou
que o homem deixasse a garrafa.
Quando o garçom saiu, ele volveu novamente para mim.
— Vamos te trazer uma lista de nomes fundamentais, para você cuidar
deles.
Concordei, porque normalmente era muito fácil.
— Mas, sem chamar a atenção — apontou. — Sem imprensa
envolvida. Você vai pegar um por um, de forma discreta. São
indisciplinados, então não é a pior tarefa que já teve.
Assenti novamente.
— Falando em imprensa, já decidiu o que fará com a loira — Álvaro
indagou, encarando-me.
Eu não sabia o que dizer.
— Vou deixá-la entrar em contato com a amiga para acalmar os boatos
de que foi sequestrada. Catarina dirá que apenas precisava de um tempo para
si mesma.
Repentinamente, som de passos. Olhei rapidamente para a lateral,
minha mão pousando suavemente na pistola na minha cintura. Era Éder,
então abandonei a apreensão e sorri para meu amigo.
— Está atrasado — Abel suspirou para o filho.
Era uma relação complicada, daqueles dois. Éder nunca foi o mafioso
frio e dominador que Abel desejava, e isso os fazia entrar em um embate
frequente. Éder sentou-se na cadeira restante, ignorando o tom do pai.
— Porto Alegre está um caos. Chuva, frio e trânsito interrompido em
tudo que é lugar. Foi difícil chegar aqui — justificou. — Já pediram?
A pergunta era engraçada, porque os pratos estavam na mesa.
— Você é cego, por acaso? — Abel perguntou, entre os dentes. —
Nem parece meu filho.
Éder ignorou o tom do pai, porque era costume dele ignorar as coisas
que o pai dizia. Ergueu a mão chamando um maître e solicitou o menu.
Depois de analisar brevemente, pediu frutos do mar. Eu revirei os olhos,
mais uma comida horrível. Sairia daqui e iria reto em uma pizzaria.
— Estive com Catarina ontem — ele disse, me surpreendendo. —
Ela... é uma pessoa triste.
Sua frase me surpreendeu. Eu vi Catarina revoltada, enojada, até com
medo... Mas, triste?
— A loira? — Álvaro riu, do outro lado da mesa. — Lembro-me de
uma vez ter me aproximado e ela pareceu assustadora.
— Presa e sem esperança, ela agora só parece uma menina acanhada
— Éder comentou.
— Quero conhecê-la — Abel disse. — Quero saber se é tão bela
quanto dizem as criadas que vão lhe servir o jantar.
— Bela... — Éder repetiu a palavra. — Oh, a Bela e a Fera — me
encarou, rindo, e por algum motivo todos os demais riram com esse mesmo
apontamento. — Mas, sabe... Ela comentou algo sobre você tê-la
abandonado grávida.
— Ela mente — eu assegurei, enquanto ele concordava, porque ele
conhecia bem a história.
— No entanto, não foi só isso que ela disse. Ela comentou algo sobre
não ter ido a uma clínica abortar. Deu a entender que aconteceu outra coisa.
A frase fez todos ficarem em silêncio por alguns segundos.
— Tipo, um aborto espontâneo? — Abel indagou. — Por que ela não
falaria então que não fez um aborto? Isso aliviaria muito a raiva de Yan.
É. Por que não falaria?
— Mulheres que sofrem abortos não costumam falar sobre o assunto.
Eu tentei inquirir, mas ela travou diante de mim. Eu até acho que ela queria
explicar, mas não conseguia. As palavras pareciam entaladas conforme ela ia
se lembrando. Eu sei lá, Yan... Você é um cara bruto, mas não é um covarde.
Nunca puniu uma pessoa sem que ela merecesse isso.
— Ainda assim, ela manteve Yan preso por dez anos — Álvaro
lembrou.
Por mais que isso me doesse, não era pela prisão que eu estava
fazendo Catarina sofrer. Era pelo meu bebê.
— Ela pode só estar tentando atrair sua piedade — Abel disse ao filho.
— Não parecia.
— O que você sabe? Qualquer coisa que faça xixi agachado e não seja
um sapo, te manipula — Abel ralhou.
— Eu só quero que tire isso a limpo, irmão — Éder me encarou. —
Porque eu convivi com sua esperança pelo seu filho por esses dez anos.
Depois eu vi sua raiva. Sua vingança. Não sei se você conseguiria sobreviver
ao remorso. Não faça nada que venha a se arrepender, sem ter absoluta
certeza.
Houve um breve silêncio na mesa. Na minha cabeça, essa conversa era
inútil porque eu sabia o que Catarina fez. O policial não mentiu, ele era um
homem sem esperança e realmente falou tudo que fez, sem mascarar nada. E
a própria Catarina me contou que o bebê foi abortado. Ela disse exatamente
isso: “foi abortado”. Não que ela perdeu ou sofreu um aborto.
— Eu vou pensar — prometi a Éder, e ele sorriu, aliviado.
— Vamos voltar ao assunto que importa? — Abel nos interrompeu e,
lentamente, eu balancei a cabeça. — Álvaro, você vai mapear as áreas que os
“insetos” estão começando a entrar.
Éder levantou uma sobrancelha para mim, mas não disse nada. Parecia
que o assunto na mesa não importava tanto quanto aquele outro, no Castelo.
Enquanto Álvaro e Abel discutiam o plano, eu troquei outro olhar com
Éder. Eu teria muito trabalho nos próximos meses, mas precisava também ir
para minha missão ciente se estava deixando uma Cat culpada no castelo,
não mais uma vítima do nosso destino.
28

Estava sentada na cama quando a porta do quarto se abriu. Yan


apareceu, e pelo tempo que havia se passado desde que me trouxeram algo
para comer, eu acreditava que estaria trazendo meu jantar. Mas, ele estava de
mãos vazias. Meu estômago roncou de decepção, mas eu fingi não ouvir
meu próprio som.
— Levante-se. Tire essa camisola e coloque isso — ele atirou sobre
mim um vestido.
Não era como aqueles que eu costumava vestir aqui dentro do quarto.
Não era insinuante, nem sensual. Era apenas um vestido simples de algodão,
com a cintura marcada e a bainha chegando aos joelhos. Ele tinha flores
amarelas bem pequenas em relevo, um pequeno babado de renda em cima.
— Te serve? — indagou.
— Sim — respondi, simplesmente.
Então me coloquei de pé e comece a puxar a camisola para cima. Yan
viu meu corpo tantas e tantas vezes desde que cheguei aqui que
simplesmente perdi a vergonha diante dele. Também, eu sabia que não
adiantava nada tentar esconder-me. Ele me forçaria a me mostrar. Era um
pouco da vingança dele.
Quando terminei de me vestir, ele me guiou para fora. Imaginei que
me levaria ao seu quarto, mas ele simplesmente começou a caminhar em
direção à saída. Uma parte de mim se alarmou: ele me levaria embora? Me
permitiria voltar ao continente? Porém, ele desviou para a direita antes de
sairmos do castelo, e entramos em outro corredor.
E então em outro. E outro. Aquilo era um labirinto sem fim. Todavia,
em seguida chegamos a uma área que parecia um restaurante. Havia várias
mesas postas, mas não havia ninguém em nenhuma delas.
— Nosso refeitório — ele explicou. — Vamos jantar aqui, hoje.
Apesar do breu fora das janelas, eu podia vislumbrar o mar. As rochas.
Um heliponto ao longe era a única coisa iluminada lá fora. Senti lágrimas
nos olhos pelo simples fato de estar vendo alguma coisa fora daquele quarto
em semanas.
— Aqui — ele puxou uma cadeira e eu me sentei. — Seu celular. —
Tirou o aparelho do bolso e me entregou. — Quero que escreva para sua
amiga. E não envie a mensagem antes que eu leia. Não se esqueça que sei
quem é Lorenzo Colombo e a Castle pode armar uma emboscada naquelas
estradas desertas da Chapada dos Guimarães. Se tem algum amor pela sua
amiga, pense bem e não faça bobagens.
Eu não era idiota e sabia que esse Yan era carregado de ódio. Ele faria
algum mal a Lili sim, e eu não faria nada que poderia colocá-la em perigo.
Yan sentou-se ao meu lado. Eu podia sentir o cheiro amadeirado dele,
e a sua respiração quente no meu ombro. Liguei o celular, esperando que
entrasse as mensagens. Comecei a lê-las com lágrimas nos olhos enquanto
via que Lili e Lorenzo me enviaram dezenas de mensagens desde que fui
sequestrada.
Contudo, não era apenas eles que me mandaram mensagem.
Fiquei surpresa com uma mensagem de Sofia. Ela não era meu
contato, mas eu identifiquei que era sua mensagem porque minha mãe tinha
um vício de escrita que jamais esqueceria. Ela sempre separava a letra A do
restante da palavra.
“Estou preocup ad a. Você n ã o s a be o que ele pode f a zer.”
Isso me deu certeza de que Sofia sabia que Yan havia me capturado.
Mas, como ela sabia? Ela andou o monitorando por todos esses anos?
— Quando você sumiu — eu girei o rosto para ele. — Foi porque
minha mãe que te pagou para fazer isso?
Ele me encarou com repúdio.
— Escreva a mensagem a sua amiga — ordenou, pela segunda vez.
Então, eu comecei a digitar:
“Lili... Lorenzo... Desculpe não ter respondido vocês antes.
Simplesmente desliguei o celular. Precisei sumir por um tempo. Aquela
mensagem do meu ex me derrubou. Só preciso de uma pausa. Entro em
contato com vocês assim que melhorar. Por favor, avisem a agência que
estou bem, e retirem o boletim de ocorrência na polícia”.
Entreguei o celular para ele, a fim de que pudesse ler. Cada músculo
do meu corpo queria atacar e rasgar sua garganta por me forçar a mentir para
minha melhor amiga.
O celular foi desligado de novo. Por algum motivo, ele sabia que
ninguém rastrearia a ligação. Talvez eles tivessem aqueles aparelhos que
evitassem os rastreios, ou simplesmente meu próprio celular estava fora de
área e a mensagem só iria ser enviada quando ele voltasse para o continente.
Sua falta de preocupação me derrubou.
— Viu como não sou um cara tão ruim?
— Estou presa, e você acaba de me fazer mentir para minha amiga —
digo.
— Não está presa agora. Vai jantar num lugar bonito e agradável. E
acabou de salvar a vida de sua amiga. Abel mandaria matá-la se ela não
parasse de te procurar. Mas, esperamos que a mensagem a conforte e a ajude
a superar.
Uma mulher surge ao fundo, trazendo uma bandeja. Não é Mirella e
isso me alivia. Não estou no clima de aguentar o surto enciumado dela. Sou
servida com arroz de carreteiro e pão. É uma comida muito simples, mas
vejo que Yan parece muito satisfeito ao vê-la. Então eu me lembro que ele
nunca conseguia variar o que comia. Quando almoçávamos juntos na
adolescência, eu experimentava tudo que podia no centro histórico, mas ele
nunca mudava de arroz, feijão e bife.
— Vou te transferir para o quarto do outro lado ao meu — contou.
— Por quê?
— Tem janela. Não abre, mas poderá ver o sol.
Novamente, meus olhos lacrimejaram. Nunca pensei que daria tanto
valor a simplesmente ver o mundo lá fora.
29

Ele me guiou pelo caminho de volta até o corredor conhecido. Não


cruzamos por ninguém, apesar de eu ouvir vozes ao longe. Aparentemente,
aquele lado do castelo era exclusivo a Yan.
Se eu não estivesse tão abatida, poderia ter admirado o quão belo é
esse lugar. O piso, em especial, de mármore, era quase um espelho de tão
bem lustrado. Talvez por isso parecesse tão frio. Claro, estávamos no
inverno, mas no porão a temperatura era tão quente que queimava.
Cruzamos pela minha antiga porta, e então pela dele. Virei a cabeça na
direção oposta e notei outra porta ali. Ele a abriu, e eu pude vislumbrar um
quarto bem mais acolhedor daquele que eu estava antes. A simples visão da
janela, e da vida lá fora, me fez acelerar o passo naquela direção.
Quando cheguei diante da abertura, ergui os dedos, como se quisesse
tocar a vida que meus olhos viam. Mas, o vidro gelado me lembrou que eu
ainda era uma prisioneira, e que agora eu devia ser grata por simplesmente
olhar.
A porta de entrada fechou. Olhei naquela direção, esperando me
encontrar sozinha, mas Yan ainda estava ali, parado diante de mim. Ele
parecia ter alguma coisa para me dizer, mas não conseguia.
— Por que você matou meu filho? — ele indagou, sua frase me
surpreendendo e me fazendo explodir depois de tantos anos.
Primeiro foi o choro entalado que ainda me tomava a noite, antes de
dormir. Depois a decepção pelo que ele me fez. E então aquela imagem de
sangue que sempre surgia quando eu ousava pensar no assunto.
— Cala a boca! — eu gritei.
Como ele ousava me questionar qualquer coisa? Esse filho da puta me
abandonou!
— Eu preciso saber. Me diga por que você não gerou e deixou num
abrigo, ou deu para a adoção? Não que fosse a melhor opção, mas porque
escolheu matar meu filho?
Então eu corri na direção dele. Eu só queria machucá-lo, e não
conseguia captar mais nada. Só precisava enfiar minhas unhas na pele dele,
arrancar sangue, machucá-lo com minhas próprias mãos.
Eu comecei a bater sem controle. Sem um ritmo definido. Percebi que
isso o surpreendeu porque ele tentou me segurar, mas não estava
conseguindo.
— Pare! Está histérica! — gritou.
Ele não tinha visto nada!
Todos esses anos de dor e dor... Eu só queria punir alguém. Um dia
jurei me vingar de Sofia, mas nunca consegui. Nunca tive coragem. Uma
parte de mim segurava minha vontade, uma parte de mim ainda dizia que ela
era minha mãe. Era quase irônico que eu pensasse assim, mas não conseguia
evitar.
No entanto, a dor que eu sentia por Yan era completamente diferente.
Ele não poderia ter evitado o aborto, mas ele poderia ter estado lá para mim.
Contudo, Yan fugiu. Se eu tivesse tido nosso filho, teria criado o bebê
sozinha.
E agora ele aparecia querendo ser pai?
Então eu simplesmente bati. Socos, chutes, empurrões, até perder
minhas forças e cair no chão, convulsionando em lágrimas. Meu bebê foi o
único momento de esperança que eu tive na minha vida inteira, e foi tirado
de mim. Por Sofia e por ele.
— Me diga, Catarina... Eu preciso saber — ele repetiu.
Eu o olhei entre as lágrimas. Por que diabos ele não me deixava em
paz? Desabei para o lado, minha cabeça no chão frio, meu rosto molhado,
meu choro me tomando com tanta força que eu não conseguiria falar, mesmo
que quisesse.
— Fale para mim, Catarina — ele ordenou, mais uma vez.
Mas, ele também parecia tão cansado.
Então, eu vi suas lágrimas. Ele estava sentado no chão ao meu lado, os
joelhos erguidos, a testa descansando sobre eles. Sua franja caiu para frente,
e eu pude ver, bem brevemente, uma lágrima caindo sobre sua face.
Havia tanta dor em Yan que me confundiu. Mas, ele não tinha como
estar sofrendo mais do que eu. Ninguém podia sentir o que eu sentia.
Então, ficamos ali, um ao lado do outro. O tempo pareceu parar, eu
quase deixei de ouvir o som das ondas batendo nas rochas próximas. Havia
um tempo, quando ainda éramos jovens cheios de sonhos, que nós também
ficávamos assim, simplesmente em silêncio, um ao lado do outro. Era como
se o amor que sentíamos – que eu sentia, porque ele era incapaz disso! –
fosse palpável quando simplesmente ficávamos em silêncio.
Deus, como eu amei esse homem. Mais que tudo nessa vida
desgraçada. Eu teria feito qualquer coisa por ele. Eu teria ido até o fim do
mundo por ele. Teria ficado ao seu lado não importava as dificuldades.
Vivi uma vida de luxo depois de ir embora do Brasil. Conheci a
Europa e até fiz alguns passeios turísticos na Ásia. Eu fiz compras em Nova
York, e visitei museus na América Central. E, ainda assim, nunca fui tão
feliz do que nos momentos que vivi ao seu lado naquela juventude
abandonada.
Momentos falsos.
O meu choro voltou quando ele se virou para mim. Yan me segurou
enquanto se erguia, me levando com ele. Ele me levou até a cama, e me
colocou lá.
— Eu te odeio — disse a ele, mas era tão mentira.
Tão mentira que queimou minha língua e me fez chorar mais.
Porque... simplesmente... eu o amava.
Ele me abandonou grávida e voltou dez anos depois, me sequestrou,
me humilhou, me machucou, e aqui estava eu, certa de que ainda o amava.
Provavelmente eu era só uma vadia distorcida, pior do que as
mulheres que os serviam nesse castelo.
Nós nos encaramos novamente. Eu pensei que ele fosse pedir de novo
para eu relembrar o pior momento da minha vida, mas ele não disse nada.
Yan simplesmente baixou sua fronte e tomou meus lábios nos seus.
Não um beijo firme ou duro, do homem ruim que ele era agora. Era
como se fosse o meu antigo namorado, tão gentil e doce. No fundo do meu
coração, eu pude ouvir sinos batendo, e isso me trouxe...
Paz...
30

A verdade é que eu busquei desesperadamente uma desculpa para


amá-la. Qualquer coisa que desculpasse os sentimentos que eu tentei, de
todas as formas, afogar. Dez anos longe dela pareceram nada significarem
enquanto seus braços cercavam meu pescoço e ela abria a boca, me
recebendo em seus lábios.
Subitamente, nada mais importava. O que ela fez. O que eu fiz. Tudo
perdeu o significado. Nunca senti por mulher nenhuma o que sentia por ela,
e isso voltava com toda a força agora, para mim.
Quando Éder me disse que as coisas não pareciam ser como eu
acreditava que fossem, me agarrei nessa ideia com toda a esperança. Então
eu vim para o confronto. Mas, Cat não conseguia falar. Eu percebia o
desespero, a dor tão profunda, e então, mesmo sem uma desculpa que
justificasse suas ações, eu acreditei nela.
Por esse curto momento. Por esse breve momento.
Por esse instante com ela nos braços, acreditei nela.
Pus minhas mãos em cada lado de sua cabeça, segurando-a. Por um
segundo, eu a encarei. Lágrimas se misturavam a minha saliva em sua boca.
Estava vermelha, de vontade, e de tristeza. Eu podia aplacar essa dor.
Mesmo que ela não merece, eu não conseguia fugir agora.
Subi sobre ela. Suas pernas envolveram minha cintura e ela apertou,
puxou-me para ela, e então arqueou as costas, o corpo cada vez mais colado
ao meu.
— Você é tão linda, Cat... — Murmurei.
Ela gemeu quando desci novamente meus lábios. Raspei minha boca
na sua, deslizando por sua pele, seu pescoço e então mordi o lóbulo da sua
orelha. Ela arqueou de novo, sua pele inteira estava arrepiada e suas mãos
agarraram minha camisa e a puxaram com força, quase ao ponto de arrancar
os botões.
Eu sabia que ela precisava do contato da pele, então coloquei de
joelhos rapidamente entre as pernas dela e tirei minha camisa. Suas mãos
apalparam meu peito, seus dedos se enroscaram nos meus pelos, e eu senti
que ela arfava em necessidade, seu peito subindo e descendo
apressadamente.
Era uma visão dos deuses, minha gatinha loira, linda, me querendo
mais uma vez.
Estendendo a mão para ela, agarrei a barra do seu vestido, e o puxei
pela cabeça. Ele saiu rapidamente, revelando o corpo nu de Catarina. Seus
seios pesados estavam eretos, o bico deles exposto sem vergonha.
Claramente, ela queria. Ela não estava manipulando a situação para me
dominar com sexo. Ela realmente queria.
Meus olhos desceram para seu ninho loiro e percebi seus cachos
brilharem de umidade. A minha vontade era me curvar agora e beber seu
suco, mas Catarina me puxou para outro beijo. E outro. Nenhum parecia
suficiente.
Segurei seus peitos pesados. Ela parecia envolta em uma aura sexual
irresistível. Deslizei minhas mãos para cima, e envolvi sua garganta.
Era tão fácil apertá-la nesse momento. Eu só precisava forçar meus
dedos e tudo seria vingado. E acabaria.
Nosso olhar se encontrou. Eu soube, pela forma como Cat me encarou,
que ela talvez esperasse que eu fizesse isso. Era meu plano inicial, não era?
Torturá-la e matá-la. Mas, o que aconteceu saiu do controle. Eu
simplesmente não tinha coragem de ferir Catarina. Ela tinha esse poder sobre
mim. Ela conseguia me fazer fraquejar como se eu ainda fosse o menino que
um dia se encantou por ela entre prateleiras de livros empoeirados.
— Me mate — ela implorou.
— Eu não consigo — expliquei.
— Por que não?
— Porque eu ainda te amo...
Ela convulsionou num choro sentido. Minhas mãos abandonaram seu
pescoço e se esgueiraram nas suas costas. Eu a puxei para mim, num abraço
de puro carinho.
Meu sangue bombeava meu pau com intensidade. Minhas veias
estavam pegando fogo. Eu precisava me aliviar com desespero. E ainda
assim, tudo que consegui fazer foi colocar Cat entre meus braços e segurá-la
firme.
31

Quando meu choro acalmou, ele me soltou. Foi até os pés da cama,
se colocou de pé e tirou a calça. Seu mastro firme surgiu diante dos meus
olhos, me deixando faminta.
Ele se tornou um homem glorioso. Firme. Seu corpo era grande,
musculoso. Havia pequenas cicatrizes pelo seu peito, o que me indicou que
ele já se envolveu em brigas, e eu me perguntei o que ele fez nesses dez anos
que esteve longe de mim.
Eu quis perguntar, mas sabia que não era o momento. Ele voltou para
mim, e então eu vi uma pequena marca embaixo do seu mamilo esquerdo.
— O que é isso? — indaguei.
Era uma tatuagem, claro. Muito pequena para se ver de longe. Quatro
pontinhos pequenos e um borrão abaixo.
— É uma patinha de gato — ele murmurou.
Meus olhos se elevaram para ele. Seu pau ereto e orgulhoso derramava
pré-sêmen sobre minha barriga. Estávamos totalmente sexuais, e ainda assim
eu sentia meu coração balançar por algo muito mais intenso que sexo.
— Por que você me abandonou, Yan? — indaguei. — Você não faz
ideia de como eu sofri...
O olhar dele arqueou, como se ele não entendesse o que eu estava
falando. O que era ridículo, porque ele sabia o que fez.
— Cat... eu...
Eu não podia ouvir desculpas esfarrapadas. Não agora. Não quando
ainda doía tanto. Então eu o interrompi segurando seu eixo. Apertei. Ele
gemeu alto, dizendo meu nome. Uma sensação poderosa despontou em mim.
— Ah, Cat... — Ele sussurrou, observando minha mão descendo para
cima e para baixo em seu comprimento.
Seu sêmen lubrificava a ação e era tão molhado e macio, que eu senti
minha boceta latejar, antecipando como seria sentir novamente esse sexo
incrível em mim.
Agarrando meus pulsos, ele tirou minhas mãos de seu pau, colocando-
as acima da minha cabeça. El voltou a me beijar, seus lábios se movendo,
rastreando minha pele. Minha face, meu pescoço, meu peito. Ele soltou
minhas mãos enquanto descia mais abaixo. Minhas coxas também foram
acariciadas pela sua boca.
Eu gritei de antecipação, quando ele tomou meus grandes lábios entre
a boca. Minhas pernas tremiam e se apertaram na lateral do seu rosto. Yan
beijou meu monte, deslizando um dedo para dentro de mim, gentilmente,
como fez na nossa primeira vez.
Ele abriu os lábios da minha boceta. Sua língua entrou no buraco,
cavou, de novo e de novo, enquanto também raspava no meu clitóris. Eu
gritei, sua língua circulando, batendo, empurrando.
Era tão bom, tão bom... Eu pensei que jamais sentiria essa sensação de
novo.
— Yan! — implorei.
Seu dedo surgiu e começou a me foder. O mesmo ritmo cadenciado
que me deixou em suspense. Meu corpo pareci que iria entrar em combustão
quando ele puxou o dedo e o substituiu novamente pela língua.
Eu sabia o que ele queria. Yan gostava de chupar meu gozo. Minha
boceta pulsou no pensamento, e latejei com força, vibrando num ritmo
explosivo que logo me fez choramingar de tesão.
Ele mamou até eu gozar. Minhas mãos se agarraram em seus cabelos,
enquanto ele chupou com força, só me fazendo desejar mais e mais, e ainda
mais do que aconteceu.
— Seu gosto ainda é o mesmo, Cat... — Murmurou.
Yan subiu para cima. Nós nos beijamos. Meu gosto estava em sua
boca, e eu o experimentei. Isso era tão sexual que gemi de paixão.
Yan segurou minhas coxas nesse momento, erguendo-as e as puxando
para sua cintura. Ele alinhou seu caralho na minha entrada, e num único
golpe, ele invadiu. Não foi brutal, mas foi tão poderoso que eu inalei de
surpresa, enquanto o puxava para mim, apertando-o nos braços, adorando a
sensação de tê-lo novamente.
Nós nos encaramos. Não dissemos nada um ao outro, enquanto ele
começou a bater em mim, para dentro e para fora, cadenciado, uma doce
tortura que me fez latejar de novo.
Meu corpo voltou a enlouquecer de prazer. Ele pulsava no ritmo das
estocadas. Era tão bom, mas nada se comparava a forma como nós nos
observávamos, quase sem piscar, enquanto Yan se adiantava em meus sucos.
Era tão íntimo. Mais que sexo, intimidade.
Uma pressão conhecida surgiu. Nossos corpos se adiantaram,
acelerando o ritmo. Seu pau pareceu engrossar, ficar maior, e eu gemi de
antecipação, implorando por ele, implorando que ele me levasse até o alto do
penhasco da paixão.
Yan gemeu. Seu pau então martelou firme e ele soltou uma
exclamação que lembrava um palavrão, enquanto começou a despejar em
mim. Eu gozei pela segunda vez, sentindo seu pau martelando no meu útero,
apertando, e então explodindo com ele.
Foi então que eu pensei na vez que fiquei grávida. Também fizermos
sem camisinha, simplesmente porque éramos dois idiotas e porque ele a
rasgou quando a colocamos errado. Daquela vez, eu também senti seu calor
molhar tão fundo que eu soube que estávamos conectados.
E agora?
Aconteceria também?
Eu nunca fui num ginecologista para saber como estava meu útero.
Depois do que fizeram comigo, eu não conseguiria ficar de pernas abertas
para nenhum profissional de saúde. E eu também pensava que nunca mais
faria sexo, então estava tudo bem.
Yan desabou sobre mim. Seu pau ainda na minha boceta, que parecia
terminar de ordenhá-lo.
Eu pensei em um novo bebê de Yan, mas isso era... não... não podia
acontecer!
Eu não queria passar por tudo de novo. Outro abandono. Outro aborto.
Então eu o empurrei. Seu pau fez um som de “Plot” quando saiu de
mim, e ele pareceu me encarar em questionamento, enquanto eu
simplesmente saia da cama e juntava as roupas dele no chão.
Eu não precisei dizer nada enquanto as atirava nele. Yan entendeu o
recado imediatamente.
— Cat... — Ele tentou.
Juro que tentou.
Mas, eu estava enojada de mim mesma por ter ido para cama com ele.
— Eu só quero que me deixe em paz — disse.
E era tão sincero.
Por que ele voltou? Eu reconstruí minha vida. Eu até consegui voltar a
confiar nas outras pessoas e conquistei uma amizade.
Por que ele voltou? Não bastava o que já fez?
— Me deixe em paz — repeti — Eu imploro. Por tudo que é mais
sagrado... Se existe alguma coisa no seu coração, eu imploro que me deixe
sozinha.
Então ele se levantou.
Eu me virei de costas, enquanto ele se vestia. Quando ele enfim abriu
a porta e se foi, eu desabei no chão, um choro incontrolável, por mim
mesma, e pela menina que um dia eu fui.
32

