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Copyright © 2021 por Nina Higgins

Capa: Nina Higgins


Revisão: Control K Revisão
Diagramação: Nina Higgins

HIGGINS, Nina.
TÓXICO – A Vingança do CEO [TÓXICO – A Vingança do
CEO] / Nina Higgins. – RJ: edição número um, 2021].
Ficção - romance – contemporâneo romance - jovens e adultos
I. TÓXICO – A Vingança do CEO II. Nina Higgins

Reservados todos os direitos. Não é permitida a reprodução total ou


parcial desta obra, por quaisquer meios, sem prévia autorização da autora.

Este livro contém cenas fortes e gatilhos. Não é indicado a menores de 18


anos ou público extremamente sensível.
Sumário

Nota da autora
Prólogo
01
02
03
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05
06
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08
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Epílogo
Recado da Nina
Nota da autora

Oi, leitorx

Primeiro de tudo, quero deixar bem claro que eu não compactuo ou


incentivo nenhum tipo de toxidade em nenhum relacionamento, seja ele
familiar, amoroso, profissional... no entanto, escrevi essa história sabendo
que causaria muitas reações e, como meu primeiro romance dark, estou um
poço de ansiedades sobre todas as questões envolvidas rsrs

Se você procura aquele dark pesadão, já aviso de antemão que não é


bem esse, porém, não quer dizer que não seja uma leitura densa ou menos
pesada, trato questões que nos fazem refletir um bocado... empatia, abuso
emocional, vingança, xenofobia, homofobia, a cegueira do ódio, a busca do
poder...

Só para você ter ideia, esse livro na verdade foi escrito em 2019,
bem no comecinho de minha coragem para publicar na Amazon; acho que foi
meu terceiro livro, mas... eu o odiei, simplesmente o odiei quando o
publiquei... quis tentar algo muito diferente, e tive protagonistas antipáticos,
que não me causavam nada além de uma imensa frustração... não deixei nem
uma semana na plataforma, tirei e guardei a ideia na geladeira, porque eu
gostava do plot, era algo que eu queria trabalhar, mas definitivamente de
outra maneira.
Esse ano nasceu a vontade.

Do livro antigo, apenas a ideia de vingança aliada à uma indústria


farmacêutica e em homenagem àquele livro, os nomes dos protagonistas
foram batizados em outros personagens na história.

Pronto.
Nasce assim, algo totalmente diferente do que escrevi na primeira
vez e agora tem minha essência, estou feliz com o resultado – o antigo se
chamava (IM)PERFEITOS, para fins de curiosidade rsrs

Desta vez, tive a ajuda das preciosas betas Maylah, Babi, Ana
Clara, Lea, Fabíola e Joyce e devo a elas todas as reviravoltas que dei... só
para constar, não foram poucas hahaha coitados de meus revisores da Control
K, piraram comigo dessa vez!

Durante a escrita, tivemos a triste notícia da morte de Paulo


Gustavo, e dei vida ao amigo de minha protagonista Ellie, nosso divertido e
esfuziante Lennox, com características inspiradas no ator. Não era para ela ter
um amigo gay, Lennox era anteriormente, Lara; mas meu coração bateu
pedindo mais essa mudança... então quando imaginarem o jeitinho de
Lennox, Paulo Gustavo é inteirinho ele! <3

Sobre as indústrias farmacêuticas... bem... qualquer semelhança que


vocês encontrarem, nada mais é que mera coincidência, mas sim... eu
pesquisei e muito!, para trazer um conteúdo forte e verossímil para vocês,
mas o tema é muito mais do que escrevi, com total certeza! Dá caldo pra
manga e nos leva a refletir bastante!
Então é isso, espero que gostem, sorvam bastante ar e...!

Mil beijos,

Nina Higgins.
Ah, antes de cada capítulo, você vai se deparar com um trecho de
música que me inspirou a escrevê-lo, ouvi muito rock clássico e nostálgico
nessa escrita, assim como alguns mais atuais, desde levinhos à mais
intensos... é a playlist do e-book e uma dica para que ligue o som e curta o
ritmo enquanto lê o capítulo seguinte, que tal?
Prólogo

Ellie, maio de 2004

— Para a marina, senhorita Ellie?

— Sim, Andrew, obrigada... — ajeito os fios de meu coque com


vontade de tirar os saltos assim que entro no carro, meus dedos formigando
dentro dos sapatos, meus pés latejam e imploram por tênis ou sapatilhas, mas
minha mãe me mataria se eu não estivesse devidamente adequada na festa das
Empresas Kane.

Andrew dá a partida no carro e eu me recosto ao banco, esperando


que o movimento do automóvel dite uma nova cadência ao meu coração.
Seco uma lágrima em meus cílios com a ponta de meu dedo, sabendo que
outra vez eles ganharam e não importaria eu ter vinte e um anos e quisesse ter
minhas escolhas, eu sempre faria o que eles mandavam.

Meu pai estava certo, eu era uma Kane e meu destino estava
traçado.
Eu era uma covarde.

— Precisa passar em algum lugar antes, senhorita?

— Não, sem paradas. Meu destino me espera. — resmungo, tirando


minha echarpe e pensando na quantidade de maquiagem que uso, fazendo
meus olhos ficarem pesados, aquele vestido feio e sem cores, terrivelmente
preto, mas de um estilista aclamado por minha mãe.
— Sim, senhorita.

— Não precisa me chamar de “senhorita”, Andrew. Já falamos


sobre isso... — rebato, quase sem voz, e ele me olha pelo retrovisor.

Alcanço seus olhos azuis e o fito pelos próximos segundos enquanto


o jovem motorista segue a rodovia silenciosa, marcando o início da noite. Ele
deveria regular com minha idade e seu tipo físico muito me agradava, mesmo
que eu tentasse não o encarar todas as vezes que ele me guiava pelos últimos
seis meses.
Eu mal sabia o que era namorar ou estar apaixonada por alguém.
Não desde que Patrick tinha terminado há menos de um ano. O afilhado de
meu pai era tudo, menos inteligente. Era bonito, rico, sedutor e mais um
combo completo para deixar qualquer menina de quatro. E eu sabia que ele
tinha me namorado apenas por ser a filha de Desmond e Sophia Kane.

Se ele não era inteligente, eu era.

Meu pai havia ficado animado com o namoro, finalmente eu tinha


desencalhado, como minha mãe dizia em alto e bom som, sem medo que eu
ouvisse suas palavras duras. Eles estavam cansados de me ver em meu
quarto, em cima de meus estudos, reclusa em casa, e não entendiam o que me
motivava a querer fazer faculdade de enfermagem, já que eu poderia ter me
casado com Patrick, como indagava meu pai, ou podia me preocupar com a
beleza, como sugeria minha mãe.

Os dois já estavam pensando em meu noivado quando Patrick


terminou comigo, enjoado da chata da Ellie Kane. Sim, essas foram suas
palavras: enjoei de você, Ellie Kane, você é chata pra caralho.
E é claro que, assim como Patrick, meus pais me culparam pelo fim
do namoro, eu não me arrumava o suficiente, não valorizava minha beleza,
dizia minha mãe, sim, eu era chata, dizia meu pai, o cara não me aguentou
mesmo que eu fosse bilionária o suficiente para um matrimônio valioso entre
as duas famílias.

E eu não podia ter nascido em família mais errada.

Meu coração se aperta com o pensamento e eu me recrimino por me


permitir ter raiva de meu pai quando ele estava tão mal, lutando contra um
problema sério do coração, ou sequer de minha mãe que parecia um
passarinho enjaulado numa gaiola de ouro.
Eu não era essa pessoa, eles são seus pais, Ellie, seus pais.

Outra vez o rancor arde minha garganta... como se meu pai tivesse
sido, um dia sequer em toda sua estúpida vida, um pai preocupado e protetor
ou minha mãe olhasse para alguém que não fosse seu próprio reflexo no
espelho...

Cruzo meus braços e olho pela janela, tentando dissipar o


pensamento outra vez, tentando me manter o mais longe possível de casa... Se
é que eu poderia chamar de lar aquele mausoléu. Meu Deus, Ellie, que
horror! O que está havendo com você...? Pego meu celular e procuro o
contato de Lennox, talvez eu devesse ligar para ele, eu poderia estar surtando
e... não, não... só preciso... respirar...

— Chegamos.
Olho para o lado e não consigo evitar o suspiro que me sai por entre
os lábios. Eu estava tão absurdamente cansada que preferiria ficar naquele
carro durante as próximas horas do que andar os poucos metros até o iate
onde a festa da empresa estava acontecendo há algumas horas.

E eu ainda sabia que seria recriminada pelo meu atraso.

Andrew abre a porta para mim e eu deslizo, sentindo a renda de


minha calcinha friccionar no banco através do delicado vestido. Ele pega
minha mão e eu levanto meu rosto para o seu, sério e profissional,
emoldurado pelo quepe preto, enquanto me ponho de pé à sua frente.
Ele era um pedaço de mau caminho, ironicamente, já que era meu
motorista.

Desvio os olhos, ainda sem acreditar no fluxo de meus


pensamentos, talvez se eu só desse meia-volta, ligasse meu computador e
contactasse Lennox, enchendo seu ouvido com minhas lamúrias outra vez, a
pobre menina rica que não é amada.

— Obrigada. — agradeço, ajuizando meu bom-senso, e acompanho


os leves fios de meu cabelo encostando-se a sua bochecha, a brisa fraca vindo
do mar. A filha perfeita dos Kane. Era o que eu era e era o que todos achavam
que eu devia ser. Perfeita. Certamente aquele motorista me olhava agora
como todos os outros homens me olhavam, uma bela vantagem.
A única herdeira da fortuna dos Kane.

O vento aperta e eu me viro, tentando segurar meus cabelos, e então


vejo um homem perto de um iate metros à frente. De longe passaria
despercebido, não fosse a ausência de qualquer outra pessoa naquele lado do
píer àquela hora, mas é praticamente impossível fingir não perceber sua
presença quando fica cada vez mais próximo.
Olho para o iate de meu pai, as luzes acesas à sua volta, a música
clássica baixa e elegante, algumas vozes e tilintares de taças de champanhes,
a pequena ponte ligando o píer à festa flutuante e desvio meus olhos para
Andrew, que aguarda com a mão ainda repousada na porta.

Noto que o homem vem em minha direção e puxo minha bolsa até
os ombros, içando-a em um movimento instintivo, mas assim que vejo suas
belas roupas não tenho dúvidas que dinheiro ou status não são coisas que
faltam àquele homem.

Acredito que seja algum dos convidados de meu pai, não parece que
preciso temê-lo, ainda que eu sinta um arrepio estranho em minha coluna.
— Boa noite, Ellie Kane. — ele me cumprimenta e eu miro seus
olhos, tão noturnos como o céu, sem entender como sabe quem sou. — Não
me parece uma boa noite para uma festa no iate. Parece que vem tempestade.
— ele tem um sotaque diferente, forte, poderoso, que me leva a prestar
atenção em seus lábios, mesmo que eles por si só já pudessem fazer isso sem
esforço algum.

Meus olhos vão dos seus para sua boca e então reconheço-o das
Empresas Kane, o jovem prodígio que meu pai tanto elogiava em seus
jantares conosco. O que ele fazia longe da ostensiva celebração dos Kane?

— Combina com a festa. — seguro o vestido, que também balança


com o vento litorâneo.

— Desculpe, não entendi. — o homem levanta uma sobrancelha e


eu aproveito aquele instante para apreciar o restante do corpo, tão belo quanto
seu rosto. — “Combina com a festa”?
— Tempestade e os Kane. — respondo para ele e seus olhos se
tornam curiosos. — Quase um sinônimo.

O homem sorri com minha resposta e é estranha a sensação que


toma todo meu corpo, como o segundo antes de pularmos de um precipício.
Ele recua um passo e desvia para a pequena ponte levadiça, sem se despedir
ou falar mais nada, a caminho da festa.

Olho o céu e não há uma estrela naquele manto negro, o mar


balança o iate e, por mais que eu estivesse convicta há um segundo..., sei que
não sou o tipo de garota que enfrenta tempestades. Rumo para o mesmo
lugar que ele, pisando os saltos finos e delicados de meu scarpin na ponte de
madeira para logo em seguida tocarem o chão do iate.
No momento em que entro na festa, alguém segura meu braço com
força e eu engulo o ardor das unhas fincando minha pele quando confronto os
olhos de minha mãe nos meus:

— Por que atrasou tanto, Ellie? — ela sibila e tudo que vejo são
seus lábios num tom carmim se curvarem em desgosto enquanto me analisa
de cima a baixo. Escuto meu pai falando ao microfone, mas mal tenho tempo
de me virar para vê-lo em algum palco improvisado. — Por que está com o
cabelo preso? — seus dedos gelados vão até à franja presa e ela solta alguns
fios, tentando tapar minha testa. — Eu já te disse que assim você não se
valoriza. E a... marca... fica à mostra, Ellie, querida...

Reteso um suspiro, sorrindo sem forças para um convidado que nos


olha furtivamente antes de voltar a mirar meu pai em seu discurso. Ela não
me solta assim que termina de me ajeitar, me puxa disfarçadamente entre
todos, me levando até perto do púlpito de Desmond e eu reparo que todos
erguem suas taças, brindando à sei lá o quê.

Minha mãe sorri de maneira elegante, pegando a champanhe que o


garçom traz até ela e, por alguns segundos, me distraio vendo o convidado
misterioso do píer ao lado de meu pai. Desmond dá umas leves batidinhas nas
costas do homem e noto que procura minha mãe entre todos antes de voltar
ao microfone com aquele sorriso que lança para ela sempre que confidenciam
segredos.
Eu nunca gostei do que normalmente precediam aqueles sorrisos.

Meu pai olha pra mim por um breve instante, mas seu rosto é
indecifrável e noto que ele parece mais velho do que sua idade, as rugas e a
pele muito branca e doente, que tenta disfarçar com alguma base, tão artificial
quanto o sorriso que agora lança para mim:

— Agora que minha bela filha chegou e minha amada família está
completa, finalmente posso anunciar o propósito de nossa festa.
Ele pausa, dando o suspense que lhe é característico nos discursos,
mas tampouco presto atenção em meu pai, o homem ao seu lado é dono de
meus olhos, só consigo ver a beleza que se destaca pela iluminação do iate,
ainda que fosse evidenciada mesmo na penumbra. Seus cabelos são
ondulados e a pele morena contrasta com o belo sorriso de dentes brancos
que, obviamente, anseiam o que meu pai vai falar, provavelmente alguma
promoção nas empresas Kane.

— Todos sabem o meu apreço por Trevor Willians. — meu pai


continua e eu não tenho como não sorrir ao descobrir seu nome, combina
com tudo que admiro. — E não é por menos que eu e minha esposa estamos
radiantes em anunciar seu noivado com nossa filha.

Os aplausos iniciam quase que instantaneamente, as luzes coloridas


se misturam à minha visão turva e parecem faróis em meus olhos e, de um
jeito insano, é como se eu estivesse em uma estrada prestes a ser atropelada e
eu quero o impacto.
Eu desejo o impacto.

Meus olhos se voltam para o palco e meu pai abraça o homem que...
— meu Deus, eu escutei aquilo mesmo? — que... anunciou ser meu noivo, e
eu simplesmente não entendo o que está acontecendo, tão perplexa e
mortificada quanto qualquer um ficaria no meu lugar, mas na mesma medida
todos simplesmente me parabenizam, sorrindo e brindando ao meu noivado,
nada mais faço a não ser controlar minha respiração.

Por mais que eu tivesse medo de tempestades, estava prestes a


entrar no olho do furacão.
01

Uma semana depois

Olho meu marido... ele está de terno e parece mais belo do que
nunca.

É a única coisa que sei sobre ele.

Eu me sento à mesa redonda e enfeitada por rosas e observo o salão


de festas do castelo: eu não esperava menos do que aquilo, cada centímetro
daquele local ostentava a riqueza e o poder ao qual os Kane estavam
acostumados. Meus pais queriam, acima de tudo, mostrar poder, e isso estava
estampado inclusive no modo que eles se vestiam, andavam e se portavam
aos convidados e mídia presentes.
Mal podia acreditar que há uma semana eu nem sabia direito da
existência de Trevor Willians e agora eu era uma Kane-Willians. Eu nem
sequer tive opção, estava tudo arranjado, tudo pronto, um casamento por
contrato.

Eu não tive opção, repito para mim mesma ao me lembrar das


palavras de meu pai logo após anunciarem meu noivado, quando
praticamente saí correndo para o convés do iate, buscando ar: Não me faça
passar vergonha e volte agora lá pra dentro. Eu tiro tudo seu. Tudo, sua
faculdadezinha de merda, sua casa, herança, qualquer coisa que um dia
sonhou, eu destruo. Você sabe, Ellie. Minha influência não é só com
produtos farmacêuticos, filha. Eu a-ca-bo com seu futuro num piscar de
olhos!
Olho minha mãe e bebo um gole de champanhe, que escorre pelos
meus lábios. Ela estava tão branca que sua pele quase parecia uma
continuidade de seu insinuante vestido nude cheio de pontos brilhantes, o que
a deixava mais deslumbrante ainda, como uma joia exclusiva de sua própria
coleção.

Ela parecia a noiva daquele casamento, o sorriso crivado em seus


lábios desenhados, tão bela e perfeita como uma debutante, os passos
elegantes e a silhueta desfilando pelo tapete vermelho, fingindo não estar
afetada com os cliques constantes sobre ela.

Como a estrela do dia.


Tenho vontade de chorar, sem acreditar em como ela pôde ter sido
capaz daquilo, de concordar com meu pai... Nós nunca fomos muito
próximas, nossas diferenças realmente nos distanciavam e eram gritantes,
mas ela me obrigar àquilo...? Estava claro que se amava muito mais que a
mim!
Ela sorri tanto, mas tanto, que tenho certeza que não é natural.

Eu conheço minha mãe e sei como são seus sorrisos quando evoca a
modelo que era antes de casar com meu pai. Sei quando ela posa para uma
câmera ou interpreta a esposa perfeita e sei quando ela sorri genuinamente.
Principalmente porque os sorrisos genuínos eram raros.

De qualquer modo, eu tento absorver toda a aura festiva para me


sentir pelo menos um pouco melhor, mas quanto mais eu desejo estar melhor,
mais parece que a possibilidade escorre entre meus dedos.

Eu estava com medo.


Como não estaria? Estava me casando com um desconhecido e tudo
que ouvi falar dele era que Trevor era a joia preciosa de meu pai, um jovem
promissor e milionário que só agregou à empresa nos últimos seis anos. Foi
tudo que consegui quando pesquisei sobre ele na última semana... tudo!

Nosso casamento selaria a segurança do patrimônio de meu pai, que


decaia vertiginosamente nos últimos meses. Desmond nunca precisou me
falar isso com palavras; apesar de os dois apenas se importarem com
aparência, eu ainda tinha conteúdo.

Eu lia, eu pesquisava, eu sempre queria saber mais.


As Empresas Kane, fundada por meu avô há quase setenta anos, não
lucrava mais bilhões de dólares por ano. Os gráficos caiam exponencialmente
e eu sabia que a doença de meu pai foi definitiva para seu descrédito, ele
gerenciava com mãos de ferro e acumulava fortunas anos após anos com a
fabricação dos remédios, cada vez em mais larga escala, abrangendo desde
analgésicos de rotina à remédios que custavam preços de carros e até casas.

Meu pai estava doente, mas isso não o impedia de me usar como
marionete, atrelando tantos pormenores ao meu testamento que ficou claro
nessa última semana que, se eu não fosse a senhora Willians, não haveria um
único hospital nesse país que contratasse a futura enfermeira que almejo ser.
Desmond Kane nunca admitia sua derrota diante do seu quadro de saúde e
tampouco me via como possível herdeira de seu bem mais valioso, não para
gerenciar pelo menos.

Não que eu quisesse gerenciar...

Bebo outro gole de champanhe e meus olhos se direcionam para


Trevor, que sorri conversando com minha mãe, entretido com ela enquanto os
fotógrafos miram a beleza latente dos dois, registrando aquele momento para
sempre.

Trevor se vira para o salão, mirando todos distraidamente, mas


quando me vê, o sorriso para no meio do rosto, tornando-se artificial.

Como toda aquela festa. Como nosso casamento.


Minha mãe busca para onde ele olha e eu percebo que se torna, por
instantes, tensa. Seu braço envolve a cintura de Trevor e ela o guia para o
outro lado do salão, exatamente o lado contrário ao que eu me encontro,
enquanto sorri exageradamente para meu marido.

Seguro com força um pedaço do tecido de meu vestido, tentando


dissipar a raiva, e encaro meu corpo, vendo as camadas brancas da saia de
seda e renda, então me sinto zonza outra vez assim que meus olhos alcançam
a aliança em meu dedo anelar esquerdo.

É difícil respirar, é quase impossível.


O salão parece rodopiar e não são apenas os convidados presentes
dançando, sou eu, minhas mãos ficam geladas, sinto o suor escorrer por
minha nuca, a tiara em meus cabelos pesa, minhas pernas se tornam
dormentes, no entanto, antes que eu caia, mãos fortes me seguram e eu
levanto meus olhos a tempo de ver Trevor me segurando firmemente.

— Precisa de ar fresco? — ele pergunta e eu não me lembrava da


tonalidade grave de sua voz, ainda que recordasse da sensualidade de seu
sotaque latino. Faço que sim com a cabeça e ele me guia até a pequena sacada
ao nosso lado.

Seus dedos estão entrelaçados em minha cintura e é nítido que ele


percebe que vou desfalecer caso me solte. Apoio minhas mãos à mureta de
mármore e olho o belo jardim que orneia o castelo sob a luz do luar enquanto
sorvo todo o ar que posso, segurando-o em minha boca antes de inspirá-lo
por completo.

Inspiro e expiro mais uma vez.

— Por que aceitou isso? Você nem me conhece! — exclamo com


toda força que tenho e sei que, se não fosse a música da orquestra a poucos
metros, até os convidados teriam me escutado.
Trevor se demora, me olhando por vários segundos, então seu
sorriso se expande, puxando-me para si:

— Pelo visto já se sente mejor. — ele avança com o nariz até o meu
pescoço e eu me encolho ao notar que inala o aroma de meu perfume antes de
buscar meus olhos logo em seguida. — Está se casando com um homem
guapo e rico. É mais do que merece. Não reclamaria de meu destino se fosse
você, preciosa.

Antes que eu possa respondê-lo, a orquestra para de tocar e uma voz


feminina e conhecida ecoa pelo ambiente, agradecendo a presença de todos.
Trevor pega em meu punho e me leva de volta à mesa, sentando-se ao meu
lado, olhando hipnotizado para minha mãe, que começa um discurso sobre o
quanto se sente realizada naquela noite, sua filha amada estava se casando
com um belo homem e teria sempre a vida de uma princesa de contos de
fadas.

Sorrio ácida ao ouvir seu brinde frívolo e volto meu olhar na


direção de Trevor, sentado ao meu lado. Seu semblante seguro não me passa
muita coisa, não consigo entender o que disse para mim há segundos ou
sequer o que pensa sobre todo aquele circo bizarro em que nos encontramos.

Ele não poderia estar feliz casando com uma mulher que nem ao
menos conhece, e sei que nada mais sou do que um negócio rotineiro de um
CEO inescrupuloso. Sim, inescrupuloso, até negócios tinham limites, mas a
aliança em meu dedo só me provava que para aquele homem não.

Para meu marido não.

Todos brindam e sou surpreendida por um beijo rápido e sem forças


de Trevor, que me puxa entre seus braços ao depositar seus lábios nos meus.
Não sinto nada, nem ojeriza por aquele ato, é como se minha alma tivesse
abandonado meu corpo enquanto olho em seus olhos cruéis.
Sim, minha alma não só havia abandonada meu corpo.

Ela tinha sido vendida por meu pai para o diabo.

Tomo champanhe, drinks e uísque, não me importo de misturar e


entorno um copo atrás do outro, sorrindo sarcástica para minha mãe toda vez
que ela tentava me recriminar apenas com o olhar.

Eu não era mais propriedade de Sophia Kane, estava me casando,


não estava? Olho para meu marido conversando com outros homens de terno
que igualmente desconheço e agora sou propriedade dele, constato, deixando
que o álcool da bebida âmbar arda minha garganta quando a tomo num gole
só.
Apenas as mãos que controlavam a marionete Ellie tinham sido
trocadas, eu continuava sendo guiada por linhas que eu nunca seguraria, que
eu nunca arrebentaria.

Bebo outro gole sem me preocupar se daria vexame na festa de meu


casamento ou não, e começo a dançar, me sentindo momentaneamente tonta.
Uau, o efeito da mistura de bebidas era mais rápido do que eu poderia
imaginar... Gosto da sensação, ou da falta dela, ou do excesso dela, não
saberia dizer... Parece que tudo se mistura... o som... as cores... as luzes... os
toques de minhas mãos em minha própria pele... meus passos no piso liso...
meu vestido em meu corpo... o gosto da bebida... o cheiro do perfume das
pessoas dançando ao meu lado...

Era uma explosão de sentidos e, ao mesmo tempo, toda uma


negação dela, como um buraco negro em meu peito.
Gostoso e assustador na mesma medida.

A música me envolve e eu puxo meu vestido para o alto,


suspendendo-o acima de meus tornozelos. A renda costurada à mão pinica
meus dedos, mas aquilo não me detém, quero me livrar de tudo que me
cerceia, mesmo que seja um ínfimo tecido, no entanto mãos cálidas envolvem
meu corpo quando tento arrancar meu vestido de noiva. Sensações diferentes
se misturam às que já sinto: o frio que eriça minhas pernas expostas e o calor
de um agasalho que me envolve.

Eu me debato ao peito que tenta me abraçar e olho para os lados,


começando a me sentir apavorada, observando o salão quase em silêncio me
espreitando, o sufocamento dificultando o ar em meus pulmões. Mãos me
puxam novamente para um corpo másculo e eu levanto o rosto, me deparando
com olhos pretos, como diamantes negros.
Os braços de Trevor me envolvem, até que ele me puxa para cima,
meus pés levitando e então entendo que ele me carrega. Não luto contra,
minhas forças se esgotam antes mesmo que eu suspire em seu colo. Baixo
minha cabeça em seus ombros e afundo meu rosto em sua camisa, inalando
um cheiro estranho, uma mistura almiscarada de ervas e flores... Amargo e
doce.

No segundo seguinte, não sinto mais nada.

E tudo escurece.

Acordo e a ânsia de vômito me guia quase que instintivamente pelo


quarto, minhas mãos tateando as paredes à procura do banheiro, o cômodo
está todo escuro e meu pé toca o piso frio quando abro a porta e vislumbro o
vaso sanitário. Não há um segundo no tempo que separa meus joelhos do
chão quando me jogo, agarrando a louça, e deixo que todo o amargo saia de
minha boca.

Eu fico algum tempo paralisada, me certificando de não haver mais


nada dentro de mim antes de me levantar e entender onde estou. Acendo a
luz, abro a torneira e jogo um pouco de água fria em meu rosto, escovando
meus dentes com os dedos e uma pasta dental que encontro sobre a pia,
notando meu reflexo no espelho, o penteado se desfazendo nos fios
embaraçados e grudados com laquê.

Minha mente vai para o show que dei em meio ao casamento, a


tentativa de striptease, e então me lembro dele me puxando, seus braços me
envolvendo, a proteção de seu colo. Proteção... engulo em seco, sorrindo
acidamente, me abraçando, não, não estou completamente nua, uso uma
camisa masculina de botão... cravo minhas unhas em minha pele, os nós dos
dedos ficam avermelhados com a força que ponho naquele gesto ao juntar
toda coragem atravessando o quarto.
E lá está ele, iluminado pela pouca luz que atravessa o banheiro até
a cama em que acordei.

Seus braços estão caídos sobre seu peito nu, o lençol branco
despencando de seu corpo para o chão, o rosto virado de lado no travesseiro,
olhos muito bem fechados, o ressonar constante.

Seria possível que não tivesse acordado com todo o barulho que fiz?
Olho à minha volta procurando alguma roupa para vestir, e ando pé-
ante-pé até uma poltrona solitária perto da janela, mas não encontro nada ali,
apenas uma almofada solitária ao lado das peças do smoking que Trevor usou
na noite anterior. Estico meu pescoço até a janela e olho o prédio de vidro do
outro lado da calçada refletindo o letreiro, estou no Four Seasons.

— Está se sentindo bem?

Eu me viro, sobressaltada, as mãos imediatamente tapando meu


corpo e encontro Trevor sentado à cama, os cabelos revoltos e o ar sonolento,
me olhando. Eu me encolho, dando um passo para trás assim que ele se
levanta. Não quero, mas meus olhos percorrem seu corpo apenas de cueca e
eu engulo o nó em meu estômago com a bela visão que tenho, mesmo que
não consiga ver detalhes ainda na penumbra.

Ele estica um lençol para mim e eu praticamente avanço até o


tecido, sentindo a seda me cobrir quando me envolvo quase que
completamente nela:
— Como me despiu?

— Está se sentindo mejor? — ele retorna a perguntar e a luz âmbar


do prédio à frente o ilumina mais cada vez que ele se aproxima de mim. Seu
sotaque é absurdamente sexy, eu agradeço ter estudado espanhol o suficiente
para compreendê-lo... e eu mordo meus lábios, sem acreditar que estou
pensando nisso em uma situação dessas.

Dou outro passo para trás:


— Sim. — minha voz sai tremida e eu não gosto que meu medo
seja tão perceptível, quase palpável. — Por que me trouxe aqui? Ainda
estamos em Nova Iorque?

— Você desmaiou e estamos em nossa lua de mel. — ele para de


andar, deixando alguns centímetros entre nós, e eu sinto novamente o cheiro
almiscarado, me lembrando de seus braços. De meu corpo em seus braços.

— Meus pais não falaram sobre uma lua de mel.


— Acho que isso está implícito num casamento, não está? Alguma
pergunta mais?

Todas, respondo em meus pensamentos.

— Não.
Ele avança mais um passo e agora posso ver uma pequena cicatriz
no canto esquerdo de seu rosto, quase imperceptível, assim como uma pinta
perto de seu nariz. De modo algum aquele par de detalhes o enfeia, pelo
contrário, parece mais um tipo de magnetismo para seu rosto tão incógnito.

— Quer água ou algum remédio para enjoo?


— Não. — reforço.

Sua mão pousa em meu braço e eu seguro mais firme o lençol entre
meus dedos. Trevor respira lentamente perto de meus cabelos e eu vislumbro
os fios dançarem com o mínimo de ar que ele solta de seus lábios
entreabertos.

— Por que não descansa um pouco? — me sinto intimidada por sua


aproximação.
— Como posso descansar? Fechar os olhos ao lado de um homem
que não conheço? — as palavras saem lentamente de minha boca, o receio de
como ele vai receber cada uma delas, eu não o conhecia, estávamos sozinhos
em um quarto de hotel.

Trevor levanta uma sobrancelha, concentrado em meu rosto, e eu


percebo que ele não baixa os olhos, mesmo que pareça tentado.

— Sou seu marido. — retorna e eu presto atenção em sua boca. —


E isso deve bastar. — ele se afasta, dando um passo para trás, me dando
espaço, e eu volto a respirar. — Pra falar a verdade, o certo é que minha
esposa se deite na mesma cama que eu. — outros passos para trás e ele se
senta novamente na cama. — E queira me agradar na noite de núpcias.
— Não vou transar com você! — reforço, percebendo que não me
movi desde que ele acordou. E ainda estava nua sob a camisa dele e agora o
lençol.

— Te garanto que se você apenas ficar quietinha na cama já me


agrada, preciosa. — responde, sorrindo de maneira irônica. — Pode dormir,
se quiser. Desde que não me incomode ou faça mais perguntas. Preciso
dormir, amanhã temos muitos compromissos. — ele se ajeita na beirada da
cama e me olha de baixo para cima, as pestanas quase tapando toda sua íris.
Respiro fundo ante a sua revelação e tudo que consigo ver é seu
rosto e seu peito nu banhados pela luz do banheiro, que irradia toda sua
silhueta. Meus dedos seguram com mais força ainda a seda entre minhas
unhas e entendo que por pouco não rasgo o tecido.

— Mas se quiser honrar seus compromissos de esposa, não me


oporei, costumo dormir melhor depois de foder. — sua voz sai mais rouca
que o habitual, sensual até, e meus dedos param nos botões, em dúvida. O
que estava acontecendo comigo? Eu realmente estava pensando na
possibilidade de...? — Não vou te obrigar a nada, faça o que quiser. —
emenda e eu desvio meu rosto do seu, mirando um quadro em cima da cama,
revidando sua fala de modo amargo:

— O fato de eu estar aqui ou sequer casada com você já me diz que


sou obrigada a muito mais do que gostaria.
— Você está salvando o patrimônio de sus padres. E vou te dar
todas as mordomias que você tinha. Vai continuar sendo a princesinha dos
Kane. — diz secamente, contradizendo suas próprias palavras. Se a intenção
era me deixar segura, o efeito é o contrário, o tom de sua voz refuta o
conforto de sua fala. — Todos saem ganhando com nosso casamento, Ellie.

— Não vejo o que você ganha, já que está dizendo que meus pais
beiram à falência e precisou casar comigo para salvá-los.
Trevor olha para mim, curioso:

— Vocês estão longe de irem à falência, Ellie, não sua geração ou


de seus filhos pelo menos. Seu patrimônio é maior que o PIB de vários países
juntos. O que estamos fazendo aqui é salvando a reputación de sua família.
Seja lá de onde tirou suas conclusões, acho que é mais cega do que eu
imaginava. Não deve ganhar joias o suficiente, imagino, e acha que está
pobre... coitada da pobre chica bilionária.

Eu pisco incansavelmente enquanto o miro de volta e a intensidade


do retorno de seu olhar é desconcertante. Trevor está sentado com as pernas
meio abertas, o cabelo bagunçado e, novamente, fito todo aquele abdômen nu
para mim.

Desvio meus olhos de seu corpo e revido seu discurso:

— Pura hipocrisia vindo do homem que casa por negócios


obviamente para aumentar sua fortuna.
— Bem, então por que não misturamos o negócio ao prazer e
tornamos a experiência um pouco mais agradável para ambos? — em um
movimento rápido, Trevor alcança minha cintura com uma mão e me puxa
para entre suas pernas.

Suas mãos descem meu lençol e eu acompanho o tecido roçar minha


pele lentamente, até chegar ao chão, aos meus pés. Ele sobe seus dedos pela
barra da camisa que uso e tapa apenas até o encontro de minhas coxas,
alisando minha pele, seus olhos focados nos meus, meu corpo nu a um
suspiro de distância de sua boca quando suas palavras, vibrando de desejo,
saem de seus lábios e arrepiam minha pele:

— Vou te foder até você implorar por ar, Ellie Kane.


02

Eu o empurro antes que alcance meus lábios, espalmando a mão


pronta para estapeá-lo, mas Trevor segura meu punho e me puxa com força,
me girando e me jogando na cama, minha cabeça quica no travesseiro no
mesmo instante em que ele se põe entre minhas pernas, seu rosto pairando
sobre o meu:

— Eu gosto de uns tapas, Ellie. Mas normalmente sou eu quem dou.


— ele sorri, sarcástico, e sinto seu corpo rijo e pesado sobre o meu. — E
costuma ser algo consensual, sem surpresas, preciosa. E enquanto eu estiver
te comendo.
— Sai de cima de mim... — grunho, tentando empurrá-lo com as
pernas.
Num impulso único, ele se levanta e pega uma toalha enquanto eu
sugo o ar à minha volta, completamente atônita com tudo que aconteceu nos
últimos minutos. Trevor se direciona para o banheiro sem me olhar ou falar
qualquer coisa, as lágrimas escapolem de meus olhos e pingam
torrencialmente no travesseiro, mas não emito som algum, olhando para o
teto.

Escuto o som do chuveiro sendo ligado e continuo paralisada,


apenas concentrada no entra e sai do ar em meus pulmões, deixando que as
lágrimas escorram por minhas têmporas e deslizem por meus cabelos. Por
que eu tinha aceitado aquilo...?
Por quê?

O que valeria meu sacrifício...?

Minha família...?
O vapor quente da ducha entra pelo quarto, acompanhado da luz
amarelada do banheiro, e eu inspiro fundo, fungando um pouco ao voltar a
mexer meus braços tensos e doloridos. Apoio meus pés descalços no tapete
ao lado da cama e a fragrância do sabonete me alcança, estico meus olhos em
direção ao banheiro, concluindo que Trevor nem sequer encostou a porta, ela
está escancarada.

Olho à minha volta analisando a possibilidade de fugir; não teria


sido a primeira vez que aquela ideia teria passado em minha mente desde o
anúncio de meu noivado há apenas uma semana e meu casamento; sumir era
uma ideia tão recorrente quanto respirar.

Contudo, os cartões bloqueados e a segurança que parecia reforçada


nos portões da mansão dos Kane me mostravam que a gaiola de ouro que um
dia foi meu lar era tão segura quanto as algemas invisíveis que eu usava nesse
momento ao olhar para a aliança em meu dedo anelar.

Fugir para onde? Com que dinheiro? Com a ajuda de quem?

Meu pai me encontraria num instante e a quem estou querendo


enganar? Se fosse para eu ter sido corajosa, deveria ter sido antes de dizer
“sim” para Trevor. Como ele mesmo havia dito, aquilo eram negócios de
família — eu deveria tratá-lo como tal, me sentar cordialmente com aquele
homem e acertar alguns termos durante o que deveria ser nosso casamento.

Apenas negócios.

Eu me levanto e, com passos leves, me direciono para a cômoda,


tentando encontrar qualquer pertence, meu ou dele, qualquer coisa que me
diga quem é meu marido ou apenas que me diga que continuo sendo Ellie
Kane... um par de brincos meus, meu celular, o broche de minha avó,
qualquer coisa que tenha minha identidade... que eu não seja apenas a esposa
vendida como subsídio para os lucros de minha família.
Contudo, nada encontro.

Por um maldito instante, meus olhos me traem e eu viro meu rosto


em direção à luz do banheiro, como um cervo hipnotizado por faróis antes da
colisão: lá está ele, sob o vidro embaçado do box, o calor úmido do banho
fervente que esquenta meu sangue ao contemplá-lo nu, ainda que eu não veja
detalhes de seu corpo.

Ainda assim o que vislumbro é poderoso.


Noto que ele deixa uma parte da porta de vidro aberta e dou um
passo cauteloso que me possibilita admirar o que revela. Não sei se é
intencional, mas sei que não posso negar que continuo assombrada com sua
beleza, desde a primeira vez que o vi, sempre envolto naquele misto de luz e
sombras, luz e... trevas.

Trevor lava seus cabelos com o rosto voltado para a ducha, quase de
perfil para mim, os pingos escorrem por seu pescoço, ombros, costas, costela
e acompanho o caminho que a água faz como corredeiras em seus músculos,
deslizando pela pele bronzeada de sua bunda e coxas, misturando-se à
espuma do chão, o vapor sobe com uma calma insinuante, tornando aquele
segundo tão efêmero quanto meus sentimentos ao confrontar sua beleza
quase agressiva ao se virar e ser surpreendido comigo o observando.

Trevor espreme seus olhos e me encara, tão seguro e intenso que


sinto meus pés estancarem no mesmo lugar. Seus cachos se desfazem com a
força d’água e emolduram seu rosto sério e sedutor, ainda que não fale ou não
faça nada, apenas me fite sem piscar. Recuo um passo e me lanço para o lado,
o coração batendo acelerado ao compreender que, mesmo por um segundo,
não resisto e desço meus olhos, contemplando seu pau muito duro ao
acompanhar suas mãos descendo por sua barriga e o acariciando.

Volto os passos que dei e pego com força a maçaneta da porta do


banheiro, batendo-a entre nós dois.

— Vista-se.

Abro os olhos sem entender onde estou e demoro alguns segundos,


focando o rosto de Trevor a poucos metros pelo reflexo do espelho do quarto.
Não sei em que ponto consegui dormir, mas já amanhecia e a luz fraca e
branca de um dia nublado e fresco atravessava a cortina de voil, fazendo-a
balançar levemente.

— Temos que sair em quinze minutos. — ele avisa, apertando o nó


de sua gravata enquanto me olha pelo mesmo reflexo que o miro.
— Onde vamos? — pergunto e minha voz sai rouca, baixa e sem
forças. Ele não se dá ao trabalho de me responder, vestindo um casaco de
couro sobre a camisa asseada. Limpo minha garganta, não, ele não vai mais
me intimidar, não serei o cervo acuado... ao menos, não serei um cervo
acuado. Aumento o tom de minha voz: — Eu perguntei onde vamos!

Trevor passa os dedos entre os cabelos sedosos, arrumando-os com


algum tipo de pressa e se vira para mim ao pegar uma sacola e jogar sobre a
cama ao meu lado:

— Para a nossa lua de mel, preciosa. — ele abre a porta do quarto,


se direcionando para o corredor do hotel. — Te espero no saguão, esteja
apresentável.
De imediato, vejo a caixa de presente saindo pela sacola que ele
havia jogado ao meu lado e, sem pensar, rasgo o embrulho e o grito desliza
pelos meus lábios quando corto o dedo no papel, um filete de sangue na
mesma hora aparece, pingando no lençol branco.

Imediatamente levo o dedo à boca e meus olhos marejam.

Não é a dor física, muito menos estar sozinha, ainda que pareça que
o mundo me cerque. É estar sozinha e ao mesmo tempo sufocada. Um
esgotamento sem fim de tudo que venho tentando ser, tentando mostrar,
tentando provar. Eu não queria herdar o sangue, embora lutasse para herdar
todo o resto. As lágrimas escapolem pelas minhas pálpebras torrencialmente
e desta vez não seguro o choro, eu o libero com força, com toda minha alma.
No entanto, da mesma maneira que começa, cessa.

Eu havia dito o “sim”. Eu havia dito “sim” para aquilo tudo, ainda
que fosse vítima de uma chantagem de meu pai... talvez a ambiguidade
daquilo tudo fosse o que mais me torturasse.
Eu disse sim querendo dizer não, mas ao mesmo tempo era uma
opção minha... eu poderia ter dito “não” ao casamento, ainda que meu “não”
englobasse tudo que eu estava acostumada... a vida que eu sempre tive,
minha faculdade... ainda assim, eu poderia ter dito “não” e seguido com
minhas próprias pernas, não me importando com tudo que minha família
construiu ao longo dos anos... que ruísse, que afundasse...

Mas eu não era capaz, eu não era capaz por tantos motivos que
temer tempestades era o menor deles.

Respiro profundamente e abro a caixa, não me surpreendendo com


o conteúdo: um vestido, muito provavelmente comprado na loja do hotel.
Quando o ergo à minha frente, me surpreendo com o papelzinho que cai aos
meus pés; eu me abaixo e desdobro a pequena folha, me deparando com uma
letra cursiva bem trabalhada, mas, ao mesmo tempo, obviamente masculina.
“Não tão único quanto seus olhos, preciosa, mas incrivelmente belo.
Esteja à altura de seu sobrenome.”

Visto-o sem pressa de me atrasar, ainda tentando entender de qual


sobrenome ele queria que eu estivesse à altura, já que agora eu era sua
esposa. Prendo meus cabelos em um coque e encontro ao lado da cômoda o
scarpin de meu casamento, lindo e tão exclusivo quanto meu vestido de noiva
que, no momento, desconheço o paradeiro.

Não há nada para passar em meu rosto, nenhum estojo de


maquiagem, nenhum creme ou frasco de perfume, no entanto, quando me fito
no espelho, vestindo a escolha de Trevor, olhos avermelhados pelo choro e
cabelos não tão alinhados... gosto do que vejo:

Pela primeira vez, ironicamente, me sinto bela.

O navio é grande, mas não me surpreendo, não é a primeira vez que


faço um cruzeiro. Não que eu não goste, talvez só não... não me sinta à
vontade por estar em sua companhia e aquilo ser nossa lua de mel.

Nossa cabine é ampla e com escotilhas que nos presenteiam com a


bela vista do mar azulado, uma cama espaçosa e que parece aconchegante,
closet, área para jantar e uma porta de vidro que nos leva a uma varanda com
hidromassagem privativa. Imediatamente procuro outra cama que não seja a
de casal, mas me frusto ao concluir que aquela cabine é perfeita para as noites
de núpcias de noivos ardentes em paixão, o que não era nosso caso.
Trevor passa por mim, empurrando as pétalas de rosa de cima do
colchão para o canto ao se sentar na cama, e eu finjo não reparar nos outros
detalhes românticos que ornamentam a cabine, certamente mimos da empresa
que gerencia o cruzeiro. Olho a mesa já pronta para o almoço, as flores e os
castiçais elegantes à espera de nossa chegada, mas me detenho no closet ao
abri-lo, surpresa.

Meus olhos se voltam para Trevor, que está concentrado em seu


celular, enviando uma mensagem, recostado ao encosto de madeira maciça da
cama. A pergunta fica detida em meus lábios e eu volto a mirar as roupas
penduradas nos cabides, deslizando meus dedos pelos tecidos finos e cores
vibrantes, elegantes e exclusivas, e não sei como saberiam o número que
visto, mas lá estavam elas: todas dispostas para minha escolha. Aquilo
poderia ser obra de minha mãe, mas diante de seu olhar no meu casamento,
tenho minhas dúvidas.

Recuo até a mesinha ao lado do pequeno sofá e pego o itinerário do


cruzeiro, constatando que ficaríamos uma semana embarcados; nem isso
Trevor tinha me dito enquanto seguíamos viagem em direção ao porto,
silenciosos, calados. Ele concentrado no seu laptop e celular, falando com
algum investidor sobre números e planilhas, e eu muda, olhando pela janela
fechada da limosine, Nova Iorque ficando para trás.
Estava cansada do silêncio:

— Por que tudo isso? — aponto para o alto, mas o que quero
mesmo é englobar a baboseira toda que envolve estarmos em lua de mel. —
Se estarmos casados nada mais é que negócio, qual a intenção desse teatro
todo?

Trevor deixa o celular de lado e me olha, como se esperasse que eu


o perguntasse exatamente aquilo, não o surpreendo:
— Você já respondeu sua própria pergunta: teatro. — ele se levanta
e vem em minha direção, desbloqueando a tela de seu celular. — Estamos
encenando, Ellie. Como eu disse, não se trata apenas de dinero, mas de
reputación. Dois jovens ricos e enamorados que não aguentaram nem sequer
uma semana entre a anunciação de seu noivado e casamento. — ele ergue o
aparelho em frente aos meus olhos e eu vejo a quantidade de links com
nossos nomes na página de busca do Google. — Somos manchetes nas
principais revistas. As ações das Empresas Kane estão valorizadas na bolsa
no exato momento. — ele sorri, exultante. — Wall Street está beijando
nossos piés. — então desliga o celular e seus dedos colocam a mecha de meu
cabelo para trás de minha orelha, exatamente o movimento contrário que
minha mãe insistia sempre em fazer. — Não é apenas estarmos casados, é
estarmos apaixonados.

Meus dedos tremem ligeiramente quando tiro os seus de mim:


— Mas não estamos apaixonados.

— Ninguém além de nós precisa saber. — retruca com um sorriso


fácil nos lábios. Tão fácil que é difícil distinguir daquele de ontem, que eu
julguei ser artificial.

Ainda assim, nego:


— Meus pais também sabem que não estamos.

Ele guarda o celular no bolso com uma calma angustiante, me


torturando com a demora de sua resposta enquanto me olha e deixa o sorriso
ainda em sua boca:

— Tu madre também não deve amar tu padre, mas certamente... —


ele me olha de cima a baixo. — ...ela não dificulta as coisas com ele.
Qualquer casamento nada mais é que negociação, Ellie Kane.

Eu o encaro, boquiaberta, e ele me mira de volta, sem mudar o


semblante autoconfiante: olhos muito negros, como caixas de pandora,
sobrancelhas fortes marcando a pele morena, a barba por fazer e cabelos
castanhos em um corte impecável, que revelava seus cachos com maestria.
Uma calma consistente e trabalhada que eriça minha espinha, talvez mais que
sua revelação. No entanto ainda me detenho em suas palavras:

— Co-como assim? — balbucio.

Trevor dá de ombros:
— Ah, você não pode ser tão ingênua assim, Ellie. O amor de su
madre é tão ilimitado quanto seu cartão de crédito. — faz uma careta
desgostosa. — Uma joven que mal fez quarenta anos e su padre beira os
setenta. Acreditar nesse amor verdadeiro é como acreditar em cuentos de
fadas. Não me diga que é uma dessas.

Mordo meus lábios, o encarando dar a volta na mesinha de centro e


alcançar o buffet, pegando um copo e adicionando gelo e uísque. Ele bebe um
gole lentamente e eu não sei o que falar, não mesmo, meus pais viviam se
agarrando pela casa e se eu podia reclamar que as demonstrações de afeto por
mim pouco existiram, não podia negar que com eles a coisa era diferente,
minha mãe vivia rebolando para meu pai e Desmond babava por ela.
Não que eu nunca tivesse pensado no que Trevor tinha acabado de
falar, mas... claramente não imaginava que um funcionário dele pensava o
mesmo. Ainda que não queira defender os dois, me sinto impelida a fazer
isso, principalmente porque minha intenção no momento seria tudo, menos
concordar com ele:

— Você julga demais o que não conhece, principalmente por ser


funcionário dos Kane. E agora genro. Deveria demonstrar mais gratidão à
quem te deu não só um cargo na empresa, mas a mão da própria filha. E
sobre diferença de idade — aponto para ele e depois para mim. —, acho que
temos uma década entre nós e estamos casados, não estamos? — atravesso o
tapete e vou para o lado contrário da cabine, tirando meus saltos, talvez eu
apenas me deitasse e hibernasse pelos próximos dias, quem sabe quando eu
acordasse não estaria em uma realidade paralela em que eu não era a esposa
de ninguém, muito menos daquele homem...?

Trevor ergue uma sobrancelha:


— E quem disse que yo não sou grato? Su padre é o homem que
mais respeito em todo o Planeta Terra. Pero isso não quer dizer que sou cego
e, justamente por conta de minha perspicácia, cheguei onde cheguei. Sobre a
nossa diferença de idade, você apenas refuerza que muitos casamentos nada
mais são que puro interesse. — ele mexe no copo e escuto os gelos chocando-
se uns contra os outros. — Mas não, Ellie. Ele não me deu cargo nenhum, eu
mereci estar onde estoy.

— Diferente desse casamento. — resmungo e ele sorri em resposta.


Reviro os olhos e Trevor se aproxima, uma mão no bolso e outra no copo, os
olhos em mim:
— E ele não me deu o cargo que eu almejava, não ainda, preciosa.
— impõe apenas poucos centímetros entre nossos corpos e eu olho para os
lados, me sentindo acuada entre ele e a parede. — Não sou vice-presidente
das Empresas Kane e fui surpreendido com esse infortúnio seis meses atrás
quando ele chamou o senhor Clark. — baixa o tom de voz, quase
sussurrando. — E eu achando que a vaga já era minha.

Ele encosta o copo em meu pescoço e o desliza um pouco pelo meu


colo, sinto o gelado do líquido e baixo meus olhos até sua mão, notando a
gotinha que se forma entre o vidro e minha pele escorrendo e sumindo pelo
meu decote. Subo meus olhos e encontro os seus seguindo o movimento da
água em silêncio, sua respiração marcada apenas pelo movimento de seu
peito, a boca mordida por seus dentes.

Engulo em seco e ele busca meus olhos:


— Mas consegui algo melhor, não é mesmo, mi preciosa esposa?
03

Saio da cabine estalando meu pescoço e demoro alguns minutos


apenas olhando o corredor largo que me levaria aos elevadores, suspirando
sem fuerzas.

Por mais que eu já tivesse bebido um copo de uísque, ainda estava


tentado a passar algumas horas no bar, talvez anestesiando a repulsa que
sentia por ela. Quer dizer, não exatamente por ela, Ellie Kane era tão
hermosa quanto a mãe, mesmo que obviamente ela não soubesse disso. No
entanto, ela era uma Kane e o cinismo e a prepotência que ostentava em seu
olhar me dava vontade de dobrá-la aos meus pés.
Foder el cuerpo dela era a menor das minhas intenções; na verdade,
comer Ellie Kane era só uma parte de meu plano e sim, por mais que eu
quisesse foder literalmente com ela, também não pararia por aí.
E pensar nisso já me deixava de pau muito duro.

Ajeito minha gravata e me adianto até o elevador, as portas fecham


e eu tento não me irritar com a música insossa que envolve aqueles poucos
metros quadrados, mirando meus sapatos italianos. Esos zapatos italianos de
mierda. Minha respiração subitamente fraqueja e eu levanto meus olhos,
procurando no painel em que andar estava... carajo, engulo a saliva amarga...
minha visão embaça e tenho que me apoiar na barra de aço atrás de mim,
meus dedos agarram aquela bosta com força e vejo os nós de meus dedos se
tornarem brancos, o pânico corroendo minhas entranhas.
Miguel, tu cagón de mierda!

Engulo uma lufada de ar e o ardor atravessa minha espinha,


tornando meus movimentos quase que pausados... sorvo ar ou tento sorver ar,
meus olhos lacrimejam e eu não acredito... carajo, carajo, carajo!

Não agora, não agora, não agora, puta que parió!


Afrouxo a gravata e passo a manga pelo suor da minha testa,
fechando os olhos e contendo a dor excruciante que dilacera meus órgãos.
Subo com as mãos pelos cabelos e os agarro com força, quase arrancando os
fios, mordendo minha língua para não gritar de dor. Hijueputa! Eu me
encolho e imploro que não haja uma câmera ali onde pudessem estar me
assistindo e quase gargalho ao constatar que imploro por aquilo e não para
que a dor passe, quase me acostumando com ela.

Por um instante me sinto mais aliviado e tento voltar a ficar ereto, a


música do elevador volta a entrar pelos meus ouvidos e eu reconheço o
clássico de Beethoven, tentando me concentrar naquilo. Pisco mais algumas
vezes e a porta reabre em instantes, me presentando com uma lufada de ar...
não é o andar do bar, não é o andar do bar... inspiro fundo e aciono el botón
de fechar, ansiando mais do que nunca por uma bebida forte.

Coordeno minha respiração e, antes que a porta dupla volte a fechar,


um par de mãos delicadas a segura e uma mulher entra, sorrindo para mim, o
vestido dourado colado en el cuerpo, os cabelos loiros em ondas pelos
ombros, forço um sorriso de volta e ajeito a gravata frouxa.
Ela desce os olhos por mim e se encosta na parede lateral do
elevador, me dando um bom ângulo de seus seios quando se abaixa para
pegar a bolsa que escorrega dos ombros, o batom rola até meus pés e eu me
ajoelho para pegá-lo, ignorando as sombras das dores que ainda reverberam
em minhas células.

Eu entrego seu batom entre seus dedos no exato momento em que


as portas se abrem novamente; ela se demora para pegá-los, roçando sua pele
com calma na minha, baixo meus olhos para seus lábios carnudos e ela sorri
de lado, piscando para mim antes de sair.

Mal noto que as portas voltam a fechar, hipnotizado por sua bunda
se distanciando de mim em direção ao bar. Então seguro-as no último instante
e vou atrás dela, concluindo que, se eu não poderia foder minha própria
esposa em nossa luna de miel, pelo menos eu ainda me satisfaria.

A mulher enrolada ao lençol se debruça na mureta da varanda


privada de sua suíte e fuma um cigarro, olhando o horizonte enquanto eu me
visto, observando suas coxas nuas.

Eu conhecia bem aquele tipo, uma cazadora nata de homens ricos,


talvez eu desse alguns vestidos que ela escolhesse nas lojas do navio,
maquiagens ou perfumes caros, mas comigo ela certamente não conseguira
muito mais que alguns presentes valiosos; eu era casado.

Abotoo minha camisa, mirando seus passos ao meu encontro, ela


me ajuda a fazer o nó de minha gravata e lambe meus lábios, sorrindo
manhosa para mim, os dedos escorregando para a braguilha de minha calça:
— Já vai embora? — pergunta, roçando seus seios em mim, mas
seguro seus dedos quando ela finalmente consegue abrir o zíper de minha
calça e recuo um passo, me afastando dela e enfiando minha mão no bolso do
paletó jogado em meu braço:

— Pode comprar o que quiser na minha conta. — escrevo o número


nas costas de meu cartão e o jogo em cima da cama bagunçada. — Só não
abusa, um vestido ou um perfume, no máximo... você não foi tão buena
assim.

Eu me viro de costas sabendo que ela me olha boquiaberta, talvez


apenas acostumada a elogios, mas sinceramente a coisa foi performática
demais, muitos gemidos altos, caras e bocas e parecia que ela estrelava um
filme pornô comigo. Aquilo era tão artificial quanto cada curva de su cuerpo.
Não que eu reclamasse de mulheres assim, normalmente.
Pero hoy estaba especialmente disgustado con todo.

— Talvez o problema seja yo. — resmungo, seguindo pelo corredor


sem nem me dar ao trabalho de fechar a porta de sua suíte enquanto penso o
que Ellie poderia estar fazendo em nossa cabine, se é que continuaria por lá.

Quando saí, ela tinha se deitado e se tapado com a coberta dizendo


que iria dormir e que eu me arranjasse no sofá, pois só precisávamos estar
enamorados quando estivéssemos em público. Obviamente eu não dormiria
no sofá, tampouco na cama da loira.

Eu tinha pagado muito caro por aquela lua de mel ostensiva e iria
usufruir de cada pedaço dela.
Evito o elevador e subo as escadas até os andares do convés, ainda
que eu saiba que aquilo iria me custar mais tarde. Abro a porta da nossa
cabine sem fazer muito barulho e entro pela penumbra, percebendo que ela
deixou apenas a luz de um abajur acesa.

Eu me demoro ao passar em frente à cama, observando o rosto


sereno de Ellie, seus cabelos castanhos escorridos pelo travesseiro, sua pele
alva e delicada, os cílios compridos, os lábios levemente apartados numa
respiração silenciosa, hermosos e rosados... imagino meu pau entre eles, ela o
sugando com vontade e sei que quando aquilo acontecer seus gemidos serão
verdadeiros, eu a farei arfar e sorver ar enquanto se engasga ao engolir meu
gozo.

Aquilo sim era excitante.


Olho a coberta tapando seu colo e desejo saber como é su cuerpo, se
os seios são pesados e naturais, se as costas arqueiam em uma bunda
empinada e se sua buceta tem o mesmo cheiro de todas as vezes que inalei o
perfume em seu pescoço: baunilha.

Ah, eu amava o cheiro dulce de uma mulher.

Apago a luz do abajur e caminho até o buffet, tirando a gravata e a


largando em cima da poltrona solitária de canto. Tiro meus sapatos
lentamente, olhando a luz da lua que ilumina através da porta corrediça de
vidro e solto as abotoaduras do punho da camisa, mirando o céu noturno ao
tentar sentir as ondulações do navio... imperceptíveis.
Pego outro copo de uísque, mas desta vez não coloco gelo,
bebendo-o em uma única golada. Desabotoo a camisa que minutos atrás
vestia depois de me deitar com outra mulher e ando apenas de calça até a
cama novamente, mirando Ellie quando ela se vira para o outro lado e seu
braço despenca pelo colchão, as pontas dos dedos encontrando o tapete no
chão em frente à mesinha de cabeceira.

Uma pequena pulseira valiosa e delicada, algo como uma


correntinha fina de pontinhos brilhantes, enfeita seu punho e eu me debruço,
encarando a marca que fez em sua pele, parecia apertada, deixou um fio
vermelho de lado a lado. Passo o polegar em cima, sentindo a textura da
marca e ela resmunga baixo, virando-se e jogando o braço em cima da testa.
Eu me levanto e sigo para uma ducha rápida com o objetivo de me
livrar de qualquer vestígio da loira, no entanto, quando volto, apenas com a
toalha enrolada em minha cintura, pego a gravata caída na poltrona e ando
calmamente em direção à cama, um sorriso satisfeito em minha boca.

Talvez eu fizesse uma marca mejor em seus punhos.


Acordo sentindo minhas mãos formigarem, tento me mover, mas
entendo que meus braços estão presos antes mesmo de meus olhos se
acostumarem à penumbra.

Um desespero percorre minha garganta assim que a luz do abajur é


acesa e meus olhos focam Trevor em pé ao meu lado. Subo meu rosto e
confronto sua gravata amarrada aos meus punhos, o nó forte na cabeceira da
cama. Desvio de volta para Trevor, seus cabelos molhados, o torso nu, a
toalha envolta em sua cintura, os olhos presos aos meus.

— Trevor! O que é isso? — minha voz sai aguda e meu peito chia
de medo... ele... ele... o que ele faria comigo? Debato meus pés embaixo da
coberta, que cede aos meus movimentos, e respiro, ansiosa ao ver que ainda
estou vestida, a mesma camisola que me deitei. — Trevor, me solta!
— Não. — ele responde simplesmente, passando a mão pelos fios
molhados.

— Se você tocar em mim, vou berrar tanto que...

— Cállate! — ele me corta e apoia uma mão ao lado de meu rosto


no travesseiro, se debruçando sobre mim, um joelho no colchão. Eu me
encolho, paralisando minha respiração. — Não vou te tocar, Ellie. — um
sorriso desenha seus lábios. — Não precisarei te tocar. Mas você vai pedir
que o faça quando implorar pelo orgasmo...

— O que... o que está dizendo?

— Apenas vou me deitar aqui ao seu lado. — num movimento ágil,


ele pula sobre mim, atravessando meu corpo e se deitando ao meu lado, o
colchão cede ao seu peso e eu me viro, vendo-o descansar sua cabeça no meu
travesseiro. — E pretendo ouvir alguma música. — ele tira a toalha de sua
cintura e eu levanto meus olhos, buscando os seus, evitando ao máximo
compreender que ele se encontra completamente nu, tão próximo. — Pode
fechar os olhos se quiser... mas sei que su cuerpo inteiro vai sentir minha
presença.
Engulo em seco observando-o pegar o controle remoto enquanto
busca, provavelmente, algum canal de música... esse cara era doente, só
podia, meu Deus... e eu era casada com ele... o que mais poderia me esperar
nas próximas noites? Tento soltar meu punho da gravata e ele levanta os
olhos para mim por um instante, me analisando, antes de voltar a focar o
celular.

— Estar de mãos atadas vai te permitir sentir tudo melhor ainda,


Ellie. — ele sussurra, a voz baixa e grave. — Estar impossibilitada de se
tocar... você não deve ter ideia de como isso é poderoso quando sentir as
vibraciones em su cuerpo...
— Você é maluco... — rebato, incrédula, forçando meu punho
contra a gravata, o ardor atingindo minha pele, mas os acordes me distraem e
eu entendo que ele ligou o som do quarto.

A voz feminina começa a cantar, baixa e sensual, e Trevor volta a


subir os olhos para meu rosto, se deitando de frente para mim. Sinto que
algum movimento inicia lá embaixo, posso ver seu ombro direito se mexer,
os músculos de seu braço tensos em um mesmo ritmo: subindo e descendo,
subindo e descendo.

Fecho os olhos, sabendo que ele bate uma punheta, e inspiro fundo,
tentando prestar atenção à música, não deixando que o som de seus dedos em
sua pele ecoe em meus ouvidos. No entanto, sem resistir, abro uma das
pálpebras e o encontro me fitando, o peito inflando e desinflando e o leve
respirar de seus lábios em silêncio é o que o separa dos meus. Ele está me
olhando fixamente, me devorando, os movimentos mais intensos em seu
braço... minha respiração fraqueja por um segundo e involuntariamente
minhas pernas cruzam.

— Se me pedir para parar, eu paro. — Trevor escorrega seus dedos


por meus cabelos, tirando-os de meu rosto. Sinto meu peito dar uma batida
forte com aquele toque. — Se me pedir para te tocar, eu te toco. — ele revela
com a voz queimando de desejo e por um segundo quero sentir a textura de
seu corpo, a firmeza de seus músculos, o mamilo eriçado pelo meu toque.
Sinto minha barriga firmar e meu ventre pulsar, encarando-o, ainda perplexa
com o que acontecia naquela cama e dentro de mim. — Se não falar nada,
vou continuar até gozar.

Analiso o formato de seu rosto, as linhas fortes, a mandíbula reta, os


olhos inflamados de desejo, os cabelos caindo sobre sua testa, ainda
molhados, e um gemido escapa por meus lábios ao sentir o tesão percorrer
minha espinha.

