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28/08 SEGUNDA: E lá fomos nós de novo, Universidade Federal Fluminense. Eu gosto de lá.

Gosto de ver os doguinhos no portão de entrada, de passar pelo Bandejão, e tentar adivinhar o
cardápio pelo cheiro, de ouvir as crianças na creche, de passar pelo deserto do estacionamento,
e brotar no ICHF. Eu sempre achei maneiro que o ICHF seja escondidinho. Uma amiga falou
que a ditadura propositalmente queria afastar os cursos de humanas pro canto mais distante do
campus. Não sei se isso é verdade, mas até que gosto, porque a gente surge do nada num espação
com quatro prédios que nem pareciam tão grandes de longe. Tanto faz se você passa pelo
estacionamento, ou se você vai pelo caminho do Minotauro, tem uma subidinha em torno do
bloco M que deixa o ICHF todo um pouco abaixo do nível do solo, e dali as pessoas brotam.
Quem tá no ICHF, e olha pra entrada, vê as pessoas surgindo como se estivessem saindo de um
carro de palhaço. De manhã não para de chegar gente, parecem formigas misturadas
caminhando entre os formigueiros, ali pelas 8 e 30 e depois do Bandeco.
Falando em palhaços, por mais que eu goste de tudo isso na UFF, e mais várias outras
coisas... sei lá, ao mesmo tempo me sinto meio mal. Me parece às vezes que somos todos uns
palhaços estudando ali. O que estamos fazendo de verdade? Uma professora de História pode
mudar o mundo? Os psicólogos fazem alguma diferença, se cobram um valor social nos seus
atendimentos? Se as Ciências Sociais sabem tanto sobre a sociedade, por que a gente continua
na merda? E quando eu me formar em Filosofia? Minha mãe não vai deixar de achar que eu
vivo vadiando à toa por aí. Vocês só ficam lendo só é? Me esforço muito pra não concordar
com ela, mas tem dias que eu canso.
Os calouros desse semestre tavam lá hoje. O CAFIL faz um trabalho legal com eles. É
importante ter um horizonte, calor humano. Hoje eles fizeram uma rodinha de conversa, pra
quebrar o gelo, perguntando a idade, o signo, o filósofo favorito, essas coisinhas de sempre. O
Departamento também faz uma apresentação muito boa do curso. Lembro de quando eu entrei,
era animação purinha. Tava onde eu queria estar. Mas como todo final de conto de fadas ensina,
temos que ter cuidado com o que desejamos. Nossos desejos só dizem respeito a nossas cabeças
ingênuas, que o mundo faz questão de reduzir a pó, como um moinho. Já diria o grande Cartola.
Lá se vão dez (ou onze?) semestres, e eu continuo tentando me encontrar, rindo pra não chorar.
E tem vezes que, confesso, rio de desespero. Depois da pandemia parece que virei uma
pessoa de plástico, um boneco. Uma pessoa falsamente verdadeira, verdadeiramente falsa,
inconscientemente. Depois da aula do Bernardo, encontrei a Ângela e o pessoal lá na Orla. O
Arbé tava fazendo o grafite no muro, tá ficando foda. Achei bonitinho que o Ricardo e o Arthur
começaram a namorar, ou só ficar, não sei. Mas tive uma invejinha. Não que eu esteja
procurando ninguém. É só que dar e receber amor talvez trouxesse um pouco mais de razão pra
esses dias sem sentido. Talvez me desse perspectiva, objetivo, vontade de fazer alguma coisa.
Eu sei que não deveria colocar esse peso sobre ninguém. E é por isso que não tô procurando
ninguém. Mas sempre que vejo eles dois, ou a Ângela e a Clara rindo juntas, de mãos dadas,
meu coração fica metade quente, metade frio. Um sentimento morno de autocondescendência,
como se eu tivesse triste demais pra me envolver com alguém.