Ergui a mão, levando o cigarro a boca. Traguei lentamente, enquanto


o movimento ao meu redor parecia estagnado por respirações suspensas.
Eu não queria pensar. Simplesmente, queria esquecer a imagem de
Catarina preenchendo tudo, Catarina gemendo meu nome, Catarina me
amando...
Como eu sou idiota. Um imbecil que caiu de novo na mesma
armadilha.
Fechei os olhos, terminando o cigarro. Puxei um pequeno isqueiro de
lata do bolso, e apaguei o resto do cigarro nele, guardando a bituca. Nunca
deixava rastros de DNA onde trabalhava, mesmo ciente que nenhum policial
se importaria de recolher restos de cigarros perto de um corpo de alguém
sem importância.
— O que a garota fez? — olhei para Álvaro, que me encarou de olhos
arregalados.
Uma vez ele me disse que era apenas um vendedor, um comerciante.
Claramente, isso ficou nítido na forma como ele parecia incomodado de
estar aqui.
— Eu... ela... ela...
— Ela comemorou a morte de um dos nossos no Facebook — Tiago,
um dos caras de Álvaro, explicou.
Era um problema, essas guerras de facção. Sinceramente, considerava
ser apenas ganância, já que havia espaço e usuários para todos. Por mim,
cada um assumia um lugar e cada um ficaria no seu canto. Mas, isso não
parecia fazer parte dos desejos dos líderes, já que enviariam um grupo para
uma área que nós dominávamos. Um dos homens de Álvaro foi morto nesse
embate.
— Ela estava fazendo vídeos ao lado do namorado, rindo da morte de
um dos nossos.
A garota choramingou e eu a encarei. Tinha uns dezesseis anos, talvez.
Ela estava claramente apavorada. Já havia implorado pela vida dezenas de
vezes naquela noite, o que era uma perda de tempo, porque no momento que
ela se envolveu com um traficante, já estava morta.
Esse é o problema das drogas. Ela deixa rastros fortes demais para
serem apagados com um simples pedido de desculpas.
— É uma menina — Álvaro comentou às minhas costas. — Talvez só
um susto...
Minhas emoções foram varridas em um turbilhão. Eu mal conseguia
pensar.
— Você sabe... eu sou só um comerciante — Álvaro repetiu a frase de
sempre.
Eu realmente gostava dele. Sempre bem-vestido e com trejeitos
estranhos. Eu achava que ele era gay, mas não tinha certeza, já que já o vi
com garotas. Talvez bissexual ou alguma coisa não assumida ainda. E, acima
de tudo, muito humano. Ele sempre ia me visitar na prisão quando Éder não
podia ir. Ele me levava pedaços de bolos que sua mãe fazia. Me animava
contanto histórias de esperança, ou me trazia livros para eu passar o tempo.
— Você é um comerciante. Eu não sou. Nunca vendi algo na vida.
Meu papel aqui é outro — o lembrei. — Abel quer que deixemos um recado
para o namorado dela.
— Não! Pelo amor de Deus, não! — ela gritou, nem sei como ainda
tinha forças, depois da surra que Tiago lhe deu.
Era uma menina, Álvaro repetiu. Suspirei pesadamente, enquanto a
observava. Tão jovem, cheia de vida e futuro. Por que se envolveu nessa
merda toda? Eu não tive escolha, mas ela podia ter ficado de fora.
— Ligue para Abel e peça você mesmo — disse, e ele assentiu
rapidamente, enquanto se afastava.
Encarei novamente a menina. De alguma maneira, o olhar desesperado
dela me lembrou o de Catarina. Eu desviei meu corpo da cena, e volvi na
direção da mata. Estávamos em uma clareira de uma pequena floresta entre
Porto Alegre e Viamão. Era uma área nativa extensa, e quando a
matássemos, levaria um certo tempo para encontrarem o corpo.
Talvez só encontrassem os ossos. Talvez nem procurassem.
Quando capturei Catarina, eu pensei em torturá-la por meses, e então
matá-la e jogar seus restos em alguma BR. Deixá-la apodrecer por tempo,
até que alguém a encontrasse. Mas, depois de vê-la, eu sabia que não teria
coragem.
A raiva ferveu dentro de mim.
Eu era um homem fraco, buscando pelo olhar dela. Torcendo para que
ela justificasse de alguma forma o que fez, quase disposto a perdoá-la. Como
eu podia? Meu filho nem teve a chance de nascer por causa dela, e cá estou
eu, completamente absorto em sua imagem, quase ao ponto de...
Aceitar...
Que...
Álvaro retorna. Ele me encara com aquele mesmo olhar besta de
quando seu time perde um Grenal.
— Que merda cara... — ele deu de ombros. — Abel disse que...
— Eu sei o que ele disse. Abel não tem piedade de ninguém. Lembre-
se de que eu conheci Éder porque ele deixou o próprio filho ser enviado para
uma prisão cheia de rivais apenas para lhe ensinar uma lição.
Eu podia não salvar a menina, mas podia lhe dar um final menos
traumático. Então simplesmente caminhei rapidamente na direção dela,
puxei a pistola e atirei. Tão rápido que ela nem teve tempo de perceber que
não foi perdoada.
A cabeça dela pendeu para trás, seus olhos abertos sem vida me
encararam, enquanto o sangue escorreu da sua testa até seus lábios, tingindo-
os como um batom.
— Eu tinha que ter gravado — Tiago ralhou.
Era verdade. Abel queria que filmássemos o assassinato. Agora era
tarde demais.
— Grave o corpo dela e jogue as imagens para todos verem —
ordenei. — Faça isso com o celular dela — expliquei. — Mande as imagens
para as amigas e a família. Mande para o namorado também. Depois destrua
o chip para não localizarem.
Eu comecei a me afastar da cena, enquanto Álvaro caminhava ao meu
lado. Ele estava apavorado, claramente em pânico.
— Você é um traficante há tantos anos e é a primeira vez que vê?
— Eu só organizo as vendas, os caixas, eu gerencio os vendedores. Eu
nunca me envolvi...
Sorri.
— Essa é a realidade.
— Uma parte dela. Essa é só a sua parte. A minha é ajudar gente pobre
a ter dinheiro.
— Você não vai me convencer que é um filantropo, Álvaro.
— As pessoas me respeitam nas comunidades. Os pastores vem falar
comigo para fazerem cultos nas ruas, as mulheres pedem minha proteção
quando precisam sair de madrugada para trabalhar. Os bailes só são
permitidos até a hora que eu deixar. Essa é a minha realidade.
— A minha é a suja — apontei. — A minha é aquela que permite que
você continue a viver em sonhos fantasiosos. Porque a realidade é facção
contra facção, vingança e assassinato. Quando o namorado dela matou um
dos seus, ele abriu espaço para que sua autoridade fosse questionada. Se a
gente não vingar, logo ele mata você e toma seu lugar.
— Quando vai matá-lo?
— Primeiro vamos deixá-lo ficar apavorado com a cena da namorada
morrendo. Tiago vai dizer que estamos indo até ele. Vou permiti-lo acreditar
que vai ser pego por um grupo de Abel. Ninguém além da Castle sabe que
Abel tem um assassino solo, focado apenas em matar.
Chegamos à estrada de terra, vazia. Nosso carro estava escondido atrás
de algumas árvores e ficamos nele, esperando Tiago voltar.
— Você já pensou em sair dessa, Fera? — Álvaro indagou.
Eu observei a noite em breu, sem estrelas. O vento forte e gelado batia
contra a copa das árvores.
— Eu disse a Abel que, quando saísse da prisão, ia buscar meu filho. E
se Catarina me aceitasse de novo, eu deixaria tudo para viver ao lado dela e
da criança. Abel disse que entendia e respeitava. Mas, tudo mudou quando
eu soube que meu filho não existia. Então, não penso em sair. Não tenho
nada além da Castle.
— E a loira? Se vocês... sei lá... voltassem.
— Não — rebati, firme.
Não... não aconteceria. Não queria ser manipulado e machucado por
ela mais uma vez. Ainda assim, quando ela se entregou para mim, eu não
pensei em mais nada. Apenas em Cat... e... talvez... termos uma nova
família...
Neguei com a face. Mais para mim mesmo do que para Álvaro.
A vida não voltava atrás. Não dá pra mudar o passado. Apenas seguir
em frente, até eu mesmo ser vítima de alguma facção, e terminar minha
agonia que chamava de vida.
33

Eu me sentei no chão do banheiro. O sangue escorria pelas minhas


pernas, e só então eu me lembrei do meu ciclo menstrual. Tantas coisas
aconteceram, especialmente meu sequestro, que o estresse simplesmente
inibiu meu corpo de menstruar. Além disso, desde o aborto, meu ciclo nunca
foi regular.
Resvalei minha cabeça para trás, chorando.
Como eu faria, agora? Eu poderia colocar uma toalha, mas eu nem
tinha uma calcinha para segurar o pano.
Quando acordei, depois de horas que Yan se foi e depois de horas
chorando contra o travesseiro por causa dele e de como me entreguei a ele,
senti minhas pernas molhadas por algo que não se assemelhava ao gozo que
ele liberou.
Por sorte, a porta do banheiro estava aberta. Nem sempre eles a
deixavam, temendo que eu me matasse de alguma forma lá. Eu fui até o
banheiro, o sangue já escorria até meus pés, e tentei me lavar, mas era inútil,
porque o sangue cairia por cinco dias e nada do que eu fizesse o cessaria.
Chorei como uma criança, não como uma mulher.
Isso fez com que eu mal conseguisse pensar na besteira de ter feito
sexo com Yan.
Subitamente, um som de passos. Ouço a porta do quarto abrir.
— Catarina? — alguém pergunta.
Não é Yan. É Éder. Eu estava envergonhada por estar nua, sentada no
chão do banheiro, sangue escorrendo, eu só queria morrer. E, ainda assim, eu
nem me mexi.
Ele atravessou o quarto. Pela sombra, o vi colocando uma bandeja
sobre o armário, e rumando até o banheiro. Quando ele entrou, eu só me
encolhi, numa vã tentativa de esconder minha nudez.
— O que aconteceu? Você está machucada?
Claro que ele viu o rastro de sangue, pingos que iam da cama até o
banheiro.
— Minhas regras desceram. Eu não sei o que fazer.
Vi a piedade nos olhos dele. Éder nem parecia um bandido, enquanto
me ajudava a ficar em pé, e me levava até o chuveiro.
— Tome um banho quente. Eu vou arrumar roupas quentes e algum
absorvente, ok?
Eu entrei no box. Liguei o chuveiro e fiquei embaixo da água quente,
sentindo minhas lágrimas serem lavadas, como o resto do prazer de Yan, e o
sangue que não parava de descer. Estava com cólica e inclinei meu corpo
para minha barriga receber mais a água quente.
Nem sei quanto tempo fiquei no chuveiro. Pareceu um bom tempo até
Éder voltar. Ele trouxe uma jovem com ele, que trocou minha roupa de
cama, e entrou no banheiro, deixando lá uma calça jeans do meu tamanho e
um camisa com blusão. E, ainda mais especial, uma calcinha.
— Tem dois pacotes de absorvente daqui — ela me disse. — Se
precisar de mais, é só falar. Temos um pequeno estoque — sorriu para mim.
Eu agradeci, muito emocionada. Era a primeira mulher que sorria para
mim, aqui.
Terminei o banho, me sequei. Limpa, enfim, pude me proteger da
melhor forma.
Quando voltei ao quarto, encontrei Éder sentado perto da janela.
— Sente-se melhor?
— Nem tenho como agradecê-lo — eu murmurei.
Porque era verdade. Eu nem sei o que teria feito se Éder não tivesse
aparecido. Provavelmente ficaria sentada no chão do banheiro em pânico e
desespero.
— Você explicou a Yan aquilo que comentamos? — indagou.
Neguei. Francamente, eu não entendia porque precisava explicar
qualquer coisa para Yan. Eu não devia satisfação àquele desgraçado. Estava
exausta. Yan acabou comigo, e agora ele voltava e se atrevia a...
Me sequestrar. Me amar...
Olhei a cama arrumada. Traços da noite quente já não estavam mais
ali. Era uma sorte. Eu só queria me deitar e ficar quieta e quente.
— Onde está Yan?
— Trabalhando — ele me contou.
— Matando gente?
— É o serviço dele — Éder deu de ombros.
Eu olhei para a bandeja que Éder trouxe quando entrou no quarto. Fui
até ela. Estava dolorida, mas com fome. E comer me faria não pensar.
— Você precisa explicar a Yan o que aconteceu, Catarina. Você não
matou o bebê, não é?
Encare-o. O fato de Éder ter me ajudado nesse momento tão
complicado, me fez balançar a cabeça, admitindo algo que nunca
conversava.
— Me deixaram para morrer — balbuciei, mas as lágrimas me
tomaram e eu não consegui dizer nada.
Éder levantou-se e cruzou o quarto. Ele me abraçou, e eu me permiti
ficar nos seus braços fortes, por algum momento.
Falar me fazia reviver tudo aquilo de novo. Mas, ainda assim, foi o
que eu fiz. Narrei a Éder como fui drogada, levada até uma clínica, violada.
Narrei como o aborto quase me matou, e como eles não me levaram a um
hospital para não assumirem o que fizeram. Expliquei que fiquei semanas
deitada numa cama suja, febril, e de como me recuperei com dificuldades.
E, por fim, contei-lhe como procurei por Yan, e como soube que ele
me abandonou, fugiu da responsabilidade.
Ao ouvir meu último relato, Éder me afastou. Ele parecia chocado, eu
não sei se por tudo que eu disse, ou por saber o que o amigo fez.
Minha esperança de que ele me deixasse sair reviveu. Contudo, ela foi
abandonada quando Éder se afastou em direção à porta.
O quarto ficou em silêncio quando ele foi embora.
O silêncio era um triste companheiro.
34

— Que merda... Por que tão jovens? — murmurei para mim


mesmo, enquanto observava o movimento em uma das bocas rivais.
Ao contrário do que eu imaginei, o traficante que namorava a garota
que eu matei sequer ficou de luto por ela, substituindo-a por outra assim que
recebeu o vídeo de sua morte.
Eram frios. Não sei se isso era resultado de algum tipo de psicopatia,
ou se era apenas resultado da merda de vida miserável que sempre tiveram.
Eu estava no segundo piso da casa de um dos nossos informantes, que
morava de fronte àquela boca. O homem estava muito feliz em colaborar
para se livrar daquele ponto do tráfico, sempre barulhento e incomodativo.
— Antigamente, um dos homens de Álvaro vendia naquela casa. E a
gente nem via o cara. Era respeitador. Diferente desse daí — me contou,
enquanto eu acenava com a face, observando discretamente pelo vão da
janela.
O cara sabia que estava visado de morte. Por isso, ele não saía da casa.
Não que invadir aquela residência de tijolos sem reboco fosse algo
dificultoso, mas Abel gostava de discrição. Então, eu devia esperá-lo sair, ter
certeza de quem era, e matá-lo com um único tiro. Depois, ir embora sem
alarde.
Meu telefone vibrou. Peguei-o enquanto observava o visor.
Éder.
— Estou ocupado — disse a ele, quando atendi.
— Yan, você está errado sobre Catarina — ele me disse, rapidamente,
o que me fez arquear as sobrancelhas.
Lá fora, pude ver a cabeça do rapaz surgir em uma janela. Ele olhou
para os dois lados. A nova namorada apareceu ao seu lado e lhe disse
alguma coisa. Caramba, o cara era muito frio. Ele estava apertando a garota
nos braços, enquanto a ex-namorada nem havia esfriado no caixão.
— Estou ocupado, Éder — repeti.
— Estou indo até você — ele rebateu, e eu desliguei, porque
francamente...
Eu não queria pensar em Catarina. Não queria pensar no que senti
enquanto fui para a cama com ela. Eu não podia voltar a me apaixonar por
essa garota porque eu ainda tinha um pouco de vergonha na cara. Depois de
tudo que ela me fez? Eu seria pior que corno manso!
Subitamente, percebi que o rapaz estava esperando alguma coisa. Um
carro. Um Uber, provavelmente. Isso me animou, e eu abandonei meu posto,
correndo até o primeiro piso. Saí pela porta dos fundos, sem sequer me
despedir do proprietário. Cortei a esquina, e fiquei no aguardo perto da
minha moto.
Quando um carro discreto de transporte apareceu, o traficante correu
até ele. A namorada vinha com ele. Os dois olharam rapidamente ao redor,
como se estivessem preocupados, e logo entraram. Não me viram, porque eu
sabia me esgueirar atrás de árvores. Quando o carro partiu, liguei o motor da
moto e fui atrás deles.
Eles estavam indo em direção ao Humaitá. Provavelmente, iriam pegar
drogas. A minha moto tinha muita potência, mas eu não acelerei. Fiquei
aguardando o momento certo, um local meio isolado, poucas câmeras de
vigilância — se tivesse sorte, nenhuma câmera—, e poucas pessoas, porque
eu não queria que ninguém se ferisse.
Esse momento chegou quando chegamos a um semáforo entre a
Ernesto Neugebauer e a Jaques Machado. Nenhuma câmera. Nenhuma
testemunha. Apenas o carro parado aguardando o sinal ficar verde. Acelerei
e parei ao lado do veículo. Pelo canto dos olhos, percebi que meu alvo estava
no banco traseiro.
Eu não sei se ele soube que iria morrer. Ou apenas ficou temeroso em
ver a moto. Só percebi que ele gritou para o Uber antes mesmo de eu puxar a
pistola da cintura. Não houve conversa, apesar de Abel gostar que eles
soubessem por que estavam morrendo.
Mirei e atirei. O vidro estilhaçou e o corpo despencou para o lado,
caindo em cima da namorada, que gritava desesperada. Imaginei que o
motorista fosse acelerar, mas surpreso vi o homem de meia idade parado, as
mãos para cima, súplicas de piedade exalando de seus lábios.
Eu movi a moto por um metro, apenas para ficar ao seu lado.
— Pelo seu vidro que quebrou — disse, e então joguei um maço de
notas no seu colo.
E depois acelerei. Era um a menos na lista de Abel.

∞∞∞
Eu já havia alterado a placa da moto e trocado de roupa num hotel
discreto perto da saída da cidade quando Éder me disse que estava me
esperando num determinado bar, de cerveja artesanal irlandesa – a famosa
cerveja verde.
Então fui ao seu encontro, um tanto hesitante, sem saber direito porque
estava tão apreensivo.
— Você sabe a verdade? — ele me indagou, quando me viu me
aproximando da mesa.
Eu me sentei, quase me esparramando. Ergui a mão para uma
garçonete, e pedi uma caneca tradicional.
— O quê? O que ela te disse?
— Ela não tirou seu filho.
Iria começar a história de novo. Uma história que machucava demais,
e eu não sabia se estava disposto a ouvir.
— Eu tive um dia cheio — contei a ele. — Resolvi um problema chato
do seu pai. Não...
— Ela foi drogada. Levada para uma clínica clandestina. Fizeram o
aborto nela. Deu errado, como acontece quase sempre. E, como quase
sempre, ninguém quer se responsabilizar, então a deixaram lá para morrer,
sangrando. Depois de algum tempo, até levaram um médico, mas ela só
sobreviveu porque Deus quis. Ela nem sabe quanto tempo ficou lá, deitada.
Quando conseguiu se recuperar, semanas depois, foi te procurar, mas você já
tinha sumido. Ela foi até a pensão, e a dona da pensão disse que você fugiu
dela, porque ela estava grávida.
Tudo isso podia ser uma mentira, não fosse o fato de que eu disse algo
assim para a dona da pensão, antes de ir ao encontro de Cat, antes de ser
preso. Ela não teria como saber disso, se não falasse com a mulher.
— O que você está dizendo? — murmurei.
Minha mente voltou no tempo. Eu quase podia enxergar a cena se
desenrolando diante dos meus olhos.
“Você está indo embora?”
“Sim”.
“Por quê? É algum problema aqui?”
“Minha namorada está grávida.”
“E você está fugindo disso, menino?”
“Mais ou menos isso.”
— Eu não estava fugindo. Eu estava indo ao encontro dela —
perseverei. — E o aborto? Cat disse que foi abortado.
— E foi. Mas, não por ela.
Minha mandíbula apertou enquanto eu lutava para controlar minha
raiva.
Porra.
Eu vou matar alguém.
— Ela te contou isso?
— Sim. Ela não queria contar. Estava desesperada. Ela... — ele
pigarreou, e eu o encarei, curioso. — Ela menstruou. Ela não tinha
absorventes, e precisou ficar sentada por horas no banheiro, com o sangue
escorrendo pelas pernas. Então, as lembranças acabaram sufocando-a e ela
me confessou o que aconteceu quando eu a encontrei.
Só então me dei conta do que eu estava fazendo. Catarina foi presa por
mim, mantida num porão, depois em um quarto sem janelas. Ela foi
humilhada de todas as formas que eu pude humilhar, que eu consegui fazer.
Ela até acabou com suas regras num chão gelado.
E, se tudo isso fosse verdade, ela não tinha a menor culpa.
Outra pessoa matou meu filho. Muito provavelmente, a mãe dela.
Minha raiva começou a ser direcionada em outra direção.
— Estou voltando para a ilha — disse a Éder. — Preciso que encontre
todos os dados possíveis de Sofia De Vaz. Qualquer coisa. Endereço,
telefone, dados bancários, contatos, amigos...
Éder assentiu.
— Não faça mais nada sem ter certeza.
— Sim. Eu vou falar francamente com Catarina. Ela vai ter que me
narrar tudo. Não é mais um jogo de gato e rato, agora ela vai ter que se abrir
comigo.
Eu até entendia por que ela não conseguia. Se tudo que disse era
verdade, falar do assunto devia ter um peso absurdo. Pior que isso, por que
ela daria qualquer explicação ao homem que a abandonou no pior momento?
Meu coração balançou, enquanto eu me erguia. Sequer tomei a bebida,
estava ansioso para ver Cat novamente. E, dessa vez, eu estava leve, como se
a inocência dela pudesse me permitir uma única esperança novamente:
Ainda haveria uma chance para nosso amor?
O amor que nunca desapareceu...
35

Yan entrou pela porta com os olhos fixos em mim. Eu sustentei seu
olhar por um breve momento, mas então baixei minha face, vergonha e
desamparo tomando conta da minha alma.
Uma parte de mim só queria morrer antes dessa conversa.
Porque, francamente, eu não queria me explicar pra ele. Não queria
contar sobre o que aconteceu, e reviver tudo de novo. Mas, de alguma forma,
quando acabei dizendo a Éder, senti um tipo de alívio que não sentia há
muito tempo.
Sempre pensei que quando fosse confessar meu passado, o faria a Lili.
Ela sabia algumas coisas, mas nunca detalhes, e eu tentei falar deles algumas
vezes para ela, mas minha voz travava na garganta e eu nunca dizia.
Todavia, eu contei a Éder, um cara que eu nem conhecia direito. Um
traficante, um bandido. E não vi nenhum julgamento nele. Contudo, sabia
que ele iria dizer a Yan. Se ele falou tudo e eu não precisasse repetir, seria a
melhor coisa.
Mas, pela forma como Yan me encarava, ele me faria repetir toda a
história. Detalhe por detalhe. Ergui meu olhar de novo, e o observei. Ele
parecia estar num pântano fundo, quase sufocado por merda. Havia uma
exaustão nele que eu nunca enxerguei antes.
— Éder me disse coisas — ele murmurou. — O que aconteceu, Cat...?
Eu preciso que me fale.
— Por quê? O que isso muda?
— Como você não sabe? Eu já disse que amo você.
— Me ama? — dei de ombros, repetindo sua falácia. — Que porcaria
de amor é o seu? Você fugiu quando eu mais precisei de você. Nunca esteve
lá para mim. Por dez anos, eu nem sabia se estava vivo. Acha que falar meia
dúzia de palavras fofas vai mudar alguma coisa?
Ele cruzou o quarto, se aproximando da cama. Sentou-se ao meu lado,
seus olhos não me abandonando nem por um segundo.
— Eu disse a dona da pensão que estava fugindo. Ela entendeu que era
de você, mas não era. Eu não me expliquei porque, na minha cabeça, não
importava o que ela pensava. Contudo, nunca fugi de você. Eu te esperei por
horas naquela passarela.
Minha cabeça começou a girar. Eu não queria ouvir. Não essa mentira
cruel.
— Esperou? E quando eu não apareci, decidiu pegar um ônibus e ir
embora sozinho? Nem me procurou para saber por que eu não pude ir até
você?
— Eu não pude.
— Por que não?
— Naquela noite... — ele começou, mas travou. Yan também parecia
carregado de dor, e eu entendia como era difícil vencer as palavras. Ainda
assim, ele respirou fundo, e continuou: — Naquela noite, eu caí em uma
armadilha. Dois policiais me pararam, e plantaram drogas na minha mochila.
Eu fui preso.
Dei de ombros.
— E ficou preso por dez anos? Quer me convencer que ficou preso por
dez anos por causa de drogas?
Ele quase sorriu.
— É. Jamais te convenceria com esse argumento, não é? Você me
odeia porque acha que eu fugi e que agora só estou arrumando desculpas
para meu sumiço. Eu consigo ver isso agora, Cat... — Ele respirou fundo
novamente. E, mais uma vez, me surpreendeu. — Eu fiquei preso por dez
anos porque, enquanto estava no presídio central, conheci Éder, e um dia um
cara tentou matá-lo, e eu me envolvi. Então, matei o cara. A polícia me
pegou no ato e fui condenado por homicídio. Foi minha primeira morte. Há
documentos, caso queira ver.
Eu estava pasma. Foquei-me em Yan, e tentei decifrá-lo. Ele não
parecia mentir.
— Por que nunca tentou me avisar?
— Tentamos. Mas, nunca conseguimos chegar até você. No começo,
eu tinha um defensor público que, acho, não fez muita coisa para te avisar.
Depois, o advogado da Castle tentou, mas sua mãe se recusou a dizer onde
estava. Anos depois, descobrimos que estava fora do país e, ao retornar,
Álvaro – um dos homens da Castle - tentou se aproximar, mas você o
colocou para correr. Nesse tempo, já era famosa, e foi difícil uma
aproximação.
Sua narrativa foi dolorida. Quase melancólica.
— Então eu saí da cadeia, e a primeira coisa que fiz foi entrar em
contato. Quando consegui, só queria saber do bebê. Eu vivi aqueles dez anos
na esperança de um dia conhecer meu filho. Era nisso que eu me agarrei por
todo aquele tempo para não enlouquecer. Mas, então, você disse que ele foi
abortado, e eu fiquei furioso...
Houve um breve silêncio. Yan confessou para mim toda a sua verdade,
e era a hora de eu falar a minha para ele. Então, respirei profundamente,
buscando muita coragem, a coragem que eu nem sabia que ainda tinha.
— Quando... quando voltei para casa, depois do nosso encontro...
Minha mãe veio falar comigo. Ela trouxe um suco que eu bebi. E, depois
disso, eu só me lembro de acordar em uma cama suja, num lugar que fedia a
esgoto. Eu comecei a sangrar e... — Eu resumi totalmente, porque eu não
conseguia repetir detalhes que contei a Éder. — E eu fiquei semanas lá,
quase morrendo. Ninguém teve a decência de me levar a um hospital, eles só
queria tirar meu bebê e eles... eles conseguiram — convulsionei num choro
tão sentido.
Yan me trouxe para um abraço. Ao contrário de me confortar, isso só
doeu mais, e eu gritei em dor, as imagens aparecendo novamente na minha
cabeça. A enfermeira. Minha mãe. O sangue.
Eu queria ter morrido naquele dia. Não sei por que não morri. Nada do
que eu tive depois, dinheiro, fama, viagens, roupas de grife, joias... nada
substituiu o bebê. Eu soube dele por tão pouco tempo, eu o senti por tão
pouco tempo, mas foi o suficiente para nada no mundo ter a mesma
importância.
Nem Yan...
Se eu tivesse meu filho, por mais que tivesse doido o abandono dele –
o abandono que ele nem cometeu –, eu teria superado.
Mas, perder o bebê me fez escrava da dor. Nos últimos dez anos eu
não vivi nada, eu não senti nada, eu simplesmente vaguei como um zumbi
pela existência.
— Eu vou matar todos eles, Cat... Eu prometo... Todos eles vão se
arrepender do dia que colocaram a mão em você.
Isso devia me chocar, não? Eu devia dizer que não concordava. Que
era errado. Que devíamos perdoar e tentar reconstruir nossas vidas.
Mas, então eu me lembrei da minha própria promessa dez anos antes.
Eu jurei que iria me vingar.
— Me leve com você.
Ele me encarou, como se me estudasse.
— Não faça isso. Não manche suas mãos de sangue.
— Já estou manchada de sangue a dez anos, e agora eu simplesmente
quero me lavar na justiça.
Então Yan assentiu, entendendo que eu precisava disso mais que do ar
que respirava.
36