Seus olhos imediatamente esquadrinham minha silhueta ao perceber


que o que faz me afeta e eu me recrimino por deixá-lo saborear sua vitória:
— O que quer que eu faça, Ellie...? — questiona, a pergunta
soprada de seus lábios e a sensação de seu desejo é mais nítida ainda. Desço
meus olhos para o que está fazendo e ele ergue a cintura um pouco, apenas o
suficiente para que eu possa assisti-lo por completo. — Gosta do que vê,
preciosa? Dele duro assim por você? — diz, sua voz uma infinidade de
desejo e meu coração dispara.

Trevor joga sua cabeça para trás e sinto minha umidade deslizar por
minha pele, minhas coxas se esfregam com mais força e meus olhos se
fecham por um segundo enquanto anseio me tocar.

Eu preciso me tocar... eu quero me tocar... eu quero que ele... ele me


toque...
Inspiro devagar e o assisto envolver toda sua extensão, acariciando
seu pau e arfando cada vez mais alto, estremecendo sua respiração. Sua mão
desliza de cima para baixo em movimentos ritmados e acompanho sua
barriga contrair em espasmos que pulsam entre minhas coxas em reação.

— Porra... Carajo... — ele morde a boca e eu me sinto tão excitada,


quente e molhada que pareço entrar em ebulição. — Ellie, me deixe te tocar!
— escuto sua voz poderosa e me volto para seu rosto, suas pestanas
entreabrem e fecham enquanto seus olhos oscilam e tudo que quero é que ele
me solte, eu preciso, preciso me tocar, mas nunca, nunca vou dar o braço a
torcer e por mais que eu não peça para ele parar, tampouco vou deixar que me
toque.

Não, não vou deixar, não vou!


“Mesmo que eu deseje”, a voz se infiltra em meus pensamentos e eu
volto a fechar meus olhos, mas aquilo não muda nada, consigo escutá-lo se
masturbando, seus gemidos fortes, o peso da cama me provando que ele
estoca contra seus dedos com mais força ainda... anseio não só pelo meu
orgasmo como pelo dele.

Sem conseguir refrear a vontade, volto a abrir os olhos e vejo que


ele contorce o quadril mais uma vez antes de praticamente paralisar no exato
instante em que o vislumbro gozando, a porra sendo despejada em seus dedos
unidos, segurando forte seu pau. Ele olha para mim por alguns segundos e
desce os olhos, levando os meus com o gesto e eu nada faço além de
contemplá-lo ainda gozando, como se explodisse de desejo, arfando baixo.
Puta. Que. Pariu.

Engulo o ar e miro seu peito subindo e descendo, a respiração forte


acompanha as mãos ainda em seu pau latejante e aquilo é o bastante para que
eu me contorça ao seu lado, minhas pernas se entrelaçam e as vibrações
sobem por meu corpo, me invadindo completamente e explodindo entre
minhas coxas.

Minha respiração pausa na boca, meus gemidos ficam presos em


meus lábios, a cadência de meu orgasmo me molha a pele, a pulsação de
minhas artérias descontrola meu coração e eu não quero, não quero que ele
saiba que eu... eu... que ele tenha certeza que eu gozaria... ele... não poderia
ter esse prazer. Não poderia! Fecho meus olhos com força e meus dedos se
unem em punho com raiva, a gravata quase corta minha pele.
— Ellie.

Engulo a raiva e o encaro, atônita: Trevor está paralisado, me


observando e não fala nada, não sorri, não se gaba, não muda o semblante de
poucos segundos atrás, o suor ainda permanece em sua testa e sua boca
continua vermelha pela força dos dentes que depositou em seus próprios
lábios.

Nos fitamos por longos segundos enquanto controlamos a


respiração, mas não nos movemos ou sequer piscamos. Então, lentamente, ele
se ergue e eu o observo se esticar até a gravata, desamarrando-a com calma.
Continuo quieta, apenas meus olhos se movem, acompanhando seus
movimentos, os dedos desatando a gravata da cabeceira, o tecido ficando
frouxo em minha pele até minhas mãos estarem completamente livres.

Trevor joga a gravata no chão, mas, antes que saia da cama, eu me


ergo e rapidamente estapeio seu rosto. Mal sinto o baque, minha mão formiga
e parece dormente, mas sei que o machuco porque o tapa não só moveu seu
rosto ao pegá-lo desprevenido como ecoou por sobre a música.

Ele volta a me olhar e eu praticamente me encolho na cama,


imaginando que vá revidar dada a maneira que me encara, os olhos tão
negros quanto a escuridão lá fora. No entanto, ele apenas abre um sorriso
diabólico para mim:
— Da próxima vez que você tiver um orgasmo, vai ser na minha
boca. — eu me encolho outra vez e ele sai da cama, se afastando de mim. —
Não é uma ameaça, Ellie, não se preocupe. É uma promessa. Você vai
desejar. Y yo voy lamber seu gozo.
04

Amanhecemos em silêncio.

Trevor toma seu café da manhã lendo notícias em seu celular e eu


me distraio com a vista da varanda privativa, acompanhando os voos das
gaivotas em alto-mar. Se não fosse sua companhia, até seria prazeroso estar
ali, a manhã está fresca, mas quente sob o sol, ideal para um banho de
piscina, ou quem sabe quieta, em silêncio, apenas desenhando aquela bela
vista, como só os rabiscos eram capazes de me relaxar.
Logo depois do tapa, quando ele saiu da cama, sumiu de minha
vista durante o resto da noite, e presumi que tivesse ficado no bar ou em
qualquer outro lugar daquele imenso transatlântico. Não que eu me
importasse, pude voltar a tentar dormir, embora só tenha pregado os olhos
quando os primeiros raios de sol invadiram minha cabine, ainda
completamente atordoada com tudo que havia acontecido sobre aqueles
lençóis.

Dou uma olhada rápida para trás, baixando meus óculos escuros um
tantinho só e o vislumbro, concentrado com os cabelos molhados e uma
camisa polo azul petróleo, aquele aroma almiscarado dominando todo o
ambiente. Volto a mirar o horizonte, sentindo minhas bochechas queimarem
pela lembrança nítida de seus músculos acentuados enquanto se dava prazer.

No mesmo instante, dou meia volta até o closet e abro as gavetas,


procurando um biquini. Sinto os olhos de Trevor em minhas costas, mas finjo
não estar afetada pela sua presença e escolho, dentre as duas dúzias de opções
de roupa de banho na gaveta, um maiô com decote cavado e estampa étnica
com cores terrosas.

Entro no banheiro, me troco com calma e saio, pegando um chapéu


elegante, desviando de sua atenção, que agora está mais óbvia; ele nem
disfarça, a xícara de café sustentada em uma mão e o celular largado na mesa,
bem longe de seus olhos.

Saio da suíte sem falar nada.

Entro na piscina deslizando com calma, a água está mais gelada do


que eu esperava, mordo meus lábios e afundo até a altura dos ombros,
sentindo minha pele arrepiada. Ainda é cedo, poucas são as pessoas na área
de lazer, algumas famílias com crianças e uns funcionários servindo drinks
coloridos com sombrinhas, mesmo que não seja nem oito da manhã.
Decido fazer a coisa direito e me aventuro, pedindo uma bebida
azul que desconheço os ingredientes, tentada a anestesiar minhas lembranças,
no entanto, o dono delas aparece pela porta de vidro e chama minha atenção
de imediato.

Mergulho minha cabeça e molho meus cabelos, desanuviando a


visão de seu corpo de short e uma toalha branca pendurada nos ombros. Que
ridículo! Trevor poderia ter tido o bom senso de me deixar sozinha nas
próximas horas, eu não o tinha convidado para estar ali comigo e impor sua
presença era obviamente um modo de me deixar transtornada.
Ele se senta na cadeira abaixo do ombrelone amarelo ao meu lado e
eu me debruço à beira da piscina, deixando que a água dos meus cabelos
escorra sem pressa por meus seios, encarando-o:

— Veio tomar conta? — empino o nariz e reviro os olhos, vendo-o


apoiar os cotovelos nos joelhos, concentrado em mim.

— Preciso?
— Só vim me refrescar. — retruco, azeda.

— Nosso quarto estava muito caliente? — questiona, erguendo uma


das sobrancelhas, pretensioso.

— Um inferno! — rebato, irônica, e ele ri baixo:


— Bem, seria estranho minha esposa estar na piscina e eu não
aproveitar esse belo dia com ela.

Deslizo minhas mãos pelos fios de meu cabelo e os torço ao meu


lado:

— Preocupado com os paparazzi? Nós não somos o centro do


universo, Trevor.
— Não com os paparazzi, especificamente. — ele responde,
incógnito, e, por mais que eu queira saber o que ele quis dizer com isso, não
vou dar o gostinho a ele de achar que me importo com o que ele pensa.

O garçom chega com minha bebida e eu saio da piscina, deitando na


espreguiçadeira ao seu lado. Ele me fita por alguns segundos antes de tapar
seus olhos com os óculos de sol e cruza os braços, mirando a piscina,
obviamente cessando qualquer comunicação a mais.

Por mais que eu estivesse constrangida por ontem, gostaria de, de


alguma forma, conhecer meu marido um pouco mais e já que ele estava
impondo sua presença, seria melhor que passássemos o tempo em alguma
conversa e não fingindo que um não está na presença do outro. Mas aquilo
fazia tanto sentido quanto eu estar casada com um desconhecido para salvar a
fortuna e o sobrenome dos Kane.

Enfim, quem Trevor Willians também era para salvar um império?

Decerto ainda que fosse rico não era bilionário, senão não aceitaria
ser um funcionário de meu pai; o que me faz, outra vez, me perguntar qual
seria sua influência com Desmond ou dentro das Empresas Kane.
— Há quanto tempo trabalha com meu pai? — questiono após dar
uma bicada no canudo e sentir o gosto de suco de laranja naquela bebida
estranhamente azul anil.

— Seis anos. — ele responde sem me olhar.

— E por que você e não qualquer outro?


Minha pergunta tem sua atenção e ele posiciona os óculos entre os
cachos na cabeça, mirando seus intensos olhos em mim. Sem disfarçar, ele
admira meu corpo por longos e longos segundos, sorrindo de canto de boca
quando encontra meus lábios mordiscando o canudo:

— Se está perguntando por que razão su padre me escolheu para


casar com você, não deveria perguntar a ele?
Jogo meus cabelos de lado e sorrio de volta, teatralmente:

— Se você está casando comigo, certamente sabe a resposta.

Trevor pega o drink da minha mão e lambe o canudo antes de sugar


o restante da bebida, batendo o copo com força na mesa de vidro:

— Não cabe a mim dizer o motivo de su padre te vender tão barata,


como uma mercadoria. — me lança uma piscadela debochada. — O que
podemos entender com isso é que, pelo visto, você não é tão valiosa quanto
acha, Ellie. — ele responde de modo áspero e se levanta da cadeira quando
dois homens entram na área da piscina, indo imediatamente encontrá-los.

Pego o chapéu caído ao meu lado e, com raiva, o enfio em minha


cabeça, sem acreditar que outra vez Trevor me humilhava com suas palavras,
como se já não bastassem seus atos na noite anterior. Penso na possibilidade
de me levantar e tirar satisfações com ele, mas sei que já consegui questionar
muito mais do que estou realmente acostumada.

Olho-o ao lado daqueles homens e sei que não teria coragem para
um embate, principalmente na presença de outros, no entanto franzo meu
cenho e fico em minha cadeira, observando-o conversar compenetrado, o
semblante sério, como um homem de negócios em meio a uma reunião.
Não gosto da sensação estranha que tenho ao observar aquilo, como
se ele estivesse à espreita da presença daqueles homens e, quando os analiso
melhor, entendo o motivo: reconheço o senhor Clark, vice-presidente da
empresa de meu pai. Ele estava mais careca do que eu me lembrava e o short
com motivos havaianos certamente me dificultaram a reconhecer o senhor
sempre sisudo de terno que jantava muito de vez em quando em nossa casa.

Sem nem saber como tais pensamentos espreitam minha mente,


imagino como seria se meu pai tivesse anunciado meu noivado com ele.
Imediatamente tusso, quase me engasgando, e rio sozinha ao sequer
considerar essa possibilidade.
Passeio meus olhos pelas costas de Trevor, analisando
criteriosamente os músculos de seu trapézio e o comparo com o velho ao seu
lado, a barriga caindo sobre o elástico do short, o suor escorrido em meio aos
pelos do umbigo. Uiiii... estremeço só de pensar, mas, pelo que eu me
lembrava, Milner Clark era casado e talvez por isso, só por isso, meu pai não
tivesse tratado com ele um casamento, mas sim com Trevor.

O que, definitivamente, não responde minha pergunta de qualquer


maneira.

Contudo, aquele encontro entre eles, num cruzeiro, não me parece


uma coincidência tão inesperada do destino. Mesmo que eu não saiba o
motivo em si, Trevor parecia esperar por eles enquanto me sondava e agora,
ao vê-lo se virar para mim e piscar rapidamente antes de voltar ao assunto
que está tratando com os dois, tenho certeza que está confiante de ter
conseguido seja lá o que queria.
Eu calço meus chinelos e me levanto, decidida a ir ao SPA, afinal
com total certeza depois da noite tensa de ontem, meu corpo ansiava por uma
massagem. Penso em Lennox trazendo as fofocas do dia e sinto saudades de
suas mãos certeiras em todos os nós de meus músculos, quando ele ria de
mim e comprimia meus nervos em uma bela de uma massagem perfeita.

Meu melhor amigo sempre me relaxava com suas piadas depois que
eu e meu pai travávamos um embate por qualquer coisa. Só ele e Chloe
tinham o poder de me fazer sorrir com suas baboseiras e, pensar que não
foram ao meu casamento, somava mais um item ao absurdo que minha vida
se encontrava.

Quando eu passo em frente ao trio estranho, Trevor segura meu


braço e, sem cerimônia alguma, pergunta onde estou indo. Forço um sorriso
de volta ao perceber que não poderei fingir que não reconheço com quem ele
está conversando e me direciono ao senhor Clark, educada:

— Bom dia, senhor Clark! — alargo o sorriso, como minha mãe


sempre me orientava. — Mas que surpresa nos encontrar no meio do
Atlântico! — pouso uma mão em seu ombro, me virando para Trevor. — Não
é mesmo, amor? Não é uma coincidência encontrarmos seu chefe-direto em
nossa lua de mel?

Vejo que as retinas de Trevor escurecem com meu comentário, mas


ele mantém o semblante relaxado e não deixa seu sorriso esmorecer em
resposta. No entanto percebo que segura meus dedos com mais força quando
os retira do ombro de Clark, levando-os em direção aos seus lábios:

— Uma grata surpresa, minha linda. — beija minha mão e entrelaça


seus dedos aos meus. — Fomos inclusive convidados a nos sentar com eles
hoje à noite no jantar de gala com o capitão. — não o respondo porque
simplesmente não sei o que falar em resposta. O senhor Clark se vira para nós
dois, concordando com o quanto aquele encontro o surpreendeu e me deseja
parabéns outra vez pelo casamento, ainda que tenha me parabenizado no dia
do grande evento.
— Será um prazer tê-los conosco. — ele complementa, apontando
para o homem ao lado: — Esse é meu filho, Melvin... não sei se o conhece,
Ellie.
— Prazer. — respondo de maneira forçada, pois tudo ali está longe
de me proporcionar prazer, principalmente ele com aqueles trajes, porém não
deixo de notar que o vice-presidente de meu pai desce os olhos por meu
corpo, sem disfarçar que, de alguma maneira, ele parece confortável demais
comigo usando o maiô cavado.

Claramente, o prazer é todo dele.


Trevor parece notar os olhos de abutre que ele me lança, pois
imediatamente me puxa para um beijo rápido e casto, quase em meus lábios,
e não tenho como não pensar que finge ser respeitoso na frente daqueles dois.
Nem de longe o homem em nossa cama na noite anterior, mas sigo o roteiro
sorrindo candidamente de volta.

— Estava indo para onde? — pergunta outra vez e na mesma hora


um “não te interessa” vem em minha mente, mas me contenho até porque sei
que não teria coragem para tal, e aponto para as portas de vidro que nos
levam ao SPA ao lado da piscina.

Ele solta meus dedos e assim que saio em meu caminho ainda
escuto o velho dizer que Trevor era sortudo, não se faziam mais meninas
bonitas e obedientes como eu.

Em resposta, escuto Trevor apenas rindo.


— Pai?

O retorno do silêncio era comum há dias, porém eu ainda insistia


em chamá-lo quando chegava em casa depois da escola, talvez mais por
costume do que por qualquer outro motivo. Olho pela cozinha e, quando
chego à sala, estranho que minha irmã não esteja vendo seus desenhos
rotineiros.

— Maria?
Avanço pelo corredor e, assim que abro a porta do nosso quarto,
meus ombros caem sem forças. Eu não estava preparado para aquilo
novamente, mas antes mesmo que eu pensasse, já estava debruçado sobre a
cama, abraçando-a:

— Bee... por que está chorando? O que houve?


Ela funga e enfia seu rosto em meu moletom, abraçando meu peito,
seus cabelos embaraçando-se aos meus dedos enquanto eu tento confortá-la.
Alguns fios ficam presos em minhas mãos e eu engulo em seco, percebendo
que seus olhos se voltam para aquela cena, horrorizados:

— É isso que está acontecendo, Mi! Meus cabelos! Meus cabelos!


Meu peito dói e parece que um bolo gigante fica preso em minha
garganta, me dificultando a respirar... Já era para isso estar acontecendo...?
Já era para isso estar acontecendo?!

Ela segura com força seus cachos e eu seguro a respiração,


assistindo aos montes de fios que caem em sua cama, não alguns fios ou
umas mechas, mas muitos e muitos deles, tufos e mais tufos... Mesmo que eu
não queira, a lembrança de seus cachos nas marias-chiquinhas que Celeste
fazia nela quando crianças invade meus pensamentos e eu me recrimino por
tê-los puxado tantas vezes quando eu queria implicar com ela.

Outro dia a gente era criança, agora nem parecia que íamos fazer
quinze anos em poucos meses. Maria tinha adquirido uma maturidade que
não lhe cabia tão nova e eu queria ser o irmão que ela precisava, me
fingindo ser forte:

— Bee, você sabe que isso faz parte do seu tratamento... Acho que
quer dizer que está funcionando...

Maria levanta o rosto, os olhos vermelhos me fitando, as lágrimas


deslizando pela bochecha. Eu odiava vê-la assim. Eu odiava vê-la triste,
cansada. Ferida. E eu odiava não poder fazer mais nada além de abraçá-la,
quando tudo que eu queria era trocar de lugar com ela.

— Você vai ser sempre linda de qualquer jeito, Maria...


— Linda? Eu estou ficando careca, Mi! Careca! Eu queria sumir,
não existir! Mas pelo visto isso já acontece! Cadê papai? Ele não aguenta
nem olhar para mim! — ela choraminga, passando as costas da mão no nariz
e eu sorrio triste para ela.

Minha irmã parecia tão menor, tão frágil, tão mais nova que eu...
Nem parecíamos gêmeos... Desvio meus olhos pelo nosso quarto e vejo
minha cama bagunçada ao lado, algumas coisas espalhadas pelo chão,
livros, maquiagens, jogos de tabuleiro... Lembranças da família que éramos
antes.
Agora meu pai vivia enfurnado no trabalho fazendo hora extra para
pagar o tratamento de minha irmã, inventando mil promessas para a cura de
sua linda filha.

— Não é verdade, Maria. Você sabe disso. Sem contar que você
existe para mim. Mais do que qualquer outra pessoa no universo.

— Você é meu irmão, não vale. — agora suas mãos vão para seus
olhos e ela seca lágrima por lágrima, um esforço inútil já que elas não
param de brotar de seus olhos verdes... Verdes como cristais em um rio de
lágrimas. Tão translúcidos quanto os meus.

Respiro fundo:

— Deveria valer muito mais. Os irmãos costumam se odiar.

Ela sorri e eu descanso minha cabeça em seus travesseiros,


puxando-a para meu abraço novamente.
— E quem disse que eu não te odeio, Mi?

Coloco minhas mãos em meu peito e finjo estar ferido gravemente:

— Uau! Essa doeu! Golpe baixo, Bee.


Ela ri, entrelaçando seus dedos nos meus, e ficamos por um tempo
apenas fitando o teto. Eu percebo que sua respiração ameniza e fecho meus
olhos, pensando se um dia nossa família poderia voltar a ser feliz, quando
ela estivesse curada.

— Dizem que os gêmeos sentem o que o outro sente. — ela fala de


repente e eu abro meus olhos, virando meu rosto de lado. Maria continua
fitando o teto e brinca com meus dedos entre os seus, parecendo ansiosa. —
Seus cachos também vão cair, Mi? — ela implica e vira seu rosto no
travesseiro, me fitando. Noto em seus olhos que ela tenta brincar, muito
embora apenas queira chorar.
— Com certeza. — seco uma de suas lágrimas. — Com certeza,
vão. — suspiro. — Eu odeio te ver sempre chorando, Bee.

— Eu sei. — ela pisca algumas vezes antes de voltar a me abraçar.


— Eu te amo, Mi, você sabe. Eu não te odeio de verdade.

Fecho meus olhos e engulo o nó em minha garganta, dando um


beijo no topo de sua cabeça.
— Eu também te amo, Bee. — então aperto-a mais e mais ainda
entre meus braços. — E sim, os gêmeos são capazes de sentir o que o outro
irmão sente, então, por favor, Bee, por favor... seja feliz... eu não serei se
você não for...

Abro as pálpebras e miro o oceano, meus olhos ardendo com a


lembrança.
Imagino se Maria poderia sentir como me sinto agora, desejando
imensamente que não... não sobraram muitas coisas boas em mim que eu
quisesse compartilhar com su corazón... Ah, minha Bee, meu cariño... tenho
plena consciência que você não se orgulharia de mim... o Sol se põe no
horizonte, os tons avermelhados se misturando aos alaranjados e aquilo
compõe como me sinto... trevas... infierno... apoio meus cotovelos na
amurada do navio e enfio meus dedos em meus cabelos, fechando meus olhos
por um instante.

Ultimamente, os sueños e as memórias de conversas rotineiras com


mi hermana têm sido mais recorrentes e eu tenho me sentido mais sufocado.
Mais que o normal. Por que não consigo me lembrar dos seus sorrisos na
Colômbia? Por que não me lembro de seus verdes intensos quando sorria
para mim, mas apenas quando ficavam cristalinos por causa das lágrimas?
— Estou pronta.

Olho para trás e lá está Ellie, impecável, vestido longo em um tom


verde que acentua a pele levemente bronzeada pela manhã de sol, cabelos
presos em uma trança lateral, maquiagem elegante, saltos, brincos de
esmeralda... tudo como mandava o figurino e eu até poderia ficar
impressionado com sua beleza.

Poderia.
Mas não cheguei até aqui para que uma mulher com berço de ouro e
sobrenome Kane me desfocasse de meus objetivos. Obviamente ela ficaria
hermosa com tanta produção, quem não ficaria? Do nada, minha Bee aparece
em meus pensamentos e eu vislumbro seu sorriso ligeiro após meu pai
prender uma margarida atrás de sua orelha, entre seus cabelos cacheados, os
risquinhos verdes de seus olhos espremidos ao ouvi-lo chamá-la de “honey”,
como ele sempre fazia.
A beleza natural de seu sorriso sempre me surpreendia, mas agora
mais do que nunca, mais do que nunca! E talvez porque eu estou envolto em
tanta artificialidade que me prendo ao que era genuíno... sim, seus sorrisos
eram genuínos e os meus nunca mais foram depois que ela parou de sorrir.

Quando ela gargalhava, fazia sons de borbulha e eu sempre


implicava com aquilo, Maria era luz em mi vida!
Involuntariamente um sorriso também escapa por meus lábios e
Ellie presta atenção em mim, imagino que achando que minha reação seja
para sua presença estonteante. Fecho meus lábios na mesma hora e passo por
ela, ainda meio atordoado pelo relampejo do sorriso de Maria depois de tanto
me martirizar por sua falta. Abro a porta da suíte, ensaiando um
cavalheirismo que não gostaria e Ellie pega a bolsa, saindo pelo corredor sem
me agradecer.

Entramos em silêncio pelo elevador e eu disfarço o quanto seguro


com força a barra de aço atrás de mim. Ellie se posiciona um pouco mais à
frente, mexendo de um modo impaciente sua bolsa, e eu miro suas costas e o
decote largo que revela os ossos salientes de suas costelas... Imagino se por
acaso eu infiltrasse meus dedos por ali, poderia alcançar seus seios soltos, já
que parece mais que óbvio que ela não usa nenhum sutiã.

A ideia me agrada e eu entendo que por mais que seja difícil


suportar sua prepotência, o mesmo não acontecia com su cuerpo. Suas curvas
delicadas me instigavam, seus gemidos baixos ontem me levaram à loucura e
se eu pudesse enterrar meu pau nela, eu o faria sem nem pensar duas vezes.
Não era a primeira mulher que eu transaria para conseguir o que eu
queria, mas talvez fosse a última. Engulo em seco... talvez fosse a última...

Meu pau, que estava começando a ficar duro, se contrai dolorido e


em segundos o sinto brochar... rio sozinho sem acreditar na loucura dos meus
pensamentos... na verdade, eu mal sabia como conseguia mantê-los sãos...
Ellie se vira um pouco em minha direção, talvez curiosa com minha risada, e
eu levanto uma sobrancelha em resposta, incentivando-a a perguntar o que se
passava em minha mente.

No entanto ela arrebita o nariz outra vez e se vira para as portas


assim que elas se abrem.

Não, nem que eu conseguisse transar com ela, ela seria a última!
Nem fodendo que uma Kane seria a última mulher que eu comeria nesse
carajo de vida!

“Vai se foder, sua patricinha babaca e esnobe, la puta madre que te


pariu!”, penso e sigo em frente, focado no que eu vim fazer naquela mierda
de lua de mel: se não era foder com Ellie, certamente era com o vice-
presidente das empresas Kane.
05

O jantar segue em um papo morno sobre o cotidiano da empresa de


meu pai e não poderia ser mais chato. Na verdade, acho que nem se
conversássemos sobre tempestades em alto-mar eu conseguiria demonstrar o
mínimo de empolgação: a companhia era irritante e agora eu me lembrava do
motivo de me esgueirar para fora da mesa antes mesmo da sobremesa toda
vez que o senhor Clark ia jantar em nossa casa quando eu era mais nova.
Eram raras as vezes, mas agora memoráveis.

Ele era insuportável e não era só porque falava muito ou fora do


propósito, mas porque a cada seis palavras, cinco eram elogios a si mesmo e
uma era nos incentivando a concordar com ele.
Nunca vi um homem com ego maior em minha vida e eu era filha
de Desmond Kane.

No entanto, naquela noite em especial ele se gabava mais ainda e o


fato se dava pela promoção ao cargo de vice-presidente da empresa há
poucos meses, título que inseria a cada maldita frase que discorria em seu
monólogo entre as mastigadas do filé que jantávamos.
Trevor apenas sorria para ele, concordando entusiasticamente com
cada palavra e o filho do velho chato, que eu nem me lembrava do nome,
parecia tão louco para fugir daquela mesa quanto eu.

Só consigo pensar que a essa hora estaria com Chloe, Abby e


Lennox jantando em algum pub perto da faculdade, como sempre fazíamos
nas quintas à noite. Nossos papos sempre envolviam muitas bebidas, petiscos
diversos e infindáveis gargalhadas.

Mais uma vez me aborreço por não ter nem meu celular ao meu
lado para me distrair, queria saber como estavam, o que estavam fazendo, se
estavam bem ou se sentiam minha falta depois de quase dez dias longe, desde
a notícia de meu noivado.
Eu tinha ficado tão chocada que mal consegui sair de casa ou ir
estudar até o fatídico dia de meu casamento. Nada fiz além de pesquisar sobre
Trevor, mas não tive muitas respostas além das que eu já sabia, o prodígio
estrangeiro de 34 anos que havia conquistado meus pais o suficiente para que
eles o quisessem não só na sua empresa, mas em sua família.

Durante os poucos momentos em que eu estava sozinha na cabine


em nossa lua de mel, eu tinha fuçado suas malas e, mesmo ansiosa com seu
retorno, liguei seu laptop e tentei acessá-lo, mas me deparei com uma senha e
desliguei correndo com medo de ser pega em flagrante.
Nem remexendo suas coisas encontrei qualquer informação sobre
meu marido além das que eu tinha, elas não me diziam nada: algumas roupas
asseadas e dobradas em sua mala, que ele não guardou no closet; uma pasta
com algumas folhas que identifiquei como sendo planilhas e gráficos de
algum fármaco novo da empresa, informações de pesquisa de um laboratório
no Brasil... nada que me indicasse a provável senha que usava, nenhum fundo
falso na mala ou bolsinho escondido, nada... nada.

Nada.

Olho o celular em sua mão, ao lado do prato de porcelana, e Trevor


dedilha em cima da tela apagada enquanto ri de alguma idiotice do senhor
Clark e eu outra vez penso se ali eu poderia encontrar algo sobre ele que me
dissesse mais do que demonstra.

Meu marido não largou aquele aparelho um segundo sequer desde


que embarcamos e eu imaginava que ali seria a única fonte de muitos dos
esclarecimentos que eu merecia.

Eu só precisava pegá-lo.
Tenho vontade de me levantar dessa mesa e sufocar aquela boca de
rato com a carne em seu garfo até seus olhos esbugalharem, mas tudo que
faço é forçar o sorriso ouvindo o cagón do Milner Clark se gabar de uma
vaga que era para ser minha, se tudo tivesse corrido conforme meus planos.

Aquele tinha sido o primeiro percalço numa perfeita simetria de


realizações de tudo que eu havia planejado. Mas eu tinha me saído melhor do
que eu imaginava ao me casar com Ellie, ainda que ela tivesse sido uma saída
desesperada. No entanto, conforme eu previra ao modificar parte de meus
planos, eu voltaria para meu objetivo com mais fuerza e aliados, mas tudo
dependia de como seriam nossas próximas horas.

Sorrio para minha esposa ao escutá-la bufar baixo e observo seu


perfil enquanto Clark nos dá um tempo de seu discurso impregnado de
egocentrismo ao analisar a carta de vinos com o filho. Ela parece de saco-
cheio de tudo e simplesmente não entendo como aceita esse casamento sem
espernear ou ter algum dos acessos que uma mulher mimada de sua estirpe
certamente teria.

Tan cobarde como eu supunha!


Ela parece engolir tudo, ainda que não digira com tanta facilidade.

Essa obediência toda para não perder a bilionária herança do papai?


Casar-se com um hombre desconocido valeria cada minuto dentro de um
matrimônio por conveniência, contrato? Sim, isso eu esperava dela e não foi
por menos que engendrei nosso casamento.

Tan domesticable e previsible cuanto tu madre.


Noto que alguns casais se levantam para dançar e me sinto aliviado
por ter chegado, finalmente, o momento. Sem pedir permissão ou convidá-la,
pego a mão de Ellie e a iço da mesa, trazendo-a para mi cuerpo. Ela arregala
os olhos, mas não tem tempo de retrucar, levo-a com meus passos para o
meio do salão no exato instante em que a loira chega à mesa e convida Milner
para uma dança... Exatamente como combinamos.

Não deixo de sorrir ao vislumbrar seu sorriso orgulhoso ao ser


surpreendido por uma bela mulher, talvez metade de sua idade, com um
vestido que lambia su cuerpo, tão rojo quanto sua própria língua depois de
saborear um vino, e acompanho os dois seguindo para o outro lado da mesa,
perto da orquestra.

Não era difícil concluir, ao vê-lo passear suas mãos pelas curvas da
mulher, que tudo sairia conforme planejei.
— Você realmente estava gostando daquele papo furado ou seus
risos também faziam parte de alguma negociação?
Olho para Ellie, que me tira dos devaneios, e reparo que seus olhos,
naquele tom quase cinza, estão centrados nos meus. Cinzas... intensamente
gris...

— Como você disse, ele é meu chefe. — baixo o tom de voz. — Se


digo tudo que penso sobre aquele monte de mierda, sou mandado embora
num piscar de olhos.
Ellie segura o sorriso com as pontas dos dentes nos lábios e eu pisco
para ela, guiando sua cintura com minha mão.

— Você sabe que sou filha do chefe de seu chefe, não sabe...? —
ela responde com uma pergunta irônica, num sussurro. — Por que confia que
eu não vá dizer o que acabou de me falar para o senhor Clark?

— Porque você pensa el mismo. — eu a giro uma vez e ela enlaça


suas mãos em minhas costas, me analisando sem disfarçar.
— E você quer realmente que eu acredite que se trata de uma
coincidência estarmos no mesmo navio?

— E por que não seria? — rebato, embalando seus passos.

— Nosso casamento não se trata de negócios? — ela afasta seu


corpo alguns centímetros. — Por que nossa lua de mel não seria?
Miro Ellie sem acreditar em sua perspicácia, mas apenas desço
minha mão por sua cintura, alisando a pele exposta no decote de suas costas.
Sinto que ela estremece ligeiramente e acredito que ela vá me empurrar ou
algo do tipo, mas ela nada faz além de mirar minha boca.

Aquilo nem de longe estava em meu roteiro, então desço mais um


pouco minhas mãos e as espalmo em sua bunda, tendo quase que
imediatamente a reação que queria.
Ellie recua os passos, tirando minhas mãos de suas nádegas e me
encara indignada:

— Porco. — ela não grita ou sequer chama atenção para si, falando
num tom de voz tão baixo que apenas eu ouço o quanto se sente indignada
com minha ousadia.
Eu contava com isso, estávamos em público e eu imaginava que não
iria dar nenhum show, embora se revoltasse comigo. Girando e batendo seus
saltos com força no piso de madeira, ela se afasta de mim em direção ao
elevador e eu não demoro mais nenhum segundo, seguindo seus passos com
meus olhos, desvio-os em direção ao cabrón do Clark e peço ao garçom uma
dose de Bourbon ao ver o velho sair de maneira sorrateira do salão com a
loira em seu encalço.

Engulo minha bebida com calma, contando até cem duas vezes
antes de devolver o copo ao balcão do bar. Então vou a caminho da cabine da
loira, onde estive dias atrás, e dou dois toquinhos ligeiros na porta, mirando o
corredor de soslaio. Segundos depois, uma fresta da porta é aberta e
vislumbro rapidamente su cuerpo seminu quando ela estica os dedos para
mim, me entregando, sorrateiramente, cartão de acesso daquele ratón
imundo.

— Já estou indo, lindão! — ela berra em direção ao banheiro,


fechando a porta silenciosamente, e eu ainda a escuto dizer para pingar
algumas fragrâncias na banheira enquanto ela se prepara. Subo as escadas,
pegando meu celular e transfiro metade do valor que combinamos, olhando
ao mesmo tempo o número da cabine de Milner Clark no cartão de acesso.
Agora só precisava que ela fizesse o restante para que eu
transferisse o valor que combinamos.
Abro o laptop de Clark sem me preocupar com a senha, que eu já
tinha há semanas, o que me faltava era o acesso ao computador.
Estalo meus dedos e olho outra vez a cabine bagunçada, o cheiro de
charuto queima minhas retinas, tudo ali dentro tem cheiro do maldito
cigarrillo e aquilo é muito mais repugnante que o cheiro característico em
seus ternos quando eu me reunia com ele nas Empresas Kane.

Ali parece mais concentrado e não sei como aquela garota


conseguia se deixar ser comida por ele em troca de uma grana... não qualquer
grana, claro, eu ofereci o suficiente para calar seu bico e abrir suas pernas,
mas mesmo assim... engulo uma saliva ácida ao pensar que não era muito
diferente do que fui capaz de fazer para chegar aqui...

A foto de uma família sorridente aparece na tela e eu reviro os


olhos, analisando os traços da senhora Clark antes de digitar a senha,
compreendendo que o hijo dos dois parecia com ela. Clico no e-mail e passo
meus olhos pelos assuntos da caixa de entrada até encontrar o que quero
enquanto enfio o pendrive na entrada lateral do laptop. Baixo alguns
documentos, transferindo-os para o arquivamento e abro uma nova
mensagem, digitando as palavras que decorei há dias, anexando os arquivos
necessários.
Aperto o mouse em cima de enviar logo após digitar os nomes dos
destinatários com um sorriso amplo no rosto, e me levanto na mesma hora,
sentindo a adrenalina correr por minhas veias, ansioso... satisfecho.
Debruço sobre a mesa, desligo o laptop e saio da cabine.

Agora era só deslizar o cartão de volta por baixo da porta da suíte


da loira e descer para o bar outra vez, talvez eu pedisse mais uma bebida,
brindando a minha vitória, eu precisava de una comemoración!
06

Não estranho o silêncio ao chegarmos em casa. Não esperava que


meu pai estivesse à minha espera ou minha mãe preparasse alguma festa de
boas-vindas à filha casada e ao genro, ainda que eles mesmos tivessem
arquitetado aquele circo que era meu casamento.
Obviamente, meu pai estava nas Empresas Kane e minha mãe em
algum chá ou compras, o que de certo modo me causava alívio ao voltarmos
daquela lua de mel sem sentido. Depois do atrevimento de Trevor ao passar
suas mãos em mim durante a dança do jantar de gala, não direcionei mais
nenhuma palavra ao meu marido, procurando formas de me distrair sozinha
no cruzeiro, o que tampouco pareceu fazer diferença para ele, que também se
ocupava sempre sem mim.
Uma semana de martírio para, finalmente, voltarmos para terra
firme.

Deixo a pequena mala de mão em cima da mesinha ao lado da porta


e não dou bola para Trevor quando me fala que vai direto para a empresa; tiro
minha echarpe e solto meus cabelos ao mesmo tempo em que me livro dos
saltos. Ele me olha uma única vez e se vira em direção aos degraus da
entrada, chamando o motorista.

Eu me jogo no sofá e fecho meus olhos, tenho vontade de chorar e


não sei nem por onde começar a enumerar todos os motivos. Valeria a pena?
Realmente valeria a pena estar passando pelo que estou passando? Isso fazia
algum sentido?

Escuto passos na sala e abro meus olhos, encontrando uma das


empregadas tirando o pó da estante. Não sei quanto tempo fiquei de olhos
fechados em meio aos meus pensamentos, então desejo bom dia e ela me
responde educadamente, suspiro baixinho, pego meus sapatos no tapete e me
levanto, saindo dali, talvez eu precisasse de uma boa ducha ou... paro em
frente à porta do escritório de meu pai, escutando uma movimentação ali
dentro, e estranho, já que ele só permitia limpezas no cômodo quando ele
estivesse em casa.

Abro a porta e me assusto ao constatar que Trevor está parado em


pé ao lado da imponente mesa de meu pai. Ele descansa uma mão sobre uma
pasta, me olhando de volta e, por mais que eu queira suspeitar de sua
presença, ele não deixa transparecer muita coisa no olhar.
Entro no escritório:

— O que está fazendo ainda aqui? Não ia para a empresa? Não te vi


voltar.
— Esqueci uns papeis. — ele pega a pasta e a coloca debaixo do
braço. — Você estava cochilando no sofá, não quis incomodar, preciosa.

— Eu não cochilei, estava apenas pensando. — ignoro sua fala e o


modo irônico que sempre me chamava de preciosa e ando até a mesa,
ajeitando minha saia. Apoio minhas mãos na cadeira de Desmond e olho as
folhas espalhadas sobre a mesa, um porta lápis com algumas canetas, o laptop
fechado e um pequeno abajur desligado.

— Cochilando ou não, não quis incomodar dizendo que voltei pra


pegar uma pasta. Ou preciso dar conta de meus passos para minha esposa? —
ele completa, parecendo levemente irritado e não gosto daquilo.

Calço meus sapatos, desviando meu rosto de seu olhar intimidador.

— Não precisa me avisar de nada, tenha certeza que pouco me


importa o que faz com o seu tempo — respondo sem freios e não entendo
como consigo dizer coisas para ele que normalmente me incomodo apenas
em pensar. Eu não costumava falar assim, agir em reação, sem pensar muito
antes... Mas Trevor tinha um poder estranho de me levar ao limite.
Ele dá a volta na mesa, me alcançando, e eu fico estática no mesmo
lugar. Seu olhar desvia de mim e para no porta-retratos em cima da mesa...
Desmond, Sophia e eu ainda criança, em frente à Torre Eiffel... Eu odiava
aquela foto. Ela nunca quis dizer nada para meu pai além de uma imagem de
“pai amoroso” para seus clientes, investidores ou sócios. Imagem. Apenas
aquilo e nada mais.

Ela deveria estar no lixo há muito tempo.

Uma viagem que ele dizia para os que lhe interessavam que foi um
tempo que tirou para a família, mas que ele deixava de lado o fato de eu ter
ficado no hotel o tempo todo com as babás enquanto ele e minha mãe iam à
jantares de negócio ou celebravam em festas... tudo sem mim... ali eu vi o
quanto eu importava para meus pais: fotos ostentando uma família feliz,
imagem.

Trevor se demora analisando-a e eu não consigo não perceber uma


sombra de emoções em seus olhos antes de ele se voltar para mim. Eu tinha
imaginado aquilo...? Ele inspira profundamente e eu não aguento mais ser
engolida por toda a estranheza daquele momento. Ele que voltasse para a
empresa ou pegasse o que quisesse naquele escritório, não tinha porque eu
ficar por ali nem mais um minuto!
Sem nenhuma educação, passo entre Trevor e a mesa, quase o
empurrando com meu ombro, no entanto ele segura meu braço e trava meus
passos:

— Ellie...? — Trevor toca com delicadeza meu queixo. Eu o fito,


sem saber o que dizer. — Não precisamos ser inimigos. Esse casamento não
precisa ser um martírio.

Ele percebe a raiva em meus olhos e me solta. Eu sugo o ar e expiro


calmamente:
— Mas já é desde que eu disse sim para você, Trevor Willians. —
rebato, seca.

— Tudo bem... — ele responde parecendo resignado e tenta


disfarçar algum sentimento. Vejo seu pomo de Adão subir e descer enquanto
engole suas possíveis perguntas. — Estou indo para a empresa. Volto antes
das sete.

— Como disse, não me importo com seu cronograma.


Trevor estanca os passos antes de chegar à porta e se vira,
ostentando um sorriso cínico para mim:

— Você acabou de desperdiçar uma chance, Ellie. Depois não diga


que não tentei ser bom com você. — me lançando uma piscadela, ele se vira e
some pela porta e eu fico paralisada no lugar, entendendo que desta vez
aquilo era um aviso.
Ou uma ameaça.
Eu tentei, eu juro que tentei.

Talvez não com o esforço que deveria, até porque eu não conseguia
ter tanta empatia assim por Ellie. Ainda assim, dei uma chance a ela de
mostrar que não é como o resto da família, mas pelo visto era difícil negar
seu DNA.

Olhar para aquela foto... Ellie deveria ter no máximo uns seis ou
sete anos e eu, na mesma época, meus quinze. Eu vivia o luto pela morte de
mi cariño e a família feliz de Desmond viajava para compras em Paris. Eu me
lembro dessa cena como se fosse ontem, meu pai nos contando que tinha que
ir para o trabalho porque su jefe havia ligado pessoalmente da França pedindo
que ele enviasse um e-mail importantíssimo... e aquilo tinha que ser feito
naquele dia... ainda que fosse o funeral de Maria.
Lembro que uma vizinha que cuidava da gente quando meu pai
trabalhava, Celeste, ficou horrorizada, mas meu pai tinha dito que ele havia
se solidarizado com a situação e avisado que pagaria os gastos do funeral
depois. Meu pai só voltou de madrugada e bêbado. Eu e Celeste ficamos o
dia todo em casa velando mi hermana e, quando chegou a hora do enterro, eu
quem tive que consolar meu próprio choro de criança.

A família feliz de Desmond viajava enquanto a minha se partia.


Naquela noite, eu tive raiva de meu pai e mais ainda da empresa que ele
trabalhava, do homem que o obrigou a estar longe de nós dois na despedida
de Bee. Eu cuspi no emblema do jaleco de meu pai, esquecido em cima da
cadeira, e soquei sua maleta até ela se abrir e as canetas e papeis de meu pai
se espalharem pelo chão.
No entanto seus passos trôpegos naquela madrugada nem
perceberam o tamanho da minha raiva.

Mas a verdade era que mal eu sabia a minha.

Até descobrir tudo.


Até descobrir tudo.

Volto da empresa com a raiva me entalando a garganta.


Milner Clark estendeu seus dias de descanso e parece que o que fiz
ainda não surtiu resultados; Desmond passou a tarde jogando golfe com
alguns investidores e eu não saí de minha sala, resolvendo algumas questões
em infindáveis reuniões com alguns acionistas e seus assessores.
O carajo de uma dor de cabeça parecia queimar minhas retinas,
irradiando pela nuca até me incomodar os ombros, entro por aquela maldita
casa espremendo meus olhos com a claridade de todas as possíveis fontes de
luz acesas e subo a escadaria central de dois em dois degraus, louco para me
jogar na cama no escuro.

Sophia passa por mim quando alcanço o segundo andar, me chama


e eu bato a porta do quarto sem nem olhar em sua direção, mesmo sabendo
que vou ouvir suas reclamações no dia seguinte, no entanto me surpreendo
com Ellie agachada ao lado de minhas malas, suas mãos dentro de uma das
aberturas laterais.
— Que mierda é essa? — eu berro e ela dá um pulo, quase caindo
sentada no chão. Vou em direção à mala e a pego pelas alças com força,
jogando-a do outro lado do quarto, a raiva atingindo novos níveis dentro de
mim. — O que pensa que está fazendo? — eu avanço na direção de Ellie e
ela recua dois passos, assustada:

— Eu... eu... eu estava vendo o que... o que eu poderia saber sobre


voc...

— Usted já sabe o que deve saber sobre mi, su perra! Eu sou tu


esposo e isso basta, carajo! — vocifero, sentindo minha cabeça explodir, as
palavras se confundindo mais que o habitual em minha mente, não consigo as
traduzir quando estou com muita raiva. — Nunca mais toque nas minhas
coisas sem mi permiso!
— Trevor, eu...

— Eu não quero ouvir carajo nenhum! — empurro-a contra a


parede e ela arregala os olhos, apavorada. — Chega da mierda de sua voz
irritante, chega de suas respostas atrevidas! Usted vai ser para mim o que
sempre foi para essa família! — espalmo minha mão em sua garganta, mas
não a forço, apenas a mantenho no mesmo lugar, paralisada. Encaro-a nos
olhos, obrigando a não duvidar de mim: — Vai baixar a cabeça e me
respeitar, está entendendo, su perra?

Solto-a e ela leva suas mãos imediatamente para o pescoço, eu me


afasto e nego com a cabeça, minha voz soa irritada e eu esfrego meus cabelos
com força:

— Sem drama, Ellie, eu mal te encostei, carajo!

Ela não fala nada em resposta, apenas fricciona a pele, baixando os


olhos em direção aos pés descalços.

— Você é uma mierda de uma mimada mesmo... — resmungo. —


Não sabe o que é dor, não sabe o que é sofrimento! — eu me viro e saio
imediatamente daquele quarto, me sentindo sufocado dentro daquelas
paredes.
Desço as escadas com passos incertos, meus sapatos escorregam e
eu me seguro no corrimão, estancando no último degrau. A governanta para
no meio da sala segurando uma bandeja e vejo que ela pensa em me
perguntar se estou bem, quase cai do nada, carajo, é claro que não estou bem,
mas apenas passo por ela diretamente e me lanço dentro do escritório de
Desmond, sabendo que meu querido sogro não chegaria antes das dez
naquela noite.

Bato a porta e olho à minha volta, não sei o que procuro, não sei ao
certo o que quero, estantes cheias de livros, prateleiras com troféus e quadros
ostentando os prêmios das Empresas Kane me engolem de volta, empurro
com força um monte de pastas empilhadas em cima da mesa redonda de
reuniões e elas tombam no chão, espalhadas, pego um peso de papel de cristal
de cima da escrivaninha e levanto meu braço, me detendo no último segundo
antes de lançá-lo contra a parede.

Não, não, não, carajo, não!


Eu não posso sair de mim assim, não posso, mierda!

Jogo o peso no sofá de canto e arranco minha gravata, indo em


direção ao buffet, entorno a garrafa de um uísque em um copo, enchendo-o
até a boca e na hora em que o sabor alcança meus lábios, a porta é aberta e
Ellie entra em meu encalço.

Ela parece nervosa e ansiosa, o robe de seda tem a faixa aberta e


revela a camisola preta por debaixo, seus lábios tremem tanto quanto suas
mãos quando ela levanta um dedo para mim, em um ato ousado que imagino
que tenha juntado toda coragem em seu sangue depois do show que dei lá em
cima em seu quarto:
— Nu-nunca... — ela balbucia. — Nunca... mais... encoste em
mim...

Gargalho alto, terminando de estourar meu cérebro e ela se cala na


mesma hora.

Pego em seu punho e a puxo para mim, seu pequeno corpo bate
contra o meu e ela tenta se soltar, forço mais ainda os meus dedos em sua
pele, deixando o copo de uísque quase intocado sobre o buffet. Se ela pensou
que aquilo era dor ao segurar seu pescoço, agora eu mostrava o que não fiz
em sua garganta, cravando minhas unhas em sua pele.
— Eu toco onde quiser, Ellie! Você é mi esposa!

— Não! — ela rebate, quase engolindo sua saliva e ofega, temerosa,


quando desço meus olhos sobre os seus, pegando sua cintura com a outra
mão.

— Não o que, Ellie? — deslizo meus dedos pelo robe aberto e os


infiltro no decote às costas. — Não é minha esposa ou não posso te tocar?
Porque, pelo sei, houve um casamento. — aperto sua bunda e sussurro em
seu ouvido. — E, pelo que vimos, você goza até quando não te toco,
preciosa.
Ellie tenta me empurrar, mas eu travo seus gestos, segurando-a
firme. Sua respiração está descompensada e seus olhos gélidos tornam-se os
azuis mais cinzas que já vi em toda minha vida, ela é deslumbrante com raiva
e gosto daquilo mais do que deveria, gosto de impelir o ódio dentro dela,
como um desafio a mais para ferver meu sangue.

Para me distrair do que normalmente ferve meu sangue... mi


venganza...

— Me solta, Trevor! — ela sibila e eu a faço recuar alguns passos,


batendo sua bunda no buffet, as garrafas se chocam umas com as outras e
meu copo despenca, espatifando ao nosso lado, sinto muitos pingos
molharem minha calça, mas não desvio os olhos do rosto de Ellie.
Seus traços nem sempre são delicados, agora mesmo percebo que
seu rosto tem a forma de um diamante, as maçãs do rosto se destacam rosadas
e os lábios são grossos, carnudos, perfectos. O nariz parece que foi desenhado
para viver empinado, o que só acentua mais ainda quando ela o revira para
mim.

Inspiro pausadamente, com o único objetivo de não a esmagar entre


meu corpo e o buffet enquanto sinto meu pau crescendo vertiginosamente.

— Eu cumpro todas minhas promessas, Ellie! — seguro seu queixo


e, bem diferente do que fiz horas atrás ali mesmo no escritório, desta vez não
sou delicado. — Você não vai me enfrentar.

Deslizo meus dedos por seu pescoço e seguro sua nuca entre os fios
de seus cabelos soltos, trazendo sua boca para a minha. Eu a beijo
furiosamente, meus dentes roçam em seus lábios e a arranham, ela se debate
enquanto levo o braço que ainda seguro em direção ao volume de minha
calça, espalmando seus dedos em cima de meu pau:
— Olha como você me deixa, Ellie, olha como a porra de su cuerpo
me deixa! — encaro-a nos olhos. — Toda vez que você me deixa puto, eu
fico duro e quero enterrar meu pau em sua boca como castigo, Ellie, até você
engasgar com meu gozo! — ela engole em seco, soltando seus dedos da
minha calça. — É isso que você quer que eu faça, Ellie? É isso que você
pretende, me desafiando assim?

Eu a viro de costas repentinamente, as garrafas da bandeja de prata


caem no chão, estilhaçando-se, mas não me importo se custam milhares de
dólares ou que sejam inestimáveis, estou com raiva e tesão e nada vai me
distrair da bunda gostosa de Ellie que forçosamente empino para mim.

— Você quer chupar meu pau? Quer sentir meu gosto? — pergunto,
levantando sua camisola e exalando excitação ao ver a pequena calcinha roja
que ela usa enfiada no rabo. Debruço sobre ela, alcançando seu ouvido: —
Porque eu quero sentir o seu gosto e prometi que lamberia seu próximo gozo.
Ellie ofega em resposta e, mesmo que não me diga nada, quando
enfio meu dedo por debaixo da calcinha, ela arqueia as costas, espalmando a
mão na parede atrás do buffet. Aquilo claramente era um sim, um sim que
arranhava o papel de parede com unhas esmaltadas de azul turquesa enquanto
eu ensaiava masturbá-la.

— Você quer que eu sinta seu gosto, preciosa? — deslizo meu dedo
por sua buceta e ela arfa, levantando o rosto e olhando em volta, como se
tivesse em dúvidas se aquilo era uma opção razoável.

Consigo ver em sua testa como ela está confusa, como passou da
raiva por mim ao tesão em poucos segundos. Vejo que mira a mesa de
Desmond e fecha os olhos imediatamente, um pequeno e fugaz sorriso
perpassa seus lábios antes de ela mordê-los.
Murmuro um palavrão, intrigado com aquilo:

— Carajo... Quer que minha língua te coma no escritório de tu


papá, Ellie?

Não deixo que ela me responda: pego-a no colo em um impulso e


recuo três passos, sentando-a na mesa de Desmond, empurro com um braço
os papéis sobre uma pasta aberta e Ellie não emite reação alguma vendo a
bagunça que faço para liberar espaço para o que pretendo fazer.
Quando meus olhos encontram os seus, ela nem pisca.

Seguro suas coxas e a puxo para mim, sua bunda escorrega na


madeira e minha boca alcança a sua no exato momento em que enlaço suas
pernas em minha cintura, puxando seus cabelos e lambendo seu maxilar.
Volto para seus lábios e me assusto ao perceber que ela corresponde ao beijo,
mas no mesmo segundo empurra meu rosto para o lado e se joga para trás,
deitando su cuerpo à mesa ainda com as pernas entrelaçadas a mim.

Que mierda era aquela...?


Meu pau não me deixa pensar muito, a adrenalina sobe pelo meu
peito e fico sério, apoiando as mãos em volta de seu quadril. Eu me debruço
um pouco sobre ela, notando que fecha os olhos e morde seus lábios, quase
os engolindo... Ellie parece completamente em dúvidas em meio aos seus
desejos e aquilo me impele muito mais a querer arrancar dela tudo que
mereço dos Kane!

Pego seus tornozelos, desenlaçando-os de mim e elevo suas pernas


no ar, segurando seus pés cruzados... aquela cena me alucina, a bunda lisinha,
as coxas delicadas, as pernas esticadas, a calcinha vermelha se destacando na
pele clara, carajo, carajo, passo a mão pelo meio das pernas dela, sentindo a
umidade no tecido fino e com o polegar pressiono o clitóris, fazendo
movimentos circulares antes de penetrá-la.

Ela está tensa, suas pernas duras elevadas, mas sinto estremecerem
em minha mão, que ainda a segura pelos tornozelos, meus olhos a devoram,
empurro a calcinha para o lado e meu dedo agilmente começa o lento
movimento de entrar e sair, meu pau lateja implorando para rasgar minha
calça e fodê-la com força, mas respiro fundo, inalando seu cheiro ao descer
meus lábios sobre sua buceta: hoje eu iria amansá-la.

Si... si... Era só isso, eu iria domá-la... fazê-la ver que eu a


dominaria em todos os sentidos... suas ações teriam consequências... boas ou
ruins... eu seria dono de todos os desejos de Ellie Kane... até os seus mais
sombrios... até eu dizer fim.

— Meu Deus! — ela suspira forte, os olhos cerrados, e sim, eu me


sinto bem poderoso em fazê-la se dobrar assim a mim, toco o clitóris com a
ponta da língua, ela enverga as costas e tenta abrir as pernas, mas eu as
mantenho fechadas, ainda as segurando firme, chupo sua buceta e inalo
aquele cheiro inebriante.
Eu a chupo avidamente e Ellie solta seus braços da cintura,
derrubando o pequeno abajur, xingando baixo em seguida. Eu enfio minha
língua, sugando com mais vontade, lambendo, penetrando-a e ela geme
descaradamente... não entendo algumas de suas palavras entrecortadas, aliso
meu pau por cima da calça e mordisco sua virilha, lambendo sua calcinha
embolada e subindo minha língua por suas coxas, sentindo a tensão de seus
músculos.

Sorrio em sua buceta, convencido.


Eu sabia como mexer com os deseos de una mujer... não cheguei
até aqui sem usar de minha aparência ou... dotes...

Repentinamente, abro suas pernas e sorvo sua buceta, Ellie dá um


gritinho assustada, e eu a como com minha língua, enfiando-a com força, que
desliza com sua lubrificação, elevo o braço até um de seus seios e o revelo,
puxando o decote da camisola.

Ellie levanta o rosto para mim por um segundo, mas tomba a cabeça
de volta mirando o teto e arfando alto conforme o envolvo, pressionando o
mamilo arrebitado. Suas coxas me apertam e ela se revira sobre a mesa,
derrubando tudo que Desmond deixava por ali, canetas, porta-retratos, laptop,
seus óculos...
— Puta que pariu! — Ellie agarra suas próprias pernas e vejo que
finca suas unhas nelas, beijo de maneira pornográfica sua buceta, cuspindo e
esfregando minha língua com força em seu clitóris e ela urra baixo, tentando
se conter.

Sinto que goza em meus lábios e aquilo me alucina, quero fincar


meu pau em sua buceta e escutá-la gritar em resposta, ela geme e arfa sem
parar, levanto meus olhos e miro suas mãos passando por seus seios,
apertando-os, descendo sensualmente por su cuerpo, ela lambe seus lábios e
seus olhos oscilam enquanto deixa os braços penderem aos poucos na mesa,
derrubando mais alguns itens da escrivaninha.

Eu me afasto de suas pernas e vejo que ela imediatamente me


procura, os olhos assustados para mim. Meu pau lateja e pulsa cada vez mais
forte, não, aquilo não tinha acabado ainda, eu puxo seu braço, içando-a, e a
pego no colo, segurando-a pela bunda. Ellie grita assustada e eu a giro,
chocando suas costas contra a estante, alguns livros despencam, um troféu cai
de lado e eu arremato sua boca, lambendo seus lábios:

— Esse é o seu gosto, Ellie. — eu a beijo mais uma vez, ela parece
aturdida, tentando me retribuir, mas sei que imponho mais força que deseja,
estou inflamado de tesão, tão ensandecido que sinto que posso perder minhas
razões. — Como prometido, na minha boca. — eu esfrego o volume de
minha calça na sua buceta molhada pelo seu gozo e por minha saliva e sinto
que instintivamente ela aperta suas coxas em minha cintura. — Esse é meu
pau, Ellie. — eu me esfrego com mais vontade, a estante treme, o troféu rola
e cai no tapete. — Você quer que eu faça alguma promessa para ele también?
07

— Como assim você não vai me contar detalhe nenhum sobre esse
casamento, Ellie?

Deslizo minha cadeira para trás e miro Lennox com o copo de café
parado na altura dos lábios. Eu tinha chegado cedo à faculdade, antes mesmo
de Chloe, que sempre madrugava na sala de aula, ou de Abby, que nunca
deixava de aparecer como se fosse turista e não uma das alunas... Eu tentava,
em vão, me focar no nosso trabalho, nada fluía, principalmente porque a cena
da noite anterior não me saia da cabeça.

Como pude me deixar dominar daquela forma? Como fui da raiva


ao tesão em segundos?

Lennox tinha chegado poucos minutos depois de mim, com seu


pulôver de poá e boina francesa, e me agarrou logo que me viu, querendo
saber detalhes de minha lua de mel. Eu insistia que mal conhecia meu marido
e ele insistia dizendo que aquilo não era possível, que passamos uma semana
em um cruzeiro, não só daria para eu conhecer Trevor de cabo a rabo, como
daria para meu marido conhecer meu rabo também. Sim, ele disse isso com
essas palavras, exatamente essas. Desbocado e safado que só ele.

— Não tenho o que contar! — respondo num muxoxo. — São só


negócios, Lennox, nada mais.

— Cruzes, parece que estou acompanhando um romance de época.


— ele assopra seu café. — Hoje em dia alguém ainda casa por contrato? É
alguma coisa que bilionários têm que fazer? — ele bebe um gole e estala a
língua, chiando que a bebida ainda está quente. — Porque Deus me livre de
casar e não poder foder meu marido a noite toda!

Tiro meus saltos e cruzo as pernas sobre a cadeira, massageando


meus pés e olhando o laboratório de computadores ainda vazio. Lennox me
olha de rabo de olho e eu desvio o rosto, mirando a tela do computador, nosso
trabalho pela metade.
— Você não me parece muito insatisfeita sexualmente. — ele me
disseca por mais um tempo e repentinamente assovia e arregala os olhos, me
chamando atenção para a boca em O que se precipita por seus lábios. —
Minha adorada deusa do Egito, Ellie... você deu para seu marido???

— Não! — respondo, mas acho que rápido demais. Lennox larga o


copo ao lado de seu teclado e desliza as rodinhas de sua cadeira, usando a
bancada do computador como alavanca para se impulsionar até mim.
— Não o quê? Não deu ou não está insatisfeita sexualmente?

— Não dei, Lennox! Não dei! — empurro sua cadeira para trás, mas
a minha desliza em conjunto. — Qual parte você não entendeu que nem
conheço ele?
— Ah, tá. E isso impede alguém... — ele rola os olhos. — Eu
mesmo tenho um encontro hoje à noite e nunca vi o cara, só as fotos da rola
dele.

Rio baixo e ele trava minhas mãos, me puxando para perto de si, as
rodinhas guincham estridentes ao rolarem pelo piso, mas o som é abafado
pela gargalhada de meu amigo:

— Eu vi as fotos de seu marido nos sites, Ellie! Eu teria dado na


primeira fuzilada de olhos que ele me desse. Sou louca num moreno,
simplesmente loucaaaa num moreno com cara de mau!
Tenho que respirar fundo para não entrar na onda de meu amigo;
quando se tratava de homens de terno, ele saia de si e, por mais que eu tivesse
alguns momentos com Trevor que poderia compartilhar com Lennox,
saciando sua sede por safadezas, nem eu mesma conseguia digerir aquilo. Por
isso mesmo queria me manter calada, ou pelo menos na defensiva:

— Como eu te disse, Lennox, são só negócios. Tenho uma imagem


para zelar. — dou um tapinha em seu ombro, fazendo uma careta. — Coisas
de bilionários... — zombo e ele cruza os braços, me fitando. Estico minhas
pernas e devolvo meus pés para o chão, retornando minha cadeira para frente
de meu computador, sentindo os olhos verdes de Lennox sobre mim ainda. —
O que foi? — pergunto, sem olhar para ele.

— E você está bem com tudo isso? Quer dizer, Ellie... você mal nos
contou o que está acontecendo, de uma semana para outra anunciou seu
casamento, disse que não nos convidaria porque eram só negócios... que
negócios incluem não só uma lua de mel, mas o maior comprometimento de
sua vida?

Apesar de sua voz estar branda, eu sinto a tensão em cada uma das
pausas nas palavras de meu amigo. Suspiro, meneando a cabeça um tantinho
só para ele e concluo, sem deixar que lhe restem dúvidas:
— Não, Lennox, você está errado. Um casamento não é o maior
comprometimento de minha vida. Essa faculdade é, ser enfermeira é. Você e
Chloe são.

— Eu pesquisei sobre ele durante a semana. — Chloe tamborila a


caneta em cima do caderno em seu colo, apontando para o computador ligado
à nossa frente. Ela tinha chegado minutos depois, quando outros alunos foram
ocupando outras cadeiras, à espera da aula começar e nem me esperou dar
notícias sobre mim, sentando-se ao meu lado. — Mas não achei muita coisa,
só o básico, Trevor Willians, sem qualquer rede social. Na verdade, há pouco
dele na internet. Apenas seu nome ligado à empresa de seu pai, Ellie. —
mexe negativamente a cabeça e ainda parece apreensiva. — Acredito que ele
seja bem rico, vi que é formado em Administração pela Harvard e Farmácia
pela Yale. Além de inteligente, obviamente.
— E bonito. — Lennox complementa e nós duas o encaramos. —
Mas isso vocês sabem, é claro.

