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Sumário

Capa
Folha de rosto
Estreia
Da palavra à escrita
Poemas
Palhaçadas
Língua materna e línguas inimigas
A morte de Stálin
A memória
Gente fora do lugar
O deserto
Como alguém se torna escritor?
A analfabeta
Ficha catalográfica
Créditos
Estreia

Leio. É como uma doença. Leio tudo o que me chega às mãos, aos
olhos: jornais, livros escolares, manifestos, pedaços de papel
achados pela rua, receitas de cozinha, livros para crianças. Tudo o
que está impresso.
Tenho quatro anos. A guerra começou agora.
Nessa época, moramos num povoado sem estação de trem, sem
eletricidade, sem água corrente, sem telefone.
Meu pai é o único professor do povoado. Leciona para todas as
turmas, do primeiro ao sexto ano. Na mesma sala. A escola é
separada da nossa casa somente pelo pátio do recreio, e suas
janelas dão para a horta de minha mãe. Quando escalo a última
janela da sala de aula, vejo toda a turma, meu pai à frente, em pé,
escrevendo no quadro.
A sala do meu pai cheira a giz, à tinta, a papel, a sossego, a
silêncio, à neve, mesmo no verão.
A grande cozinha de minha mãe cheira a animal abatido, à
carne cozida, a leite, à geleia, a pão, à roupa úmida, a xixi de bebê,
à agitação, a barulho, a calor de verão, mesmo no inverno.
Quando o tempo não nos permite brincar do lado de fora,
quando o bebê grita mais alto do que o normal, quando meu
irmão e eu arrumamos muita bagunça e barulho na cozinha,
mamãe nos despacha ao nosso pai para uma “punição”.
Saímos de casa. Meu irmão para diante da cabana onde
guardamos a lenha para o aquecimento:
— Prefiro ficar aqui. Quero cortar um pouco de lenha.
— Sim. Mamãe ficará feliz.
Cruzo o pátio, entro na sala de aula, paro diante da porta, abaixo
os olhos. Meu pai fala:
— Vem aqui.
Aproximo-me. Digo ao ouvido dele:
— Castigada… Mamãe…
— Nada mais?
Ele me pergunta “nada mais?” porque às vezes tem um
bilhetinho que a mamãe pede para eu lhe entregar sem dizer
nada, ou alguma palavra que preciso pronunciar: “médico”,
“urgência”, e às vezes somente um número: 38 ou 40. Tudo isso
por conta do bebê que sempre tem alguma doença infantil.
Digo para ele:
— Não. Nada mais.
Ele me dá um livro com algumas imagens:
— Senta lá.
Vou ao fundo da sala, onde sempre sobra algum lugar vazio
atrás dos maiores.
E é assim que, desde muito jovem, sem perceber e
absolutamente por acaso, sou atingida pela doença incurável da
leitura.
Quando visitamos os pais de minha mãe que moram numa
cidade vizinha, em uma casa com luz e água, meu avô me pega
pela mão e juntos damos uma volta na vizinhança.
O vô retira um jornal do bolso de sua sobrecasaca e diz para os
vizinhos:
— Vejam! Escutem!
E para mim:
— Leia.
E eu leio. Fluentemente, sem erros, na velocidade que eles
querem.
Tirando esse orgulho típico de avô, a doença da leitura me
acarretará principalmente críticas e desprezo:
“Nunca faz nada. Ela só lê.”
“Não sabe fazer outra coisa a não ser isso.”
“É a ocupação mais inerte que existe.”
“É pura preguiça.”
E principalmente: “Ela lê, em vez de…”
Em vez de quê?
“Existem tantas coisas mais úteis, não é?”
Mesmo agora, de manhã, quando a casa se esvazia e todos os
vizinhos vão trabalhar, me sinto um pouco culpada pelo fato de
ficar na mesa da cozinha lendo os jornais por horas a fio, em vez
de… Fazer faxina, lavar a louça da véspera, ir ao mercado, lavar e
passar a roupa, fazer uma geleia ou algum bolo…
E, principalmente, principalmente!, em vez de escrever.
Da palavra à escrita