Catarina estava usando uma calça jeans e uma camisa larga quando
se aproximou de mim no corredor central.
Ela estava seca. Fria. Havia um ódio em seu olhar que eu nunca vi
antes, mesmo quando nos reencontramos.
Uma parte de mim já havia admitido que ainda a amava, mas eu não
sabia se teríamos qualquer chance. Catarina estava absorvida pela raiva, pelo
ódio por tudo que nos fizeram. Ela me disse que queria ver os documentos
da minha prisão, provavelmente para se certificar de que eu falava a verdade,
então no dia anterior eu mandei lhe entregar no quarto.
Ela não estava mais presa, mas ainda ficou nele, até decidir que queria
voltar ao continente. Quando ela me disse isso, avisei que talvez seria
melhor ela ficar aqui enquanto eu punia quem nos fez tanto mal.
Mas, Cat negou. E agora ela estava pronta para ir.
Ao longe, o piloto fazia a última vistoria no helicóptero. Não havia
muita gente no castelo naquela terça-feira nublada, e eu pensei que iríamos
embora sem nenhum questionamento, até Mirella surgir onde aguardávamos.
— Você vai levá-la daqui? — ela me inquiriu, na frente de Catarina,
que apenas a encarou com indiferença.
— Sim.
— Para ficar com você?
Eu sentia o peso das palavras, eram frases recheadas de ciúme e
possessividade. Encarei Cat e então soube que ela sabia que eu andei
visitando outras bocetas no tempo que estivemos longe. Não que a tivesse
traído, não acreditava que estávamos juntos, apesar de nunca termos
terminado.
— Isso não é problema seu — avisei.
— Não faz isso, Fera... tem um monte de garota apaixonada por você.
E essa velha... Ela não te merece.
Mirella se agarrava demais a aparência – mesmo a de Cat sendo
perfeita. Mirella acreditava que uma mulher tinha prazo de validade, mas
havia nuances em um relacionamento que uma jovem como Mirella não
entenderia.
Cat e eu éramos conectados. Pela dor. Pela solidão. Pelo amor que um
dia dominou nossas almas. E, apesar de eu não querer pensar muito no sexo
que ocorreu, ainda éramos conectados pelo tesão reprimido entre nós.
— Você é só uma menina — Catarina disse, depois de tudo, e isso me
surpreendeu. — Vá estudar, trabalhar. Não fique presa a homens que só te
veem como um objeto.
Mirella pareceu revoltada pelo conselho. Ela avançou contra Cat, mas
eu me coloquei no caminho.
— Eles me adoram! — Mirella se defendeu.
Eu quase ri da tolice dos seus pensamentos. Mas, me surpreendi
quando Cat saiu por trás de mim e foi até Mirella. Eu imaginei que haveria
um embate entre elas, mas Cat estendeu suas mãos até a morena e abraçou.
Eu fiquei tão surpreso que nem consegui pensar direito. Então Cat
simplesmente a afastou e caminhou na direção do helicóptero.
Encarei Mirella, sem saber o que lhe dizer. Quando, por fim, a vi
igualmente sem palavras, eu segui Catarina. Os conflitos juvenis de Mirella
podiam esperar.
Nossa vingança não.
Parte 3
37

Respiro profundamente, tão feliz em voltar a me banhar em


privacidade no meu próprio banheiro. O cheiro do meu shampoo, do meu
sabonete, meus cremes, todas as coisas que eu sempre usei como forma de
agradar a mim mesma pareceram tão importantes agora. Percebi que eles se
tornaram parte de quem eu sou, uma maneira de eu dizer a mim mesma que
eu não estava desistindo, porque ainda me cuidava.
Não era por causa do trabalho, não importa quantas vezes eu disse isso
a mim mesma. Ser a Cat da internet era apenas uma faceta de mim mesma.
Abro os olhos enquanto observo o meu ambiente privado, e sorrio. A Cat da
internet é a Catarina que eu perdi naquele dia maldito que meu filho foi
tirado de mim.
Mas, ela ainda existia, e isso me aliviou. Ela ainda existia quando a
câmera ligava e eu conversava com pessoas que eu não via o rosto, mas que
transbordavam carinho pelo meu trabalho.
Saio do banheiro alguns minutos depois. Estou coberta por um robe
felpudo. Entro na minha suíte e percebo Yan parado ao lado da cama. Ele
observa um álbum de fotos que eu mantenho ali.
— Você viajou muito — ele comentou.
Eu não o convidei para meu quarto, mas não estou incomodada de tê-
lo aqui. É como se fosse simplesmente natural ele estar em todo lugar.
— Sim.
— Todas as suas fotos, de todos os lugares... você sempre está
sozinha. Não teve amigos?
Neguei. Até Lili entrar na minha vida, quando estive procurando uma
assistente e ela surgiu, grávida e abandonada, eu não permitia ninguém se
aproximar.
— Eu não conseguia confiar nas pessoas — contei a ele. — Então eu
as colocava para correr. Dizem que sou difícil de lidar.
— O que mudou? — ele indagou.
Dei de ombros.
— Lili apareceu. Ela era... era uma parte de mim mesma que também
tinha dezessete e estava grávida. Eu jurei que ela teria o bebê.
— E teve?
— Sim, é uma menina. Maria Elena. Ela é casada com o pai da bebê,
hoje. Mora em Mato Grosso.
Ele assentiu. Subitamente, mexeu no bolso do casaco e tirou de lá um
celular. Me entregou. Era o meu. Eu sabia que teria que recarregá-lo para ler
as mensagens, mas achei por bem, antes de tudo, gravar um vídeo ao meu
público, me explicando.
— Vou mandar uma mensagem a Lili dizendo que voltei — disse a
ele. — Depois, vou fazer um pequeno story dando qualquer desculpa para o
meu sumiço. Uma depressão ou coisa assim. Quando finalizar, vou dizer que
ainda preciso de um tempo sozinha, mas que volto em breve.
Ele assentiu novamente.
— Cat... Perdoe-me. Eu não devia ter feito o que fiz. Eu fui um
covarde.
Senti meus olhos se nublarem de lágrimas. Mas, eu as espantei
enquanto piscava rapidamente.
— Não quero nunca mais falar desse assunto — disse a ele. — Então,
vamos finalizar essa etapa agora. Você não devia ter me sequestrado, mas se
eu estivesse no seu lugar, e pudesse colocar as mãos na pessoa que matou
meu filho, eu teria feito o mesmo, então não te culpo. Apenas, vamos seguir
em frente e fazermos o que juramos fazer.
Yan concordou. Ele sabia que me ajudar a vingar-me de minha mãe
era o primeiro passo para ter, verdadeiramente, meu perdão.

∞∞∞
O tempo andava estranho ultimamente. O inverno não foi tão frio
quanto estava sendo a primavera. O vento gelado bateu nos meus cabelos,
enquanto eu erguia a face e encarava aquela velha igreja gótica erguida na
parte traseira da Santa Casa. Do outro lado da rua, Yan acenou para mim, e
veio correndo na minha direção assim que o trânsito permitiu.
— Não tem nenhuma enfermeira Carla por aqui — ele disse. — Não
sabe o sobrenome?
Neguei.
— Só sei que ela se chamava Carla...
— O endereço da clínica...?
— Eu bloqueei — murmurei para ele. — Eu bloqueei a maioria das
memórias daquele dia.
Caminho em direção à igreja. Ela tem tons pasteis, e vejo uma
escultura de pássaros bem em cima dela. Se eu fechasse os olhos, poderia
sentir seus fantasmas. Com certeza, era secular.
— Cat, você...
Repentinamente, eu o deixo falando sozinho. Caminho rapidamente
até o pilar da cerca da construção e vejo um cartaz ali.
“Trago seu amor de volta em dez dias”.
Yan ri quando caminha para meu lado, lendo também os dizeres.
— Já estou aqui, Cat — ele brinca, e eu reviro os olhos. — O que tem
de interessante? Não sabia que acreditava em misticismo.
— Não acredito — neguei a ele. — Não é uma feiticeira. É um
anúncio de clínica de aborto.
Ele arregala os olhos, me encara, volve para o papel, então volta a me
olhar.
— Como você sabe?
— Eu sei. Na época da escola, havia anúncios assim espalhados pela
cidade, como sapataria, ou coisa do tipo. Havia rumores que minhas colegas
usaram. Tinha um padrão: nunca endereço, nem nome. Apenas um telefone.
Depois do que aconteceu, por hobby, eu pegava os números e me informava
onde encontrá-los. Então eu denunciava a polícia. Eu acho que eles
mudaram o esquema, mas o padrão permanece o mesmo.
Yan assentiu. Então ele pegou o telefone e discou um número.
— Rondinei — disse, a alguém do outro lado da linha. — Tenho um
número de telefone. Preciso que descubra a quem pertence e o endereço. Por
favor, peça a uma das meninas para ligar, e simule que a garota precisa de
ajuda. Aborto. Sim. Consiga o endereço dessa clínica. E me arrume gasolina.
Não. Preciso de gasolina em recipientes. Discretos. Aham. Certo.
Então ele desligou e nos encaramos. Eu me senti tão, tão feliz de ele
estar ali comigo naquele momento. Há muitos anos, Yan e eu
compartilhamos um amor incrível. Agora, compartilhamos o ódio. Não sei
qual dos sentimentos é mais poderoso.
38

O lugar continua fétido e desleixado. Eu podia reconhecê-lo só pelo


cheiro, apesar de não ter colocado meus pés desse lado da cidade desde que
aconteceu.
Toquei a campainha. Yan respirou fundo ao meu lado, como se
estivesse preparando para uma guerra. Nós dois nos encaramos, havia um
turbilhão de emoções em nós. Havíamos combinado que seria rápido.
Quando Carla colocasse a cara na porta, ele atiraria e acabaria com isso.
Sem palavras. Sem explicações. Apenas um homicídio simples.
Antes de virmos para cá, ele me pediu que reconsiderasse minha
presença. Eu tinha muito a perder caso alguma câmera me flagrasse. Eu
recusei, porque eu precisava ver a cara de Carla quando ela percebesse quem
estava aqui.
Depois, Yan tentou me convencer a me camuflar. Uma Lace ou uma
máscara. Eu recusei mais uma vez. Estranhamente, não me importava o
depois disso. Se eu pagasse pela morte de Carla, eu não ligava. Se eu
morresse, eu não ligava. Eu só queria que ela saldasse a dívida por aquela
tarde que mudou minha vida.
Eu era jovem e cheia de sonhos. Eu era doce e gentil com todos. E
agora era apenas um pedaço de carne sobrevivendo. Sem esperanças, ou
sonhos. Eles me mudaram. Carla e Sofia, mais que todos. Agora eles
receberiam sua recompensa.
Mas, tudo mudou quando eu percebi outra jovem abrindo a porta. Pus
a mão no braço de Yan para impedi-lo, e sorri.
— Oi... Eu marquei uma hora.
A garota tinha cabelos curtos, pintados de azul. Era parecia uma
caricatura dos anos 80, com argolas no nariz e nas orelhas.
— Você é Catarina de Vaz! — ela me reconheceu de imediato. — Oh,
você é Catarina de Vaz mesmo!
Assenti, ainda sorrindo falsamente.
— Sim, eu agendei como Mirella dos Santos.
Ela assentiu, e começou a empurrar a porta, para que eu entrasse.
Havia um corredor de escadas estreitas adiante, e ela apontou para lá.
— É no segundo piso, à direita — disse.
Eu segurei os dedos de Yan.
— É meu namorado. Ele está junto comigo — expliquei a ela.
A garota concordou, abrindo passagem para que Yan me
acompanhasse.
— Eu não sabia que você namorava — ela disse. — É um pouco
decepcionante, porque a gente sempre sonha que você é sapata e que
teremos alguma chance — ela riu, e eu ri também, não porque era
engraçado, mas porque eu simplesmente estava no ritmo.
Subimos as escadas. Incrivelmente, o cheiro ficou mais forte, e eu
quase podia reconhecer a mesmo alvejante. Era exatamente igual há dez
anos. Entramos em uma sala. Parecia um pequeno consultório médico, uma
mesa, e uma maca ao lado. Havia outras duas garotas ali, talvez uns vinte e
cinco anos, cada. Mas, nem de longe, Carla estava aqui.
— Não é minha primeira vez nesse lugar — contei.
— Não?
Ela não parecia impressionada. Aparentemente, garotas ricas eram
clientes comuns.
— Sabe... eu acho que conheço você.... Não estudou na Ciências da
Saúde?
— Não. Eu fiz faculdade em Caxias — ela apontou.
— Seu nome não é Jaque? — indaguei, apontando o dedo, como se
estivesse tentando descobrir quem era. — Você não mora na Restinga?
Yan, ao meu lado, simplesmente arqueou as sobrancelhas, curioso.
A garota negou.
— Não. Sou Gabriela. Moro no Sarandi.
— Ah — dei de ombros. — Gabriela que mora no Sarandi. Desculpe.
Me confundi.
Yan entendeu o que eu estava fazendo. Captando informações. Ele
segurou meus dedos mais firmes, me deixando prosseguir.
— Como eu disse, eu já vim aqui antes. Carla me atendeu. Cadê ela?
— Virou crente — uma das garotas atrás da mesa riu. — É sempre
assim. Apronta todas, e depois vira santa.
— É... é sempre assim. Mas, me diga... Mudou alguma coisa? Carla
fez o procedimento aqui, eu fiquei alguns dias nessa sala porque não podia
me mexer.
— A gente te dá os remédios agora, e você toma em casa. Se tiver
complicação, chama uma ambulância. O negócio é você nunca contar como
conseguiu os remédios, caso precise da ambulância. É o nosso trato.
— Mas... achei que iam me atender... E se eu morrer em casa? Da
outra vez já foi tão complicado...
— Não vai morrer — a quieta me assegurou. — É supertranquilo.
Claro, tem a cólica, mas você vai suportar. Se lembre de não chamar a
ambulância para qualquer dorzinha. Aguente a dor até não dar mais, porque
se chamar a ambulância, vai ter que responder um termo circunstanciado.
Não dá em nada, mas é sempre um incômodo. E pode vazar e complicar sua
carreira.
O aperto na mão de Yan ficou mais firme. Eu sei que ele estava
enojado, mas eu tentei segurá-lo.
— Eu prefiro que a Carla me atenda — disse. — Como eu a encontro?
— Já dissemos. Ela está fora. Deixou o serviço para a gente, e foi
seguir religião.
— Tenho certeza de que, por um bom dinheiro, ela releva minha
situação. Sabem... eu tenho um contrato importante agora... Não posso... —
segurei a barriga. — Não é o momento.
— Nunca é o momento. A maternidade é fardo — Gabriela comentou.
— Vocês não podem dizer onde eu a encontro? — indaguei. — Por
favor?
Yan abriu o casaco e tirou um maço de notas de cem e colocou sobre a
mesa. As três encararam o monte, antes de trocarem um olhar entre elas.
— A gente só sabe que ela mora perto do Zaffari da Cavalhada. É um
bairro bem bonito, tem uns prédios perto de uma oficina. É só o que a gente
sabe.
— É o suficiente — Yan me encarou. — Seguimos o plano inicial?
Eu não sei por que, mas a forma como ele pediu minha decisão me fez
pegar fogo. Traços de lembranças de como ele me amou na ilha me pegou
em profusão e eu só queria que ele me amasse novamente. Algo me diz que
estou começando a me viciar nesse novo Yan.
E isso é tão assustador.
— Sabem... — volvi para as garotas. — Há dez anos, Carla fodeu
minha vida. Ela matou meu filho. E o filho dele — completei, apontando
Yan. — Eu nem queria, mas Carla recebeu um bom dinheiro da minha mãe
para arrancar meu bebê.
Elas pareceram confusas, e trocaram um olhar.
— Hoje meu filho estaria entrando na pré-adolescência. Eu fico
imaginando as coisas incríveis que ele faria quando adulto. Talvez ele fosse
um jogador de futebol, traria alegria ao meu time. Ou, um médico. Salvaria
vidas. Talvez um cientista e descobrisse coisas importantes. Enfim, eu nunca
vou saber, porque ele não nasceu. — Virei-me para Gabriela. — Garota que
estudou no Caxias e mora no Sarandi... Ele — apontei Yan — é membro da
Castle. Você não faz ideia de como é fácil te achar caso alguma coisa daqui
vaze. — Olhei para as outras meninas, assustadas. — Não achem que estão
por fora. Nós faríamos Gabriela falar tudo sobre vocês duas.
— A gente trabalha com segredos e discrição — uma das garotas
comentou, rapidamente. — Não queremos problemas...
— Mas, os problemas querem vocês. Quem faz coisa ilegal não pode
viver achando que passará a vida toda tranquilamente. Bom, estou dando
uma chance para vocês se mandarem e mudarem de vida. Porque isso aqui
— girei as mãos ao redor. — Isso aqui acabou agora.
Então eu saí. Yan me seguiu. Talvez ele não entendesse por que eu
estava poupando a vida delas, mas eu torcia pela redenção, pois eram tão
jovens. Diferentes de mim e dele. E de Carla. Nós não tínhamos mais
esperança.
Yan puxou o celular do bolso quando chegamos à escada.
— Rondinei, coloque fogo.
Saímos e entramos no carro estacionado diante daquele pequeno
prédio de dois pisos. Ainda não tínhamos trocado a segunda marcha quando
o fogo se tornou visível.
Fechando os olhos, inclinei-me para trás no banco do passageiro,
descansando minha cabeça contra o couro. O cheiro da colônia de Yan me
acalmava de tal forma, que só então percebi que meu coração não acelerou
em nenhum momento.
A minha calma não deixava de ser surpreendente.
39

A lâmpada do poste próximo piscava, como se estivesse se


esforçando muito para fornecer luz, mas não fosse possível. Desenhos
brincavam nesse movimento, entre voos de insetos que produziam sombras
estranhas de se ver.
Desviei meus olhos do poste, minhas duas mãos ainda no volante,
apesar do automóvel estar desligado. Nunca estive mais ansioso, eu não
sabia se era pela presença de Catarina ao meu lado, ou se era porque
estávamos diante de uma pequena igreja evangélica que gritava aos berros
sobre pecados, entre eles, o que Deus faria aos homicidas.
— Yan — giro meu rosto e a encaro. Como uma mulher podia ser tão
bela, eu nunca ia entender. — Você disse lá na ilha que ainda me amava.
Estava falando sério?
Eu não sei por que ela trouxe esse assunto à tona, exatamente nesse
momento. Enrubesci, como não acontecia desde que eu era um garoto idiota
que ficava constrangido quando ela dizia que queria fazer amor.
— Você sabe a resposta, Cat. Eu nunca te esqueci — afirmei.
— Por que teve outras mulheres, então?
Dei de ombros. Era algo difícil de explicar.
— Quando você não apareceu na prisão, com o passar do tempo eu
tive certeza de que havia acabado. Então, eu só aceitava o que Éder ofereceu
para acalmar o corpo, e aliviar a mente. Era como um presente da Castle,
uma garota bonita para foder nas visitas íntimas. Nunca significou qualquer
coisa, a não ser esvaziar as bolas.
Ela suspirou profundamente, como se entendesse, mas eu não tinha
certeza.
— Você não teve outros namorados? — indaguei, apesar de saber a
resposta.
— Tipo, traumatizada depois de ter sido abandonada por você, de ter
quase morrido num aborto? — ela devolveu, e eu senti sua dor. —
Desculpe... Eu sei que não teve culpa, mas por anos eu achei que teve. Ainda
é difícil acreditar que é tão vítima quanto eu.
Ela olhou para mim. A luz do poste piscando brilhou contra sua pele.
Eu percebi lágrimas.
— Eu não vivi por dez anos, Yan. Eu sobrevivi. Eu sei que
fisicamente, esteve pior do que eu. Mas, mentalmente, fiquei presa àquele
dia que me drogaram. Eu revivi aquele dia por todos os dias desde que
ocorreu. Eu fugi do país, viajei o mundo inteiro, procurando paz, procurando
esquecer, mas para onde quer que eu olhasse, eu me lembrava do que
fizeram comigo. E, sempre que um cara se aproximava, eu via você,
tentando me enganar de novo.
A mão dela descansava sobre sua perna. Levei a minha sobre a dela e
a apertei.
— Entendo. Você viveu na dor, e eu na esperança. Eu ficava
imaginando como seria o dia que eu deixaria a prisão e conheceria meu
filho. Eu sempre pensei nele como um garoto, mas, às vezes, me perguntava
como seria uma menina com seus olhos e seus cabelos ondulados e loiros.
Subitamente, ela veio na minha direção. Era tão natural que fui ao seu
encontro, e a trouxe para um beijo. Eu nem podia acreditar que depois de dez
anos, podia senti-la novamente nos braços, sua boca sobre a minha, sua
língua brincando com a minha.
Cat suspirou, e eu inflamei. Chamas corriam pelas minhas veias, e eu
só queria trazê-la para o meu colo, e entrar seu corpo de novo e de novo, mas
então apreendemos o movimento perto da esquina. As pessoas estavam
deixando a igreja, e nós nos afastamos enquanto percebíamos as despedidas
daquele culto tardio.
— É ela — Cat apontou uma mulher de meia idade. — Está mais
velha, acima do peso, mas eu tenho esse rosto cravado na minha mente todos
esses anos. É ela, tenho certeza.
Eu assenti, e me preparei para ligar o motor, quando a mão de Cat
segurou a minha.
— Eu quero uma arma — ela me disse.
— Eu não acho que seja o certo. Posso te ensinar a usar uma, e depois
eu te dou. Mas, sem a técnica...
— Eu quero uma arma — ela repetiu, e estava tão fixa na ideia que eu
sabia que ela arrumaria uma arma, talvez até se colocando em perigo, se eu
não desse uma a ela.
— Prometa que não vai usar enquanto não aprender — me curvei para
o porta-luvas e o abri, retirando de lá uma pequena caixa com uma Taurus
compacta, novinha, comprada recentemente de um contrabandista. —
Prometa que não vai usar — repeti, enquanto colocava a pistola na mão dela.
Cat me encarou e assentiu.
— Não vou usar. Ainda.

∞∞∞
Carla havia pegado um Uber da igreja até perto da sua casa. Ela
morava em uma encruzilhada de chão batido, e o carro de aluguel
provavelmente não quis ir até lá. Ela desceu do automóvel uma rua antes, e
começou a rumar na escuridão.
Tinha uma Bíblia debaixo dos braços, e seus passos eram firmes e
seguros. Eu quase voltei atrás na minha intenção, pensando que talvez ela
tenha realmente se arrependido do que fez e pudesse seguir em frente. Mas,
percebendo a forma como Cat a olhava, entendi que eu era um banana
vacilante, e que Cat não estava no clima para perdão.
Catarina desceu do automóvel e começou a caminhar na direção de
Carla. Eu a segui rapidamente atrás, mas Cat era ligeira, e logo a
ultrapassou, se colocando na sua frente.
A noite aqui estava escura como um breu. O poste ficava há uns dez
metros, e mal se podia ver os rostos das mulheres de onde eu estava.
Caminhei até elas, e parei uns dois metros das duas.
Carla estava de costas para mim. Ela não pareceu perceber minha
presença. Eu podia acabar com isso facilmente, mas não iria tirar de Cat seu
momento.
— Você se lembra de mim?
A mulher negou.
— Há dez anos, você fez um aborto em mim.
— Eu fiz aborto em muitas mulheres — ela retorquiu. — Mas, não
faço mais. Se você quiser outro terá...
— Eu não quis. Minha mãe te pagou para que você o fizesse em mim.
Vocês me doparam e me deram o abortivo. Eu fiquei deitada na sua clínica
por semanas, quase à morte.
Pela forma como Carla enrijeceu os ombros, eu soube que ela se
lembrou da situação.
— Eu não sou mais a mesma pessoa — se explicou, como se isso
pudesse corrigir tudo. — Eu não faria isso de novo.
— E por que o fez naquela época?
— Eu queria o dinheiro. Sua mãe comprou uma casa para mim.
— Você matou meu bebê e quase me matou por causa de uma casa? —
a voz de Catarina adoeceu, quase sumiu conforme ela se permitia derramar
lágrimas em lembranças tristes.
— Garota... É a vida. Você não foi a primeira, nem vai ser a última.
Mas, eu conheci Jesus e minha vida mudou. Eu não faço mais isso.
Era estranho como ela parecia fria. Mesmo jurando que mudou, ainda
assim, era algo como “é, aconteceu....”, não algo que destruiu tudo que
Catarina viveu após isso.
— E, olha, eu perdi meu cofen por sua causa. Eu precisei chamar
aquele médico para te salvar, porque você já estava morrendo e não
aguentaria mais nenhum dia, e ele me denunciou. Eu perdi meu emprego,
então aquele aborto me custou muito mais que uma casa.
— Custou muito a você? — repeti, incrédulo com tamanha frieza.
Só então a mulher me percebeu. Ela girou para mim, me observando
na escuridão. Eu não sei se foi o fato de eu ser um homem, ou de se perceber
em menor número, enfim, ela vacilou, e decidiu encerrar a conversa.
— Olhe, aconteceu. Mas, eu já perdi perdão a Deus e fui perdoada.
Acabou.
Repentinamente, Cat avança. Eu achei que ela partiria para uma briga,
mas levei um tempo para perceber ou enxergar que ela tinha algo nas mãos.
Não era a arma que eu lhe dei. Era um fio daqueles grossos, provavelmente
nylon, amarrado nas duas mãos.
Ela o passou por cima da cabeça de Carla. Girou nela, e o pôs adiante
da garganta desprevenida. Então, Cat uniu as mãos, apertando com força.
Carla não conseguiu gritar, nem lutar, enquanto tentava desesperadamente se
livrar da corda para respirar.
— Que bom que Deus te perdoou, porque eu não perdoo. Não que
você tenha pedido perdão, de qualquer maneira.
Eu não me mexi enquanto permitia que Cat a matasse.
40

Minhas mãos estavam doloridas. Eu as observei enquanto subia pelo


elevador. Havíamos cruzado pelo porteiro sem nem o encararmos. Eu mal
podia esperar para chegar no meu apartamento e tomar um banho para me
livrar da agonia de Carla.
Acabou. Pelo menos com ela.
Ainda faltava Sofia.
Joguei minhas mãos na lateral do corpo, ignorando o desconforto. O
nylon cortou a pele – a minha e a dela – e levaria alguns dias para cicatrizar.
— Como você se sente? — Yan perguntou, ao meu lado.
Eu não sabia. Só estava com raiva. Uma parte de mim queria que
Carla tivesse se ajoelhado e pedido perdão. Me dado alguma explicação do
porquê fez aquilo. Talvez estivesse sem ter onde morar, ou estivesse
desesperada por outro motivo. Mas, ela sequer se desculpou. E seus motivos
não foram nada além da ganância.
Pelo menos agora eu poderia dormir à noite.
— Eu te disse que não usaria a arma. Agora acredita em mim? —
indaguei a ele.
Yan me encarou.
— É claro que eu acredito, Cat...
Eu só queria beijá-lo de novo. Meu corpo parecia clamar por algo que
me lembrasse que eu ainda estava viva. Queria fazer sexo com ele mais uma
vez, e iria pedir isso assim que entrássemos no meu apartamento.
Todavia, todos os meus planos são interrompidos quando, ao abrir a
porta, encaro Liliana de pé, aguardando-me.