Desvio meu rosto para Chloe e ela revira os olhos, pegando minha
mão:

— Desculpe, amiga, não consegui mais nada além do que você


sabe.
— Tudo bem, Chloe, na verdade nem precisava ter se dado ao
trabalho. — deixo meus ombros caírem porque minha amiga, filha de
jornalista renomado do NY Times, era minha última esperança no quesito
fuxiqueira investigativa. — De qualquer maneira, obrigada por tentar...

Chloe se cala e nos fitamos por alguns segundos antes que ela
desvie o rosto ao escutarmos os saltos pelo piso de madeira. Levanto meus
olhos a tempo de ver Abby se jogando no colo de Lennox, entupindo-o de
beijos estalados.

Seu cabelo loiro vira uma cortina que tapa o rosto por completo de
meu amigo durante alguns segundos antes de ele a empurrar de volta para o
chão, limpando as bochechas teatralmente. Abby ri alto e nos fita com ar
blasé antes de olhar a foto de uma manchete em que meu pai e Trevor
apareciam fechando algum negócio:
— Ah, é! Você casou, não casou? — ela pisca para mim. — Sorte
sua, Lily! Bonito e rico e sem trabalho algum, de presente do papai! — Abby
joga os cabelos para os lados e olha para Lennox: — Tenho Francês agora, a
gente se fala mais tarde, querido. — então sai pelo laboratório sem se
despedir de mim ou de Chloe e eu fico parada no mesmo lugar, ainda meio
pasma com sua atitude.

— Não liga, Ellie. Ela ficou chateada porque você não a convidou
para o casamento. — Lennox cochicha para mim de olho na porta e eu
suspiro, desanimada, sem saber mais o que falar sobre esse assunto.

Chloe e Lennox tinham me entendido quando expliquei que não os


convidaria porque aquilo tudo não fazia sentido para mim, não havia nada
para comemorar ali, mas Abby pelo visto não gostou de meus argumentos.
Eu me sinto frustrada porque, de nós quatro, ela era minha amiga de infância
e deveria me entender... no entanto não se esforçava para isso.

Olho para o professor assim que ele entra pela sala e afundo, em
algum lugar bem escondido dentro de mim, o ressentimento que me invade
quando penso que Abby nem sempre era muito diferente de seu irmão,
Patrick.

E isso deveria me dizer alguma coisa, ainda que eu tentasse relevar.


Olho toda a ostentação da sala daquele mierda, tentando engolir a
ojeriza por brindar nossos copos antes de engolir a bebida num gole só sob
seu olhar de abutre. Tudo de mais moderno e supérfluo se encontrava entre
aquelas quatro paredes em sua sala nas Empresas Kane, potência e poder
misturados em obras de arte, madeira de lei, ouro e prata nos móveis e
enfeites, como se o mundo ovacionasse seus pés.

Desmond Kane era a escória da humanidade e agora eu fazia parte


não só da sua empresa como de sua família.

— Como foi a lua de mel, filho? — ele pergunta com um sorriso


bajulador, enchendo meu copo outra vez, eu nem poderia imaginar que
falasse da própria filha se pegasse aquela pergunta desavisado. Eu não
suportava como ele me chamava de filho... si si, que yo seria hijo de um
ratón de mierda como ele... seu sangue nunca se misturaria ao meu... inspiro
com calma, mas sempre sorria inferindo orgulho em meus lábios quando ele
me dava a “honra” de demonstrar seu apreço.

De qualquer maneira, era uma vitória para mim, muito melhor do


que sequer imaginei. O único sangue em mim, seria o que eu tiraria dele.
— Ainda estamos nos conhecendo, Desmond. — respondo,
tentando suprimir o máximo possível meu sotaque. Não que ele não soubesse
que não nasci nos Estados Unidos, era óbvio que eu não era natural, ainda
que tivesse a cidadania americana. No entanto, eu sabia que, quanto mais me
aproximasse dos homens que ele realmente admirava, melhor me sairia, e
meu sotaque era uma eterna lembrança do quanto eu era diferente.

Xenofobia não fazia exatamente parte da lista de coisas que ele


disfarçava muito bem em não ostentar, não eram raras as vezes em que o ouvi
falando do motorista ou de um dos coordenadores do telemarketing,
rebaixando-os apenas pelo país de nascimento.

De qualquer maneira, na identidade que eu tinha agora e que fazia


parte de meu currículo sondado por ele anos atrás, “ter nascido na Espanha”
deu mais prestígio do que eu consideraria em qualquer outro país de língua
latina. Antes ser europeu do que de qualquer um dos países de terceiro
mundo que ele tanto menosprezava.
Fazia parte da identidade Trevor Willians: filho de mãe americana e
pai espanhol, residente em San Francisco desde meus dez anos e aluno
número um da Havard em Administração.

De verdade no meu currículo, apenas que eu era formado em


Farmácia em Yale. Mesmo assim, não Miguel Guzmán, mas Trevor Willians.

Tão óbvio que chegava a ser risível! Bando de cagóns boludos!


— Coloque-a no lugar dela, Trevor. Uma esposa modelo... é a única
coisa que ela deve ser, não deveria ser muito difícil, deveria? — ele aperta o
botão da secretária eletrônica e avisa algo para Sheyla, eu espero seja lá o que
for percebendo o quanto é estranho o jeito que se refere à própria filha.

Não que eu esperasse muito de um homem como ele, mas... algo


não se encaixava... antes de eu me casar, ele tecia elogios sobre a beleza e
prosperidade da filha, uma jovem que só precisava de alguém para guiá-la e
era claro que muitos dos elogios só apareciam porque ele objetivava nosso
matrimônio, no entanto era drástica a mudança no tom de sua conversa agora.
— Enfim, posso contar com você outra vez nesse projeto que
acordamos, Trevor? — ele me corta o fluxo de pensamentos e eu deixo meu
copo quase intocado em cima do descanso em sua mesa, sabendo que é
minha deixa para sair dali o quanto antes.

— É claro que sim, Desmond. Sempre. — respondo imediatamente


sabendo onde ele queria levar aquela conversa... os genéricos do laboratório
que esperavam minha assinatura para serem liberados antes de serem
inspecionados... viejo de mierda... hijo de uma puta...

Sorrio, ajeitando minha gravata, concluindo que foi exatamente tê-


lo salvado uma vez de uma indenização de mais de um bilhão de dólares com
uma assinatura minha que o fez confiar em mim daquele jeito... a ponto de
me dar de bandeja a mão de su hija... e entendo que teria que fazer aquilo
outras vezes até... acabar com a raça dele de uma vez por todas!
Eu me despeço, no entanto antes que eu saia, Sheyla entra pela sala
sem pedir licença, sua voz um guincho frenético puro e a única palavra que
entendo saindo de seus lábios finos é “polícia”.

Desmond se levanta imediatamente da mesa, derrubando pastas ao


chão ao sair da sala como uma bala de revólver, e eu me olho no espelho ao
lado da porta... olhos escuros me fitam de volta e agora são esses que sempre
me encaram, me distanciando infinitamente do Miguel Guzmán que um dia
fui:

— Uno a uno, hasta que se derrumben todos ... por ti, Maria, por ti,
mi Bee.

Tento não transparecer o prazer que sinto ao confrontar aquela cena:


Milner Clark com as mãos algemadas para trás e as luzes rojas e azuis
tingindo a entrada das Empresas Kane.

Desmond está furioso, urrando como loco, e eu o encaro agora em


dúvida quanto a qual cena me era mais prazerosa. Meu sogro grita com todos
ao redor, mandando que voltem para seus trabalhos, e seus seguranças
parecem aturdidos atrás dele, que vai e volta pelo lobby da empresa berrando
com alguns funcionários o que devem fazer antes de sumir pela porta do
elevador.
Eu me demoro mais alguns minutos por ali, contemplando a cara
apavorada do velho dentro da viatura da polícia, ele olha a sua volta sem
entender de onde tudo aquilo poderia ter saído. Ele obviamente não tinha
checado a caixa de saída de seu e-mail e tinha chegado minutos depois da
empresa abrir com um bronzeado das férias que julgava merecidas depois de
mais de trinta anos servindo Desmond.

Cabrón patético...
Eu tinha praticamente forçado essas férias, incutido em sua
cabecinha oca e oleosa o quanto ele merecia aquele descanso, ainda mais
depois de conseguir o melhor cargo da Kane, somente uma cadeira abaixo da
de Desmond. Quinze dias apenas, eu havia dito em um de nossos almoços,
você merece comemorar, merece... essa empresa não seria nada sem seus
serviços, senhor Clark, nada...

Dou uma piscadela para ele assim que o carro sai da vaga e vejo em
seus olhos o pavor ao confrontar meu sorriso, completamente perdido com
aquilo. Ele não fazia ideia do motivo de estar sendo preso, mas eu apenas
fechava o botão do meu paletó à caminho do elevador pensando que sim... Sí!
O velho havia recebido o que merecia.
Agora eu subia rumo à cadeira que ele sentava e... eu só estava
começando.

Entro no elevador e agradeço mentalmente por estar sozinho no


tempo que ele leva para subir os próximos quarenta e sete andares.
Eu não parecia sentir mais nada... e nossa, como eu estava errado!
Raiva, dor e prazer se misturavam às sensações dos últimos dias e aquilo
estava alucinando de vez com minha sanidade. Eu conseguia sentir todo meu
discernimento escorrer por meus dedos toda vez que eu a tocava, mas,
ironicamente, Ellie me fazia sentir mais lúcido quando gemia em resposta. A
ideia de fodê-la era uma linha tênue entre prazer e vingança e aquilo era
libertador!
Carajo... Eu podia fazer os dois. Eu queria fazer os dois.

Quando as portas se abrem, vislumbro o agito, confirmando minha


certeza sobre onde eu deveria me sentar a partir de agora... não que minha
sala tivesse uma vista ruim ou que não houvesse uma placa com meu nome
em frente à porta, não, nada disso.
Eu tinha uma das melhores salas da empresa, assessoras
particulares, secretária, um cargo renomado e tudo isso em pouco menos de
seis anos ali dentro. Agora, a placa de minha sala ostentava um Kane ligado
ao meu nome, depois de meu casamento com Ellie, mas ainda assim... não
era o ”vice-presidente” que sobrepunha a ele. Ainda.

Ane nem dá tempo para que as portas do elevador se fechem atrás


de mim, me entregando um copo de café quente:

— Senhor Willians, alguns acionistas já estão na sala de espera.


Eles chegaram mais cedo, mas já os acomodei.
— Que esperem então. — respondo de má vontade, não iria para
mierda de sala de reuniões nenhuma, não se Desmond não estivesse lá, não se
não fosse para anunciarem minha promoção. — Vou primeiro tomar meu
café e ver meus e-mails.

— Mas senhor Willians, estão à sua espera. — o tom de voz de Ane


me chama a atenção e eu olho para ela antes de seguir adiante pelo corredor,
parando minhas passadas.

— O que foi desta vez, Ane? A reunião está marcada só para daqui
a meia hora!
— Eles adiantaram. Parece que a notícia da prisão do senhor Clark
chegou antes mesmo de acontecer. Para todos os acionistas, senhor Willians.
— ela praticamente sussurra e vira seu rosto, mirando através do corredor até
a sala onde os acomodou. Sua mão encosta levemente em minha cintura e ela
me incentiva a seguir a direção de seus olhos, então eu miro o vidro que
separa aquela sala do extenso corredor. — O senhor Kane disse que tem um
anúncio a fazer.

Meus olhos descem pelo decote da senhorita Ane, me lembrando da


sensação da pele macia de seus seios fartos e eu sorrio para minha assistente,
aquela dulce mulher ingênua e carente de atenção. Tão tola quanto seus
lábios ao me contar as fofocas do dia enquanto me beijava nos encontros
tórridas que compartilhamos quando eu ainda trabalhava no andar debaixo,
dois anos atrás.
Ela já era noiva do cagón do financeiro, mas não resistiu aos
encontros proibidos dos almoxarifados, salas de xerox ou motéis na hora do
almoço, sendo a isca inocente que eu precisava para muitos dos dados que
tive, não só sobre o dia-a-dia da empresa, quanto às situações fiscais que seu
noivo fornecia, certamente confiando no pacto que mantinham na aliança
dourada que compartilhavam em suas mãos.

Pobre coitado...! Um cornudo de mierda!

Olho outra vez em direção à sala de reunião e agora sorrio ao ver


que Desmond se encaminha para lá. Ele me olha por um momento, meneando
a cabeça num movimento vigoroso, não me restando dúvidas de que devo
segui-lo prontamente
No caminho, olho para a sala aberta de Milner e sorrio ao me
imaginar ali nas próximas horas. Os planos retornavam aos eixos e, se tudo
saísse conforme o estipulado, não me faltaria muito para ver aquele império
ruir.
Nem que eu caísse junto!
08

À noite, quando me deito em minha cama, estranho que eu ainda


esteja sozinha.

Jantei sem a companhia de ninguém, o silêncio claustrofóbico


dominando aquela casa, minha mãe sabe-se lá onde, meu pai certamente
ainda na empresa cuidando do estrago que o senhor Clark tinha feito; eu
havia visto os noticiários, as escandalosas descobertas das vendas de dados
confidenciais para a empresa de fármacos rival.
Desmond deveria estar surtando, confiava naquele velho desde
sempre, antes mesmo de eu ser nascida. Trevor provavelmente estava com ele
e aquilo soava reconfortante: eu não saberia como encará-lo depois da noite
anterior.

Fecho meus olhos e miro o teto escuro, tentando entender como eu


me sentia atraída por aquele homem. Sim, eu já tinha confessado isso para
mim mesma, era óbvio. Ele era atraente, então aquilo não era surpresa:
bonito, cara de mau, um corpo definido, o sotaque sensual... o pacote
completo para atrair meus olhares.

O olhar de qualquer mulher.


Tirando isso, nada.

Era aquilo e ponto, atração. Como seria mais? Eu não o conhecia.

Mas eu também tinha certeza que minha atração se devia à aura de


mistério que ele trazia consigo, sem contar toda a raiva que ele me fazia
transformar em tesão quando apertava os dedos contra minha pele e
sussurrava em meus ouvidos. Eu tinha dentro de mim uma perversidade que
eu desconhecia e a descobri dentro do escritório de meu pai na noite anterior.
Não foi só o que aconteceu com Trevor, mas o que aconteceu ali
dentro. Ser insubordinada, inconsequente bem “debaixo dos olhos de meu
pai”... pela primeira vez eu sentia como se me vingasse, de alguma maneira,
de suas imposições. Nunca fugi quando adolescente para me encontrar com
nenhum namoradinho, nunca bati a porta na cara de Desmond quando me
senti afrontada por suas ordens, nunca pude ser uma jovem rebelde já que
todo o peso hierárquico dos Kane me envergava as costas.

Sorrio sozinha... pela primeira vez me senti livre, dona de minhas


vontades... e era irônico que isso tivesse acontecido exatamente com o
homem com quem fui obrigada a me casar.
Acordo com o peso no colchão, mas não quero abrir meus olhos...
Não de imediato. Sinto meu travesseiro se mover e o lençol desliza até
praticamente o meu pescoço. E então o aroma almiscarado alcança meu nariz.

Trevor.
Viro meu rosto e abro apenas um olho lentamente, vislumbrando-o
deitado ao meu lado, seu perfil para mim, o rosto para o alto, o braço jogado
em cima dos olhos. Amanheceu em algum momento e eu nem havia
percebido que tinha adormecido. Suspiro e o mínimo exalar de meus lábios
chama sua atenção: Trevor se vira para mim e se mantém em silêncio
enquanto me fita.

Não falamos nada.

— Chegou agora? — pergunto em um fio de voz, sem querer saber


o motivo de minha curiosidade. Aquilo não importava. Não deveria importar.
— Não foi você mesma que disse que não queria minha agenda? —
seu olhar é frio e distante, mas sua voz é mais. — Agradeça por eu ainda me
deitar nessa cama ao seu lado, preciosa.

Engulo em seco e me viro para o outro lado. Agradecer? Agradecer


o que, exatamente? Para início de conversa quando eu tinha em mente dividir
a cama com meu marido, seria um homem que eu amasse.

Trevor respira profundamente e, surpresa, acompanho-o se levantar


da cama, sendo que mal tinha deitado. Observo-o desabotoar a camisa e
compreendo que ele ainda estava com a mesma roupa de ontem, seja lá onde
ele tenha passado a noite, não teve nem o trabalho de disfarçar qualquer coisa
para mim. Inspiro pensando que nem fazia sentido: ele tinha deixado claro
que nosso casamento eram negócios, por que se manteria fiel, não procuraria
outras mulheres?
Tapo meu rosto com o lençol sem acreditar que eu estava sentindo
ciúmes daquele homem! Ellie, sua idiota! Sua idiota! Do que exatamente
você está sentindo ciúmes? Ele te ameaçou ontem, ameaçou!

Escuto o chuveiro ligado e me levanto abruptamente, calçando


meus chinelos e vestindo meu roupão sobre a camisola. Saio do quarto, desço
as escadas desejando bom dia aos empregados, ainda que meu semblante
certamente não esteja dos melhores, e entro pela sala de jantar, encontrando
meu pai tomando café ao mesmo tempo em que berra ao celular com algum
assessor dele.
Pego um suco de laranja e não o cumprimento, tampouco ele se
importa, empurrando a cadeira para trás e se levantando na mesma hora em
que me sento. Não nos falamos desde meu casamento, porém aquilo não era
bem uma novidade, quase não trocávamos palavras, como se um não
conhecesse o outro.

— Eu quero que você resolva isso agora, seu merda!!! — ele berra
repentinamente ao celular, jogando sua xícara contra a parede. Dou um pulo
na cadeira e derramo o suco do copo, assustada com sua reação. O café
escorre pelo papel de parede e ele me encara, os cabelos bagunçados, os
olhos praticamente soltando faíscas de raiva: — Está olhando o que, Ellie? —
ele dá um passo em minha direção e eu vejo uma das empregadas correndo
com um pano até a xícara espatifada. — Acha que é fácil ser dono de um
império? — ele ri, escarnecido. — Claro que não... o que você saberia disso?
Faz aquele curso ridículo e acha que um dia vai ser alguém! Enfermeira?
Nem para ter pensado em ser médica, pelo menos?! Não poderia me dar mais
desgosto... pelo menos se casou. Ainda que eu preferisse que Trevor fosse
meu filho!

Pouso o copo de volta à mesa, sentindo minhas mãos tremerem...


não... não era medo... era... eu... eu... eu não tinha uma palavra que definisse
o que eu sentia agora... um engasgo me invade a garganta e eu sinto meus
olhos lacrimejarem, me recriminando por ser tão fraca... eu deveria... eu
deveria estar acostumada com aquilo... Desmond bufa alto e passa por mim:

— Podia ter sido pelo menos uma mulher forte como sua mãe, já
que tive a infelicidade de ter tido uma filha mulher... — ele resmunga e para
antes de sair pela porta, voltando-se para a empregada: — Limpa logo essa
merda antes que Sophia veja! Inúteis! Todos vocês são umas merdas de uns
inúteis! — grita com a moça agachada ao chão, esfregando os respingos no
tapete, e sai pisando firme pelo corredor.
Seguro o engasgo vendo a mulher levantar os olhos rapidamente
para mim antes de volta-los à limpeza, sem conseguir falar nada para
confortá-la pelas palavras duras de meu pai, seus olhos cancelaram qualquer
palavra em minha boca quando vi que ela sentia mais pena de mim do que eu
dela.

Eu me levanto outra vez e subo as escadas rumo ao meu quarto, era


sábado de manhã e talvez eu fosse até as docas ou qualquer lugar que fosse
longe o suficiente de minha casa.

Eu... só... precisava... respirar... Respirar!


Entro pelo quarto me livrando de meu robe e encontro Trevor
vestindo uma camisa, minha visão está turva pelas lágrimas que tento segurar
e sinto minha pulsação acelerada. Consigo vislumbrar que ele me olha
curioso antes de eu começar a chorar, mas não falo nada, apenas bato a porta
do banheiro logo que entro por ele, ligando o chuveiro e entrando de
camisola e tudo sob a água congelante.

Fecho meus olhos e deixo meu corpo desabar no box molhado.


Tapo meu rosto e os soluços vêm altos. Não deveriam vir, não era a
primeira vez que ele me falava aquilo, ou que me olhava daquele jeito, como
se eu fosse um monte de estrume. Eu não deveria me sentir assim, não
deveria desejar ser amada por ele, acolhida pelo meu pai.

Não deveria!
A porta do box se abre e eu levanto meus olhos, encontrando Trevor
em meio ao vapor do chuveiro, eu peço que me deixe em paz ali, mas seus
braços me envolvem, e ele me pega em seu colo, me carregando para o
quarto. Baixo minha cabeça em seus ombros e afundo meu rosto em sua
camisa, molhando-os com meus cabelos, ele me deita em minha cama e some
pela porta do banheiro de volta.

Eu seguro meu choro com vergonha da cena que fiz, minha


camisola está ensopada e encharco o lençol aos poucos, seco minhas lágrimas
vendo-o voltar em minha direção com uma toalha nas mãos.

— Vou pedir que alguém te traga um chá. — avisa, me entregando


a toalha, e alcança meus olhos com os seus. Percebo que ele não sabe muito
bem como agir, parece receoso, recua um passo e eu seguro sua camisa no
segundo em que recua outro.

— Quem é você...? — sussurro, a voz entrecortada de mágoa. —


Quem... é você... Trevor? Por que... você? Por que ele escolheu você?

Ele solta minhas mãos de sua roupa, mas percebo que, apesar de
impor uma segurança, seus olhos vacilam por um instante.

— Preferiria que tivesse sido com Clark, preciosa? — ele me


responde de maneira debochada e eu seguro um soluço, descendo meus olhos
para o chão. — Seu pai confia em mim. — ele reponde e eu volto a encará-lo.
— Ontem ele me indicou para ser o vice-presidente da empresa. Sou seu
genro. Os negócios sempre vão pertencer à família, à quem ele confia.

As lágrimas se precipitam por meus olhos novamente... meu pai não


confiava em mim nem para escolher alguém para dividir minha vida e não
por medo de eu não ser feliz, mas... por medo de perder nossa fortuna.
— E como ele confia em você? Quem é você, Trevor? — pergunto,
segurando com força aquela toalha, os pingos despencam pelos meus cabelos
e caem em meus ombros, camisola, cama... não me importo.

Ele se senta ao meu lado e novamente o colchão pesa, desvio meus


olhos para seu rosto, percebendo que me olha por um tempo também. Seu
rosto está tão próximo que observo mais uma vez a cicatriz, curiosa. Quem, é
você, Trevor? E como conseguiu essa cicatriz...? Seus olhos
escandalosamente negros me miram de volta e ele solta um suspiro antes de
me responder:

— Sou espanhol. Minha mãe é americana, tenho a cidadania


americana e moro aqui nos EUA há muitos anos. — ele responde, pegando a
toalha entre meus dedos e a levantando em direção aos meus cabelos. — Se
seca, Ellie, ou te enfermarás. — ordena, mas usa uma voz baixa que não
impõe tanta ordem assim. Involuntariamente sorrio, percebendo como
mistura sempre o espanhol com o inglês quando está comigo e a pego de
volta, secando as pontas de meus cabelos. — Obviamente não sou bilionário
como vocês, mas tenho grana. Muita. Meus pais morreram em um acidente e
eu herdei todo o dinheiro, sou filho único. Mas não só isso, sou bom no que
faço, seu pai enxergou isso. Sou o pretendente perfeito, tanto para você
quanto para a empresa, preciosa. — ele passa as mãos pelos cabelos,
parecendo desconfortável com aquele assunto. Mas no fundo sinto que não
parece tão... natural. — Depois do suposto escândalo de seu ex ano passado,
Desmond precisava zelar a imagem da família.
Espremo meus cabelos, afofando-os na toalha, e tento não pensar
nos rumores que viraram manchetes nos tabloides sensacionalistas quando
Patrick terminou comigo e deu uma entrevista falando que eu era
insuportável e nunca um homem se sentiria atraído por mim o suficiente para
querer casar comigo um dia. Eu nunca seria bonita como minha mãe, ele
declarou, ou interessante o bastante como meu pai. Eu só tinha o dinheiro
como atrativo.

Apareci em uma foto horrível na capa de uma revista, os olhos


inchados de choro quando ele terminou comigo e nunca soube como um
paparazzi havia conseguido aquela foto. Eu achava que era apaixonada por
ele, no entanto era mais um afago de meu ego: meu ex era bonito, milionário
e desejável, tinha um cargo poderoso na Kane e as meninas caiam a seus pés.
Hoje penso que ele só quis ficar comigo por causa do meu
sobrenome, queria ganhar alguma fama com isso e, na verdade, ganhou.
Nosso término teve mais holofotes que nosso namoro.

— Não tem mais nada que precise saber, Ellie. Apenas que sou seu
marido pelo tempo que for necessário. — ele conclui e não tenho como não
notar o tom amargo em sua voz. Trevor se levanta e pega o paletó que deixou
sobre a cômoda. — Tenho uma reunião daqui a pouco e... — ele se cala
abruptamente, fechando os olhos por alguns segundos, percebo que seus
passos vacilam e me levanto imediatamente, tentando ampará-lo quando seu
corpo oscila, no entanto Trevor me empurra para o lado, a respiração forte e
descontrolada.

Vejo o pavor em seus olhos antes de ele se desvencilhar de mim e


engolir em seco, assumindo uma postura distante, como se nada tivesse
acontecido.
— Trevor? O que houve?
— Nada! Sai de perto de mim! — ele vocifera de volta, outra vez
me empurrando quando me aproximo, eu tropeço em meus próprios pés e
quase caio para trás quando ele passa praticamente por cima de mim em
direção à porta, batendo-a com força atrás de si.

Ainda sinto meu corpo tremer enquanto me seco, contudo, enquanto


me visto, não poderia ter mais certeza de que preciso passar o dia inteiro
longe daquela casa.

Eu queria ser tudo naquele momento... menos uma Kane.

Alguns dias passam, a rotina se instala, mal vejo Trevor sempre em


reuniões infindáveis, eu me enfio em meus estudos, e passo os dois fins de
semana seguintes velejando sozinha, ao passo que nem percebo que mais
outra semana finda.
Depois de um dia inteiro estudando com Chloe na biblioteca, entro
em casa espantada com o corre-corre dos empregados, só me atentando que
me esqueci do evento de minha mãe quando a vejo descer as escadas
deslumbrante em um vestido preto tomara-que-caia esvoaçante, que delineia
seu corpo perfeito e longilíneo.

A meu favor, os eventos das últimas semanas tinham me


desestruturado o suficiente para não colocar os dela em prioridade no
momento.

Ela não me vê ou sequer olha para mim, falando ao telefone com


alguém e sumindo na porta lateral que a levaria até o salão de festas em nossa
“pequena mansão”. Respiro fundo e subo os degraus, desejando ter sumido
no oceano, sem acreditar que ainda teria que me arrumar e encenar mais
alguns sorrisos no lançamento da nova coleção de joias de Sophia Kane.

Eu não era ou sequer desejava ser atriz, mas ultimamente estava


considerando que merecia ganhar um Oscar.
09

Ligo algumas vezes para Trevor. Várias. Ele não atende e aquilo me
esgota mentalmente em um momento que preciso ter a autoconfiança
inabalável, até porque iríamos representar em público outra vez e eu não
sabia se ele tinha conhecimento daquele evento.
Passo meu batom e sigo pela porta, guiando meus saltos até o salão
de festas, me mantendo pelos cantos enquanto admiro todos os enfeites e
apetrechos que ornamentam o ambiente elegantemente adornado para o
evento de gala. Modelos desfilam e posam para as fotos usando algumas joias
da nova coleção, pessoas dançam envolvidas pela música da orquestra no
palco, a cena típica das festas de minha mãe, como sempre.

Meus dedos arrumam meu vestido longo e brincam entre a pele


desnuda pelo pouco tecido na cintura, me sentindo, como sempre, deslocada
naqueles ambientes em que meus pais insistem minha participação. Bem, o
que poderia dar errado desta vez? Torço o nariz, sorrindo sarcasticamente,
anunciariam minha gravidez?

Mãos quentes enroscam minhas costas e descem pela minha cintura,


viro-me e Trevor está absurdamente sexy, vestido de preto dos pés à cabeça.
— Te liguei a noite toda para te avisar deste evento.

— Eu estava em reunião com su padre. — ele entrega sua taça


vazia para um garçom e pega outra cheia, me olhando de lado; nossa
interação é tão bizarra, mal dá para acreditar no último contato que tivemos,
uma quase conversa, uma quase briga. — Viemos direto da empresa, só deu
tempo de um banho rápido.

Analiso-o outra vez e não acho que aquilo tudo seja resultado de um
“banho rápido”, no entanto ignoro o pensamento. Antes mesmo de eu falar
que hoje era sábado, ele pede licença e sai, seguindo meu pai quando
Desmond passa ao nosso lado falando com outro homem de terno, que mais
parece um assessor do que um convidado.
Eu me sento e o observo por mais um tempo, inspirando a dualidade
de tudo que venho vivenciando. Por mais que eu negue sua presença, ela me
atrai como imã. Exatamente por não querer olhá-lo, não consigo me
concentrar em mais nada que não seja ele.

E sei que tudo isso não é apenas por estar casada com ele, o que
seria por si só motivo suficiente.

Mas por como me sinto quando estou em suas mãos.


— Terei a honra de dançar com você essa noite? — uma mão
gelada alcança meu pescoço e eu me deparo com Patrick, parado em pé ao
meu lado, seus dedos roçando minha nuca. Ele está vestindo um smoking
caro e elegante, mas mesmo assim não chega aos pés da beleza instigante e
agressiva de Trevor.

Ellie... você vai enredar mesmo por esse caminho...? Não há nada
para ser comparado ao meu marido porque simplesmente não o conheço para
tanto... sua beleza não pode ser motivo de minhas desculpas, não... não
mesmo!

Sorrio para meu ex, incrédula com sua presença naquele evento,
mas mais ainda com sua cara de pau, meus olhos me traem, buscando Trevor
logo em seguida... E não é difícil encontrá-lo: ele não sorri, encarando-me
enquanto minha mãe fala ao seu lado, gesticulando sem parar.

— Você está estonteantemente bela essa noite, Ellie. — Patrick


insiste quando percebe que não o respondo e eu apenas sorrio de volta,
agradecendo, sem respondê-lo quanto ao pedido de dança.

Estonteantemente bela?
A mulher que ele comparou com a beleza de minha própria mãe?
Não poderia ser mais ridículo e bajulador e certamente estava precisando de
algo.

A orquestra para de tocar e a voz de minha mãe ecoa pelo ambiente,


agradecendo a presença de todos. Patrick senta-se ao meu lado sem que eu o
convide e eu evito encará-lo, mirando Sophia Kane, sorrindo esplendorosa no
palco:

— Convido vocês a conhecerem as obras de arte únicas da nova


coleção de joias Sophia Kane. — Minha mãe sorri e imediatamente a tela
atrás de sua figura esguia parece explodir em fogos de artifícios e ouro
derretido, mostrando a logomarca elegante da alta joalheria. — Pedras
preciosas deslumbrantes, técnica artesanal fabulosa e moderna, designs
vibrantes inspirados na sedução. Nasce assim a Black Star, a nova coleção
que promete se tornar meu novo ícone. — as modelos, que ora vagavam
aleatoriamente pelo tapete, agora desfilam entre as mesas mostrando as joias
em seus pescoços, braços, punhos e dedos e eu desvio meus olhos apenas por
um segundo para elas antes de voltá-los para minha mãe.

Ela observa demoradamente Trevor e eu engulo em seco, não


entendendo aquele olhar. Pisco lentamente sentindo que alguma coisa ali não
se encaixa... ou talvez encaixasse completamente... eu estava imaginando
coisas...?
Black Star... Black Star... a sensação da ideia contida por trás do
nome que minha mãe escolheu para sua coleção me é familiar... Eu como
uma das delicadas barcas de lagosta em meu prato e mastigo devagar,
voltando a olhar Sophia.

— Com uma impecável combinação de fantasia e ousado savoir-


faire em ourivesaria, cada peça narra a fascinação e devoção por pedras
negras e sedutoras. Uma maravilhosa dádiva da natureza que traz seu
poderoso diamante em uma peça sob medida para exibir o mais radiante tom
de preto, uma beleza impossível de igualar. Uma arte da sedução.

Cruzo minhas pernas e, apesar da voz contínua de minha mãe, só


consigo mirar Trevor e suas reações contidas. Ele disfarça seu desconforto,
mas eu o percebo, vendo seu pomo de Adão subir e descer como se engolisse
uma bola atrás da outra.
— E como seria uma joia que reflete a sedução? — ela continua e
eu agora analiso com afinco as joias nas peças expostas das modelos. —
Atrativa, mas também misteriosa; minimalista no resultado, mas complexa no
desenvolvimento; elegante, mas também ousada; um delicioso jogo de
opostos, exatamente como o jogo de sedução no qual me inspirei.

Trevor se levanta, me deixando sem saber como reagir e eu o


observo, inquieta, sair pelo jardim da mansão. Imediatamente alcanço o rosto
de meu pai, e ele parece sorrir, inabalável, sem nem mesmo perceber
qualquer coisa que não seja a beleza de sua esposa, uma devoção contínua de
sua existência.

No entanto nem eu mesma sei o que me fez ficar alerta, o que me


fez sentir aquele arrepio ruim na espinha, novamente a mesma sensação que
tive ao ver Trevor pela primeira vez na marina.

— Com uma mescla de diamantes octogonais e lapidação brilhante,


a peça a seguir exalta o talento artístico ilimitado da Alta Joalheria Sophia
Kane e...

Não consigo ouvir mais nada.


Nada.

Nem que eu quisesse.

Meu ouvido zune profundamente e eu fecho os olhos, sentindo o


gosto acre que me consumia há dias. Volto a tomar outro gole de champanhe
e finjo estar conectada a tudo que acontece a minha volta, mas sei que minha
mente e meu coração estão bem longe dali.
Mas não ouso me mover. Não posso me mover.

A única coisa que faço é o constante ir e vir da taça em meus lábios,


cada gole em uma tentativa vã de sumir com o gosto azedo de minha vida.

Quando aquela apresentação fi-nal-men-te acaba, eu me levanto da


mesa, pedindo licença à Patrick. Ele parece pouco se importar, entretendo-se
imediatamente em uma conversa com uma celebridade. Mulher, claro.

Vejo minha mãe agradecendo algumas pessoas, beijando outras e


seguindo para o jardim; eu demoro apenas um segundo para decidir ir atrás,
levantando meu vestido ao pisar na grama.
No entanto, assim que saio do salão, não encontro ninguém do lado
de fora.

Ando por um tempo a esmo, sem vontade de voltar para a festa ou


sequer coragem de ir para meus aposentos. Não sabia se Trevor tinha ido para
lá e não queria ficar sozinha no mesmo cômodo que ele, principalmente
depois de ver suas feições transtornadas, e ainda sem entender exatamente o
motivo delas.

Não que eu soubesse muita coisa sobre meu marido.

Tenho muitas perguntas entaladas em minha garganta, no entanto


não as esboço quando entro pelo quarto quase uma hora depois e o encontro
sentado na poltrona de canto, ao lado do abajur. Trevor levanta os olhos por
um instante e respira profundamente, me olhando por vários segundos antes
de voltar a se concentrar na garrafa quase vazia entre os dedos.

Eu tiro meus brincos e os guardo na caixinha em cima da cômoda,


liberando meus pés das sandálias apertadas em seguida, pisando com alívio
no tapete felpudo. Pouso meus dedos no zíper lateral do vestido, me
encaminhando para o banheiro quando a voz rouca de Trevor estanca meus
passos:
— Não tira.

Giro meu rosto em direção ao seu e minhas mãos soltam de meu


vestido, o zíper ainda pela metade alcançando a altura de minhas costelas.
Trevor bebe um gole lentamente do uísque diretamente da boca da garrafa e
eu me surpreendo com aquilo, imaginando se teria bebido tudo daquela
maneira e naquela última hora.
— O que disse? — sussurro de volta e ele apoia os cotovelos aos
joelhos, me olhando demoradamente:

— Dê uma volta. — ele ordena, o rosto sério e decidido. Eu


continuo paralisada, sem entender o que me manda fazer. — Eu disse para
dar uma volta! — ele aumenta o tom de voz consideravelmente e eu mordo
meus lábios, assustada. Trevor passa os dedos entre os cabelos e ri baixo,
quase que para si mesmo. — Você não tem ideia, tem?

— Do... do que está falando?


Ele se levanta e, num ínfimo segundo, está ao meu lado, seus dedos
seguram meus cabelos soltos, torcendo-os em um coque no alto de minha
cabeça, me puxando para si, não com brutalidade, mas também não com
delicadeza:

— É incrível como você não enxerga. — ele sussurra, deslizando o


nariz pelo meu pescoço. — Como não vê como é hermosa. — sinto a
umidade de sua lambida perto do lóbulo de minha orelha e o aroma do uísque
em sua língua alcança meu nariz. — Como fica perfeita com os cabelos
presos, o pescoço à mostra, a pele das costas exposta. — seus dedos se soltam
de meus fios e descem por minha coluna, me fazendo arrepiar dos pés à
cabeça.

Então ele segura minha cintura e me força a girar sobre meus


próprios pés e eu o faço, sem acreditar que o obedeço. Meus olhos se fecham,
mas sei que ele recua um passo, me apreciando, posso escutar em sua
respiração, posso sentir no ar pesado que me cerca.

— Tentadora. — ele conclui e eu abro as pálpebras, sentindo meu


coração acelerado.
Trevor se aproxima outra vez, dando outro gole na bebida, e pega a
alça de meu vestido, descendo-a um pouco por meu braço, voltando a lamber
meu ombro. Eu miro a janela à minha frente, sentindo o ar entrar entrecortado
em minha garganta, o céu está nublado, mas ainda assim posso ver a luz forte
da lua entre algumas nuvens.

Sua língua desliza por minha pele, fresca pelo álcool da bebida e
quente pelo seu lento respirar... eu sinto os rodamoinhos entre minhas pernas
e cruzo meus braços quando ele alcança meu maxilar.

Trevor traz o gargalo da garrafa até sua boca e bebe outro gole,
deixando que escorra por meu queixo tanto quanto por sua barba rala. Aquilo
é diferente e me tira dos eixos, sinto a pulsação de meu coração no ouvido,
ansiando o que fará em seguida.
Ele não se importa que eu não me mexa, que eu não abra minha
boca o suficiente quando roça sua língua nela, me fazendo sorver o uísque de
sua língua; aparto meus lábios assim que ele os mordisca de leve, inspirando
com força o seu cheiro agridoce misturado ao da bebida.

— Você quer, Ellie. — ele murmura. — Deixe que te domine. ―


seu olhar se firma em minha boca por um segundo antes de me empurrar e
me imprensar contra a parede com o volume entre suas pernas resvalando em
meu quadril. ― Deixe se dominar pelo prazer, preciosa. ― ele larga a garrafa
em cima da poltrona ao nosso lado e desce suas mãos por minha silhueta até a
fenda de meu vestido, me esfregando por cima do tecido da calcinha.

Minhas pálpebras oscilam entre se manter abertas para admirá-lo,


ou fechadas por vergonha por querer me subordinar àquilo.
Trevor desce mais ainda as alças de meu vestido pelos braços
enquanto me lambe e eu não acredito no quanto quero sentir tudo que me
proporciona, olhando-o apertar meus seios quando ficam expostos. Ele
desliza a língua até eles e os chupa dolorosamente, elevando minha coxa em
volta de seu quadril e escorregando seus dedos até minha bunda, tocando o
encontro de minhas nádegas, me deixando alerta e nervosa.

Tiro sua mão dali e ele sobe o rosto para o meu, sorrindo de canto e
beijando minha boca:

― Você quer isso tanto quanto eu, Ellie... O trato continua, se me


disser não, eu paro... senão continuo até você gritar meu nome em meu
ouvido. ― ele me aperta contra a parede e desce outra vez com seus dedos, se
infiltrando por minha calcinha. ― Mas dessa vez quero foder você, Ellie.
Sem tirar seu vestido.
Trevor resvala os lábios melados por minha pele, alcançando meu
pescoço, e eu agarro sua nuca, sentindo seu dedo entrar e sair de dentro de
mim. Encaro seus olhos negros e imediatamente a cena de horas atrás vem
em minha cabeça, a pergunta sai antes mesmo que eu me recrimine:

― Por que minha mãe ficou te encarando durante a apresentação?


― pergunto, tomando fôlego, e ele ri em meus lábios, tirando o dedo de
dentro de mim e agarrando minha bunda:

― Está com ciúmes de mim, Ellie? ― desvio meu rosto do seu e ele
força suas unhas em minha pele. ― O que quer saber? Se eu também acho
Sophia mais hermosa que você?
Tento empurrá-lo de mim, chocada com suas palavras. Minhas
mãos escorregam em seu paletó, ele me prensa com mais força e sinto o
baque das minhas costas batendo outra vez contra a parede.

Trevor segura meu queixo e me faz encará-lo:


― Acha que estou comendo su madre, Ellie? ― ele sorri,
desdenhoso. ― Talvez eu não precisasse se você aceitasse que sua buceta
quer meu pau dentro dela.

Desfiro um tapa em seu rosto e Trevor segura meus cabelos com


força, me virando de costas contra a parede:

― Seu tapa só me mostra o quanto está com tesão, Ellie. ― ele


prensa o pau contra minha bunda e posso senti-lo, ainda que os tecidos de
nossas roupas nos separem. Trevor enrosca os fios e puxa minha cabeça de
lado, alcançando meu ouvido. ― Ainda não ouvi seu não, então o tapa não
me impede de nada, apenas me deixa com mais vontade de te foder com
força. Mucha fuerza!
Trevor rasga a parte de trás de meu vestido, revelando meu quadril,
e não se detém com minha calcinha, puxando-a e soltando-a em um estalo em
minha bunda. Dou um grito abafado e ele esfrega o dedo outra vez entre
minhas nádegas, gemendo alto em meu ouvido.

― Não, Ellie, diga não para mim... diz que não quer me sentir
dentro de você... ― ele sussurra e eu engulo em seco, cercada por seus
braços. ― E eu digo que você é muito mais hermosa que sua mãe, muito
mais, Ellie...

Eu me viro entre seus braços e o encaro ofegante, mas não falo nada
e ele nega com a cabeça antes de agarrar minhas coxas, me suspendendo em
seu colo e me levando até a cama. Sem cuidado algum, ele me joga ao
colchão e abre suas calças, tirando seu pau de dentro da cueca, sem o trabalho
de descer a roupa completamente enquanto veste uma camisinha.

Eu penso nas pílulas contraceptivas que comecei a tomar na última


menstruação, logo depois de nosso retorno da lua de mel e, por mais que eu
dissesse para mim mesma que era para regularizá-la, no fundo eu sabia que
ansiava por perder minha virgindade... ainda que fosse com ele...
O que me dá mais medo ainda do que se espreita dentro de mim,
afinal, por que... ele? Por quero que seja... ele...?

Eu seguro o lençol entre meus dedos, observando o meu vestido


solto e rasgado em meu quadril, e ele debruça seu corpo sobre mim,
segurando nas laterais de minha calcinha:

― Ellie, diga que não quer... seu silêncio continua sendo um sim
para mim.
Eu o olho nos olhos:

― E se eu não quiser dizer não...?

Em um impulso, ele arranca minha calcinha, meu quadril resvala no


lençol e ele abre minhas coxas, encaixando seu corpo entre minhas pernas.
Eu espremo meus olhos, ansiando o ato, e inspiro profundamente, pensando
que não quero falar para ele que sou virgem... não, aquele momento pertencia
a mim, aquela decisão pertencia a mim...
Não cabia a Trevor decidir se era momento ou não de eu perder
minha virgindade, não cabia a ele desistir porque nunca transei ou porque
acha que devo me manter intocada... essa decisão pertencia somente a mim e
eu não daria a ele a opção de escolha.

A escolha era minha.


O ardor chega antes mesmo que eu possa expirar e eu engulo a
vontade de gritar quando se transforma em dor. Arfo quando ele pega minha
outra coxa e agarra a minha bunda, me elevando um pouco do colchão e me
empurrando contra os travesseiros.

Minhas pernas enlaçam em sua cintura e minhas costas afundam na


cama com seu peso, eu transpiro e sinto o nó em minha garganta, deslizando
minhas unhas por suas costas, debaixo de sua camisa.

Trevor se move com vigor dentro de mim e eu me sinto arrebentar


por inteira, despedaçar em seus braços, a dor de mil navalhas fincando em
mim... ele afunda com força seu quadril entre minhas pernas e eu grito,
arranhando sua pele.

― Puta que pariu, Ellie! Tão apertada! ― eu arqueio a coluna e


Trevor aproveita para lamber meu queixo, sorvendo meus lábios enquanto
retorna com um gemido alto. ― Carajo, que buceta é essa?

Eu me contorço de dor, mas não quero parar, eu quero me libertar


daquilo, quero ser dona de minhas vontades, desejos, eu quero o sexo, eu
quero o sexo completo, a penetração, eu quero tudo! Desvio meu rosto,
olhando a janela e meus olhos atravessam o céu, alcançando a lua já
destapada, as lágrimas rolam por meu rosto e então sinto que Trevor paralisa
repentinamente; não ouso encará-lo.
Ele pousa suas mãos me cercando no colchão, sua respiração fica
em suspenso e sinto que seus olhos me analisam antes de sentir que sai de
dentro de mim em um único movimento.

― O que é isso? ― sua voz é rouca e grave. ― Ellie, eu estava te


machucando?

Eu não falo nada, apenas olho a lua, em silêncio. Minhas coxas


estão úmidas e quentes, minha respiração dói.

― Ellie, que porra é essa? Me responde! Yo estaba te lastimando?

Viro minha cabeça em sua direção ao ouvir como as palavras em


espanhol escapam por seus lábios e o encontro de pé, ele me olha parecendo
chocado e eu suspiro, vendo a mancha vermelha entre minhas coxas:

― Sou virgem, Trevor... era...

Trevor me encara parecendo atônito e faz uma careta em seguida.


Ele anda em direção à poltrona e pega a garrafa, bebendo o último gole
dentro dela, no entanto, ao invés de colocá-la de volta no lugar, ele berra,
jogando-a contra o chão.
Eu dou um pulo na cama, quase me encolhendo, e ele fecha suas
calças com raiva, as mãos tremendo:

― Você tinha que ter me falado, Ellie! ― ele vocifera e anda em


direção à porta. ― No podría haberme ocultado, mierda! Carajo!

Eu pulo da cama e vou atrás dele, sem saber de onde tiro tanta
coragem:

― Não! Eu não tinha que ter contado nada! O que eu sei de você,
cacete?! A minha virgindade é só minha, a decisão também é! ― sinto o caco
fincar em meu pé antes de continuar dizendo tudo que penso e grito de pavor.

Trevor arregala os olhos, compreendendo o que houve e volta os


mesmos passos que deu, me pegando no colo no meio dos pedaços da garrafa
quebrada. Escuto seus sapatos estilhaçarem os cacos e fecho os olhos,
sentindo tamanha dor em meu pé, anulando qualquer sentimento do que
vivenciei nos últimos minutos.

― Não! Me solte. Trevor! Eu sei me cuidar!


― Você fazer Enfermagem não tem nada a ver com não aguentar
sua própria dor, Ellie. ― Trevor me coloca dentro da banheira vazia e remexe
nas minhas coisas espalhadas em cima da pia.

Fecho meus olhos com raiva por me sentir rendida à minha dor,
quando sinto a força de seus dedos segurando meu calcanhar, percebendo que
ele tenta tirar o caco ainda preso em minha pele.
― Não vai precisar costurar, enfermeira. ― ele me avisa num tom
baixo e eu abro minhas pálpebras, vendo-o debruçado sobre a quina da
banheira, espremendo seus olhos enquanto manuseia uma pinça e deixa o
pequeno caco cair sobre a louça da banheira.

― Eu me viro com o resto. ― aviso e vejo o filete de sangue


escorrer pela minha perna erguida e pisco devagar, confrontando o tom
escarlate do sangue ao encontro do meu vestido vermelho na altura das coxas.

― No, yo termino! ― Trevor pega uma gaze e enfaixa meu pé, a


cara fechada, o semblante concentrado, o silêncio em seus lábios franzidos.
Enxugo as lágrimas que ainda estão retesadas no canto de meus olhos e sinto
frio ali, naquele banheiro com ele. ― Vou pedir que alguém dê um jeito no
seu quarto. ― ele anuncia, se levantando e saindo do banheiro.

De onde estou posso ver que arranca o lençol da cama, embolando-


o e jogando ao chão. Eu fico parada ali dentro, ainda tentando juntar todos os
acontecimentos das últimas horas e a quietude do cômodo me assombra, só
escuto minha respiração nervosa e meu coração descompassado.

Passos ressoam de volta e lá está Trevor, retornando ao quarto e


entrando pelo banheiro:

― Você pode andar ou precisa de ajuda?


― Po... posso andar... acho. ― respondo sem nem saber, já que
meu pé ainda se encontra para o alto, apoiado à borda da banheira.

― Lúcia já está vindo limpar seu quarto. ― ele pigarreia, nervoso.


― Qualquer coisa, peça ajuda a ela. ― ele recua um passo, mas para por um
segundo, me olhando como se me observasse pela primeira vez àquela noite.
Não a mulher que quis transar, mas a que está dentro de uma banheira vazia
com o pé machucado. No entanto, quando fala, sua voz sai amarga: ― Se eu
soubesse que você era virgem, Ellie, eu...

― Você o que, Trevor? ― eu o interrompo. ― Você não teria


transado comigo? Essa decisão não cabe apenas a você, eu queria aquilo tanto
quanto você. Você mesmo disse isso para mim! Você mesmo se gabou disso,
Trevor!

Ele nega com a cabeça:

― Eu não desejava ser seu primeiro homem, Ellie.


Sorrio, complacente:

― Nem eu desejava ser sua esposa, Trevor. Mas pelo visto nem
sempre temos o que queremos.

Ele pega meu roupão no gancho ao lado da pia, lançando-o para


mim:
― Para alguém que não quer o esposo, você mostra muito desejo.
― e sem me dar chance para que eu possa respondê-lo, sai pela porta do
banheiro. Eu grito de raiva em resposta, me levantando ao mesmo tempo em
que deixo as loções e potes na beirada da banheira caírem conforme me lanço
pelo piso, quase pulando de um pé só.

Trevor está ao lado da cama tirando seu paletó e eu vou em sua


direção, desta vez me atentando a não pisar onde os restos da garrafa jazem,
apontando um dedo para ele:

― Você também não nega o fogo, sempre tentando mostrar o


quanto consegue mexer comigo!
― Eu mexo com você? ― ele lança um sorriso irônico, abrindo as
abotoaduras da camisa social.

― Eu estou falando sério, Trevor! ― apoio meu joelho na cama e


me sento de lado, elevando o pé machucado. ― Toda vez que me tocou, to-
da, você sempre foi malicioso, sempre quis provar algo para si mesmo!

Ele espalma uma mão em cima do colchão e paira seu rosto sobre o
meu:
― Eu não preciso provar nada para mim mesmo, Ellie. Su cuerpo
sempre me dá a resposta que quero. ― segura meu queixo. ― A gente só
precisa provar algo que duvida e eu não tenho dúvidas do quanto você me
quer dentro de você. ― seus dedos escorregam pelo meu pescoço. ― Toda
vez que te toco... como disse mesmo? Maliciosamente...

― Vai se fuder... ― murmuro.

― “Me” ou “te foder”? ― ele sibila, encostando seus lábios nos


meu. ― Somos dois adultos, Ellie. Você pode ter se sentido obrigada a se
casar comigo, mas não foi. ― ele se distancia, reerguendo seu tronco e
desabotoando a camisa. ― Você tinha opções, mas cá estamos nós dois. No
mesmo quarto.
10

Acordo sem entender de imediato o que está acontecendo.

Trevor está murmurando ao meu lado e se revira na cama como se


estivesse tendo um pesadelo, eu acendo a luz do abajur e fito sua face suada,
os cachos presos à testa franzida, ele agarra ao lençol entre as mãos com tanta
força que posso ver os nós dos dedos avermelhados.
Minha mão paira sobre seu ombro, em dúvidas se devo acordá-lo ou
não, a lembrança do que falou para mim horas atrás antes de deitarmos e
dormirmos sem nos olhar, o silêncio palpável entre nós.

Aquilo poderia ser um castigo por como me tratou, talvez ele


merecesse estar tendo um pesadelo, não ter um sono tranquilo ou sonhos
agradáveis. Volto com a mão para meu travesseiro e me debruço um pouco
sobre ele, tentando entender o que fala entre o sotaque forte, mas mal
compreendo as frases em espanhol, quanto mais murmuradas.

― Maria... ― ele balbucia e eu jogo meu corpo para trás, confusa.


― Maria, mi cariño... ― Maria? Ele está sonhando com uma mulher? ―
Bee, no me ouvidé de ti...
Bee? Abelha? Ele disse abelha? Eu o encaro outra vez, confusa com
o que fala, o que teriam Maria e abelha a ver para estarem num mesmo
sonho... ou aquilo simplesmente não era para fazer sentido algum mesmo...?

Suspiro profundamente e toco de leve seu ombro, não trazendo


nenhuma reação da parte dele, Trevor aperta seus olhos mais ainda e geme,
respirando forte. Volto a cutucá-lo, desta vez com mais força, e ele
abruptamente abre os olhos, arfando alto e olhando à sua volta, como se
estivesse completamente perdido.

Sem parecer se dar conta de minha presença, ele sai da cama


agilmente e eu vejo seu corpo forte e torneado cambalear na penumbra do
quarto até o banheiro, batendo a porta atrás de si. Escuto a ânsia de vômito
abafada e fecho os olhos, um misto de descrença, irritação e... preocupação...
bufo, sem acreditar que eu possa estar remotamente preocupada com seu
estado.

Eu me levanto da cama bem devagar, sentindo o corte de meu pé


arder um pouco, sem saber ao certo o que fazer, se espero ele abrir a porta ou
se desço e peço que preparem um chá para ele, no entanto meus olhos se
prendem ao celular na mesinha de cabeceira ao seu lado, a luzinha verde do
carregamento total me chamando atenção.

Pé ante pé me direciono para o banheiro e encosto a orelha na porta,


escutando a torneira acionada, mas identifico que não é a da pia, e sim da
banheira. Eu paraliso não só meus passos como minha respiração e fico
algum tempo com um pé no tapete e outro no piso frio, sem saber o que fazer,
sem saber se tenho coragem o suficiente para... Meu Deus, eu conseguiria
fazer aquilo de maneira despercebida?

Olho outra vez o celular e volto a mirar a porta para depois voltar a
olhar o celular e, quase dando um bote, pulo, arrancando o celular do
carregador, revirando-o quase do avesso ao tentar liberar a tela bloqueada,
meu pé lateja de dor, mas a curiosidade é bem maior no aparelho de Trevor
que contém uma foto de uma paisagem como imagem de fundo.

Digito seu sobrenome como senha, clico em alguns números


aleatórios, esmurro a tela com raiva e assim que vou conectar o celular de
volta ao carregador, me lembro de seu sonho.

Com um sorriso ansioso, digito MARIA, mas a frustação me


preenche o peito quando nada acontece e eu me sinto derrotada por adicionar
mais um mistério à vida de meu marido, além de toda sua vasta lista: além de
não ter conseguido acesso ao seu telefone, quando eu achava que ali eu teria
muitas respostas, não sabia qual era a importância daquela mulher em sua
vida.

Devolvo o celular à mesinha escutando gemidos baixos e abafados


pela porta do banheiro e, desta vez, me surpreendo por não pensar muito, sem
temer as consequências: simplesmente abro a porta e o encontro quase que
completamente submerso na banheira, as mãos segurando firmemente as
bordas, apenas do queixo para cima fora da água cristalina, que nada esconde
seu corpo nu.
Trevor novamente está com os olhos cerrados e parece não perceber
ainda que tem companhia, franzindo a testa e segurando a louça daquela
banheira como se fosse o lençol na cama.
Não há dúvidas que sente dor, muita.

Eu avanço devagar até ele, cautelosamente, o pé me mandando


alertas de dores cada vez que piso no chão frio. Ele abre os olhos apenas um
pouco, me encontrando seguindo em sua direção, e mira o teto antes de voltar
a apertar as pálpebras, parecendo pouco se importar comigo, o que é
ligeiramente estranho, já que eu esperava que fosse me mandar sair dali
correndo.

― Trevor...? ― eu diminuo mais um pouco o espaço entre nós e ele


engole em seco em resposta.

Dou mais um passo e alcanço a banheira, mirando a torneira aberta,


que ainda goteja ininterruptamente atrás de sua cabeça, estranhando aquilo
também... não era a torneira de água quente que estava acionada.

Debruço uma mão na água ao lado de seu peito e meus dedos


congelam no exato instante que a toco; miro outra vez Trevor e ele aparta os
lábios, sorvendo ar enquanto respira de maneira difusa, ainda de olhos
fechados.
O que estava acontecendo? Por que ele iria querer aquele banho
extremamente frio àquela hora da madrugada? O que Trevor tinha?

― Trevor...? O que você tem? ― volto a chamá-lo e ele parece se


esforçar para me olhar, o suor desce por suas têmporas e aquilo me deixa
temerosa. ― Trevor, eu vou ligar para o hospital e...

― No! ― ele segura meu punho subitamente, me impedindo de


recuar os passos, e me olha quase que suplicando para que eu não me mova, a
água da banheira ondula e esparrama, molhando meus pés. ― No, Ellie, no!
No voy al hospital... ― ele busca ar com dificuldade e eu me demoro
observando-o, entendendo como sua língua se mistura à nossa toda vez que
parece nervoso. ― Não vou ao hospital, Ellie. ― ele repete e compreendo
que traduz para mim, percebendo que não o entendo completamente, não
quando está falando rápido daquele jeito. ― Sem hospital... já estou
melhorando... ― ele tira sua mão de mim e submerge um pouco mais,
molhando seus cabelos e cruzando os braços com força.

Trevor treme da cabeça aos pés e eu não entendo qual dor que
precise daquele choque de temperatura, então me fita com os lábios
arroxeados e semicerrados, sem falar nada.

Eu pego uma toalha do armário e ele faz que sim com a cabeça
antes de começar a se levantar, como se precisasse reunir toda a força do
mundo para reerguer seu corpo. No entanto, assim que sai da banheira e
alcança a toalha em minhas mãos, cambaleia um pouco e eu o amparo,
ajudando-o a seguir até a cama, onde ele se senta, sem se importar de
encharcar tudo à sua volta.

Os pingos caem como cachoeira de seus cabelos por seu peito e ele
parece zonzo, mirando o chão enquanto segura com força a toalha embolada
sobre seu colo. Sua pele está arrepiada, os fios bagunçados, o olhar
completamente vulnerável e eu nunca o achei mais lindo desde que o vi pela
primeira vez.

Escondo dentro de mim essa constatação e pego outra toalha no


banheiro, me voltando para ele:
― O que você tem, Trevor? Eu ainda estou fazendo Enfermagem,
mas posso te ajudar em algo e...

― Dolor. ― sussurra e eu olho para baixo, sem saber de onde sei o


que ele quer dizer, mas sei. Dor. Trevor tem dor.

― Mas por quê? O que você tem? Eu posso te ajudar se você me


falar, Trevor. ― questiono, segurando minha respiração. ― É a mesma dor
que sentiu ontem?

Trevor não me responde e eu entendo que não vai me contar nada,


aquilo nada mais é que tempo perdido. Eu passo a toalha em seus ombros e
ele levanta os olhos para mim, me mirando. Eu o cubro com a toalha e ele
pisca lentamente, me observando como se analisasse cada um de meus
movimentos.

Meu pé se desloca para dar um passo para trás e deixar que ele se
seque no seu tempo, porém, em um movimento rápido, Trevor alcança minha
cintura com uma mão e me puxa para entre suas pernas, levantando o rosto e
me olhando debaixo para cima, as pestanas quase tapando toda sua íris negra.

— Por que comigo? — pergunta, quase sem voz.

Eu controlo minha respiração e sinto o nervosismo secar minha


garganta.
— O... o quê...? — quase gemo, minha voz mais baixa ainda que a
sua.

— Sua primeira vez... por que escolheu perdê-la comigo, Ellie? —


ele desvia os olhos rapidamente, parecendo brigar com alguma dualidade
dentro de seu peito. Aquilo me pega desprevenida porque eu não sabia que
ele iria dar mais importância à perda dela do que eu.

Eu nunca poderia imaginar. Nunca.


— Por que se importa? — pergunto debilmente porque sei que ele
não vai me responder, mas sua mão em minha cintura parece querer me dizer
tudo que eu precisava saber, mesmo que minha razão relutasse, me obrigando
a entender que aquilo nada mais era que fruto de minha imaginação.
Eu estava entendendo tudo errado, era óbvio que eu estava
entendendo tudo errado.

— Não deveria, não é mesmo...? — sua voz rouca sai baixa e ele
parece consternado, suas ações tão ambíguas que quase dá para perceber que
até ele mesmo se surpreende com elas.
Trevor inspira profundamente e continua me fitando, sem tirar seus
olhos dos meus um segundo sequer. Faço que não com a cabeça, quase que
imperceptivelmente, mas Trevor suspira baixo e suas mãos forçam mais em
minha pele.

— Não deveria, preciosa. No deberia. — ele conclui, respondendo


a si mesmo, e me solta, jogando as toalhas no chão e deitando-se na cama.

Eu o acompanho puxar o lençol e se cobrir ainda molhado, virando-


se para o lado contrário que eu estava no exato instante, mas o lado que eu
costumava me deitar. Vejo que mira meu travesseiro vazio por um tempo
antes de fechar os olhos e solto todo o ar que meus pulmões são capazes de
expirar antes de me deitar ao seu lado.

Não fecho os olhos, tampouco acalmo meu coração acelerado.

Sei que amanhece, pois posso vislumbrar a parca luz invadindo as


cortinas de meu quarto. Trevor esteve em silêncio durante todas essas horas,
mas eu não saberia dizer se dormiu, ainda que mantivesse os olhos fechados
enquanto eu encarava o teto.
Meu corpo inflama e, de alguma maneira — eu não saberia dizer o
motivo —, eu só conseguia pensar no que não terminamos. Apesar da dor que
senti, relembrar de como ele me pareceu selvagem entre minhas pernas me
excitava.

Ele havia rompido meu hímen completamente? A minha segunda


vez doeria tanto quanto a primeira? Engulo em seco sem acreditar que já
penso na segunda vez e sim, é com Trevor que eu penso. Eu me viro para ele
e sei que está nu sob aqueles lençóis, fecho meus olhos e imagino o seu corpo
por completo, rememoro ele se masturbando no navio e enrosco minhas
pernas, desejando ele entre elas.
Não penso mais, sabendo que quando se trata dele eu não queria
pensar, só fazer: em um movimento, tiro o lençol de cima de seu corpo e
monto em seu colo, acariciando seu pau adormecido.

Trevor abre os olhos, me encarando, e eu nem posso imaginar o que


se passa em sua cabeça, mas sei o que tenho na minha.

— O que está haciendo, Ellie? — me questiona com a voz


sonolenta e gosto tanto que misture o espanhol dessa maneira que me sinto
mais atraída ainda por ele naquele momento. Era perceptível quando não
conseguia pensar na tradução das palavras em sua mente; ele, sem nem
mesmo saber, me entregava sua vulnerabilidade toda vez que falava tanto em
espanhol comigo.
— O que não terminamos, Trevor. — tiro minha camisola pela
cabeça e meus cabelos caem sobre meus seios desnudos.

Trevor olha de meu rosto para eles e parece engolir em seco antes
de sussurrar:

— Estoy com dor, Ellie.


Espalmo minha mão em seu peito e prenso seu quadril entre minhas
coxas:

— Sim, eu sei, mas não é justo que só eu a sinta, não é verdade,


Trevor?
Trevor me mira, franzindo a testa, seus cabelos estão revoltos e ele
se demora, me analisando por completo, descendo seus olhos por meu corpo
nu e subindo de volta para meu rosto. Ele sobe com suas mãos pelos meus
braços e me força a abaixar até sua boca, sua língua umedece meus lábios, me
beijando com tanta força que eu seguro seu rosto e retribuo ávida.