Ainda sou muito pequena e já gosto de contar histórias. Histórias


inventadas por mim.
Às vezes a vó vem da cidade, vem nos visitar e ajudar a mamãe.
De noite é a vó que nos põe na cama, tentando nos fazer dormir
com contos que já ouvimos centenas de vezes.
Eu desço da cama e falo para a vó:
— Deixa que eu conto as histórias, não você.
Ela me senta em seus joelhos, me acalenta:
— Conta, então, conta.
Começo com uma frase, uma qualquer, e o resto vem por si só.
Aparecem as personagens, eles morrem ou somem. Há os bons e
os malvados, os pobres e os ricos, os vencedores e os vencidos. É
uma coisa que nunca acaba, e continuo gaguejando nos joelhos
da vó:
— Daí… Daí…
A vó me põe em minha caminha, abaixa o pavio da lamparina e
vai para a cozinha.
Meus irmãozinhos dormem, eu também adormeço e em meus
sonhos a história continua bela e aterrorizante.
Mas aquilo de que mais gosto é contar histórias para Tila, meu
irmão menor. É o preferido da mamãe. Ele é três anos mais novo
do que eu, portanto, acredita em tudo que lhe digo. Por exemplo,
eu o levo a um canto do quintal e pergunto para ele:
— Quer que eu te conte um segredo?
— Qual segredo?
— O segredo do teu nascimento.
— Não tem nenhum segredo sobre meu nascimento.
— Tem sim. Mas só te conto se você prometer não falar disso
com ninguém.
— Prometo.
— Bom, o fato é que você é adotado. Você não pertence à nossa
família. Foi encontrado num campo, abandonado, todo nu.
Tila fala:
— Não é verdade.
— Meus pais um dia vão te contar, quando você crescer. Se você
soubesse como sentimos compaixão por você, tão magro, tão nu.
Tila começa a chorar. Eu o pego no colo:
— Não chore. Te amo como se fosse meu irmão de verdade.
— Assim como ama Yano?
— Quase. Afinal, Yano é realmente meu verdadeiro irmão.
Tila fica pensativo:
— Então, por que tenho o mesmo sobrenome de vocês? E por
que mamãe quer mais a mim do que a vocês dois? Você e o Yano
continuam recebendo punições. Eu nunca.
Eu lhe explico:
— Você tem o mesmo sobrenome porque te adotamos
oficialmente. E se mamãe é mais gentil com você do que com a
gente, é porque ela quer te mostrar que não faz nenhuma
diferença entre você e os verdadeiros filhos dela.
— Mas eu sou filho verdadeiro dela!
Tila grita, correndo em direção à casa:
— Mamãe! Mamãe!
Corro atrás dele:
— Você jurou não dizer nada. Eu estava brincando.
Tarde demais. Tila chega na cozinha e se joga nos braços da
mamãe:
— Diz que sou teu filho. Teu verdadeiro filho. Que você é minha
verdadeira mamãe.
Sou punida, naturalmente, por ter contado besteiras. Me
ajoelho sobre uma espiga de milho num canto do quarto. Pouco
depois chega Yano com outra espiga de milho, se ajoelhando ao
meu lado.
Pergunto:
— Por que você foi punido?
— Não sei. Só fiz um carinho na cabeça do Tila, dizendo: “Te amo,
bastardinho”.
Rimos. Sei que fez aquilo de propósito para ser punido, por
solidariedade, e porque sem mim ele se aborrece.
Ainda contarei outras besteiras para o Tila, e tento fazer o
mesmo com o Yano também, mas ele não acredita em mim
porque é um ano mais velho.
A vontade de escrever chegará mais tarde, quando será
quebrado o fio prateado da infância, quando virão dias cruéis, e
chegarão os anos que eu poderia definir como “não amados”.
Quando, separada dos meus pais e dos meus irmãos, entrarei
num colégio numa cidade desconhecida, onde, para superar a
dor da separação, não me restará nada a não ser uma solução:
escrever.
Poemas