∞∞∞
Lorenzo não estava em nenhum lugar, mas Maria Elena estava ali, nos
braços de Lili. Eu estendi minhas mãos para minha afilhada e a peguei no
colo. Ela completaria um ano em breve, e já estava tão inteligente e ativa.
— Quem é ela, Maria Elena? — Lili indagou à filha, talvez para fazê-
la me mostrar que conseguia falar, ou talvez para apontar que eu sumi por
mais de um mês e ela não tinha notícias minhas.
— Dida — Maria Elena balbuciou com dificuldade, e eu beijei sua
face, com todo meu amor.
— Sim, querida... Sou sua Dinda...
— Ela só sabe por que eu mostro sua foto para ela todos os dias — a
voz de Lili me arrepiou. — Como pôde ter desaparecido assim? Ficamos
todos desesperados, até achamos que...
Repentinamente, Lili emudeceu. Ergui meus olhos para ela, e a
percebi encarando Yan como se esperasse explicações.
— Ele é meu ex — disse. — Muitas coisas aconteceram.
A boca de Liliana se abriu, como se ela não pudesse acreditar que
estava diante do mesmo homem que me abandonou dez anos atrás. Porque
essa era a explicação que ela tinha. Eu sabia que necessitava falar a verdade
para Liliana, mas eu não queria abrir todos os meus sentimentos diante de
Yan.
Então eu rumei para ele e lhe entreguei Maria Elena. Eu vi seu
desespero quando pus a bebê nos seus braços. Ele, verdadeiramente, pareceu
sem saber o que fazer.
— Só a mantenha entretida enquanto converso com Lili.
— Mas... eu... eu...
Curiosamente, ele pareceu apavorado. Talvez nunca tivesse segurado
um bebê nos braços antes.
— Ela não morde. Não se você não provocar — eu pisquei, e então me
afastei.
Lili me seguiu até meu quarto. Ela sentou-se na cama, enquanto eu
começava a arrancar a roupa. Precisava de um banho urgente, parar tirar
Carla de mim. Não queria macular a imagem da minha melhor amiga com a
morte daquela mulher.
— O que está acontecendo, Cat? — ela indagou.
Cerrando os dentes, eu tentei buscar as palavras mais gentis. Tinha
medo de assustar Liliana, apesar de saber que minha amiga não era a pessoa
mais protegida do mundo. Lili teve que enfrentar seus próprios demônios
desde que nasceu. E talvez ela fosse a pessoa mais inclinada a me
compreender, porque também teve a pior das mães.
— Meu Deus — ela disse quando eu terminei o relato.
Estávamos no banheiro, agora. Lili encostada na bancada, ouvindo-
me, enquanto eu estava debaixo do chuveiro, a água quente caindo sobre
meu corpo cansado.
— Você acredita nele? — ela indagou.
— Com todo meu coração — assenti. — Ele está falando a verdade.
Eu sei que está.
Era meu cérebro respondendo. Admito que meu próprio corpo podia
me trair, me fazer derreter diante do cheiro de sua colônia, da sua carne me
puxando, afastando, e trazendo de volta. Mas, agora, falando com ela, eu
estava sendo racional.
Eu conhecia Sofia. Eu sabia do que ela era capaz.
— Ele te sequestrou, então? Quando me mandou aquela mensagem...
— Ele me forçou a fazer isso — desliguei o chuveiro.
Lili me estendeu uma toalha, enquanto eu saía do box. Enrolei-me nela
e voltamos em direção ao quarto. Eu fui reto até minha gaveta para pegar um
curativo para as mãos agora limpas.
— Acha que é seguro eu deixar Maria Elena com ele? — ela arregalou
os olhos e eu ri.
— Ele virou um bandido, mas ainda é o cara mais legal que eu já
conheci. Claro, ele fez coisas horríveis comigo, mas eu o entendo. Talvez
porque... porque eu seja igual a ele. Não consigo medir o tamanho da raiva,
só quero reagir.
— O que fará com sua mãe?
Uma parte de mim implorou silenciosamente que ela não fizesse essa
pergunta.
— Eu não posso deixá-la impune. Não depois de dez anos de inferno.
Por Yan e por mim.
— Tem certeza? Você sabe que não terá volta.
— Já não tem volta, Lili... — afirmei. — Eu já comecei, não vou
voltar atrás.
— E sua carreira? Vai desistir de tudo?
Concordei.
— Eu preciso. O que faria se alguém tirasse Maria Elena de você? O
que faria se a matassem?
Liliana cortou a distância entre nós e me trouxe para um abraço.
— E sobre Yan? Vai voltar com ele?
Eu sorri porque a pergunta dela era bem curiosa. Simplesmente, o
traço de uma melhor amiga querendo fofocar.
— Eu ainda não sei se vai restar alguma coisa de nós quando tudo isso
acabar. Mas, se houver... sim... Eu o amo, nunca deixei de amá-lo. Apenas
não sei se ainda temos alguma esperança.
41

Quando voltamos para a sala, Yan estava sentado no sofá com Maria
Elena equilibrada numa das pernas. Ele brincava com a bebê, um tanto
desajeitado, provavelmente porque nunca segurou uma criança antes.
— Ela é linda — ele disse a Lili, que sorriu quando pegou a filha nos
braços. — Ela ficou tão calma.
— Maria Elena é muito dada com todos — Lili explicou. — Acho que
é porque a família de Lorenzo é grande e ela sempre esteve nos braços das
tias e primas. Mas, com certeza, ela também gostou de você, senão teria
aberto um berreiro — sorriu. — Catarina me contou o que aconteceu. Eu sei
– acredite, eu sei – como pessoas de má fé podem interferir no nosso destino.
O pai de Maria Elena e eu também fomos separados por mentiras. Ele não
acompanhou minha gravidez e, por meses, eu pensei que não queria a
criança.
Yan ouviu em silêncio.
— Amanhã estou voltando para o Mato Grosso. Lorenzo queria vir vê-
la, mas está enfurnado em trabalho. Ainda assim, ligue para ele para acalmá-
lo — me pediu.
Acenei.
Lili foi embora logo depois. Ela me disse que ficaria em um hotel
perto do Aeroporto. Eu insistiria para ela ficar aqui, mas não achava que Lili
devia ser impactada por nossa vingança. Ela tinha uma vida calma e
adorável, como ela. Merecia isso. Yan e eu estávamos em outro clima.

∞∞∞
— O que foi? — ele me perguntou, enquanto estávamos na sacada,
dividindo um cigarro.
Eu sorri. Yan sempre parecia ansioso quando me via quieta, como se
temesse algo de mim.
— Estou pensando se vamos fazer sexo — joguei, sem rodeios. —
Quando fizemos na ilha, eu estava desesperada. Raiva, dor, desejo e
saudade. Mas, agora, eu não sei se devia transar com você.
Ele sorriu, sua língua brincando com o lábio inferior, enquanto não
escondia o olhar divertido.
— Por que não?
— Bom... Você ficou com um monte de mulher enquanto estivemos
separados.
Não sei direito porque trouxe o assunto à tona. Apenas estávamos ali,
na escuridão da noite, observando as estrelas e as luzes dos prédios
próximos. Parecia o momento de conversarmos sobre algo que eu ainda
tinha dificuldade de aceitar, apesar de nossa franca conversa no carro.
— O que eu posso dizer... Foram dez anos.
— Para mim também.
— É, eu sei. Não tenho desculpas — deu de ombros. — Eu podia dizer
um monte de coisa, mas a verdade é que não tenho uma única justificativa
aceitável. Ok, realmente achei que estava acabado, já te expliquei antes. E,
ainda assim, acho que não é um motivo legítimo.
— Não é mesmo — concordei. — Tudo bem, eu perdoo você.
Ele riu alto.
— Não sei por que, mas não estou acreditando nisso.
— Quer um boquete como prova?
— Eu não tenho coragem de colocar meu pau na sua boca, Cat. Seus
dentes podem não seguir seu argumento e eu acabar capado.
O cigarro acabou e ele puxou outro do maço. O acendeu e me deu para
uma tragada. O barulho de pneus na rua abaixo de nós parecia quase uma
música. A grande cidade nos engolia, como engolia a todos ali.
— Cat... O que aconteceu hoje... — ele começou. — Você quer falar
sobre isso?
— Eu disse a Carla que iria atrás dela. Eu jurei isso, dez anos atrás.
Ela devia saber quando me viu...
— Você levou o nylon pensando nisso?
— Não. Eu pensei que podíamos sequestrá-la enquanto eu pensava no
que fazer. Por isso pedi a arma. Queria intimidá-la. Todavia, quando eu a
vi... A arrogância. Ela destruiu minha vida, mas estava tranquilamente
vivendo a dela, sem sequer culpa ou remorso.
— Então perdeu a cabeça?
— Não. Em nenhum momento eu agi de forma irracional.
Eu sei que Yan pensava que eu teria um colapso a qualquer momento,
mas estava tão fria. Havia um pequeno calor no meu estômago, mas era de
animação, não de queimor.
Repentinamente, o celular dele vibrou, nos desviando da conversa.
Yan o atendeu imediatamente, e ouviu atentamente do outro lado da linha.
Quando ele desligou, encarou-me com o olhar inquieto:
— Álvaro soube que sua mãe estará num evento beneficente essa
noite.
Eu achei que teríamos uma noite para nós. Achei errado.

∞∞∞
Abri meu closet com as mãos trêmulas. Na minha frente, uma das
roupas mais bonitas que eu tinha parecia me esperar. Abri a bolsa que
protegia o vestido, e o encarei.
Era deslumbrante. Vermelho com pedras rubis dispostas sobre os
seios, emoldurando perfeitamente meu corpo.
Era uma roupa especial. Um vestido que eu mandei fazer
especialmente para quando fosse anunciada como o novo rosto de uma grife
internacional. Esse sonho não existia mais, ficou pequeno e insignificante
diante da minha nova expectativa de vida.
Deslizei a mão sobre o tecido. Cuidadosamente, o retirei do closet.
Yan estava sentado na cama, usando um terno escuro, e pareceu calmo em
me esperar preparar-me para aquele encontro.
A última vez que vi minha mãe foi há nove anos, quando fui embora
do Brasil. Ela tentou entrar em contato várias vezes, mas eu nunca aceitei
sua presença. Quando ela descobria um número, eu o trocava.
Mas, agora eu queria vê-la. A excitação borbulhou dentro de mim. Eu
queria que ela me visse, a filha que ela massacrou, simplesmente
maravilhosa nesse vestido incrível. E então eu diria a ela o que faria com sua
vida.
— Você, com certeza, é uma mulher deslumbrante, Cat... — Yan
disse, quando eu retirei o robe e comecei a colocar a lingerie.
Eu não tinha o menor pudor em ficar nua para ele. Era natural que ele
me visse, e me comesse com os olhos. Francamente, eu até gostava como
surgia um rubor leve embaixo dos olhos, acima das bochechas. A forma
como ele me olhava me deu tesão, mas tentei conter minha vontade de ir até
ele e dar uma antes de sair.
Nós tínhamos coisas mais importantes para essa noite.
Pus o vestido. O zíper ficava na parte de trás, então me virei de costas
para ele, pedindo ajuda. Os dedos de Yan deslizaram pela minha pele,
enquanto ele puxou o zíper para cima. Deus... Quando seus dedos roçaram
minha nuca, eu me arrepiei e gemi como se estivesse no cio. Logo o toque
foi substituído pela boca.
— Estou louco por você — ele murmurou.
Eu sorri.
— Talvez mais tarde — prometi.
Dando um passo para trás, Yan se afastou o suficiente para me
permitir virar de frente para ele.
— Vamos?
— Está preparada?
— Espero por isso há dez anos.
— Eu sei. Mantenha a cabeça no lugar, Cat — aconselhou.
— Não se preocupe. Não farei nada estúpido.
Era um juramento. Eu iria cumprir.
42

Eu não havia sido convidada para o evento, mas uma das


organizadoras ficou emocionada quando eu lhe liguei ainda no carro,
dizendo que queria entrar.
— Eu iria te convidar, mas você nunca aceita esses convites — ela me
disse. — Sua mãe está aqui! Vou chamar os fotógrafos. Ah, Catarina... Fará
da festa um sucesso!
Agradeci e desliguei, indicando o endereço para Yan, que dirigia
seguro pelas ruas da capital.
Quando chegamos, percebemos que não iríamos conseguir entrar sem
a autorização, já que o lugar era uma verdade fortaleza, com diversos
guardas andando de um lugar para o outro. Soubemos rapidamente que havia
um bom número de políticos e artistas famosos aqui. Por isso, toda essa
segurança.
Ao perceber o número de viaturas, Yan riu na minha direção.
— O que foi?
— Teve um evento numa escola pública há um mês, e pediram
patrulhamento por causa de uma facção que queria incomodar. Enviaram
uma única viatura com dois policiais mais ou menos armados. Abel ficou
preocupado com as crianças, e então nós organizamos um grupo de homens
para ir proteger o evento. É incrível como não havia policiais suficientes
para a escola, mas sobram aqui, para proteger os ricos.
Eu não sabia direito o que dizer, já que estava no topo daquela
hierarquia.
Subimos as escadas que levavam a entrada do clube, e fomos
recebidos por um cortês recepcionista. Eu disse meu nome, e ele sorriu,
parecendo me reconhecer.
— Seja bem-vinda, Catarina. Soube que não estava bem de saúde.
Espero que esteja melhor.
Assenti. Espalhou-se nas redes sociais que eu entrei em depressão pelo
peso da fama. Isso me pareceu cômodo e me assegurava o direito de não dar
explicações para meu sumiço.
Ele abriu caminho, e entrei. Yan estava um pouco atrás de mim, sua
mão firme em minhas costas. Observei o movimento intenso de gente com
sorrisos falsos, fechei os olhos e respirei fundo, soltando o ar lentamente.
Eu odiava esse lugar. Essa gente. Esses risos. Essa felicidade fétida
que me dá ânsia.
Cresci em ambientes assim. Meus pais, muito ricos, não perdiam um
evento. Não que se importassem que eu fosse, mas chegou um momento que
eles simplesmente me levavam para não dar explicações de porque eu não
estar em lugar nenhum.
Minha mãe queria que eu me entrosasse com os filhos dos poderosos.
Que eu namorasse algum ricaço. E ela me odiava por não fazer uma coisa
nem outra.
— Lembranças? — Yan perguntou, seu hálito batendo na minha nuca.
— Sim.
Yan me empurrou para frente, cuidadosamente. Nós começamos a
caminhar entre as pessoas. Eu ignorei os sorrisos, porque eles não me
importavam. Meus olhos buscavam desesperadamente um rosto conhecido.
Quando a vi, meu corpo entrou em choque.
Sofia de Vaz estava estranhamente diferente. Seu rosto era tão
repuxado que ficou impossível não perceber a quantidade de cirurgias e
procedimentos estéticos. Ela também escolheu um vestido vermelho, e seus
cabelos loiros caiam sobre suas costas quase languidamente. Nós duas
éramos muito parecidas.
A mão de Yan resvalou para minha bunda. Não era um toque imoral
ou sensual, era apenas como se ele tivesse descido a mão das costas para
repousá-la em um lugar comum.
— Você se parece com ela — ele murmurou.
Isso doía. Na infância, ela negava a informação. Dizia que eu era feia.
Que meus cabelos eram rebeldes. Que eu era desengonçada.
— Ela foi Miss Porto Alegre nos anos 80 — contei a ele.
— Sério?
— Sim. Era muito bonita.
— Continua.
— Não — recusei a ideia. — Ela é horrível. A coisa mais pavorosa
que eu já vi na vida.
O corpo de Yan se aproximou do meu. Seu calor parecia ter a intenção
de me confortar. Mas, não iria conseguir seu intento. Eu estava
estranhamente destruída por vê-la novamente, quando jurei que nunca mais
poria meus olhos sobre ela.
— Cat...
Então avancei. Meus passos retos me fizeram cruzar por toda a
extensão que me separava de Sofia. Algumas pessoas me cumprimentaram
no caminho, mas eu as ignorei. Por Deus, eu nem sabia se Yan estava atrás
de mim, porque eu não via ou sentia nada além da presença de Sofia de Vaz.
Parei diante dela. Sofia bebeu um gole do seu champagne antes de me
perceber. Quando o fez, sua boca abriu num “O”, como se não acreditasse
que estivesse me vendo.
— Catarina — ela murmurou. — Catarina... Filha, eu tentei te ligar...
Ela deu um passo na minha direção, como se quisesse me tocar. Eu
recuei um passo, e trombei em alguém. Era Yan, eu reconhecia o corpo dele
mesmo sem girar meu rosto em sua direção.
— Catarina... Precisamos conversar — Sofia insistiu. — Aconteceu
uma coisa... — Ela ergueu o olhar e eu percebi que ela não reconheceu Yan.
Talvez nem soubesse quem ele era. Ela o destruiu anos antes indiferente ao
seu rosto. — Rapaz, pode nos dar licença?
— Pode dizer na frente dele — eu avisei. — Não temos segredos um
para o outro.
Sofia virou o rosto para o lado. Então, ela fez um gesto para que a
seguisse, e eu o fiz. Cruzamos a festa, e chegamos perto de uma das
varandas. Ficamos sozinhos ali, era bem privativo para matá-la, mas eu não
queria isso.
Uma morte para ela era pouco. Yan e eu sofremos por dez anos, ela
merecia sofrer também.
— Quem é ele? — ela me perguntou, olhando para Yan.
Ele estava bem-vestido. Roupas caras. Claro que ela pensava que era
algum rico da cidade.
— Meu namorado — disse. Não era totalmente mentira. — Ele não é
daqui de Porto Alegre, então você não o conhece.
— Ah — ela assentiu. Pareceu respirar aliviada. — Catarina, você
lembra do seu namoradinho de infância? — ela indagou. — Um
marginalzinho pobre com quem ficava lá no Centro Histórico?
Yan me encarou. Eu quase perdi o ar.
— O que tem?
— Bom... Você estava cega de amor naquela época. Eu fiz o qualquer
mãe teria feito, e me livrei dele para você. O garoto ficou preso um tempo,
mas agora está solto. É um bandido, Cat... Tenho medo de que ele faça
alguma coisa contra nós.
O “nós” devia ser “mim”. Ela não estava pensando sobre os riscos que
eu corria, ela só pensava em como isso poderia afetá-la. Estava pensando
que se Yan chegasse em mim, podia conseguir informações sobre ela, podia
atentar contra ela.
— Ele nem deve lembrar que eu existo, Sofia. Esqueceu-se de que
você cortou nosso vínculo?
Ela bebeu outro gole de champagne.
— Dez anos me ignorando por conta de um feto — ela deu os ombros.
— Eu te livrei de uma bomba. Graças a mim, pôde estudar, viajar, hoje é
famosa. Você devia lamber o chão que eu piso.
— Você quase me matou — murmurei. — Não se culpa pelo que me
fez?
— Isso é culpa sua. Não é forte como eu. Quando eu fiz, antes de você
nascer, eu me recuperei em um dia. Mas, você puxou todinha ao seu pai.
Natureza fraca, sem energia. Sempre para baixo, aquela coisa meio “down”...
Ali estava, a desgraçada narcisista que arruinou a minha vida, sempre
com comparações injustas. Yan deu um passo na direção dela, mas eu o
contive, pondo minha mão em seu braço. Ele travou e me encarou. Eu vi
traços de lágrimas, mas desviei meu olhar dele.
Sofia nem percebeu o que se passou. Entretida entre beber e falar
sobre como ela foi uma mãe maravilhosa que salvou minha vida de ser
arruinada por um filho, ela continuou matracando suas qualidades por longos
minutos que pareceram horas. Em nenhum momento o assunto foi sobre
mim ou sobre como eu me sentia. Era tudo sobre ela.
Quando, por fim, ela respirou e percebeu que nós estávamos em
silêncio, me encarou.
— Agora que voltamos a nos falar, filha... eu penso que...
— Pare! — disse. — Não estamos bem. Não quero nenhuma relação
com você. Estou aqui apenas para te avisar. Se prepare, Sofia. Eu vou
arrancar de você tudo que te importa.
— Você está me ameaçando?
— Não. Estou te prevenindo. Vou destruir você. Vou acabar com
você. Aproveite seu vestido bonito, seu champagne caro. É questão de tempo
para não restar mais nada.
E então eu me afastei. Não fiquei para ouvir suas lamurias. Apenas
cruzei pela festa, Yan silencioso ao meu encalço.
A morte era pouco para ela.
Eu precisava arrancar de Sofia seu dinheiro e sua beleza. Era assim
que eu iria me vingar.
43

Ela estava silenciosa quando entramos no veículo. Eu queria puxar


assunto, e lhe perguntar como estava se sentindo, mas Catarina desviou o
olhar para a janela, e parecia não inclinada a me falar qualquer coisa.
Então, eu dirigi. Cruzamos a cidade, áreas movimentadas e algumas
isoladas. A vida em Porto Alegre era um tanto acanhada nessa época do ano.
E um pouco triste. Talvez fossem as noites frias com a aura do Guaíba
invadindo as ruas, ou a forma como uma serração branca inundava a visão
adiante.
— Pare o carro — ela pediu, depois de vários minutos de silêncio
absoluto.
Pensei que ela iria querer sair. Talvez vomitar ou gritar na rua deserta.
Estacionei embaixo de uma árvore, não havia luz ali, e olhei ao redor,
preocupado de não ser um lugar seguro para Catarina caminhar.
Todavia, antes que eu me desse conta, ela subiu no meu colo, suas
mãos trabalhando com urgência no zíper da minha calça.
— Cat... — Eu tentei falar, mas ela me beijou.
Como se precisasse se sentir viva. Eu entendia isso.
Então eu fiz o que ela precisava.