— Então faz ele ficar duro pra você, Ellie. — ele murmura e guia
minhas mãos pelas suas curvas másculas, levando meus dedos até seu pau,
onde ele começa uma punheta, me ditando o movimento que gosta. Eu subo
meus olhos procurando os seus quando ele geme baixo, cerrando os lábios
com força, não sei se geme de dor ou prazer, mas o som selvagem, quase
como um rosnado, faz meu ventre pulsar em resposta.

Trevor espalma as mãos na minha cintura, me fazendo roçar de suas


coxas até suas bolas e eu sinto minha lubrificação me ajudar a deslizar em sua
pele. Ele morde seus lábios, fechando os olhos com força e urra baixo, eu
arregalo meus olhos para seu pau quando o sinto pulsar em minha mão,
crescendo cada vez mais.
Trevor desce com as mãos pelo meu quadril, aperta minha bunda e
me faz esfregar em seu pau, molhando-o completamente, então coloca suas
mãos sobre as minhas, apertando-as, e eu fico impressionada com a força que
ele impõe, quase estocando seu pau com brutalidade.

— Carajo... — escuto o som rouco e gutural saindo de sua garganta


e ele morde seus lábios, encarando o teto, cada estocada mais forte que a
outra, minha mão quica em seu pau e seu corpo se revira abaixo do meu.

Ele se estica, pegando a camisinha de cima da mesinha de cabeceira


e rasga a embalagem com os dentes, cuspindo um pedaço dos lábios e
enfiando o preservativo com agilidade em seu pau, como se não pudesse
perder tempo.
— Senta em mim. — ele ordena, tirando meus dedos dele e eu me
debruço sobre os joelhos, erguendo meu quadril e me sentando devagar onde
ele pede.

Trevor força minha cintura para baixo e eu ofego conforme o sinto


me penetrar aos poucos, tortuosamente, seus dedos vão para meus seios,
apertando-os forte, tão forte que me faz gemer seu nome antes de ele subir
sua mão pelo meu colo e apertar minha garganta.

Desta vez não é com força, mas a pressão é suficiente para que eu
desça meus olhos para os seus e os veja semicerrados me encarando, a boca
mordida em meio a outro gemido. A cada estocada forte que ele me dá, sinto
dificuldade em respirar, seus dedos apertam com mais força em volta de meu
pescoço enquanto murmura palavras incompreensíveis em espanhol, mas
quando penso em me livrar de suas mãos, ele me puxa para um beijo,
espirando entre meus lábios.
Eu sorvo o ar que ele assopra em minha boca e ele aproveita para
dar uma estocada forte dentro de mim, me fazendo gritar.

Trevor me abraça, me pressionando contra seu pau, me fazendo


afundar na penetração, eu grito outra vez e ele me rola no colchão, se
debruçando sobre mim e segurando meus braços acima da cabeça. Eu o
enlaço com as minhas pernas, o forçando contra mim, seu corpo suado
escorrega entre minhas coxas e ele impulsiona o quadril novamente, beijando
minha boca e sufocando outro de meus gritos.

— ¿Tú también estás sufriendo, preciosa? — ele mordisca meus


lábios. — ¿Te gusta el dolor, también, Ellie?
Eu o encaro sem entender tudo que pergunta e ele enlaça nossas
mãos, espalmando-as nos travesseiros acima de minha cabeça, seu corpo se
move para cima e para baixo, para fora e para dentro de mim, meus seios são
esmagados por seu peito e ele se curva e os chupa, roçando os dentes nos
mamilos, sem disfarçar o quanto quer me fazer sentir a mesma dor que sente.

Sim, era isso que ele me perguntava... eu compreendo... se eu


também estava sofrendo... se eu também gostava da dor...

Quando volta a me encarar, noto que o prazer se mistura à dor em


seu corpo tanto quanto ao meu, ele sorri de um modo sensualmente perverso
e me beija com força, arranhando meus lábios, me sugando com desejo e
raiva, seu pau se aprofunda em mim outra vez e eu sinto que minha buceta o
aperta, sinto os espasmos contraindo e forçando seu pau para dentro de mim.
Trevor ofega muito alto, quase urrando, e o sinto pulsar em resposta
no mesmo segundo que o vejo tentar tirar o pau de mim, se impulsionado
para trás num gesto abrupto. Eu o detenho com minhas pernas enlaçadas e ele
me encara em meio ao seu orgasmo dentro de mim, sorvendo ar e expirando
quase que ao mesmo tempo, o cenho franzido, me olhando por tantos
segundos que meu corpo amolece sob o dele.

Então, sem falar nada, ele solta minhas pernas já sem forças de sua
cintura e se joga ao meu lado, tirando a camisinha e a jogando ao chão,
tapando o rosto com o antebraço.

Eu ainda fico por alguns segundos o encarando antes de me levantar


e me trancar no banheiro.
Desta vez tenho certeza que girei o trinco da porta antes de ligar o
chuveiro para abafar meu choro.
11

Deitei no sofá me enfiando entre as cobertas, pronto para estudar


um pouco toda a matéria da semana, mas fui interrompido por Maria, que
outra vez passou por mim na sala, toda sorrisos, toda serelepe, e eu já não
aguentava mais aquilo.

Já era lá para a décima vez que ela saltitava pela sala me olhando,
o gorro afundado em sua cabeça, tentando esconder que ali não restava mais
nenhum de seus cachos, o cachecol de coraçõezinhos rosa enrolado no
pescoço e o conjunto de moletom largo em seu corpo magro. Ainda assim,
estranhamente, ela sorria sem parar e nada me lembrava a garota que
consolei há menos de um mês.
— Caramba, Bee! Fala logo o que você quer! É uma nova onda de
seus remédios?
Ela se sentou ao meu lado num pulo, ignorando minha cutucada
ácida. Hoje eu tinha recebido uma prova com uma nota baixa — a primeira
em toda minha vida! — e ainda por cima levado um fora da garota que eu
estava afim há meses... eu não estava muito bom para qualquer coisa a não
ser ficar quieto na minha, e até minha irmã estava me tirando do sério, o que
revelava meu péssimo humor.

— Você ainda é muito amigo do Mathias, Mi?

— Somos sim... E daí? — continuei a ler o livro, já sabendo o que


vinha por ali, não era nenhuma novidade, Mathias, assim como eu,
costumava massacrar alguns corações no colégio e não era nenhum segredo
que minha irmã sempre espichava os olhos para ele quando ele vinha em
casa, o que não acontecia mais muito nos últimos meses.

Bem, se ela queria falar sobre aquilo, tinha me encontrado num dia
errado, pela primeira vez eu tinha levado um toco de uma garota e não
estava muito afim de papo, quanto mais sobre garotos ou garotas.

— “E daí”? — perguntou fingindo estar chocada com meu desdém.


— Ele é um gato, Miguel!
— Não sei, Maria, é?!

— Muito, Mi, não é pouco não. — ela bateu os cílios, apaixonada, e


eu revirei meus olhos. — Olha só, estava pensando que podíamos fazer um
programa juntos, não sei, ir ao cinema ou você chamá-lo aqui... — ela jogou
suas pernas para cima das minhas enquanto recostava no braço da poltrona.
— Sei lá, ele podia conhecer sua irmãzinha aqui melhor, hein?! — sugeriu
maliciosamente enquanto bocejava.

— Maria, não estou gostando do rumo que essa conversa está


tomando... Cai fora que quero continuar estudando, você está me
atrapalhando.

Ela riu descaradamente e, quando achei que ela ia me obedecer,


começou a cutucar minhas pernas, puxando meus pelinhos. Lá vinha mais e
eu simplesmente fechei meu livro, a encarando de volta.
— Ah, vaaaai... Miguel, tenha dó de mim! Deixa sua irmã dar uns
beijinhos na boca antes de morrer!

O livro escorregou de minhas mãos e imediatamente me senti


zonzo, eu me ajeitei entre as almofadas e tentei focar o rosto de minha irmã,
sem aparentar o quanto sua revelação doeu minha alma. No entanto, antes
de eu conseguir formular algo em resposta, ela pegou uma almofada e a
jogou em meu rosto:

— Eu não quero morrer virgem, Miguel!


Eu acompanhei apenas com o olhar a almofada rolar pelo meu
peito e cair no chão, sem esboçar qualquer reação, ela deu um muxoxo e fez
um beicinho:

— Daqui a dois meses vai ser minha quinceañera e eu nem nunca


beijei um garoto! Vou morrer virgem de tudo!

— Nunca mais fale isso, Maria... — minha voz saiu tremida.


— Ah, larga de ser ciumento, Miguel. Eu mesma sei que você não é
mais virgem! Nós temos a mesma idade, Mi, acha que não tenho vontade de
trans...

— Nunca mais fale que você vai morrer! — interrompi-a,


aumentando o tom de voz e a encarei, desejando que ela tenha me entendido
de uma vez por todas.

Ela se aquietou por um segundo, piscando lentamente para mim.


Então, deu de ombros:

— Mas eu vou, Mi... A cada dia pioro mais...

— Não, Maria, não! — não queria ouvir. No entanto muito mais do


que isso, não queria que ela falasse. Não queria que ela falasse nunca mais
aquilo, nem para mim, nem para si mesma.

Maria joga outra almofada ao chão, desta vez me olhando com


cara de poucos amigos:

— Não importa então, Miguel, simplesmente não importa se eu vou


morrer ou não! Eu quero beijar na boca, eu quero sentir tudo isso que eu
vejo nas novelas. Todas as minhas amigas já transaram, eu vou fazer quinze
anos e nem nunca fui beijada!
Empurrei as cobertas para o lado, pegando em seu braço:

— Isso não se força, Bee, simplesmente acontece. Não tem que


apressar as coisas, Maria! Vai acontecer quando tiver que acontecer e vai
ser especial.

— Aconteceria se eu não estivesse doente, Miguel! — ela fechou a


boca, segurando o choro. — Os meninos me olhavam antes porque me
achavam bonita, agora me olham porque têm pena e eu não sou idiota,
Miguel! Mathias é um deles, Mi! Ele vivia aqui em casa e do nada
desapareceu, você não percebeu? Ele vivia soltando cantadas para mim e
agora... nem consegue me olhar direito quando estamos sozinhos! — ela
reprimiu um soluço e eu engoli minha saliva, sem saber o que falar em
resposta. — Eu sonhava que seria especial, eu acreditava nisso, de contos de
fadas... mas sério Miguel, sério?! “Quando tiver que acontecer”?
“Quando”? Eu não tenho tempo sobrando, caso não tenha reparado,
Miguel! Nunca vai ser especial... eu só... só queria saber como seria... não
queria morrer sem saber como é... mesmo que não seja como sonhei...

Ela tirou as pernas de cima de mim, sorrindo de maneira triste, e se


levantou, pegando meu livro no chão e o atirando de volta para meu colo:
— Deveria ser especial para toda garota, Mi. — ela balbuciou. —
Deveria ser bonito e especial... A gente deveria se sentir amada, sabe...? —
outro engasgo interrompeu suas palavras e ela tirou o gorro, revelando a
cabeça lisa. — Mas como vou saber?

Sem que eu pudesse respondê-la, ela saiu da sala batendo a porta


do nosso quarto atrás de si e eu me senti o pior irmão do mundo, todo
revoltado porque uma garota tinha dito “não” para mim, sendo que eu tinha
a vida toda para conquistar mais um monte delas...

Engulo em seco, socando minha cabeça, não, Miguel, não! Bee


também terá toda a vida para isso, toda a vida para quebrar o coração de
muitos babacas, de encontrar o cara certo para tudo aquilo que ela desejava,
não... não seria assim como ela falou, porra, não!
Pulei do sofá, enterrando meus joelhos no chão e soquei as
almofadas com uma raiva que consumia toda a minha alma, condenando
Deus por toda a tristeza que acometia minha família, mas principalmente
pelo linfoma que crescia cada vez mais no pequeno corpo de Maria. Como
Ele ousava fazer isso com uma garota tão doce e delicada como ela, por que
não tinha escolhido a mim? Por quê? Nós éramos gêmeos e dividíamos toda
uma carga genética, por que ela que tinha que ter sofrido com qualquer
merda e não eu?

Enfiei minha cara nas almofadas e solucei, tentando abafar meu


choro, eu não queria que minha irmã me ouvisse, eu não queria que ninguém
além de Deus soubesse como eu me sentia em pedaços, como Ele tirava
minha metade dia após dia, lentamente, como um castigo do qual eu não
fazia a mínima ideia do motivo de merecê-lo! Eu O odiava tanto que não
podia mais ouvir Celeste rezando, implorando dEle a salvação de minha
irmã!

Eu O odiava com todas minhas forças, mas me odiava mais ainda


por não acreditar mais nEle. Se existia realmente um Deus, Ele nunca
machucaria minha Bee. Eu odiava Deus por me tirar minha crença e ainda
por cima querer me tirar minha irmã... enxuguei minhas lágrimas e olhei
para o crucifixo pendurado em cima da televisão da sala, as palavras
deslizando por meus lábios, sem refreá-las:
— Se você realmente existir, me leve no lugar dela... se tirar ela de
mim... nunca mais acreditarei em você...

O silêncio me retornou como sempre e eu funguei, me levantando


do chão sem forças.

Olhei para o relógio e levei um susto quando vi que já eram quase


onze horas da noite. Passei pelo quarto de meus pais e vi a cama vazia, meu
pai outra vez trabalhando horas a fio, sem hora para voltar para casa... para
sua família.

Bebi um copo d’água me sentindo completamente sozinho naquela


casa... todo dia parecia que eu precisava sustentar os laços daquela família...
ainda que aquilo me tirasse as forças.

Eu só não sabia que tinha perdido minha família muito antes mesmo
da partida de Maria.
Acordo percebendo a cama vazia, mas não me importo de verdade
com aquilo; não esperaria outra coisa, ter Ellie nunca foi ter a cama quente.
Eu não tinha intenção de confundir as coisas, por mais que toda a revelação
de ontem tivesse mexido comigo de alguma maneira, ainda mais somado ao
pesadelo que tive com Maria.
Aquilo seria enterrado dentro de mim, invariavelmente. Bien
enterrado en mis entrañas... Eu não estava ali para ter empatia por qualquer
um dos Kane. Nem cogitava isso.

Tomo um banho demorado sentindo meus membros tensos e


doloridos, visto não só um terno limpo, como o escudo que preciso para me
manter em meu objetivo. Ignoro a sensação estranha que senti em meu
sangue ontem, quando Ellie “cuidou” de mim, perplexo em como uma garota
como ela poderia nem sempre soar esnobe como um Kane.

Desço as escadas já percebendo a movimentação estranha em um


domingo, olho meu relógio constatando que não eram nem oito horas da
manhã, mas antes mesmo que eu pergunte a qualquer um dos empregados o
que está havendo, Desmond sai do seu escritório, colocando seus óculos
escuros:
— Pronto para irmos para os Hamptons, Trevor?

Franzo meu cenho para ele, sem entender o teor de sua pergunta, e
ele, na mesma hora, percebe o estranhamento, apontando para um dos
empregados que carrega sua mala porta afora:
— Ellie não te falou que sempre passamos o 4 de julho na nossa
casa nos Hamptons?

Continuo com a sobrancelha erguida, avistando Sophia desfilando


em um vestido curto reclamando sobre alguma coisa enquanto sai pela porta
ao encalço de alguma de suas muitas malas sendo carregadas pelos
empregados.
— Vamos hoje porque temos um jantar e amanhã comemoraremos
com alguns amigos. — ele complementa, seguindo pelo corredor. — Arrume
suas coisas, Trevor. Não gosto de me atrasar e você sabe disso. Saímos em
quinze minutos.

Ellie entra pela sala na mesma hora em que o pai sai e vejo que está
com os cabelos despenteados, vestindo um robe sobre a camisola ainda,
Desmond reclama mais alto, berrando que não acredita que ela não está
pronta, e vislumbro que sua filha revira os olhos ao mesmo tempo em que
sobe os degraus ao meu lado, se adiantando pela escada até o quarto.

Eu a sigo, encontrando a porta da suíte fechada, o barulho do


chuveiro ligado. Arrumo uma meia dúzia de roupas dentro de uma mala
pensando no motivo que a fez não me contar sobre essa pequena viagem,
imaginando se iria sem mim caso eu não acordasse, se inventaria uma
desculpa para minha não presença ao pai, no entanto quando ela sai do banho,
nem dez minutos depois, vestindo um short e camiseta, cabelos molhados e
sandálias rasteiras, eu me calo, sem saber se queria arrumar outra briga.
Apenas um dia de descanso, mi cuerpo e minha mente precisavam
de um descanso.

Contudo, como se o destino quisesse me fazer entender que nada


era mais importante que acabar com aquela família, meu telefone toca em
cima da mesinha e antes mesmo que eu apague a tela, o nome de Abby
Gabner aparece na chamada e os olhos de Ellie rapidamente se direcionam do
celular para mim em interrogativa.

Ignoro sua pergunta antes mesmo de ela fazê-la e saio do quarto


carregando minha mala.
Trevor não quis ir com o motorista de meu pai ou com o meu, então
seguíamos viagem em seu Porsche, a capota destampada e o vento fresco
daquela manhã ensolarada secando meus cabelos, porém o nome de Abby em
seu celular me revirava o estômago, eu não podia imaginar como se
conheciam ou o que o contato de minha amiga fazia na agenda de seu celular.

Tiro minhas sandálias e apoio meus pés no painel do carro,


prendendo meus cabelos, tão curiosa com aquilo quanto com a Maria que
apareceu em seus sonhos.

— Em que mais você está mentindo para mim?


Trevor vira seu rosto imediatamente e seus olhos analisam os meus
em busca do motivo de minha pergunta.

— Mentindo...? — suas mãos se apoiam ao volante, mas Trevor


continua dividindo sua atenção entre mim e a estrada. — Do que está
falando?

— Abby é minha amiga. Ela nunca me falou de você, Trevor. E se


você a conhece, obviamente sabe que ela é minha amiga, e de qualquer
maneira é estranho que nunca tenha falado dela para mim. — ele abre a boca
para me responder, mas eu interrompo. — E quem é Maria?
Trevor cala qualquer desculpa que lhe venha à mente antes mesmo
de ousar dizê-la, mas percebo os nós de seus dedos apertarem com força o
volante.

— Conheço Abby de uma reunião com Desmond e o pai dela, Ellie.


E não sei de quem está falando, não conheço nenhuma Maria. Ninguna
Maria.

— Eu mereço algumas respostas, Trevor. — devolvo rapidamente.


— E por que acha que merece algumas respostas, preciosa? Só
porque me entregou sua virgindade? — ele me olha rapidamente e eu vejo o
sorriso debochado em seus lábios.

É como se eu recebesse um tapa, dói como se eu recebesse um tapa,


e aquilo me impressiona, as palavras dele nunca deveriam surtir esse efeito
em mim e não entendo o motivo de me sentir tão ofendida.

— Porque sou sua esposa. — respondo secamente para que ele


perceba que falo muito sério e ele acelera um pouco o carro, voltando a se
concentrar na estrada.
— Pergunte o que quiser, então. Vou te responder.

— Não, esquece. — volto o rosto para a janela e desço meus pés do


painel, tão cansada que mal me lembro do corte marcado em minha pele, nem
a dor nele era uma lembrança de que Trevor era um bom homem quando
queria. Tirar o caco do meu pé deveria apenas ter sido um reflexo do qual ele
estava arrependido, depois de tirar, a contragosto, minha virgindade.

Ele devia ter pena de mim, sim, era isso, mais um que devia ter pena
da coitada da Ellie Kane, e imediatamente me lembro do olhar complacente
da empregada antes de limpar a xícara espatifada por meu pai.
Tiro a franja que açoita meu rosto e tento prendê-la atrás de minha
orelha, pensando no homem que parecia vulnerável naquela banheira ontem...
aquele homem era o mesmo que se encontrava ao meu lado? Trevor não era
um bom homem, eu não estava casada com um bom homem, apenas com um
homem numa busca implacável por poder ao se casar com uma Kane com a
benção de meu pai.

Um filho perfeito para Desmond, mais parecido impossível!

— Anda, Ellie, vamos, faça suas perguntas! Pode começar la


inquisición!
— Não, muito obrigada... algo me diz que não vai ser sincero, outra
vez... — eu me viro para ele, desviando minha atenção da janela, e paramos
em frente à uma placa de PARE, uma senhora atravessa com algumas
crianças e só então percebo que já chegamos nos Hamptons.

— Vamos passar dois dias na aclamada casa de veraneio de su


padre, Ellie. Vai ter a honrosa chance de conhecer su esposo mejor. Não se
preocupe, — ele pisca para mim. — vou mostrar um lado meu que ainda não
conhece, preciosa. — diz somente e volta seu rosto para frente. E eu finjo
não aparentar que não gostei do modo como anunciou aquilo, como se...
como se... inspiro fundo, tentando afugentar minhas caraminholas.

Não... aquilo não era uma ameaça...


A rua fica livre e ele acelera, seguindo em frente.

Nós dois em silêncio.


12

Eu me sento à espreguiçadeira na varanda de casa e olho o mar, as


ondas baixas e a espuma em tom terroso.

Desmond e minha mãe conversam com alguns amigos na sala e eu


coloco o fone em meus ouvidos, querendo ficar só com meus pensamentos.
Trevor passa em meu campo de visão, caminhando lentamente pela praia,
seus pés descalços levantando a areia, a camisa branca de botão aberta
revelando sua costela conforme o vento o atinge, os cachos desformes para
um lado de sua cabeça, uma bela bermuda cargo cáqui.

Eu ainda não o tinha visto com roupas mais informais, tirando, é


claro, a manhã na piscina no cruzeiro e, se ele tirava meu fôlego de ternos e
gravatas, eu entendia que assim, como ele está agora, que realmente revelava
sua beleza, o contraste de sua pele morena naquela roupa clara, seus cabelos
dançando ao vento... eu me levanto e me debruço na cerca de madeira que
margeia o deck da casa e tiro meus óculos escuros, colocando-os em meu
decote.

Ele se senta, trazendo os joelhos para o peito e cruza os braços nas


pernas, olhando o oceano. Tínhamos chegado na casa de veraneio da família
há pelo menos duas horas e minha mãe só falava de um jantar à noite com
amigos, meu pai ao telefone tratando de negócios, eu subi para nosso quarto
com Trevor, que observava cautelosamente cada cômodo que nos
encontrávamos, até sair pela varanda do quarto e ficar muitos minutos
mirando o mar, me fazendo desistir de estar em sua companhia.
Eu achava que ele ainda estava no quarto.

Espero mais um pouco por ali até decidir pegar uns cachos de uva e
seguir pela praia ao seu encontro. Eu me sento ao seu lado, ele me olha
rapidamente antes de voltar a fitar o horizonte, eu como uma uva e ofereço o
cacho a ele, que nega, sem falar nada. Olho os veleiros no mar e enterro meus
pés na areia, deixando que uma uva gelada e saborosa exploda entre meus
dentes:

— Tirando Enfermagem e desenhar, é uma das coisas que mais


amo.
Trevor vira um tantinho de seu rosto para mim e percebo que quer
perguntar do que estou falando, mas seu orgulho não deixa. Por que ele tinha
que ser assim? Custava muito se abrir um pouco?

Continuo:

— Velejar... ter meu destino em minhas mãos, eu mesma guiar meu


caminho, enfrentar a força do oceano... isso é poderoso.
Ele passa os dedos entre os cabelos e o vento trata de bagunçar tudo
de novo.

— Está me dizendo que gosta de desafios...? Isso não parece


combinar com você, Ellie.
Limpo minha garganta e engulo outra uva, umedecendo meus lábios
em seguida:

— Bem, estamos casados, não estamos? Acho que isso por si só é


um desafio constante... conhecer meu marido. — resmungo e um sorriso
indisfarçável ilumina seus olhos negros. Eu o fito de volta, franzindo o cenho.
— Você podia facilitar um pouco e não viver na defensiva, Trevor. Não sou
sua inimiga.

Seus lábios se curvam sutilmente como se ele não quisesse que nem
eu mesma percebesse que continuava sorrindo:
— Quem disse que não, preciosa? — fala em resposta ao meu olhar
interrogatório e eu pego outra uva, mastigando-a, aflita.

— Estou tentando ter uma conversa séria, Trevor. Isso pode ser, de
alguma maneira, comum para você ou para o mundo dos negócios, o que eu
realmente duvido muito, no entanto estar casada é um desafio e tanto para
mim, mas não mais que estar casada com você. É como se eu desse um passo
e recuasse três, sempre.

Ele não fala nada em resposta e parece me analisar em silêncio. Eu


enfio duas uvas ao mesmo tempo em minha boca e suspiro, resignada. Trevor
volta a olhar o mar e eu bato uma mão na outra, secando-as, os
questionamentos fervilhando em minha cabeça.
— O que você precisa saber sobre mim, Ellie? — Trevor pergunta
de repente. — Se gosto de macarrão ou sorvetes, se gosto de loiras ou
morenas, mar ou campo...? — ele se vira para mim. — Acha que realmente
vai conhecer uma pessoa sabendo desses detalhes? Acha que me conhecerá
porque sabe que gosto de foder com força e não fazer amor? — ele rebate e
sou sugada por minhas inquietações. — Você acha que realmente conhece
uma pessoa ou o que ela quer que você conheça? — Trevor se volta para o
mar outra vez. — Você pode viver anos com alguém e mesmo assim se
surpreender com elas, preciosa.

Descanso minhas mãos na areia e pego um punhado delas com as


mãos, vendo os grãos escorrerem entre meus dedos. Olho os barcos passando
pelo horizonte, algumas crianças entrando no mar, uns casais namorando
perto das ondas, suspiro baixo... meus pais não me conheciam... não me
conheciam de verdade e talvez eu mesma não os conhecesse.
Nem Lennox sabia tudo de mim... nem eu mesma sabia tudo de
mim, constato, me lembrando de como eu mesma me surpreendi na noite
anterior, montando no colo de Trevor.

— Talvez as coisas fossem mais fáceis se você simplesmente me


deixasse conhecê-lo... — reforço ainda assim, não era possível que
seguiríamos sempre por aquele caminho. — Ficaremos casados até quando,
Trevor? “Até que a morte nos separe”? Vamos ser sempre assim um com o
outro? — comprimi os lábios, me surpreendendo com a saída fácil de meus
questionamentos. Qual poder de Trevor me desafiava tanto a ser quem eu não
me reconhecia ser?

Ou novamente, eu não me conhecia o suficiente...?


— Estamos em um matrimônio por negócios, Ellie. — ele retorna e
parece cansado. — Gostar um do outro não está no “contrato”.
Inspiro com dificuldade:

— Então é isso? Meu destino é nunca me casar com alguém que eu


ame porque estou presa a você?
— Talvez você se livre de mim antes do esperado. — ele murmura,
voltando seu rosto para o mar.

— O que quer dizer com isso? — debruço sobre meus joelhos e o


encaro. Ele sorri sem ânimo e nega com a cabeça:

— Apenas que os negócios podem voltar aos eixos e... você siga
seu caminho e eu o meu. — me responde, mas não acho que tenha sido
convincente o suficiente, não sei, algo em suas palavras, no modo como as
diz, na escolha pensada em cada uma delas antes de falar, não sei... relembro
de quando esteve vulnerável e o espanhol escorreu por seus lábios com
naturalidade... aquilo contrastava grotescamente com a artificialidade de seu
inglês.
— Pelo menos Patrick foi sincero quando disse o que achava de
mim... — bufo, começando a me levantar, mas sou retida no mesmo lugar
quando Trevor segura meu punho:

— O moleque que deu uma entrevista dizendo o quanto você é sem


graça? Ainda acreditando em aparências, Ellie? Acha mesmo que ele não via
sua beleza, como és hermosa? Tudo que ele queria com você era status, Ellie,
não se engane.

— Não muito diferente de você, Trevor. Ou se casou comigo por


amor?
— Pelo menos estou dizendo por que me casei, Ellie.

— Não. Não é tudo. — tiro seus dedos de mim. — Você diz que é
tudo, mas sinto que não é tudo.

— É tudo que precisa saber.

— E ser surpreendida como fui por Patrick quando ele me bateu? —


nem eu mesma sei como aquilo sai de meus lábios... eu... eu nunca tinha
falado sobre aquela noite, nem com Lennox, com ninguém mais, eu nem
ousava pensar, me lembrar. Trevor me encara e eu desvio meus olhos para a
casa de meus pais, vendo minha mãe beber um drink no deck em um
minúsculo biquini, nos observando de longe.

— Ele... — Trevor hesita e se interrompe, absorvendo a informação.


— Ele te batia?

Suspiro e seu olhar consternado se deposita em suas mãos


segurando com força meu punho.
— Uma única vez, um soco no rosto. Fui direto para a polícia e
denunciei. — fecho os olhos e inspiro profundamente o ar. — Mas meu pai
me obrigou a retirar a denúncia.

— Você não pode estar falando sério... — o esfregar de seus dedos


em minha pele trai seus sentimentos, apesar de ele se manter calado quando
afirmo com a cabeça o quanto estou falando sério. — Nunca mais ele te bat...

— Não. — interrompo-o, sem saber se digo toda a verdade, mas


quando vejo, mesmo envergonhada, conto do que fui capaz. — Eu... eu
continuei namorando ele pelas próximas semanas... e então, então... ele
terminou comigo, disse aquele monte de coisas, você sabe... você leu a
matéria.
Trevor ainda se demora me olhando e percebo que segura as
palavras, mas não as emoções, que transbordam disfarçadamente pelos seus
olhos, ainda que relute.

— Por quê? Por que ficou com ele? Por que retirou a queixa?

Baixo meus olhos em direção aos meus pés enterrados na areia,


tentando dizer em palavras o que não consigo nem sequer entender em meu
coração:

— Meu pai... Desmond disse que um escândalo desse abalaria a


reputação da Kane, afinal Patrick é um dos conselheiros da empresa e... e...
— sinto os grãos arranhando meu corte, mas não ligo, quase gosto daquele
incômodo em minha pele, me lembra que sou real, que minhas dores são
reais. — ...e ele disse que se eu não fosse assim — aponto para mim mesma.
— teria evitado aquilo.

— “Assim”? Assim como, Ellie?


— Se eu fosse mais como minha mãe e menos como... eu.

Trevor continua me mirando, um olhar diferente, eu não sabia


reconhecer o que queria me dizer... Não entendia qual sentimento era aquele
que seus olhos me diziam e na verdade nem tentava ousar adivinhar. Trevor
era uma incógnita desde a primeira vez que nos vimos e não seria diferente
agora, nem quando levanta a mão em direção ao meu rosto e passa os dedos
pelos meus cabelos, parecendo me analisar profundamente em seu silêncio.

Em seguida, entrelaça seus dedos no meio de meus fios bagunçados


e puxa meu rosto, me fazendo aproximar do seu:
— Você não é como eles, é, preciosa...?

Abro minha boca para responder, mas uma lufada de areia me


atinge os ombros, me fazendo recuar assustada. Desvio meus olhos em
direção à sombra que nos tapa e encontro minha mãe com uma mão na
cintura, o azul turquesa do biquíni minúsculo deixando pouco para a
imaginação:

— Você é muito branca para esse sol, Ellie. Sua pele vai ficar
horrível, devia ter ficado na varanda sob a sombra. — ela joga os cabelos
fartos para trás de seus ombros revelando o maxicolar combinando com o
biquíni, Trevor sobe os olhos por seu corpo e esse movimento não me passa
despercebido. — Vai ficar com manchas avermelhadas no jantar, Ellie!

Imediatamente cruzo meus braços, como se pudesse fazer um


escudo imaginário, mas Trevor estreita os olhos para minha mãe, pegando em
meu braço novamente:

— Estou cuidando de minha esposa, Sophia, mas agradeço a


preocupação. — ele se levanta e me iça no movimento seguinte, minha mãe
olha de mim para ele, que a ignora, sorrindo para mim: — Quer entrar e
beber algo, preciosa?

Faço que sim com a cabeça, não conseguindo deixar de notar o


olhar amargurado que minha mãe lança para a mão de Trevor quando ele
entrelaça seus dedos nos meus e seguimos pela areia em direção à casa,
deixando-a falando sozinha.

Não posso negar que, apesar de me sentir culpada, um sorriso de


contentamento cresce em meus lábios.

O sorriso morre logo em seguida quando entramos em casa e Trevor


me larga para se reunir com Desmond, os dois somem no escritório pelas
infindáveis horas seguintes e eu retorno para a varanda, levando um caderno
de desenhos comigo, passando o restante do dia sozinha.

Começo um esboço reunindo tudo que sei de meu marido: sua


descendência espanhola e americana, duas faculdades, um acidente que
matou seus pais... qual? Encosto a ponta do lápis em meus lábios e tento me
lembrar se ele havia me dado alguma informação... Acho que ele não entrou
em detalhes, não sei se morreram em um acidente de carro ou... não, não
fazia ideia.

Será que que Trevor estava nesse acidente e por isso as dores
insuportáveis? Teria afetado sua coluna ou algo do tipo?

Volto com o lápis no papel e o vento tenta virar as páginas enquanto


esboço um desenho grosseiro e mal feito, fico tentada a arrancar a folha e
amassá-la, mas apenas fecho o caderno e me levanto, calçando minhas
sandálias quando o pôr do sol desponta no horizonte, seguindo para meu
quarto com o intuito de me arrumar logo para o tal jantar e receber os
convidados que passariam o 4 de julho conosco.

Não consigo sustentar o sorriso em meu rosto enquanto vejo Patrick


e Abby entrando pela nossa sala com seus pais.

Richard e Barbara Gabner me cumprimentam polidamente, como


sempre, e seguem para a sala de jantar ao lado de Desmond, Patrick me olha
de cima a baixo e sorri antes de ir atrás deles, ajeitando sua gravata com um
andar presunçoso, como se minha casa fosse sua.
— Amei seu vestido!

Olho para o lado e dou de cara com Abby, sentando-se ao meu lado
no sofá.
— Alex Perry. — passo os dedos pela alça e levanto minha
sobrancelha, me gabando por usar uma coleção exclusiva que nem fora
lançada ainda pelo estilista. Normalmente não tenho esse tipo de atitude, mas
ver seu nome no celular de Trevor me impelia a querer me posicionar um
pouco diferente naquela noite.

— Jura? — ela sorri, incrédula, a inveja destilando em sua boca.


Abby Gabner nunca conseguia disfarçar suas emoções e, por mais que fosse
minha amiga mais antiga, não se dava ao trabalho nem de tentar refrear a
sensação que eu tinha que ela queria tudo que eu possuía. — Alex Perry? De
qual coleção?

Respiro fundo, me levantando do sofá e me encaminho para a sala


de jantar, pensando no paradeiro de Trevor, não o tinha visto desde que desci
arrumada de meu quarto e encontrei Desmond pronto para o jantar.
Eu me sento à mesa e noto que minha mãe também não está ali,
meu pai fala sobre negócios com Patrick e Richard, Abby pega uma taça de
vinho e estica os olhos pelo cômodo, parecendo procurar algo, ou alguém,
aliso o guardanapo, desconfortável com o rumo de meus pensamentos.

Minha mãe chega na sala esbaforida, prendendo o colar de pérolas


em seu pescoço e noto que alguns fios escapolem por seu penteado, ela abre
um grande sorriso ao nos ver e emenda uma desculpa sobre seu atraso,
dizendo que não encontrava sua joia, que estava em uma mala esquecida
pelos empregados no carro, revira os olhos ao falar mal da governanta e todos
sorriem para sua bela presença, mesmo que ela os fizesse esperar por horas.
Deslizo meus dedos pela seda de meu vestido em um tom de ouro
envelhecido e coço minha coxa, minhas unhas arranhando minha pele, cruzo
minhas pernas e me remexo na cadeira, olhando para a porta da sala em
expectativa à chegada de Trevor logo que escuto o ressoar de sapatos, no
entanto a governanta entra com uma bandeja de prata e meu peito encolhe em
desassossego.

Desmond olha o relógio e Richard comenta algo em voz baixa,


Sophia e Barbara riem alto de alguma gracinha que Abby fala e Patrick limpa
a boca arroxeada pelo vinho, me olhando com calma, sua língua passa
vagarosamente pelos lábios esboçando um sorriso malicioso em seguida.
— Desculpe pelo atraso!

Viro meu rosto em direção à porta e encontro Trevor, vestindo seu


paletó ao entrar pela sala, as maçãs do rosto avermelhadas, o nó da gravata
visivelmente torto e feito às pressas. Desmond o encara em desagrado e,
sinceramente, quem o olha agora não acredita que esse é o homem que disse
para sua própria filha que queria Trevor Willians no lugar dela.

Parece que sua paciência se limita apenas à perfeição de Trevor e


não gosta nem um pouco de ver que seu pupilo tem defeitos como um mero
mortal. Sorrio disfarçadamente ao beber um gole de vinho, sem acreditar no
quanto me era prazeroso presenciar àquela cena... saber que eu não poderia
chegar à posição perfeita que meu pai almeja nem que eu quisesse... que nem
seu pupilo amado poderia... ninguém poderia... nada no mundo era tão
perfeito quanto a si próprio e a mamãe... e no fundo aquilo era reconfortante.
— Eu estava falando ao teléfono com um posible investidor. —
meu marido avisa, falando rapidamente, e se senta sem demora ao meu lado,
meu pai amassa o guardanapo em cima da mesa e crava seus olhos em
Trevor:
— Sem essa maldita língua aqui, Trevor! — vocifera, empurrando
sua taça para frente, ela oscila e derrama um pouco de líquido tinto na toalha,
eu o fito, assustada com sua reação. — Acha que somos obrigados a entender
alguma coisa do que disse?

Trevor se empertiga na cadeira e vejo seu maxilar tenso, as mãos


pairam por um segundo em cima da gravata antes de ele consertá-la quase
que mecanicamente, os olhos presos ao meu pai. Todos estão calados, mas
ainda assim consigo ouvir a risadinha baixa que Patrick nem se preocupa em
disfarçar, meus olhos vão de seu rosto distorcido em júbilo para os olhos
negros de Trevor, que o encara antes de limpar a garganta e se direcionar de
volta para meu pai:
— Desculpe, Desmond. Não vai se repetir. — entoa sem qualquer
emoção e meu pai nada fala em resposta, voltando-se para Richard e
começando algum assunto de negócios. Olho Trevor e ele ainda parece
nervoso, a mão sobre a gravata ainda, seus dedos apertam o tecido, posso ver
as veias do punho saltadas, a raiva estampada em seu semblante.

Imagino se alguma vez foi o foco da raiva desmedida e sem sentido


de meu pai e como deve estar se sentindo agora... decepcionado, talvez...? Ou
ainda idolatraria Desmond Kane a ponto de engolir seu orgulho?

A janta é servida e o silêncio subserviente de Trevor me responde...


uma resposta tão conhecida por mim durante todos os meus anos de vida.
13

Todos estão na varanda com drinks e minha garganta fecha, a taça


de vinho intocada em minha mão. Raiva é pouco para o que estou sentindo, a
ira inflama mi sangre e tenho que segurar todos meus instintos para não pular
em cima de Desmond e degolá-lo ali mesmo, em frente à sua família e seus
convidados.

Deslizo a faca no bolso de meu paletó e meus dedos escorregam


pelo lado cego da lâmina, inspiro fundo e expiro com força, fechando meus
olhos por um segundo antes de devolver a faca à mesa, aquilo nunca
aconteceria, nunca.
Ando em direção à varanda, mas Abby me intercepta no caminho,
suas mãos pegajosas seguram meu paletó e eu desço meus olhos para seu
rosto patético, os olhos estão amuados e piscam lentamente no show sensual
e particular que interpreta para mim:

— Por que não me atendeu?

— Não tenho que te atender, Abby... — retorno, bebendo um longo


gole da taça, olhando através da porta, o receio que qualquer um nos flagrasse
naquele exato instante.

— Atendia até se casar com ela. — retorna em desagrado, fazendo


beicinho, e minha raiva volta a crescer exponencialmente.

— Pois é, Abby. Que pena para usted — rebato na mesma hora,


impaciente. Deixo o copo em cima do buffet e passo por ela, dando as costas
para toda aquela pieguice. Mas Abby vem atrás, me segurando pela barra do
paletó:
— Vai ser assim agora? — ela agarra minha nuca e eu a empurro
para trás, soltando suas mãos de mim. — Ela é melhor que eu? É isso que
está querendo me dizer?

— Não “estou querendo dizer” nada, Abby! Estou dizendo


claramente e sem ser na minha maldita língua! Entenda de uma vez por
todas: a-ca-bou! — passo as mãos pelos meus cabelos, nervoso, e olho à
minha volta, concluindo que ainda estamos sozinhos, mas aquilo estava
passando do limite. — Acabou, carajo!

Desta vez me afasto rapidamente, no entanto, quando saio pela


varanda, me deparo com Patrick ao lado de Ellie, ela parece encurralada entre
ele e a amurada da varanda, eu viro meu rosto em direção a seu pai, sem
acreditar que aquele mierda nem sequer se aflija ao ver su hija perto de
homem que a espancou: o cabrón fala ao telefone enquanto Richard o assiste
em algo, Sophia e Barbara bebem drinks, fofocando, e eu engulo em seco,
puto.
Sem nem pensar, saio em disparada na direção de minha esposa,
passos firmes e fortes retumbando o deck, a pego pelo braço e a puxo para
mim, Ellie leva um susto, deixa sua taça cair no chão, o vidro se espatifa e
gotas tintas mancham a calça clara de Patrick.

Ele esboça reclamar algo, eu firmo meus olhos nos seus, apertando
el pequeño cuerpo de Ellie contra o meu, e a arrasto da varanda sob os olhos
de todos, as duas tagarelas se silenciam, Desmond tira o telefone da orelha,
boquiaberto, e Richard não se move.

— Trevor...? — Ellie balbucia, perdida, eu a seguro mais firme,


meus dedos a apertam, ela quase tropeça em seus saltos, eu a puxo pela
cozinha, pegando duas garrafas de vinho da bandeja de uma das empregadas
e saímos pela porta lateral, descendo o caminho de pedras até chegarmos às
dunas onde a solto, bebendo quase um terço da garrafa em um só gole sob os
olhos apavorados de minha esposa.

Num movimento só, ergo meu braço e lanço a garrafa contra a


rocha, urrando a plenos pulmões ao vê-la espatifar, Ellie solta um grito
estridente, mas antes que tenha chance de me questionar, saco a rolha da
outra garrafa e a entrego para ela:

— Sua vez! — ela me olha como se não tivesse me entendido, pego


sua mão e coloco a garrafa ali, apontando para sua boca e para a rocha em
seguida: — Sua vez, Ellie!
Minha esposa me encara, os seios subindo e descendo em sua
respiração ansiosa, aquele ínfimo pedaço de pano que ela usava como
vestido, suas coxas de fora, os pequenos pés em delicadas sandálias trançadas
em seus tornozelos, hermosa como se esculpida por anjos.

Mierda! Mierda!
Bufo ao pensar naquilo e forço a garrafa entre seus dedos, meus
pensamentos só poderiam estar desconexos com minha raiva, eu não sentia
nada por ela e não era porque sofria nas mãos daquele puto que eu teria
empatia por uma Kane! Não, não teria! Não teria!

Ellie me olha por um segundo ainda antes de encaixar a boca da


garrafa em seus lábios e eu miro aquela cena, sentindo meu mau humor se
desfazer em um olhar safado, inflamado pelo tesão daquela cena, alguns
pingos caindo em seu colo desnudo, deslizando pelo encontro dos seios e
sumindo no decote.
Carajo... Meu pau enrijece e sinto arrepiar todos os pelos da
espinha, Ellie arfa ao afastar o gargalo e, num gesto impetuoso, me imita,
atirando a garrafa contra a rocha, gritando com todas sus fuerzas, os dedos
enterrados nas próprias mãos em punhos.

Assim que ela se vira para mim, pego em sua cabeça e tomo sua
boca, ainda sentindo o gosto de viño em sua língua, apertando seu quadril em
meu pau, hmmm, aquela mulher me excitava de maneira insana, só podia ser
isso, só podia! Exploro suas costas com minhas mãos e desço, apertando sua
bunda, não lhe dando tempo de respirar, sorvendo com raiva o ar que ela
expira... Ellie era minha quando eu a quisesse! Ellie era mia y de nadie mas!

Deslizo meus dedos até sua buceta molhada de desejo, liberando-a


de sua calcinha de renda e a viro de costas, obrigando seu corpo a ceder até
que ela fique de quatro na duna, lambo sua lombar e desço minha língua por
sua bunda, sentindo a textura arrepiada de sua pele, o gemido sedutoramente
reprimido. Ah, su perra...!
Abro o zíper de minha calça e rapidamente me encaixo nela, Ellie
arqueia a coluna e vejo suas mãos enterrarem na areia, meu pau lateja,
engolido por sua buceta apertada e molhada, aquilo era alucinante, eu a tinha
na hora que queria, era apenas isso, eu estava provando que tinha Ellie para
mim, que ela não pertencia a Patrick, nem seus medos pertenciam mais a
Patrick! Ellie gozou para mim, eu era o único pau que ela gozaria novamente
e... cravo minhas unhas em sua bunda, não acreditando naquilo, era apenas
raiva, raiva e desejo, e sexo, apenas isso, Miguel, su mierda!

O que está pensando, carajo?!


Penso em Abby, penso em sua boca em meu pau, penso nas tantas
vezes que fodemos, todas as vezes que precisei foder com ela para saber tudo
de Ellie, tudo que Desmond nunca me contava. O quanto ela era
introspectiva, como ela nunca conseguia dizer não para su padre, como ela
sempre tentava almejar o patamar imposto pelos Kane... penso em como
todas aquelas informações foram importantes para que eu soubesse que o
casamento com Ellie sairia conforme eu planejava.

Desvio meus olhos para o mar, aquele horizonte negro, as estrelas


brillantes refletindo na água escura, penso no quanto foi fácil conseguir
atenção da mulher que Ellie considerava sua melhor amiga, Abby falava de
Ellie com tanto desdém que não era difícil acreditar no quanto a hija de
Desmond era insuportável e... penso em Desmond... na facilidade que ele deu
a mão de sua filha por causa de um acordo sórdido e mútuo nosso... olho para
Ellie de quatro ali na minha frente e o suor frio escorre por minhas têmporas,
não tenho como não pensar no que Patrick fez a ela e no fato de ela ter
continuado com ele ainda assim.

O que tinha de errado com aquela mujer? Por que era tão submissa?
Fecho meus olhos com raiva e me concentro no aqui e agora, na
pele caliente que cravo meus dedos, nos gemidos baixos que sua boca cerrada
insiste em segurar, sua bunda redonda e sua cintura desenhada... por Dios, o
que era aquela mujer? Quem era Ellie Kane?
Ela afunda seus ombros e o topo de sua cabeça se encosta na areia,
empinando sua bunda ainda mais para mim, eu sinto sua lubrificação escorrer
por meu pau, e não posso acreditar que Ellie seja tão perfeita assim, tão
intocada, no era posible... penso em Patrick a lambendo, ele a chupando,
penso nela chupando aquele maricón, desvio o rosto para o céu e meto meu
carajo até o fundo:

— Fale meu nome, Ellie! — exclamo alto enquanto puxo seus


cabelos, forçando a penetração mais e mais, é apenas isso, eu a tenho na hora
que quero e ela nada mais é que sexo, Ellie é minha agora e será todas as
vezes que eu quiser e nada mais! Enfio meu pau com força, me sentindo
frustrado por todas as sensações que tentavam me vencer naquele momento.
— Mi nombre, Ellie! Dime, Ellie, dime mi nombre!
— Tre...tre...vor... Trevor... — Ellie engasga, eu sinto minhas mãos
suarem enquanto agarro sua cintura, arremetendo-a contra meu pau cada vez
mais forte e mais rápido.

— Fale que nunca vai deixar que ele chegue perto de você, Ellie! —
vocifero e quando sinto o gozo em minhas bolas, empurro-a e Ellie cai
sentada de lado, seus olhos me procuram, eu mordo meus lábios enquanto
seguro meu pau, a porra jorrando na areia e não dentro dela.

Inspiro profundamente, meus dedos tremem, meu peito dói, ela fica
paralisada, os espasmos continuam, eu a encaro enquanto gozo, ela nem
pisca, limpo minha mão na barra de meu paletó, ela estica seus dedos para
mim, eu me levanto, dando as costas para ela.
Eu a deixo sozinha en la playa.
As horas passam, não durmo, apesar de fingir ao lado de Ellie.
Fingia estar dormindo quando ela entrou no quarto uma hora depois
de tê-la deixado sozinha, continuo fingindo depois de horas sob o mesmo
lençol. Quando acho que já deixei tempo suficiente entre o recostar de sua
cabeça no travesseiro e seu ressonar, me levanto com calma e em silêncio,
saindo do quarto e descendo as escadas na penumbra da madrugada.

Abro a porta e me esgueiro pelo quarto sem fazer ruído algum, a luz
de la luna entra pelas frestas da persiana e ilumina el cuerpo em cima da
cama, eu sorrio sozinho ao ver seu sono profundo, andando devagar pelo piso
de madeira, meus sapatos deslizam sem emitir som e eu debruço um joelho
sobre o colchão, fazendo-o acordar apavorado e arregalar os olhos para mim
no instante em que aperto sua garganta:

— Ri agora, su mierda... ri! Quero ouvir sua risadinha de cabrón!

Patrick engole lufadas de ar e eu espremo meus dedos em seu


pescoço, afundando-o no colchão:

— Me ouça com atencíon, su hijoputa: nunca mais olhe ou sequer


encoste em Ellie, está me ouvindo? Ela é minha esposa, mi-nha, não de um
cobarde como tu! — chego meu rosto perto do seu e vejo que tenta respirar,
ele reluta com o corpo, mas o seguro facilmente. — Eu acabo com você num
piscar de olhos, jogo seus restos ao mar, carajo!

Ele abre a boca, tentando sorver ar, seus braços amolecem, desço
meus lábios até perto de seu ouvido:
— Você vai não só aceitar que eu seja vice-presidente da Kane,
como vai incentivar o restante do conselho, está me ouvindo? Ou digo para
todo mundo que come uns culos por aí... — solto minhas mãos dele e Patrick
leva as suas até o pescoço, inspirando com força, as lágrimas escorrendo de
seus olhos. — Sí, eu tenho algumas fotos, e, por mais que tudo bem para mim
sua bandeira arco-íris, tu papá e tu padrino não ficarão felizes, não é
mesmo... — sorrio jocoso, me levantando. — preciosa...?

Tiro de meu bolso as cópias das fotos de alguns encontros fortuitos


daquele bosta e as jogo em sua cama:
— A intolerância é uma mierda, não é? — sorrio irônico. — Não
faz muito sentido logo você ser xenofóbico, faz...? — levanto uma
sobrancelha, revirando os olhos. — Bueno, para minha sorte, tu padre e mi
sogro não te passaram certos valores e... — dou de ombros. — cá estamos,
mais um mierda corrupto que comprarei barato. Conto com você na reunión
do conselho. — vou em direção à porta, mas, antes de sair, lanço uma
piscadela para ele e sussurro: — Espero que tenha entendido todos os termos,
senão farei questão que não tenha pelotas para serem chupadas por tu
machos.

Naquela noite, duermo como un angel.


Acordo e dou de cara com Trevor ressonando ao meu lado. Sua
cabeça está pendente para mim e seu corpo nu embolado aos lençóis.

É uma bela visão e, por um momento, tenho vontade de acordá-lo


para questionar o que havia acontecido naquela praia ontem, eu havia me
sentido... humilhada e desejada...? Isso seria possível? Desejada quando vi
em seus olhos o ciúmes que sentiu de Patrick e em seguida a humilhação de
ter me largado ali sozinha na praia naquele estado...

Eu me demoro apenas observando-o.


É estranha a sensação que tenho de que ele me esconde mais coisas
do que posso supor. Não só porque ele é fechado e tem um escudo
protegendo suas reações, ou porque nos casamos apenas por conta dos
negócios de minha família... mas... é como se Trevor não fosse real.
— O que está fazendo, Ellie?

Levanto as sobrancelhas e ele abre os olhos, passando as mãos pelos


cabelos. Eu me distraio momentaneamente com seus músculos flexionados,
mas sorrio desdenhosa quando ele me encara.
— Nada.

— É normal encarar alguém enquanto dorme, preciosa? — ele se


espreguiça, ajeitando-se nos travesseiros. — Não deveria fazer isso, não é
muito agradável.

— Não estava fazendo nada. — rebato na mesma hora, orgulhosa, e


me levanto da cama, vestindo um roupão.
— Desculpe por ontem. — ele fala de repente e eu me viro para a
cama, encarando-o. — Não deveria ter te deixado sozinha.

— Não sou problema seu, não se preocupe. Sei meu lugar.

— Você é mi esposa, Ellie. — ele se espreguiça e tira o lençol


revelando seu corpo nu, inspiro fundo. — Ainda que seja por contrato, é
minha mulher. — ele conclui se levantando, ignorando outra vez minhas
respostas, e eu me demoro, novamente analisando-o enquanto ele anda até o
banheiro.
Músculos na medida certa, nada exagerado mas altamente
explosível aos olhos, ao toque, e era perceptível como Trevor era vaidoso e
sabia que chamava a atenção das mulheres, mesmo que parecesse à vontade
com isso, e fingisse não ligar.

Era óbvio que ligava e sabia usar o corpo a seu favor.

Abby Gabner estava aí como prova.


— Qual a programação de tu padre hoje? — ele pergunta ao voltar
do banheiro, já vestindo uma bermuda. — O que engloba o famoso 4 de julho
dos Kane? — ele vem em minha direção e eu miro seu corpo, sem disfarçar.
— Ou terei mais algum tempo à sós com minha mulher?

— Como se preferisse estar comigo a estar com ele. — eu o


interrompo, denunciando no meu tom de voz todo o deboche que meus lábios
poderiam suportar. — Você casou com a empresa, Trevor, e não comigo.

— Sim, me casei. — ele diz, sério, como se me desafiasse a duvidar


dele, colocando uma mão em minha cintura. — Mas você se casou comigo,
Ellie, e seus olhos em mi cuerpo só me dizem que não fez um mal negócio...
ou você discorda, preciosa...?

A mão de Trevor se aperta em minha pele e a sinto me puxando


vagarosamente para ele. Engulo um nada e mordo meus lábios, já me
sentindo excitada, e toda uma raiva percorre meu coração por me sentir assim
com apenas um toque seu.

Eu estava cansada de me subjugar aos homens.


— Me solta, Trevor. — sussurro quando ele passa os dedos pela
faixa de meu robe e contorna o tecido, deslizando sua mão pela minha
cintura, sua pele quente tocando a minha. Sugo o ar e repito, entredentes: —
Trevor, me solta!

No mesmo segundo, ele recua um passo e eu fecho meu robe com


raiva, saindo do quarto e o deixando sozinho, certamente espantado com
minha reação... eu mesma estava espantada com minha reação. Sorrio, ainda
que me sinta intimidada por meus sentimentos, no entanto engulo o asco
quando vejo Patrick e Abby descendo as escadas.

Eu ainda teria um dia inteiro para lidar com eles e o dia mal tinha
começado.
14

Depois do constrangimento que foi o café da manhã silencioso


daquela casa, Richard e Barbara têm a brilhante ideia de velejarmos. Eu
aceito na mesma hora, concluindo que seria uma ótima maneira de me distrair
àquela manhã, no entanto Patrick, que passou os últimos minutos amuado e
com os olhos esbugalhados para Trevor, diz que vai ao centro fazer umas
compras.

Não tive como não reparar que toda vez que meu marido se dirigia
para ele, fazendo alguma pergunta pertinente à empresa, meu ex parecia
tremer, a xícara de chá vibrava em suas mãos e tiritava toda vez que ele a
repousava no pires, mal conseguindo formular uma frase coerente em
resposta, deixando todos à mesa curiosos com seu jeito.
De qualquer maneira, ninguém ousou perguntar se ele estava bem e
eu me limitei a pouco ligar para aquilo, já que pouco me importava mesmo.

Desmond e Sophia declinaram o convite e eu me levantei da mesa,


pronta para ir para o cais, no entanto, quando Trevor disse que não iria pois
não sabia velejar, Abby prontamente se convidou para ajudá-lo, dizendo que
poderiam ir em seu barco à vela; meu humor mudou na hora outra vez.
Assisto àquela garota que tantas vezes dormiu em meu quarto
quando criança praticamente roçar seu corpo de biquini em Trevor enquanto
íamos em direção à marina, ele sorri para ela, desviando vez ou outra seus
olhos para mim e aquilo me enerva absurdamente.

— Você vai ver, Trevor, como é fácil e...

— Ele vai comigo. — eu a corto, pegando a mão de Trevor, que


sorri convencido para mim, tenho vontade de estapear aquela cara bonita,
mas me limito a tentar parecer coerente e não uma ciumenta no cio. — Ele é
meu marido, Abby, cabe a ele estar no mesmo veleiro que eu. — sem esperar
que ela responda ou continuar vislumbrando o sorriso metido de Trevor, pulo
graciosamente no barco e sorrio para mim mesma quando o sinto bordejar
para um lado com o peso de Trevor me seguindo.
Verifico os cabos no aparelho de labor que içam e controlam as
velas, e confiro se todas elas têm o nó em oito na ponta para evitar que
escapem do mastro ou das roldanas, então retiro todos os cabos dos cunhos e
molinetes.

— Cuidado com a cabeça. — aviso, de cara amarrada, soltando o


amantilho até que a retranca desça sozinha e amarrando-o no molinete
novamente. Observo que a retranca balança e Trevor se abaixa quando a vela
mestra é completamente içada. — Diferente do que a Abby disse, não, não é
tão fácil assim velejar. — desta vez eu que sorrio, sabendo que agora eu tinha
em minhas mãos o domínio da situação.

Posiciono o barco na direção do vento e essa parte nem sempre é


fácil, pois é difícil manobrar um barco parado, contudo, meus anos de prática
me deixaram habilidosa e faço tudo sozinha com um Trevor curioso me
olhando quieto.
Viro o barco à bombordo de acordo com o vento e continuo o
trabalho com as velas até estarmos velejando. Olho Trevor parecendo
receoso, parado no mesmo lugar. Rio baixo e pego o leme, mantendo o curso.

— As velas têm que estar perpendiculares ao vento para velejarmos


melhor. — aponto para a linha central da proa. — Estamos em popa rasa, só
guiados pelo vento.

— Então isso é velejar? É disso que você gosta? — ele pergunta e


eu faço que sim com a cabeça, sim, aquela era uma sensação indescritível.
— É porque é sua primeira vez, mas confie no que digo: é relaxante.

Seus lábios tentam conter um sorriso nervoso quando ele suspira:

— Não me parece.

Rio alto:

— Mas sim, é e... — eu calo minhas palavras, apavorada quando


vislumbro o que acontece antes mesmo de poder berrar avisando-o: a retranca
muda de lado de repente, atravessando o convés com muita força e atingindo
as costas de Trevor, jogando-o da embarcação na água.

Eu atravesso o barco e me esgueiro pela borda, meus olhos abarcam


toda a linha do mar em pânico, até que ele emerge tossindo e parecendo ainda
atônito.
—Trevor, aqui! — estico minha mão para ele que a segura firme,
mas ao invés de eu içá-lo, ele me puxa e, boquiaberta, me vejo tombar na
água. Eu me debato sob o mar, engolindo um pouco de água e emerjo quase
que no mesmo instante, xingando-o. Trevor ri alto, seus olhos se comprimem
e os cabelos pingam, molhados. Ele mantém uma mão no barco e a outra se
estica para mim quando nado em sua direção, minha camiseta branca
enxarcada.

— Isso foi um troco por ontem, preciosa...? — ele pega em meus


dedos e me puxa para seu corpo, miro surpresa um sorriso zombeteiro em
seus lábios. — Queria me ver muerto?
Dou de ombros:

— Acidentes acontecem.

Ele sorri:
— Digo el mismo, foi sem querer quando você caiu no mar — ele
me cerca com seu braço, me colando a seu corpo, a água ondula à nossa
volta. —, sou muito pesado, não foi mi intencion te fazer cair. — seus dedos
espalmam em minhas costas e deslizam com facilidade na minha pele, olho o
barco ao lado de nossas cabeças e, ainda que queira subir de volta
imediatamente, me sinto tentada a ficar onde estou, mesmo que seja boiando
no meio do oceano.

— Qual é a história dessa marca? — ergo a ponta de meu dedo e


encosto em sua cicatriz, os pingos deslizam por sua pele e ele parece se
arrepiar por um segundo antes de fechar o semblante.

— Eu não pergunto sobre a sua e você não faz o mesmo, Ellie.


Engulo em seco:
— Eu te contei a história da minha... ontem... — balbucio e Trevor
fecha os lábios e parece engolir algum sentimento enquanto sua ficha cai... se
ele não tinha se dado conta ontem, quando contei sobre Patrick, agora ele
podia ter certeza que o soco que recebi marcou mais que minha alma. —
Minha mãe sempre tenta escondê-la... eu sempre tento...eu não precisava de
uma cicatriz para me lembrar, mas... — respiro fundo. — Nem uma base
esconde o tipo de mulher que sou.

— Ellie? — ele parece confuso.

— Covarde. — sussurro. — Uma mulher covarde.

Trevor tira mão do barco e seus dedos encostam em meus cabelos,


ele tira os fios molhados de minha testa e os prende atrás de minha orelha,
passando o dedão com calma e suavemente por minha cicatriz, desenhando a
pequena, mas profunda marca.

— Eu me machuquei tentando salvar meu pai quando ele morreu...


— sua voz é baixa e serena. — Eu achei que ainda dava tempo, que ele
estava vivo e... me cortei... Me corté con la hoja... — não entendo desta vez o
que diz e olho em seus olhos, descobrindo alguns tons claros naquela manhã
ensolarada, talvez não fossem tão negros quanto eu pensava, quase posso ver
matizes esverdeadas, mas antes que eu observe melhor Trevor desvia o rosto,
mirando o barco um pouco distante, poucos centímetros apenas.
Não entendo o motivo, mas desta vez sinto tanta sinceridade em sua
voz que compreendo que ali vejo mais do que ele queria me mostrar.

— No acidente? Você tentou salvar seu pai no acidente...? —


questiono, quase sem voz, mas seu rosto se volta para mim e Trevor pisca
com força seus olhos, parecendo voltar a si:

— Sim. — responde apenas e me solta, indo em direção ao veleiro.


— Vamos, Ellie, antes que a gente não consiga mais subir no barco.

Eu murcho outra vez, entendendo que o momento tinha acabado.

Saio do banho vestindo um macacão solto de seda, leve e trançado


nas costas, sem saber se tranço também meus cabelos úmidos. No entanto,
dou de cara com Trevor segurando meu caderno de desenho, sentado em
minha cama.

— Você desenhou isso, Ellie? — ele pergunta sem virar o rosto e


me lanço no colchão ao seu lado, na ânsia de arrancar meu caderno de suas
mãos. — Você me desenhou...?
Suspiro, rendida à sua curiosidade sincera, e me ajeito, encarando os
rabiscos em traços leves e esboçados de seu rosto. De qualquer maneira, evito
seu olhar quando o respondo:

— Foi o que eu disse na paria... gosto de desenhar e... — não


finalizo meu pensamento, Trevor se vira para mim e seus olhos se movem
enquanto ele analisa meu rosto. Eu também o faço. Ele assumia feições
completamente diferentes quando me olhava daquela maneira... como se
quisesse ver através do que enxerga.

— Não imaginei que fossem desenhos assim. — ele fala baixo e


olha minha boca. Respiro fundo e tento concentrar no caderno entre seus
dedos. Ali não tem apenas meus desenhos, mas meu coração.
É como me sinto liberta quando não tenho o mar embaixo de meu
barco e normalmente me soltava nos rabiscos quando não sabia como fazê-lo
em palavras.