Gosto de estar com eles. De sentir o cheiro do tabaco que não fumo. De sentir o cheiro
da maconha que não fumo mais. De beliscar o café deles. E eu gosto tanto de estar ali, que
depois da pandemia eu passei a me esforçar com toda força pra continuar sorrindo, só pra não
deixar eles perceberem que eu tô mal, mesmo estando ali com a galera, a minha galera. Hoje
foi assim, borocoxô, enquanto um pôr do Sol lindo rolava na orla, lá atrás das nuvens no Rio,
porque a minha situação pouco importa pro mundo real.
29/08 TERÇA: Tenho que botar crédito no B.U. Só tenho dinheiro até sexta. Vou ter que pegar
passagem com a minha mãe pra pousada no sábado. Pelo menos tiro um dinheiro. Tive sorte
que Laryssa me recomendou lá, 200,00 não é muita coisa, mas quatro vezes no mês já dá uma
boa quantia. Com mais a monitoria era que eu tava praticamente com um salário-mínimo. Mas
né, logo agora que aumentaram as bolsas, eu não passei nessa merda. Tive uma ótima nota, mas
não fui pra seleção, faltou vaga. Se rolasse, não iria ouvir tanta bosta em casa. Até faria uns
bolinhos pra vender na mesinha do ICHF. Mas dane-se também. Eu que mosquei, me inscrevi
numa disciplina só. Tinha era que ter atirado pra tudo quanto é lado.
Pelo menos eu tô indo bem nas matérias. Devo tentar o mestrado, ainda mais agora que
a bolsa tá 2.100. A Brenda, a Victória, o Morris, geral passou, então eu passo também. E o
Bernardo falou que eu tenho condição de ir. As aulas dele tem sido legais. Começamos a ver
um textinho muito maneiro do Marx, sobre a Alienação. Me fez lembrar do porquê eu entrei
em Filosofia. Pra tentar não ter um trabalho alienado de mim mesmo, fazer alguma coisa que
importasse de verdade, no lugar de só ser explorado por alguém, como é na pousada. Sem esse
dinheiro as coisas tavam piores. Mas não é gostoso passar 24hrs preso numa recepção pra ainda
ouvir ela dizendo com a voz de princesinha dela, Eu falei que você pode comer um pão de
manhã com uma fatia de queijo e de presunto. Não dois pães. Nem mais de uma fatia. Nem a
fruta ou o iogurte. Eles são pros hóspedes. É claro que eu faço um sandubão pô, tá doida? Sou
masterchef. Não tem um hóspede que não curta meu ovo de gema mole.
Por isso que todo dia eu tento passar mais tempo na biblioteca. Gosto de lá. Grandona,
geladinha e silenciosa. Parece um templo protegido no meio das árvores. Me sinto em casa.
Sempre sonhei com uma parada assim no colégio. Ela tem duas entradas, de frente tem uma
escadaria de paralelepípedos meio irregulares, como se tivessem séculos de vida, e tivessem se
desmontado com o tempo. Do lado esquerdo tem um rampão que sobe, com umas árvores nas
margens, tem algumas que quase formam um arco sobre a rampa. Quando é primavera, é como
se você atravessasse um bosque fantástico, umas flores rosinhas, outras roxas, e os galhos
dessas árvores são bem marrons. Quer dizer, todo tronco e galho de árvore é marrom, óbvio,
mas essas são meio vermelhas, um marrom quase laranja. A rampa corta a escadaria no meio,
e sai do outro lado num acesso para cadeirantes, que faz uma curva longa de um S fechado no
meio de outras árvores, até subir de novo, e sair no final da escada, de cara pras portas da
biblioteca. Quando você abre, vê as pessoas sentadas nas mesinhas no hall de entrada, dá logo
uma vontade de estudar. É como se você pudesse imaginar os pensamentos silenciosos pairando
sobre as cabeças ocupadas. Dá pra pegar notebook emprestado, tirar xérox, tem piano e tudo.
Acho lindo um jardinzinho que tem no meio da biblioteca, parece que ela foi construída em
torno de uma clareira sagrada. Gosto de imaginar que antes dos portugueses, um xamã morava
naquela mesma clareira, ainda que eu saiba que tudo aquilo ali era Baía de Guanabara.