∞∞∞
Catarina se jogou na cama como se estivesse embriagada. Ela caiu do
lado, seus olhos fechando enquanto ela parecia apenas procurar o
travesseiro.
Sua coxa inclinou para cima, a fenda do vestido vermelho me
mostrando as coxas torneadas. Ela era um pecado de tão linda. Nunca
entendi como uma garota dessas me deu bola.
— Cat... — Você precisa de ajuda? — indaguei.
Talvez um banho ou um café. Sexo não, porque havíamos acabado de
foder no carro. Até me senti um pouco usado pela forma como ela saltou no
meu pau várias vezes, e então me deixou – insatisfeito – após chegar ao
clímax.
Deitei-me ao seu lado. Ambos vestidos. Observei o teto de gesso,
sabendo que não conseguiria dormir.
Eu a entendia. Não a culpei pelo egoísmo. Ela precisava respirar,
precisava de calor, e eu dei isso a ela. Contudo, ela estava toda melecada
com meu gozo entre as pernas, e eu acho que devia tomar um banho. Talvez
eu pudesse limpá-la. Se eu bem me lembrava, ela não gostava de ficar suja
muito tempo.
Sorri, as lembranças de Catarina fugindo para o banheiro, fazer xixi e
se lavar, após treparmos na adolescência eram muito saudosas. E eu nem
gozava dentro, já que sempre usamos camisinha. Bom, nem sempre, mas...
quase sempre.
Catarina se mexeu, aconchegando-se com o rosto na minha garganta.
— Yan.
Sua voz estava cheia de fadiga e dor.
— Hum?
A encarei, e ela fez uma leve careta de choro, ainda de olhos fechados.
— Durma um pouco, Cat. Estou aqui. Não vou a lugar nenhum.
— Você promete?
— Sim. Pela minha vida.
— Você me ama, não ama?
— Mais que tudo, Cat...
Seus dedos resvalaram em meu peito. Meu pau estremeceu na hora,
claramente incomodado com a liberação que não aconteceu no carro.
— Cat... Eu acho que deve descansar...
Cada fibra do meu corpo queria fodê-la, mas Catarina estava
desgraçadamente abatida e eu não podia...
— Yan — repetiu, o tom urgente. Ela ainda não tinha aberto os olhos.
— Me coma...
Naquele momento, eu perdi o resto de princípios que tinha. Eu estava
arrebatado, aos pedaços, simplesmente entregue a sentimentos que eu não
podia evitar.
Me afastei um pouco para tirar a roupa. Os sapatos eu joguei num
canto. As meias, a calça... Tudo atirado no chão. Quando a encarei, nu, ela
ainda estava de olhos fechados.
Ah, ela não tinha dormido e me deixado de pau duro, tinha?
— Estou acordada.
Ela riu, e então eu percebi seus olhos se abrindo lentamente, um
sorriso maroto surgindo no canto da boca.
— Você é um bobo, Yan...
— Por quê?
— Porque se eu tivesse dormido, você nem teria me acordado, teria?
— Não. Eu iria bater uma no banheiro.
Ela gargalhou, mexendo os dedos, num chamado.
— Venha, seu idiota. Estou esperando você.
Eu escorreguei na cama. Catarina achegou-se novamente em mim,
uma perna passou sobre a minha, o braço dela na minha cintura e a boca
pousou na base da minha garganta.
Ah, cacete...
Ela lambeu o suor nervoso que descia pela minha garganta.
— Tão gostoso...
Meu pau ficou mais duro.
Ela girou na cama, subindo em cima de mim, suas mãos vagando,
acariciando meu peito, deslizando mais baixo para brincar com minha trilha
de pelos. Então se sentou sobre mim, puxando o vestido vermelho pela
cabeça. Eu já a vi nua uma centena de vezes, e ainda assim eu estava aqui,
embriagado pela sua beleza, completamente caído por ela.
Me peça o mundo, Cat, e eu lhe darei.
A lingerie era num tom nude. Ainda assim, contrastava com sua pele
pálida. Seus seios empinados balançaram quando ela curvou, beijando meu
queixo.
Meu pau estava rendido nesse momento, dando saltos para cima,
alucinado por ela.
Sua boca subiu, lambendo minha boca. Cat envolveu sua língua em
torno da minha, enquanto pressionava seus seios cheios contra mim.
Eu sonhei com momentos como esse por dez anos, naquela prisão
desgraçada. Eu sonhava com sua pele, com seu toque, com... amor...
— Cat... Ainda há uma chance para nós?
Se ela hesitasse por um instante, eu teria interrompido tudo. Poderia
ter me matado, mas teria feito isso. Todavia, ela assentiu, seus olhos firmes
nos meus quando ela soltou um suspiro.
— Eu amo você, Yan. Sempre haverá uma chance, se houver nós. O
problema é que eu não sei se vai restar alguma coisa de nós quando tudo isso
acabar.
— E se recomeçarmos? Esquecermos tudo e irmos embora?
Ela travou. Eu sabia que doía demais o pensamento de ir contra a mãe,
por pior que Sofia fosse. Os filhos de narcisistas sempre ansiavam por um
amor que não existia.
— Eu não sei se poderemos recomeçar.
Esfreguei meu polegar sobre o seu pulso.
— Como assim?
Havia um certo recuo em seu tom. Era como se ela fosse me revelar
algo importante.
— Eu quero isso. Quero você. Quero um recomeço. Mas, eu não sei se
o que me fizeram não danificou meu útero para sempre. Minha menstruação
nunca mais foi regular.
— Nunca foi num médico?
— Não consigo... pensar... em outro médico...
— Tudo bem, querida — a interrompi, porque vi a dor desenfreada. —
Nós vamos seguir em frente, com bebês ou não. Nós dois, ok?
Catarina bateu os quadris, moendo contra mim, para que eu não
tivesse escolha a não ser fechar os olhos e cerrar os dentes.
— Antes, eu preciso destruir Sofia — ela disse. — Isso vem em
primeiro lugar. — Ela moeu mais forte, sua bocetinha cavalgando sobre meu
pau. — Ah, Yan... Não me peça para desistir.
— Não vou...
— Ah... Por favor. Eu estou tão quente. — Sua voz saiu angustiada.
Girei-a na cama, caindo por cima dela. Segurei seus pulsos, assumindo
o controle. Então a beijei com tudo que eu tinha, com tudo que éramos. Dois
loucos apaixonados. Eu faria tudo por ela.
Desci a mão. Rasguei a renda do sutiã, liberando aqueles peitos
deliciosos. Minha boca avançou sobre suas aréolas, enquanto minhas mãos
desciam para a calcinha.
Puxei-a com força. Ela estava úmida e um líquido viscoso correu
quando a calcinha a deixou.
Abaixei minha cabeça, lambendo seu mamilo. Cat se mexeu embaixo
de mim, a respiração dela ia do acelerado para o ofegante. Abandonei seus
seios, agarrando todo o seu corpo. Lambi seus lábios, absorvendo seu
pequeno gemido enquanto beliscava seu mamilo.
— Segure a cabeceira da cama — eu disse em sua boca.
Ela obedeceu imediatamente, girando o corpo e ficando de quatro.
Coloquei-me atrás dela, segurando seus seios, deslizei minha boca em
suas costelas. Sua pele estava toda vermelha, especialmente entre as pernas.
Deixei meu olhar permanecer entre suas coxas enquanto beijava o caminho
até lá, sentindo ela dar estocadas para trás, como se implorasse que eu
cuidasse de sua parte úmida de desejo.
Soltei seus seios, e abri suas pernas com as duas mãos. Os lábios da
sua boceta se abriram no movimento, e eu me inclinei para deslizar minha
língua ali. Ela soltou um urro de pura necessidade, suas mãos se contorcendo
na guarda da cama.
Eu a saboreei. Meu gozo do carro ainda estava ali, eu sabia, misturado
ao seu sabor. Isso me deixava ainda mais quente.
Levei minha mão as suas madeixas e puxei para trás. A cena sexual,
seu queixo para cima, parecia tão incrível que eu poderia gravar na mente e
viver só por essa lembrança.
Tirei a boca de lá. Então, molhei a ponta dos dedos com a boca, e
comecei a fodê-la com a mão. Cat ofegou em desespero. Continuei,
maravilhado com o aperto em meus dedos. Estiquei, aumentei a velocidade,
e então bati do seu clitóris. Ela estava latejando e me apertando, e começou a
implorar pelo gozo.
— Ah... ah... ah...
Seus gemidos pareciam uma música. Então me pus nas suas costas,
encaixando meu pau na abertura.
— Yan! — ela gritou.
— Você me deixou duro no carro, sabia? Foi muita maldade.
— Yan...
Ela girou a cabeça para trás. Eu a beijei nos lábios, faminto por ela.
Catarina se esfregou contra mim, encharcando minha ponta. Meus quadris
avançaram por vontade própria. Ela gritou com a sensação da penetração, e
eu sorri diante do prazer.
— Estou tão apaixonado por você, Cat — murmurei.
Segurei sua bunda para que ela não se mexesse e meu pau escapulisse.
Então, comecei a bater como um louco desesperado, enquanto ela gemia em
meu encontro, cada impulso sendo recebido com gemidos manhosos.
Tentei ir com calma, mas eu estava quente demais.
— Yan... Yan... Aí... estou...
Não havia mais autocontrole comigo. Seus gemidos sem fim, sua
boceta explodindo, apertando meu pau com tanta força que eu não consegui
segurar meu gemido, tudo... tudo estava me deixando mais perto.
Eu bati duro, e ainda mais, e então explodi em mil pedaços.
Sua boceta começou a me drenar, e uma parte de mim imaginou que
podíamos ter a sorte de ela engravidar de novo nesse momento, e podermos
recomeçar uma família, uma nova chance para sermos felizes.
Eu era um assassino, não sabia se merecia qualquer oportunidade,
mas... se eu tivesse... se eu tivesse uma única chance... eu faria por merecer.
Seria o melhor cara do mundo para ela, eu a amaria em cada segundo para o
resto de nossas vidas. Para sempre e sempre.
Eu caí em cima dela, meu pau dentro dela. Catarina soltou a cabeceira
e suas mãos desabaram ao lado da sua cabeça.
— Yan? — Catarina chamou.
— Hum?
— Isso foi tão duro…
Minha boca se abriu num sorriso.
— Eu te amo...
— Eu te amo também.
44

Eu não fiquei surpreso quando abri a porta e dei de cara com Abel. É
claro que ele iria atrás do seu melhor assassino quando percebesse que eu
andava afastado da Castle. Ainda assim, não me senti intimidado.
Respeitosamente, dei um passo para trás e permiti sua entrada.
Ele estava sozinho. Ao menos ali. Não que devia estar sozinho no
prédio. Nesse momento, o edifício de Catarina devia estar cercado de
homens fortemente armados.
— Eu vim conhecer sua garota — ele me disse, e rumou para dentro.
Eu não havia dito a ninguém sobre minha volta com Catarina, mas eles
deviam ter entendido as nuances. Era claro que eu sempre fui apaixonado
por ela, só eu mesmo não queria ver.
Cat surgiu na sala nesse momento. Ela estava preparando nosso jantar,
e trazia um pano de prato nas mãos. Pareceu curiosa com cena, mas não
temerosa. Talvez sentisse que não tinha nada a temer pela calma em mim.
— Cat, esse é Abel. Ele é o chefe da Castle — expliquei a ela.
Catarina arregalou os olhos, seu olhar cruzando o meu e então
volvendo para ele. Ela pareceu um tanto temerosa em lhe cumprimentar, mas
Abel adiantou-se e foi até ela, segurando seus ombros, apertando e lhe
puxando para um abraço.
Ele lhe deu um beijo na testa, e eu que sorri. Abel sempre se sentiu
Corleone de O Poderoso Chefão, e essa cena me lembrou muito o filme.
— Você é linda como o sol — ele murmurou. — Éder me disse o que
aconteceu com você, criança. Tem a minha simpatia. E terá de mim o que
precisar, já que a garota do meu menino favorito.
A frase caiu como uma bomba em mim, porque eu basicamente pensei
que Catarina rejeitaria a ideia e colocaria Abel para correr. Mas,
repentinamente, ela sorriu.
— É mesmo? Eu agradeço muito.
Sua voz era suave, tão doce e delicada que quase tinha mel. Abel se
encantou de imediato, mais do que já estava, e volveu para mim.
— Ela é perfeita.
— Eu sei — disse.
Mas, de verdade, eu não sabia. Estava angustiado por Catarina estar se
envolvendo com a Castle. Eu não a queria metida em coisas erradas. Já
bastava eu mesmo ter me desgraçado a vida, ela podia ter uma saída.
— Será que posso conversar com o senhor em particular? — pedi.
Abel assentiu. Mas, antes que ele desse um passo, Cat segurou suas
mãos.
— O senhor sabe o que fizeram comigo, não sabe? Éder lhe contou...
Então... Será que pode me ajudar? Eu preciso de algumas informações sobre
Sofia de Vaz.
Ela jogou assim, de cara, sem nenhum planejamento. Pensei que Abel
a afastaria, mas ele concordou. Os olhos verdes e os cabelos loiros de
Catarina pareceram enfeitiçá-lo.
— Podemos fazer mais que isso, criança.
— Só os dados que pedirei ao senhor será suficiente. Enquanto
conversa com Yan, vou anotar tudo num papel.
Enquanto ela se afastava em direção ao escritório, Abel seguiu comigo
para a sala de estar. Sentamo-nos no sofá, e eu fiquei em dúvida sobre o que
lhe dizer, e como dizer.
— Pensa em sair da Castle? — ele indagou.
— O senhor me mataria se eu saísse?
— Não, Yan. Não faria. Como eu já lhe disse muitas vezes, eu tenho
uma dívida de sangue com você. Posso não ser o melhor pai do mundo, mas
me preocupo com Éder, e o fato de você tê-lo salvado na prisão nos uniu
num vínculo mais forte que tudo.
Eu agradeci.
— Eu não sei se vai sobrar alguma coisa de Cat ou de mim quando
tudo isso acabar — me inclinei no sofá e murmurei para Abel. — Uma
mulher morreu recentemente. Uma enfermeira. Era a enfermeira que fez o
aborto em Catarina.
— Você a matou?
— Não. Foi Cat. Ela a enforcou com um fio de Nylon.
Abel abriu a boca, espantado. Eu sabia que ele estava custando a
acreditar que a menina doce e delicada que ele viu era também uma
assassina.
— A próxima vítima é a mãe dela. É a mãe. Era uma filha da puta
desgraçada, mas ainda é a mãe. Eu não sei o quanto isso vai custar para Cat.
Talvez ela enlouqueça depois de tudo.
— Jesus... — Abel murmurou.
Ele resvalou para trás, no sofá.
— Incrível... vocês dois são almas gêmeas — ele completou, e a frase
me surpreendeu.
Talvez fosse verdade, se é que havia alguma coisa de espiritual na
nossa dor.
— Se restar alguma coisa quando tudo isso acabar, eu gostaria de
seguir o que teríamos feito dez anos atrás. Irmos para uma cidade pequena,
longe... bem longe... e recomeçarmos a vida.
Ele assentiu. Cat voltou nesse instante, e estendeu um papel para Abel.
— Senhor, aqui está. Eu agradeço se puder me ajudar.
Eu não sabia o que estava escrito, mas Abel sorriu ao lê-lo.
— Isso será fácil, boneca — ele disse. — Pais e mães podem errar.
Mas, não tem o direito de destruir os filhos intencionalmente. Você terá meu
apoio — ele se levantou. Novamente, segurou os ombros de Catarina,
observando sua face. — Meu menino já sofreu demais. Se você sentir que
não está dando para você, que está perdendo o controle... simplesmente me
fale e eu termino com isso — avisou. — Vocês dois são jovens e podem
recomeçar, por mais difícil que isso pareça.
45

Eu já gostava de Abel desde o momento que ele apareceu no meu


apartamento procurando por Yan. Mas, agora... Com aquele montante de
papeis nas mãos, depois de apenas dois dias após sua visita, denotando o
quanto ele levou a sério meu pedido... Simplesmente, eu o adorei, não
importava o quão terrível eram as coisas que falavam dele na televisão, em
programas policiais.
— Cat — a voz de Yan me faz erguer a cabeça dos papeis.
Estávamos sozinhos na minha sala. Um dos homens de Abel havia
acabado de ir embora, depois de ter me trazido os documentos.
— Como será que ele conseguiu isso?
— Provavelmente subornou algum bancário. Não é difícil pegar os
dados das contas de sua mãe, só precisávamos de alguém lá dentro. Enfim, o
que diz?
Eu sorri.
— Ela está quase falindo. Sofia torrou tudo que meu pai deixou para
ela durante os anos. Só mantêm uma única reserva de fachada. Um dinheiro
de investimento, que rende o suficiente para ela pagar as despesas do dia a
dia. Duvido que alguém saiba que ela está à beira de perder tudo.
Aparentemente, ela até atrasou o salário da sua doméstica no mês passado.
Os pagamentos costumavam serem feitos no dia 05, mas ela não pagou antes
do dia 12.
A frieza que vi em Yan era de arrepiar.
— Cat... O que você pretende fazer?
— Roubá-la, é claro. Deixá-la sem nada.
Ele sentou-se diante de mim no sofá. Seu corpo resvalou para trás e,
enfim, sua máscara calculista desabou, enquanto ele observava o teto, sua
cabeça pendendo para o apoio do sofá. Estava tão bonito assim que eu quase
estendi as mãos para tocá-lo, apenas para me assegurar que os últimos dias
não eram um sonho fantasioso em que Yan estava de volta, que Yan que
amava e que ele tinha uma desculpa – uma boa desculpa – para ter sumido.
Nem parecia real. E eu temia foder com isso de alguma forma e perdê-
lo. Estava na corda bamba entre me focar em destruir Sofia e ainda ter tempo
para ele, assegurá-lo de que eu o amava, e de que tudo que me importava era
estar ao seu lado.
Fazer sexo com ele todas as noites não parecia o suficiente. Eu me
agarrava nele sempre que chegávamos ao gozo, seu calor úmido escorrendo
entre meu corpo. Estava sempre em alerta com medo de que fosse embora.
— Como vai fazer isso?
— Abel me mandou um bilhete sugerindo um investimento fantasma.
— E como vai convencê-la a deixar suas finanças caírem nas mãos de
Abel?
— Eu ainda não sei...
— Cat...
Seu rosto virou e me encarou. Ele parecia querer me dizer alguma
coisa.
— Cat... eu não quero você metida com a Castle.
Como assim? Ele era parte da Castle, então era natural que eu
estivesse enfiada até o pescoço com seus membros. Mordi meu lábio
inferior, tentando descobrir uma maneira de chegar até ele. De compreender
o que ele pensava.
— Yan...
— Você entende que a Castle é uma facção criminosa? Vendemos
drogas. Somos um cartel. Matamos quem se coloca em nosso caminho.
Sua mandíbula apertou quando eu não respondi sua colocação de
imediato. Eu não poderia dizer o que ele estava pensando, sua expressão era
um completo mistério para mim. Por que Yan estava preocupado com
moralidade agora?
— Eu já sou uma assassina — fui firme. — Não estou tentando
redenção.
— Você matou uma pessoa. Ok, não é fácil, mas você teve motivos.
Você se vingou do que Carla lhe fez. Contudo, não é assim na Castle. Eu
matei gente que nunca me fez nada. A gente mata sob ordens. Pessoas boas
ou más, não importa. Abel manda e eu executo. Eu não quero você nisso.
— O que te preocupa? Acha que vou entrar para a facção?
— Eu não sei, Cat. Você está trocando bilhetes com Abel, pedindo
favores a ele. Não acho que ele vai te obrigar a qualquer coisa, mas...
francamente... eu estou com medo.
Eu sorri diante da sua preocupação, porque era doce, como sempre. Eu
me inclinei para a frente, indo até o chão, ficando de joelhos diante do sofá
que Yan estava. Minhas mãos brincaram com suas coxas, enquanto eu sorri.
— Não se preocupe comigo, meu amor — pedi.
— Como não, Cat...? Me diga, o que vai acontecer quando isso
acabar? Você vai voltar a vida de influencer como se nada tivesse
acontecido?
— Não. Essa parte do jogo acabou para mim. Por mais que eu ame o
carinho das pessoas, eu pretendo ir para o anonimato. Pegar o dinheiro que
ganhei, e... sei lá... Ir morar numa cidade pequena. O que acha?
Era nosso desejo, quando jovens. Eu não pensava nisso, porque estava
focada em Sofia, mas queria dar qualquer esperança a Yan para tirar dele
aquela carranca preocupada. Então, quando ele suspirou pesadamente, como
se lutando para espantar qualquer crise, sorri.
— Me dê os papeis. Quero dar uma olhada — disse, ajeitando o corpo.
Eu os entreguei, enquanto continuei acariciando sua coxa. Eu vi seu
pau ficando mais e mais estufado na calça e um sorriso safado se formou em
meu rosto, pensando em como seria agradável liberá-lo naquele princípio de
tarde. Yan e eu tínhamos dez anos de atraso, então eu não me preocupava em
como estava sedenta por ele.
— Você reparou que sua mãe faz grandes transferências bancárias para
uma pessoa chamada Mateus Callegaro?
Arqueei minhas sobrancelhas, meu movimento travando antes de
alcançar seu pau.
— Quem?
— Eu ia te perguntar isso. Conhece alguém com esse nome?
Neguei.
— Eu acho que seria legal descobrirmos quem é.
46

Cat estava tão linda que doía os olhos. As mãos dela estavam sempre
vagando pelo meu corpo, e isso me dava uma satisfação tão grande que era
maior que o sexo. Ela estava confiando em mim de novo. Esse nível de
intimidade era o que eu sempre sonhei com ela.
Se nosso filho estivesse aqui, estaríamos vivendo o momento perfeito.
Mas, ele não estava. Esse vazio não podia ser ignorado.
Cat olhou para mim do outro lado da rua. Ela estava usando uma blusa
que mostrava a barriga, e uma saia curta, tão curta quanto as que as meninas
da Castle usavam na ilha. Seu corpo exposto me deu nos nervos, porque eu
via a forma como os homens a olhavam quando cruzavam por ela. Um ou
outro até disse alguma bobagem, mas ela ignorou, ciente que eu estava perto
para protegê-la de qualquer babaca.
Catarina fez um sinal com a face momentos depois. Eu ergo os olhos,
meu corpo ficando em alerta. Posso ver um jovem de uns vinte anos saindo
de uma academia. Ele era o típico playboyzinho que vivia pela própria
aparência. Ao lado dele, duas garotas riram animadas, e pareceram bem
sugestivas ao se despedir. O cara ainda ficou observando-as de longe, até
elas sumirem no horizonte.
Só então ele prosseguiu em sua caminhada. Nós não sabíamos se ele
tinha algum carro ou coisa do tipo, então achamos melhor não demorarmos
para agir. Pude ver Catarina indo até ele, passos retos e seguros. Quando ela
estava em torno de dois metros, ela olhou para baixo e se lançou no homem,
trombando nele com força, quase caindo ao chão.
Minha garganta ardeu de raiva quando ele a segurou, risinhos bobos
enquanto ela deslizava as mãos pelos músculos dos seus braços.
Eu caminhei para perto deles, lentamente, apenas para ouvir um pouco
da conversa.
— Nossa, eu quase caí...
— Tudo bem. Está segura agora.
— Você é tão forte...
— Imagine...
— Eu me pergunto se estou no meu dia de sorte em cair nos seus
braços...
Eles começaram um diálogo tosco, sexualmente sugestivo. Não levou
nem cinco minutos para Cat convencê-lo a segui-la até um beco próximo.
— Eu tenho impressão de que já vi seu rosto em algum lugar... — ele
comentou, enquanto andava ao lado dela.
Eu não estava distante o suficiente para ser poupado do flerte idiota.
Catarina riu tão feliz que jurei que, quando isso acabasse, eu iria bater tão
duro na boceta dela até deixá-la arregaçada, para ela aprender a nunca mais
flertar com outro homem.
Enfim, eles chegam até um local isolado. O rapaz não pestaneja em
tentar abraçá-la sem nem querer saber seu nome. A vida mudou muito desde
que eu me lembre. Há dez anos, as pessoas não pensavam em sexo tão
facilmente. Havia um certo mistério, uma tentativa de sedução. Agora, era
tudo rápido, lutas desesperadas por algum tipo de alívio.
Era como se faltasse alguma coisa no mundo. Então as pessoas
estavam desesperadamente tentando preencher o vazio com dinheiro, poder
ou sexo.
— Espere — Cat o empurrou gentilmente.
— O que foi, gata?
Gata...
Meu estômago queimou.
— Você disse que já viu meu rosto em algum lugar. Tem razão. Viu
meu rosto em outra mulher. Eu sou fisicamente muito parecida com a minha
mãe.
O rapaz deu dois passos para trás. Eu acho que na cabeça dele houve
um emaranhado de pensamentos, porque logo seus olhos começaram a
entender de onde ele conhecia Catarina.
— Eu... — ele começou, enquanto se afastava, mais e mais.
— Minha mãe, Sofia de Vaz, está torrando todo o dinheiro dela te
dando presentes caros. Dei uma pesquisada e descobri que é o personal
dela...
Ele tentou se afastar, mas eu apareci no seu caminho. O cara teve a
audácia de não recuar, imaginando que seus músculos de peso artificiais me
dariam qualquer medo. Eu puxei uma arma e apontei para a cara dele quando
ele tentou erguer a mão para me dar um soco.
— Olhe — ele murmurou. — Eu não quero problema — disse, rápido,
enquanto recuava com as mãos em rendição.
— Ah, quer sim... Quando está torrando o dinheiro de uma perua rica,
quando ela tem uma filha ansiosa para pôr a mão na herança — Cat
retorquiu, isso nem era bem verdade. Ela tinha muito mais dinheiro que a
mãe.
— Dona Sofia me mimou um pouco — ele concordou. — Mas, a
maioria das mulheres que eu treino faz isso.
— Sofia é uma mulher bonita — apontei. — Ela é uma versão mais
velha de Cat... É uma mulher muito interessante. Vai me dizer que ela está te
dando milhares de reais apenas por “carinho”?
— Bom... a gente transa um pouco também.
— E ela paga seu aluguel, seus gastos, sua academia. Ela até te bancou
numa viagem para a Europa meses atrás.
— Ela é muito generosa.
— Aham... — murmurei. — Mas, isso acaba aqui. É sua escolha sair
com o que conseguiu, sumir da vida de Sofia. Se insistir em ficar, pode ter
certeza de que vou colocar toda a Castle no seu caminho.
O nome da facção produziu mais efeito que qualquer arma. O rapaz
concordou de imediato, começando a se desculpar. Quando deixamos que ele
se fosse, Catarina me encarou.
— Você ficou tão gostoso apontando a arma para ele — ela suspirou.
— Me deu tesão.
— Então vamos para casa resolver isso — disse, guardando a arma no
coldre.
Ela riu baixinho enquanto assentia. Era tão fácil quando era com Cat.

∞∞∞
Ela se endireitou, um pouco vacilante enquanto quicava no meu colo.
Eu estava segurando o tanto que podia para deixá-la gozar primeiro, mas a
forma como seus seios empinavam diante de mim me fez mergulhar num
orgasmo potente, enquanto lutava desesperadamente por tocá-la e provocá-la
até levá-la ao limite.
Cat caiu sobre meu corpo, seu sexo pulsando e ordenhando o meu. Ela
cambaleou para o lado quando recebeu todo meu leite, deitando-se na minha
lateral, um sorriso bobo no rosto.
— Vou tomar banho — me disse, e eu a segurei, não a deixando ir.
— Depois.
— Estou fedendo suor — brigou.
— Cat... cinco minutos, por favor... Me deixe cheirá-la.
Eu a trouxe para mim, meu nariz brincando com seu pescoço enquanto
a abraçava. Seu dedo deslizou pela minha pequena tatuagem, sorrindo
enquanto sentia minha pele.
— Você tem que fazer a barba — ela me disse. — Hoje me espinhou.
— Hum... eu iria fazer, mas você me fez perder quase uma hora de
manhã, exigindo sexo.
Ela riu, e o som parecia uma música idílica, quase como se eu
estivesse ouvindo Enya. Quando o som cessou diante do barulho ritmado do
celular, eu gemi de insatisfação. Só queria um momento com a minha garota,
mas aparentemente a vida real sempre se intrometeria entre nós.
— É Sofia — Cat disse, pegando o aparelho.
Ela o atendeu e o colocou no viva-voz. Eu me sentei na cama,
aguardando a conversa.
— Oi, mãe — cumprimentou, com uma falsidade que me arrepiou.
— Catarina! — a voz de Sofia surgiu, revoltada, do outro lado da
linha. — O que você fez? Meu namorado acabou comigo. E ele disse que era
por sua causa.
— Namorado? O nome correto é gigolô!
— Por que fez isso? — com surpresa, ouvi um choro sentido, e
arqueei as sobrancelhas.
Aparentemente, o monstro tinha sentimentos.
— Por quê? Esqueceu que você também se intrometeu entre Yan e eu?
— Filha, você tinha dezessete anos! Eu fiz o que qualquer mãe teria
feito. Eu te dei um futuro. Você pôde estudar, conhecer o mundo. Graças a
mim.
— Você destruiu a minha vida. E você prendeu Yan.
Ela pareceu chocada por Catarina saber.
— Filha... Esse homem... ele é só um pobretão. Eu só queria afastá-lo
de você. Não foi minha culpa que ele se meteu em problemas na cadeia. Isso
só mostra que ele tinha má índole. Você devia ser eternamente grata.
Eu desviei meus olhos da tela. Talvez uma parte dela estivesse certa.
Fui eu que me meti em confusão lá. Eu matei um homem. Ela me colocou na
cadeia, mas foi minha culpa ter pegado dez anos.
Todavia, a mão de Cat deslizou pelo meu braço. Eu a encarei, e vi o
amor em seus olhos.
— Sofia — ela disse, alto, e em bom tom. — Se prepare. Mateus foi
só o começo. Eu vou te deixar sem nada, tão vazia quanto eu fiquei, quando
você me roubou tudo.
E então Cat desligou.
47

— O que foi? — indaguei, diante do olhar profundo de Yan.