Trevor não fala mais nada enquanto vira suas páginas. Eu tento
ajeitar meu cabelo, consciente de que outra vez me enxerga mais do que eu
tento mostrar... só Chloe e Lennox admiravam meus desenhos, tão íntimos e
privativos como segredos meus.
— Você é incrivelmente boa no que faz, preciosa. — ele comenta
sem tirar os olhos do caderno e eu me sobressalto, sem saber o que responder
ao seu elogio. — Deveria se desenhar. — seus olhos percorrem meu corpo de
cima a baixo, demorando-se em meus lábios. Por fim, ele me entrega a pasta.
Estendo a mão e ele deixa seus dedos tocarem devagar em mim. Sinto meu
pulso acelerar. — Ficaria belíssima se você se visse com esse mesmo olhar
que vê as outras coisas, Ellie.
Pego a mão de Trevor e o levo pelo caminho de pedras, nos
distanciando da festa de meu pai. Não aguentava ficar mais um minuto sequer
na presença de seus convidados, mas mais ainda, de Patrick e Abby. E é por
isso mesmo que não conto para ela que vou encontrar Lennox e Chloe na
praia, ansiando um momento à sós com eles e... Trevor.

Os dois também estavam na casa de veraneio dos pais de meu


amigo naquele feriado e, por mais que meu pai não gostasse nada da minha
amizade com Lennox por razões óbvias para um homofóbico enrustido, não
poderia reclamar do que não via, não é mesmo?

Meu marido não me pergunta o que tenho em mente e por mais que
eu ache que suspeite que estou o levando para uma rapidinha em meios às
dunas, simplesmente não me questiona quando encontramos meus amigos
sentados em uma canga florida, olhando o pôr do sol, que nada mais é que
um risco laranja quase que completamente coberto pela manta azul marinho
do oceano.
— Achei que aqui seria mais agradável que lá — aponto para o
deque de casa. — para vermos os fogos.

Trevor disfarça outro daqueles sorrisinhos cheios de mistérios,


lançando mão de uma covinha em apenas uma das bochechas e eu me perco
naquela visão, ainda que a vista do espetáculo ao mar queira gladiar com ele.
Não, o pôr do sol perdia feio.

— Placer. — ele os cumprimenta em espanhol e eu me delicio com


aquilo, sabendo que está relaxado a ponto de não levar o que meu pai falou
ao pé da letra. Entretanto, ele limpa a garganta e traduz o gesto, esticando a
mão para Lennox: — Prazer.

Lennox, sem qualquer tipo de mesuras, se levanta na mesma hora e


o agarra pela goela, abraçando-o apertado:
— Que isso, sem cerimônias, você é marido de minha irmã! Se tem
intimidade com ela... vai ter que ter comigo. — ele pisca o olhos para Trevor
e se vira para mim, escancarando um “O” em seus lábios e se infiltrando em
meu ouvido aos cochichos: — Menina do céu, muito mais gato ao vivo, puta
que pariu!

Sorrio ainda embevecida de orgulho e miro Chloe um pouco


reticente enquanto o cumprimenta. Fecho meu sorriso, não sabendo ao certo o
que sentir, uma luta interna me tira dos eixos e me deixa atônita, tão dúbia
quanto tudo que conhecia sobre Trevor.

Estar atraída por ele era igualmente, em absoluto, estar atraída pelo
desconhecido.
— Você que é a filha do jornalista da Times, não é? — escuto-o
perguntar quando Chloe volta a se sentar e ela confirma que sim ao mesmo
tempo em que Lennox puxa a champanhe de sua bolsa de praia; minha amiga
praticamente se joga ao seu lado, tirando o gargalo à centímetros de sua boca,
servindo a todos nas taças que trouxe, coisa que não me surpreendia.

Bato minha taça contra a de Trevor, talvez um pouquinho mais forte


que o normal e minha mãe logo vem à minha cabeça me recriminando, sorrio
mandando-a se foder em pensamento e Trevor me olha curioso, desta vez
sorrindo abertamente para mim:

— O que está pensando, preciosa? — questiona quase em um


sussurro e meus olhos fitam os seus, sem conseguir falar nada em resposta;
ele ri: — Eu disse que você iria conhecer um lado meu que não conhecia,
mas tenho que dar o braço a torcer... eu que estou me surpreendendo.

Eu me sento à canga e bebo outro gole para molhar meus lábios,


que ressecam com minha respiração forçada encontrando Lennox se
entupindo de champanhe parecendo entoar alguma música, levemente
bêbado. Presto atenção e noto o som vindo da festa de meu pai, Chloe ri do
amigo, mas tudo que vejo é a mão de Trevor ao meu alcance.

Subo meus olhos, tirando os cabelos que voam sobre eles, mirando-
o e ele sorri, estendendo seus dedos para mim:

— ¿Baila conmigo?

Nem pisco quando minha mão alcança a sua e ele me ergue, me


movimentando com ele no ritmo da música, acompanhando a batida, me
deixando ser levada pelo momento e por ele. Eu solto meu corpo e o
acompanho, as vibrações da melodia pulsando em meu coração, ele me
segura forte e volta a debruçar seu corpo sobre o meu em algum passo, meu
sorriso preenche meu rosto quando enfio a mão sorrateiramente no bolso se
seu paletó e ele não percebe.

Suas mãos dançam em minha cintura, costelas, costas, quadril,


sobem de volta por minha silhueta e descem pelos meus braços até se
entrelaçarem aos meus dedos. Não sei o que me invade, mas tomo-lhe a boca,
beijando-o com todas minhas forças e, assim que ele me solta, respirando
ruidosamente, sussurro em seu ouvido:

— Minha calcinha está no seu bolso.

Ele me mira e seus olhos sorriem para mim com uma sinceridade
que mal acredito estar presenciando, Trevor ri e parece perplexo:
— Como... como fez isso?

— Também tenho meus mistérios... — brinco, sorrindo de volta e


ele me beija sussurrando que aquilo era muito sensual, seu sotaque roçando
tortuosamente em meu ouvido.
A queima de fogos começa por sobre nossas cabeças e eu miro o
céu acima de Hamptons, emocionada, as cores vermelhas e azuis tingindo o 4
de julho. Trevor pega em minha mão e eu congelo o movimento da taça que
quase encosta em minha boca, o céu ilumina a praia, música, risadas de
Chloe e Lennox aquecem meu coração e... por um segundo... por mais que
seja fugaz... acredito que eu possa... um dia... ser amada...
Recolho as canetas e as guardo na gaveta, dando todo o tempo
possível que John precisa para sabe-se lá o que ele tenha vindo me falar.

A tensão está estampada em sua testa e já a sinto em meus poros. Eu


tinha passado o restante do feriado tentando o máximo possível me manter
neutro, sem acreditar que tinha revelado tanto para Ellie. Dios... como pude
falar para ela que havia me cortado com a faca ao tentar salvar mi padre? Que
acidente teria uma faca?

Mas mais que isso... eu não podia acreditar que tinha admirado
tanto a herdeira dos Kane... olhando-a fascinado sob os fuegos...
E aquilo era um erro imperdoável.

Eu havia me esquivado o máximo possível de Ellie durante o


restante da festa ostensiva dos Kane na piscina quando tivemos que voltar da
praia — como um lembrete claro de que uma hora eu tinha que voltar à
realidade — e, na verdade, apesar de ter dormido bem por duas noites
seguidas, agora ali com John a minha frente, parecia que eu não havia
pregado meus olhos um segundo sequer.

Não adiantava. Era só entrar na mansão ou na empresa que minhas


forças eram sugadas instantaneamente e o olhar reticente do mais antigo
membro do conselho da empresa não ajudava em nada.

— As notícias são boas. — John finalmente fala, sentando-se na


cadeira atrás da mesa e eu seguro o sopro de alívio. — O conselho vai acatar
sua vice-presidência, Trevor. — ele tira os óculos e retorna a limpá-los e eu
sei que está nervoso porque não sabe muito bem lidar comigo, pelo menos
não depois que mostrei as provas de que eu sabia que desviava alguns fundos
da empresa para os fundos de seus próprios bolsos. Com ele e Patrick em
minhas mãos, eu tinha certeza que essa seria a notícia, ainda que algo em
mim temesse que não desse certo. — Devemos dar a notícia até o fim do dia.
— ele conclui, mas não se levanta, como se tivesse algo a mais para falar e
não arrumasse coragem.

Culhões, lhe faltavam culhões para me enfrentar.

— O que mais, John? Estou preparado para o que for. — digo,


sabendo que estou mentindo. Não estou preparada para mierda nenhuma.
— Tivemos um problema com nosso laboratório no Brasil.

— Um problema?

— Com nossos testes clínicos. — ele pigarreia. — O teste de campo


com o novo antibiótico.
Tento coordenar meus pensamentos, mas repentinamente tudo
parece desconexo. Cerro meus olhos para o computador, respiro fundo e o
acre invade minha boca. Engulo o gosto de sangue e afirmo com a cabeça
antes de falar:

— Me mande o relatório por e-mail, John.


— Senhor? — pergunta em dúvidas e é claro que está em dúvidas,
nunca deveria produzir provas contra a empresa e me mandar os dados por e-
mail era claramente um tiro em meu próprio pé.

— Meu e-mail, John Bennet! Agora vá, quero todos os dados em


menos de uma hora!

— O-o senhor vai... vai me entre-tre-gar? — ele gagueja e eu bufo:


— Se fizer o que peço, não. Eu cumpro minhas promessas, John. —
aponto a porta, com raiva. — Anda, me deixe sozinho!

Ele sai de minha sala e eu não me movo na cadeira pelos próximos


minutos, tentando controlar o acesso de tremedeira que toma meu corpo...
Vou surtar, tenho certeza que vou surtar, carajo! Minhas mãos abraçam meus
próprios braços e sinto a vibração, o frio congelando minha pele, o coração se
desritmando, as batidas doendo meu peito, cavando um buraco.

— Porraaaaaaaa!!! — berro, empurrando as folhas planilhadas, as


pastas organizadas, os gráficos coloridos debochando de minha cara.
Hijosputa, hijosputa! Levanto da cadeira e pego um copo de uísque na
bandeja, virando-o de primeira, rasgando minha garganta com a ardência do
choro retesado sob o álcool. Ignoro a dor e seco outro copo em único gole,
deixando meus olhos marejados.
Fungo um pouco, viro a garrafa e adiciono alguns gelos, tentado
tornar a bebida mais tragável. E então me jogo de volta à cadeira, desejando
que aquele dia termine logo.

Que mi mierda de vida termine logo!

— Ane. — chamo minha assessora pela secretária eletrônica. —


Não quero receber ninguém mais, hoje. Ninguém, entendeu? Nem você. Peço
que não me incomodem pelo restante do dia. Só me deixem trabalhar em
silêncio, sem interrupções.

Desligo sem esperar sua resposta e afundo meu rosto entre minhas
mãos respirando sem forças. Eu tinha que me concentrar no meu objetivo,
tinha! Acontecimentos como os de ontem nunca mais poderiam existir!
Nunca más! Eu não poderia deixar que outras... outras crianças tivessem o
mesmo destino que mi Maria... esses... esses testes clínicos de campo no
Brasil...? Eram crianças...?

E eu perdia meu tempo velejando ou me preocupando com una


mujer que tinha tudo num piscar de olhos??? Enquanto testes clínicos davam
errado nos laboratórios dos fármacos Kane???
Soco a mesa, afundando o tampo de madeira e encaro a silhueta de
meu rosto na tela do desktop apagado, segurando meu ímpeto de arremessar
tudo aquilo longe.

Ellie era apenas um meio, um acordo, nada mais. Eu não queria


saber nada sobre ela, eu não queria conhecê-la, não queria saber de seu
passado, de suas vontades, de sus deseos! Eu não queria saber quem era Ellie
Kane porque ela era uma Kane e isso bastava para mim!

Hoje eu seria vice-presidente da empresa e agora só precisava


continuar trabalhando ali dentro com excelência, mostrando que sou capaz,
gerando confiança... confiança o suficiente para que quando eu matasse
Desmond, sua cadeira fosse minha sem questionamentos.
E quando houvessem... eu já não me importaria mais.

Eu não estaria aqui para asumir la culpa.


15

Mais de quinze dias se passaram desde que voltamos dos Hamptons


e Trevor parece mais fechado que nunca; mal falou comigo quando me viu
nas esparsas horas em que esteve em casa, limitando-se a deitar a uma
distância segura de mim na cama.

Seu semblante fechado me parecia doente, na verdade, como se


carregasse alguns quilos nos ombros ainda que visivelmente tivesse perdido
algum peso. No ritmo que ele bebia toda vez que voltava do trabalho não me
surpreendia o fato de estar emagrecendo, até porque, como Desmond, ele
parecia viver para o trabalho e nada mais.
Eu me concentrei no projeto final da faculdade e me limitei à
poucas palavras com Abby nas raras vezes em que a vi nos corredores da
faculdade, ainda chateada com suas atitudes no feriado e encucada com seu
nome no celular de Trevor. Ainda que ela soubesse que era um casamento
por negócio, minha amiga me desrespeitava agindo como agiu.

Eu olho mais uma caixinha de contraceptivos aberta em minha


bolsa antes de jogá-la na poltrona ao lado de minha cama e me sento no
colchão, um pouco desanimada com aquela sexta-feira à noite, sem saber se
ligava para Lennox e Chloe ou se me afundava na cama, pensando em
Trevor.

Sem nem mesmo saber como enveredei por aqueles pensamentos,


me pego analisando se deveria tomar uma injeção contraceptiva logo de uma
vez ou se seguia tomando regularmente as pílulas à noite, como havia me
acostumado rotineiramente após o jantar.

Minha menstruação estava vindo como um reloginho, e, apesar de


estar na metade de outra cartela e termos nos prevenido sempre — ou quase
sempre, me lembro com desgosto da cena da praia, mas respiro com um certo
alívio, me recordando do coito interrompido, ainda que nada cientificamente
seguro — queria evitar qualquer surpresa indesejada.

Tamborilo os dedos no queixo, concluindo que pílula e camisinha


era um combo seguro, mas que no próximo ciclo eu iria dar uma chance para
a injeção e, repentinamente, a porta do meu quarto se abre e minha mãe entra
pelo cômodo, seu perfume se espalhando pelo ambiente reforçando sua
presença:
— Querida. — ela sorri, sentando-se na poltrona e colocando minha
bolsa em seu colo.

— Oi, mãe. — me levanto, andando até a poltrona e ela ergue um


pouco o rosto, simulando um beijo jogado ao vento. Pego minha bolsa de
suas mãos, sem saber como ela reagiria ao ver a caixinha da pílula,
obviamente já imaginando como Sophia iria me incentivar a engravidar,
claro, estava farta das histórias que ela contava sobre ter sido mãe tão nova e
que agora era ótimo aparentar ser minha irmã e não uma mãe velha e
caquética. — Precisa de algo?

— Há quanto tempo não conversamos, Ellie, querida. — ela desliza


as mãos pelo vestido justo em um tom esverdeado, e eu me demoro invejando
suas curvas. Eu era tão “reta” que entendi o motivo de Trevor tê-la encarado
de biquini... quem não a admiraria? — Queria ver como você está.

— Queria ver como a Ellie Kane-Willians está ou a Ellie está,


mamãe?

— Oh, Ellie, vai começar o drama... — ela umedece os lábios


amargurada.

— Não teria um drama para ser iniciado se eu pudesse ter minhas


escolhas. — rebato novamente e percebo que ela se incomoda.
— Nós te privamos de algo? Te falta o que exatamente, Ellie? —
ela levanta sua sobrancelha perfeitamente delineada e seus olhos me miram.
— Casou com um homem lindo e rico, continua morando em nossa mansão,
seu pai continua pagando sua faculdade e — ela sorri para mim. — o curso
não é de sua escolha, Ellie? É um curso que seu pai não queria, mas mesmo
assim paga de bom grado?

Seu sorriso sonso se amplia e tenho vontade de revirar os olhos, ela


sabe que não me foi dado de bom grado e que eu e Desmond tivemos um
embate e tanto e ele quase ameaçou tirar minha herança, mas teve seu
primeiro ataque cardíaco, ficando alguns meses internado e, quando voltou
para casa, eu já estava matriculada.

Tenho certeza até hoje que ele aceitou somente para evitar ter outro
ataque do coração e não porque queria o meu melhor. Ou isso, ou sua amada
empresa precisava de sua atenção depois de tanto tempo fora e não quis se
dar ao trabalho de prestar atenção em mim outra vez.

Minha mãe faz um muxoxo e eu volto a olhar para ela, que continua
o que eu penso ser uma lição de moral:
— Custa retribuir um pouco tudo que lhe proporcionamos, filha? Se
tivesse tido a vida que tive... — ela murcha os lábios e começa a ladainha
enfadonha de sempre quando tentava me convencer de algo. — Seu pai
mudou minha vida, Ellie. Eu ainda seria uma modelo em busca de meus
quinze minutos de fama se ele não tivesse me visto, filha. Me visto de
verdade, não só minha beleza. Você já tem isso tudo aqui de mão beijada,
Ellie. Manter o patrimônio da família na família é o mínimo que você pode
fazer.

Eu me surpreendo com essa última parte, paralisando minha


resposta no último segundo. Aquilo nunca tinha feito parte da história triste
que ela contava sobre seu destino ser insólito se meu pai não a tivesse
proposto em casamento, então realmente me surpreendo e a confronto:

— Então esse casamento se trata apenas disso? Manter a empresa na


família? — minha voz não passa de um leve assombro.
— Oh, Ellie... quisera eu viver no seu mundo, ter sua idade... poder
começar a vida com um homem como Trevor... — ela destila, quase como
um veneno escorrendo de seus lábios, mas repentinamente me mira muito
séria. — Seu pai sofre do coração e você sabe disso. Não lhe passa pela
cabeça que quando ele morrer os acionistas vão pular naquela empresa como
ratos em um corpo fétido?

Engulo minha surpresa e peso minhas próximas palavras, antes de


proferi-las com cuidado.

— Meu pai quis que eu casasse com Trevor para que ele fosse
presidente da empresa e, como meu marido, a herdasse e mantivesse na
família? — eu não deixo a conexão de nossos olhares se perder, nem quando
sinto meu coração doer absurdamente em meu peito. Decepção doía assim?
— É isso que está me dizendo? Nada tem a ver com... reputação?
— Claro que tem a ver com reputação também, filha. — ela se
levanta da poltrona e se senta ao meu lado, soltando a presilha de meu cabelo
e deixando que os fios caiam na lateral de meu rosto. Insatisfeita, ela ajeita as
mechas, tapando minha cicatriz, o que apenas reforça e prova sua fala:
reputação, imagem. — As ações caíram quando Patrick fez aquela entrevista
sobre você, Ellie. Seu pai quase o demitiu e qua-se terminou a amizade com
Richard. Mas as coisas se acertaram. — ela sorri como se realmente
acreditasse que as coisas se acertaram, como se seu ex-genro tendo me
socado não fosse nada demais e aquilo se apagasse num passe de mágica. —
No entanto, ficamos na corda bamba com a doença de seu pai. As ações
subiram com seu casamento, Ellie, subiram como há muito não faziam.

— Mas nada disso responde minha pergunta, mãe! Se Trevor não


tivesse casado comigo... eu... eu ainda estaria aqui, eu sou sua filha, eu sou
filha dele! — minha voz falha e eu sinto meus olhos marejarem. — Por que
eu não poderia ter herdado a empresa? Ela continuaria na família!

Finalmente percebo um traço de insegurança passar por seus olhos,


mesmo que sua voz ainda não a traia.
— O que posso dizer, Ellie...? — morde os lábios, desgostosa, e
eu... eu sei o que ela quis dizer.

— Por que eu sou... sou mulher? — minha garganta se fecha, ouço


o celular tocando em minha bolsa, mas não pego, apenas encaro minha mãe.
— Foi por isso?

— Seu pai confia no Trevor e há um testamento com muitas


cláusulas, não se preocupe, a empresa ainda será nossa mesmo que ele se
divorcie de você e...
— Não fala mais nada! — me levanto e minha voz aumenta um
tom, pego a bolsa e volto a calçar minhas sandálias. — Eu não quero saber de
mais nada!!!

Meu celular volta a tocar e o atendo quando alcanço o corredor, as


lágrimas já deslizam por meu rosto e escuto a voz de Lennox do outro lado da
ligação:

— Ellie, amor, é melhor vir aqui na boate, tem um babado que lhe
pertence aqui. — ele anuncia sem nem mesmo esperar meu alô e a bola presa
em minha garganta parece me dificultar a respondê-lo. Limpo meus olhos e
desço a escada de dois em dois degraus, por que aquilo estava me afetando
tanto? Era tão diferente assim do motivo anterior para que eu tivesse me
casado com Trevor? Tão pior assim? — Ellie, você me ouviu? Boate Lounge,
você sabe qual. Vem logo! Seu marido está bêbado aqui e... as mulheres
estão gostando...
Jogo o celular contra a parede e dou um berro, assustando a
governanta que atravessa o corredor, eu a ignoro, avançando pela casa em
direção à porta. Meus pés nem tocam direito as pedras do pátio quando
Andrew agarra meu braço e me vira para ele de modo abrupto, me segurando
ao lado do carro.

— Senhorita Ellie! O que houve?

— Me leva daqui, Andrew! — eu engulo o choro e miro


diretamente dentro de seus olhos. — Só me leva daqui!

— Mas... para onde, senhora?

Eu respiro fundo e não acredito no que respondo, mas minhas


palavras saem antes mesmo de eu negar que não preciso vê-lo... Que não
quero vê-lo:

— Para a boate Lounge.

Entro pelo ambiente e vou direto para a área do bar, olhando à


minha volta à procura de Trevor. A boate está cheia, homens e mulheres
pulando ao som do DJ, uma música techno bombando em meus ouvidos,
cheiro de suor misturado à cigarros e vários tipos de perfumes, algumas
pessoas me empurram enquanto dançam e eu consigo um pequeno espaço no
balcão, entre um homem gigantesco e um casal se pegando em uma banqueta.

Coloco a franja atrás de minha orelha e o encontro no meio do


movimento. Trevor está um pouco mais distante, em uma área reservada,
sentado à uma mesa quase na penumbra, algumas mulheres dançam perto
dele e eu me pergunto se a intenção delas era chamar-lhe a atenção.

Eu conhecia esse tipo.


Abby era uma delas, desse tipo em questão. Minha amiga, se é que
eu poderia ainda considerá-la uma, apesar de possuir bens o suficiente para
não trabalhar por seu sustento, era obcecada em encontrar um partido à altura
que lhe bancasse uma vida ainda melhor do que a que lhe era proporcionada
pelos seus pais.

Minha mãe foi outra, penso com desgosto, me lembrando da


conversa de poucos minutos.
Encaro meu marido entre as mulheres insinuantes ao seu lado, no
entanto, a cara amarrada de Trevor destoa daquela aura hipotética de
felicidade que a boate remetia. Peço uma bebida qualquer com uma
sombrinha de enfeite e começo a bebericar bem devagar, o olhando de
soslaio.

Trevor repentinamente se levanta, pedindo ao garçom outra bebida


e aponta ao seu redor em seguida. As pessoas urram e o aplaudem e eu
entendo que pediu doses para todos ali naquela área supostamente VIP.

Uma mulher rebola em sua frente e desliza sensualmente seu corpo


no dele, indo até o chão e voltando. Trevor bebe um gole de seu copo, a
olhando, uma mão descansando em seu bolso, ele não se move, nem para
afastá-la, nem para tomá-la entre as mãos.
Mexo o canudinho de meu drink, desconcertada com aquela cena...
o que eu estava fazendo ali? Por que eu estava ali, me humilhando desse
jeito?

Antes que eu decida mandar uma mensagem para Andrew, pedindo


que voltasse para me buscar, a mulher se vira e agarra o pescoço de Trevor,
praticamente se jogando aos seus pés. Num movimento rápido, ele pega a
mão dela e a tira de seu peito, empurrando-a novamente para trás, um
segurança se aproxima e a segura firme, puxando-a para uma porta lateral
enquanto Trevor move negativamente a cabeça, assistindo-a ser distanciada à
força, até sumir pela porta.

Não sei o que fazer, muito menos o que pensar e parece que as
meninas tampouco se importam com a cena que acabei de presenciar,
sorrindo para Trevor, que entorna uma bebida pelos lábios, como se nada
tivesse acontecido a poucos metros de seus corpos dançantes.

Tomo aquela bebida de uma vez e quase imediatamente peço outra,


precisando de álcool em minha corrente sanguínea e não me surpreendo
quando Lennox se joga na banqueta ao meu lado, suado e esbaforido; ele
praticamente morava na Lounge nos finais de semana.

— Há quanto tempo ele está aqui? — aponto para o local onde elas
estavam e vejo que Trevor sumiu de minha vista.

— Oi, tudo bem com você? — ele ri, implicando, e eu giro meu
pescoço à procura de meu marido. — Não te deram educação no berço de
ouro, não, diva?

Sorrio amarelo, mas eu não estava com o espírito para o humor de


Lennox hoje, ainda que ele fosse meu melhor amigo e merecesse todo meu
carinho... desta vez, eu estava arrasada... eu precisava de carinho.
— Oi, como vai, Lennox? — a voz sai mecanicamente. — Por
gentileza, você saberia me informar há quanto tempo meu marido está se
engraçando com aquelas mulheres?

— Desde que cheguei aqui. — ele puxa meu drink e analisa o


líquido rosado. — O que você pediu? É uma daquelas bebidas doces e
enjoativas que você gosta? — seus lábios envolvem meu canudo e eu decido
pedir um uísque, empurrando a minha taça para suas mãos. Ele sorri. — Ele
está oferecendo bebida pra área VIP há mais de hora! Já devem ter bebido
metade do estoque da boate! E todas se sentaram no colo dele em
agradecimento, Ellie.

— Filho da puta... — balbucio e pisco uma centenas de vezes.


Lennox cai na gargalhada, como se minha perplexidade fosse, de alguma
maneira, engraçada. — Não tem graça, Lennox. — resmungo, ainda
irresoluta.

— Até que tem um pouco sim, Ellie! É a primeira vez que te vejo
xingar e por causa do homem que casou por negócios. Acho que você não me
contou tudo, contou, Ellie? — ela baixa o tom de voz, obviamente doido pela
fofoca. —Está se apaixonando por seu marido de contrato, amiga?

— Não!

Lennox sorri maliciosamente e suga com força o restinho de minha


bebida. O garçom chega com um copo de uísque com gelo e ele faz uma
careta para minha bebida.

— Porque sua resposta rápida e monossilábica não foi nada


convincente, prefiro acreditar no palavrão que soltou ao vê-lo atracado nas
modelos. — ele completa, jogando uma echarpe de pele para trás dos ombros.
— Você está apaixonada pelo seu marido, Ellie. — ele bate sua taça vazia em
meu copo, como se brindasse, e dá um leve pulinho da banqueta. — Essa
frase não deveria soar estranha, Ellie. É o que todos esperam de um
casamento. — faz uma careta e sorri para mim. — Só que com você a ordem
foi inversa, se apaixonou depois de se casar, mas tá valendo, vai ser uma boa
história para contar pros netos! — ele recua um passo e me olha. — Vai lá e
tira ele de lá, garota! Pega seu homem de volta!
Virando em meio a um passinho de dança, vejo Lennox andar em
direção ao banheiro. Bebo meu uísque, mentalizando se seria prudente
simplesmente sair dali sem que Trevor sequer me visse, mas todo o blábláblá
de Lennox reverbera em meus ouvidos, me deixando na defensiva.

Volto a olhar para a área VIP e me surpreendo com Trevor de volta,


sentado em uma cadeira, seus olhos fixos em mim enquanto bebe direto de
uma garrafa. O homem ao meu lado me pergunta se aceito outro drink e eu
desvio minha atenção para ele, notando que mira diretamente meu decote
com seu rosto alguns centímetros acima de mim.

— Claro. — respondo, voltando a olhar rapidamente Trevor, seus


olhos cerram em minha direção e ele coloca a garrafa na mesa. — Acabei de
beber uísque, mas peça o que quiser. — sorrio para o homem, ainda que meus
olhos continuem mirando Trevor. — Me surpreenda!

Obviamente, o homem gosta de minha resposta e eu reparo em seus


traços bonitos, ele é atraente, forte e está interessado em mim, o que me leva
a compreender que não preciso saber de mais nada. É o suficiente para que
meus lábios se curvem em um sorriso para ele, surpresa com seu interesse e
grata por ser na melhor hora possível.

Solto a franja de minha orelha e retorno a olhar Trevor enquanto


tomo o drink que o homem me estende.

Meu marido se empertiga na cadeira e no instante em que acho que


vai se levantar, uma ruiva se senta em seu colo, esfregando seus fartos seios
em seu rosto. E é o suficiente para mim, deixo meu copo pela metade no
balcão e pego no braço do homem ao meu lado:
— Aqui está muito claro, não acha?

Ele concorda imediatamente com a cabeça e segura minha cintura,


me encaminhando entre as pessoas dançando no meio do salão, deixo que me
guie, usando seus fortes braços para me distanciar o máximo possível do
tumulto, e miro sua boca quando me gira e me prensa contra a parede perto
da saída de emergência da boate, o letreiro da porta deixando seu rosto com
vários tons avermelhados.
Ele não pede permissão, tomando meus lábios com força, sua mão
desce pela lateral de meu quadril e segura minha coxa, me fazendo envolver
sua cintura com minha perna. Enlaço suas costas com minhas mãos e
estranho a textura de sua boca, aprofundando minha língua em nosso beijo,
ainda que eu não tenha certeza do motivo de estar fazendo aquilo com ele.

O homem desce seus dedos por minha lombar e agarra minha


bunda, apertando com vontade minhas nádegas, me puxando com força para
seu quadril e me fazendo sentir que está muito excitado com aquilo. Eu solto
minhas mãos de suas costas e não gosto da velocidade nem da intensidade
que ele está levando aquele momento... o que ele estava achando? Que
iriamos transar em público?
Espalmo minhas mãos em seu peito e tento me soltar dele, mas ele
me segura e me força entre seus dedos, roçando seu pau em mim e
arranhando sua boca na minha enquanto tento desviar meu rosto do seu:

— Ei, chega! — eu reclamo, tentando empurrá-lo, no entanto levo


um susto quando solta meus lábios abruptamente, e assisto, confusa, a ele cair
estatelado na mesa ao nosso lado, quebrando-a e fazendo as pessoas se
levantarem assustadas, bebidas entornadas em seus colos, copos estilhaçados
no chão.

Trevor passa por meu campo de visão e o soca no rosto, não dando
tempo nem para que o cara se levante, completamente perdido com o que
aconteceu nos últimos segundos, assim como eu. Um casal à minha frente
berra quando Trevor pega o colarinho do cara e soca a cabeça dele na mesa
quebrada ao mesmo tempo em que algumas pessoas tentam tirá-lo de cima do
cara.
Um soco direto no nariz do homem, e a boca que há poucos
segundos me beijava é banhada por sangue, eu grito apavorada e Trevor se
levanta, ajeitando o paletó bagunçado, empurrando os homens que tentaram
segurá-lo em vão. Ele me olha por um segundo, levantando sua mão em
direção à minha nuca antes de me agarrar o cabelo e puxar minha cabeça para
si, dou outro berro assustada e meu salto cambaleia, quebrando.

— O que pensa que está fazendo, carajo? — ele pergunta


entredentes e seus dedos forçam nos meus fios, não o respondo e ele estreita
os olhos para mim. — Você ia dar para esse mierda, Ellie?

Eu o encaro e ele bufa, abrindo a porta ao nosso lado e me


empurrando pela saída, eu tento me soltar de suas mãos, mas ele me agarra
com força, eu o empurro, ele me segura, eu grito de raiva, ele tapa minha
boca e me empurra contra a parede do beco, cravo meus dentes em um de
seus dedos.

Trevor xinga em espanhol, soltando meus lábios e segurando meu


queixo com força, me forçando a olhar em seus olhos:

— Você não quer me ver com raiva, preciosa!


— Vai me bater? — sibilo e ele volta a xingar, me empurrando e se
soltando de mim, retrocedendo seus passos e se afastando. No mesmo
segundo ele soca uma placa de “sem saída” do beco e urra, agarrando seus
próprios cabelos. Eu sigo em sua direção e paro em sua frente, olhando sua
face transtornada.

Trevor me encara e parece que seus olhos se resumem à escuridão


de onde estamos, iluminados pela parca claridade de um poste ao longe:

— Yo no soy así. —ele murmura tão baixo que mal posso ouvir. —
Eu não sou assim! — repete, desta vez mais alto, e eu me aproximo, pegando
com força no colarinho de seu paletó e o encarando tão de perto que nada
mais vejo além de seu rosto.
Trevor respira profundamente e o ar que solta levanta alguns fios de
minha franja, desço meus olhos para sua boca e ele me observa mirar seus
lábios, aperto mais ainda seu colarinho e subo de volta meus olhos para os
seus, percebendo que me fita, concentrado, exalando tanta masculinidade que
meus dedos tremem em seu paletó. Fecho meus olhos antes de me aproximar
mais, no entanto é ele quem me beija primeiro, sorvendo meus lábios como
se nunca tivesse experimentados eles antes.
16

Trevor me empurra outra vez e minhas costas colidem contra uma


caçamba com restos de obras, ele lambe minha boca e eu desço meus dedos
por sua calça, apertando o volume sob o tecido, Trevor retrai um gemido e eu
me viro de costas, imitando o que a garota tinha feito com ele na área VIP,
deslizando meu corpo pelo seu até o chão, voltando languidamente enquanto
ele delineia minha silhueta com suas mãos.

Trevor me cerca, me fazendo imprensar contra a caçamba e empinar


meu quadril quando se debruça sobre mim. Ele lambe meu pescoço e eu me
surpreendo ao ver nosso reflexo em um pedaço de espelho entre os destroços;
miro sua mandíbula quadrada sob a barba rala, os olhos fechados, a língua em
minha pele... ele desce com a mão em minha cintura e, não satisfeito, desliza
os dedos pela bainha do meu vestido, se infiltrando pelo elástico da minha
calcinha no momento em que seus olhos se abrem e me encaram pelo
reflexo... ah, meu Deus...!

— Trevor...

Ele baixa o rosto, desviando os olhos de mim e apoia a testa em


meu ombro enquanto o sinto abrir suas calças. Inspiro todo ar que posso,
descendo minha calcinha melada e encontrando sua mão entre minhas pernas.
Sua língua contorna minha nuca e eu levanto meus olhos, voltando a mirar
seu reflexo, sentindo-o esfregar a cabeça de seu pau em mim.

— Ahhh. — gemo, espalmando minha mão na borda da caçamba.


Escuto o barulho do pacote sendo rasgado e logo ele joga a embalagem vazia
da camisinha no meio dos entulhos. Seu pau se aprofunda em mim, e eu sinto
o calor misturado à dor quando me inclino mais ainda, recebendo suas
investidas, que me penetram com força sob seus gemidos em meu pescoço.

Eu o sinto grosso e muito duro, deslizando em mim, as bolas


batendo em minha bunda... ah, meu Deus... Trevor eleva a mão e a espalma
sobre a minha na quina da caçamba, entrelaçando nossos dedos, beijando
meu pescoço, sugando minha pele com a saliva melada de prazer.
— Ellie... besame... — ele geme e eu viro meu rosto para o seu. —
Preciosa... me beije! — ele pede e eu alcanço sua boca, quase me
contorcendo para que nossos lábios não se soltem naquela posição. Trevor
não me ajuda, indo para o lado ou se ajeitando, ele me mantém presa a seu
corpo, me comendo com brutalidade, como se fôssemos nos desfazer caso ele
me soltasse.

— Tú pensaste en mí quando se agarrou com ele...? — pergunta, me


fazendo encará-lo através do espelho, seus olhos crivados nos meus, o
movimento de vai e vem de nossos corpos. — No mierda da boate...?

— Trevor...?
— Você quis que fosse eu ali, não quis, preciosa? — pergunta, a
acidez destilando nas sílabas. Tento sair daquela posição, mas ele impõe mais
força nos movimentos, me segurando entre os braços. — Você desejou que
fossem meus dedos em sua bunda, não desejou?

— Trevor?
— Me responde, Ellie, porra! — tento me desvencilhar, mas seus
dedos deslizam por meu braço e ombros e ele agarra minha nuca, passando as
unhas em meu pescoço e subindo pelos cabelos, bagunçando-os todos
enquanto me beija outra vez, fervorosamente. — Tú quis que fosse mi carajo
forçando em seu quadril, não quis, Ellie? — pergunta em meus lábios e logo
em seguida empurra meu rosto para longe do seu, mordendo minha nuca,
socando seu pau em mim com força. — Eu te excito mais, Ellie? ¿Soy más
guapo que él?

Engulo minha saliva, tentando respirar quando impõe o ritmo mais


intenso, entrando e saindo de mim, deslizando com força da cabeça à base,
até que sorvo todo ar que posso e o orgasmo explode em seu pau, a pulsação
em todo meu corpo.

Trevor volta a me cercar completamente enquanto se debruça mais


ainda sobre mim, as suas mãos agarrando as minhas, seu pau me estoca de
maneira selvagem, escuto Trevor me chamar de hijaputa algumas vezes
enquanto lambe minha orelha, não passa de um sussurro, mas ele está com a
boca em meu ouvido e não tem como não escutar as várias vezes em que ele
repete o xingamento até gozar, que é quando balbucia um o que está
haciendo conmigo quase, quase, quase inaudível.
Eu tento me virar, mas ele me mantém na mesma posição enquanto
esfrega a cabeça do pau na minha pele arrepiada e respira forte em minha
nuca, tão forte que acho possível que esteja buscando por ar. Eu descolo meu
corpo do seu e desço meu vestido, assistindo-o apoiar uma mão na caçamba,
a outra ainda em... em seu pau... os olhos fixos no chão, o peito inflando e
desinflando.

— Trevor...
— No. — ele me corta, tirando a camisinha e fechando as calças,
sem me olhar nos olhos. Sinto as lágrimas vindo, mas as seguro quando ele
levanta os olhos para mim: — Necessito um poco de aire...

— Você está passando mal?

— Por que fez aquilo, preciosa? Aceitou bebida de um estranho? Se


agarrou com ele? — sua voz é um engasgo e eu me assombro com aquela
tonalidade. — Queria se vingar de mim?
Eu não respondo de imediato porque nem eu mesma sei o que me
impeliu, acho que a soma de tudo, mas principalmente os últimos quinze dias
sozinha e... minha mãe agora há pouco e ele com aquelas mulheres lindas.

— Eu também deveria ter socado elas? — aponto para a porta da


boate. — As mulheres que estavam com você na área VIP? Assim que você
gostaria que eu tivesse reagido?

— Eu soquei el mierda por ele ter te obrigado! — Trevor berra, se


exasperando. — Las mujeres estavam dançando, Ellie!
— Não! Aquilo não era uma dança, Trevor, não ache que sou
idiota! Você estava bebendo e se insinuando para elas e... — eu me calo
quando ele passa por mim, seguindo em direção ao seu carro estacionado na
esquina do beco.

Trevor aperta o controle e a porta do carona sobe verticalmente, ele


atravessa pela frente do carro e segue para o lado do motorista, se jogando ao
banco, as mãos tapando seu rosto, os cotovelos apoiados ao volante. Eu o
sigo, me sentando com cuidado ao seu lado, as portas continuam abertas e o
ar fresco da madrugada sobe pelas minhas pernas.

— Eu só quero apagar! — sua voz sai grossa e imponente, mesmo


abafada pelos dedos. Eu apoio minha mão em sua perna e ele não se move, a
cabeça afundada naquela posição.
— Trevor, olha, eu...

Ele se vira para mim e as lágrimas despencam de seus olhos


injetados de ódio:

— São niños, Ellie! Crianças, carajo! — ele berra e eu dou


instintivamente um pulo no banco. — Um laboratório de mierda no Brasil!
Ele tira minha mão de sua coxa e eu mantenho meus braços
cruzados, sem me mover mais enquanto ele se aproxima, ainda berrando:

— Estão todos condenados como ela! — gotículas de seu suor


batem em meu rosto quando ele impõe seu corpo sobre o meu e eu levanto
meus olhos, encarando os seus. Eu sinto meus nervos tremerem, mas me
mantenho parada enquanto ele me olha com nojo e ódio. — ¿Tu sangre está
tan sucia como la de él, Ellie? — apesar de me esforçar, não consigo
entender novamente o que me pergunta, é uma frase inteira em espanhol e ele
fala tão rápido que me perco tentando decifrar seus questionamentos. —
Você é um deles? Você é como eles?

— Eles? Eles quem? As crianças? As crianças no Brasil? Do que


você está falando, Trevor? — mordo minha língua quando ele segura meu
braço com força, seus dedos fincando em minha pele. Ele quase me agita,
tentando me fazer respondê-lo, mas continuo sem entender do que se trata.
Trevor me solta e soca o volante uma vez, voltando-se para mim em
seguida:

— Eu fechei o laboratório, Ellie! — as lágrimas caem uma atrás da


outra. — Mas você acha que foi a tempo, acha??? Acha que os niños não
estão condenados???
Sem acreditar que ainda possa me mover e, muito mais, ser capaz
do que vou fazer, pego em seu braço e o puxo para mim, praticamente
agarrando Trevor, que nem sequer reluta quando o abraço e afundo sua
cabeça em meus ombros, suas unhas quase me arranhando as costas, os
soluços altos escapando por seus lábios, como uma tormenta que sai de seu
peito e inunda o meu.

Antes mesmo que eu me dê conta, ele me empurra e se joga para


fora do carro, caindo de joelhos no chão e convulsionando as costas. Eu me
esgueiro pelo banco do motorista e vejo que vomita em uma poça d’água,
voltando-me para o painel à procura de seu celular, me recriminando por ter
espatifado o meu em casa.

Meus dedos tremem quando o encontro e eu sinto minha visão turva


pela lágrima assim que saio do carro e dou a volta até ele, apoiando-o quando
tenta se levantar e recostando-o no banco do motorista. Passo meus dedos por
seus cabelos suados enquanto ele limpa a boca com o antebraço do paletó,
seus olhos muito além de mim.
Mostro seu celular e aponto para a tela:

— Preciso ligar para que Andrew venha nos buscar, Trevor. —


acaricio seu rosto e ele fecha os olhos, visivelmente enjoado. — Qual é a
senha?

— Bee2106. — ele responde num sopro e eu paraliso meus dedos


por um momento me lembrando do que falou em seu pesadelo. Ainda que
houvessem mil questionamentos dentro de mim, no momento apenas me
limito a ligar para meu motorista pedindo que venha nos buscar.

Trevor respira com dificuldade e eu volto a me sentar no banco ao


seu lado, um olho em seu rosto e outro em seu celular, os dedos tentados a
mexer nele. Contudo, não tenho tempo de seguir com meus instintos, levando
um susto ao ver Trevor se encolher ao meu lado, gemendo de dor.

— Trevor? — levo minha mão aos seus cachos e ele espreme os


olhos, cerrando a boca com força. — O que está acontecendo?

Ele põe seus dedos em cima da barriga e se encolhe mais ainda,


batendo com as costas no encosto do banco, abrindo os olhos e mirando o
teto do carro, puxando ar entre seus lábios apartados, a testa franzida,
piscando lentamente, as lágrimas banhando seu lindo rosto cheio de dor, o
olhar mais quebrado que já vi em minha vida... o celular escorrega
imediatamente de minhas mãos e eu me ajoelho sobre meu banco, pegando
em seu rosto.

— O que você tem, Trevor? — pergunto, me sentindo assustada, o


suor em suas têmporas escorre entre meus dedos, sua pele está gelada e ele
mal parece saber que estou com ele. — Trevor?
— Miguel. — me responde com seu sotaque inconfundível e eu
levanto minhas sobrancelhas sem entender nada.

— Miguel? Quem é Miguel? — ele fecha os olhos e morde seus


lábios com força. — Trevor, me responde, por favor... como posso te ajudar?
O que você tem?

— Voy a morir... — ele balbucia e eu engulo em seco, descendo


meus dedos por seus ombros, puxando-o para mim, ele tenta se manter
encolhido, não se move, pesa mais que uma tonelada, se esquiva de meus
olhos, eu peço que me escute, que vai ficar tudo bem, ele olha minhas mãos
em seus braços, fecha os olhos novamente, espreme com força, deixa que as
lágrimas despenquem, não emite som algum.

Eu o puxo para mim e encosto sua cabeça em meu peito, sentindo


sua testa bem quente e compreendendo que está com febre, meu coração se
mingua e eu não entendo por que razão estou com tanto medo ali ao seu lado,
mas pela primeira vez sei que não é por sua companhia... mas por temer
perdê-la.

Trevor está no banho há mais de uma hora.

Eu já chorei tudo que podia e não podia naquele momento, enxugo


minhas lágrimas incessantemente, mas mesmo assim sei que ainda não chorei
o bastante para me sentir mais reconfortada. Na verdade, acho que nunca vou
chorar o suficiente, mesmo que me desidrate em litros de lágrimas.

Eu nunca fui do êxtase ao medo em tão poucos segundos e saber


que Trevor era quem me levava a todas sensações me deixava aflita, meu
corpo todo doía, minha cabeça explodia de dor. Abro a porta do banheiro e
novamente parece que sou levada para um mundo do qual nunca vivi, mas
que agora não me vejo sem pertencer.

A água cai gelada e com força, golpeando o chão e talvez um pouco


dos pés de Trevor, encolhido no canto do chuveiro, sua cabeça enfiada entre
os joelhos flexionados. Ele está úmido, quase seco e eu me pergunto há
quanto tempo está assim enquanto avanço o pequeno espaço e abro o box,
fazendo-o levantar os olhos perdidos para mim, muito mais molhados que
qualquer pedaço de seu corpo.

Um de seus braços sai do aperto que mantém nas pernas e ele ergue
a mão para mim, seus dedos tremendo. Pego-os com força e entro no box,
não me importando de estar de roupa quando ele cruza as pernas e eu me
sento em seu colo, abraçando-o completamente. Trevor treme por completo,
o rosto enfiado no meu decote molhado e eu agarro sua pele, quase fincando
minhas unhas, o trazendo mais para mim, minha cabeça em cima da sua, seus
cabelos em meu queixo, ele me espreme entre os músculos de seus braços,
parecendo implorar pelo conforto de meu corpo e eu o escuto arfar, os sons
de seus lábios abafados por meu peito...
— Por favor, Trevor... — balbucio entre meu choro. — O que... o
que você tem...? Está me assustando... Eu... eu estou com medo, Trevor...

Ele deixa as mãos caírem e tomba o rosto para trás, recostando o


topo da cabeça no azulejo e fica algum tempo assim, só me olhando enquanto
as lágrimas caem tortuosas de seus olhos e estilhaçam minha alma.

Trevor não fala nada toda aquela noite, mal fecha os olhos. Eu
também. Apenas o mantenho entre meus braços na cama, como se eu pudesse
protegê-lo de seus piores pesadelos, mesmo acordado.

— Precisa de mais algum analgésico? — pergunto quando vejo que


amanhece, ainda que meu quarto se mantenha escuro. Posso ouvir os
passarinhos cantarem e imagino que o dia tenha amanhecido azul e
ensolarado, ainda que aqui dentro esteja frio e fechado. — Você precisa me
dizer o que precisa, Trevor... — pego em sua mão e seguro seus dedos,
fazendo-o me olhar de relance antes de voltar a fingir que dorme.

— Eu bebi... tenho úlcera no estômago... — é o que ele responde,


então puxo sua mão para meus lábios e a beijo com calidez, apenas um leve
toque.

Trevor se vira para mim, olhando aquele movimento, e desliza seus


dedos por meus cabelos. Ele fecha os olhos e morde seus lábios com força:

— Por que cuidou de mim?

Eu me debruço sobre ele e pairo meu rosto sobre o seu, fazendo-o


me olhar:
— Por que não cuidaria...? — devolvo a pergunta. — Você... você
não teria feito o mesmo...?

— Ellie Kane... — sua voz falha e sinto as mãos que me apoiam


acima dele fraquejarem, mas me sustento naquela posição, esperando que ele
termine. — ¿Quién eres tú? — engole. — Quem é você, preciosa...? — ele
sorri pequeno, um sorriso sem alma e eu aperto seus dedos:

— Também estou tentando descobrir...

Trevor finalmente dorme e eu pego seu celular debaixo de meu


travesseiro, meus dedos tremem e eu teclo a senha que me falou no carro,
sentindo o nervoso tomar conta de meu corpo. Penso em levantar, me
esconder no banheiro, mas seu sono é tão pesado que posso ouvir sua
respiração difusa e forte, me assegurando que terei alguns minutos de
privacidade mesmo ali ao seu lado.

A tela se abre e eu pesquiso alguns contatos, vendo que são poucos


em sua lista, o número da empresa, o meu, de meu pai, entre outros que não
reconheço. Clico no nome de Abby e vejo as ligações recentes dos dois, três
datadas no feriado nos Hamptons e mais cinco não atendidas dela nas últimas
semana. Seguro com força a vontade de chorar e mais ainda o desejo que
tenho de acordá-lo e colocá-lo contra a parede, o que minha amiga poderia
querer tanto com ele se nunca nem sequer havia falado sobre meu marido
comigo?
Olho os torpedos e a caixa de mensagens está vazia, futuco mais um
pouco e mordo meus lábios quando quero exclamar o assombro de encontrar
uma foto solitária na pasta de imagens. Abro-a imediatamente e a primeira
coisa que vejo é uma fotografia antiga, é uma foto de uma foto manchada, a
imagem preta e branca, duas crianças abraçadas e sentadas a um balanço de
madeira em um quintal.

Estreito meus olhos e admiro a menina de cabelos presos no alto da


cabeça, belos cachos caindo como cascata por seus ombros, um sorriso
divertido e torto que me assombra ligeiramente ao me parecer familiar. Ela é
bonita, tem a pele morena e parece ter em torno de uns doze ou treze anos,
um conjunto de short e camiseta florido. Ao seu lado, o garoto parece agarrá-
la, seus rostos estão colados e é nítido como se parecem e muito, meu
coração dá um solavanco e entendo por que ela me é familiar... é Trevor ali
ao seu lado... um Trevor criança e de cabelos mais enrolados ainda, os cachos
revoltos por causa da mão da menina em seus cabelos, bagunçando-os.
Há algo diferente no modo em que ele olha em direção à câmera,
uma felicidade que nunca vi em seu rosto, uma completude... tento abrir mais
a imagem e percebo que não é apenas isso que vejo de diferente... forço
minha visão e tento compreender o que o tempo daquela foto não me ajuda
em qualidade... seus olhos parecem mais claros que os que reconheço em seu
rosto e estranho esse detalhe, mas de qualquer maneira, mal posso ter certeza
do que vejo, já que a mancha amarronzada cobre metade da foto.

Olho a casa atrás do balanço, uma casa simples de janelas pequenas,


algumas flores ao lado da porta fechada, miro a foto por completo outra vez e
volto a atenção ao garoto sorridente, ele tem uma bola de futebol suja no colo
e parece vestir a camisa de algum time, joelho ralado, luvas de goleiro caídas
na terra. Trevor se ajeita ao meu lado e eu desligo o celular no mesmo
segundo, escondendo-o sob meu travesseiro.
Escuto as vozes de meu pai e minha mãe no andar debaixo e sei que
a vida recomeça naquela manhã de sábado, mas não sei se terei condições de
sair daquela cama no fim de semana... não sem algumas respostas de Trevor,
certamente.
17

Trevor apoia seu braço em minha cintura e sinto sua respiração em


minha nuca quando ele ajeita sua cabeça entre meus cabelos, quase na curva
de meus ombros, mas me reteso, notando o seu corpo se aconchegar ao meu,
moldando-se em minhas curvas.

É pouco, mas é o bastante para que eu admita para mim mesma que
estou completamente entregue àquele homem... que mal conheço, mal
tínhamos um convívio para tal sentimento tão avassalador em meu peito.

— Trevor... — engulo o engasgo em minha garganta, porém quando


vejo já estou o chamando, mesmo que baixinho. Eu não sei se ele está
acordado ou se ainda dorme, mas seu corpo inteiramente moldado às minhas
costas, seus braços sobre mim... era assim que eu queria adormecer ao seu
lado toda noite e queria muito, muito que ele estivesse ciente do quanto
estávamos próximos.
— O que foi...? — pergunta com a voz baixa em meu ouvido e a
rouquidão em seu tom pode ser confundida tanto com o restante de alguma
dor como com sono, eu não saberia dizer.

— Quem é Maria, Trevor? Miguel? Bee? Por que abelha é a senha


de seu celular? — eu viro meu corpo para o seu, suas mãos não soltam minha
cintura assim que ficamos de frente e é nítida a perturbação em seus olhos. —
Você me perguntou quem sou eu... mas... que é você, Trevor? E quem são
essas pessoas que habitam seus sonhos, seus devaneios?

Trevor aperta minha cintura e me surpreende com um beijinho


estalado em minha testa.

— Me deixe descansar, preciosa. Apenas, me deixe descansar...

— Eu não aguento mais... — finalmente choramingo, mas


imediatamente me sinto constrangida por dizer aquilo quando é ele quem está
doente, mas... não sei sentir diferente, aquela sou eu agora, apenas eu,
arrasada, cansada, sem forças para continuar lutando.
— O que houve, Ellie? — suas mãos buscam meu rosto novamente
e eu o encaro, no entanto me calo. Eu não o conhecia o suficiente para confiar
em um estranho minhas histórias, meus medos. Não quando ele mesmo me
escondia tudo de si. Não, eu não iria me abrir enquanto ele não fizesse o
mesmo.

— Trevor... — guincho por dentro, como se uma faca dilacerasse


minhas entranhas. — Me responda... quem são essas pessoas? — eu o
confronto, olhando em seus olhos. — Por que tem pesadelos com elas?

— Porque todas elas estão muertas, Ellie. — ele se afasta,


levantando o lençol com seu corpo. — Eu sonho com los muertos, Ellie... —
ele suspira. — Maria, mi cariño, minha Bee... Miguel... todos morreram...
Umedeço meus lábios, atônita com sua revelação, mas me
mantenho em silêncio, esperando que aprofunde sua fala, que me conte mais
detalhes, que não me deixe no limbo novamente.

— Maria era mi hermana... minha irmã, preciosa. — ele se ajeita


nos travesseiros e eu reteso qualquer movimento, olhando-o sem piscar.
Trevor continua, ainda que demonstre dificuldade em olhar em meus olhos.
— Eu a chamava de Bee, uma bobeira que inventei para implicar com ela
porque mi padre a chama de Honey... cachos de mel, ele dizia e ela rodopiava
pela casa como uma boba, toda metida com suas marias-chiquinhas. — ele ri
baixo, sem ânimo, em meio às suas lembranças. — Eu implicava com ela
dizendo que não tinha nada de mel, mas sim de abelha, sempre com respostas
engraçadinhas para mim, como ferrões.
Sorrio com sua resposta sincera e bonita, me lembrando da foto em
seu celular. Claramente aquela menina era a Bee.

— Achei que fosse filho único. — sussurro, em alusão ao que ele


sempre me deu a entender.

— Maria morreu com quatorze anos, éramos gêmeos. Metade de


mim morreu com ela. — ele levanta os olhos para mim e eu deixo meus
ombros caírem, sem forças. — Es muy doloroso falar dela, Ellie.
— ... e Miguel...? — pergunto, ainda no tom mais baixo que posso,
e Trevor fecha os olhos, a voz sem entoar qualquer emoção:

— Morreu com ela.

Morreu com ela? Era um outro irmão? Um amigo? Teria sido num
acidente? Alguém que causou o acidente? O mesmo que matou os pais deles?
— Trevor, quem é...
— Sua vez. — ele me interrompe. — Sua vez de me responder,
Ellie. — seus olhos se voltam para mim e ele me encara, sério. — Por que
aceita isso?

— Isso?
— Esse casamento...? As imposições de seu pai? Por que, preciosa?

— Não tenho escolhas, Trevor! — minha voz sai estridente e ele


desvia o rosto, o semblante fechado. — Nunca tive chance de ser diferente!
Meu pai é um homem arrogante que sempre colocou minha mãe ou a
empresa acima de tudo! — puxo o lençol até meus quadris e me ajoelho na
cama, sem saber exatamente como agir, já que a vontade é simplesmente de
me esconder debaixo da coberta covardemente. — Eu nunca pude ser eu,
mostrar o que eu queria, impor minhas vontades. Eu fui sua filha mulher e
isso bastava para que ele me colocasse em um mundo à parte, como se eu
desmerecesse qualquer mérito. — suspiro, diminuindo meu tom de voz. — A
empresa é sua, Trevor, um homem que ele desejava ter em meu lugar. O filho
que ele nunca teve. Ele nunca cogitou que eu herdasse a empresa, nunca,
preferiu me casar com seu pupilo para ter certeza que seu patrimônio ficasse
na família, mas com quem ele confiasse. Entende como isso é doentio e
ofensivo?

Trevor vira seu rosto para mim e morde seus lábios.


— E você se preocupa com a empresa, Ellie?

Faço que não com a cabeça, resignada.

— Eu a amaldiçoo. Meu sobrenome é minha prisão.


Ele se ajeita na cama, parecendo levemente incomodado, mas
mesmo assim pergunta o que tem em mente, como se aquilo fosse o mais
importante de tudo que lhe dissera.

— Você vive numa redoma de ouro, Ellie... como amaldiçoa o que


a sustenta, o que compra tus joyas, paga seu motorista particular?
Reviro os olhos, me jogando de volta aos travesseiros.

— Sim, claro, porque sou rica não tenho o direito de ser infeliz,
tenho, Trevor?! E é isso que você não entende! Meu pai acha que, no
máximo, eu deveria ser uma socialite preocupada com moda e joias, assim
como minha mãe! Eu nunca seria boa o suficiente para qualquer coisa além!
E pelo visto, você acha o mesmo!

Ele me encara, perplexo, e eu continuo, minha voz venenosa com a


raiva repentina que sinto ao deflagar os conflitos sempre adormecidos em
meu coração:
— Muito diferente de tudo que meu pai almeja para o brilhante,
maravilhoso, perfeito e incomparável Trevor Willians! — aponto para ele. —
Mi empresa, su empresa, mi casa, su casa, mi vida, su vida! — imito sua
língua de maneira sarcástica e ele nega com a cabeça. Me exasperando: —
Está decepcionado comigo, Trevor? Pois essa sou eu. Ellie Kane. Como eu
disse, a vida nunca me permitiu ser diferente.

— No, no es! Essa é a Ellie que você quer que os outros acreditem
que seja! Você diz ser medrosa, mas montou em mim e me ordenou que a
fizesse mulher mesmo sabendo que eu poderia machucá-la! Você casou com
um homem que não conhecia, e isso requer coragem, Ellie, muita! — suas
mãos estão agora em minha cintura e ele me olha de modo sério, como se
quisesse convencer não apenas a mim. — Você mantém um barco de quase
uma tonelada na direção do vento, sob seu domínio! E o comanda
hermosamente, Ellie! Você faz Enfermagem numa faculdade conceituada
mesmo que tu padre seja contra! Você se diz ser covarde, preciosa, mas a
mujer que eu vejo ahora é mais forte que pensa!

Respiro profundamente, puxando o lençol de volta para mim, mas


não deixo de olhá-lo enquanto ele faz o mesmo, como se tentasse escanear
meus sentimentos, minhas veias, meu coração.
— Basicamente, você quer acreditar ser quem não é para agradar tu
padre y tu madre. E o seu namorado da época, alguns amigos, talvez. — ele
para por um segundo, parecendo em dúvida, mas quando continua parece
muito seguro de suas conclusões. — Você não tem medo de tu padre, Ellie...
Você tem medo da mujer que você é.

Eu seguro o travesseiro com força e encaro o homem à minha


frente, sem acreditar que ele podia me ver... me ver de verdade. Meus dedos
enrolam a fronha como se o constante movimento pudesse aliviar todo o
horrível sentimento que me consumia... como se ele me conhecesse mais
que... eu mesma.

— Você poderia ser quem você quisesse, preciosa. — ele fala num
tom amargurado. — Mas prefere ser infeliz na redoma de tu padre...? Só
por... segurança... segurança financeira?

— Não fale sobre o que você não sabe! — mesmo que eu não
queira, minha voz se altera um pouco, eu me sinto na defensiva e nem sei
bem o que quero defender. — Você também é rico, mal completou seus trinta
anos e está a um passo de ser CEO na maior empresa de fármacos dos
Estados Unidos! Eu vi como ele te humilhou, Trevor, como ele falou de sua
língua... da língua do país onde você nasceu! A língua que eu vejo que se
orgulha em falar ainda! E você... você engoliu tudo para continuar beijando o
chão que ele pisa! Não me venha falar de segurança financeira ou emocional,
você está casado comigo, Trevor! Casado por causa de uma negociação! É
tão culpado de seu destino quanto eu do meu! — sibilo, tentando conter a
raiva, e ele me encara de volta.

Eu não consigo confrontar os sentimentos que passam em seus


olhos. Mas é óbvio que Trevor está com raiva. Muita.
Então ele desvia os olhos e fita o lençol, suspirando, resignado:

— Você está certa... eu não sei de nada... y soy el único culpable de


mi destino...

Bufo para ele e pego meu roupão ao seu lado na cama.


— Onde você vai? — ele me pergunta quando me adianto pelo
quarto.

— Vou tomar um banho! — digo, nervosa. — Posso? Ou você


também quer comandar os meus passos? — elevo minha voz em um tom
irônico e bato a porta do banheiro.

Tesão, raiva, incredulidade, excitação, curiosidade, vontade... tudo


se explodia dentro de mim ao mesmo tempo. E aquilo me assusta
absurdamente. Talvez até mais do que saber que eu nunca alcançaria as metas
de me pai, ou que eu teria a vida que eu desejasse independente das metas de
meu pai.
Talvez estar apaixonada por Trevor me assustasse mais do que
qualquer outra constatação.
— Essas são as únicas evidências? — meus olhos passeiam da
papelada espalhada à mesa para o senhor à minha frente. Eu havia chegado ao
Brasil não tinha nem metade de um dia e já estava naquele laboratório,
sentindo o asco crescer dentro de mim, como uma tormenta sem fim.

Por mais que eu não quisesse me lembrar do cheiro, da luz


fluorescente, dos ecos dos corredores... as sensações não saiam de meu peito
e estar ali, de volta a um laboratório insuportavelmente igual ao que mi padre
trabalhava, só me fazia lembrar com mais raiva de tudo que vivi.

— Eu já te disse algumas vezes que sim... — ele retorna, parecendo


cansado, e eu bufo ante sua fala.
— Eu sei que já falou! E quero que fale mais quantas vezes eu achar
necessário, mierda! — rebato, nervoso, alterando meu tom de voz,
empurrando com força a cadeira para trás. Francisco me olha, um pouco
assustado com meu rompante e eu me levanto, andando de um lado para o
outro naquela pequena sala.

— Nada mudou depois de nossa última análise, infelizmente,


senhor Trevor. Não há tantas provas assim, o senhor Clark sempre pedia a
nossa... discrição... — ele suspira, tirando os óculos, limpando-os em um
lenço. Paro meus passos e o encaro, derrotado.
— Desculpe, senhor Francisco. — abrando minha voz e me sento
novamente, recolhendo a papelada. — Eu não deveria ter berrado com usted.
Estou no meu limite e já não sei mais o que fazer.

Francisco me olha de lado, a compreensão em seu rosto. Eu o tinha


contratado para chefiar aquele laboratório e, por mais que o senhor Clark
tivesse insistido no uso do antibiótico que estávamos desenvolvendo,
Francisco sempre nos alertara que o resultado não estava nem próximo do
que a Kane queria. Se aquele bosta não estivesse preso, certamente o
laboratório ainda estaria aberto e as crianças ainda estariam reféns dos
tratamentos “placebos”, com o vírus se agravando cada vez mais, podendo
levá-las ao óbito.

— O senhor fez o certo, senhor Trevor. Se tivéssemos continuado,


elas teriam morrido. Pelo menos um terço delas.
Faço que sim com a cabeça, evitando seu olhar. Eu havia
comandado que dessem o medicamento certo e parassem com os testes, ainda
que precisássemos concluí-lo para a validação do medicamento pela FDA.

Mas não, no así, não desse jeito. Desse jeito, nunca más!

— E culparíamos a progressão da doença e não a falha de nosso


antibiótico... — sussurro, derrotado. Eu tive tanto medo por aqueles niños...
achei que tivesse fechado o laboratório tarde demais, que não tivesse
impedido os testes a tempo... eu temia chegar ao Brasil e descobrir que
alguma criança tivesse morrido em decorrência do estudo ou do avanço do
vírus em questão.