Hoje tava lá lendo o texto do Marx pra aula do Bernardo, e vi uma garota derrubar café
na mesa do lado dos armários. Foi engraçado, ela levou um susto, e saiu catando rapidinho
umas folhas de caderno pra secar tudo. Tinha um estilinho maneiro, um black baixinho, de
camisa social larguinha, uma saia até a canela, sandália de dedo, com uns óculos redondos.
Quando ela viu que eu ri, ela riu de volta. Até pensei em ajudar, mas ia fazer muito auê, e
ninguém percebeu nada. Ficou por isso mesmo. Um acidente silencioso. Podia até ter falado
com ela. Mas sei lá. Ia chegar e dizer o que? Vem sempre aqui? Só fiquei admirando mesmo.
Ela tem mania de morder o lápis, me identifico. Gente ansiosa, que estuda lutando contra o
próprio corpo. Eu nunca gostei muito de estudar, mas me esforço, aprendo rápido as coisas.
Mas flertar é outra história. Podia até botar uma foto dela no Spotted, mas mó cafona isso aí.
Não vou ficar mandando pombo correio, não sou mais criança.
30/08 QUARTA: O pessoal do CAFIL me chamou pra pintar os calouros. Eu não curto muito
essas paradas, acho meio humilhação sair pra ficar pedindo dinheiro pra festinha, e eles é que
pediram. Enfim, a glamúria do rito de passagem universitário. Já que nunca apareço, resolvi ir.
Pintei um garoto de homem aranha. Garoto não, garote. Ficou maneiro. Fizemos umas teias e,
no lugar de vermelho e azul, pintamos elu de azul, rosa e branco. Vão fazer um isoporzinho de
calourada amanhã, a primeira Quintareira sempre bomba. “Bomba”. Um monte de gente
amontoada, bebendo pra cacete num lugar meio insalubre. Eu tentei participar várias vezes,
recuperar a adolescência que não tive. Só ficava em casa, saía pra lugar nenhum. Então achei
que poderia ser o meu momento, tenho boas companhias pra isso. Mas sei lá, acho que meu
tempo engaiolado em cativeiro me deixou antissocial. Minha cabeça não aguenta tanta gente
junta, me sinto ansioso, não fumo nem bebo mais, e só um bêbado suporta outro bêbado. Fico
feliz pelos caloures.
Mais ou menos. Tem um pessoal que parece que tá aqui porque tem medo de crescer,
de arranjar um trabalho de verdade, de lidar com as responsabilidades, e encontra um jeito de
estender o ensino médio, de ficar mais tempo no recreio do colégio. Pode ser babaquice minha,
mas é, eu sinto isso contra mim mesmo. Será que eu não deveria estudar qualquer outra coisa
mais importante do que meus desejos ingênuos e infantis? Sair de casa, viver minha vida. Falar
e sonhar é fácil também. Com tanta vaga de emprego sobrando e com a economia bombando
por aí, sem dúvidas que é frescura nossa não tomar vergonha na cara, né?
A garota de ontem tava lá na biblioteca de novo. Eu subi pra pegar um livro de contos
da Clarice Lispector, A Hora da Estrela, pra tentar dar uma espairecida, ler no ônibus e tal. Eu
tava procurando qual era a estante. No site eu vi que o código era B869.3 L771. Mas eu sempre
me perco nessas paradas. É uma humilhação, fico indo e vindo, finjo que tô super sabendo né,
passando a mão pelos livros da estante. Claramente uma toupeira pra quem vê de fora. Tava no
segundo andar, lá do lado da janela, e do nada ela perguntou se eu queria ajuda. Levei um susto,
coisa de romance adolescente. Disse o que tava procurando, e ela só me mostrou o livro nas
minhas costas. Falei que precisava de um óculos, ela riu, 1 x 0 pra mim.