Estávamos em um café na área central. Sozinhos à mesa, enquanto uma
xícara quente fazia com que uma fumaça perfumada invadisse nossa mente.
A cafeína era a única droga que eu curtia. Às vezes fumava, mas era mais
quando precisava limpar a mente. Beber era algo raro. Mas, tomar café...
isso era o paraíso.
— Meu batom está borrado? — perguntei, diante do olhar.
Yan sorriu. Seus dentes perfeitamente alinhados surgiram, enquanto
ele balançava a cabeça.
— É apenas... eu nunca canso de olhar você — ele confessou, me
fazendo enrubescer.
Era como uma lua de mel. Ok, estávamos focados em destruir e odiar
e, ainda assim, só queríamos sentir o corpo um do outro, como se nunca
fosse o bastante.
Repentinamente, passos. Ergui minha face e percebi dois homens
bonitos se aproximando. Um deles eu conhecia de algum lugar, mas não me
recordava direito de onde. O outro era um jovem muito bonito de uns vinte
anos, de aparência surreal, como um anjo de cachos dourados.
— Cat, esse é Álvaro — Yan o apresentou. — Ele já te procurou uma
vez. Você o colocou para correr.
— Oh — murmurei, envergonhada. — Não sei o que dizer.
Álvaro balançou a cabeça, desvalorizando o evento.
— É um prazer, Catarina — ele disse. — Ouvi falar muito de você
durante esses anos todos. — Sua frase me fez sorrir como uma idiota. —
Este é Kauan. Ele é estudando de direito. Nosso protegido, estamos pagando
sua faculdade. E, como vocês podem ver, é bonito pra caramba.
Eu não pude esconder o sorriso diante das palavras. Uma parte era
pelo tom aveludado de Álvaro em falar do rapaz. Outra porque Kauan
parecia exatamente o tipo que eu estava procurando.
— Abel falou sobre nosso plano? — Yan lhe indagou, enquanto os
dois homens sentavam-se à nossa frente.
— Sim. Abel está ansioso para colocar as mãos no resto do dinheiro
da sua mãe — Álvaro riu para mim. Depois, encarou Yan. — Você sabe
como Abel é.
— Sim...
— E quanto tempo você acha que nosso plano vai levar? — indaguei.
— Isso é com Kauan — Álvaro deu os ombros. — Umas duas
semanas de olhares na academia, uma aproximação banal, Kauan vai indagar
se ela está sem personal... Depois alguns convites para jantar, sexo — ele
pareceu envergonhado em dizer a palavra diante de mim, não sei se era
porque eu era mulher, ou se porque Sofia é minha mãe. — Kauan vai pagar
tudo. Diferente do outro, ele vai mostrar para Sofia que tem dinheiro. Abel
até já alugou um apartamento numa área de luxo só para impressioná-la.
Então virá os comentários sobre investimentos. Kauan vai mostrar que está
investindo no ramo imobiliário, e vai apresentar um projeto que, prometerá,
dobrará o capital de Sofia. É claro que o projeto nunca vai sair do papel, e os
documentos serão falsos. Tudo isso poderá levar meses. Você acha que ela
vai cair? — ele me indagou, diante da explanação.
— Sim. Ela é impressionável. Facilmente manipulável. Ela acha que
quem tem dinheiro é superior a todo mundo. Se o rapaz mostrar para ela que
tem mais dinheiro que ela, Sofia colocará a vida nas mãos dele. — Encarei o
rapaz. — Está tudo bem para você fazer isso?
— Sua mãe é muito bonita — ele murmurou, deixando claro que seria
muito prazeroso. — Com todo respeito, tanto quanto você.
— Ei! — Yan reclamou.
— Não vai ser nenhum sacrifício transar com ela. Nem mentir para
ela. Mentir, aliás, é meu negócio. Eu estou me preparando para ser um bom
advogado e, depois, talvez, um delegado ou juiz. Estamos focados — ele
incluiu a Castle na observação. Eu soube, então, que a facção era maior do
que eu imaginava.
Eu queria acabar com isso logo. Mas, eu entendia que atropelar o
plano só o colocaria em risco. Ainda assim, meses pareceu tempo demais
para eu seguir em frente. Como eu poderia planejar um reinício sem acabar
com Sofia antes?
— Sobre a enfermeira? — Yan cortou meus pensamentos. — Alguma
coisa sobre a investigação da morte dela?
— Não se preocupem. Já plantamos uma pista falsa de um ex que não
aceitava um término. Feminicídio está na moda aqui no Sul. Toda semana é
cinco ou seis mulheres mortas por namorados, maridos, ex... ela vai se tornar
só mais um número. A polícia mal está dando conta de tantas mortes. Além
disso, temos o tráfico, os roubos... Enfim, nada para se preocupar.
Eu não estava pensando em Carla. Basicamente, a eliminei da minha
mente depois de matá-la, mas percebi que Yan estava preocupado em cobrir
meus rastros. Isso denotou que fui imprudente em fazê-lo.
Foi tão estranho. Toda a situação era tão complexa.
Levei minha mão para minha xícara. Meu café estava frio. Meu
estômago doeu um pouco, eu estava com fome. Ergui minha mão para a
atendente e solicitei um pastel de carne.
— É tão estranho ver você comendo isso — Álvaro riu, me fazendo
arquear as sobrancelhas.
— Como assim?
— Ora... é uma fritura. Eu achei que não colocasse nada assim na
boca.
— Bom, antes eu me cuidava mais, por causa do trabalho. Mas, agora
eu tô cagando pra isso.
Ele riu de novo, me fazendo rir também.
— Sua garota é preciosa, Fera — comentou, em direção a Yan.
Sentindo um rubor começar a colorir minhas bochechas, aceitei o
elogio. Quando a mão de Yan segurou a minha por baixo da mesa, fiquei
aquecida pelo aspecto doce do momento.
Nem parecia que estávamos planejando destruir minha mãe.
Era só um encontro casual entre amigos.
A vida é uma caixinha de surpresas.
48

Eu me sento sobre um banco de madeira. Diante de mim, o velho


Henrique apresentava uma aguardente que ele mesmo fez. O homem estava
tão orgulhoso do seu feito que me forçou a beber uma dose, mesmo eu me
recusando três vezes.
Não sou chegado a bebidas. Na minha profissão é importante estar
sempre atento. Ainda assim, bebi, já que estávamos em local seguro, em um
bar fechado, usado apenas pelos membros da Castle para reagrupar e se
reorganizar.
— Eu não sei ainda o que gente faz — Éder comentou ao meu lado,
sua presença me fazendo rir.
— Você é sempre tão preocupado.
— Um dos caras quer sair. Você sabe como meu pai é. Ah, estou puto
pra caralho com isso. Sabe quanto tempo eu levei para conseguir achar
mergulhadores de confiança?
Acenei com a mão desdenhosa para meu amigo.
— Sim, sim... você já falou um milhão de vezes.
— Seis meses! — ele repetiu, mais uma vez. — Seis meses
investigando o pessoal, testando os caras, e tal... e agora ele quer sair? Sabe
como é difícil eu completar a equipe? — foi insistente na ideia.
— Você devia investir em jovens da comunidade. Pagar cursos de
mergulho, ao invés de ficar correndo atrás desses riquinhos que só estão
nessa para ostentar.
Expandir os negócios para a Europa era um trabalho árduo. Sem poder
transferir a mercadoria por aeroportos, já que eles estavam cada vez mais
determinados em impedir o comércio, nosso intento passou a ser os navios.
Não podíamos colocar as drogas dentro das embarcações, já que também
eram vistoriadas, então aproveitávamos as noites para equipes de
mergulhadores prenderem os pacotes no casco dos navios. Lá na Europa,
outra equipe aguardaria os barcos para desprender as drogas. Era perigoso e
trabalhoso, mas estava rendendo muito dinheiro.
— Mas, isso levaria meses — ele ralhou. — Meses que eu não tenho.
Meu pai vai ficar puto. E, talvez, você tenha trabalho.
— Acha que ele vai matar o cara que quer sair?
— O cara sabe muito. Esse é o tipo de negócio que ninguém sai.
É...
— Eu... eu pensei em sair — murmurei a ele, não sei se esperava
apoio, mas precisava lhe dizer.
Éder era meu irmão.
— Bom, o pai disse que você é uma exceção. Acho que ele gosta de
você mais do que de mim — deu os ombros. — Quando tentei sair, ele me
colocou na cadeia. Você lembra?
Dei de ombros.
— O que eu posso te dizer, meu amigo? Seu pai só tem você. Se você
sair, para quem deixará tudo que conquistou com a Castle?
— Minha mãe disse a mesma coisa quando me entregou para ele —
comentou.
Éder nunca tinha falado da mãe, e eu não fazia ideia de quem era. Eu o
encarei, talvez a dúvida resplandecesse em minha expressão, porque logo ele
se explicou:
— Ela era uma prostituta que foi exclusiva por meses, até engravidar.
Ela me criou até os cinco anos, e depois me levou para meu pai.
— Eu sinto muito — murmurei.
— Ah, tudo bem. Estou nessa, consumido até o pescoço. Mas, é como
diz o ditado, toda piroca desaparece quando está afundada no seu cu.
O encaro por um minuto antes de cair na gargalhada.
Subitamente, eu sinto uma mão feminino deslizando pelo meu braço.
Faz tantas semanas que não tenho contato com outro toque que não seja Cat,
que quase dou um salto na cadeira. Por fim, percebo ser Mirella.
— Como está? — pergunto para ela, quando a percebo sorrindo na
minha direção.
— Com saudades. Faz tempo que não te vejo. Não foi mais a ilha —
ela deu os ombros.
Acenei. Meu olhar a deixando e encarando meu irmão.
— Agora estou na cidade, com muito trabalho. — Volto a olhá-la. —
O que faz fora da ilha?
Ela deu os ombros, apesar de eu saber a resposta. Mirella precisava
estar onde os homens estavam, porque era seu papel na Castle estar sempre
disponível. Isso não parecia chateá-la, todavia.
— Por que nós dois não vamos para um quarto? — ela indagou.
Eu nem sabia que havia quartos aqui no bar.
— Yan está compromissado, agora — Éder lhe disse, parecendo
querer explicar por que eu parecia recuar diante do avanço.
— Com a velha? — Mirella indagou.
— Velha? Cara... ela é super linda — Éder jogou a indireta, parecendo
se divertir com o olhar raivoso de Mirella.
Mas, eu não estava no clima para essa rivalidade. Francamente, a
aparência de Catarina – por mais perfeita que fosse – era o último dos
motivos do porquê eu a queria. Nossa ligação era profunda ao ponto de a
idade, ou condição física, não importar.
— Eu sou mais linda. E meu peito é duro. Você não quer tocá-lo, Yan?
— ela tentou levar minhas mãos aos seios, rindo, e eu não sabia se era uma
brincadeira ou ela estava falando sério.
De qualquer maneira, puxei minha mão.
— Não tenho tempo para isso — resmunguei.
— Eu espero você ter — ela apontou, não entendendo minha
colocação. — Eu espero o tempo que for preciso.
Repentinamente, ela avança. Eu sinto seus lábios no meu pescoço, e a
empurro talvez usando força excessiva. Não gosto de ser grosseiro com
garotas, mas Mirella está ultrapassando meus limites.
Ela fica um tanto chocada com a rejeição. Talvez até com raiva, já que
não é acostumada a um homem lhe dizer não. De qualquer maneira, isso não
é problema meu. Lidar com as frustrações da vida é algo que ela vai ter que
aprender.
— Preciso ir — digo a Éder. — Cat estava no banco quando eu saí.
Não falei a ela que iria me ausentar, e não quero que se preocupe.
Meu amigo assentiu.
Então eu me afastei sem dizer mais nada.
49

Entrei pela porta para dar de cara com uma Cat franzindo o rosto,
claramente desconfiada só Deus sabia do quê.
— Onde você estava? — ela inquiriu, e não sei se foi pelo tom de sua
voz, ou pela maneira como ela parecia desconfiar de mim, mas não gostei
disso.
— Com Éder — respondi, ainda assim, afinal, eu não tinha nada a
esconder.
Nós não costumávamos ficar um longe do outro desde nosso
reencontro. Estávamos sempre juntos, e toda vez que eu precisava me
ausentar para ir até a Castle, a avisava. Mas, acabou que a reunião com Éder
foi feita sem planejamento, e Cat não estava em casa quando eu fui
comunicado. Agora percebo que devia ter lhe enviado uma mensagem, mas
não pensei que fosse importante horas atrás.
Ela avança na minha direção. Parece divagar, pelo que, não faço ideia.
Repentinamente sua mão se ergue e ela segura meu queixo, virando meu
rosto para o lado.
— Tem uma marca de batom no seu pescoço.
Eu estava prestes a protestar quando me lembrei de Mirella se
inclinando sobre mim. Isso me irritou, e eu desviei das mãos de Catarina, seu
olhar carregado de julgamento pesando demasiadamente.
— Não fiz nada.
— Então por que tem uma marca de batom no seu pescoço? — ela
gritou.
Ela tinha esses rompantes, às vezes, claramente perdendo o controle.
Me lembrou muito o momento em que ela avançou contra mim, ainda na
ilha, tentando me bater.
— Mirella estava lá. Ela tentou, e eu a rejeitei.
— Bela rejeição! Não será esse argumento furado que vai me
convencer dos motivos de ter uma marca de boca no seu pescoço.
Eu me sinto como se ela estivesse me chutando no saco, diante de
tantas dúvidas. Droga, nós dois, antigamente, não tínhamos a menor
desconfiança um do outro. Nem ciúmes. Éramos muito cúmplices. E agora
ela não acreditava no que eu estava dizendo.
Os dez anos que nos separava dos adolescentes apaixonados pareceu
pesados demais.
— Eu não fiz nada, Cat. Você pode confiar em mim.
Uma sombra cruzou seu rosto. Eu conhecia aquele olhar.
— Eu não sei... — admitiu.
Dez anos me odiando, acreditando que eu a abandonei sozinha quando
jurei nunca fazê-lo, voltou com tudo. Mesmo que ela soubesse a verdade,
todo o seu instinto lhe dizia para recuar diante de nós.
— O que eu sei é que tem uma marca de batom no seu pescoço.
Ela parecia uma bomba-relógio prestes a explodir. Eu quase podia
ouvir o som do tic-tac tamborilando nos meus ouvidos.
— Catarina — fui firme. — Você quer que eu saia?
— Não.
— Então você precisa acreditar no que eu estou te dizendo. Você
precisa voltar a confiar em mim, como antes.
Ela me encarou por um longo momento. A raiva borbulhando sob a
superfície da racionalidade. As dúvidas confrontando minha súplica. Eu
quase podia lê-la.
— Está certo — assentiu. — Eu vou te dar um voto de confiança, e
crer que Mirella forçou isso. Mas, se eu encontrar outra marca de batom no
seu pescoço, inocente ou não, eu te mato.
O que eu posso dizer? Eu sou louco por essa mulher. Eu aceito isso,
ciente de que vou precisar ser mais cuidadoso no futuro. Está bem para mim,
porque nem passa pela minha cabeça trair Catarina.
O quão tóxicos podemos ser um para o outro?
50

Dois meses depois


O calor está de matar. Eu quase posso sentir um fio de suor
escorrendo pelas minhas costas, e anseio por sair dessa festa infantil, repleta
de crianças correndo de um lado para o outro, e ir me esconder em algum
lugar com ar-condicionado.
Suspiro. Ainda assim, esse lugar é o paraíso. Adiante, é possível ver a
natureza que cerca a Chapada dos Guimarães, e há até mesmo alguns
homens com animais silvestres circulando entre as crianças, apresentando os
bichos e explicando sobre a fauna.
Eu gosto daqui. Tirando o calor, parece um ambiente acolhedor.
Gente simples, e natureza. Há um tipo de pureza que não sei explicar.
Volto meu olhar procurando por Catarina. Ela sumiu entre os
presentes. Me sinto um pouco abandonado porque não conheço ninguém,
mas compreendo que, como madrinha de Maria Elena – a aniversariante –, é
natural que ela esteja ocupada com aquela comemoração de primeiro
aniversário.
Mais gritos infantis. Um dos homens com animais mostra uma arara
vermelha para as crianças, que berram animadas diante da beleza do animal.
Eu também paro um pouco para admirá-lo. Eu gosto de animais. Acho
que se eu pudesse dar o fora dessa merda de vida que tenho, escolheria lidar
com bichos. Afinal, eles não me julgariam por matar gente que nem
conheço, apenas sob ordens.
Dou de ombros, enquanto giro para o outro lado.
Não me culpo por tudo que já fiz. Eu passei dez anos em um dos
piores presídios do país. Eu faço o que faço porque é como sobrevivo. Não
há diversão ou prazer no ato.
— Então você é Yan? — um homem surge ao meu lado.
Eu o encaro. É um homem grande, um pouco mais velho do que eu.
— Sim. Você me conhece?
— Eu sou Lorenzo.
Eu reconheço o nome. Uma ponta de ciúmes corroí minha mente. Ele
é o melhor amigo de Catarina, e esse lugar era meu, anos antes.
— Ah — eu murmuro, não sei bem o que dizer.
— Está procurando por ela? Está perto da mesa de doces, com Maria
Elena no colo.
Ele deu um passo à frente e apontou para a direita, indicando o
caminho.
— Eu sei o que você é — Lorenzo diz, jogando de supetão, me
fazendo arquear as sobrancelhas. — Não é um julgamento, é apenas
conhecimento. A vida é uma coisa complicada — ele deu de ombros.
É, a vida era.
— Você está nessa por dinheiro?
— Não.
— Prazer?
— Claro que não.
— Hum... Então, realmente, não te condeno. Minha tia fez o mesmo
com minha família, mas ela fez por prazer e dinheiro. Essas pessoas me
enojam — divagou, e eu me interessei pela história. Mais tarde pediria para
Cat me contar. — Por que está nessa?
— Eu não tive escolha.
Ele sugou a informações rapidamente, as sobrancelhas arqueadas.
— Você quer sair?
Meu estômago doeu.
— Sim.
— Por que não saí?
— Ainda não posso. Cat precisa que eu fique mais um pouco, para se
vingar da mãe.
— Sei. Vai matar Sofia?
Eu neguei. Não podia. Não conseguiria matar aquela mulher, tendo ela
os mesmos olhos de Catarina. Ainda assim, eu queria vê-la sofrer por me
tirar tudo.
— Você precisa de ajuda para sair? Eu posso fazer isso? Posso te
conseguir um ótimo emprego, perto daqui. Você pode ter segurança até te
esquecerem... Pode recomeçar. Terão outros filhos que serão como primos de
Maria Elena. Espero que entenda que Catarina é a irmã que eu não tive.
Minha esposa a ama. Nós só queremos vê-la feliz.
Era uma oferta muito generosa e, francamente, eu gostaria muito de
aceitá-la. Um recomeço parecia algo mais que especial. Não sei se merecia,
já que eu fiz tanta coisa ruim nessa vida, mas se eu pudesse ter uma única
chance... só uma...
— Eu agradeço — digo. — Talvez no futuro... se eu sobreviver — dou
de ombros.
Não parece importante sobreviver a essa guerra do tráfico, se eu puder
dar a Catarina o alívio da vingança contra Sofia. Porque não adiantava eu
querer recomeçar, se Catarina não pudesse. Não havia futuro para mim, se
ela não estivesse ao meu lado.
— Bom, não se esqueça da minha oferta. Está aqui, não importa o
tempo que passar.
Eu sorrio para ele. É um homem bom, e eu entendo agora por que Cat
o adora tanto.
As crianças gritam ao longe novamente, e eu olho naquela direção.
Outro pássaro colorido surge adiante, e eu penso novamente sobre um futuro
como o desses homens, cuidando de aves bonitas e explicando sobre elas
para crianças.
Uma pequena menina tromba nas minhas pernas, e sorrindo me pede
desculpas. Ela corre naquela direção, e meus olhos acompanham o
movimento.
Cat não tem certeza sobre o próprio útero, então é provável que nós
nunca poderemos ter uma criança nossa. Existem outras possibilidades,
como adoção, mas eu penso que eu queria uma com os olhos de Catarina.
Afasto os pensamentos, porque não importam. Eu sou grato apenas
por tê-la novamente. Isso tem que bastar.
51

Eu não conseguia entregar Maria Elena para ninguém. Estava com a


menina no colo por horas, espantando até mesmo Elsa, a tia de Lorenzo,
quando tentou me roubar minha afilhada. Simplesmente, meu coração
balançava pela criança.
Talvez porque ela resulta do fato de eu ter ajudado sua mãe no pior
momento. Então Maria Elena sempre foi um pouco minha também. E Lili
parecia aliviada por um dia de folga. Ela era uma excelente mãe, mas Maria
Elena estava numa fase espoleta e Lili parecia muito mais exausta do que na
época que Maria Elena nasceu.
— Por que você não tem uma babá? — indaguei.
— Eu tenho Shirley que é governanta da casa. Mais de cinco criadas.
Motorista. Ah, Cat... se eu não servir ao menos para ser mãe, para que eu
sirvo?
Eu ri, porque ela realmente parecia preocupada com isso.
— Bom, serve para aquecer Lorenzo — pisquei para ela.
— Hum, isso sim — um sorriso envergonhado surgiu em seus lábios
bonitos. — Lorenzo diz que eu tenho tempo por ser tão jovem. Vou estudar,
e quando quiser trabalhar, eu posso escolher o momento e o local. Mas, eu
me sinto um pouco... sei lá... dondoca.
Era incrível saber que ela se sentia assim, porque ser dondoca era algo
normal na minha família. As mulheres normalmente só serviam para
filantropia, ou ir a salão de beleza. Ser troféus para os homens. Eu acho que
fui a primeira De Vaz que trabalhou. Contudo, Lili era totalmente o oposto.
Ela cresceu numa casa do campo, sendo a empregada doméstica da própria
mãe, um monstro que a submetia a todo tipo de tortura.
Ao escapar de lá, nós nos conhecemos, e então ela trabalhou para
mim. Escondo um sorriso ao pensar que sou outro tipo de monstro. Ao
menos um que ela ama.
— Catarina... — Ouço uma voz masculina e giro para ver Lorenzo
vindo na minha direção. — Por que não vai caminhar? Está parada perto dos
doces há horas. Os brigadeiros não vão sumir, ninguém vai roubá-los de
você.
Eu enrubesço com a sugestão e bateria nele não fosse a bebê no meu
colo.
— Papa! — Maria Elena grita, estendendo seus bracinhos para o pai, e
sou forçada a deixá-la ir com o coração aos prantos.
— Estou numa fase de doces. Estou comprando potes de brigadeiro,
beijinhos, cajuzinhos... Acho que é porque estou tomando corticoide para a
alergia de primavera — aponto. — Desde que as plantas começaram a
florescer, eu ando espirrando. Então, haja doces para aliviar essa fome. Estou
até engordando. Você repararam?
— Para mim, você está simplesmente linda — Lili disse, não
respondendo exatamente o que perguntei.
— Linda gorda ou linda magra?
— Linda.
Arqueio as sobrancelhas.
— Você não está me respondendo — reclamo.
— Ah, Elsa está me chamando — ela apontou para um lado e
simplesmente – e descaradamente – fugiu.
Eu ainda estava tentando processar que isso era quase uma
informação. Suspiro, nervosa, precisando de outro brigadeiro. Começo a
comer, enquanto os olhos de Lorenzo estão fixos nos meus.
— Eu conversei com Yan — ele me conta.
— Ah — eu nem sei o que dizer. Será que devia falar a Lorenzo que
Yan teve uma fase enciumada sobre ele?
Parecia ilógico e, certamente, irracional, trazer esse assunto quando
Yan e eu estávamos envoltos em mentira e desencontro.
— Cat, eu ofereci um emprego para ele. Uma casa na propriedade. Eu
gostaria que você pensasse nisso.
Eu busco outro brigadeiro. Percebo que os doces estão sumindo
conforme eu e as demais crianças vão pegando.
— Tem mais lá dentro?
— Sim, Cat. Coma a vontade. Agora, não mude de assunto. Por que
vocês não ficam? Ele parecia disposto a recomeçar aqui.
Eu hesitei. Yan parecia inclinado a esquecer a vingança e recomeçar,
mas eu não conseguia seguir em frente. Vejo crianças entre nove e dez anos
correndo perto dos pavões e meus olhos nublam de lágrimas.
— Meu filho devia estar ali — eu aponto, e Lorenzo parece esmorecer.
— Eu devia estar numa fase de brigar com ele porque ele não está fazendo a
lição, só se importando com vídeo game. Ou minha filha devia estar
começando a deixar de brincar de bonecas. Talvez ela estivesse com aquele
grupo ali — aponto cinco meninas sentadas como se estivessem em um chá
da tarde —, falando só Deus sabe o quê. Você olha e vê crianças. Eu olho e
vejo a ausência. Nunca vou perdoar. E não vou recomeçar sem encerrar esse
capítulo. Seria mais fácil deixar tudo para trás, mas isso seria desonrar a
lembrança do meu filho ou filha. Eu nem sei se era menino ou menina. Ele
se tornou só sangue coagulado escorrendo pelas minhas pernas.
Lorenzo estendeu a mão, acariciando meu ombro. Eu levo outro
brigadeiro à boca, quando sinto ânsia de vômito.
— Você não parou de comer doce desde que chegou de manhã. Não é
à toa que está quase vomitando — ele ralhou, puxando o brigadeiro dos
meus dedos.
Dou de ombros.
— Você está certo. Vou dar uma pausa — digo, triste por causa disso.
Por mim eu comeria brigadeiro até explodir.
— Prometa que vai pensar na minha oferta — Lorenzo diz, enquanto
me guia para longe da mesa de doces.
Dou de ombros.
— Prometa que não vai insistir — respondo.
— Vou insistir. Porque não quero que faça nada que não tenha volta,
Cat.
Ele estava atrasado demais. Eu já estava afundada até o pescoço nisso.
E não estava me sentindo nem um pouco culpada.