Eu conhecia como Desmond agia, não só ele como várias das


indústrias de fármacos pelo mundo... 70% dos testes estavam a cargo de
empresas terceirizadas e este laboratório em questão era apenas mais uma das
dezenas compradas pela Kane, ou seja, os resultados obtidos e o protocolo de
testes foram, como sempre, estipulados por Desmond. A escolha dos países
de terceiro mundo não era à toa, quase a metade de todos os testes clínicos
financiados pela indústria farmacêutica estavam acontecendo em países
emergentes por razões óbvias.
Por suerte, eu tinha conseguido acabar com os testes daquele
laboratório antes do pior acontecer, e só consegui compreender esse fato
quando cheguei e vi in loco a situação alarmada por John duas semanas atrás,
o que tanto me afetou e me levou ao extremo, culminando na bebedeira que
Ellie presenciou.

Por um segundo meu pensamento me leva ao olhar de mi esposa e


ao silêncio que retornamos depois de nossa discussão, mas me atenho no aqui
e agora, mirando o senhor Francisco, suado e cansado à minha frente. Eu
precisava desabafar com alguém, mas não sabia se o farmacêutico brasileiro
seria a melhor pessoa para me ouvir. Por mais que eu confiasse em seus
julgamentos e em seu trabalho.

— Eu teria ido à público se fosse necessário. — ele confessa e eu


confronto seus olhos, impressionado com sua coragem. — Mas não deixaria
que continuassem com o estudo. Nunca deixaria que...
— Você estaria acabado em dois segundos! — interrompo-o e
Francisco ri um riso nervoso, cruzando os braços:
— Antes minha carreira que levar mortes de crianças inocentes em
meus braços, senhor Trevor.

— Sua carreira seria o menor dos problemas, Francisco. — eu me


ajeito na cadeira e o seu pequeno escritório fechado e abafado parece me
engolir. — Esse experimento se trata de um caso claro de fraude! Ele estava
sendo manipulado para produzir o resultado desejado. Vidas seriam perdidas
por isso. — pego a pasta e recolho-a entre meus braços, sentando na ponta da
cadeira. — Você realmente acha que Desmond solo acabaria com sua carreira
se levasse isso à público?
— Senhor Trevor, eu...

— Isso não é só fraude, Francisco. É assassinato. Los niños do


grupo de controle tomaram a droga concorrente em doses menores do que as
adequadas para garantir o melhor resultado do antibiótico que estamos
produzindo. — coço meus olhos, buscando tempo para respirar, buscando ar.
— Desmond explora o fato de que seus testes clínicos podem provar qualquer
coisa que ele queira. Ele não deixaria um farmacêutico de terceiro mundo
desmascará-lo, Francisco. — não deixou mi padre, completo em pensamento,
cidadão americano e com Phd... por que deixaria ele, um ratón do
submundo? Eu odiava Desmond com todas as minhas forças, mas olhando
Francisco a poucos centímetros de mim, do outro lado da mesa, penso que
não estou sozinho.

— Ele não pode continuar impune... — ele bufa.


— Não ficará.
18

A única coisa que faço nos dias em que Trevor está no Brasil pode
parecer tudo, menos desencanar e conseguir desfocar das informações que
tenho sobre ele agora. Meus dedos desenfreados no teclado remetem a um
trabalho intenso, talvez Chloe e Lennox pensem que estou super focada no
projeto final de minha faculdade, ou lendo algum blog de fofocas ou moda,
mas tudo que faço é procurar o que posso sobre Trevor na internet.

Olho Lennox ouvindo alguma música em seu fone, mexendo nas


roupas em meu closet, e Chloe mordisca a ponta dos lábios enquanto
cantarola baixo, afundada entre minhas almofadas em meu sofá perto da
janela.

Prendo minha franja atrás da orelha e penso quais palavras posso


digitar agora no buscador. Um acidente envolvendo uma Maria e um Miguel,
talvez. Talvez seja esse o caminho que devo seguir: digito Maria Willians e
aquilo me soa tão bizarro quanto um Trevor ser irmão de uma Maria, mas
penso que, pelo fato de os pais de Trevor serem de países diferentes um do
outro, tenham decidido colocar suas raízes na escolha dos nomes dos filhos.

No entanto, por mais que eu digitasse todas as informações que eu


tinha, obviamente não eram suficientes e não encontraria nada.
E não encontrei.

— Chloe? — eu a chamo e minha amiga, distraída com uma matéria


no seu laptop, descruza as pernas e se estica sobre a almofada, olhando a tela
de meu computador em meu colo na cama. — Acha que seria possível esse
Miguel ter ocasionado o acidente que matou a irmã de Trevor? Isso faz
sentido para você? A família dele ter morrido nesse acidente?

— Pode ser que sim... — Chloe me responde e se concentra no


caderno que deixei na mesinha de cabeceira. Noto que agora ela se demora
analisando as poucas anotações que concentrei em esparsas linhas na página.
— Mas sinceramente seria estranho, não seria? Você me disse que eles eram
irmãos gêmeos e que Trevor te falou que ela morreu com quatorze anos...
então se isso for verdade, ele foi morar com quem? Porque obviamente teria
que ter ido morar com alguém, não teria? Por que ele nunca fala dessa
pessoa? Por que não foi ao seu casamento?
— Hmmm... — coloco a caneta na ponta dos lábios e analiso minha
amiga e suas perguntas investigativas, tão parecida com os pais. — E se
foram em dois acidentes diferentes? A Maria pode ter morrido ainda criança e
ele se envolveu em outro acidente com os pais anos depois.

— Duvido muito. — ela fala, sem tirar os olhos das minhas


anotações. — Seria coincidência demais. — Chloe se levanta, pegando o
caderno, e se senta ao meu lado. Lennox se joga do meu outro lado, vestindo
um sobretudo peludo e pink de meu armário e algumas canetas rolam pelo
colchão, caindo no tapete aos pés da cama. — O que é isso aqui? “Crianças”?
“Brasil”?

— Trevor estava arrasado por causa de algo envolvendo crianças no


Brasil, não sei... não consegui entender, ele estava misturando com espanhol
e falando rápido demais...
— Ele não deu nenhuma informação a mais, Ellie? — seus dedos
deslizam pela página, como se ela tentasse contornar meus rabiscos,
buscando-os em sua memória. — Apenas isso? Crianças no Brasil?

— Seriam órfãs, de repente? — Lennox pergunta. — Ou alguém da


família dele?

— Trevor não é brasileiro. — Chloe rola os olhos e ele faz beicinho.


— Acho... — eu me ajeito na cama, desconfortável, aquele tinha
sido um momento complicado, absorver tudo que ele falou foi praticamente
impossível, mas sim, ele tinha dito sobre um... — Laboratório! — eu quase
grito e apoio meu laptop de volta no colo, avançando para o teclado, abrindo
a página da internet novamente. — Ele falou sobre um “laboratório de merda
no Brasil”!

— Um laboratório de seu pai, Ellie? Mas ele falaria assim de um


laboratório da empresa de seu pai? — Lennox questiona e eu teclo, ávida em
descobrir qualquer informação.

— Não sei... — resmungo e olho alguns links aleatórios,


pouquíssimos. Clico em alguns, lendo rapidamente do que se tratam, e
avanço por outros quando concluo que nada têm a ver com crianças.
De qualquer maneira, digito “Empresas Kane” em seguida e
esquadrinho a tela quando vejo o nome de Desmond Kane em uma das
manchetes em azul. Clico no link e chego a arfar quando leio a reportagem
sobre algumas indústrias farmacêuticas que estavam fazendo testes clínicos
em moradores de rua nos anos 90, e a Kane era uma delas.

Meus olhos passam pelas palavras e eu não consigo acreditar no que


estou lendo até encontrar uma entrevista com Desmond.
— Seu pai diz que os “voluntários” eram motivados pelo altruísmo
em prol do saber científico. — a voz de Chloe chega aos meus ouvidos e eu
demoro a discernir sobre o que ela me fala, percebendo que ela está
debruçada sobre mim, lendo a entrevista. Ela se vira para nós dois,
transtornada: — Eu sei que as pessoas se voluntariam para esse tipo de coisa,
óbvio... mas isso aí me parece realmente errado. — aponta para a tela. —
Testar a segurança de medicamentos em pessoas fragilizadas que certamente
aceitariam qualquer valor para ter dinheiro pra comer?

— Eles recebiam menos que qualquer outro voluntariado, Chloe. —


suspiro ao ver que a reportagem frisa que, além de tudo, os moradores de rua
recebiam menos que a média do mercado. Leio sem absorver mais nada, tudo
se remete a linhas simples que, resumidamente, narravam que em um acordo
para encerrar o caso, que terminou na justiça, a Kane desembolsou meio
bilhão de dólares.

— A reportagem é do meu pai! — Chloe exclama, mirando o nome


do jornalista no fim da matéria e eu respiro fundo antes de clicar no último
link e saber um pouco mais sobre como a indústria farmacêutica resolveu
solucionar seu problema com a FDA, instalando laboratórios em outros
países. Países do terceiro mundo, suspiro, indignada.
— “Os produtos da indústria farmacêutica são especialmente
difíceis e caros de serem fabricados.” — Chloe lê em voz alta ao meu lado.
— “Até um remédio chegar à farmácia, são consumidos cerca de quinze anos
com pesquisa e um investimento quase três vezes maior que a média da
indústria, tornando-o um negócio de alto risco. E é por isso mesmo que,
apesar de gerar muito lucro, há também muito gasto.”

É simples. E absurdo, mas simples.


Meu pai ganhava com a mão de obra barata em países de terceiro
mundo e muito mais com o pouco investimento nos laboratórios depois da
autorização de venda. Desmond tinha encontrado ali outra maneira de
aumentar seu domínio no mercado financeiro dos EUA.

Os fármacos Kane eram necessários e a roda da fortuna girava com


nosso crescimento. E não era difícil concluir que crianças no Brasil de
alguma maneira sofriam as consequências, mesmo que eu ainda não soubesse
ao certo o motivo.

O pavor no semblante de Trevor me respondia muito mais do que


qualquer matéria.
— Santa Madonna, dona de meus quadris! — Lennox guincha ao
nosso lado e nós duas nos viramos ao mesmo tempo, vendo que ele está com
o laptop de Chloe no colo e os olhos arregalados para a tela.

— O que foi? — minha amiga se debruça sobre mim, pegando seu


laptop de volta, mas Lennox a intercepta, virando-o para mim:

— Sua mãe, Ellie! Sua mãe está no site da Radar Online! Eu estava
procurando mais notícias sobre os Kane e... bem, acho que você deve ler por
si mesma...
Não leio. Não consigo ler nada, é impossível que meus olhos
vagueiem pelas palavras quando uma imagem diz muito mais que elas.
Minha mãe aparece em algum tipo de imagem desfocada, como se fosse uma
foto de um vídeo e, ainda que eu não possa vislumbrar muitos detalhes,
claramente é ela. O close está em seu rosto e é difícil ignorar seus lábios
mordidos na expressão de prazer que faz enquanto um homem chupa um dos
seus seios.

Meus olhos apreendem que ela está completamente nua, mesmo que
a imagem desfoque propositalmente todas suas partes íntimas.

— Tem um vídeo. — Chloe murmura e Lennox solta um gritinho


nervoso antes de me cutucar:

— Clica nele, Ellie!

Desço meus olhos pela tela lendo as letras garrafais da fofoca


pseudonotícia: Sophia Kane em um momento íntimo com homem que
claramente não é o Rei dos Fármacos. Não penso duas vezes e não sei nem
como tenho coragem, mas clico no vídeo, me levantando da cama e lançando
olhares rápidos pela tela. Minha mãe beija o homem e as cenas são fortes
demais para que eu consiga sequer conceber em assistir.
— Sua mãe está traindo seu pai, Ellie? Quem será o cara? Ele não
aparece direito. — Lennox pergunta, mas antes que eu possa responder,
escuto o grito no andar debaixo.

Olho para os dois uma vez mais antes de me lançar pela porta e
descer as escadas, ouvindo meu pai e minha mãe discutindo na sala.
Desmond berra com Sophia, que anda pelo cômodo desesperada atrás dele.
Ele grita que não consegue compreender como ela pôde se deixar ser filmada
e eu paro no degrau antes de ele concluir que ela desmoralizou a família, sem
acreditar no que escuto.

É isso mesmo que ouvi? Meu pai estava mais furioso pelo vídeo ter
sido vazado na internet do que pela traição em si? Assisto a porta se abrindo e
Trevor entra na sala segurando uma pasta no instante em que meu pai joga
um enfeite da prateleira ao chão. Trevor tenta circundar pela mesa e alcançar
meu pai, acalmando-o, mas Desmond o empurra, se virando para minha mãe:

— Que você dava para todo mundo eu sabia! Não sei como você
não dá para ele! — meu pai aponta para Trevor e eu aperto o corrimão da
escada, estupefata pela escolha absurda de palavras de meu pai e muito mais
por incluir Trevor naquilo.

Meu marido encara os dois e sua perturbação fica estampada em


seus olhos, eu imagino que não faz a mínima ideia do que está acontecendo,
deve ter acabado de voltar do aeroporto depois de dez dias longe e quando
volta encontra aquela cena em casa.

— NÃO BASTOU O OUTRO QUE TIVE QUE ENCOBRIR,


SOPHIA? — meu pai volta a berrar e eu olho sua esposa encolhida no sofá.
— Aquele homem não foi suficiente para você?

Minha mãe não o responde e eu não entendo como não se defende...


como... como se... como se aquilo tudo fosse verdade.
— Você não ama meu pai...? — minha pergunta sai mais alta do
que eu gostaria e todos se voltam para mim. Desço o restante dos degraus tão
vagarosamente que mal entendo como sei andar enquanto presencio aquele
absurdo.

Meu pai xinga e sai em direção à porta da sala berrando sem parar.

No segundo em que a porta bate atrás de si, minha mãe me mira, um


olhar que já dizia tudo. Um olhar de desprezo... de nojo... de repugnância... e
naquele momento eu entendo... mesmo que eu não queira, eu entendo...
minha mãe não tem salvação.
Sophia era uma narcisista nata, seu ego estava acima de tudo... nada
do que eu fizesse em toda minha vida, por mais perfeita que eu tente ser, eu
nunca me compararia a ela... ela se amava mais que tudo.

Meu pai amava a empresa e minha mãe... minha mãe amava a si


mesma... e eu nunca existira para nenhum dos dois.
Ellie sobe as escadas de volta, seus pés ágeis praticamente pulam de
dois em dois degraus enquanto Sophia volta seu olhar para mim, sem falar
nada.

Eu a encaro, calando-a antes mesmo que ela abra a boca.

A mujer se levanta, ajeitando o vestido que usa — uma


tranquilidade estranha em seus olhos — e me mira demoradamente. Sinto que
quer falar alguma coisa, mas se detém quando nego com a cabeça e desvio o
rosto para a porta, ignorando-a. Ouço seu suspiro melodramático e em
seguida os saltos ressoando no piso de madeira em direção ao corredor.
Alcanço a maçaneta e não deixo de sorrir, impressionado com a
velocidade daqueles jornalistas de plantão à espera da próxima capa para seus
tabloides. Eu havia mandado o vídeo ainda no aeroporto brasileño e não
poderia esperar que tão maravilhosa recepção me aguardasse.
Si... la venganza puede ser... plena.

Giro a chave do carro em meu dedo e desço a escadaria de pedra


assoviando Enjoy the Silence baixo e satisfeito... talvez eu tivesse que ter
esperado mais alguns dias, talvez eu tivesse sido um pouco afoito e
prematuro no envio do vídeo... talvez sim.
Tal vez no.

Não consegui, não depois da visita ao Brasil. Não depois de ver que
se não fosse eu disposto a pará-lo, talvez outro o fizesse... e não da maneira
certa.

Da maneira que planejo há mais de dez anos.


Penso em Francisco e na sua suposta grande ideia de ir à público,
como se eu mesmo nunca tivesse pensado naquilo. Apesar de compreender
suas intenções, era um plano limitado demais, simples demais e fácil demais
de Desmond se esquivar.

As vísceras precisavam ficar expostas, abertas para todos, o cheiro


pútrido da Kane tinha que se espalhar pelo mundo de modo a nunca ser
esquecido... nunca ser perdoado... nem que ele desembolsasse toda sua
fortuna.

A destruição de um Kane tinha que começar de dentro de sua


família, quebrando, um a um, todos os alicerces que o sustentavam.
A traição de sua amada esposa? Ponto para mim. Pisco para o
motorista de Ellie quando passo por ele e Andrew sorri em resposta,
meneando a cabeça quase que imperceptivelmente em retorno. Ele abre a
porta do meu carro e eu enfio a chave na ignição, ligando o som
instantaneamente, sem acreditar que a mesma música que assovio toca no
carro.

Não, não existem coincidências, olho no retrovisor os meus olhos


castanhos, escuros demais, artificiais demais, e coloco o cinto de segurança.
O som me abraça por completo, aumento-o e fecho os vidros, acelerando o
carro na estrada de pedra, os pneus levantam poeira e deslizam, eu volto a
sorrir mirando o portão da mansão dos Kane, o impacto a poucos metros.
Piso com mais força no acelerador e aciono o botão, passando com
o Porsche a milímetros da grade de ferro quando se abre para minha
passagem. Giro à esquerda mirando rapidamente o vidrinho caído no banco
do carona bater contra a garrafa de um vinho brasileiro exclusivo de um dos
estados ao sul do belo país.

Pego o pequeno frasco e o guardo em meu paletó.

Ainda que parecesse pouco provável que Desmond tenha um


coração, o dele batia para uma única coisa no mundo: poder. Não só o poder
de ser dono da maior empresa de fármacos existente, mas o poder que tinha
sobre meio mundo. E isso incluía la hermosa mujer ao seu lado e a imagem
poderosa que passava para seus iguais quando estava acompanhado por ela.
Ele descobrir a traição de Sophia? Perceptível que esse não era
exatamente o ponto da questão, ainda que deva doer su pobre corazon. O que
meu querido sogro realmente temia era a sua reputação. Ser corno era
tolerable. Os outros saberem que era corno... aí sim era o ponto alto de meu
sorriso ao olhar a estrada à minha frente.

Talvez fosse cedo para envenená-lo, o certo era ter um pouco mais
da confiança dos acionistas. Mas nada poderia ser mais perfeito que o
presente momento. Canto o refrão da música a caminho das Empresas Kane:

— Pleasures remain, so does the pain! Words are meaningless and


forgettable... — sim, talvez... talvez eu precisasse de mais tempo, mas não
hoje. Hoje meu sogro está com o coração despedaçado por causa da traição
da mujer.

O momento perfeito para ele parar de bater.


19

— Você acha que eu não imaginava que ela me traia? — Desmond


vocifera, contornando a mesa em seu escritório na empresa. Eu me aproximo,
deixando a garrafa de viño em seu buffet, e o encaro em silêncio, pois sei que
seu questionamento é retórico.

Eu tinha chegado há cinco minutos e todas as pessoas do andar


pareciam assustadas com os berros que meu sogro dava dentro de sua sala.
Sua secretária nem me anunciou ou sequer me olhou quando abri a porta, seu
rosto branco de medo, ainda que acostumada com as grosserias de su jefe.
Mas nada como aquilo.

Desmond Kane estava vermelho como o diabo, os olhos


esbugalhados de ódio, a ira em sua boca nas atrocidades que grita:
— É claro que eu sabia! Olha aquela mulher! — ele espalha as
folhas em cima de sua mesa e amassa algumas aleatoriamente, jogando-as no
lixo. — Eu tive que contornar uma vez! Mas nada assim, nada veio à público,
era outra época, eu comprava o jornalista e tudo se acertava! — ele afrouxa o
nó da gravata, cada vez mais vermelho. — Agora, outro escândalo! Como se
não bastasse aquela merda da Ellie há poucos meses! — o suor escorre pelo
pescoço. — Era diferente quando não tinha internet, Trevor! Eu conseguia
dar conta, eu desembolsava a grana e pronto, mas agora... Você acha que é o
primeiro escândalo? Não! Claro que não! Quase sucumbimos por causa de
um erro daquela idiota da Ellie! — ele fecha os dedos das mãos em punho e
soca a mesa uma vez. — Ela quase foi à polícia denunciar um membro do
conselho! Eu estou rodeado de putas burras, PUTAS BURRAS!!!

Ele se joga à cadeira e passa as mãos pela testa suada, agora abrindo
o botão do colarinho; eu continuo onde estou, a mão enfiada no bolso de meu
paletó, o pequeno frasco rodando entre meus dedos. Eu seguro meu punho,
forçando minha mão a ficar onde está e não esmurrar a cara dele, como
ousava falar assim da Ellie, chamando sua própria hija de puta e burra... que
tipo de padre era ele?
O mesmo homem que pagou ao meu pai o silêncio das atrocidades
do laboratório da Colômbia, claro... Desmond era pior do que eu um dia
supus imaginar e seus argumentos apenas me inflamavam mais ainda a fazer
o que eu devia fazer.

— Ela me trai desde antes de casarmos! — ele baixa o tom da voz e


pela primeira vez parece consternado por causa da traição em si. Suas
pálpebras se fecham e ele aperta os olhos, com raiva. — Mas sempre foi
discreta, sempre! Ela é linda e eu a amo... quem não amaria? — ele bufa e eu
sigo de volta para o buffet, abrindo o viño. — QUEM GARANTE QUE
AQUELA GAROTA É MINHA? — paro com a garrafa e a taça em minhas
mãos o encarando:

— O que... o que disse?


— Eu sempre quis um filho homem, Trevor! E a porra da Sophia
me dá uma mulher? E ainda... uma mulher como a Ellie? Ela não tem nada
meu! É claro que tenho o direito de ter minhas dúvidas se aquilo teria meu
DNA! — ele berra, se dirigindo à porta do banheiro e chutando a lixeira ao
lado da mesa.

Meus dedos apertam com tanta raiva a taça que ela estilhaça em
minha mão. Desmond entra no lavatório e eu olho o sangue escorrer por meu
punho, mas ainda assim não consigo me mover, completamente pasmo com o
que Desmond destila como veneno, mas... seria... seria possível que la sangre
dos Kane não corresse nas veias de... Ellie...?

Abro a mão, olhando os cacos da taça enquanto ando até a lixeira,


colocando-a de pé outra vez, e deixo que os pedaços de vidro caiam entre os
papeis amassados. Volto para o buffet e aperto alguns guardanapos em cima
do corte, mirando a porta trancada do banheiro enquanto sirvo o vinho em
uma nova taça e adiciono calmamente alguns pingos do líquido do vidrinho.

O celular em cima da mesa toca e Desmond sai de dentro do


banheiro correndo, apavorado e suado, eu sei que espera aquele telefonema
com todo o temor de sua vida. Ele o atende e não fala nada, o ouvido colado
ao aparelho por segundos antes de desligá-lo e jogar ao chão, com um braço,
tudo que estava em cima da mesa.

— AS AÇÕES DESPENCARAM! — ele berra e eu tenho certeza


que o andar inteiro o ouviu também.

Era a hora.
Não era um veneno comum, eu havia conseguido extrato de
acônito, a toxina da planta raramente era identificada por deixar o corpo da
vítima em menos de 24 h. Para um velho que já sofria do coração e acabara
de descobrir a traição da esposa e as ações em baixa de sua empresa?
Perfecto, ninguém desconfiaria.

— Acalme-se, Desmond, nós vamos conseguir resolver isso. —


interpreto o melhor genro e funcionário que ele poderia ter e ofereço a taça
sem nem precisar insistir; meu sogro a arranca de minha mão e a bebe toda
praticamente num gole só, como se fosse água e estivesse muriendo de sede.
Pego a taça de volta e a guardo no bolso de meu paletó, retornando
para a bandeja e servindo outra enquanto ele aciona a secretária eletrônica e
berra com Sheyla, exigindo uma reunião com os acionistas, a xingando de
incompetente quando a secretária pergunta qual hora deveria marcar. Eu abro
a porta do escritório, encontrando-a tremendo ao telefone e a conforto,
dizendo que marque para o começo da tarde, então deixo a porta aberta e
retorno para a mesa de Desmond; ele arranca a taça de minha mão e bebe a
metade do vinho, tirando o paletó, visivelmente suado.

Sua secretária entra pelo escritório quase colada na porta e me


pergunta algumas questões referentes à reunião; pelo canto do olho vejo
Desmond apoiar a taça na mesa e cambalear. Eu pego delicadamente o braço
de Sheyla e a viro em direção à sua mesa, andando ao seu lado enquanto a
respondo e, antes mesmo de ela voltar a se sentar, escutamos o baque dentro
da sala.

A secretária me olha em dúvida rapidamente antes de se direcionar


para o escritório e, como música em meus ouvidos, escuto-a berrar.
Há uma semana, meu pai sofreu um infarto.

Há uma semana minha mãe anda pela casa como uma moribunda,
entupida de calmantes e tarjas pretas. Não por causa do ataque cardíaco de
meu pai, claro que não, eu sabia que parecer um zumbi em nossa casa só
tinha a ver com o fato de ser ainda pivô das notícias de fofocas,
principalmente agora que as manchetes diziam que era culpada pelo infarto
do marido.

Há uma semana, Trevor vivia do trabalho, ficando na empresa


quase todas as horas do dia, tendo as atribuições de meu pai como suas. As
ações despencavam cada vez mais, o jornal só falava disso e eu entendia que
nossa fortuna estava escoando como água pelo ralo.
Trevor não me dizia o que estava fazendo ou como estava
contornando aquilo, na verdade mal falava comigo ou me olhava, voltando
para casa de madrugada ou indo trabalhar antes de eu acordar. Mas, diferente
do que todos pensávamos naquelas primeiras 48 h fatídicas, meu pai não
havia morrido e agora estava em casa, sendo cuidado por enfermeiros 24 h
por dia, acamado.

Entro em seu quarto e olho-o por alguns segundos. Minha mão


segura a maçaneta da porta e não sei o que sentir ao ver o maquinário ligado
a ele, ressoando um bipe constante. Ele abre os olhos e me fita de volta, seu
olhar sobre mim não acompanha a mudança quase sutil no ritmo do som
mecânico.
— O que está fazendo aqui? — ele pergunta e sua voz sai baixa e
rouca, como se não falasse há séculos, e eu me pergunto por que razão acha
estranho eu estar ali em seu quarto, como se minha presença o deixasse
desconfortável. Por que ele sempre fazia aquilo comigo? Por que era tão
difícil me amar?

— Vim ver se precisava de algo, pai. — respondo sem encará-lo.

Não sei por que sinto medo, mas sim, sinto, mesmo com sua débil
saúde me garantindo que não consiga se aproximar de mim ou me tocar.
— Sai daqui. — ele rebate, começando a tossir e a enfermeira entra
com uma bandeja de medicamentos. — Sai daqui, sua idiota! — o tom
aumenta e a tosse seca se torna um engasgo, misturando-se ao som, agora
frenético, do bipe.

Abro a porta de mogno impulsionando meu corpo para fora daquele


quarto no mesmo instante em que outro enfermeiro entra correndo, quase
colidindo comigo. A porta se fecha atrás de mim e eu corro até o lavatório,
me jogando em frente ao vaso e vomitando tudo que comi durante o dia.

Ainda assim, a tristeza perdura em meu peito.


O mierda do Desmond tinha sobrevivido!

Engulo el odio pensando na ironia daquilo tudo, o coração do


hijoputa era fuerte como aço, sobrevivera a dois ataques cardíacos enquanto
o meu parecia que iria parar a qualquer momento, com todos os sentimentos
que gladiavam em minhas artérias.

Medo, raiva, pavor, insegurança, sede de vingança... tudo misturado


à ponto de ebulição e era provável que eu morresse antes daquele bosta.
Com Desmond vivo, ainda que acamado, minha permanência como
CEO na Kane não passava de provisória, no entanto eu já adiantava o que
podia, recolhendo dados e transferindo investimentos, cancelando algumas
contas... tudo de maneira confidencial, mas que não alarmasse os acionistas...
não ainda pelo menos.
Eu me sento na cadeira do escritório de Desmond na Kane e enterro
meu rosto em minhas mãos, com raiva de mim, medo de perder... eu não
acredito que estou pensando nisso, mas sim, Ellie... Como eu a perderia se ela
nunca me teve de verdade... não o homem que sou agora, mas... Miguel.

Ela nem me conhecia!


Eu no era así, no así! Soco o mouse do computador, que espatifa
sob meu murro; um pedaço do plástico entra por minha carne. Olho o sangue
pingar na mesa e fico ali parado, vendo-o verter aos poucos, pingando,
formando uma pequena poça sobre alguns rascunhos.

Engulo o engasgo, deslizando os dedos de minha outra mão por


minha barba... uma barba que não tive nem tempo de fazer, afundado naquele
escritório nos últimos dias desde que assumi a empresa. Eu quase nem tinha
falado com Ellie, me limitando às frases superficiais quando a via em casa...
eu não queria admitir para mim mesmo o quanto estava afetado por ela.

Mierda!
Por que não? Por que vou acabar com tudo que ela conhece por sua
vida e me sentia culpado ou... por que me sentia culpado por mentir para ela?
Ou... por que sentir algo por ela poderia me fazer desistir de tudo que planejei
por tanto tempo?

Como ela ficará depois que a Kane decretar falência... sem seus
estudos... sem sua mansão... sem a vida a qual foi acostumada?

Fecho meus olhos e penso em seu sorriso tímido, nas mãos


sorrateiras que insistem em esconder uma cicatriz que violou sua alma, mas
que de maneira alguma a torna menos bonita... Seus olhos daquele tom entre
o cinza e o azul, os gestos delicados e ao mesmo tempo... fuertes.
Eu me levanto da cadeira e ela tomba, tampouco ligo, pego meu
paletó e as chaves do carro, precisando entender uma coisa de uma vez por
todas! No entanto, quando chego em casa não encontro ninguém, está vazia,
apenas os empregados com suas tarefas diárias, volto pela entrada e dou de
cara com Andrew estacionando o carro no pátio.

— Onde ela está? — questiono, dando a volta no meu Porsche e ele


tira o quepe, passando as mãos pelos cabelos:

— Na boate Lounge.

Aceno e me jogo de volta ao banco do motorista, indo direto para a


boate, imaginando se ela estaria ficando com alguém, a imagem de Ellie se
atracando àquele cara me vem na cabeça e estranhamente não sinto raiva,
não, não é esse exatamente o sentimento... o que me espreita parece medo...
tristeza...

Ellie não era uma Kane, apesar de ser uma Kane... e por mais que a
vingança me cegasse... eu estava enxergando-a...
Entro pela boate sem nem saber como dirigi os quilômetros até
aqui, focado nas perversidades que fiz àquela mujer... como eu podia
condenar Desmond agindo como ele próprio, condenando um sangue como
se aquilo significasse tudo...?

Eu era igual a Desmond?


20

Pego um copo de alguma bebida quando um garçom atravessa meu


caminho e desço os degraus até a boate, olhando-a socada como sempre, as
luzes baixas e em tons avermelhados.

Eu me recosto ao balão e pego um guardanapo, molhando-o no


copo e aplicando sobre o corte em minha mão e então a vejo. Agradeço por
estar recostado porque aquela visão me atinge como uma mierda de uma bala
perdida.
Ellie ri abertamente com um cara colado ao seu corpo, os dois
dançam e se esfregam entre tantas outras pessoas. A boate explode em uma
música techno e eles se afastam, voltam, se esfregam e se afastam
novamente, mexendo os corpos, voltando para se esfregarem mais uma vez.

Ellie está visivelmente bêbada. Mas visivelmente feliz.


O cara fala alguma coisa em seu ouvido e meus olhos acompanham
a mão que ela espalma sobre o peito dele e sobe por seu pescoço até alcançar
a nuca, que ela puxa para si em outro movimento assim que começa a música
latina.

Yo merecia ficar vendo aquilo durante toda a noite e nem mil


pedaços de plástico fincados em minha mão poderiam doer mais do que
compreender que eu não a fazia sorrir daquela maneira.

Agora outro qualquer sentiria seu gosto e memorizaria a textura de


sua pele arrepiada quando ficava excitada.

Eu não tinha direito a nada ali, mas mesmo assim queria tirá-la a
força daquela espelunca e fechar o sorriso de sua face. Ou pior... ir embora e
deixá-la ser feliz.

Minha respiração se acalma quase que contraditoriamente quando


seus olhos me alcançam e ela para a dança escrota e pausa os movimentos, os
lábios retorcidos como se engolisse o mundo. Coloco minhas mãos nos
bolsos e a encaro de volta, vejo seus passos em minha direção e me
amaldiçoo por não conseguir me mover, assistindo-a se aproximar cada vez
mais, meu coração martelando a cada passo.

— Não era para você estar trabalhando outra vez?

— Hola, Ellie. — noto de relance o homem que ela dançava nos


encarando da pista.

— O que está fazendo aqui, Trevor? Veio tomar conta? — sua voz
me faz centrar seu rosto e eu limpo minha garganta, me lembrando da vez
que me perguntou a mesma coisa no navio. Tento manter um sorriso em meu
rosto, ainda que pequeno, do tamanho de como estou me sentindo ali ao seu
lado:
— É necessário, mi preciosa?

Ellie encolhe os ombros, cruzando os braços, e eu vejo seus olhos


rolando para o alto.
— E você não era para estar na faculdade? — pergunto, tentando
entender o que ela faz ali.

— Não tivemos a última aula, vim com Lennox. — ela aponta para
trás, mas não o vejo. No entanto, o cara que ela dançou ainda está em meu
campo de visão:

— E quem é seu amigo? — meneio a cabeça para ele.


— Um amigo. — ela me responde sem me responder e eu me
pergunto no que Ellie pensava para estar ali, durante a semana em uma boate.
Aquilo não fazia muito o tipo dela, não era muito... Ellie.

— E ele sabe dançar música latina?

— Não muito.
— E você sabe dançar música latina, preciosa?

— Não muito. — ela tenta refrear um sorriso, mas seus lábios


arqueiam sutilmente. Solto o copo no balcão e me aproximo dela:

— Seu amigo vai se importar se usted dançar com su marido?


Seu olhar curioso me mira e meus olhos percorrem seu corpo,
percebendo como mi esposa estava hermosa. Ellie usava um vestido solto e
florido na altura de suas coxas, e sandálias leves de pequenos saltos finos,
seus cabelos estão presos em um coque despenteado, denunciando as horas
que ela já se encontrava dançando naquela boate.

Talvez não menos que o brilho acetinado de sua pele levemente


suada ou de suas bochechas avermelhadas. Não importa qual detalhe é mais
belo, sua nuca está exposta com alguns fios finos descendo pelo seu pescoço
e quero tanto tocar ali que mal compreendo como essa sensação me invade.

— Me permite, preciosa? — peço outra vez, eu poderia ser aquele


cara que a fazia sorrir, mas mais que isso... eu queria ser aquele cara.
Ellie faz que sim com a cabeça e eu a puxo para mim, embalando-a
nos passos logo que entramos na pista; penso que há poucos dias dancei
vagarosamente com ela na praia e aquilo havia mexido comigo de um jeito
que parecia que Ellie fervia mi sangre... o que ela faria comigo com uma
música latina?

Meu corpo suado se cola ao dela e é quase impossível não conter a


ereção, contudo, é impossível que a essa hora ela não saiba como me deixa
louco. Seguro firme seus dedos e a puxo mais ainda pra mim, envolvendo su
cuerpo ao meu e a girando, deixando-a de costas para mim, pegando suas
mãos e as trazendo para sua cintura junto às minhas.

— Gosta desse ritmo, Ellie? — pergunto ao pé de seu ouvido.


— Gosto... — ela vira o rosto e eu vejo seu perfil, o nariz arrebitado
e... a cicatriz... cerro meus olhos com força por um segundo, sem acreditar
que Ellie teve apenas dois caras em sua vida... Patrick e eu... e nós dois...
bufo, sem querer confessar, mas sim, eu a machucava de outra maneira.

Eu a viro de volta para mim e beijo rapidamente seus lábios úmidos,


ela levanta o rosto e me fita enquanto suas pernas se enroscam às minhas;
deixo que minha coxa bata entre elas e Ellie exala um suspiro profundo
fechando suas pálpebras.

Eu sorrio e beijo seu pescoço, o som reverbera pela boate, seguro


sua cintura e a levo no ritmo latino, o meu ritmo latino:
— Eu amo la fuerza que tanto esconde, preciosa. — digo de repente
e ela abre os olhos, parecendo assustada. Mordo seus lábios e intensifico
minhas mãos em sua cintura, su cuerpo vibra, o coque solta e seus cabelos
caem pelos ombros.

Ellie desliza suas mãos pelas minhas costas, moldando-se a mim, e


volto a beijá-la em meio à nossa dança. A música continua, eu a puxo para
mim, protegendo-a dos encontrões com as pessoas que dançam ao nosso
lado:

— Mi padre ensinou a mi e mi hermana a dançar... quer dizer... mi


madre ensinou a ele... ele gostava de bailar pela casa se lembrando dela
enquanto cozinhava pra gente...

— Parece uma lembrança feliz. — ela sussurra e eu faço que sim


com a cabeça e beijo a ponta de seu ombro esquerdo, subindo com meus
lábios até seu pescoço, Ellie ri e se encolhe.

Eu sorrio para seu jeito encantador.


— Você tem algumas delas, preciosa? — ela se vira e pousa as
mãos em meus ombros, me mirando debaixo para cima, seus cílios longos e
delicados, as pálpebras esfumaçadas com alguma maquiagem colorida,
deixando seus olhos mais translúcidos do que nunca. Encosto minha testa à
sua e a fito. — Você tem alguma lembrança feliz, Ellie?

Ela pisca algumas vezes e parece pensar um pouco. Quando sua voz
finalmente sai de seus lábios, parece envergonhada:

— Talvez com Lennox e Chloe.


Meus dedos tremem em sua cintura, talvez mais por tudo que sua
resposta me responda do que a resposta em si.
— Você gostaria de um dia pensar no dia de hoje como uma
lembrança feliz, preciosa? Eu poderia ser alguém que... como Lennox ou
Chloe... pudesse te deixar uma lembrança feliz?

Ellie desce seus dedos por meu peito e parece tentar me olhar
através de minha pergunta. Eu seguro meus olhos nos seus e aguardo sua
resposta, como se fosse possível não desejar que eu não fosse apenas uma
lembrança no futuro... inspiro profundamente e ela dá um passo para trás, me
soltando um pouco, meus joelhos cedem na mesma medida, o medo que ela
se vire e me deixe para trás:
— Algumas horas não apagam tudo que falou ou fez... Trevor... ou
inclusive o que me esconde. — ela me solta completamente. — Vamos. Já
deu por hoje. Quero ir embora. Você me leva ou ligo para Andrew?

Meus ombros caem em derrota, mas eu merecia sua resposta.


Engulo não só meu orgulho como a frustação e pego minha chave no bolso,
guiando-a pela boate até a porta de saída, sua pele mais gelada que o vento
que nos encontra lá fora.
Quando acordo no dia seguinte, Trevor já foi para a empresa.

Eu me levanto já pegando um analgésico e indo direto para minha


suíte para tomar um banho fresco e revigorante.

De súbito, sob o chuveiro, me lembro de nossa dança e sim, ainda


que tenha passado somente algumas horas... aquela era uma lembrança feliz...
que eu arrematei no segundo em que ele me fez aquela pergunta. Como assim
ele achava que tudo estaria resolvido por me dar valor depois que me viu
dançar com um cara?
Eu não havia ido dançar porque não tinha a última aula. Eu havia
matado aula. Eu estava cansada de minha rotina pérfida, de ir para a
faculdade, para casa, para a faculdade e casa, o enfarto de meu pai, a
encenação de minha mãe... eu fugi da minha realidade.
Porém minha realidade me encontrou e quis dançar comigo.

E foi bom... e foi tão bom que me deu medo. Medo que no segundo
seguinte que eu novamente me entregasse a Trevor, ele me machucasse outra
vez.
Como a dança em que nos cadenciava, eu decidi guiar os passos,
não cedendo à sua vulnerabilidade daquela vez.

Demoro mais do que realmente preciso no banho e, quando saio do


banheiro, escuto as vozes dos enfermeiros pelo corredor. Enrolo com mais
força a toalha em meu corpo e dou passos leves para a porta, tentando passar
despercebida, mas ao mesmo tempo ouvir sobre o que falavam, no entanto o
retorno do silêncio me atinge de maneira desagradável.

Eu não sabia dizer o porquê. Mas eu sentia que tinha algo diferente.
Abro a porta, decidida agora a saber o que acontecia, mas me
deparo com uma enfermeira no corredor, parando os passos ao me encontrar:

— Seu pai está sendo transferido para o hospital, senhora Ellie.

— Ele piorou? — pergunto, olhando à minha volta à procura de


minha mãe.

— Uma leve piora, mas o quadro fica mais estável sob os cuidados
hospitalares.

— Minha mãe sabe disso?

— Eu não a encontrei, mas uma das empregadas disse que ela foi
para um spa.
Eu a vejo sair e depois de algumas horas, sem saber ao certo o que
fazer, decido que vou visitar meu pai, mesmo que minha presença fosse outra
vez preterida por ele. Tento ligar algumas vezes para Trevor, mas ele não me
atende, então saio de casa naquela manhã indigesta, com meus nervos à flor
da pele, a tensão me deixa com olheiras profundas e me sinto nauseada
durante todo o trajeto em que Andrew me leva ao hospital.

Subo o elevador segurando um vasinho de flor e sei que aquilo é


patético, eu mesma conflitava meus sentimentos por estar ali, sem saber ao
certo o que meu coração me dizia, ainda que meu cérebro entoasse a
racionalidade de eu estar ali, visitando meu pai doente.

Eu era sua filha. Iria visitar meu pai.

Ele não me amava. Preferia me ver longe.

Atravesso o corredor com meus saltos vacilantes e o vasinho entre


meus dedos treme, algumas pétalas da flor delicada caem na terra e avanço
direto para o quarto de meu pai, segurando o susto em uma exclamação alta
quando abro a porta: não há um enfermeiro ali, nem movimento... apenas o
bipe constante dos aparelhos ligados ao senhor Desmond Kane.
E Trevor.

A cena é absurdamente estranha e ele não percebe a minha presença


de cara. Meu marido está de costas para a porta, ou seja, para mim, e olha,
praticamente estático, para meu pai deitado na cama de olhos fechados.

Como se contemplasse o sono de meu pai.


Como se velasse o sono de meu pai.

Como se espreitasse o sono de meu pai.

— O que você está fazendo aqui? Como sabe que ele veio para o
hospital? — inquiro, incrédula, e minha voz sai fina e desagradável.
Trevor se volta para mim, parecendo desconcertado por alguns
segundos, mas logo a segurança volta para seu semblante e ele me olha,
tranquilo.

— Bom dia, Ellie. — sua voz sai estranha e ele limpa a garganta
antes de continuar. — Eu que assinei a transferência de su padre. A
enfermeira me ligou e vim direto da empresa para o hospital.
—Como ele está? — pergunto, desconfiada, e ele dá de ombros,
olhando para o monitor cardíaco antes de se voltar para mim novamente.

— Ele está descansando. — ele se vira, indo em direção à porta. —


Vou pegar um café para mim. Quer?

Faço que sim e ele mantém a distância entre nós dois, me olhando
por breves segundos antes de sumir pelo corredor. Cruzo meus braços sobre
meu peito e tenho vontade de me abraçar, já antecipando todo um escudo
quando escuto meu pai me chamar às minhas costas.
— Ellie. —a voz é severa e contrasta o seu estado de saúde. Meu
pai está sentado na cama, recostado aos travesseiros e seu olhar duro me
penetra como raios. — Ellie!

— Pois não, pai? — pergunto, ainda mantendo distância de sua


maca.

— Cadê sua mãe, Ellie? Onde está Sophia?


Engulo uma lufada de ar, tentando me manter de pé, sem saber
como responder que sua esposa estava em um spa tentando se recuperar das
manchetes. Em outros tempos, eu não entenderia como poderia pensar nela
em primeiro lugar e cuidar de si quando meu pai estava doente, entretanto o
que eu poderia esperar de uma mulher mentirosa, traidora e egocêntrica?
— Pai...?

— Eu te fiz uma pergunta! Você não me ouviu, garota? Cadê sua


mãe? Eu a chamei a manhã inteira!
— Pai... — gaguejo, insegura. — Ela está resolvendo uma sit...

— Ela está com aquele cara? Sua mãe está me traindo outra vez?
Vai engravidar de outro merda? — ele me interrompe, sua voz grossa e
distorcida e todas aquelas perguntas me dilaceram o estômago, tenho vontade
de vomitar e eu simplesmente me apoio à uma mesa de canto, respirando
devagar. — Ellie! Olha para mim enquanto falo com você! Você e sua mãe
querem que eu morra, é isso que vocês querem! Ficar com meu patrimônio,
claro! Eu vou mudar essa merda de testamento, se é para meu patrimônio
ficar com alguém que não tem meu sangue, que seja o Trevor!

— O... o quê-ê?! — minha voz sai esganiçada e eu sei que não


deveria considerar o que ele está falando, obviamente a doença avançara de
uma maneira que afetara seu cérebro, suas memórias. Mas ainda assim...
ainda assim... o que ele me fala...
Miro seu rosto e os seus olhos, tão arregalados quanto minha boca,
e eu quero me encolher em um canto e sumir todo o tempo que ele fica
quieto, apenas me olhando, como se odiasse minha existência, como se
desejasse que eu estivesse naquela maca em seu lugar.

— Você só me trouxe desgosto! É claro que não é minha filha, não


pode ser! — ele finalmente diz e joga no chão, com uma mão o copo d’água
que estava parado cima de sua mesinha de cabeceira. — Não pode ter meu
sangue, não pode! Chama o Trevor! Eu quero o Trevor agora, aqui! Agora!

— Pai...
— Você não vai ficar com nenhuma herança! — ele anuncia, sua
voz me afrontando, quase gritando. — Nem você nem a puta de sua mãe!
Você é uma ingrata, Ellie, uma ingrata, eu te criei como se fosse minha!

— O-o-que eu fiz-z...? — sussurro, sentindo meus olhos marejarem


e me afasto dele, andando para trás, começando a chorar. Eu não quero
chorar. Não quero. Mas não aguento mais.
Não aguento mais!

— Eu dei uma vida para vocês duas, que não mereciam! — meu pai
berra e eu esbarro em um cabideiro, quase o jogando no chão. Seguro uma
bengala e a apoio de volta ao gancho, observando minhas mãos tremerem.
Tapo meus olhos e enxugo as próximas lágrimas que me invadem. — Vocês
não mereciam nada que é meu!

— Pai, eu sou sua filha... — eu digo entre lágrimas e soluços


lembrando que em seu primeiro ataque cardíaco, Desmond precisou de
sangue e eu doei, eu me lembro e... e... mas o que isso queria dizer...? Isso
nada tinha a ver e... eu poderia não ser filha dele...?
— Sai daqui! Sai daqui! Eu quero meu filho! Eu quero meu filho!
Eu não quero você aqui! Eu não quero você em minha casa! — Filho? Casa?
Nós estávamos no hospital e ele não tinha nenhum filho e... — Trevor!
Chama o Trevor, meu filho! — ele berra quase arrancando meus tímpanos no
mesmo segundo em que eu me viro e saio praticamente correndo de seu
quarto. — Você sempre teve inveja de mim, da sua mãe! Sempre! Eu não
duvido que você tenha jogado ela nos braços daquele motorista e agora esteja
querendo me matar, sua puta!

Aperto o botão do elevador uma, duas, dez vezes e quando as portas


se abrem, me surpreendo com meu marido ali dentro, quase colidindo com
seu corpo. Trevor une as sobrancelhas, me olhando sem entender, ao mesmo
passo que tento empurrá-lo do elevador, a raiva me consumindo de dentro
para fora:

— Anda, vá ficar com tudo! Você conseguiu o que queria!


— Ellie? O que houve?

— Não era o que você queria desde o começo? Que meu pai o
colocasse em sua cadeira? Pois bem, aí está o bônus! Você é o filho que ele
sempre desejou, o império dos Kane é seu!

— Ellie, do que ele está falando? O que aquele mierda te fez?


Giro meu rosto para o seu, absorvendo que chamou meu pai de
merda e o encaro, ele segura meus braços e eu começo a chorar, Trevor me
mira e olha as portas do elevador se fechando um segundo antes de me soltar:

— Chega! Basta! — ele tenta se enfiar por elas, empurrando-as de


volta. — Ele nunca mais vai te tratar assim!

Pego em seu braço e o puxo para mim de volta:


— Não, por favor, não, Trevor... só... só me leva daqui... só me leva
daqui...

Trevor me abraça, me aninhando fortemente em seu peito e as


portas finalmente se fecham.
21

Acordo sentindo braços me envolverem por trás e por um segundo


me esqueço que estamos nos Hamptons, que Trevor praticamente me
carregou até seu carro e dirigiu velozmente até minha casa de veraneio e
deitei em minha cama com o corpo tão pesado e a cabeça dolorida que mal
percebi quando fechei os olhos, aninhada em seu colo.

Afundo no travesseiro com Trevor colado em meu corpo, suas mãos


entrelaçadas a mim quase em um abraço desesperado.
Engulo em seco, sem saber como agir, o que falar, eu não sabia se
ele estava acordado, se estava adormecido, mas suas mãos me envolviam
como se eu fosse desparecer num passe de mágica. Olho para a escuridão do
quarto, concatenando os pensamentos... ou talvez como se ele fosse
desaparecer... suspiro e parece que esse ínfimo gesto trava seus músculos,
sinto-os retesados sobre mim.

— Yo no soy así, preciosa. Mas nem você é, Ellie. Não seja como
yo, não se esconda atrás de uma máscara.
Pisco algumas vezes, respirando profundamente, a náusea
avançando por meu corpo, o tremor. Fecho minha boca e tento respirar pelo
nariz, soltando pela boca, uma vez e outra até me acalmar.

Trevor me aperta mais entre os braços:

— Eu não sou um monstro por completo... mas también não tinha


mais um corazón batendo dentro de mim até te conhecer, Ellie. Eu não quero
mais ser um monstro... eu... eu não quero te machucar mais...
— Por que me machucou, Trevor? — minha voz treme, segurando
seu braço que passa por meus seios, os olhos presos à parede pensando se ele
acha que não tem mais coração por causa da morte de sua irmã ou pela morte
de seus pais. Ou tudo. — Por que acha que tem que ser um monstro?

— E por que acha que não merece mais, Ellie...?

Suspiro, enfiando o rosto no travesseiro, minha voz saindo abafada


de vergonha quando o respondo:

— Porque sempre desejei ser amada por eles...

— Mas você os ama?

Eu me viro entre seus braços, que ele afrouxa um pouco, somente


para que me mova, mas não desfaz de modo algum o abraço, seus olhos
intensos em expectativa:
— Não sei... acho que não mais... acho que... sempre quis tentar
entender por que não me amam e tentei ser tudo que eles desejavam para me
amar, mas... a verdade é que não, não importa o que eu faça, é como se eu
não existisse ou quando existo só dou desgosto.

Trevor afunda seu rosto entre meu pescoço e ombros, me puxa mais
e mais para si, voltando a moldar seu grande corpo no meu.
— Você está existindo para mí, preciosa.

Enxugo minhas lágrimas, tão cansada por derramá-las, ele me olha


com carinho e seus dedos passam por meus cabelos até pairarem em minha
cicatriz, Trevor desenha a pequena marca com a ponta do dedo e suspira,
desviando os olhos:

— Eu te disse que eu não tinha mais pais... mas não sei o que é
pior... não ter os meus, ou você ter os seus...
Não o respondo porque simplesmente não consigo respondê-lo, sem
acreditar, mas ao mesmo tempo acreditando, naquelas palavras que saem de
sua boca. Outra vez, Trevor parece me mostrar que toda a suposta aura de
genro e empregado perfeito de Desmond Kane rui quando se deixa levar
pelas emoções.

É desse Trevor que tenho certeza estar me apaixonando, não o


racional que parece calcular todos seus passos e falas. Trevor me surpreende
dando um beijo em minha cicatriz e eu quase não respiro, olhando-o me olhar
de volta:

— Se eu prometer ser mais yo, você me promete ser mais mi


preciosa e fuerte Ellie?
Minhas mãos atravessam suas costas e eu o seguro em mim, como
se ele pudesse realmente desaparecer, como se a presença daquele Trevor na
cama pudesse ser uma visão, um sonho:
— Sei que você costuma cumprir suas promessas. — volto a me
virar para o outro lado, colando minha bunda em seu quadril. — E... só para
constar, o cara que eu dançava na boate... é namorado de Lennox.

Trevor saiu há algumas horas dizendo que tinha que pegar algumas
coisas na empresa para passarmos alguns dias nos Hamptons, disse que
precisava de uns documentos para continuar trabalhando de casa enquanto
meu pai estava no hospital, mas não queria me deixar sozinha e passaria o
restinho da semana comigo.

Depois de ler um pouco na sala, eu me levanto, desejando boa noite


à governanta e volto para meu quarto, vestindo meu robe sobre a camisola,
mas paro meus passos ao ver o celular de Trevor acendendo a luz em meio
aos lençóis na cama.

Olho para os lados, como me certificasse estar sozinha, e miro o


aparelho outra vez, imaginando que meu marido havia esquecido seu celular
na pressa ao sair. Eu me sento entre os travesseiros e deslizo meus dedos pelo
colchão vagarosamente... e se ele tivesse mudado a senha?
Abro o celular e fico olhando para a tela por um instante, respiro
fundo e teclo a senha, mordendo meus lábios. A tela se abre e imediatamente
vejo que recebeu uma mensagem do hospital que meu pai está internado com
o título: seus exames estão prontos, no aguardo da consulta.

Meneio a cabeça sem entender ao certo aquela mensagem, meu


dedo paira sobre o aparelho com o intuito de responder, mas não tenho
coragem. Coloco o celular de volta no lugar, concluindo que se tratava de
exames de meu pai, que certamente Trevor colocara seu contato como
correspondência.

Mesmo sabendo que eu teria mais direito de saber sobre os exames


de Desmond, quero ficar o mais distante de tudo que ele representa e
compreendo que faço a melhor escolha ao tapar o celular com lençol e
levantar da cama.
Muito longe nunca era longe o suficiente.
Fecho meus olhos com força e soco a parede uma vez e outra até
sentir os nós dos meus dedos se esfolarem, a raiva ainda infiltrada em meus
poros, a adrenalina me queimando os músculos.

Carajo, carajo!

O que eu estava fazendo? O que eu deveria fazer?


Contar tudo para ela e apostar que me amasse e quisesse ser feliz ao
meu lado nos poucos meses de vida que me restavam...?

— O que a parede fez contra você?

Eu me viro e encontro Andrew em minha sala nas Empresas Kane.


Ele está me espreitando com um sorriso cínico nos lábios, quase penso em
transferir minha raiva para su cuerpo inútil, mas eu o quebraria no primeiro
segundo.
— Não me testa, Andrew. — respondo, avançando pela sala e indo
até o banheiro atrás da toalha. Enrolo-a em meu punho, vendo o sangue tingir
o tecido branco e miro Andrew bebendo um copo do uísque, recostado em
minha mesa.

— Você ainda não me pagou essa semana, Trevor. — ele enfia uma
mão no bolso do seu uniforme de motorista e me mostra o fundo vazio,
sorrindo de maneira debochada. — Se quer que eu continue comendo a
patroa, tenho que manter tudo isso em forma para continuar garantindo o
interesse e você sabe — ele aponta para o próprio cuerpo. — isso tudo custa
dinheiro.
— Se quiser continuar fodendo Sophia, o problema é seu, Andrew.
— pego minha carteira e a jogo em suas mãos, ele quase deixa o copo cair,
equilibrando-o enquanto tira um grosso maço de dólares de dentro dela. — Já
tive o que eu queria, você cumpriu nosso trato. Se continua trepando com ela,
é escolha sua, não minha.

— Você já viu o corpo dela? É quase uma obrigação, meu caro. —


ele ri, deixando minha carteira vazia sobre a mesa e eu penso em minha
sogra, no quanto ela era movida pelo egocentrismo; eu sabia porque eu
mesmo havia me aproveitado disso logo que entrei na Kane.

Apesar de eu possuir os diplomas perfeitos para o cargo do mesmo


andar que Desmond, Patrick ou Milner, tive que contar com uma ajuda extra
e ser seduzido pela esposa de meu patrão caiu como uma luva.
Sophia Kane não focou em nada mais naqueles meses em que seu
objetivo era conseguir me conquistar. Não que eu, de fato, não iria para a
cama com una mujer como ela, caso não tivesse como objetivo deixá-la tão
louca por mim, que faria tudo para ter mi cuerpo entre seus lençóis.
Não, não era isso, eu foderia Sophia naquela época sem problemas,
mas ser fácil estava longe de ser um bom plano. Por isso mesmo neguei suas
investidas até deixá-la louca o suficiente por mim para fazer o que eu pedisse
achando que assim eu a foderia.

Eu apostei em seu ego e ganhei. Quem era louco de dizer não para
uma mujer como Sophia Kane?
Eu fui.

E só ganhei com isso.

Através de Anne, minha secretária ingenuamente fofoqueira, soube


que Sophia e Desmond tinham algumas discussões acaloradas dentro do
escritório e os pivôs sempre eram os supostos pulos de minha atual sogra.
Através desse juego de conquista com Sophia, deixei escapulir algumas vezes
o quanto merecia um cargo melhor na Kane e... ela teve que fazer o jogo dela,
convencendo seu marido cego de amor o quanto eu merecia aquela vaga.
Para me ganhar, eu deveria ganhar o cargo.

Como eu já disse, aquela loira no cruzeiro não era muito diferente


de mim; a arte da sedução era minha aliada e brincar com o ego de uma
esposa joven e insaciable foi mais fácil que forjar minha identidade.

Chica burra!
Em menos de dois meses eu alcançava o mesmo andar que
Desmond e, um pouco depois, ganhava sua confiança com uma assinatura
minha que o livrou de uma indenização bilionária. Eu não me gabava daquela
assinatura, não mesmo. Mas tive que fazer para chegar onde cheguei. E o
mesmo se dava às tantas outras decisões que me fizeram escalar aos poucos,
riscando ponto a ponto de meu plano milimetricamente calculado.
Eu sabia que Sophia ainda mantinha uma paixão por mim, era
visível em seus atos, inclusive quando deixou claro que eu me casava com
Ellie para estar mais perto dela e, por isso mesmo, incentivou o marido à
nossa proposta de matrimônio. Ahh, Sophia, o que usted tinha de beleza,
sofria em inteligência...

Pero ter minha sogra sustentando uma paixão por mim era um
trunfo, principalmente naquele feriado nos Hamptons quando transou com
Andrew na varanda de seu quarto, mesmo sabendo que seu marido e
convidados a aguardavam para jantar. Seus olhos cravados em minha janela
enquanto era fodida pelo motorista me diziam tudo... ela sabia que eu poderia
vê-la... e queria que eu assistisse, achando que me enciumaria... só que ela
não sabia era que eu filmava aquela cena, um deleite para minha filmadora.
O que ela achava se tratar de uma cena de ciúmes, tinha sido e
muito bem pago por mim a Andrew.

No entanto, quando cheguei no jantar e vi que ela havia retornado


instantes antes de mim fiquei com receio do que aquilo poderia parecer e
deixei minha fraqueza me ganhar quando usei minha língua materna ao
inventar uma desculpa para Desmond sobre a ligação, quando, na verdade,
passava o filme para meu laptop.

Obviamente eu não sentia nada além de asco por aquela mujer que
se amava acima de tudo... acima da própria filha... pela Sophie Kane, eu seria
seu amante, mesmo casado com sua filha.
Aquela família não merecia a filha que tinha... inspiro dolorido... eu
também não merecia.

Olho Andrew e ele conta nota por nota, tão saciado com o
pagamento quanto com o sexo com Sophia Kane. Ele guarda o dinheiro no
bolso e me olha antes de seguir pela sala em direção à porta:

— Ah, já que me paga também para saber todos os passos de Ellie...


ela está nos Hamptons.
— Yo sei, estoy com ela, Andrew. — abro a porta para ele. —
Ahora, fique longe dela, compreende? — ele passa por mim e eu o chamo. —
Só se eu precisar. Quanto a Sophia, faça o que quiser, mas não pagarei mais
pelo sexo.

Eu o observo andar pelo corredor e deixo que desça pelos


elevadores antes de fazer o mesmo trajeto. Saio pelo corredor vazio da
empresa, tão tarde a ponto de os poucos seguranças no saguão estarem
entediados com minha presença solitária e rotineira das últimas noites.

Eu me despeço deles e desvio meu rosto para as portas de vidro,


mirando meu carro estacionado à minha espera.
Empurro a porta, descendo os dois degraus em um pulo e me
enfiando no carro no mesmo segundo em que o abro. Seguro o volante com
força e enfio minha cabeça nele, sentindo ardor com o baque. Olho meus pés,
aqueles malditos sapatos italianos que valeriam mais que um mês de salário
de um dos guardas e entendo que tenho que adiantar o plano, eu não
aguentaria mais um mês enredado naquilo, eu tinha chegado ao meu limite.

Ellie era meu limite... aquela linha tênue e intransponível...

Giro a chave e engato a primeira, olhando o trânsito com uma calma


repentina... como se eu compreendesse que finalmente tinha chegado a hora...
ligo o som e aumento o volume até o ponto de me incomodar, mas deixo
assim pelos próximos longos quilômetros até entrar na rua e parar longe,
metros de distância entre meu carro e a entrada da casa dos Kane nos
Hamptons.
Abro as portas do Porsche e pego um dos charutos cubanos de
Desmond, rindo com o quanto aquele mierda era hipócrita, acendendo-o e
olhando a luz da janela de Ellie acesa. Solto uma baforada e apoio a mão com
o charuto entre os dedos no volante, observando a cortina leve dançar sob o
vento da madrugada.

Como uma fugaz lembrança, me recordo da noite em que cheguei


em casa, depois de passar o dia na Ocean Beach chorando a falta que sentia
de minha irmã em mais um dos nossos aniversários.

Estava tão fresco quanto agora e eu me aproximava da imensa casa


comprada pelo dinheiro sórdido dos Kane, sem imaginar que nada... nada da
minha vida tinha o dedo sujo de Desmond, inclusive nossa mudança da
Colômbia para os Estados Unidos e o dinheiro repentino que nos abastava.

De súbito nós éramos ricos e a vida simples e feliz na Colômbia


antes da morte de minha irmã tinha ficado para trás.

Junto com Miguel... eu só não sabia ainda.


Eu me lembro de deixar a moto na calçada e estranhar que a luz do
quarto de meu pai estivesse acesa tão tarde da madrugada; abri o portão e
segui pelo jardim, imaginando que ele pudesse estar lendo ou tentando se
distrair de alguma maneira, mas quando entrei pela porta e o chamei, não
tendo resposta, imaginei o pior, mas nunca... nunca o que presenciei quando
entrei em seu quarto.

A carta ao lado de seu corpo inerte e pendurado pela corda ditou


meus passos até hoje. Derek Marshall, meu pai e herói de minha irmã, havia
se enforcado por culpa do que escondeu desde a morte de Bee, que partira em
consequência do que acontecia dentro daquele laboratório.

Eu estava vivo.
Eu estava sobrevivendo.

E para mim era óbvio o motivo, ele estava em sua carta: vingar
minha família.
Eu me recosto ao banco e fumo o charuto calmamente até o fim,
vendo a hora passar e a luz acesa finalmente apagar. Somente então saio do
carro e sigo em direção à casa.

Mas sei que o que me espera desta vez é bom... é amor.


22

Eu me sento na cama, olhando pela janela, meus dedos afastando a


cortina do vidro.

Minha pele se arrepia com o frescor do outono chegando e eu


descanso meu cotovelo na quina da janela, apoiando meu queixo à minha
mão vendo Trevor sair de seu carro e se recostar à porta do automóvel,
olhando a lua por vários segundos.
Ele passa as mãos pelos cabelos e parece cansado, abatido...
frustrado.

Olho meu relógio e vejo que já passa das onze, fecho as cortinas e
me levanto, saindo do quarto e descendo as escadas rumo ao pátio dos
fundos. Abro a porta de vidro e atravesso o jardim, tirando minha camisola
pela cabeça e mirando a piscina, as luzes acesas subaquáticas a deixam mais
linda, um tom azulado quase bruxuleante em contraste com o delicado vapor
que sai de suas águas aquecidas.