Ela tava pondo uns livros na estante, daí eu falei, Tem gente que guarda os livros tudo
errado, né?, Sim, e é tão simples, só deixar em cima das mesinhas que a gente recolhe, É, se for
guardar é só ver a numeração também, não é tão difícil, Concordo, mas as pessoas se esforçam
pro contrário, Papo... Você trabalha aqui?, Eu sou auxiliar administrativa, mas faço
Biblioteconomia também, Maneiro, deve ser ótimo trabalhar no meio de tanto livro, Eu sou
suspeita pra falar, minha parte favorita é a seção de livros raros, documentos antigos, adoro
um papel velho, Aquele cheirinho de ácaro hmm, eu morro de alergia, E quem disse que eu
não?, Haha, guerreira... Gosta da Clarice? Adoro, já leu A Paixão Segundo G.H.? É meu
favorito, Ainda não, só uns contos mesmo, eu gosto porque são curtinhos, ela não tem um que
virou uma novela?, Laços de Família? Acho que só de nome só, mas não sei, Curte novela?,
Não haha, você gosta?, Só as mexicanas, Sério?, É, mas só às vezes... Não fazem muito meu
estilo, Ah sim, e que estilo ein... Ah, obrigada rs. "E que estilo”? Meu deus, quem fala isso?
Nada a ver, 7 x 1 pra ela. Fui sentar na mesinha. Passo umas vergonhas gratuitas que só um
tapão na fuça pra resolver.
Ela chegou na mesa e me deu um folhetinho, A gente vai ter uma exposição amanhã lá
no hall de entrada, um grupo do curso de Pedagogia vai apresentar um trabalho social, se
quiser aparecer..., Ah vou sim, tô sempre aqui, com certeza, valeu mesmo. Será que gostou de
mim? Ela só tava sendo educada. Me deu um tchauzinho, e eu fiquei ali, colocando o rosto dela
em tudo que a Clarice narrava. Mas não vou ficar alimentando essas coisas. Preciso resolver
minha cabeça primeiro, se é que eu consigo.
31/08 QUINTA: A aula da manhã me deixou com uma angústia pesada. São as primeiras aulas
de licenciatura que eu tô fazendo. Hoje foi Didática. A professora tava falando sobre educação
inclusiva. Eu acho imprescindível que se tenha uma atenção pras pessoas com deficiência, que
a gente lide com elas como qualquer outra pessoa. Inclusive, descobri que na biblioteca eles
tem vários serviços para auxílio, tem um sistema operacional de computador só pra deficiente
visual, não fazia ideia. Mas meu ponto não é esse. Eu me senti mal em sala de aula quando a
professora tava falando de neurodivergência. Eu sou neurodivergente? Não gosto muito dessa
palavra. Eu sei que não sou muito normal, mas neurodivergente parece um superpoder, parece
romantizar a coisa, pelo menos pra mim. E eu só passei a me sentir pior depois da pandemia
mesmo, não acho que seja algo intrínseco a quem eu seja, sei lá, não gosto de pensar nisso. Mas
também não consigo não lembrar da escola, de como eu era, fico pensando se não sou autista.
Não quero isso. Eu sempre fui uma pessoa meio esquisita, mas autista? Parece demais. No
fundo eu sinto um pouco de raiva dessa educação inclusiva.
Quando cheguei na exposição eram umas 14hrs, ainda não tinham começado. A menina
de biblioteconomia tava num cantinho, mas não queria chegar incomodando ela. Dei um
tchauzinho só. Basicamente, um pessoal de Pedagogia fez umas experiências com novos modos
de educação em sala de aula. Chamaram de “Projeto Aulas sem Leis”. O intuito era ver o ensino
não de um modo conteudista, mas como um instrumento de transformação, de permitir que os
alunos construam por si próprios conhecimentos técnicos e morais. Abordaram Português,
Matemática, Geografia e História, usando temas como racismo, machismo, homofobia,
xenofobia, identidades culturais. O projeto queria que as disciplinas tocassem no cotidiano dos
alunos, e não que os alunos saíssem do seu cotidiano pra aprender algo técnico e engessado, pra
passar em qualquer prova. Não foi pra isso que eu escolhi filosofia? Pra poder ajudar aos outros
como tive ajuda? A exposição foi uma amostra dos materiais que foram produzidos pelo projeto
e pelos alunos. Materializaram o conhecimento. Uma das participantes fez uma pequena
apresentação de tudo, contou uns causos também. Um deles me bateu forte. Na primeira semana
de aula, verificaram o comportamento da turma, que era violento e opressivo, de onde tiraram
então os temas a serem abordados. Depois, nas últimas aulas, pra poderem verificar se alguma
coisa havia mudado nos alunos, os tutores e professores armaram uma ceninha sem que os
alunos soubessem. Uma das professoras estava tentando explicar um exercício, enquanto outro
professor constantemente interrompia e reclamava, agindo com machismo e racismo contra a
professora. O legal foi que os alunos logo se meteram, e se colocaram ativamente contra o
professor. Pararam a apresentação e se posicionaram. Os professores revelaram o intuito da
cena, e usaram isso como método avaliativo da turma. Foda demais. O sinistro mesmo, foi
quando a apresentadora tava dizendo que um dos meninos, que era o mais quietinho e tímido,
chegou pra ela no final da aula, e disse, Tia, acho que minha mãe sofre violência doméstica.