∞∞∞
Yan entrou no quarto depois das dezenove horas. Eu já estava deitada
na cama, depois de vomitar metade dos brigadeiros do dia. Minha cabeça
doía, e eu só pensava em como eu queria comer mais.
— Onde você estava? — indago, sem olhá-lo.
— Com Lorenzo. Estávamos bebendo uma taça de vinho, enquanto ele
me falou dos negócios dele. Pareceu interessante.
Ele vai para o banheiro, enquanto eu continuo sentindo minha cabeça
explodir. Mas, estranhamente, isso alivia quando Yan surge, de banho
tomado, minutos depois. Só a presença dele, o cheiro dele, me inunda de
algo bem longe da dor.
— Eu gosto desse lugar, Cat. O que acha da gente se mudar para o
Mato Grosso? Lorenzo disse a comunidade de gaúchos aqui é enorme. Tem
até CTG.
— Ainda não. — Com um suspiro, eu me sento na cama.
Yan está de pé ao lado da mesma, e eu o puxo, seus lábios descendo
sobre os meus. O beijo de Yan parece acalmar a tempestade no meu íntimo.
Não é um beijo exigente, mas terno. Eu me derreti nele, minhas mãos
correndo por seu peito e envolvendo seu pescoço.
— Você quer? Achei que estivesse cansada.
Minha mão acaricia sua mandíbula, meu dedo correndo ao longo da
barba semicerrada.
— Você não acha nada — aponto. — Você só faz o que eu mando.
Ele riu, descendo sobre mim, um joelho entre minhas pernas, sua boca
provando de novo.
Envolvo minhas pernas em volta de sua cintura, puxando-o para mais
perto. Um sorriso suave se espalhou em seus lábios, quando nossos corpos se
tocam. Eu posso sentir seu pau grosso cada vez mais firme por baixo da
toalha atada em sua cintura.
Deslizei minha mão por seu corpo para agarrar a ponta de seu pau. Sua
toalha já resvalou para algum canto, e ele está nu, a pele perfumada de
sabonete. Yan geme enquanto eu o seguro, seu eixo engrossando e
estremecendo sobre meu movimento firme e ritmado.
— Eu te amo, Cat — ele diz, enquanto minha calcinha vai sendo
arrancada.
Quando ele afunda em mim, eu observo o teto de gesso sobre nós.
Claro, com formas bonitas e bem traçadas. Eu suspiro com o calor de sua
carne, subitamente, pensando em comida. Especialmente em bombons de
licor.
Yan segura meu rosto, me trazendo para um beijo. Ele está empenhado
em me dar prazer, mas agora eu só consigo pensar em chocolate e no quão
faminta eu estou. Então apenas abro mais as pernas, deixando que ele se
satisfaça o mais rápido que pode, assim eu posso fugir dele quando acabar, e
ir buscar por algo que sacie meu apetite.
52

Eu me sinto estranha. Não sei exatamente o que eu tenho, talvez eu


tenha pegado alguma virose, não sei, mas estou aérea e doente há vários
dias. Não sei se Yan notou. Eu não quero que note. Francamente, qualquer
sinal de fraqueza em mim, e ele terá uma justificativa de parar minha
vingança.
Então, não o permito ver como vomito de manhã, ou como qualquer
comida me faz revirar o estômago. Ainda assim, eu como muito.
Especialmente açúcar. Não consigo ficar sem bolos ou tortas. É a única coisa
que para no meu estômago. Por causa disso, estou aumentando meu peso,
meus seios estão maiores. Não sei se Yan percebeu isso também, porque ele
nunca comentou o assunto. Ele apenas gosta de segurar quando estamos
transando.
Como qualquer homem, ele é um idiota ao ver uma mulher pelada.
Meu telefone vibra enquanto estou escovando os dentes para ir deitar-
me. Yan já está na cama e, pelo canto dos olhos, eu o vejo pegar meu
aparelho e ler o que quer que seja que está lá.
— Kauan quer se encontrar conosco amanhã. O mesmo café de
sempre.
Faço um bochecho com o enxaguante bucal antes de respondê-lo.
— Será que ele tem novidades? Já faz muito tempo. Nunca pensei que
demoraria tanto.
— Bom, ele precisa ir com calma. Sua mãe não parece uma mulher
fácil.
Eu vou até a cama. É difícil imaginar Sofia com qualquer homem
depois de meu pai, porque ela sempre pareceu o tipo de esposa que manteria
o celibato na viuvez. Mas, eu não tinha certeza. Nunca fomos amigas, nem
próximas. Sofia sempre teve ciúmes de qualquer proximidade minha com
meu pai, então ele se afastou de mim. As pessoas que me geraram eram
basicamente estranhos.
— É estranho para mim ela gostar de garotões. Francamente, um
homem mais maduro, de coxas grossas e pau gordo e pesado é bem mais
interessante — digo isso deslizando minhas mãos pelas coxas de Yan
enquanto ele me dá um sorriso safado.
Eu tinha isso, também, ultimamente... Esses rompantes de tesão
reprimido que precisava ser liberado. Quando entrei no quarto, nem pensei
em transar nessa noite. Mas, ao me aproximar da cama, o cheiro amadeirado
dele me virou a cabeça.
Eu só queria foder e foder.
Subo minhas mãos. Agarro seu pau, acariciando-o lentamente. Seu
corpo estremeceu sobre meu toque enquanto ele geme, movendo-se no ritmo
que eu impunha a ele.
— Cat... O que você tem ultimamente? — ele indaga.
Não sei. Tenho até medo de saber. Então, eu simplesmente sorrio,
enquanto meus lábios descem por seu corpo. Eu só quero sentir seu gosto,
então eu percorro uma linha segura de pelos do seu peito, até mais abaixo.
Quando meus lábios estão a centímetros de seu pau, ele segura minha
cabeça, como se quisesse me impedir de fazer isso.
— Cat... se você puser a boca, não vai dar para segurar.
Seguro o cós da sua cueca, puxando-a. Sei que estou com a malícia
estampada no rosto, e isso só me deixa mais poderosa. Quando tiro
totalmente sua única peça de roupa, posso descer minha língua pela cabeça
avantajada.
Yan geme sobre meu domínio. Sua mão desliza em meu cabelo,
agarrando a parte de trás da minha cabeça num punho, mas ele não forçou.
Ele apenas segurou, como se temesse me empurrar e me fazer fugir.
Corri minha língua por toda a extensão de veias salientes. Preenchi
minha boca com seu tamanho, saboreando lentamente, deslizando para
frente e para trás.
Ian se contorceu de prazer, e eu senti seu líquido atingindo minha
garganta. Ele ainda não havia gozado, mas estava desesperado para segurar.
Era tão fácil manipulá-lo. Agarrei a base de seu pau, enfiando toda a
extensão na boca, num movimento ritmado para cima e para baixo. Só nesse
momento, Yan forçou minha cabeça, começando a meter nos meus lábios
como se estivesse em minha boceta.
Agarrei suas bolas enquanto torturava seu pau com meu chupão. Yan
começou a me xingar e isso só me molhou mais. Apertei minhas coxas,
sentindo que precisava sentir seu pau ali. Então, eu o soltei, ainda duro e
rígido, e endireitei meu corpo, sentando-me sobre ele.
Yan rasgou minha calcinha, enquanto encaixava seu pau no meu
buraco. Foi quando ele entrou, num único movimento forte e duro.
E veio a dor, desconhecida até então.
Yan girou nossos corpos na cama, me fazendo ficar abaixo dele. Ele
não percebeu, e eu não disse nada, porque eu não sabia como pedir para ele
parar.
Estava simplesmente doendo.
Ele me beijou. Terno, gentil, ansioso e desesperado. Seu pau começou
a bater em mim, e eu tentei me ater no quanto eu o amava, e no quanto ele
estava sendo doce até mesmo enquanto afundava duro em mim.
Por que estava doendo?
A única vez, antes, foi na nossa primeira vez.
A cabeça de seu pênis cutucou aquele ponto maravilhoso que sempre
me fazia gozar. Tentei me afastar dos pensamentos, e só aproveitar o
momento, mas não estava rolando.
— Yan... — eu digo.
Minha voz sai manhosa, e ele entende como uma súplica. Ele então
segura meu bumbum, enquanto balança sobre mim, gemidos de dor
escapando a cada estocada.
E então seu pai explode num gozo que o faz urrar. Ele desaba sobre
mim, beijando meus lábios, minha face, jurando que me ama, dizendo um
monte de coisas que eu não consigo alçar.
Porque minha cabeça está em outro lugar.
Nas dores e nos vômitos.
Eu já vivi isso antes. Mas, o medo me faz recuar diante dos
pensamentos, então eu simplesmente os apago, fingindo que não estou
pensando nisso. Yan me beija, enquanto seu pau escapole do meu núcleo.
— Eu vou tomar banho — digo a ele, e ele ri, porque é meu costume,
e ele nunca consegue me impedir.
Quando eu entro no banheiro, fecho a porta.
Eu quero evitar os pensamentos. Mas, quando estou debaixo do
chuveiro, não consigo impedir minhas lágrimas.

∞∞∞
Meu sorriso se alargou quando vi o jovem bonito se aproximando da
nossa mesa. Ele nos cumprimentou, antes de acenar para o atendente e pedir
um café e um pedaço de torta.
— Fome — ele comentou. — Sua mãe me deixa faminto.
Eu devia me sentir insultada, mas apenas dei um riso debochado.
— As coisas vão bem pelo jeito?
— Sim, ontem jantamos juntos e ela me convidou para seu
apartamento. Disse que é a primeira vez que leva um cara para lá. Acho que
visitar meu apê luxuoso e andar no meu conversível fez esse milagre. Eu
também estou pagando todos os nossos jantares em restaurantes chiques e...
— Kauan parou quando o atendente trouxe a comida. Só voltou a falar
quando o outro se afastou — Abel me deu uma pulseira de ouro para lhe
presentear. Ela ficou nas nuvens. Nunca pensei que, em dois meses, uma
mulher ficaria tão apaixonada por mim.
— O que eu posso dizer? — dou de ombros. — Ela é impressionável
com cifrões. Diga-me: está pensando em oferecer o acordo?
— Por enquanto eu só estou comentando sobre como é fácil ganhar
dinheiro em bons investimentos. Vou levá-la para passear de carro e vamos
passar pela frente de alguns prédios e eu vou falar para ela quanto cada um
gerou de lucro. Sabe... plantar a semente. — Depois da explicação, ele girou
para Yan. — Abel e Éder estarão em Porto Alegre amanhã à noite. Éder
pediu para avisá-lo de que deve ir vê-lo no Centro de Eventos.
Giro meu rosto e o semblante de Yan está indecifrável. Quieto,
estranhamente nervoso.
Por fim, ele assente.
— Obrigada, Kauan... por tudo — comento.
Ele me dá um sorriso desavergonhado, antes de completar:
— Como eu disse, Catarina... O prazer está sendo meu.
53

Quando Catarina apareceu no Centro de Eventos, ela logo foi tirada


de mim por dois homens que a levaram para Abel. Ele tinha alguma coisa
para lhe dizer, e eu precisava falar com Éder, então a deixei sozinha. Até
porque, como minha garota, ela está segura aqui. Os homens da Castle
respeitam demais a mulher de um companheiro.
Quando encontrei meu amigo, algo parecia errado. Podia vislumbrar
nos olhos dele um tipo de decepção que me fez arquear as sobrancelhas.
— O pai quer que você mate aquele mergulhador de quem te falei...
— O cara que quer tirar o corpo fora? Por que parece incomodado
com isso? Não seria o primeiro que eu daria o mesmo fim pelo mesmo
motivo.
Ele deu de ombros. Parecia em dúvida se devia ou não me contar. Por
fim, aproximou-se o suficiente para que ninguém mais nos ouvisse.
— Ele e o Álvaro...
Ele não disse mais nada. Seu olhar era sugestivo o suficiente para me
fazer entender o intento das palavras. Meu olhar vagou ao redor, e percebi
Álvaro – o comerciante – conversando animadamente em um dos cantos.
Não sei por que, eu entendi que não poderia fazer isso.
Para mim, acabou. Eu estava farto. Sim, eu matei muita gente cuja
persona provavelmente era amada por alguém. Eu matei os filhos de alguém.
Talvez até o amor de alguém. Mas, agora esse alguém tinha nome e rosto. E
esse alguém era uma pessoa que eu gostava muito.
Eu olho na direção de onde Abel está. O percebo caminhando ao lado
de Catarina, o braço dela apoiando no dele. Ele parece um pai gentil,
enquanto conta a ela sabe-se lá Deus o quê.
— Falarei com Abel... — digo.
Éder arregala os olhos, porque eu nunca peço misericórdia para Abel.
— Meu pai não vai entender. Se fosse uma mulher, ele até podia
entender, porque sabe como ele é com as garotas de seus homens. Mas, um
cara...
— Eu tentarei persuadi-lo...
Éder apertou meu ombro. Ele parecia querer me dar um agradecimento
mudo, e eu entendi isso. Éder e eu éramos muitos próximos, não
precisávamos de palavras entre nós. Então, meu amigo observou o pai ao
longe, e me comentou:
— Acho que ele sempre quis uma filha... — suspirou. — Você não
acha estranho ele não ter tido outros filhos, apesar do montante de prostitutas
que já andaram pela sua cama? — murmurou.
Era a primeira vez que eu pensava nisso. Não pude deixar de ficar
impressionado com o pensamento. Éder estava sugerindo que não era filho
biológico de Abel? Não seria nenhuma surpresa sua mãe ter enganado seu
pai. A surpresa era Abel nunca ter tentado descobrir a verdade com um
DNA.
— Acho que ele te ama tanto que não quer saber disso — apontei.
Éder acenou. Então, sem nenhuma palavra, ele se afastou para ir
conversar com outros homens.
Girei na direção do bar e peguei uma cerveja, enquanto pensava no
que diria a Abel. Talvez eu o convencesse de que era perigoso demais matar
alguém com recursos financeiros – como era o caso do mergulhador – e, e se
tudo falhasse, eu jogaria a bomba da sexualidade de Álvaro, torcendo a Deus
que isso tocasse um pouco o coração do velho Abel.
Pego a cerveja, sem me importar com o rótulo, e me preparo para ir na
direção de Abel quando uma figura pequena e de cabelos negros, lisos e
longos, surge diante de mim.
— Oi, Fera — ela piscou os olhos, e eu suspirei pesadamente para
Mirella, tentando pensar em como me esquivaria dela.
— Eu não posso conversar com você agora. Estou ocupado — fui
franco, e me preparei para me afastar.
— Abel está encantado com aquela velha — ela disparou. — Talvez
Abel a queira para ele.
— Você sabe que ela tem poucos anos a mais que você, né?
— Branquelas como ela envelhecem mais cedo, a pele perde a
elasticidade, tudo cai. O peitinho dela não é tão duro... Você não tem nojo? E
ela está gorda como uma porca, você reparou?
Eu não iria dar conversa. Simplesmente ignorei toda a provocação e
comecei a andar em direção à Abel.
— Eu faço aniversário mês que vem... Sabia que Abel sempre dá um
presente especial para suas garotas no dia do seu aniversário? Acho que vou
pedir a cabeça dessa barata branca.
Eu não posso negar que isso me enfureceu. Eu quase virei na direção
dela e tomei seu pescoço entre as mãos. Eu não precisaria de muita força
para quebrá-lo. Mas, por fim, me lembrei de como ela era jovem e
inconsequente, como eu fui um dia.
— Fique longe de Catarina. Se algo acontecer a ela, não respondo por
mim.
E então me afastei.
54

Eu vi Mirella perto de Yan. Mas, também vi como ele ficou


incomodado com a constante atenção dela. Houve meia dúzia de palavras
trocadas, e então ele se afastou.
Uma parte de mim não conseguia deixar de sentir pena dela. Eu quase
podia enxergá-la, tão jovem, à mercê do mundo, achando que a atenção que
recebia da Castle era algum tipo de amor. Ainda assim, eu não estava
disposta a aguentar a rivalidade que ela tentava forçar. Antes de ir para Yan,
ela veio a Abel e começou a tentar cutucar palavras na minha direção, o que
eu ignorei sumariamente.
Francamente, tinha uma vingança para cuidar. E só isso importava, no
momento.
— Recebi um relatório mais completo das rendas de sua mãe — Abel
me disse, batendo de leve na minha mão. — Ela tem umas duas ou três casas
em bairros populares. Aluga para uma renda extra. Kauan vai insistir que ela
a venda para mim, a fim de investir o dinheiro. Quando as casas estiverem
em meu nome, vamos usá-las como ponto de distribuição de nossas
mercadorias. É um bom lugar.
Minha mãe ficaria sem nada. Nada. Nem mesmo um lugar para
dormir.
Ela merecia isso e, ainda assim, eu forcei meu coração a não ter um
mínimo de empatia. Ela não teve piedade de mim, eu não devia ter dela.
— Quando isso vai acontecer?
— Em breve — Abel afirmou.
Logo depois, ele fez um gesto com a cabeça dizendo que precisava
conversar com algumas pessoas. Eu concordei, agradecendo mais uma vez
sua ajuda. Nesse momento, girei para onde vi Yan, tentando buscá-lo para
ficar perto dele.
Ele não estava em nenhum lugar visível. Comecei a andar, meus olhos
atentos a cada movimento. Apesar de eu saber estar num lugar seguro, ainda
assim, eu não gostava de me ver sozinha.
Passos. Trombei em um dos caras, que me cumprimentou com a face.
Ouço um “é a mulher do Fera” sussurrado, e preciso conter um sorriso.
Subitamente, Mirella aparece diante de mim. Ela parece um fantasma
de olhar demoníaco. Está espumando raiva, não sei o motivo, nem estou no
clima para descobrir.
— Com licença — digo, tentando cruzar por ela.
Mirella não se afastou. Então, sem que eu entendesse o que estava
acontecendo, ela começou a avançar, parecendo querer crescer para cima de
mim, ser mais alta do que parecia.
— O que está fazendo? — murmuro.
Não quero chamar a atenção, virar cochicho por estar brigando por
causa de homem, mesmo que esse homem seja Yan.
Para cada passo que dava, eu retrocedia outro. Repentinamente, eu
vejo uma faca. Não uma grande, mas parece um pequeno canivete afiado.
Minha cabeça começa a correr pensamentos. Se eu me virar e tentar fugir,
ela enfiaria aquela arma nas minhas costas. Se eu lutasse com ela, poderia
perder e morrer. Isso não seria um problema, morrer não é um problema, não
fosse o fato de eu ter uma missão a cumprir.
— Não seja idiota. Eu sou valiosa para Abel. Ele vai ganhar muito
dinheiro comigo.
— Abel nunca me puniria, porque ele me ama.
— Nem ele nem nenhum homem aqui te ama. Eu já te aconselhei a
sair dessa vida. Mas, você é cega para...
— Yan me amava antes de você aparecer!
— Pense nisso por um momento. Que amor fraco era esse que nem
pestanejou quando eu voltei a sua vida?
Ela hesitou por um momento. Era o momento que eu esperava para
correr, mas, repentinamente, Mirella grita, chamando a atenção de todos.
— Quando você morrer, ele vai voltar para mim!
E então a morena se lançou. Eu entrei em choque, esperando que a
lâmina me cortasse a carne, mas o movimento ficou preso no ar. Com os
olhos arregalados, percebi a mão dela sendo puxada, e seu corpo caindo para
trás.
55

Eu vi quando Abel deixou Cat depois de dois leves tapinhas em sua


mão. Eu a vi caminhando entre as pessoas, sendo cumprimentada
discretamente, seus olhos me buscando. Eu quase acenei para ela, quando
percebi Mirella à espreita.
Normalmente, eu não pensaria em Mirella como um risco. Mas, por
algum motivo escuso, todos os pelos do meu corpo se arrepiaram quando eu
vi os olhos da morena. Ela sempre teve olhos expressivos, e foi o fato de,
agora, seu olhar estar vazio, que me chocou.
Ainda assim, tentei manter a calma, enquanto avançava até elas. Não
eram muitos passos até Cat e Mirella, mas pareceu uma eternidade até eu
estar suficientemente perto para evitar uma briga.
Então, a luz amarela de uma lâmpada acima da cabeça delas atingiu a
lâmina de um canivete ou punhal, eu não podia ver direito de onde estava. O
brilho cortou minha razão, e eu quase pude vê-la cravando a lâmina em Cat.
Por uma fração de segundos, minha mente traçou imagens de minha
vida sem Catarina. Antes, eu a perdi por intrigas, mas a morte era algo
definitivo. Eu não poderia recomeçar, não teria a mínima chance de viver um
único dia da minha vida longe dela, então a morte dela também significava a
minha.
Mirella gritou. Nesse instante, estendi minha mão. Com toda força que
eu consegui, segurei o punho de Mirella quando ele se lançou em Catarina.
A força demoníaca da jovem era algo sobrenatural, e eu quase não consegui
contê-la.
— Mirella! — gritei. — Solte a faca agora!
Minha ordem interrompeu as conversas que ainda estavam alheias ao
momento. Até a música parou. Agora, definitivamente, todos os homens e
mulheres do lugar nos observavam, seus rostos assombrados enquanto
percebiam o embate.
Com um movimento, girei a jovem morena para me encarar, seu braço
torcendo no movimento.
— Está me machucando — ela disse, e eu quase ri do absurdo.
Ela tentou matar Cat e estava pensando realmente que eu me
importaria de quebrar o braço dela?
— Solte a faca — ordenei.
— Não! Eu a quero morta!
Por um momento, eu a encarei como se não a conhecesse. Ela era tão
jovem, tão cheia de vida, sempre provocativa, sempre disposta a servir... E
agora ela era apenas uma rancorosa que não aceitava uma perda.
Uma perda de algo que nunca foi dela.
Então eu vi o ciúme. Eu entendo que ela nunca teve um homem como
Catarina me teve, mas isso só devia querer fazê-la ir atrás de algo mais
importante do que ser uma marmita.
Mas, ela não conseguia enxergar. Toda a vida dela se baseou numa
liberdade sexual que só lhe trouxe vazio. Ela era de todos, e não era
ninguém. Nesse momento, ninguém, nem mesmo os mais gentis com ela,
como Éder ou Abel, tentaram interceder e defendê-la.
Arrisquei um olhar para Catarina. Eu queria saber o que ela pensava,
mas quando a olhei, ela parecia mais em choque que nunca. E isso me
enfureceu. Se havia um lugar no mundo que Cat devia se sentir segura, era
ao meu lado, era entre meu clã. Mas, ela só estava aterrorizada e surpresa.
Olhei para Mirella de novo.
— Eu vou te dar uma chance, Mirella. Saia daqui e nunca mais se
aproxime de Cat!
— Eu vou matar essa velha! — ela ameaçou. — Eu sou gostosa, eu
vou fazer qualquer cara ir atrás dela, ela vai pagar caro por....
Então eu não vi mais nada. A tensão dentro de mim explodiu nessa
ameaça, e diante do silêncio ensurdecedor do ambiente, eu dei o primeiro
soco.
Não sei se quebrei algo, não me importei. Mirella caiu no chão, entre
assustada e incrédula, sua mão segurava seu rosto, sangue escapando da sua
boca e do seu nariz.
— Solta a faca! — gritei.
Não foi só Mirella que pareceu em choque e aterrorizada. Cat deu um
passo para trás, seus olhos arregalados.
— Eu... a odeio — a voz de Mirella balbuciou, quase tão baixo que
não deu pra escutar.
Então eu me inclinei e bati de novo. No terceiro soco ela soltou a faca,
mas eu não me importava mais. Entrei no automático, duas, três, cinco
vezes.
Estava com tanta raiva. Senti Éder me puxar, mas me desvencilhei
dele e voltei a Mirella. Ela nem tentou escapar. Não sei se perdeu as forças,
ou se a infelicidade simplesmente a dominou e ela admitiu a derrota.
Todavia, um segundo puxão me travou. O calor da mão de Cat enfim
quebrou meu gélido furor. Então eu soltei o corpo da mulher, uma parte de
mim dizendo que eu fui covarde de bater numa garota, outra me dizendo
para eu terminar logo com isso e matá-la..., mas, a mão de Cat me impediu e
eu me levantei. Dois passos para trás, e então limpei o suor que escorria da
minha testa com a manga da camisa.
Só então eu vi que minha mão estava coberta de sangue.
— Quero deixar bem claro — disse, alto, para que todos ouvissem. —
Se alguém aqui achar que essa boceta — apontei Mirella — vale o risco de
tentar ferir minha mulher, é bom saber que eu vou atrás do cara até o inferno,
e farei ele se arrepender de ter nascido.
Só então eu girei para Catarina. Segurando o braço dela, a afastei das
pessoas e a levei embora.
56

Eu não posso negar que foi chocante vê-lo bater em uma mulher.
Sim, foi por mim. Não apenas para me salvar, mas para deixar claro a todos
ali o que aconteceria com quem pensasse em me ferir; ainda assim, é
assombroso, quase como se eu não o conhecesse.
Essas coisas acontecem, agora. Eu olho para Yan e não quase não vejo
mais o rapaz com quem estive na adolescência. A vida nos mudou muito,
mas mudou ele mais ainda.
Sim, eu sabia o que Yan era... Apenas... eu ainda não tinha visto.
Meu corpo doía de tensão quando ele me ajudou a entrar no carro. Não
trocamos uma palavra durante o trajeto de volta. Minha mente não conseguia
deixar de vê-lo levantar os punhos e... bater.
Socar... bater... sangue...
Entramos no estacionamento do meu prédio. Ele estacionou na minha
vaga e me encarou.
— Cat?
Quando eu não respondi, Yan levou a mão ainda suja de sangue no
meu queixo, puxando meu rosto para ele.
— Você não devia ter passado por nada disso — murmurou. — Eu
sinto muito.
Ainda houve um breve silêncio. Havia um peso de toneladas nos
esmagando. Então, balancei a cabeça.
— O que aconteceu conosco, Yan?
— Fizeram isso com a gente, Cat...
— Mas... não podemos fazer isso. Precisamos fugir disso, e
recomeçar. Acho que devemos aceitar a proposta de Lorenzo.
Ele não parecia convencido.
— Antes ou depois de acabarmos com a sua mãe?
Era a questão que mais me afligia. Para recomeçar, eu tinha que
decidir se Sophia merecia os dias que ainda teríamos atrás dela. Fechei meus
olhos, e me inclinei para Yan, segurando-me com força contra ele.
Eu balancei em seus braços, a indecisão tomando conta de tudo.
— Se eu não fizer nada, é como se estivesse traindo meu filho.
Yan permaneceu em silêncio enquanto eu divagava.
Eu vivi dez anos em agonia, enquanto Carla se fazia de santa em uma
igreja, sem sentir a menor culpa por ter destruído minha vida. Yan apodreceu
num presídio, enquanto Sofia torrava dinheiro com garotões bonitos.
Elas eram monstros. Carla não faria mais mal a ninguém, e Sofia
precisava ser destruída.
Porque se eu não fizesse, nunca teria paz.
Eu podia estar confusa e, na mesma medida, não tinha a menor dúvida
do que devia fazer.
— Nós vamos continuar — disse a ele. — Nós vamos punir os maus.
E só depois disso teremos paz para seguirmos em frente.
Yan assentiu. Era o único plano possível. Ninguém consegue seguir a
vida com tanta raiva dentro de si.
57

Abel era um profissional quando se tratava de ludibriar.


Nós observamos a cena por uma tela. Na sala ao lado, perante uma câmera,
era possível ver um escritório montado de forma meticulosa, com várias das
marmitas agindo como secretárias, e homens de terno andando de um lado
para o outro, carregando folhas A4 em branco, observando-as como se
tivesse alguma coisa escrita.
O escritório foi organizado na semana passada, num dos bairros mais
nobres da cidade.
Tudo foi para alcançar Sofia, e sua mania de ser impressionável com
dinheiro.
Eu levei minha mão até Catarina, que estava sentada ao meu lado,
segurando firme seus dedos quando a imagem de Kauan e Sofia surgiu.
Eles estavam de mãos dadas, como apaixonados, e eu quase não
conseguia acreditar como ele realmente interpretava um cara encantado por
uma mulher de cinquenta e poucos anos, bonita e charmosa. Kauan era um
excelente ator. Seria um fantástico advogado.
— Como ela está bonita, reparou? — Cat sussurrou, perto do meu
ouvido.
Eu assenti.
— Com certeza fez Botox — ela espichou um pouco a pele do próprio
rosto, para apontar onde a mãe mexeu. — Sua cintura também não é natural.
Fez lipo. O cabelo é megahair.
— Tem algo de real nessa mulher?
— Sua maldade — Cat deu de ombros. — Estou feliz por não termos
recuado. Ela merece isso e muito mais.
Vejo Álvaro se aproximando do casal. Eles conversam alguns
segundos, e então são guiados para um escritório anexo. Nessa sala, há outra
câmera, dessa vez com áudio, e é possível ouvir a voz de Abel ao fundo.
— Sejam bem-vindos... Como posso ajudá-los?
Eu não pude esconder um sorriso. Com certeza Abel estava adorando
a diversão que lhe renderia alguns milhares de reais. Nunca o vi mais
animado, usando um terno caro e mantendo os cabelos bem alinhados e
penteados para trás. Ele, claramente, vestia a fantasia de um investidor.
— Olá, Sr. Alcântara — Kauan estendeu a mão e o cumprimentou. —
Essa é minha noiva, de quem lhe falei.
Noiva?
Tanto eu quando Cat nos inclinamos para a televisão para ver algum
anel na mão de Sofia. Um pequeno solitário estava no seu dedo anelar.
— Com certeza ele vai trocar a joia antes de sumir — disse a Cat. —
Por uma falsa.
— Será que essa que ela está usando já não é falsa?
— Kauan não arriscaria um noivado com uma joia falsa. Ele sabe que
Sofia levaria a um joalheiro.
Cat assentiu. Nós mantivemos silêncio enquanto a conversa se
desenrolava.
— Bom, eu falei com minha noiva sobre meus investimentos. Ela está
encantada com as coisas que eu adquiri em tão pouco tempo.
— Nossas aquisições são muito vantajosas, mas não estamos buscando
novos investidores no momento — Abel foi bem firme em dizer isso, e eu
fiquei um tanto temeroso de que seu tom fizesse Sofia desistir.
— Tenho certeza de que se interessará pelo tanto que minha noiva está
disposta a colocar em jogo — Kauan estendeu a Abel um papel pardo, e eu
soube que havia um valor lá.
— Está brincando? — Abel foi desdenhoso. — Esse valor não atinge o
mínimo exigido. Esse valor não faria eu colocar o escritório trabalhando para
sua noiva.
Kauan pareceu um pouco arrasado. Ele volveu para Sofia e disse:
— Eu te disse, querida. Ou é tudo ou nada. E suas finanças não estão
bem. Se quer se recuperar, terá que arriscar.
Eu vi o medo tomar conta de Sofia. Ela podia ser influenciável, mas
não era burra. Colocar tudo que tinha nas mãos de Abel parecia um passo
que ela não sabia se devia dar.
— Eu te amo, amor — Kauan afirmou, tão sério que quase me fez
vomitar. — Estou do seu lado no que decidir.
Kauan seria transferido para o norte assim que encerrasse o plano. Ele
já havia me dito que adorava a ideia de morar numa praia em Fortaleza. Com
certeza, não havia qualquer dilema moral nele em enganar aquela mulher.
— Você estará ao meu lado? — Sofia perguntou. — No que eu
decidir?
— Claro, meu amor... Nós vamos nos casar. Só a morte vai nos
separar.
Uma promessa falsa. De soslaio, observei Cat, tentando decifrá-la,
saber o que ela pensava sobre tudo isso. Mas, seu rosto era sem expressão.
— Então, eu acho que podemos colocar mais um valor... — Sofia
encarou Abel. — Eu também tenho algumas casas que alugo... Posso passar
procurações e...
E o negócio estava feito.