Em um mergulho de cabeça, deixo meu corpo submergir


completamente, e atravesso em um fôlego só até o outro lado da piscina.
Então deixo meu corpo flutuar e permaneço boiando por vários minutos
enquanto contemplo a mesma lua que Trevor observa do pátio. O silêncio me
acalma e apenas o barulhinho da água batendo em meu corpo é relaxante,
sinto meus nervos abrandarem a tensão e deslizo meus dedos pela água,
contando as estrelas, desejando estar em mar aberto no momento, velejando
em meu barco.
As palavras de meu pai ainda retumbam em meu coração, mas eu as
ignoro com todas as minhas forças e volto a contar as estrelas, imaginando
uma bela paisagem para desenhar pela manhã.

A água ao meu redor tremula e eu me levanto imediatamente, vendo


Trevor entrar na piscina, vestido apenas com sua calça. Eu enxugo meu rosto,
fitando-o se aproximar e ele não fala nada até estar a centímetros de mim, a
borda d’água em sua cintura, seu peito, rosto e cabelos secos, ao contrário de
mim. Eu não falo nada e ele inclina a cabeça um tantinho, me analisando
enquanto tira meus cabelos encharcados de meu rosto, prendendo-os atrás de
minha orelha.

Eu me reteso completamente, observando-o me observar.


— Como seguimos se eu estiver me apaixonando por você,
preciosa...?

Minha respiração pausa e eu nem pisco:

— Você... você está se apaixonando por mim...?


— Por que me pergunta como se não pudesse... ser posible, Ellie?
— ele sussurra e eu sinto as mordidinhas em minha orelha, ao mesmo tempo
em que ele me abraça ao seu corpo gelado.

— Você está, Trevor? — questiono, sentindo o seu pau roçar por


meu quadril enquanto ele beija meus ombros com carinho, deslizando os
dedos por minhas costas, lombar e nádegas por debaixo d’água.
— Tu piel arrepiada com meu toque... certamente estoy apaixonado
por isso, Ellie. — ele sorri em meus lábios, a respiração excitada em minha
boca, seu dedo escorrega minha calcinha pelas coxas. — Pero por ti también,
preciosa. Por você toda.

— Trevor... — gemo baixinho quando ele eleva minhas coxas com


facilidade, a água ajudando-o a se deslocar pela piscina até minhas costas
baterem contra a quina. Estico meus braços na borda, sentindo-o me penetrar
com calma, lentamente, centímetro a centímetro, seu quadril indo e voltando,
pequenas e delicadas ondas dançando em volta de nossos corpos.

— E você, Ellie? O que sente por mim? — eu seguro a mão que ele
agarra meu seio por cima de meu sutiã, olhando o jardim silencioso, alguns
postes iluminando a noite. Volto meu olhar para a casa, me certificando que
nenhum dos empregados esteja nos observando pelas janelas e abafo meu
gemido, compreendendo que pouco me importa se estão.
Eu gostava da brutalidade de Trevor, mas me rendo ao delicioso
martírio daquele sexo lento e carinhoso, um ritmo que eu ainda não havia
experimentado. Ele sorri, segurando minha cintura e me olha enquanto
prendo meus cabelos.

— Quer me torturar ao não me responder, Ellie? — ele agarra


minha bunda e se afunda mais dentro de mim. — Ou está com pena de me
magoar?

— Eu me apaixonei por você no momento em que te vi na marina,


Trevor. — espalmo minha mão sobre seu peito e ele geme baixo quando
movimento um pouco meu quadril em consonância com o seu. — Belo,
misterioso e sedutor. — olho em seus olhos. — Nada mudou.
Trevor parece se desestabilizar e por um momento sequer pisca, me
confrontando. Sua voz não passa de um leve sussurro trazido aos meus
ouvidos pelo vento:

— Talvez... se me conhecesse de verdade... não se apaixonaria... —


ele fecha os olhos.

Paro meu movimento.


— O que você quer dizer?

Ele abre os olhos e me encara, sorrindo desanimado:

— Eu me apaixonei por você porque te conheci... você se


apaixonou por mim porque não me conhece.
Continuo o encarando, mas ele me puxa até sua boca, sugando meus
lábios. Eu penso no que falou e tento me soltar, mas ele se aprofunda em mim
e eu jogo minha cabeça para trás, sentindo-o me espremer entre o azulejo e
seu corpo. Sua língua se contorce em meu queixo, bochecha, pescoço e volta
muito molhada para meus lábios e minhas mãos por debaixo da borda d’água
deslizam até sua bunda, quando a aperto e trago mais para mim.

Sorrio para o nada quando vejo suas mãos pegarem a borda da


piscina, usando-a para investir seu quadril entre minhas pernas... ahh, uau...
Trevor abafa seus gemidos em meu pescoço, a água agitando-se à nossa
volta, levantando algumas bolhas e pequenas ondas o suficiente para molhar
bastante o piso da piscina à nossa volta quando intensifica.

No instante em que sinto meu ventre pulsar e o orgasmo começar a


percorrer meu corpo, ele toma minha boca, não afrouxando seus dedos cruéis
em mim e eu gozo como nunca com seus olhos crivados nos meus.
— Trevor... Trevor... — eu agarro sua nuca, passando as unhas em
seu pescoço e subindo pelo cabelo, bagunçando todo enquanto ele me beija
fervorosamente, percebendo que seus músculos também se contraem.

— Sí, preciosa, sí... — ele usa uma mão como apoio na borda e
com a outra agarra meu cabelo, puxando meu rosto de novo para si, tomando
minha boca para ele, dominando meus lábios, sugando minha língua. —...
minha Ellie... minha esposa... mi preciosa.

Trevor dá leves estocadas, mas mesmo que aquela sensação seja


maravilhosa, eu ofego porque, acima de qualquer tesão, a sensação de ouvi-lo
me chamando de sua... sua preciosa... é deliciosa.
― Tem certeza que não quer tomar um banho enquanto preparo a
janta? ― pergunto vendo seus cabelos molhados pingarem sobre o roupão, o
cheiro de cloro da piscina sobrepondo o aroma de baunilha.

Ellie faz que não com a cabeça, se debruçando sobre a banqueta da


ilha enquanto me vê preparando ajiaco, um prato tradicional de Bogotá que
mi padre havia aprendido com mamá.

Coloco a batata para cozinhar e penso em tudo que tenho entalado


em minha garganta. Miro seus olhos curiosos enquanto descasco uma cebola
e tento arranjar coragem, sem entender como pude fazer tanta coisa para
chegar até aqui e ahora, justo ahora, me sentir amedrontado por Ellie.
Corto as cebolas na tábua e umedeço meus lábios, não, não agora,
agora não era a hora, o dia já tinha sido demais para ela, eu não poderia fazer
mais isso. Mas de amanhã... de amanhã não poderia passar...
― Espero que goste, não sei cozinhar muita coisa além disso. ―
tampo a panela, deixando a água ferver e ela me olha de rabo de olho.

― É um prato típico da Espanha? ― Ellie debruça sobre o balcão e


eu desvio meus olhos dos seus, fazendo que sim com a cabeça. Às vezes eu
achava que dava alguns indícios porque eu queria que ela me pegasse no
flagra, descobrisse tudo... outras vezes achava que simplesmente queria ser
mais eu mesmo ao seu lado, sem medo.

De qualquer maneira, é difícil ser totalmente verdadeiro quando a


consequência é que ela nunca mais queira me ver.

― Ajiaco é uma sopa feita à base de milho, batatas, frango, creme


de leite, cebola, alho e alcaparras. ― explico, ouvindo a tampa da panela
vibrar atrás de mim, o som de um juego qualquer de futebol na televisão.

― Hmmm, parece delicioso... ― mexe o nariz empinado e aquela


cena me deixa de quatro, seu sorriso genuíno e confortável, sem medo, sem
receios, Ellie sendo Ellie... Ah, caramba, Miguel, você está muito fodido!
Impulsiono meu corpo para trás e abro a panela, mexendo com um
garfo o milho cozido, uma pontada repentina em meu estômago me tira dos
eixos e eu sugo o ar, me sentindo zonzo. Seguro o garfo com mais força e
foco na água fervente, vendo os milhos voltarem a tomar forma.

― Eu não sei cozinhar nada... me condene pelos chefs renomados


que minha mãe contrata. ― Ellie ergue o olhar na minha direção, sorrindo de
modo irônico e eu sorrio de volta, segurando minhas dores, engolindo-as
completamente, não, não hoje, não hoje, não agora, carajo.

― Espero que yo esteja à altura. ― escorro as alcaparras em uma


travessa, vendo meus dedos tremerem. ― Quer beber algo? ― vou até a
geladeira e procuro alguma bebida forte, qualquer coisa que alivie de
imediato a bomba em meu estômago, ainda que amanhã eu esteja pior.

― Um vinho. ― Ellie me olha, piscando devagar e eu entrego uma


taça entre seus dedos, sem conseguir disfarçar como me deixa fora de mim
com a intensidade que me fita. — Você disse que seu pai dançava enquanto
cozinhava receitas de sua mãe... não está faltando nada aqui, não...? ―
pergunta em um sorrisinho cheio de intenções enquanto encho sua taça com o
vinho, mas ela levanta os dedos e segura meu braço. ― Que tal desligar a TV
e ligar o som?

― Usted está querendo um show particular meu, preciosa? ― eu


encosto meu nariz no seu, inclinando um pouco o rosto antes de voltar a fitá-
la. — Não está satisfeita com o que fiz na piscina? — eu pergunto e ela exala
um pequeno suspiro contido. — Ou está apenas querendo um bis? —
escorrego meus dedos por seus cabelos, tirando-os de seu rosto.

— Estava mais era a fim de rir mesmo.

— Dios mío! — solto-a e seguro meu peito, rindo afetado. — Un


tiro directo a mi corazón dolería menos!
Ellie gargalha e eu engulo seu sorriso com meus lábios, beijando-a,
passando minhas mãos por seus ombros, deslizando-as pelas costas e
alcançando sua bunda, impulsionando-a para meu colo. Ela sorri em meio aos
beijos e se aquela não fosse uma lembrança feliz para ela... seria eternamente
para mí.
— Hoje é meu aniversário.

Eu congelo a colherada na boca e o encaro, Trevor mexe em sua


sopa e parece ansioso ao revelar aquilo. Já passava de meia-noite, eu estava
deliciada com a comida que preparara e jantávamos depois de nos pegarmos
outra vez no sofá da sala.

— Por que só está me dizendo agora?


Ele levanta os ombros, me olhando sem graça e eu penso no peso
daquela data, apesar de tudo. Sua irmã.

— Não comemoro há um bom tempo, preciosa... — sussurra e eu


suspiro, entristecida com sua revelação.

— Quer fazer alguma coisa amanhã? — empurro meu prato para


frente. — Sair, jantar?
— No, está perfecto aqui. — ele sorri de lado, se esticando sobre a
mesa, buscando minha mão. — Vamos tomar um banho e deitar? — ele
sugere, me erguendo e me levando para o banheiro em meio a alguns beijos
bem provocantes. — É bom só nós dois, não? — pergunta, tirando seu
roupão e eu concordo, sim, só nós dois.

— Quente ou frio? — pergunto, abrindo o chuveiro.


— Tanto faz, se for frio, su cuerpo me esquenta, se for caliente,
certamente não será tanto quanto você.

— É o sotaque ou vocês já nascem prontos com essa aura de


sedução? — implico, mas lá está ele se molhando, olhos vidrados no robe que
abro bem devagar enquanto as gotas despencam de seus cabelos em seu peito.

— No meu caso, é um pacote completo. — responde sem nenhuma


vergonha do tanto que se acha, e eu entro no box, sendo puxada por ele até
debaixo da ducha, rio mordendo seus lábios e ele me gira no box, me
colocando entre seus braços. Minha bunda congela no azulejo, mas aplaco
qualquer sentido que não seja minha barriga sentindo o seu pau, encostado
em minha pele, enrijecer.
Trevor sorri, me levantando uma sobrancelha e meneando a cabeça
para baixo:

— Acho que ele também gosta de shows no chuveiro, além de


piscinas.

— Quem sou eu para não o aplaudir?


23

Acordo com a imagem em minha mente sem nem saber de onde


veio.

Olho para Trevor e ele dorme encolhido, segurando com força seu
travesseiro, a respiração entrecortada. Miro o teto e a imagem do jogo de
futebol me vem claramente, a camisa da seleção em campo, a bola rolando e
os jogadores goleando. Não preciso nem pegar o celular de Trevor para
conferir, sei que a camisa que ele vestia naquela foto quando criança era da
Colômbia.
Minha respiração pausa.

A dança, a dança latina... engulo uma lufada de ar e me levanto da


cama, descendo as escadas e encontrando Mirian na cozinha, arrumando
nossa bagunça de ontem. Desejo bom dia e pego uma maçã, olhando-a de
soslaio:

― Ajiaco é da culinária espanhola, Mirian? ― aponto para a panela


descansando ainda no fogão, metade cheia.
― Hmm, não saberia dizer ao certo, senhora, mas acho que não...
Talvez da América do Sul? ― ela tamborila os dedos em cima de seu avental.
― Quer que eu ligue para a governanta de sua casa para saber? Ela pode
perguntar ao chef.

― Não, não precisa. ― rolo a maçã pelos dedos e subo de volta as


escadas, compreendendo que, no fundo, eu sabia a resposta. De imediato, me
pego pensando no que Trevor me disse quando dançávamos na boate e talvez
ali eu estivesse bêbada demais para absorver a incongruência daquilo, mas
ontem mesmo ele havia me confirmado e outra vez eu sabia que o pegava em
outra mentira.

“Mi padre me ensinou a dançar... ele gostava de bailar pela casa se


lembrando dela enquanto cozinhava pra gente...”
Trevor não havia me dito que sua mãe e seu pai tinham morrido em
um acidente? Ele dançava pela casa enquanto cozinhava, se lembrando dela e
não era possível que isso acontecia porque ela se ausentava da casa, não, não
foi o que ele quis dizer... sua mãe morreu primeiro que seu pai!

Entro pelo quarto e jogo a maçã longe, ela bate na estante e rola em
pedaços pelo chão, despertando-o com o barulho, Trevor se levanta
abruptamente e me mira, sem entender, no entanto quando o encaro ele deixa
os ombros caírem e sei... sei que sabe que eu sei.
― O que mais você mentiu para mim? ― ela berra, não dando
tempo nem que eu assimile a sua raiva. ― Você é da Colômbia! Sua mãe era
colombiana e seu pai americano!

Eu não movo um músculo, a confrontando e ela me encara,


visivelmente transtornada. Respiro profundamente, fechando os olhos e os
reabrindo com calma, eu estou tão absurdamente apaixonado por ela que não
me reconheço. Ou... pela primeira vez... esse sou eu... um homem apaixonado
por uma mulher...

Um homem qualquer apaixonado por uma mulher qualquer...


Miguel e Ellie.

— Você está certa, eu menti sobre tudo, preciosa. Ou sobre quase


tudo.
Ellie parece ter levado um soco com minhas palavras e seu olhar
indignado me quebra mais uma vez:

— Por que mentiu para mim, Trevor?


Eu queria contar para ela hoje. Ela descobriu antes.

Tiro o lençol de cima de mim, buscando tempo e não a olho quando


a respondo, quando finalmente a respondo:

— Sí, você está certa, mi padre era americano, não minha mãe... mi
madre morreu em nosso parto... — minha voz treme e eu pauso minha
respiração, ouvindo tudo que eu mesmo revelo, como se um peso saísse de
meus ombros. — Ele foi trabalhar na Colômbia e conheceu mi madre. Ele era
químico no laboratório de seu pai, Ellie. Chefe do laboratório das empresas
Kane na Colômbia.
— Trevor, eu...

— Nunca foi você, Ellie. — interrompo-a. — Eu não ligava para o que


você acharia de mim ou sequer te via como alguém que não fosse um
trampolim para o que eu almejava. — eu olho para minhas próprias mãos. —
Eu seria capaz de fazer tudo, tudo para me vingar dele, preciosa. — Ellie
abre a boca para questionar, mas eu me adianto, levantando da cama: — Eu
só não sabia que apesar de existir você... existia você, compreende?

— Se vingar dele...? — ela balbucia, eu me aproximo mais, ela se


afasta, alterando a voz: — É de meu pai que está falando, Trevor? É de
Desmond que você quis se vingar esse tempo todo?! Você se casou comigo
para se vingar dele? Era isso? O que, o que ele fez?
Passo as mãos pelos meus cabelos, era agora, simplesmente seria
agora, meu corazón dói, hoje seria aniversário dela, ela teria minha idade,
meu sorriso, meus olhos... Encaro Ellie, sentindo a dor pulsar, ela diminui a
distância de antes e aponta o dedo para mim, quase encostando em meu rosto:

— Não ouse mentir, Trevor, não ouse mais mentir para mim!
Eu tiro seu dedo de minha cara e cerro meus olhos, minha voz
denunciando a raiva contida, tremida, o medo latente, todas as emoções
misturadas:

— Tu padre matou minha família, Ellie! Você quer saber os


detalhes? Quer saber como ele encobriu tudo? Como não fechou o laboratório
imediatamente quando soube dos dejetos cancerígenos que lançava no poço
que abastecia minha vila? Como pagou o silêncio do meu pai quando o
câncer tomou a saúde de mi hermana?

Ellie me mira apavorada, suas mãos vão para sua boca e ela tapa a
expressão de horror, eu não me seguro mais, não mais, nunca mais:
— Dejetos, Ellie, mierdas de dejetos porque su padre não quis
gastar dinheiro com o descarte adequado, não numa vila do submundo,
carajo! — bato em meu peito com raiva. — Terceiro mundo, é isso que ele
faz com os laboratórios nos países de terceiro mundo, como se fôssemos
ratos! — meus dedos arranham minha pele e é pouca a dor que me inflijo,
pouca perto do que sinto dentro de meu peito, do que sinto na porra de meu
corazón de mierda. — Maria nadava naquele poço quase todo dia... Era a
água que bebíamos... mas ela... ela nadava naquilo todo santo dia no verão
e... O câncer a levou em meses! Meses, Ellie, meses... um dia minha Bee
estava sorrindo para mim, no outro eu rezava em cima de sua tumba!

— Meu Deus... mas... mas...

— “Mas” o que, Ellie? Não existe “mas”! — eu a corto, sem


paciência para suas defesas, e na verdade eu sabia que su padre era
indefensável e ela com certeza se calaria. — Quando a coisa começou a sair
de controle e outras crianças começaram a ter os mesmos sintomas que
Maria, tu padre foi pessoalmente com Milner Clark à Colômbia resolver. —
bufo, enojado, me recordando daquele dia como se fosse ontem. — Eu me
recordo dos dois em nossa casa, poucos meses depois da morte de mi
hermana. A conversa foi entre quatro paredes e eu só conseguia olhar a cruz
acima da televisão, sem saber o que acontecia ali dentro. Em menos de um
mês estávamos morando em San Francisco, em uma mansão... eu estudava
em uma escola particular e nunca me faltou nada... a não ser tudo. Tudo.

Ellie praticamente se joga sentada à cama me olhando, seu robe


aberto, a camisola amassada entre suas mãos, ela esfrega o tecido sem saber o
que fazer, eu engulo não só a raiva, mas o choro que entope minha garganta:
— Eu nunca mais quis nada da minha vida a não ser me vingar de
su padre, Ellie. — minha voz sai baixa e eu inspiro fundo, se as comportas
estavam abertas, tudo tinha que sair, tudo. — Eu fui capaz de tudo, como
pode imaginar. — sorrio sem forças, piscando lentamente. — Nossa lua de
mel? Eu sugeri ao Milner a viagem de navio, ele não parava de reclamar da
esposa, eu sabia que ele estaria sozinho. E precisava de alguns dados em su
computador. — Ellie se abraça, me olhando, e eu sigo em frente: — Ele não
vendeu as informações da empresa. Eu vendi. Com o nome dele. Pero ele
merecia, Ellie, como merecia... — baixo meus olhos para os seus. — Não
parei por aí, preciosa.

Ellie está paralisada sentada à cama, sei que é muito a absorver, mas
o que me impedia agora? Se ela me mandasse embora por qualquer um dos
motivos, por que não todos? Pelo menos ela saberia, pelo menos ela saberia
quem sou, do que eu fui capaz, pelo menos ela saberia!

— Andrew, seu motorista, eu o pago para saber seus passos. Ele


também é o amante de su madre.

Ellie nem pisca, ela meneia a cabeça discretamente, como se já


pudesse imaginar, e eu continuo:
— Eu transei com Abby.

Ellie segura todas as emoções, me encarando em seguida. Minha


voz treme, minhas mãos tremem, eu tremo por inteiro, mas, assim como ela,
me mantenho firme:

— Abby foi um meio que achei para saber tudo de você. Mas não
porque eu queria você, Ellie. Eu queria me casar com a hija de Desmond. E
sua amiga confirmou tudo que eu precisava para saber que não teria
problemas nesse casamento. — eu bufo pensando em que tipo de amiga Ellie
tinha. — Ela não é boa para você, Ellie.
— Nem você. — responde quase sem voz e eu concordo com a
cabeça, movendo-a devagar, sentindo o peso de concluir que também não era
bom para ela. — Sai daqui. — ela pede em voz baixa, eu não me movo. —
Sai daqui, Trevor! — sua voz aumenta vários tons e ela se levanta, abrindo a
porta do quarto. — Vai embora, me deixa sozinha!

— Eu me apaixonei por você, Ellie. — mordo meus próprios lábios,


tentando segurar o choro, e suspiro devagar antes de ela continuar se
afastando de mim quando vou em sua direção.

— Você não merece nada do que sinto por você, nada!


— Ellie...

— Vai embora! Sai de meu quarto! SAI DA MINHA CASA!

— Ellie, eu...
— VAI EMBORA DA MINHA VIDA, PORRA!
A porta bate em minhas costas e eu vou embora, desço as escadas,
atravesso a casa, sigo pelo portão olhando o oceano à minha frente, meus pés
escorregam nas pequenas dunas e eu caio de joelhos na areia.

E então finalmente começo a chorar.


Meu pai tinha matado a irmã de Trevor.

Trevor queria se vingar.

Eu abraço meu corpo e volto para minha cama sem saber como
tenho forças para respirar, mas lá estou eu, me encolhendo entre os lençóis e
travesseiros, as lágrimas infindáveis que eu tanto queria negar deslizando por
minhas bochechas enquanto encaro suas malas abertas em cima do tapete por
horas a fio, vendo o dia ir embora e a noite chegar.
Sentindo meus nervos em frangalhos, me refugio na varanda
olhando o mar platinado pelo luar, ainda tentando entender todas as
informações que Trevor havia me dado. Seu pai trabalhava para o meu...
laboratório na Colômbia... ele havia nascido na Colômbia e não na Espanha...
seu pai era químico... meu pai havia matado sua irmã com a negligência que
imperava sua indústria em prol de seus lucros.
A faculdade que eu fazia, a mansão que eu morava, a casa que eu
estava, o barco que eu velejava... todo o dinheiro era manchado com o sangue
da irmã de Trevor.

Maria. Sua Bee.


Volto pelo quarto e me sento à cama, pegando meu laptop e agora
digitando “laboratório Kane na Colômbia”, e apenas encontro a mesma
reportagem que li com Chloe e Lennox semanas atrás, mas desta vez me
atento a essa parte específica, que pareceu ignorada na primeira leitura:

“Alguns laboratórios Kane foram fechados por conta de falta de


mão de obra específica na Colômbia e no México.”, meu pai disse ao
jornalista, “Não valia a pena financeiramente manter nossos funcionários
nesses países e, por sua vez, ainda que a mão de obra nativa fosse barata, eles
nunca eram capacitados o suficiente para trabalhar em uma empresa de
renome como a Kane.”

Dou uma risada seca fechando meu laptop, aquilo era a cara de meu
pai, o menosprezo... a prepotência... não era de se admirar que teve que
desembolsar tanto em ações judiciais por suas falas em entrevistas. Eu me
recosto ao travesseiro, imaginando que os motivos não eram poucos para que
meu marido odiasse meu pai, não se Trevor Willians estava em nossas vidas
como meu marido.
De qualquer maneira, doía demais me sentir traída.
Os dias passam.

Não os sinto passar.


Visito Desmond em seu quarto e ele sempre está dormindo, aquele
sono ferrado, fodido, el diablo nunca vinha pegar su alma moribunda. As
enfermeiras me informam que ninguém o visita além de mim e eu não
imaginava que seria diferente.

Sophia não estava nem aí, nunca esteve. Mi preciosa... mi preciosa,


fito minha aliança e fungo, olhando o chão... Ellie não merecia esse peso
morto.

Muitas vezes me espreito até seus aparelhos, a vontade é quase


doentia de desligar qualquer coisa que o ajude a suportar o que está
vivenciando. Miro o crucifixo em cima de sua maca, se ele saísse impune
dessa eu não responderia por mim.

Olho a flor que Ellie deixou em cima da mesinha e ela murcha, as


pétalas ressecadas, o médico me diz que tenho que ver meus exames, eu o
olho e sei que fala mais alguma coisa, não ouço nada; ele me conhece, ele era
socorrista quando mi padre se matou e foi ele o primeiro a vê-lo quando
chamei a ambulância, cuidando do corte perto do meu maxilar quando eu sem
querer deslizei a lâmina da faca em meu rosto ao tentar cortar a corda que
sustentava o cuerpo de Derek Marshall.
Mi padre.

Saio do quarto com o médico falando, eu não deveria deixá-lo para


trás, deveria ser eternamente agradecido por nunca ter contado quem sou, o
mais perto que tive de um amigo durante todos esses anos e nem sei seu
sobrenome, não o conheço, ele não me conhece de verdade, não sabe da
minha vingança, apenas acha que me naturalizei e segui os passos de mi
padre.

O homem que ele disse não ter mais vida quando chegou em minha
casa, as sirenes ainda ecoando em nossas cabeças. Agora tenta, de qualquer
modo, salvar a minha vida... o que ele não sabe é que não tenho salvação...
minha alma não tem salvação.
O médico tenta colocar os exames entre meus dedos, me forçando a
olhá-los, eu os deixo cair no chão e apenas sigo em frente, sem olhar para
trás.
24

Olho para as pessoas dançando ao meu lado, a boate ferve, sábado à


noite, tento controlar o acesso de tremedeira que toma mi cuerpo e me deixa
alucinado. Vejo o copo vibrando entre meus dedos, o líquido quase
escapando pela borda, tapo meu rosto e inspiro, contando até vinte, voltando
a expirar.
Desta vez a dor não é física... sinto saudades... saudades dela...

Corro com a mão pelo balcão e minhas unhas arranham a madeira,


olho as mulheres dançando e vejo Ellie em todas elas, meus membros
amortecem, a dor me domina por completo, o álcool tenta fazer seu efeito.
Minhas mãos abraçam meus próprios braços e sinto a vibração, o frio
congelando minha pele, o corazón descompassado, as batidas doendo meu
peito, cavando um buraco.

Aumentando o buraco.

Não deixo que as lágrimas escorram por meu rosto, me impedindo


de chorar, minhas mãos tremem tanto que mal consigo colocar o copo em
minha boca, ou beber o líquido transparente sem que ele não escorra por meu
queixo, esfrego com força meu maxilar e subo com os dedos pelas minhas
têmporas.

— Ela está matando as aulas.

Levanto o rosto de supetão e vejo Andrew ao meu lado, inspiro,


adquirindo forças, e cruzo os braços no balcão:
— Eu já disse que não é mais para segui-la.

— Sophia está num spa, não me atende mais. — ele segura um


sorriso escroto. — Por que não me paga para distrair a filha? Eu bem que
traçava aquela garotinha, mesmo sendo mais sem-graça que a mãe. Não tem a
mesma bunda e ainda tem aquela cicatriz horrorosa no rosto e...

Com um soco, jogo-o no chão.

Andrew mal tem tempo de compreender que o nocauteei, monto


sobre seu peito e desfiro um golpe atrás do outro, mesmo com mãos tentando
me parar ou erguer. Eu me debato e ainda quero avançar em cima do
hijoputo, mas me seguram firme e eu cuspo sangue no chão sujo, as mãos
ainda seguram meus músculos e eu olho o motorista caído mais à frente, o
garçom tentando acordá-lo.

As mãos finalmente me soltam e eu caio sentado, recostado ao


balcão, me mantenho olhando aquele homem, o sangue espalhado por sua
camiseta. Vejo agora o movimento fraco que faz quando desperta, tentando
se levantar enquanto o içam.

Respiro de maneira entrecortada ouvindo as pessoas atônitas ao


nosso redor, gritos de pavor e excitação me preenchem os ouvidos enquanto
observo Andrew se erguer.
Eu me levanto e o encaro.

Ele passa o antebraço pelo rosto e sai andando no meio das pessoas,
sumindo no meio da boate. Meu estômago dói e eu passo a palma da mão nos
meus lábios tentando entender da onde era aquele sangue. A dor aumenta em
minha barriga e eu inspiro fundo, alcançando o meu copo no balcão, mas sou
surpreendido quando um homem me cutuca e me pergunta por que não
arrumo alguém do meu tamanho.

Rio para ele, sentindo o gosto de sangue em minha boca:


— Vai se foder. Você não tem culhão. — eu digo entredentes e
percebo que ele fecha os dedos em punho. Volto meus olhos para seu rosto:
— Ou quer chupar o meu?

O soco vem exatamente como eu espero: o punho fechado e erguido


de debaixo para cima, pegando em minha mandíbula. Exatamente como eu
esperava, como eu queria, como eu invejei Andrew abatido, como eu
desejava estar em seu lugar, caído, inerte.

Cambaleio alguns passos para trás, mas ainda não é o suficiente


para que eu caia, apenas sorrio e gesticulo com os dedos para que ele o repita,
sim, eu queria o soco, eu queria a mierda do soco, eu queria a dor, eu merecia
a dor.
— Ainda não estou deitado.

Uma ajoelhada em minha barriga me pega de surpresa e eu sinto o


ar me faltar, finalmente, ele se impõe sobre mim no exato momento em que
me encolho, desferindo agora as ajoelhadas em meu rosto.

Sorrio, sentindo meu nariz parecer quebrar e o sangue escorrer até


meus lábios, pensando em Ellie me mandando ir embora de sua vida, dizendo
que eu não merecia seus sentimentos. Lambo o sangue sentindo um golpe
atrás do outro, o suor do cara se misturando ao meu a cada vez que aproxima
seu joelho de meu rosto, suas mãos agarrando minhas costelas...

Por favor, acabe comigo, hasta que no tenga más sentidos...

Eu tombo para trás vendo o cara berrar indignado quando não me


levanto, caído no meio da boate, o olhar de Ellie aterrorizada quando a contei
sobre o motivo de estar em sua vida se espreitando entre minhas visões... me
chutam o estômago e eu me contorço, meus pensamentos presos naqueles
olhos cinzas.

Alguém grita pedindo que parem, eu imploro em silêncio pedindo o


meu fim.
Meu sangue escorre por minha boca, tão condenado quanto o de um
Kane.
Acordo com a campainha.

Olho à minha volta assustada, percebendo que me encontro


sozinha... Mais um dia... quantos foram mesmo?

Eu havia dispensando os empregados, queria ficar apenas em casa,


dormindo, olhando o teto, pensando... dia após dia. Visto meu robe e desço as
escadas em direção à porta, suspirando ao ver Lennox, Chloe e... Abby à
minha espera.
― O que estão fazendo aqui? ― sorrio, tentando não me sentir
incomodada com a presença de minha amiga mais antiga, ela tira os óculos,
escorregando-os para o alto da cabeça, e noto que seus olhos não sorriem de
volta como os de Chloe e Lennox.

― É assim que nos recebe? ― Lennox questiona, entrando pela sala


e jogando sua pequena mala em cima de um dos sofás. ― Seu marido ligou
para mim ontem. Disse que você precisava da gente e que estaria aqui no fim
de semana.

― Cá estamos. ― Chloe complementa, deixando a mochila deslizar


pelos ombros, soltando os cabelos presos e eu sorrio, dando espaço para que
as duas entrem. Abby não fala nada, me olhando de cima a baixo e fecho meu
robe, incomodada com o tanto que me analisa. Vaca.

― E aí? O que está acontecendo? ― Chloe me pergunta e eu não


consigo formular uma resposta de imediato, não quando nem eu mesma sei
por onde começar. Principalmente ao entender que ele havia ligado para
Chloe ou Lennox para me fazer companhia.

Meus olhos não disfarçam a incredulidade daquela situação e muito


menos a presença indesejada de Abby, não... com certeza ela deve ter se
convidado, no mínimo achando que Trevor também estaria aqui. Ela tira sua
camiseta mostrando o pequeno biquini em seus seios fartos e ignora toda a
aura estranha da casa, voltando a colocar os óculos sobre seus olhos:

― Por que não vamos velejar? Ou vamos ficar dentro de casa com
esse dia lindo, mimando Ellie como sempre?

― Abby Gabner! ― Lennox a repreende, mas ela pouco se importa.


Olho-a, nada assustada com sua resposta, analisando-a como se fosse a
primeira vez que eu via Abby Gabner.

A garota era bonita, nada demais, tudo que tinha de belo, ela
realçava com muita maquiagem ou decote. Era o tipo de mulher que poderia
ser uma caixinha de surpresas ao acordar pela manhã, apenas de pijama e
cabelos bagunçados.

Desde nova ela sempre foi assim, se alimentando de minha


insegurança. Eu não era pior que ela, tampouco ela era melhor que eu!

Mas de uma coisa eu sabia: ela me desrespeitava como mulher e


amiga estando em minha casa depois de dar descaradamente em cima de meu
marido. Que eles tenham transado antes de sequer nos envolvermos era uma
coisa, mas ela continuar agindo pelas minhas costas era bem diferente!
Respiro profundamente e miro meus amigos, entretanto, antes que
eles digam qualquer coisa tentando apaziguar os ânimos, eu simplesmente
concordo com ela, sim, eu precisava e muito velejar, mesmo que fosse na
companhia de uma âncora enferrujada como Abby.

E talvez essa âncora precisasse ser despejada de volta ao mar!

― E não é que é uma ótima ideia? ― sorrio artificialmente e subo


para vestir meu maiô e...
... em menos de meia hora estamos em meu barco olhando a praia a
uns 3 km de distância.

Lennox tira sua camisa e passa protetor nos braços, dizendo o


quanto fica gato bronzeado naturalmente, Abby retoca seu batom pela
milésima vez e Chloe me olha, curiosa; eu acerto o leme e descanso em uma
banqueta, mirando o horizonte, o vento está forte e um pouco frio para aquela
hora da manhã.

― Por que Trevor pediria que ficássemos com você no fim de


semana, Ellie? ― ela me pergunta e eu dou de ombros, até parece que eu o
conhecia o suficiente para respondê-la sobre suas intenções. Eu nunca soube
de suas reais intenções até... dez, quinze dias atrás.
Eu queria muito falar para eles o que estava acontecendo, mas não
sem antes eu mesma absorver tudo.
― As últimas semana foram intensas. ― respondo, tentando sair
pela tangente. ― Com meu pai no hospital e Trevor trabalhando dia e noite...
Você sabe, minha mãe está no spa e eu... fico sozinha em casa. Ele deve estar
preocupado com isso.

― Tive impressão de tê-lo visto perto de minha casa quando o


motorista de Lennox me pegou. ― Chloe abre um botão de sua camisa polo
de listras vermelhas e azuis. ― Mas não sei se era ele, estava de óculos
escuros. Mas parecia, estranhei.

Vislumbro Abby rolando os olhos, entretanto a ignoro outra vez,


sem cabeça para suas ceninhas, a hora dela estava chegando. Lennox se
adianta até mim e me abraça, murmurando um “oownnn Elliezinha de meu
coração” e eu rio, soltando seus braços de mim.

Ele me olha nos olhos e pisca para mim:

― Você sabe que apesar de isso ser verdade, não é tudo. Nós te
conhecemos, amiga. Anda, desembucha.
― Aiii, mas que saco! ― Abby tenta ajeitar, com raiva, os cabelos
que voam com o vento. ― Podemos só pegar sol e aproveitar o dia sem
dramas? Eu vim aqui pra isso, não pra ficar ouvindo as lamúrias de Ellie mais
uma vez.

Nós três a encaramos.

― O quê? Estou mentindo? Não aguento mais Ellie reclamando de


tudo! Olha a vida que ela tem, olha o marido! Não precisou se esforçar isso
aqui ― ela cola o dedo indicador ao dedão. ― para se casar com um homem
rico e bonito! E viiiveee reclamaaaandoooo! ― ela revira os olhos e Lennox
joga o frasco de protetor solar em seu braço:
― Cala a boca, Abby, larga de ser uma vadia invejosa!

― Inveja? ― ela se vira para o amigo e eu rio alto, já esperando por


essa, sim, sim, eu ansiava seu ataque. ― Inveja do que se ela fica com meus
restos?
― Restos? ― intervenho, mas Chloe se põe entre nós:

― Vamos acalmar os ânimos que não viemos para brigas. Trevor


nos ligou pedindo que fizéssemos companhia, Ellie. Eu estranhei que...

― Está chamando meu marido de seus restos? ― atravesso o


pequeno espaço entre mim e Abby, ignorando a interferência de Chloe. ―
Tenha dó de si mesma uma única vez, Abby, já que nunca teve decência!
― Decência? Você vem me falar de decência? Aquele namoro de
meu irmão com você era patético, Ellie. ― ela se apoia na beirada do barco.
― Ele só te namorou pra conseguir a posição dele na Kane com seu pai.
Você fingia que não via isso pra mendigar um pouco de amor, como sempre!
― eu abro a boca para respondê-la, Lennox começa a reclamar da falta de
empatia da amiga, Chloe chama a sua atenção, mas ela nos cala abruptamente
com o que fala em seguida: ― Trevor Willians era para ser meu marido!

Acho que demoro alguns bons segundos a encarando, com Chloe e


Lennox ao nosso lado, nos olhando em silêncio também.

— Do que está falando? — Lennox pergunta.


— Que eu transava com o marido da Ellie antes de ele ser entregue
para ela como um troféu! — ela berra, a cara de inveja estampada em seu
rosto, um misto de raiva e incredulidade. — Como se você merecesse um
homem como aquele! Logo você, Ellie, que não sabe nem o que é um
homem! Meu irmão vivia dizendo o quanto você era patética com essa
ingenuidade toda!

— Abby? Do que você está falando? — Lennox pergunta


perturbado.
— O que vocês não estão entendendo aqui? O que é tão difícil
assim de entenderem?? — Abby gesticula apontando para mim. — Era para
eu estar casada com Trevor! Eu! Eu era digna daquele homem e não... ela!

— Abby, por favor, se recomponha... — Chloe a puxa com calma,


falando baixo. — Você não sabe o que aconteceria se...

— É claro que eu sei! Ele era louco por mim, vivia atrás de mim!
Nos conhecemos numa reunião de Patrick e meu pai com Desmond e ele, e
desde então não nos largamos. — o sol ilumina seu rosto e eu vejo como ela
me olha com nojo. — Algumas semanas antes do anúncio do noivado, ele
sumiu e... eu soube por Patrick que ele se casaria com essa ameba!
— Cala a boca!!! — eu grito de volta e o vento golpeia a vela com a
mesma força que meu coração bate em meu peito, confrontando-a finalmente.

— Você tirou ele de mim! A gente se encontrava em segredo, mas


eu achava que era por causa de alguma coisa da empresa... mas... ele nunca
me deu explicações de nada! Simplesmente casou com você e hoje eu só
posso chegar à conclusão que foi obrigado!

— Você é uma merda de uma amiga invejosa! — eu vocifero e ela


me retorna, gritando:
— Para se casar com você só mesmo por um contrato! Forçado! Ele
era meu! Você o tirou de mim! — sem que eu espere, ela se joga sobre o
velame, esticando a mão e agarrando meu cabelo. — Só assim para você
segurar um homem, sua idiota!! — grita, exaltada, e eu me assusto com a ira
de seus olhos enquanto tento tirar seus dedos de meus cabelos.

Sem nem pensar duas vezes, eu solto a retranca, que muda de lado
atravessando o convés e golpeando o braço que ela me segura. Assisto-a
cambalear seus passos e sorrio vendo seu corpo tombar para trás, as pernas
para o ar antes de afundar na água de cabeça.
Eu me debruço na borda acompanhada de Lennox e Chloe, que
murmuram apavorados; sorrio para os dois e peço que se acalmem quando
Abby emerge gritando, os cabelos encharcados sobre os olhos, exigindo que
eu desça a escadinha para ela enquanto apenas sorrio para seus apelos:

— A praia está ali. — aponto para as dunas de areia. — Pode ir


nadando já que é tão fodona. Ah, e quando chegar, peça um táxi. Nunca mais
você vai pisar ou... tocar... no que é meu! — sem nem esperar que me
responda, me volto para o leme e mudo a direção do barco, nos distanciando
imediatamente daquela sanguessuga enquanto meus dois amigos ainda me
encaram, abismados.

Lennox e Chloe dormiram comigo aquela noite.

Mesmo que eu não quisesse me sentir insegura, sim, eu me sentia.


Não conseguia parar de pensar no que Abby havia falado, ainda que Chloe e
Lennox tentassem me distrair naquele resto de sábado e início de domingo.

Sem conseguirem negar o escândalo de Abby, amanheceram


tentando argumentar o que sua revelação implicava.
Lennox divagava, enquanto tomava seu café da manhã, que eles
podiam ter se atracado uma vez ou outra sim, ele estava disponível na época e
nada o impedia que eles tivessem algo, mas que como Abby mesma dissera,
semanas antes ele sumiu, o que só frisava que nada havia acontecido depois
que nos casamos. Já Chloe reforçava, enquanto mordiscava as torradas com
geleia de morango, que aquilo poderia ser mentira, não era a primeira vez que
nossa amiga nos surpreendia com atitudes como aquela.

E por mais que tivessem sido encontros de uma época em que eu


sequer soubesse da importância que ele teria em minha vida, ou que
soubéssemos de nosso acordo matrimonial, eu amargava os ciúmes que
sentia, pensando em tudo que ele foi capaz de fazer para chegar até onde
chegou.
No entanto, no fundo eu sabia que aquilo nem se comparava com o
restante das suas revelações e assim que meus amigos terminaram de tomar o
café da manhã, eu comecei a contar todo o restante da história, a parte mais
difícil de digerir.

Depois de passar outro dia olhando o mar, volto para casa sentindo
saudade de Lennox e Chloe.
Eles tinham partido há dois dias, tinham que voltar para suas rotinas
e eu não podia mais ignorar a minha, matava aula desde que fui para os
Hamptons e tentava não pensar em nada, velejando ou desenhando sem parar.

Olho o sol atravessando o oceano e não quero admitir para mim


mesma, mas... sinto a falta dele... imagino o que está fazendo, se continua
espreitando meu pai no hospital e tento entender o que deve passar em sua
mente enquanto o confronta, vivo ainda... se seu desejo é a morte de
Desmond... sua falência... ou as manchetes com todas as atrocidades
escancaradas para o mundo.

Pensei em todas essas possibilidades durante esses dias, todas.


Pensei em realizar todas elas também, os sentimentos se bagunçando dentro
de mim e me levando ao desespero... eu não poderia ignorar aquilo mais, por
mais que eu desejasse.
Quando era ignorante, eu queria saber tudo sobre ele; agora que sei,
como prefiro ignorar?

Penso em voltar para casa no dia seguinte, procurá-lo, no entanto


quase tropeço meu pé um no outro vendo Trevor sair do portão da casa com
uma pasta em mãos e óculos escuros. Atravesso a rua com ele me olhando
enquanto se dirige ao carro estacionado em frente, abrindo a porta e jogando
a pasta no banco.

Não sei como reage me vendo, não consigo ver seus olhos, mas
quando desvia o rosto, sei que espera que eu o evite.
— O que está fazendo aqui?

Ele recosta o cotovelo no teto do carro e apoia a lateral da cabeça na


mão, os dedos infiltrados nos cabelos, me encarando:

— Precisava de uma pasta que deixei aqui.


Abro a boca para respondê-lo sem saber ao certo quais seriam
minhas palavras, porém paro qualquer questionamento quando vejo os
hematomas. Não são poucos e cobrem a pele de seu braço e a lateral do rosto.
Posso ainda ver um maior escondido pela metade no decote da camisa polo.

— O-o que é isso? — aponto para os machucados e Trevor apenas


ri de modo seco, beirando o sarcástico:
— Vingança. — sua voz sai tão ácida quanto seus olhos quando ele
tira os óculos e me mira. — Não a minha, claro. De um cara qualquer de um
bar. Causa estragos, não, preciosa?

— É isso? Vai me responder com deboches, vai simplesmente


evitar...? — minha voz sai quase um chiado rouco e ele fecha o sorriso,
suspirando. — Qual é o seu próximo passo, o que está planejando? Vai
esperar ele morrer para apontar todas as merdas?

Ele abre a porta do carro:

— Ellie, acho que você não vai querer saber.

Seguro seu braço e o faço me olhar antes que entre e sente no banco
do motorista:
— Não pense por mim, Trevor Willians.

Ele baixa os olhos e olha para meus dedos em sua pele, piscando de
maneira dolorosa como se qualquer contato meu o fizesse sentir muita, muita
dor.

— É óbvio que prefere assim, preciosa... — ele se senta e enfia a


chave na ignição. — Porque, no fim das contas, tem mais raiva de mim do
que compreende meus motivos. Você não quer saber. Você prefere não saber.
Você prefere no ser fuerte.
Eu o solto. Ele continua:

— Nos últimos dias eu fiz transferências do fundo da empresa,


Ellie. Su padre não tem mais nada. Você não tem mais nada para herdar. O
número da conta está no meu celular em seu quarto, a senha você já sabe. É
só transferir para as contas das Ilhas Cayman. — ele aponta para a janela no
segundo andar. — Você pode devolver todo o dinheiro à empresa e as coisas
continuarão sendo como sempre foram. Agora você sabe quem su padre é.
Quem soy yo. A decisão é sua. O destino da Kane está em suas mãos.
25

Inspiro buscando ar e bato a porta entre nós dois.

Eu não sabia o que ela escolheria, estava nas mãos de Ellie decidir o
que faria, minha vingança estava em suas mãos. Mi padre, mi Bee...
Desmond tinha matado todos eles.

Pero la decisión não era mais minha.

Ligo o carro e olho para o mar através da calçada à frente... Eu...


eu... só não poderia mais perder meu corazón, me sentir muerto enquanto
ainda estoy vivo... Ellie tinha o poder de decidir, o destino da Kane era dela,
não meu.

— “O destino da Kane está em minhas mãos”?! É assim, seu


covarde, é assim? Vai deixar essa bomba na minha mão? Passar essa merda
toda para minha responsabilidade?

Olho para Ellie, seu olhar é mordaz, os cabelos caem pelos ombros,
o leve casaco de linho aberto, o peito sob a camiseta, subindo descendo.
Eu estilhaço meu coração mais um pouco, ansiando quando ele
finalmente parasse de bater. Qualquer morte doeria menos que... aquilo...
doeria menos que ver o medo em seus olhos.

Volto a sair do carro pegando em seus braços:

— Você queria saber de tudo, não queria, Ellie? Saber é poder,


mierda! — me aproximo de seu rosto, encarando-a com ferocidade: — Não
pode se esconder para sempre, preciosa! Já passou da hora de se impor, já
passou da hora de saber que su padre é um assassino, já passou da hora de ser
a mujer fuerte que é!
Ellie parece ter levado um soco com minhas palavras e seu olhar
indignado me quebra mais uma vez:

— Eu te odeio. — sibila.

— Eu imagino. — respondo, mas ela não se move, não entra em


casa novamente. Eu sabia que ali era meu fim. Sim, la muerte não era meu
fim, Ellie era meu fim.
— Eu nunca devia...

— Ter se apaixonado por mim? — interrompo-a e ela desvia o


rosto, olhando os próprios pés. — É, não deveria.

— Vai se foder, Trevor Willians. — sussurra e eu afirmo que sim


com a cabeça, ainda parado em sua frente. Entretanto, suspiro e sussurro de
volta:
— Miguel Guzmán.

Ellie levanta os olhos rapidamente para mim e eu repito meu nome:

— Miguel Guzmán. Eu me chamo Miguel. Você está mandando


Trevor se foder, mas deveria mandar Miguel também... Porque foi ele quem
se apaixonou por você.
 Inspiro da maneira mais calma que posso conseguir. Expiro.

— O-o que disse?

— Que mi nombre es Miguel. — ele me responde em espanhol, mas


pausadamente, me dando tempo de absorver toda e qualquer sílaba.

Eu rio; um riso nervoso, mas rio.

— Isso não faz sentido... Miguel morreu... ele não é você...

— Si, ele é. — ele me corta. — E morreu no dia que mi hermana


morreu. Ou eu achei que tivesse. Você me faz senti-lo de volta em meu
coração, quando estou ao seu lado.
Tenho vontade de me encolher em um canto, mas apenas espalmo
as mãos em seu carro e apoio minha cabeça em um braço, o olhando de lado,
mordendo meus lábios, retesando o choro.
Não consigo.

— Você quer me deixar maluca, Trevor. — encaro-o. — Ou... ou


Miguei, ou... ou seja lá quem é você! — tapo meu rosto e começo a chorar, os
ombros tremendo, sem acreditar que horas antes eu tinha prometido não
sucumbir aos meus sentimentos na sua frente, mas simplesmente... não
aguento mais, não aguento mais! — Desmond é horrível, é inescrupuloso...
mas você... olha o que você fez para chegar até aqui, Trevor... Miguel... se
escondeu sob uma nova identidade!

Trevor suspira e escuto que anda em minha direção, as pedrinhas do


pátio se espatifando sob seus sapatos.

— Como você acha que eu entraria na Kane sendo quem eu era,


Ellie? — ele bufa. — Mi padre queria que eu me chamasse Trevor. Mas mi
madre ganhou. Pero yo assumi a identidade para entrar na empresa sem que
me reconhecessem.

Escuto sua revelação e, suspirando sem forças, enxugo meus olhos,


fitando-o.
— Você me usou! — eu o empurro e ele leva um susto com meu
gesto. — Você transou com Abby! — outro empurrão e ele cambaleia para
trás. — Me manipulou! — outro empurrão e eu noto que ele me deixa fazê-
lo, as mãos em riste para os lados de seu tronco. — Você não merece nada do
que sinto por você, nada! — repito o que disse naquele dia, impondo mais
força e ele bate com as costas no carro.

Trevor ou... ou Miguel... me segura entre os braços com força, suas


mãos me agarram, seus dedos me contêm, eu o miro, confrontando-o; ele
umedece os lábios e não me solta:

— Eu te chamei de preciosa sem saber que um dia... sí, um dia


usted seria a coisa mais preciosa de mi vida, Ellie Kane. — ele retorna
segurando meu braço. — E se você algum dia ainda me perdoar por tudo,
outra verdade é que você... somente você, mi preciosa... fez meu coração
voltar a bater. — tento me soltar dele, mas ele aperta seus dedos em mim. —
Mas sí, eu não mereço nada do que você sente por mim, pero mereço
qualquer destino que você me aflija.

— E se eu devolver o dinheiro às empresas? — murmuro, quase


sem voz, ele pega em meu queixo e eleva meu rosto até o seu:

— Yo mereceré morir sabiendo que no cumplí mi promesa y que te


perdí.

— Morir? — limpo minha garganta e ele desliza o dedão sobre as


lágrimas em meu rosto.

— Eu aceitarei o que decidir, preciosa.


— Não me coloque mais no meio de sua vingança, Trevor! Nem
para me usar, ou me manipular!

Entro em casa, subindo até meu quarto e começo a enfiar algumas


roupas aleatórias em uma mala e não sei bem o que pretendo, mas pretendo
algo, sim, pretendo algo! Eu estava cansada, farta de ser essa barata tonta e
sem forças, mas não, não, não manipulada!

Aquela vingança era de Trevor... ou da porra do Miguel, mas não


minha, eu não tinha que decidir porra nenhuma!
Uma raiva desgovernada e praticamente tangível sucumbe meus
nervos e eu entro no banheiro, me debruçando no vaso a tempo de vomitar.
Minhas bochechas se aquecem, como se estivessem em ebulição e eu lavo
meu rosto e boca, me olhando no espelho, a face acabada.
Eu estava acabada. E estava ferida. E estava com raiva, muita!

Trevor abre a porta e, na mesma hora, posso ver seus ombros se


encurvarem, quando se depara comigo parada em frente à pia, emanando
ódio.
— Ellie?! — sua voz sai confusa, mas não dou tempo para que ele
sequer pense.

— Eu não tenho culpa do que meu pai fez! — berro e dou um passo
em sua direção. — Ele é um criminoso e apesar de eu ter ficado assustada
com o que confessou, acho que eu poderia esperar tudo, tudo daquele
homem! — levanto os braços teatralmente. — Mas você não pode me pedir
que qualquer destino, que não seja o meu, esteja em minhas mãos! —
empurro-o e sigo em direção às malas vazias em cima de minha cama, mas
Trevor se antecipa colocando seu corpo entre mim e o móvel. — Ele merece
que você acabe com ele, é isso que você quer ouvir, é isso que quer de mim?
Anda, pode ir, você já tem tudo que sempre quis!

— Não, Ellie, você está redondamente enganada. Eu não tenho nada


do que sempre quis. — ele avança até mim e eu dou um passo para trás,
receosa com o modo que me olha. — Estou muito longe de ter tudo que
siempre quis.
— Eu o odeio, é isso que quer ouvir?! — eu olho o teto, segurando
minhas lágrimas e volto meu olhar a ele. — E... eu ... eu nem sei se sou filha
dele... e, Trevor? Você sabe a sensação de finalmente entender os motivos de
nunca ter sido amada...? — suspiro piscando incansavelmente enquanto fito a
janela. — Eu... eu me sinto acima de tudo... aliviada.

— Ellie, eu...

— Se quer meu aval, você o tem, faça o que quiser, não há nada
nessa família que valha a pena, não há nada que não seja ruínas! — eu me
viro para ele chorando. — Eu estou pouco ligando. Finalmente estou pouco
me fodendo pra isso. Ele merece perder tudo, ele merece a prisão, ele merece
que tudo saia no jornal.

— Ellie, me escuta... ... — ele sibila, sem paciência, passando a mão


nos cabelos.
— O que mais você tem para me revelar? — rebato firme, o
encarando nos olhos. — Não tem mais nada que eu precise saber, Trevor!
Permaneci por vinte e um anos numa casa que nunca tive amor. Me casei
com um homem que queria o contrato do matrimônio por causa de vingança!
— levanto minhas mãos, indignada comigo mesma. — E sinceramente? Você
foi a pessoa mais sincera nisso tudo, sempre falou que eram só negócios,
nunca me prometeu nada que não tive! — eu aponto para mim mesma. — O
quão carente uma pessoa tem que ser para se permitir ser assim, Trevor, me
diz? O quão patética uma garota deve ser por mendigar amor aos pais que
nunca viram nada além de seus próprios umbigos? Ao marido que a vê como
espólio ou marionete?

— EU NO TE VEJO ASÍ, ELLIE! EU TE AMO, CARAJO!

Eu me calo e Trevor levanta os olhos e me encara sob os cílios. Eu


o olho através das lágrimas que embaçam minha visão.
— Yo te amo, Ellie, mierda, yo te quiero, preciosa! Quando disse
que o destino da Kane está em suas mãos é porque acima de tudo não posso
te ver mais sofrer! A herança é sua, chega! Eu não posso continuar com essa
vingança se tudo que me restar for su odio! Eu entrego minha vingança em
sus manos, Ellie, eu entrego mi corazón en sus manos.

Minha visão escurece e eu sinto a vertigem me dominando os


sentidos, meus pés tropeçam neles mesmo e eu cambaleio, quase caindo.
Trevor tenta me segurar, mas eu me desvencilho de seus dedos e parto de
volta para o banheiro, vomitando outra vez no vaso sanitário.

Deixo que meu corpo se escore no azulejo às minhas costas e me


sento ao chão sentindo o suor frio escorrer por meu pescoço.
— Ellie? — a voz forte de Trevor me faz olhar para cima por alguns
segundos, antes de vislumbrá-lo no batente da porta, mas outra ânsia me
domina e eu me projeto de volta ao vaso, deixando claro que nada mais resta
dentro de mim além do vazio.

Seus dedos me amparam, seguram meus cabelos e escorregam por


minhas costas enquanto vomito uma vez atrás da outra antes de me ajudar a
me erguer e me bordear enquanto escovo meus dedos e enxaguo meu rosto
suado.

Trevor me guia de volta para a cama e me ajuda a recostar nos


travesseiros à cabeceira, me olhando com uma calma artificial, que não
condiz com seus olhos alarmados:
— Ellie... há a possibilidade de...? — ele não completa a frase e eu
o miro já negando com a cabeça, não, claro que não, claro que não, eu
tomava minhas pílulas toda noite religiosamente e... abruptamente, me
levanto da cama, me lançando em direção à bolsa caída em meu sofá, meus
dedos em pânico procuram a caixinha de pílula e eu a pego me deparando
com a cartela pela metade.

Engulo o horror em minha garganta fazendo um cálculo mental que


é cortado pela memória de minhas últimas noites desde que meu pai havia
sofrido o infarte. Eu... eu havia me esquecido de tomar...

Meu Deus, quantas, quantas pílulas?


Olho a metade de um lado cheia, declarando que pelo menos quinze
delas jaziam intactas e penso no tanto de tempo que meu pai havia sofrido o
ataque do coração, sem acreditar que poderia ser o mesmo tempo que havia
esquecido delas.

Quase tombo para trás quando Trevor se adianta para mim pegando
a cartela de meus dedos ao mesmo tempo que me fuzila com os olhos. Eu
percebo como segura suas palavras, mas não consegue fazer o mesmo com o
olhar, as faíscas em seus olhos projetam sua descrença e pavor enquanto
engole em seco uma vez atrás da outra.
— Não... nós sempre nos protegemos... — ele sussurra e seu peito
desinfla estrondosamente: — A piscina... o sexo na piscina. — Trevor avança
até a porta e a escancara, abrindo espaço para mim.

Eu o olho em interrogativa e ele passa pela porta.

— Eu não estou grávida! Não tem nada confirmando que estou


grávida!! — eu berro para suas costas e ele para se virando, completamente
incrédulo!
— Por supuesto que esta, Ellie! Carajo, claro que está! Porque é
óbvio que o destino vai ser um filho da puta e foder comigo, claro! — ele
berra me calando, mas minha próxima reação é quase gargalhar na sua cara.

— Porque para mim, está sendo divino, óbvio!

— Yo voy a murir, Ellie! E vou te deixar com um bebê e sem nada?!


Não me movo, sem acreditar no que ele me fala.

No momento em que ele fecha a porta atrás de si em um baque


surdo, minha incredulidade se transforma em engasgo. Não! Eu não poderia
estar grávida, não, não, não, não... não!
E... o que ele havia dito? Que... que ia morrer?
26

Positivo.
Ellie me mostra o resultado e lá estão los dos traços.

Desço meus olhos por su cuerpo e percebo que ela segura a


vibração dos seus membros com todas as suas forças. Seus olhos estão
inchados de tanto chorar, mas ali, agora, estão tão secos como minha alma.
Parece que ela quer me entregar o resultado, mas eu não o pego; ela o deixa
cair no chão e olha pela janela, parecendo querer esconder seus sentimentos.

Eu a olho por longos segundos, a pele branquinha, a cicatriz perto


de seu olho esquerdo, seu pescoço fino, os cabelos presos em um coque no
topo da cabeça, alguns fios soltos pela nuca, ombros... o que eu fiz?
O que... eu me permiti fazer...? ¿Qué me permití hacer, Dio?

Ellie coloca a mão em seu próprio peito ainda encarando o luar, mas
eu sinto mi próprio corazón ecoando em meu ouvido.

Tenho que desistir de tudo, tenho. Como posso deixá-la sem


nada...? Ainda que eu separe algo para ela, quem me garante que os abutres
não voariam até sua conta exigindo o que eles lhe achavam de direito?
Eu não sabia nem o que sentir com sua gravidez, além de revolta
com meu destino. Eu teria um hijo... e morreria sem conhecê-lo.

Mi sangre con la sangre de un Kane.

Um bebê meu e de Ellie.


Eu a amava.

Ellie Kane se vira para mim e pega minha mão, seus dedos tremem
levemente nos meus e seria imperceptível se os meus também não tremessem
de volta.

― Você vai morrer...? É... é o mesmo câncer que... ela...?


― No... no, mi preciosa, no hoje... não quero falar disso, no... ―
beijo-lhe e ela agarra meu colarinho com força, me puxando para si, me
beijando como se pudesse tirar todo meu ar ou... respirar por mim.

Eu me deito sobre su cuerpo, sentindo-a toda, seu cheiro de


baunilha, suas curvas, a textura de sua pele... beijo-a com cariño, descendo
meus dedos em seu quadril perfeito, sentindo como estremece ao meu toque...

Ellie morde os lábios assim que meu dedo encontra seu ponto
sensível entre suas pernas, deslizo-o e ela volta a fechar os olhos ao beijar sua
boca, levantando seus cabelos, penetrando-a com indicador.
― Eu quero fazer amor com você, preciosa... ― digo em seu
ouvido, empurrando meu quadril entre suas pernas, roçando meu pau sobre
sua buceta. Ela geme baixo arqueando as costas e empinando um pouco mais
ao meu encontro e vejo seus braços relaxarem ao lado de seu corpo. Lambo
sua orelha. ― Miguel e Ellie.

Ela abre seus olhos me encarando e vejo o prenúncio de um sorriso


em seus lábios, escutando um gemido muito longo como resposta.
― Vai machucar o bebê...? ― pergunto em um sussurro e ela faz
que não com a cabeça, confio em sua resposta e enfio a cabeça de meu pau,
somente a cabecinha, bem devagar.

Ellie eleva seus braços sobre a cabeça e seus dedos apertam o


travesseiro.

― Por favor, não me deixe... ― me pede, a voz numa tonalidade


delicada e ao mesmo tempo percebo que segura o choro, e eu me forço mais
um pouco para dentro dela, mirando em seus belos olhos cinzas, implorando
que seu pedido vire realidade por alguma ação divina. ― Não me deixe...
Miguel...
― Eu estarei siempre com você, preciosa. ― respondo pousando
meus dedos em seu ventre, entregando meu coração para ela da mesma
maneira que o entreguei para a vingança que me manteve vivo nos últimos
anos. Entrelaço meus dedos nos dela, que ainda agarram o travesseiro e a
puxo até meus lábios, beijando as costas de suas mãos. ― Perdón por todas
las cosas que te disse, Ellie...

Forço mais um pouco e ela geme, forço outro pouco e seu gemido
aumenta, colo minha boca na dela e sufoco seu arfar quando me afundo mais,
uma mão acariciando sua nuca, a outra agarrada a sua bunda.

― Não... sem pedidos de desculpas, agora... ― ela responde, eu


desço meus lábios até sua cabeça de perfil e beijo sua têmpora, voltando a me
afundar nela, completamente, todo o meu comprimento.

Ela inspira ar sentindo a pressão que imponho dentro dela, eu recuo


e volto um pouco mais fundo em movimentos lentos, uma vez atrás da outra,
me sentindo zonzo ao contemplar as lágrimas que despencam em seu
travesseiro.
― Perdón por todas as coisas que te magoaram, Ellie... elas foram
ditas por alguém que deixou que as trevas sucumbissem su corazón...

Ellie abre os olhos, me fitando de lado e eu beijo agora sua


bochecha, sorrindo para ela enquanto me movimento morosamente em seu
quadril.

― Trevor ― ela pausa e suspira, segurando meu rosto rente ao seu.


― Não me deixe sozinha... eu te amo...
Engulo em seco outra vez, quase mordendo minha língua olhando
seu rosto contorcido, ouvindo sua voz dizendo que me ama enquanto eu a
penetro, aquilo me deixa completamente louco, nem sei exatamente o que
sentir.

Prazer e receio, não sei.

Só sei que continuo indo e vindo, beijando-lhe toda vez que me


afundo em sua carne. A cada investida, parece que um pedaço de minha alma
é desnudado, ela sorri pequeno para mim e, ao mesmo tempo, as lágrimas
molham seu rosto, eu tremo debruçado a ela, sem saber se paro ou não... se
deixo a luz entrar ou não.
Ela engole um soluço ou um gemido quando eu paraliso o ritmo e
parece ansiosa enquanto permaneço onde estou, dentro dela... dentro dela,
apenas parado sobre su cuerpo, a olhando... olhando Ellie, de verdade, como
se fosse a primeira vez.