Ele contou pra ela que o pai fazia a mesma coisa que ele tinha visto na cena com a mãe. A tutora
contou que não soube o que fazer, contou pros outros participantes do projeto, e chorou horrores
quando chegou em casa. Talvez a gente possa mesmo mudar o mundo, não sei se ele por inteiro,
mas um mundinho de cada vez com certeza.
Quando tudo terminou, resolvi falar com a menina de biblioteconomia. E aí, gostou?
Achei sensacional, queria eu ter aprendido assim na escola, não passaria tanto perrengue na
faculdade, e na vida em geral, Concordo, fiquei até animado pra dar aula, eu gosto do
magistério e já tive umas experiências, mas é tanto sofrimento que a gente repensa a carreira,
Imagino... eu não faço licenciatura né, mas ser universitário é uma batalha, a não ser que você
tenha uma herança haha, Desde que nasci tenho dois sonhos: herança e aposentadoria, e as
duas aparentemente nunca vão acontecer haha, Nem me fala... se pelo menos fosse mais simples
só trabalhar com o que a gente gosta, mas é tanto empecilho, Outro dia tava lendo um texto do
Marx sobre isso, E o que ele dizia? Ah, basicamente é um texto contra a propriedade privada,
ele fala que, Pera aí! Eu preciso resolver umas coisas lá no administração, depois a gente se
fala melhor, Você vai na calourada hoje?, Na Cantareira?, É!, Não sei, minha mãe precisa de
mim em casa, mas talvez eu apareça por lá, Vou adorar te encontrar se der, Ok rs, vou ver...
Aliás, qual seu nome? Valquíria, todo mundo me chama de Val.
Acabou que o CAFIL não fez a calourada na Canta. Acharam melhor na Orla, que a
música pros calouros não precisa competir com outras cem caixas de som ligadas no talo. Pra
ter certeza que ia encontrar ela, fiquei esperando desde as 18hrs na saída da UFF. Quando deu
oito e meia eu desisti. Voltei pelo caminho mais longo da orla, vendo aqueles casaiszinhos em
frente ao bloco H, porque todo castigo pra pobre é pouco. Quando cheguei na curva do novo
IACS, podia ver a festa acontecendo de longe. Nem sei porque tava indo pra lá ainda,
normalmente eu só teria ido embora mesmo. Confesso que eu gosto de ver festas de longe, de
ver as pessoas brincando, dançando, bebendo, a música e as luzinhas brilhando. Gosto de
capturar o acontecimento “festa” nessa distância tolerável, admirando a alegria das pessoas. No
fundo, um pouco daquela alegria passa pra mim. Não tava afim de ficar não. Contornei a festa
sem ninguém reparar, e fui sentar no banquinho de pedra embaixo daquela árvore da Orla, atrás
do bloco O.