Tenho 14 anos quando entro no colégio. Yano está no colégio já


faz um ano, mas em outra cidade. Tila ainda está com a mamãe.
Não é um colégio para garotas ricas, pelo contrário. É uma coisa
entre o quartel e o convento, entre o orfanato e o reformatório.
Somos mais ou menos 200 garotas entre 14 e 18 anos
hospedadas e alimentadas gratuitamente pelo Estado.
Os dormitórios contêm de 10 a 20 pessoas, em beliches com
colchões e cobertores cinza. Nossos armários estreitos, de metal,
ficam no corredor.
Uma campainha nos acorda às seis da manhã, e uma
supervisora sonolenta vem checar os quartos. Algumas alunas se
escondem debaixo das camas, outras descem correndo para o
jardim. Após três voltas no jardim, a gente faz 10 minutos de
exercícios físicos, e logo voltamos para dentro, sempre correndo.
Nos lavamos com água fria, nos vestimos, descemos para a sala
de jantar. Nosso café da manhã é um café com leite e uma fatia de
pão.
Entrega do correio do dia anterior: cartas abertas pela direção.
Justificativa:
“São menores de idade. Representamos seus pais.”
Às sete e meia vamos para a escola em filas apertadas, entoando
cantos revolucionários por toda a cidade. Garotos param diante
da nossa passagem, assobiam e nos gritam palavras de admiração
ou vulgares.
Ao chegarmos da escola, comemos e depois vamos para as salas
de estudo, onde permanecemos até o jantar.
Nas salas de estudo é exigido um silêncio absoluto.
O que fazer durante essas longas horas? Os deveres de casa,
claro, mas os resolvemos rápido, porque são totalmente
desinteressantes. Podemos também fazer alguma leitura, mas os
únicos livros que temos são de “leitura obrigatória”, e são de
leitura rápida, até porque esses livros, em sua maioria, também
são totalmente desinteressantes.
Então, nessas horas de silêncio obrigatório, começo a redigir
uma espécie de diário, até invento uma escrita secreta para que
ninguém possa lê-lo. Nele anoto minha infelicidade, minhas
aflições, minhas tristezas, tudo aquilo que de noite me faz chorar
baixinho em minha cama.
Choro pela perda dos meus irmãos, dos meus pais, da nossa
casa, agora habitada por estrangeiros.
Choro principalmente pela minha liberdade perdida.
Temos, sim, a liberdade de receber visitas nas tardes de
domingo, no “salão” do colégio, inclusive a visita de garotos, com
a presença de uma supervisora. Temos até a liberdade de passear,
inclusive, com os garotos, domingo à tarde, mas somente na rua
principal da cidade. E na mesma rua passeia uma supervisora.
Mas não tenho a liberdade de visitar meu irmão Yano, que se
encontra somente a 20 quilômetros daqui, na mesma situação
que eu, e que também não pode me visitar. Somos proibidos de
deixar a cidade, e, de qualquer forma, não temos dinheiro para o
trem.
Choro também a minha infância, a nossa infância, a de nós três,
de Yano, de Tila e a minha.
Foram-se as corridas de pés descalços no bosque, na terra
úmida, até a “pedra azul”; foram-se as árvores pelas quais subir,
das quais cair quando um galho podre se quebra; foi-se o Yano,
que ajudava a me levantar; foram-se os passeios noturnos sobre
os telhados; foi-se o Tila para nos denunciar à mamãe.
No colégio, as luzes se apagam às 10 da noite. Uma supervisora
controla os quartos.
Leio mais um pouco, sempre que tenho algo para ler, à luz do
poste da rua, depois, enquanto adormeço entre lágrimas, nascem
frases no meio da noite. Dão voltas ao meu redor, cochichando,
pegam um ritmo, algumas rimas, cantam, viram poemas:

“Ontem, tudo era mais bonito,


A música entre os galhos
O vento entre meus cabelos
E entre tuas mãos inclinadas
O Sol.”
Palhaçadas

Os anos 1950. Tirando alguns privilegiados, todos são pobres em


nosso país. Alguns, inclusive, mais pobres do que outros.
No internato somos mantidas, certamente. Temos o que comer
e temos um teto, mas a comida é tão ruim e insuficiente que
vivemos com fome. No inverno, sentimos frio. Na escola,
vestimos nossos casacos, e a cada 15 minutos nos levantamos e
fazemos exercícios para nos aquecermos. Nos dormitórios
também faz tanto frio quanto, dormimos de calça, e quando
subimos para as salas de estudo, temos de pegar as cobertas.
Naquela época, eu vestia o velho casaco do Yano, pequeno
demais para ele, um casaco preto, sem botões, rasgado do lado
esquerdo.
Um amigo me dirá um dia:
— Como eu admirava você com seu casaco preto sempre aberto,
mesmo no inverno.
No caminho para a escola, carrego também a pasta de uma
amiga porque não tenho uma que é só minha, e dessa forma
coloco meus cadernos e meus livros na pasta dela. A pasta é
pesada e meus dedos congelam porque não tenho luvas.
Também não tenho lápis nem caneta, nem roupa de ginástica.
Pego tudo emprestado.
Inclusive os sapatos, sempre que preciso levar os meus para o
sapateiro para que os conserte.
Preciso ficar de cama três dias por conta do sapateiro. Não
posso dizer para a diretora do colégio que não tenho outro par de
sapatos para ir à escola. Digo a ela que estou passando mal e ela
acredita em mim, porque sou uma boa aluna. Ela põe a mão na
minha testa e diz:
— Você está com febre. No mínimo 38. Se cubra bem.
Eu me cubro bem. Mas como farei para pagar o sapateiro? Pedir
dinheiro para os meus pais, nem pensar. Papai está na prisão e há
anos não temos notícias dele. Mamãe trabalha onde consegue.
Ela mora num só quarto com o Tila, às vezes os vizinhos deixam
que ela utilize a cozinha.
Durante um breve período, mamãe trabalha na mesma cidade
onde estou estudando. Uma vez, voltando da escola, vou visitá-la.
É um porão apertado onde uma dezena de mulheres, sentadas ao
redor de uma mesa grande, estão empacotando veneno de rato à
luz de uma lâmpada elétrica.
Minha mãe pergunta:
— Está tudo bem?
Respondo:
— Sim, está tudo bem. Não se preocupe.
Ela não me pergunta se preciso de algo, de qualquer forma
acrescento:
— Não estou precisando de nada. E como está o Tila?
Mamãe diz:
— Ele está bem. Vai entrar no internato, ele também, este
outono.
Não temos mais nada para nos dizer. Gostaria de lhe dizer que
consertei os sapatos, que o sapateiro fez um crédito para mim,
que preciso pagá-lo o quanto antes, mas olhando para seu velho
vestido puído, suas luvas sujas de veneno, não consigo lhe dizer
nada disso. Dou-lhe um beijo, vou embora, não volto mais.
Para ganhar algum dinheiro, organizo um espetáculo na escola,
durante o recreio que dura 20 minutos. Escrevo algumas cenas
que, junto com duas ou três amigas, aprendemos rapidinho; às
vezes até acontece de improvisarmos cenas novas. Minha
especialidade é imitar os professores. De manhã avisamos
algumas turmas, no dia seguinte, outras. O preço da entrada é o
equivalente ao preço de um croissant que a zeladora vende
durante os recreios.
O espetáculo vai bem, temos um sucesso enorme, o público é
todo um empurra-empurra, amontoando-se até o corredor. Tem
até professores que vêm nos assistir, o que, por vezes, me obriga a
mudar subitamente o professor que vou imitar.
Repito a experiência também no pátio do colégio, com outras
amigas, outras cenas. De noite, andamos de dormitório em
dormitório, somos convidadas, nos imploram para que vamos,
nos preparam festinhas com os pacotes que as filhas dos
agricultores recebem de seus pais. Nós, as atrizes, aceitamos
indiferentemente dinheiro ou comida, mas nossa melhor
recompensa continua sendo a alegria de provocar o riso.
Língua materna e línguas inimigas