― Yo también te quiero, Ellie... ― respondo com ela me fitando de


lado, as lágrimas retesadas em seus olhos. ― Mi preciosa...Mi corazón é seu.
Mal havia fechado meus olhos quando sinto o peso em cima de
minhas mãos repousadas em meu ventre. Abro minhas pálpebras a tempo de
ver Trevor... Miguel... olhando seus dedos entrelaçados aos meus e
espalmados bem em cima... de... meu útero.

Olho para ele, que me olha de volta, sereno; a luz da lua cheia
cintila em sua íris e ilumina meu coração.
Quando acordo pela segunda vez naquela noite, entendo que é a voz
de Trevor pela casa que me chama a atenção. Ele está falando ao telefone,
noto que é madrugada, uma tempestade retumba lá fora e eu não consigo
escutá-lo mais.

Fico um tempo parada na cama, tentando ouvi-lo, contudo, o que


escuto me surpreende e eu me levanto indo até a janela, vendo os faróis de
seu Porsche acenderem, o ronco alto do motor quando ele acelera e sai à toda
velocidade pelo portão.

Desço correndo as escadas, pego o telefone e ligo para ele, caixa


postal; ligo para Andrew e não sou atendida, me encolho no sofá ligando para
Lennox, eu sabia que ele viria por mim, a qualquer hora ele viria por mim.

— Alô. — ele atende sonolento.


— Lennox, preciso que me busque. — balbucio.

— Ellie? O que houve? — pergunta.

— Por favor, venha me buscar, eu te conto no caminho. — desligo


sem esperar que ele me responda, subo e me visto com a primeira roupa que
encontro, voltando para a sala e olhando pela janela, desejando que meu
amigo não demore.
Depois do que pareceram horas sem fim em seu carro naquela
estrada sob a tempestade, finalmente subimos pela escadaria de pedra de
minha casa, quase de dois em dois degraus, no entanto, antes que eu entre,
Lennox me segura:
— Ellie, eu fiz o que você me pediu, vi se aqueles exames eram de
seu pai ou de... — ele faz uma careta e os primeiros raios de sol da manhã
tentam brigar contra as nuvens pesadas. — de Miguel.

Eu quase peço que me conte depois, todos meus sentidos me dizem


que devo entrar naquela casa naquele minuto, mas meu amigo me olha
demoradamente e sinto que preciso saber o que tem a me dizer,
principalmente quando eu mesma o pedi para investigar por mim, com as
conexões que seu namorado tinha no hospital.

— Os exames eram de seu marido, Ellie. Ele tem câncer no


estômago — quase desfaleço, mas ele complementa. —, mas não houve
metástase. O médico disse que tenta conversar com Trevor, mas ele o
ignora... ou Miguel, ah, Trevor! Miguel!
Meus olhos lacrimejam, mas sinto que não é hora de me sentir
aliviada, não mesmo, eu me viro abrindo a porta e, no segundo em que
entramos, nos deparamos com meu pai sendo amparado pelas enfermeiras em
direção ao corredor.

Vejo uma pequena mala sobre o tapete da sala e volto meu olhar
para seu corpo fraco e visivelmente cansado, concluindo que, mesmo que não
tivesse que ter recebido alta do hospital, a persuasão de Desmond era
inegável.

O que ele queria, ele tinha.


Meu pai me olha rapidamente e bufa ao ver meu amigo ao meu
lado, claramente em desagrado. Ele trava seus passos e mesmo que uma
enfermeira tente ajudá-lo a se movimentar, ele praticamente a empurra e me
encara:

— Onde está seu marido, Ellie? — como não o respondo


imediatamente, ele descia sua atenção para Lennox, sorrindo sarcástico. —
Se Trevor te deixar por causa dessa sua companhia, não será surpresa
alguma. Já te falei que se quer amigos afeminados, se limite às meninas
delicadas como Abby Gabner, Ellie. — ele aponta para a porta enquanto olha
fixamente para Lennox. — Anda, saia de minha casa, já tenho escândalos
demais para resolver, não quero minha reputação manchada por estar
envolvido com gente... — ele olha meu amigo com desprezo. — como você.

Eu me reteso sem acreditar que mesmo mal se mantendo de pé,


Desmond ainda tenha forças para ser repulsivo. Lennox nem o responde, se
vira e sai da minha casa em disparada me desejando boa sorte.

— Senhor Desmond. — a enfermeira mais velha intervém e eu


envolvo meu corpo com os braços sem acreditar que estava de volta àquele
pesadelo! — Como o médico disse, o senhor não pode se exaltar, a estadia
em casa é para continuar o tratamento e requer descanso e...

— Te perguntei alguma coisa, sua idiota? — ele solta as mãos dela


de seu braço. — Só me ajude a ir para cama e se limite ao seu lugar!

Andando com muito esforço, meu pai desdenha da ajuda das


enfermeiras, ainda que seja visível como precise delas. As duas o cercam
enquanto ele sobe as escadas e eu olho ao meu redor me perguntando onde
minha mãe estaria àquela hora, se ainda estava no SPA ou se sabia que meu
pai tinha se dado alta do hospital.

O mal estar se espreita por minha goela e penso em simplesmente


sair porta afora atrás de Lennox, porém, sinto que tem algo errado naquela
casa e não sei dizer exatamente o motivo. Não há um empregado circulando
pelos corredores. Ninguém nos recebeu... Nenhum barulho, nenhum ruído...
como se a casa não tivesse mais ninguém além de mim, meu pai e as
enfermeiras que vieram com ele... o que não era absolutamente nada normal.
Sigo praticamente pé ante pé até meu quarto, mas antes mesmo que
alcance minha porta, noto a mala largada no corredor; passo sobre a bagagem
com cuidado para não encostar nela e entro, parando o passo pela metade e
deixando minhas pastas caírem no chão.

Ele está virado para mim e tenho certeza que me vê, seria
impossível não me ver.

Trevor está parado em frente à minha escrivaninha, uma arma em


suas mãos.
27

— Trevor? Por que está aqui? — pergunto, perturbada, e ele fecha


os olhos por um segundo, suspirando lentamente. Contemplo-o deixando,
sem pressa, a arma em cima da escrivaninha e me sinto um pouco menos
nervosa.

Um pouco menos.

— Por que você veio atrás de mim, Ellie? — sua voz é baixa e
contida e eu fico estancada no mesmo lugar, sem me mover.
Ignoro sua pergunta quando vejo um papel dobrado em sua mão
esquerda.

— Por que está armado? — aponto para o papel quando ele fita sua
arma. — Você ia deixar um bilhete para mim? — ele sobe seus olhos
fixando-os nos meus e eu não deixo minha coragem morrer, não, chega,
chega! — O que pretende fazer? Vai matar Desmond? — tapo meus olhos,
esfregando-os e o encaro: — Meu Deus, vai matar e fazer... fazer o que
depois...?

Ele larga a folha dobrada entre os dedos, que cai lentamente no


tapete, então, suspira, parecendo rendido.

— Meu Deus, isso... isso é um bilhete de despedida? Você, você


iria se matar depois?

— Por que você está aqui...? — ele repete, mas parece que mais
para si mesmo do que para mim, pegando sua arma novamente. Estanco toda
a minha raiva dentro de mim e me limito àquele momento, ao que ele estava
fazendo em minha casa armado. — Você não podia estar aqui, Ellie... Não
hoje, não aqui...

— Miguel? — minha voz treme e eu quase engasgo com minha


própria saliva. — É por causa do seu câncer? Você acha que não tem
tratamento... que terá a mesma morte que Maria...? — ele me fita, sem falar
nada e parece completamente desolado. Eu me aproximo, seus olhos estão
apertados, me fitando, sua testa está franzida e seus lábios comprimidos. — É
isso. Miguel? — coloco, delicadamente, minha mão em seu casaco,
percebendo que ele está molhado da chuva.
— Recebi uma ligação, Ellie. — ele morde seus próprios lábios,
tentando segurar o choro e suspira devagar antes de continuar, se afastando
de mim ao mesmo tempo. — O senhor Francisco... o químico do laboratório
do Brasil... ele foi assassinado.

— Trevor...? — eu cubro o espaço que ele abriu, mas ele se


desvencilha de mim, indo para perto da porta. Eu o fito. — Miguel? Você
acha... você acha que foi meu pai?

— Liguei para o hospital, ele recebeu alta ontem, Ellie. Eu tenho


certeza que ele descobriu que eu fechei o laboratório e mandou... — ele não
finaliza a frase, mas não há nada ali que ele precise completar, estava dito,
estava dito nas entrelinhas, meu pai mandou matar um químico responsável
por um de seus laboratórios. — Eu... já estou condenado mesmo. — um
soluço alto escapa de sua boca quando eu o alcanço e o envolvo num abraço.
— Meu sangue está misturado ao seu em seu ventre... — ele apoia os dedos
em minha barriga. — E quando eu me for... continuarei vivo em teu sangue...
— Não, Miguel, não! Você não está condenado! — eu engasgo. —
Está me ouvindo? Você não está condenado! — seguro-o firme entre os
dedos, mas ele parece em outro mundo, seus olhos muito além de mim. —
Me escuta Miguel, não há metástase, não há... — minha voz suplica que ele
me ouça.

— Me perdoa por tudo que fiz... — ele fecha os olhos como se


relutasse contra a dor interna que o invade. — E pelo que ainda tenho que
fazer.

— ...”fazer”? — é apenas um sussurro e nem ao menos sei se algum


som saiu de meus lábios quando o vejo se desvencilhar de mim e avançar até
a porta, fechando-a atrás de si, me trancando por fora.
Eu congelo no mesmo lugar.

— Miguel?

Eu caio de joelhos no chão.


Eu escuto Miguel berrar o nome de meu pai e continuo imóvel por
vários segundos. Muitos. Talvez minutos. Coloco a mão em meu peito e
começo a engolir o ar em lufadas, as lágrimas inundando meu rosto antes
mesmo que eu perceba que estou gritando.

— Miguel! Miguel! — grito mais ainda com raiva e medo e não sei
de onde tenho forças para me levantar novamente. Mas me levanto correndo
até a porta, tentando forçá-la a abrir, socando-a. — Miguel! O que está
fazendo???

Encosto minha orelha na porta e tento ouvir qualquer som. Qualquer


som!

Nada!

Guincho, voltando pelo cômodo, lembrando-me de uma chave


reserva, mas não faço ideia de onde a guardei. Remexo as caixinhas de joias,
as gavetas de calcinhas e meias, a mesinha de cabeceira e, então me recordo
do chaveiro largado no porta-lápis, praticamente me atirando sobre a
escrivaninha.
Meu coração desacelera e eu sinto o ar escapar de dentro de mim
quando abro a porta e saio pelo corredor rumo à porta fechada do quarto de
meu pai.
— Que ideia foi essa de fechar o laboratório do Brasil, Trevor??? O
que estava pensando quando fez essa merda?

Desmond nem repara na arma que eu carrego em uma das mãos


quando entro em seu quarto. O viejo hijoputa está deitado em sua cama, as
parafernálias médicas ligadas a ele, monitorando sua pressão e frequência
cardíaca. Tenho vontade de rir do modo que me inquire, ainda achando que
tinha poder, que tinha dineiro... que podia exigir algo de alguém... um monte
de trapo... era isso que ele era...

— Se está tão preocupado com o laboratório do Brasil, acredito que


não deva ter visto o que fiz com o resto de seu império, Desmond.
Meu sogro para até de se remexer na cama, fixando seus olhos de
abutre em mim:
— O que disse?

— Sério que não me entendeu? — rio, desdenhoso. — Não podia


ter sido mais claro, Desmond Kane, eu falei na merda da tua língua! — o
idiota continua me olhando, sua respiração em suspenso e os níveis na
máquina um pouco alterados. Sorrio satisfeito. — Enquanto esteve no
hospital, reorganizei as finanças da Kane. Até amanhã os acionistas já
perceberão as contas vazias, mas não se preocupe, meu sogro, eu não roubei
o dinheiro para mim... — levanto a arma e ela praticamente reflete nos olhos
daquele verme. — Eu não sou como você, eu não tenho sede de poder...
distribuirei o dinheiro entre as famílias que você usou para chegar onde
chegou. — olho para sua maca e levanto uma sobrancelha, jubiloso. — Se
bem que... para um poderoso dono de império farmacêutico, o lugar que está
agora não me parece muito confortável. Sem contar que não há remédio
nenhum no mundo que te salve do mierda que é. — destravo a arma. — E do
fim de mierda que vai ter.
— Trevor? Do que está falando? Eu te trouxe para minha família
como um filh...

— Ah, cala a boca, Desmond! Não finja que tem um corazón —


aponto para a máquina. — ainda que o seu esteja desesperado em seu peito!
— eu dou um passo em sua direção e Desmond se encolhe involuntariamente.
No entanto, sua prepotência fala mais alto e ele me encara, o semblante
retornando a ser mordaz como sempre. — Ele é podre como usted, Desmond,
podre!

— Você vai se dar mal por...


— Eu me dar mal? O que você vai fazer contra mim? Você não se
enxerga? Não vê que está no seu fim? Que tudo que almejou em toda sua
existência fodida está sendo roubado por mim... um nino de mierda do
terceiro mundo? — ele arregala os olhos e eu sorrio. — Um colombiano?

— Trevor, eu... — ele tenta se impor novamente, mas eu o


interrompo:
— Eu não me chamo Trevor, seu idiota! Sou filho de Derek
Marshall! — os bipes da máquina se sobrepõem ao urro que ele dá quando
falo o nome de meu pai, mas não aos murros que alguém inflige à porta que
tranquei ao entrar em seu quarto.

Eu havia garantido que nenhum funcionário estivesse em casa,


quando soube que Desmond tinha se dado alta do hospital, mas não podia
imaginar que Ellie tinha retornado, e sua voz berrando contra a porta me
tirava dos eixos.

Firmo minha atenção em Desmond e fixo meus olhos nos seus:


— Sim, Derek Marshall, Desmond... sei que se lembra dele... seu
melhor bioquímico, o homem que comprou o silêncio com milhares de
dólares. — minha voz alcança um tom de cólera e eu seguro a vontade que
tenho de apertar o gatilho, não, não, não ainda! — Ele se matou por causa da
culpa, seu hijoputa!

— Não, não, não, não pode ser verdade... — ele geme e é jubiloso
ver o pavor em seus olhos crescer na mesma medida que compreende quem
sou e o que faço em sua empresa, em sua casa...

— Oh, si, si si, si... soy yo, Desmond... el diablo que veio levar sua
alma ao infierno que es tu lugar.
28

Esmurro a porta.
— Miguel, abre essa merda! O que está fazendo aí? — não. Não.
Não. Não. Não. Não! Sinto-me asfixiada e acho que vou morrer ali mesmo.
— Trevor, porra!

Encosto-me à porta e minha respiração fica suspensa, a tensão


atingindo brutalmente cada nervo e músculo do meu corpo, meu coração se
torna um tambor de tão poderoso e rápido que bombeia o sangue em meus
ouvidos e eu sinto que estou prestes a desmaiar e não há nada mais que eu
ouça além de meu batimento cardíaco.

Um clique baixo e oco me faz virar repentinamente e sei que


Miguel girou a chave. Seguro a maçaneta e engulo um soluço de lamento. Eu
tento controlar minha respiração e olho para o corredor para constatar que
estou sozinha ainda.
Então, abro a porta.

De imediato vejo Miguel em pé, olhando para mim, e ele está


estático.
Desvio minha atenção para Desmond, que está sentado à maca, seu
rosto é aterrorizado e, mesmo de longe, vejo raiva misturada ao medo latente.
Miguel espalma a mão no ar, me pedindo para não me aproximar demais; eu
paraliso com o corpo na metade do caminho e meu marido se vira novamente
para meu pai.

— Por que não conta para sua filha o motivo de eu estar aqui,
Desmond?

Encaro meu pai e seus olhos estão vidrados para Miguel.


— Por que não conta para tu hija como acabou com a mierda da
minha vida??? — Miguel berra mirando a cabeça de meu pai com o revólver
e ele se sobressalta, encolhendo-se na cama. — Ou você acha que ela não
sabe, que eu não contei? Prefere que acabe com su vida logo?

— Miguel! — berro involuntariamente e ando mais alguns passos


em sua direção, mas ele se volta para mim e me olha aterrorizado:

— Fica aí, Ellie! Não se mexa! Meu assunto agora é com tu padre,
carajo!
Eu permaneço estática, tremendo, o coração acelerando e
desacelerando, desorientado.

— Anda, Desmond! — Miguel me aponta com a outra mão e olha


para meu pai. — Conta para Ellie com sua própria boca, sua própria língua
maldita, que você mandou matar um homem, ontem, Desmond!

O olhar do homem que se dizia meu pai parece mais doentio que o
normal, sua voz sai tremida quando ele inquire Miguel:

— O que você quer? É dinheiro? Eu tenho muito! Te pago o quanto


for!
— E você acha que sua vida vale alguma porra? — Miguel
responde, destravando a arma. Eu não penso. Meu corpo reage: em um quase
pulo, me coloco entre os dois e Miguel dá dois passos para trás se afastando
de mim.

— Não, Miguel, não, não assim! — urro, quase explodindo minha


garganta. Giro meu corpo para ele quando meu pai se cala, encarando-me
sem falar nada, o bipe descontrolado denunciando sua pressão cada vez mais
alta. — Miguel, abaixe essa arma... — suplico, cambaleando. — Por favor...
vamos conversar... nós vamos à público, nós fugimos, mas não... não deve ser
assim que você deve enfrentar...

— Eu não tenho mais nada para conversar com tu padre, Ellie! —


Miguel vocifera e eu vejo seus olhos encharcados de lágrimas. — Você
acabou com a minha vida, Desmond, e eu só não acabo agora com a sua
porque você já é um moribundo. — ele fala da maneira mais sarcástica que
consegue e eu me reteso completamente. — A vida vai fazer isso por mim. E
você não vai poder fazer nada enquanto eu acabo com seu legado. Acabo
com a porra da empresa que você pôs acima de tudo!!!
Miguel continua o encarando e parece impassível. Então, ele se
aproxima e seu maxilar está tenso.

— Seu pai agora sabe quem eu sou, Ellie! E antes dele morrer, eu
quero que tenha a certeza de quem lhe tirou a empresa! Esse filho da puta tem
que saber que Trevor Willians é o novo dono das Empresas Kane! Miguel,
Miguel Guzmán! Todo seu dinheiro, tu-do, vai para as famílias que você
ferrou, Desmond, acabou, acabou, você não tem um centavo mais, nenhum!

Desvio meu olhar, apavorada, para meu pai e ele parece alucinado,
o rosto vermelho beirando o roxo, os olhos vidrados em Miguel.
— Mi padre me falava que havia recebido por uma patente no
laboratório. Eu quis acreditar, mas no fundo sabia que tinha algo errado. Ele
bebia dia e noite... quase não saia de casa, nem de seu escritório. No dia
seguinte que fiz vinte e um anos, ele se matou. — ele vira seu rosto para mim
e seu olhar é triste enquanto continua. — E deixou uma carta para mim... com
todos os detalhes... não só do que foram capazes... mas do que eu deveria
fazer para estar onde estou agora... quem eu deveria chantagear, com o que eu
deveria chantagear, quem tinha costas quentes, quem devia... tudo, tudo.

Não consigo pensar em nada. Sequer consigo respirar. Engulo todas


as minhas perguntas e me direciono para o homem ligado às máquinas. A
única coisa que ouço ainda é o som desgovernado do bipe.

Ele nos olha, sério, e não entendo o que se passa em sua mente.
Ele deveria estar surtando mais do que eu!

— Desmond...? Como... como você pôde? — meus olhos


lacrimejam e eu quase não consigo escutá-lo enquanto continua explicando o
impensável, sinto um ardor em minha garganta com o descaso dos
argumentos que ele escolhe para se defender:

— Estaríamos arruinados! Estaríamos arruinados se descobrissem


mais essa falha! — ele exclama, perplexo, e eu arregalo os olhos para ele. —
Eu tinha acabado de enfrentar a justiça por causa daqueles mendigos de
merda! — seus olhos projetam raiva enquanto me miram friamente. — Gastei
bilhões por causa de moradores de rua, quem se importa com eles, Ellie?!
Quem se importa?!?! — Miguel dá um passo para frente, mas não se move
quando Desmond conclui: — Não colocaria tudo a perder por causa de
fedelhos do terceiro mundo!

— Cala sua boca! — berro, chegando ao meu limite! — Cala sua


maldita boca!!!
O grandioso Desmond parece realmente assustado com minha
reação, e por vários segundos sua boca fica inerte enquanto eu tento me
recompor, mas antes mesmo que ele ouse falar, eu aproveito minha súbita
coragem e o inquiro, furiosa:

— Você é horrível, um homem horrível! — minha mente me leva às


suas palavras quando estava no hospital e, por um instante, eu as tomo como
verdade. — Eu espero que eu não seja sua filha, eu desejo não ser sua filha,
ter seu sangue correndo em minhas veias!

— Você é uma vadia como sua mãe! — ele grita, exasperado. — Eu


nunca quis você!
— Bem, não é nenhuma novidade. O senhor sempre deixou isso
bem claro... mas quer saber? Eu não me importo mais! — suspiro, tentando
me acalmar. — Eu simplesmente não me importo mais. Quero mais é que sua
aprovação vá para a puta que pariu.

— Se você falar mais uma palavra, pode ter certeza que não estará
em meu testamento.

Dou de ombros.
— Eu não quero seu dinheiro sujo, pai.

— Todo mundo tem um preço, Ellie, querida. Até o pai de Miguel


teve e olha que comprei o seu bem mais valioso. Ou não.

Prontamente eu olho para o lado e encaro Miguel em silêncio nos


últimos segundos, seus olhos estão semicerrados e ele parece segurar todo o
tipo de dor em seu semblante.

— Transfira. — ordeno e meu marido me olha em expectativa. —


Transfira o dinheiro, agora, todo! Para a conta das ilhas. Transfira, Miguel.
Se o destino do império Kane está em minhas mãos, eu decido que o lugar
dele é com as pessoas que Desmond destruiu. — pego o laptop da cômoda e
o empurro entre seus dedos: — Transfira!

Ele olha para mim com um pequeno sorriso de satisfação em seu


rosto por um segundo antes de se virar para meu pai:

— Eu pensei em mil maneiras de te matar, Desmond! — sua voz


está baixa, mas não menos imponente.

Olho meu marido e ele está acabado, suas mãos tremem e o revólver
pende de um de seus dedos enquanto abre o laptop e começa a digitar
rapidamente alguns números. Ele olha Desmond e parece tentar não sucumbir
à vontade de aniquilá-lo ali, agora mesmo. Com um olhar cansado, aponta
com a arma para a máquina ligada ao meu pai, que parece pirar agora:
— Mas não vou precisar mover um dedo. Tu propio corazón não te
quer vivo. E eu vou apenas assistir a tu muerte enquanto relembro que você
não tem mais nada, dinheiro, poder, saúde... Eu te tomei tudo. — Desmond
começa a tossir, parecendo se engasgar. Ignoro o bipe muito alterado e
tampouco me espanto por não ter medo que ele morra. — E a última coisa
que vai ouvir antes de seu último suspiro é minha maldita língua te dizendo
que seu império morre com usted.

Como em um passe de mágicas, dois enfermeiros simplesmente


entram pelo quarto me empurrando para trás. Não quero entender como agora
eles aparecem do nada e assisto a Miguel avançar até Desmond:
— Olhe para mim, Desmond, olhe para Miguel Guzman, hijo de
Derek Marshal, hermano de Maria! E escute em minha MALDITA
LÍNGUA! Seré la última persona que escuchará antes de morir! Todo tu
dinero es mío y las familias que destruiste, tu mierda!

Meu corpo é pressionado contra a parede fria e eu percebo que


estou colada ao armário, enquanto os dois enfermeiros usam o quarto inteiro
para auxiliar meu pai.

— Saiam dessa casa! Vocês dois! — Desmond ainda consegue


berrar mesmo quando uma máscara cobre seu nariz e maxilar. — Não
voltem! Não voltem nunca mais! Eu te odeio! — ele olha para mim. — Eu te
amaldiçoo!

— Você é um monstro! — grito de volta, já chorando, e uma


enfermeira pega meu braço, tentando me acalmar ou me direcionar para fora
do quarto. Empurro-a para longe. — Eu nunca vou te perdoar!

— Vão para o inferno! Vão para o inferno! Vocês dois! VÃO


PARA O INFERNO !!! — ele urra e se joga para trás quando o som de vários
bipes, como alarmes, ecoam pelo cômodo até se tornarem apenas um.
Um estridente e uníssono grito da morte.

— Desfibrilador! — grita um enfermeiro e eu me apoio à cômoda


ao meu lado. Um som oco. Miguel não se move encarando a cena. — De
novo! — grita novamente, mas parece que tudo que fazem é em vão.

— Acho que quem va ao infierno eres tu, Desmond. — Miguel


retorna e pega minha mão me puxando do quarto.
No entanto, uma pontada no ventre, oscila meus passos de forma
cruel.
Mi corazón martela contra minha caixa torácica e,
contraditoriamente ao que achava que sentiria ao ouvir aquele som agudo e
único das máquinas ligadas a Desmond, é como se meus pés ainda não
tocassem o chão.

Nada daquilo parece, realmente, estar acontecendo.

Agarro com mais força o braço de Ellie tentando tirá-la dali,


querendo deixá-la o mais longe possível da morte iminente de Desmond,
alcançando o Porsche, em poucas passadas; ela se joga no banco ao lado e eu
acelero, deixando toda aquela mierda para trás.
Dirijo pela estrada sob a tempestade que retorna mais impetuosa,
mas mi mundo congela ao ouvi-la chorar meu nome e eu desvio meu rosto da
direção para ela por dois segundos, tempo o suficiente para que o desespero
me tomasse conta.
— Preciosa? — eu paro o carro no acostamento e ela me olha
atônita.

— Não estou bem... Migu-gueel... não estou bem...


— Ellie? O que está sentindo? — pergunto, envolvendo-a em meus
braços e a trazendo para meu colo. — Ellie, me responda! — ela fecha os
olhos e geme, enfiando o rosto em meu peito e segurando sua barriga entre os
dedos, carajo, carajo, carajo...

— Uma cólica muito forte. — responde sem forças e eu deslizo su


cuerpo de volta para o banco, fechando seu cinto de segurança e passando
meus dedos entre os fios de cabelos suados em sua testa:

— Vai ficar tudo bien, vai ficar tudo bien...


Acelero e percorremos os próximos quilômetros em silêncio, apenas
entrecortado pelo choro dolorido e abafado de Ellie, mi corazón sangra, mi
corazón sangra... eu estico meus braços, aninhando-a da melhor forma que
posso e ela agarra meu paletó, tremendo su cuerpo, parecendo menor que é,
um pequeno cuerpo frágil e delicado entre meus dedos, pequena... pequena...
uma mujer tão pequena e tão fuerte... mi preciosa...

Assim que chegamos ao estacionamento do hospital, eu a pego em


meu colo atravessando o calçamento sob a chuva incessante, segurando-a
firme entre meus braços, berrando para que alguém nos atendesse, pedindo
ajuda... implorando ajuda.
O mundo pausa.

Não sinto mais nada, ou sequer ouço quando Lennox e Chloe


entram pelo corredor do hospital e não sei como estão ali, se eu liguei para
eles, se mandei mensagem, não sei... deixo as lágrimas escorrerem, tentando,
de alguma maneira, não ruir.
― Não era para se así, Miguel... ― eu fecho meus olhos tentando
respirar, choro baixo. ― No, no era... su mierda, Miguel, su mierda...

Lennox passa os braços por mim e deixo minha cabeça afundar em


seus ombros, chorando ruidosamente.

― Eles não falam nada... ― busco ar, afastando-o de mim, me


sentindo nauseado.
― Vai ficar tudo bem... ― Chloe me ampara e andamos em silêncio
pelos poucos metros até a sala.

Eu me sento na cadeira de plástico e enterro meu rosto em minhas


mãos com raiva de mim, medo de perder Ellie... medo de perder nosso... nem
tínhamos comemorado a gravidez... nem tínhamos absorvido a importância
daquela gravidez... só sabíamos há um dia, um dia...

Engulo o choro, deslizando os dedos por minha mandíbula tensa, a


televisão noticia alguma manchete urgente e eu levanto meus olhos sem
acreditar no que vejo escrito em vermelho: Morte de Desmond Kane em
mansão do império farmacêutico.
Como... como... já sabiam...?

Chloe segura minhas mãos encontrando-as geladas e eu seguro seus


dedos sem força, finalmente eu tinha conseguido o que queria e... eu tinha
conseguido...? Desmond morrera... Ellie levava uma parte minha com ela
dentro daquela sala enquanto não me davam notícias e a dor de perder aquele
brilho de vida apagava qualquer regozijo por minha vingança.

Maria estaria feliz em su tumba? Faria... faria diferença...?


Chloe limpa a garganta, passando os dedos nos cabelos que caem na
testa e suspira baixo, se sentando ao meu lado. Ela fica por muito tempo em
silêncio até me fitar.

Seguro a conexão de seus olhos, sem sentir nada mais bater em meu
peito.

― Meu pai falou que você o contactou esses dias. ― ela diz de
maneira firme. ― Era você perto de minha casa quando fomos para
Hamptons, não era? ― mordo meus lábios e minha mão solta a de Chloe. Ela
continua: ― Meu pai disse que você queria que ele lançasse uma matéria,
que você entregaria tudo no devido tempo... Assim que cheguei em casa
depois de Hamptons... eles estavam loucos, ligando para tudo quanto é
conhecido, averiguando todas as suas provas... Era tudo uma vingança e meu
Deus, você tinha todos os motivos, mas... ― sua voz treme um pouco e eu
percebo que o que vai dizer a deixa com receio, no entanto, ela diz mesmo
assim. ― Você não esperava amar Ellie, esperava...?

― Ellie tem mi corazón, ele bate por ela... ― exalo um suspiro e


meus braços me abraçam, estou tremendo. Desmond morreu, no máximo em
dois dias, toda a crueldade da Kane seria capa dos principais jornais, eu seria
procurado... Trevor Willians teria roubado todo o dinheiro da empresa...

Chloe se levanta:

― Faça por merecer seu perdão. ― ela anda um passo para trás,
mas para, me olhando de lado. ― Eu e Lennox sempre fomos a família que
Ellie nunca teve... se sua irmã morreu por causa dos tóxicos da empresa
Kane, saiba que Ellie cresceu em meio à toxidade da família Kane. Ela não
merece sofrer mais... Miguel.

― Entiendo. Demorei para perceber isso, a raiva me cegava, mas


ahora, entiendo... ― respondo quase sem voz, sem acreditar como ela até
sabia mi nombre.
Ela volta a sorrir:

― O mais estranho nisso tudo? ― seus olhos correm por meu rosto.
― O cara que mais mentiu para ela foi o mais verdadeiro em seus
sentimentos. A vida é irônica, não é mesmo?

Lennox a abraça e os dois me olham por mais um tempo antes de se


sentarem no sofá à frente, suas palavras martelando minha cabeça e
reverberando em mi corazón, me dando forças e me tirando todas elas ao
mesmo tempo.
Um médico anda em minha direção e eu travo minha respiração até
estar completamente em minha frente; eu me levanto e seu semblante já me
diz tudo.

― Sua esposa está bem, senhor Willians. ― engulo com raiva


aquele sobrenome, tudo que eu queria agora era ser Miguel para mi Ellie. Ele
respira fundo e já antecedo toda a desgraça que preciso ouvir. ― Ellie teve
uma gravidez química. ― eu não compreendo suas palavras e ele me elucida:
― O óvulo fecunda, cai no útero, mas não implanta completamente. Ellie me
contou que fez um exame de farmácia que apontou o positivo. Mas
infelizmente isso ocorreu por conta do hormônio ainda em seu organismo.

Fecho minhas mãos em punho sem conseguir reagir como deveria,


ele suspira e ameniza a tensão meneando a cabeça de modo gentil:
― É mais normal do que imaginamos, senhor. Se ela não tivesse
percebido o atraso, a menstruação viria e ela nem saberia pelo que passou.
Ela é jovem e fértil, a gravidez vai ocorrer naturalmente quando desejarem
tentar outra vez. ― ele mexe na prancheta em mãos olhando seus rabiscos. ―
Ela está bem, útero limpo já que não houve um “aborto propriamente dito”.
― ele sorri me encorajando e eu me encolho sob minha pequeneza. ― Ellie
Kane já tem alta para voltar para casa.

Ele sai da sala e eu engulo como aquilo soou, gravidez química...


químico... tóxico... afundo minha cabeça entre meus braços, percebendo que
não só os pais de Ellie eram tóxicos em sua vida... eu também o era.
Eu morreria e... e o que Ellie teria além de desilusão e destruição?
29

― Vamos levá-la para casa?


Deslizo meus dedos por meus olhos e vejo entre ele, Lennox e
Chloe parados à minha frente:

— Que casa? Aquilo deve estar cheio de repórter...

— Vocês podem ir para Hamptons e depois pensar o que vão fazer.


— Chloe responde e eu levanto uma sobrancelha, segurando minhas mãos
uma com a outra, sentindo que não paro de tremer. Ela continua: — Meu pai
deve entregar a reportagem amanhã ao fim do dia. Antes disso, acho que
conseguem algum período de paz e...
— E então? — eu a corto. — Antes disso tudo, eu não dava a
mínima para como ela ficaria, eu não a conhecia, achava que era igual a su
padre, que se desgraçasse como Desmond, mas agora... o que ela tem...? O
que eu fiz?

— Dinheiro não é tudo! — Lennox intervém e eu rio amargo para


ele:
— Sou a última pessoa no mundo que precisa de lição de moral
quanto a isso, Lennox. — eu me levanto. — Eu estou dizendo o óbvio, Ellie
tem vinte e um anos apenas, nem terminou a faculdade, foi acostumada a uma
vida... que nunca poderei dar. — olho minhas mãos, perdido. — Sem contar,
que não tenho uma vida para compartilhar, meus planos se limitavam sempre
a ver o império Kane ruir, entregar tudo às famílias e passar meus últimos
dias em qualquer lugar desse mundo, longe o bastante para morrer em paz.

— Morrer? — Lennox segura meu braço. — Por que acha que seu
único destino é a morte?

— Não tenho o que achar, terei o mesmo destino que Maria. Bebia
da mesma água. — respondo, meus olhos cravados nele. O silêncio retorna e
talvez ele já saiba tudo que tenha que saber. — Tem quase seis meses que
tive o diagnóstico.
— Mas você não sabe que...

— Tenho câncer, Lennox. Por isso apressei as coisas, por isso não
pude esperar que Desmond demorasse para me colocar como vice-presidente.
Por isso precisei que ele confiasse mais rápido em mim do que se não fosse
seu genro. Por isso me casei.

— Eu tenho seus exames. — ele retorna e eu cerro meus olhos para


o amigo de Ellie. — Ela me pediu para averiguar com meu namorado de
quem era os exames que você recebeu por mensagem. — minha testa se
vinca, incrédulo com a audácia daqueles dois e com a falta de
profissionalismo daquele médico, mas bien, quem sou eu para falar sobre
ética no momento. — Não houve metástase, seu tumor está localizado,
Miguel. Ainda que houvesse, gato, não é preciso ser pessimista, você não está
fadado a ter o mesmo fim que sua irmã.

— Maria morreu nem seis meses depois que descobriu.


— E mesmo assim só apareceu em você agora... o que te faz pensar
que tudo tem que ser igual, se nada é?

— Eu comecei com as dores, enjoos, recebi o diagnóstico e...

— E nunca procurou mais saber o que está acontecendo aí dentro.


— ele aponta para minha barriga e não, não é uma pergunta. Afirmo com a
cabeça, ainda tentando compreender suas informações, as mesmas que o
médico deveria estar tentando me dar:
— Não até... fiz outro exame... quando voltamos de Hamptons... o
exame que você tem...

Ele sorri, mas fecho meus lábios, desesperançado:

— Ellie passou por muita coisa. Quando a ficha finalmente cair, mi


preciosa vai ver que não deixei nada além de destruição e... — inspiro sem
fuerza. — Radiação... toxidade... ruínas...

Ele me olha nos olhos, a postura do amigo que Ellie sempre disse
ter, a família que envolvia muito mais que laços sanguíneos:

— Do mesmo modo que sempre acreditou em vingança, Trevor...


ou Miguel... Ellie sempre acreditou em perdão.
Levo um suco para Ellie, meio sentada, meio deitada na
espreguiçadeira da varanda de seu quarto em Hamptons.

Nós tínhamos chegado há pouco mais de uma hora e ela não tinha
falado nada desde que recebeu alta e viemos pela estrada, uma viagem
pesarosa que me doía mais que qualquer coisa no mundo.
Tudo que eu queria era abraçá-la logo e arrancar cada fragmento de
dor em su corazón transportando-o para o meu.

Ela olha para o mar e bebe pequenos goles como se retesasse o


choro, eu me sento ao seu lado e a puxo para meu colo, mi preciosa se aninha
e eu apoio meu rosto em sua cabeça, mirando o mar com ela por longos
minutos até ela erguer os olhos para mim, mas desviá-los quando eu fixo os
seus.

Seco as lágrimas em sua bochecha e ela tomba a cabeça em meu


peito, olhando o mar entre suas pálpebras semicerradas. Meus dedos colocam
a franja úmida de volta atrás de sua orelha, e demoro meu polegar em sua
bochecha, acariciando seu rosto.
Limpo outra lágrima que desliza por seus cílios, ela suspira baixo,
sem forças e eu a fito, completamente rendido, apertando-a mais para mim.

— Perdón por não ter te protegido, mi preciosa... — engulo o nó em


minha garganta, ela levanta os dedos e toca meu maxilar, mas baixa a mão e
se levanta, indo em direção ao quarto.

Acompanho seus passos, ainda sentado no mesmo lugar e congelo


naquela posição, pois apesar de saber que tenho que ir embora em poucas
horas, não sabia se conseguiria sem mi corazón.
Assistimos ao noticiário na cama, os olhos de Ellie atentos à
televisão.
As notícias nos silenciam, morte de su padre, desfalque da Kane,
acionistas da empresa em polvorosa, crueldades nos laboratórios
terceirizados, eu não sabia o que falar, ela não falava nada, entretanto seu
semblante dizia tudo, os nós retesados de seus músculos, seus dedos
segurando a coberta.

— Dime lo que estas sintiendo, mi preciosa. — eu peço, mas ela


fecha seus olhos.

Eu me levanto e entro no banho, me demorando sob o chuveiro.


Eu tinha me vingado, finalmente tinha acontecido, uma década
vivendo para aquele momento e... nada... eu não conseguia sentir nada. Tento
esvaziar a mente junto à água que desce pelo ralo, olhando os pingos
deslizarem pela minha pele, todo o tremor que seguro, apenas amortecendo
qualquer sentimento.

Saio da ducha e me olho no espelho embaçado, mi cuerpo ainda


molhado, os olhos escuros me fitando de volta:

— Por que ainda estou com isso...? — pergunto sussurrando para


mim mesmo, pensando que não havia tirado as lentes desde a última vez que
as tinha colocado. Meus olhos estão vermelhos, não sei se de cansaço ou do
choro e é difícil ver a tonalidade dos verdes quando deixo as lentes irem
embora pelo pequeno ralo da pia.
Cerro as pálpebras com fuerza e quando as reabro, os olhos de
Maria me fitam de volta.

Paraliso.
Eu evitava vê-los quase que rotineiramente, tirando ou colocando as
lentes sem precisar de um espelho e agora, vendo meu reflexo, admito para
mim mesmo que o uso delas era muito mais que um disfarce idiota que não
enganaria a ninguém além do próprio Trevor Willians.

Meus verdes eram de Maria.

Meus olhos eram os seus.


Eu me aproximo do espelho, me debruçando sobre a pia e olho para
eles, confessando que apesar de ter que me acostumar com sua tonalidade
novamente, eu tinha orgulho de ter algo de mi Maria em mim.

Apago as luzes e volto para o quarto, encontrando Ellie adormecida.

Eu me deito sob as cobertas e a abraço, ela abre os olhos por um


instante e não sei se consegue ver os meus, com a parca iluminação do abajur
ao meu lado, mas ela se demora por um tempo me fitando sem falar nada, até
afundar o rosto de volta no travesseiro.

— Perdón por não ter te protegido de mim, mi preciosa... —


sussurro e fecho meus olhos, ouvindo a chuva fraca cair lá fora, mi corazón
gelado aqui dentro.
Acordo abruptamente e estou sozinha na cama, apenas o cheiro
almiscarado de Miguel entre os lençóis.
Agarro minhas pernas e apoio meu queixo em meus joelhos,
deixando que o choro alcance toda e qualquer profundidade de minha alma,
os verdes de Miguel invadindo todo e qualquer pensamento.

A governanta me informa que minha mãe ligou avisando sobre o


funeral de meu pai e eu a olho por um segundo antes de voltar a procurar nas
coisas da casa, qualquer pista do paradeiro de Miguel.
Quando finalmente compreendo que ele havia partido sem avisar,
entendo que meu coração partiu com ele.
30

A casa está praticamente vazia.


O corpo de meu pai está sendo velado na sala principal e poucas
pessoas conversam entre cochichos, como se revelassem ou escondessem
segredos. Não duvido que suas palavras se limitem ao escândalo que estampa
todos os jornais, que ecoa em todas as televisões e enchem as casas de
assuntos para o jantar.

Todas as pistas que Miguel tinha coletado, todas as provas, tudo,


tudo estava sendo revirado pelos principais canais de notícias, inclusive o
desfalque na empresa e as ações inexistentes. O rosto de Trevor abrilhanta
algumas reportagens sensacionalistas como um Robin Hood moderno, o que
soa absurdamente superficial; ainda assim ele é procurado pela polícia por
vários delitos incluindo falsa identidade furto, roubo, chantagem e ameaça.

Logo, eu teria que testemunhar ou pior, poderia ser indiciada.


Eu não me importo.

Aliso meu vestido preto e ouço um investidor antigo que sumira


desde que meu pai adoeceu dizer que já imaginava que tinha algo errado atrás
das portas sempre fechadas da sala de Desmond; ele me olha rapidamente e
tampouco disfarça quando sussurra que também achava muito fantasioso esse
meu matrimônio à jato.
Eu me demoro analisando a foto que escolheram para colocar ao
lado do caixão, ironicamente a mesma que enfeitava a mesa de meu pai: eu,
ele e minha mãe em Paris. Concentro-me em meu rosto infantil e percebo,
pela milionésima vez, na falta de meu sorriso; eu fito quem tira nossa foto
como se desejasse estar em qualquer lugar, menos ali com os dois, ao lado de
meu pai, seus braços envolvendo a esposa de diamante.

Dou a volta no caixão e olho minha mãe cumprimentando as


pessoas, o chapéu com um pequeno véu negro tapando seus olhos, o sorriso
entristecido em seus lábios e eu só conseguia pensar o que motivava a
artificialidade de todos eles.

Ela mal havia falado comigo quando cheguei de Hamptons, a


cabelereira escovando seus cabelos enquanto ela falava ao telefone com
Milner Clark, agora divorciado e cumprindo sua sentença em prisão
domiciliar.
Sua voz manhosa me fazia ter dúvidas de que realmente esteve em
um SPA todo esse tempo ou se... buscava em outro velho os anseios que
Desmond não poderia mais lhe proporcionar.

Ela vem ao meu encontro e desta vez não interpreta a mãe zelosa na
frente de todos, somente mira minha barriga e nega com a cabeça num
movimento de desagrado:
— Foi bom você ter perdido essa gravidez, seria uma derrota estar
grávida de um homem procurado. — sem esperar que eu a responda, ela dá
um tchauzinho para o padre ao lado do púlpito e sai em seu encalço, o colar
de diamantes que usa no pescoço reluz contra a manhã de sol e eu desço
minhas mãos por minha barriga, pensando nos olhos verdes de Miguel me
mirando, como duas esmeraldas.

Abruptamente, o nome da coleção de joias de minha mãe vem em


minha mente e exclamo um palavrão ao concluir o quanto aquela mulher era
louca.
Black Star. Black Star!

Suas palavras no dia do lançamento me vêm à cabeça como uma


bomba e eu miro minha mãe com seu discurso ecoando dentro de mim: “cada
peça narra a fascinação e devoção por pedras negras e sedutoras.” ... os olhos
de Trevor... Atravesso a sala indo ao púlpito, não que eu não imaginasse, não
que eu não soubesse, estava claro, eu só não queria ver, Sophia dava em cima
de meu marido, só via a si mesma, não pensava em ninguém... era perfeita
para meu pai, sua cara-metade.

Mas aquilo já tinha bastado para mim.

Pego o microfone sobre a Bíblia aberta e cutuco Sophia; ela se vira


para mim, revirando os olhos:

— Não vê que estou ocupada, Ellie?

— Padre, o senhor nos dá licença um minutinho? — ele desce o


degrau, confirmando com a cabeça e eu não dou tempo que me ignore outra
vez: — Mãe, você não tem vergonha de ter feito uma coleção inspirada em
meu marido, mesmo com meu pai vivo? — minha voz ecoa pela sala e todos
param o que estão fazendo, nos olhando em expectativa. — Quais são seus
planos agora com ele morto: dar para o próximo velho milionário que
sustente seus cartões ilimitados ou vai continuar fodendo com meu motorista
mesmo?

Ela arregala os olhos, apavorada, e eu sorrio para os flashes dos


repórteres:
— Ah, sim, era meu motorista naquele vídeo, anotem aí o nome
dele: Andrew Cox. Ele vai adorar fazer uma entrevista, ter seus 15 minutos
de fama e... ahhh. — pauso fazendo o mesmo suspense característico de meu
pai em seus discursos. — Falando em quinze minutos da fama, o que meu ex
esqueceu de falar em sua entrevista é que além de eu ser chata e sem graça,
também fui seu saco de pancada. Sim, Patrick Gabner me socou e fui
impedida pelos meus pais de prestar depoimento porque isso mancharia a
imagem da empresa e família perfeitas. — dou de ombros, sorrindo
sarcasticamente. — Essa mesma empresa e família que tanto aparecem na
televisão pelos escândalos que vocês já estão cansados de ouvir. — dou uma
piscadela para a câmera de um dos repórteres. — Mas pelo que vocês podem
ver... ninguém é o que parece.

Saio da sala, lançando-me pela escada, o nó se tornando cada vez


mais forte em minha garganta, perturbada com minha constatação tão tardia
do quanto eu poderia ser essa mulher há muito... há muito mais tempo.
Eu sempre quis ser amada por eles, me mostrar a melhor atrás de
um nível de perfeição que meu pai impunha em seus olhares atravessados
para mim, como se ele mesmo fosse um deus mitológico. A falta de amor e
atenção com que eu já me acostumara, eu compensava em notas excelentes e
comportamento exemplar como se isso fosse algum dia elogiado por eles.

Independentemente de ter o sangue Kane correndo por minhas veias


ou não, eu não queria ser um deles.
Eu não era um deles.

Eu não seria mais um deles.

Meus olhos percorrem meu quarto como se meu coração soubesse o


que procuro e antes mesmo de eu entender, encontro o bilhete caído no
tapete. Soco meus joelhos no chão no afã de pegar aquele papel dobrado
como se a salvação de minha alma dependesse daquilo e o abro quase
rasgando, meus dedos afoitos escorregando suados pelos cantos.
Leio as letras rabiscadas de Miguel em voz alta:

Preciosa,

Eu te amo tanto que não me sinto eu mesmo quando não estou com
você. Eu, Miguel Guzmán. Ele só existe porque você existe em mi vida. E o
meu maior medo não é que eu não me reconheça, mas que você não ame o
homem que revelo ao seu lado, pois só ele é de verdade.

E yo quiero ser ele para sempre, sem mistérios, sem planos, sem
estratégias... apenas Miguel para su Ellie.

Mi corazón mudou completamente quando te conheci, mi preciosa,


porque ele te reconheceu como su outra metade. Se ele não batia antes, ahora
bate por você, só você.

Mas não sei se meu amor pode ser o bastante para que você
suprima tudo que fiz. Não sei se entregar minha vida a você pode ser o
bastante para que você me perdoe.
Contudo, eu vou entender se não for. Eu vou entender sua escolha,
seja qual ela for.

Eu estarei no hangar de Hamptons às 12h do dia 19. E estarei


pronto para qualquer decisão que tomar: me perdoar e vir comigo para que
meu destino seja acordar todos os dias ao seu lado; ou não me perdoar e me
entregar para a polícia, porque eu não merecerei qualquer destino senão
esse, sem você ao meu lado.

Não importa qual escolha você tomar... você es fuerte para tomá-la,
mi preciosa.

Mi destino está em suas mãos.

Te amo.
Miguel Guzmán.”

Seguro o bilhete contra o peito e sinto meu coração golpear olhando


o relógio em minha mesinha, minha visão turva não consegue focar os
ponteiros no primeiro momento; eu me levanto e confirmo que é quase onze
horas da manhã, meus joelhos tremem, olho à minha volta, não preciso de
nada, não preciso de nada, não quero nada dali, nada.

No entanto, dou uma passadinha rápida no quarto de meus pais, um


sorriso de contentamento ganhando meu rosto.
Assim que tenho tudo que quero em uma pequena mala de mãos,
me precipito pelo quarto, praticamente me jogando pelo corredor, escorrego
meus saltos na escada me segurando no corrimão, pulo os dois últimos
degraus e atravesso a sala, empurrando as pessoas à minha frente, esbarrando
nos garçons, não olho para o caixão de meu pai, não olho para minha mãe
sendo abanada pela empregada no canto, não olho para mais nada a não ser a
porta de saída daquele mausoléu.

Eu... respiro... eu respiro!

Tiro meus saltos atravessando o jardim e assim que alcanço o pátio,


vejo Lennox estacionando sua Mercedes convencível ostensivamente rosa
choque e aceno, berrando que não desligue o carro. Chloe se debruça sobre a
porta e o vento frio joga seus cachos para o lado, ela me olha sem entender o
que eu peço e meu amigo tira os óculos escuros me encarando:

— Não! Não pare! Eu... eu preciso que me levem para Hamptons!


— corro sentindo o piso escorregadio e gelado contra meus pés e deslizo
algumas vezes, a mão para o alto, meu fôlego se perde no meio das batidas
em meu peito, eu sussurro para mim mesma. — Eu sou forte, eu sou forte!

Lennox morde a ponta da perna de seus óculos e faz uma de suas


caretas quando me jogo no banco traseiro de seu carro, as pernas para o alto,
as costas diretamente no couro branco:
— Meu faraó reluzente... essa mona ficou louca de vez!

— Pisa no acelerador! — grito enquanto tento me ajeitar no banco;


Lennox pisa fundo e quase voo para trás caindo na gargalhada, Chloe debruça
sobre o encosto:

— O que está acontecendo? A gente ia ficar com você no velório, te


dar um apoio e...
— Miguel deixou um bilhete — busco fôlego. —, ele vai sair ao
meio-dia do hangar.

— Você está indo se despedir?

— Claro que não, Chloe, sua besta! — Lennox ri alto me olhando


pelo retrovisor. — Vê se isso é cara de alguém que vai dizer adeus a um
homem como aquele?! Ela vai é dar eternamente para ele!

Chloe me puxa para um abraço e eu quase que fico completamente


erguida no carro, envolvida por seus braços, seu banco entre nossos quadris.
Ela me solta sentando-se novamente e eu seguro o encosto ainda de pé,
sentindo o vento forte golpear meu rosto, açoitar meus cabelos, me
lembrando nitidamente da sensação quando estava chegando à marina para a
festa de celebração da empresa que na verdade, era meu noivado... olho a
estrada à minha frente, Lennox acelerando, minha amiga ao seu lado... solto
meus dedos e lentamente abro meus braços.
Meus fios soltos dançam ao vento, minha barriga formiga de
nervoso, meus pés libertos dos sapatos de salto, o movimento do carro dita
uma nova cadência ao meu coração. Eu me lembro da estranha sensação que
tive ao ver Miguel pela primeira vez, como o segundo antes de pularmos de
um precipício.

Sim, eu estava pulando!

— Eu vou dar um jeito de ter notícias suas, da gente se falar... —


me solto dos braços dos dois, as lágrimas de felicidade e saudade já em meu
rosto, Lennox funga, Chloe diz que vai me achar, eu não duvido, sorrio, dou
alguns passos para trás. — Eu amo vocês... vocês são minha família!

— Vá! — Lennox levanta um braço de modo exagerado. — Não


posso manchar meu rímel, Ellie, peloamordedeus. — ele ri nervoso e segura
o choro. — Vá, antes que ele decole!
Eu mando um beijo estalado com a mão, que ele pega e coloca
sobre o peito, Chloe o abraça e eu giro rapidamente meus calcanhares
passando pelo portão baixo de ferro, atravessando correndo o galpão de aço e
madeira, deslizando meus dedos pelo pequeno monomotor estacionado.

O silêncio do local me assusta, só escuto meus próprios pés, mas


respiro aliviada quando vejo mais à frente a aeronave de modelo pelicano,
portas abertas e hélice girando devagar, minhas pernas tremem no instante em
que o vislumbro, cachos bagunçados pelo vento, óculos escuros, mãos nos
bolsos, parecendo tão ansioso quanto eu.
No segundo que ele me vê, meus joelhos firmam e eu saio correndo
ao seu encontro. Miguel sorri de volta e seus passos apressados vêm até mim.
Não falamos nada no curto espaço que nos separa e quando nossos corpos
colidem um contra o outro, ele procura minha boca com a sua, seus dedos me
agarram e ele me eleva, me girando enquanto me beija.

— Você veio, mi preciosa... — ele murmura em meus lábios e eu


sorrio nos seus:

— Você é meu precipício, Miguel... — ele busca meus olhos,


curioso, e eu alargo o sorriso: — Minha tempestade, meu mistério... meu
destino.
Ele me escorrega por seu corpo e meus pés voltam ao chão, no
entanto, seus dedos seguram meu rosto:

— E você é minha Kane favorita.

Rio alto e ele pega minha mão, beijando seu dorso.


— Tudo bem, acho que estamos quites. — faço beicinho e ele me
ajuda a entrar no avião, coloco a pequena mala aos meus pés.
— No, preciosa — ele me gira para si quando me sento ao banco.
— Nunca estaremos quites e eu vou viver minha vida tentando recompensá-la
de todas as formas.

Sorrio para sua resposta e o observo enquanto ele dá a volta no


avião e sobe ao meu lado ligando os controles:
— Então para onde vamos?

— Primeiro temos uma parada para um certo tratamento que tenho


que fazer para garantir a tal vida tentando recompensá-la. — ele diz em meio
a um sorriso torto e vacilante e eu retruco:

— Quer dizer que a versão Miguel é mais piadista do que a versão


sarcástica de Trevor?
— Ah sim — ele me entrega os fones pesados. —, bem, vamos ter
que ver, Miguel é um cara que estou querendo conhecer tem um certo tempo,
mas gosto muito dele quando estou ao seu lado.

— Eu também. — sussurro, colocando meu fone e ele tira seus


óculos aviadores me presenteando com aqueles olhos verdes incríveis.... bem,
seja lá quem Miguel for, eu simplesmente espero que ele saiba pilotar um
avião.

O motor parece roncar e eu olho o horizonte, o tempo não está tão


claro, as nuvens têm uma cor chumbo e o vento aperta. Miguel pisca para
mim e eu seguro sua mão olhando meu destino.
A tempestade vinha... e... mesmo não sendo o tipo de garota que
enfrenta tempestades... eu estava indo de bom grado para o olho do furacão.
Epílogo

Agosto de 2017

Saio de casa e Dulce Maria agarra minhas pernas, rindo ao me fazer


cosquinhas com seus pequenos dedos; eu me sento ao degrau da porta e ela
pula em meu colo recostando os cabelos encaracolados em meu peito, me
olhando com aqueles olhos negros de jabuticaba, como as frutinhas do pé que
plantamos no quintal.

A árvore crescia devagar nesses últimos cinco anos, desde que


trouxemos algumas sementes do Brasil; Miguel havia duvidado que ela
crescesse tão forte em terras colombianas, mas eu já tinha lido algumas vezes
que aquele país era o paraíso das frutas, e não era por menos que estalávamos
aquela frutinha preta na boca, ecoando “plocs” deliciosos em meio à sorrisos
tranquilos nos finais das tardes.
Maria pula na grama assim que avista Pringles saindo da casinha de
madeira e corre até ele, afagando suas orelhas peludas, sorrio vendo os dois
brincando sob o sol fraco e estico minhas pernas sobre a terra quentinha.
Minha barriga está grande e eu deslizo meus dedos por ela, vendo o umbigo
meio saltado, o chute forte de Lara comprovando o quanto aquela bebezinha
me daria trabalho.

Não tenho feito muita coisa ultimamente desde que a gravidez


avançara e, por mais que estivesse tudo bem, como era a primeira desde a
gravidez química há mais de dez anos, eu ainda me sentia insegura com todas
as novidades e medos de uma gestação pela primeira vez.
O pequeno portão de ferro é aberto e eu miro Miguel entrando por
ele, testa suada e roupa amassada, depois de um dia inteiro fora; ele me vê,
sorri para mim, mas agacha ao lado de Maria e Pringles, rolando com eles
pela grama baixa.

Rio alto, mirando aquela cena, apaixonada.

Foi assim, exatamente assim, que vimos nossa filha pela primeira
vez: Dulce Maria brincava com o pequeno vira-lata sozinha, no triste e
solitário orfanato de uma vila vizinha a de Miguel quando era criança. Nós
tínhamos acabado de chegar do Brasil, depois de alguns anos em Porto Rico e
pensávamos em fixar morada no país natal de Miguel, mas não sabíamos se
era cedo ou não.
Ali tivemos nossa resposta, naquela garotinha miúda de cabelos tão
cacheados quanto os de Miguel e uma pintinha como um pequeno molde de
abelha pertinho dos lábios desenhados em forma de coração. Dulce Maria era
seu nome e demos a ela o nosso amor e com ela tivemos um lar que
chamávamos de nosso nos últimos cinco anos, num cantinho único da
Colômbia, onde vivíamos e tentávamos fazer diferença — mesmo que as
malas prontas escondidas nos armários sempre estivessem à mão no caso de
precisarmos fugir mais uma vez.

Meu marido agora se dedicava a construir casas sustentáveis e mais


baratas; nos últimos meses havia criado com os moradores um sistema capaz
de abastecer seus lares com água limpa. Eu trabalhava num posto de saúde da
vila ao lado de outras mulheres, em um atendimento que envolvia
acompanhamento psicológico, educação, amor e carinho e não só meu
trabalho como enfermeira... Aquilo era muito mais, significava muito mais.

Ressignificava tudo.

Nós havíamos construído aquele posto de saúde, como pequenos


hospitais em várias vilas dos países que tínhamos morado nos últimos anos e
eu só poderia agradecer às joias de minha mãe... se aquela coleção havia sido
inspirada em meu marido... nada mais justo que desse continuidade aos seus
planos de reconstruir a vida dos que minha família tinha, de algum modo,
afetado.

Além disso, o dinheiro da Kane tinha sido transferido no dia da


morte de Desmond, anonimamente para muitas famílias, ONGs e
voluntariados, mas agora, fazíamos nós mesmo nosso trabalho, colocávamos
a mão na massa e recebíamos muito amor em troca.
Era o suficiente para transbordar meu coração.

— Estoy muerto! — Miguel se joga ao meu lado e reviro os olhos


para o que fala, não, não gosto nem um pouco dessa expressão ainda que ela
seja apenas uma expressão.

Passo as mãos pelos seus cachos suados e ele sorri para mim, meus
dedos deslizam por seus fios eu fito seus olhos verdes, me lembrando que
uma vez ele havia me dito que aquela cor era a da esperanza.
Sorrio mais um pouco ao me lembrar que ele havia me falado aquilo
depois de o médico dizer o protocolo de tratamento para seu câncer, quando
nos deitamos naquela noite e eu disse que seus olhos eram meus faróis em
qualquer escuridão.

— Você sabe que não gosto que fale assim. — bronqueio, mas beijo
seus lábios logo em seguida.
Miguel estava curado.

Ele havia feito algumas sessões de quimioterapia, uma cirurgia para


retirada completa de seu estômago e mais outras sessões de quimioterapia
após a cirurgia e sim, ele vivia bem sem o estômago, o que não me
surpreendia, meu marido era fuerte. O comprometimento da qualidade de sua
vida foi praticamente zero, emagreceu um pouco mais, o que compensou em
alguns músculos no trabalho voluntariado dos últimos meses.

Beijo ternamente sua boca outra vez e ele me abraça, acarinhando a


mim e Lara ao mesmo tempo, olhando Maria jogando alguns brinquedinhos
para Pringles, então a chama e ela vem correndo com o peludo atrás, os dois
saltitando.
Nossa pequena pula em suas pernas e Miguel abafa uma risada,
fungando sua nuca:

— Esses cachos de mel precisam de um banho... — ele enfia o nariz


no pescocinho dela e ela solta uma gargalhada esfuziante, Pringles lambe
seus pés e nossa filha balança os dedinhos, agora rindo de nervoso. — No
estás tão Dulce Maria así, pequena, está azeda...

Maria enfia uma jabuticaba na boca de Miguel e ele a estoura,


mostrando os dentes, ela volta a rir e eu não posso imaginar sensação melhor
no mundo.
— Papá não me peeegaaa! — ela cantarola se levantando e
dobrando os bracinhos nas laterais do corpo, como asas de galinha. Miguel
faz uma careta em resposta, mas no segundo seguinte está correndo atrás
dela, com Pringles atrás como uma sombra por todo nosso quintal.

Meu celular bipa e eu sorrio ao ver a foto de Lennox e Chloe em


San Andrés, os dois tomando água de coco na belíssima praia com um mar de
azul degradê logo atrás. Suspiro antecedendo a alegria que seria reencontrá-
los depois de tanto tempo, a suposta viagem de férias para locais paradisíacos
que haviam tirado com o intuito de passarmos um tempo juntos.
Em alguns dias eles estariam aqui e mataríamos toda a saudade dos
últimos anos. Não que não tivéssemos nos falado, sempre dávamos um jeito,
mas era a primeira vez que nos veríamos e meu coração batia numa sinfonia
feliz à espera desse reencontro.

Olho as últimas notícias rapidamente e não tem como retesar um


sorriso irônico ao ver as notícias do fim do casamento de minha mãe com o
senhor Clark.

Ela sorria para a foto depois de alguma aplicação de Botox e eu


tenho que abrir a foto um pouco mais para ter certeza do que estou vendo,
mas sim, era ele, Andrew um pouco mais atrás, perto de um poste, como se...
como se a aguardasse... reviro os olhos sem acreditar, imaginando se estariam
juntos todo esse tempo ou... bufo, mas desta vez eu não queria saber o que
estava por trás de seus dentes arreganhados.
Não leio a pequena reportagem de menos de cinco linhas,
demonstrando claramente que Sophia não era mais tão interessante assim.
Também não o era para mim.

Nada que um dia remetera ao meu sobrenome o era.


Deixo o celular no degrau e penso que eu nunca soube ou quis saber
se eu realmente era filha de Desmond. Acho que no fim das contas, não me
importava, eu poderia ser quem eu era independente do sangue que corria em
minhas veias, agora misturado ao de Miguel e nutrindo nossa Lara.

Miro aquele quintal, meu Miguel com nossa Maria e os latidos do


bolotinha peludo... A família que formávamos era a prova disso.
Eu me levanto e sigo eles, correndo aio lado de Miguel enquanto
Maria acha que se esconde atrás da jabuticabeira... envolta por tanta
felicidade... os quatro amores da minha vida...

Minha família.
Recado da Nina

Ah, se puderem, avaliem essa história <3

O feedback de vocês nos dá motivação para nossos próximos livros


e é sempre uma delícia ter o retorno de quem leu nossos personagens criados
com tanto amor.

Obrigada pelo carinho dispensado nas horas em que se permitiu


entrar no mundo de Trevor/Miguel e Preciosa/Ellie-nãotãokane.

Se eles existem, é porque alguém os lê.


Nina Higgins
Para saber mais, me siga no Instagram: @ninahiggins
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