De repente, quem toca no meu ombro? Oiê, Oi! Poxa, fiquei te procurando lá na canta,
o pessoal do meu curso mudou a nossa calourada aqui pra orla, Muito melhor, aqui é lindo e
mais tranquilo, Concordo, sempre que eu posso fico por aqui, ainda mais de noite, Acho lindo
ver o Rio, parece que as estrelas desceram do céu e ficaram presas nos prédios, Haha acho que
sim, é uma forma bonita de ver, Pena que não fico muitas vezes de noite, Eu também não, se
saio muito tarde, pego maior filão no terminal pra ir pra casa, Você é de São Gonçalo?, Sou
sim, moro no Vila Laje, perto do Espaço São Jorge, Eu moro do lado da praça da Trindade,
Pô, Zona Sul de São Gonçalo!, Quem dera haha... e por que não tá na festa?, Nah, eu gosto de
ver de longe só, não tô com cabeça pra muita gente, prefiro ficar aqui com os morceguinhos,
Te entendo, eu também não tenho estado muito bem, É, como a gente falava mais cedo né, a
faculdade chicoteia até a alma, A faculdade, a família, o mundo todo, às vezes o único lugar
que me sinto em paz é na biblioteca, onde parece que eu consigo entender a realidade, queria
que as coisas fossem mais fáceis, Eu que o diga, faço Filosofia hehe... Já descobriu os mistérios
da vida?, Só os mistérios das dúvidas, Por que escolheu Filosofia?, Minha família era muito
religiosa, e me obrigava a ser algo que eu não era, achei que deveria aprender o que era o mundo,
e tentar ajudar quem também não soubesse, mas a cada dia parece que isso importa menos, O
mundo precisa de filósofos, de historiadores, de psicólogos, de geógrafos, de professores, cada
dia que nasce uma pessoa nova, ela precisa aprender sobre o mundo que não conhece ainda,
Você tá certa, o evento na biblioteca me lembrou disso, adorei... E você? Por que escolheu
Biblioteconomia? Sempre gostei de ler, mas quando eu era mais nova minha mãe não tinha
muita condição de me dar livro, então eu vivia lá na biblioteca do Lavourão, pena que fechou,
Nunca fui lá, mas minha avó sempre fala de como era, Acho que daí eu fiquei apaixonada por
livro, eu queria mesmo era fazer Letras, mas minha mãe nunca aceitou, então Biblioteconomia
apareceu como uma alternativa com mais mercado, e eu gosto do curso, trabalhar na biblioteca
também me fez ver como a informação e a cultura podem mudar todo o lugar ao redor, É, seria
maneiro se tivéssemos mais lugares assim.
Aliás, você não tava me falando alguma coisa do Marx hoje de manhã? Ah é, haha, o
texto sobre a Alienação, Me conta o que é, Ele vê o trabalho como a essência do ser humano.
Todo animal trabalha, mas o ser humano é um bicho que tem uma capacidade muito maior pro
trabalho, porque ele tem uma consciência diferente sobre o mundo, e aplica ela no que faz. É aí
que ele se realiza, que se torna feliz. A alienação começa com a propriedade privada, porque
ela é, na verdade, a privação do trabalhador do seu produto e as ferramentas de trabalho pelo
patrão. Nessa relação de exploração, o trabalhador fica alienado do próprio trabalho, e daí da
própria essência, da natureza, e se torna um burro de carga infeliz, Que merda né, É... Nós dois
nos olhamos, e mesmo tando um breu eu vi que ela tem uns olhos cor de mel brilhantes. Rolou
uma química ali, e a gente se beijou. Fiquei meio sem saber o que fazer, Quer uma cerveja?
Pode ser... Atravessei a festa, peguei duas Brahmas, e quando voltei ela não tava mais lá.
01/02 SEXTA: Hoje fui lá na biblioteca procurar por ela. Fui na recepção e perguntei à moça
se ela conhecia a Valquíria, que usa um blackzinho e óculos redondo. Ela tomou um susto. A
Val? Conheci já tem uns 15 anos... Mas ela morreu, Oi? Como assim? Já tem bastante tempo.
A gente entrou juntas aqui na biblioteca, fazíamos o mesmo curso. Teve uns problemas com a
família e a faculdade... Acabou se matando... Não gosto de lembrar muito disso, pra falar a
verdade. Como que você sabe dela? Nada não, tá tudo bem... valeu... É, a vida é foda.

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