∞∞∞
Três dias depois, Éder me mandou os documentos assinados e
reconhecidos em cartório. Era incrível como subornar agentes públicos fazia
coisas como essas serem realizadas sem questionamentos. Os documentos de
transferência das casas, as novas escrituras e as transferências bancárias
eram as únicas coisas reais nesse esquema. Os investimentos que Sofia tinha
em mãos eram falsos. Eu quase quis ser uma mosquinha para ver sua face
quando ela descobrisse que caiu em um golpe.
Talvez eu nem precisasse esperar tanto assim...

∞∞∞
Meus olhos se estreitaram quando abri a porta. O cabelo de Sofia
estava quebrado nas pontas, e seus olhos não deixavam de expressar seu
desespero.
— Onde está minha filha? — ela perguntou.
— Ela está no banho — contei. — Fui eu que permiti que a senhora
subisse. Estava ansioso para vê-la.
Sofia me empurrou e entrou no apartamento. Suas mãos tremulas
deslizaram por suas madeixas loiras. Mais uma vez, observei o quão feio
estava seus cabelos. Ela não devia mais lavá-los em salões, desde que perdeu
tudo. Isso já fazia duas semanas, e Catarina e eu aguardamos com paciência
que ela viesse até nós.
Porque ela não tinha outra escolha. Ela não tinha mais ninguém a
quem pedir ajuda.
Suas amizades eram falsas, baseadas em dinheiro e status. Ela não
tinha outros parentes. A única pessoa que poderia impedi-la de ir morar
embaixo da ponte era Catarina.
— Chame-a — me ordenou. — Eu preciso falar com a minha filha.
Ainda assim, ali estava a arrogância.
— A senhora não sabe quem sou?
Ela não parecia disposta a bater papo. Apenas negou, como se eu fosse
apenas um pedaço de merda sem importância para ela.
— Há dez anos a senhora me colocou na cadeia — contei. — E nem
conhece meu rosto.
Pensei que pudesse ver alguma humanidade nela diante da minha
confissão. Talvez culpa. Qualquer coisa que pudesse indicar que sentia
muito. Mas, nem isso ela me deu. Sofia balançou a mão, desdenhosa.
— Ainda estão juntos? Depois de dez anos ainda está fodendo minha
filha? Ela merecia alguém melhor.
Minha expressão continuou suave, e acho que isso a confundiu. E,
ainda assim, ela permaneceu ereta. Demorou, mas entendi que um pobretão
ex-presidiário era pouca coisa para a preocupar.
— Chame Catarina — repetiu. — Preciso falar com ela.
— Eu não mereço nem um pedido de desculpas? Afinal de contas, eu
era um garoto inocente.
— Um servente de pedreiro devia se envergonhar de se misturar com
uma garota do porte de Catarina — Sofia suspirou profundamente, antes de
continuar. —Se bem que você não foi o único culpado. Catarina se rebaixou
demais dormindo com um lixo como você. Se quer saber, eu fiz o certo.
Pena que ela não tem nada na cabeça, e ainda está misturada com você.
Cadela de merda... Eu podia dizer tanta coisa para ela nesse instante,
mas vendo Catarina aparecendo na sala vestindo seu robe branco de seda,
seus cabelos molhados e um sorriso malicioso nos lábios, eu soube que esse
momento era dela.
— Obrigado — disse a Sofia. — Com certeza passaria meus próximos
anos questionando se fiz certo ou não..., no entanto, agora eu tenho certeza...
Vou recomeçar sem nenhum peso na consciência, graças a tudo que acabou
de falar.
Sofia pareceu impressionada. Porém, como eu era tão pouca coisa, ela
não se importou em continuar a debater comigo. Quando percebeu Catarina,
volveu-se para ela e chorou alto.
— Minha filha! — gritou. — Me salve.
Se ela soubesse...
58

Eu havia ouvido seus gritos do quarto. Nem consegui me vestir,


apenas me cobri com o robe e fui para a sala. Lá a encontrei, seus olhos
como sempre sonhei ver, derrotados, mas ainda demonstrando seu
narcisismo ao desafiar Yan, e depois me buscando, acreditando que eu teria
qualquer piedade sob ela.
— Minha filha... — ela tentou se aproximar.
Essa suja desgraçada tentou me tocar. Suas mãos se estenderam para
mim, mas eu recuei. Não por medo, mas por nojo.
— O que aconteceu? — indaguei, como se não soubesse.
— Eu... eu não tenho mais nada, Catarina... Perdi tudo. A casa, o
dinheiro no banco, os investimentos... tudo... tudo...
— Ah, é mesmo? Como isso aconteceu?
Eu queria tanto ouvir seu relato desesperado. E ela me deu isso,
enquanto me contou o golpe com detalhes que eu desconhecia. Contou como
Kauan a ajudou num aparelho da academia. Como ele se aproveitou de sua
solidão para lhe conquistar amizade. Como ele a convidou para tomar um
café depois dos exercícios, como ele lhe narrou como era sozinho, sem
família... Como a amizade floresceu para amor. Como ele era rico. E então
como ele a convenceu a colocar tudo que tinha num escritório que sumiu do
mapa uma semana depois. E como ele riu dela quando o procurou para pedir
explicações.
Foi poderoso ouvir tudo sobre a ótica dela.
Meu olhar buscou Yan, e ele já estava sentado no sofá, uma expressão
no rosto que não escondia a satisfação.
— Sabe, mãe...
Eu nunca a chamava de mãe, mas agora não era mais eu, a Catarina
mais velha, cheia de traumas e dor. Nesse instante o tempo voltou, e eu ainda
era a menina ingênua que acreditou que ela queria me ajudar. Minha voz
agora voltou no tempo, e eu era a menina em pânico, descobrindo-se
grávida, e apenas querendo que minha mãe estendesse suas mãos e ficasse
ao meu lado.
— Quando eu fecho meus olhos, ainda sinto o cheiro azedo de esgoto
e sujeira. Ainda me vejo deitada numa maca com lençóis imundos, e você
aos meus pés, de braços cruzados, olhando o relógio como se estivesse
perdendo seu tempo.
Sofia suspirou pausadamente por eu estar trazendo esse assunto sem
importância para ela.
— Vai começar com essa história de novo? Estou te falando do agora!
Quem vive de passado é museu, esqueça essa merda. Aconteceu, e gostando
ou não, não dá pra mudar o passado.
— Não... Não dá — concordei. — Não dá pra mudar o fato de eu ter
sido dopada, de ter sido levada para aquela clínica. De sentir minhas costelas
estalarem, a dor me quebrar, me virar do avesso. Não dá pra mudar o sangue
caindo entre minhas pernas, em poças. Não dá para mudar o fato de você
estar lá, fria, gritando para eu ser forte, para eu não fazer barulho, me
humilhando dizendo que quando eu estava fazendo o bebê, eu não gritava
assim... Não dá pra esquecer o sorriso de deboche que você e a enfermeira
trocaram.
O sorriso de Yan já morreu a muito tempo. Ele agora consegue ver a
cena em que sofro tanto, como se estivesse em um filme. Eu sei... eu vejo
nos olhos dele, Yan assistindo a menina Catarina tendo seu bebê arrancado
do útero por esses monstros.
— Lembro do escárnio. De você reclamando porque eu estava muito
mal. De você reclamando que eu era a culpada. Lembro de mim jurando
vingança. Contra você e contra Carla. Eu disse que podia passar o tempo que
fosse, aconteceria. Você devia saber que eu não perdoaria...
— Não fale bobagens.
— Você devia procurar por Carla. Saber o que aconteceu com ela.
Claro, se conseguir chegar até o bairro dela, já que agora não tem carro nem
mesmo dinheiro para pegar um ônibus. Ah — eu levanto as mãos,
balançando-as teatralmente como se me lembrasse de algo. — Vou poupar
sua viagem até a clínica de aborto. A clínica não existe mais.
— O que você quer dizer? — Sofia murmurou. — Foi você que...
você...?
— Se fui eu que planejei Kauan acabar com você? Sim. Mas, não
estou mais com seu dinheiro. Ele está nas mãos de uma facção de drogas que
me ajudou no plano. Não preciso do seu dinheiro. Não quero nada que venha
de você.
— Tudo isso por causa de...?
— O que vai dizer? — a interrompi. — Um amontoado de células?
Foi assim que você chamou meu filho. O bebê que você tirou de mim. Sabe,
eu tive todas as chances do mundo de desistir de tudo, e seguir em frente
com Yan... Contudo, quando eu pensava assim, ouvia sua voz na minha
cabeça dizendo que Yan só me fodeu e fugiu quando, na verdade, ele sumiu
porque você armou para prendê-lo. Você usou seu poder, seu dinheiro, para
massacrar as pessoas. Nunca mais fará nada a ninguém. Nunca mais vai
machucar ninguém. É a minha vingança. Você não terá mais amigos, nunca
mais festas, nem roupas de grife. Nada. Você vai viver na mesma miséria
que me condenou. A minha, pela dor da perda, do abandono; a sua, pelo que
mais te importa: seu dinheiro.
Sofia grita, uma dor desesperada surgindo em sua garganta. Ela
irrompe contra mim, suas mãos de unhas falsas tentando atingir meu rosto.
Mas, imediatamente, Yan a segura, então ela nem me atinge.
Ela grita de novo. Diz que vai me processar. Que vai me destruir. Ela
tem muitas ameaças, mas dinheiro ela não tem nenhum. Nem mesmo um
endereço fixo, agora. Talvez tenha que dormir na rua. Não sei. Não importa.
Ela acabou.
Yan a empurra para a porta. Eu imagino que ele vai fechá-la na cara
dela, mas ele segue com ela pelo elevador. Provavelmente dirá ao porteiro
para nunca mais deixá-la subir. Não ligo, porque em breve já estaremos
longe daqui.
Levanto as mãos, observando como estão tremulas. Meu coração está
batendo tão forte. Eu busco o sofá, tentando controlar um ataque de pânico
ou ansiedade. Eu só preciso respirar.
— Cat? — Yan está de volta.
Não sei quantos minutos de passaram. Vejo Yan entrando no
apartamento e me encarando com preocupação, mas não consigo lhe dizer
nada.
— Cat? — sua voz é mais urgente agora.
Mas, eu desabo para o lado. Minhas vistas escurecem, e tudo que eu
sinto é meu corpo ficando leve, enquanto o desmaio me toma.
59

Eu acordei no carro. Ele já estava saindo do prédio, quando levei


minha mão até ele, lhe dizendo que estava tudo bem, e que podíamos voltar
para casa.
Yan recusou a ideia.
— Vou te levar para um hospital, Cat... Não vou arriscar sua saúde.
Ele estava tão preocupado, que eu deixei. Afinal, não passaria de um
ataque de pânico. Nunca tive um antes, mas...
Então, minhas ideias sobre como meu corpo estava reagindo
ultimamente pareceram cair com tudo sobre mim. Virei-me para o lado, em
direção ao vidro lateral, tentando me livrar dos pensamentos enquanto via as
luzes da cidade dançarem rapidamente em minha visão.
Tudo ficou turvo. Tive ânsia de vômito. Fechei os olhos. Respirei
fundo. Eu só precisa de um tempo para...
Apaguei.

∞∞∞
Não sei quanto tempo esperei pelo médico. Depois de uma breve
triagem, fui levada a um quarto particular, onde aguardei em uma cama
hospitalar confortável. Estava tonta, ainda absorvida pelos eventos, e não
estava conseguindo me ater ao tempo.
Mas, quando um jovem médico entrou na sala, outra onda de pânico
me tomou. Tentei controlá-la com tudo que eu tinha para ninguém perceber.
O rapaz mediu minha pressão de novo – apesar da enfermeira ter
acabado de ter feito isso – e ouviu meu coração. Depois, ele colocou a mão
na minha barriga, e me fez uma pergunta que pareceu confirmar minhas
suspeitas:
— Quando foi sua última visita ao ginecologista?
Era constrangedor dizer que havia sido quando eu tinha dezessete anos
e comecei minha vida sexual? Depois do que aconteceu, nunca mais
conseguiria abrir minhas pernas para médico nenhum.
Acabei não respondendo. Ele aguardou que eu falasse por alguns
segundos, encarou Yan como se perguntasse a ele, mas Yan também não
tinha uma resposta, por isso ele se prontificou de ir olhar lá embaixo.
E então veio tudo de tal forma que não pude segurar.
Era uma sensação horrível e distorcida.
Morte, dor, morte de novo.
Eu gritei, desesperada, puxando minhas pernas e me encolhendo na
cama. Yan pareceu em choque alguns segundos, e então me abraçou, me
segurando tão firme que quase me machucou. Provavelmente, ele sabia por
que eu estava assim, então fez um sinal negativo para o médico.
— Ela... — Yan balbuciou. — Houve um aborto no passado — foi
tudo que disse, e o médico assentiu antes de sair do quarto.
Momentos depois, duas enfermeiras vieram me medicar. Elas também
tiraram sangue, e saíram em silêncio. Eu sabia que colocaram calmantes no
soro que me deram, porque eu senti sono. Ainda assim, não queria dormir,
com medo que eles mexessem no meu corpo.
— Cat — Yan sentou-se ao lado da cama, segurando minha mão. —
Você está grávida?
Ele não era idiota. Sabia do que o médico desconfiou. Provavelmente,
juntou as peças e percebeu que eu também estava desconfiada da mesma
coisa quando me viu em pânico.
— Eu não sei — balbuciei.
— Cat... não vamos perder esse bebê. Eu juro para você. Ninguém vai
tirar esse bebê da gente!
Fechando os olhos por um momento, permiti que sua promessa me
envolvesse. Permiti que emoções controlassem o medo. Quando abri meus
olhos de volta, vi os olhos de Yan lacrimejarem.
Yan inclinou o corpo. Sua testa bateu na minha. Ficamos em silêncio,
assim, apenas sentindo um ao outro.
O tempo passou. E nós ali. Mãos dadas, apreensivos.
Quando, por fim, o médico voltou, trazia na mão os resultados de um
exame. Antes de explicar o que eu tinha, ele me pediu para procurar terapia,
fazer um tratamento porque eu precisaria aceitar que alguém relacionado a
saúde cuidasse de mim.
Assenti, incerta, mas isso só indicava que minha desconfiança estava
certa. Então, quando veio a frase que mudou tudo, apenas senti a mão de Yan
passando pelo meu cabelo.
Nós teríamos um recomeço. Eu nem sei se merecíamos um depois de
tudo, mas o destino nos deu uma segunda chance.
“Você está grávida de 12 semanas”.
Sempre achei que estivesse seca, meu útero permanentemente
destruído. Mas, agora eu teria um bebê para mim.
O médico saiu do quarto, dando-nos privacidade.
— Eu te amo, Cat — Yan murmurou com tanta suavidade, como se
temesse me importar com seus sentimentos.
Eu sorri.
Eu o amava também.
60 Final

Havia muita coisa para organizar. Eu já havia feito várias malas, e


empacotado muitos itens pessoais. E, ainda assim, tínhamos muita coisa para
fazer.
Nossa mudança ocorreria no começo de novembro. Até lá,
moraríamos na casa de Lili e Lorenzo. Eles foram muito gentis em oferecer
um espaço em sua mansão. Lili disse que ficaria ofendida se eu insistisse por
um hotel. Como não estava a fim de ficar num hotel numa gestação que
qualquer dorzinha me deixava em pânico, aceitei o amor e o carinho da
minha amiga.
“Agora é a minha vez de cuidar de você, mamãe”, ela disse ao
telefone, me fazendo lacrimejar.
Meu bebê era meu pequeno milagre. Eu costumava dizer a mim
mesma que ele estava voltando para mim, dez anos depois. Eu mal podia
esperá-lo para tê-lo nos braços.
No mês passado, Yan viajou sozinho para o Mato Grosso para comprar
nosso espaço. Ele escolheu uma chácara muito verde, perto da Jamacá das
Araras. Quando eu perguntei o motivo, ele me disse que se apaixonou pelas
aves no aniversário de Maria Elena.
Uma parte de mim gostou do pensamento. Yan me confidenciou que
queria trabalhar com a terra e com o cuidado aos animais. Queria tornar
nosso espaço uma reserva para aves, e o pensamento de estarmos longe de
outros seres humanos que sempre queriam praticar o mal me trouxe
conforto.
Teremos uma pousada para receber ambientalistas e outras pessoas de
bem, querendo preservar o meio ambiente. Eu mal podia esperar para
mostrar ao meu filho o lado bom da vida. Porque era isso que eu faria. Eu o
protegeria de todo mal.
Terminei de dobrar algumas roupas sobre a mala. Depois, pus a mão
no meu ventre, segurando-o, enquanto sentia meu bebê se mexer. Eu ainda
não sabia se era menino ou menina, mas isso não me importava. Só queria
que fosse saudável e feliz. Então ainda não escolhi nenhum nome, só o
chamava de “meu bebê”, quando conversava com ele. Fazia três dias que ele
se mexeu pela primeira vez. Yan estava no banho no momento, e eu gritei no
quarto, ao senti-lo, o que fez com que Yan aparecesse pelado e coberto de
espuma, seus olhos surpresos e risonhos.
A cena ainda me fazia sorrir.
Depois disso, fizemos amor. A dor parou de ocorrer, porque tão logo
contei a Yan, ele foi muito compreensivo e muito gentil em me excitar mais
que o normal para transarmos. A obstetra que visitei no último mês me disse
que era até comum por conta do pânico que eu sofria por causa do medo de
perder o bebê.
Contudo, apesar do pavor, não havia nada de errado comigo. A
doutora disse que foi uma sorte, depois que relatei o que me ocorreu no
passado. Era para eu ser estéril, mas Deus me deu esse milagre.
— Cat? — ouço a voz de Yan na porta, e me viro para ele.
— Já voltou?
— Sim.
— Como foi?
Ele estava com as mãos para trás. Não as mostrou, mesmo suspirando
pesadamente.
— Abel disse para eu ir em paz. Éder me deu um abraço forte e disse
que sempre poderíamos contar com ele. Isso já estava pré-acertado, então
não tive problemas. Mas, houve uma conversa difícil depois, porque eu pedi
piedade a um cara...
— Um cara?
— O namorado do Álvaro que também quer sair dessa vida. Abel
mandou matá-lo, mas... Esqueça. Está tudo bem.
Eu me aproximei dele, e deslizei a mão por seu ombro.
— Vão matá-lo?
— Não. Abel disse que vai ser o presente dele para mim. Mas, ele
ficou meio puto em descobrir que Álvaro é gay. Acho que ele não gostou
muito da ideia. Ele tem umas ideias um tanto conservadoras?
— Um traficante?
— Para você ver... Enfim, não é problema nosso. Eu já fiz minha
parte, já me despedi das pessoas que gostava... Agora, é nova vida, Cat...
Estamos fora disso. Totalmente. Recomeço... lembra?
Então ele mostrou as mãos, e eu vi um pequeno par de sapatinhos de
bebê. Eu ri de puro deleite, porque era tão fofo. Os segurei, antes de trazer
Yan para mim e beijá-lo.
O beijo gentil se tornou mais e mais quente. Gemendo, eu balancei
contra ele, e meu desejo foi logo correspondido enquanto Yan me levava até
a cama.
— Tenho que fechar a mala... — eu avisei quando ele tentou me deitar.
Ele fez menção de derrubá-la para o lado, mas eu gritei em negação.
— Eu te mato se fizer isso! Levei três horas para arrumar essa!
Yan riu pela ameaça, enquanto dava de ombros.
— Já somos como um velho casal, Cat...
— Está dizendo que eu estou chata?
Ele fechou a mala rindo, e então a levou até um canto.
— O que tem nela? Chumbo?
— Apenas roupas. Está muito reclamão! — ralhei.
—Só porque estou louco para fazer amor com você — justificou, e
então me abraçou, me levando até a cama. — O que me faz pensar, Cat...
Quero estar ao seu lado para sempre. Pelo resto de nossas vidas. Você
também quer isso?
Eu assenti, minhas mãos puxando os botões de sua camisa.
— Quero você dentro de mim, agora. Mas, de lado, porque seu peso
incomoda minha barriga.
Yan fez um som irritado com a boca, e eu o encarei.
— Estou falando de eternidade, Catarina! Você só pensa em sexo!
— Ah sim... — esfreguei minha vulva nele conforme nos deitamos. —
Não vamos começar com ladainha para foder, né? Já passamos dessa fase de
palavras românticas.
Ele pareceu surpreso por alguns segundos, e então caiu na gargalhada.
Subitamente, saiu da cama, e ficou de pé ao lado dela. Eu iria xingá-lo por
ter provocado e agora se afastado, quando Yan se ajoelhou diante de mim.
Quando ele puxou uma aliança do bolso, eu fiquei tão espantada que nem
sabia o que dizer.
Porque eu nem pensava nisso. Nem pensava em rituais ou cerimônias.
Na minha cabeça, sempre fomos um do outro, e só agora eu percebi que não
éramos nem noivos.
— Você quer se casar comigo?
Eu sei que enrubesci porque senti meu rosto queimando. O bebê se
mexeu, e eu pus a mão sobre meu ventre, enquanto me sentava na cama. Dei
minha mão para ele colocar a aliança, e sorri diante da joia.
— Minha resposta, Catarina — exigiu.
— Tá bom — eu disse porque eu realmente não sabia o que dizer.
— Tá bom?
— Não tá bom?
Yan gargalhou de novo.
— Diga “Sim, Yan... eu te amo, quero ser sua para todo o sempre!”.
— Isso é muito brega.
— “Tá bom” é supermoderno, né?
Sorri, puxando-o para um beijo.
— Eu te amo, Yan. Eu sempre te amei. Eu quero ser sua esposa, mãe
dos seus filhos, e quero ficar ao seu lado nessa vida e em todas que tivermos.
Por toda eternidade.
Essa resposta, por fim, o satisfez. E então ele me trouxe para um
cálido beijo. Yan gostava de palavras, e gostava de fazer amor na certeza dos
sentimentos. Ele tinha tudo isso agora.
E eu também. Para sempre.
Epílogo

Levo o copo de suco de laranja aos lábios. Estou sentada em uma


cadeira confortável na varanda de nossa casa. Há uns duzentos metros, posso
ver Yan consertando a janela da futura pousada, enquanto ouço as aves livres
cantando naquele final de dia.
Esse lugar é lindo. A visão que tenho de Yan também é.
Ele se volta para mim em algum momento, sua camisa aberta na
frente, a bermuda um tanto justa demais. Ele é tão sensual que mesmo
vestindo essas roupas confortáveis e claramente de trabalho braçal, ele ainda
é um pedaço de mal caminho.
O bebê se mexe. Eu levo a mão na minha barriga avantajada de oito
meses. Estamos nos preparando para o parto. Está agendado para duas
semanas. Eu mal posso acreditar que no próximo mês minha vida vai mudar
de tal forma que nunca mais serei a mesma mulher.
E eu ainda não sei se é um menino ou uma menina. Lili queria fazer
uma festa de revelação, mas eu acho tão cafona. Ainda tenho aquela vontade
de descobrir no nascimento. Quero saber quando receber meu bebê nos
braços pela primeira vez, ter a surpresa.
Yan concordou comigo. Somos dois esquisitos antissociais.
Combinamos em tudo.
— Estou pensando em construir um parquinho infantil aqui — ele
disse, quando terminou a janela e se aproximou da nossa casa.
Sua mão apontava para a direita, um lugar muito verde e com muitas
árvores.
— O que acha?
— Para nosso bebê ou para outras crianças que vierem passar alguns
dias na pousada? — indaguei.
Ele deu de ombros.
— Claro que eu gosto da ideia — assenti. — Mas, deixe o bebê nascer
primeiro. Você precisa terminar de pintar o quarto dele.
— Eu sei. Estou indo à cidade amanhã pegar mais tinta.
Aproximando-se de mim, ele se ajoelhou na minha frente, suas mãos
tocando meu ventre.
Yan estava fazendo tudo sozinho. Ele basicamente reformou nossa
casa, e a pousada. Ele estava pintando tudo, organizando tudo, até comprou
alguns moveis que ele mesmo montou. Era meio injusto eu não ajudar em
nada, mas não queria arriscar minha saúde nem por um segundo. E ele
também não pediu. Duvido que aceitasse que eu movesse um dedo.
Fecho meus olhos diante do seu toque. Imediatamente sou atingida
pelo cheiro floral daquele fim de tarde. Papagaios gritam ao longe, em seu
bando. A minha volta só há a natureza e Yan.
— Cat... você percebeu que demos tantas voltas nessa vida, e
acabamos exatamente como sempre sonhamos ficar aos dezessete anos?
Eu sorri.
Abro meus olhos e encaro Yan.
— Acho que o que é pra ser, nada consegue impedir. Pode até atrasar,
mas vai acontecer.
Yan assentiu, absorvendo as palavras. O bebê se mexeu mais uma vez,
ele estava muito ativo nos últimos dias, ao ponto de ser doloroso. Yan
acariciou mais uma vez minha barriga, falando com ela, enquanto dizia ao
nosso bebê que o amava e que sempre ficaria ao seu lado.
Posso ouvir outro som ao longe. Ergo meus olhos, e vejo um voo
baixo de uma arara azul. Sei que são raras, até ameaçadas de extinção. Levo
meu dedo indicador para apontar o céu, e Yan sorri quando vê a beleza da
ave que logo desaparece entre as árvores.
— Acho que seremos muito felizes aqui — ele murmura.
— Já somos, meu amor — eu digo, o encarando.
Ele acena em concordância. Depois, se levanta e estende a mão, para
me ajudar a ficar em pé.
— O que você quer jantar?
— Qualquer coisa está bom — ele digo.
O sol se põe às nossas costas. A porta da nossa casa se fecha, deixando
o mundo bonito do lado de fora. Aqui dentro, só há Yan e eu. E, em breve,
nosso bebê, fruto do nosso amor.
Esse é o nosso pequeno paraíso. Acho que o merecemos.

∞∞∞
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[1]
A História de Lorenzo e Liliana pode ser conhecida no livro A FILHA
QUE REJEITEI, informações sobre a obra na página da autora.

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