No começo, só havia uma língua materna. Os objetos, as coisas, os


sentimentos, as cores, os sonhos, as letras, os livros, os jornais,
eram aquela língua.
Nunca imaginaria que pudesse existir outra língua, que um ser
humano pudesse pronunciar palavras que eu não conseguiria
entender.
Na cozinha da minha mãe, na escola do meu pai, na igreja do tio
Guéza, nas ruas, nas casas do vilarejo e, inclusive, na cidade dos
meus avós, todos falavam a mesma língua, e nem existia o
problema de outras línguas.
Diziam que os ciganos, que ficavam na fronteira do vilarejo,
falavam outra língua, mas eu achava que não era uma língua
verdadeira, devia ser uma língua inventada que só falavam entre
eles, exatamente como a gente fazia, Yano e eu, quando
falávamos de forma que o Tila não nos entendesse.
Eu acreditava, inclusive, que os ciganos faziam isso porque nas
tabernas da vila havia copos marcados, copos especiais somente
para eles, porque ninguém queria beber num copo em que um
cigano tivesse bebido.
Também diziam que os ciganos roubavam as crianças. Claro,
roubavam muitas coisas, mas passando em frente às suas casas
de argila e vendo o número incrível de crianças que brincavam ao
redor daquelas barracas, a gente se perguntava por que teriam
que roubar outras crianças. Aliás, quando os ciganos vinham ao
nosso povoado para vender suas cerâmicas, suas cestas de junco
entrelaçado, eles falavam “normalmente” a mesma língua que
nós falávamos.
Eu tinha nove anos quando nos mudamos. Fomos morar numa
cidade de fronteira onde pelo menos um quarto da população
falava a língua alemã. Para nós, húngaros, tratava-se de uma
língua inimiga, porque nos lembrava a dominação austríaca, e era
também a língua dos soldados estrangeiros que naquela época
ocupavam nosso país.
Um ano depois, eram outros militares estrangeiros que
ocupavam nosso país. A língua russa se tornou obrigatória nas
escolas e as outras línguas estrangeiras foram proibidas.
Ninguém conhece russo. Os professores de línguas estrangeiras
— alemão, inglês, francês — começam a frequentar cursos
intensivos de russo durante alguns meses, mas não podemos
dizer que o aprendem de fato, e acabam não tendo vontade
nenhuma de ensiná-lo. De qualquer forma, os estudantes não
têm vontade nenhuma de aprendê-lo.
O que acontece é uma sabotagem intelectual nacional, uma
resistência natural passiva, não combinada, em movimento
autônomo.
Com a mesma falta de entusiasmo, ensina-se e aprende-se a
geografia, a história e a literatura da União Soviética. Das escolas,
sai uma geração de ignorantes.
É assim como, com 21 anos, ao chegar na Suíça, e absolutamente
por acaso numa cidade onde se fala francês, encaro uma língua
para mim totalmente desconhecida. É aqui onde começa minha
luta para conquistar essa língua, uma luta longa e acirrada, que
por certo durará por toda a minha vida.
Falo francês há mais de 30 anos, o escrevo há 20, mas ainda não
o conheço. Não consigo falar sem erros, e só consigo escrever
com a ajuda de um dicionário que consulto frequentemente.
É por essa razão que defino a língua francesa também como
sendo uma língua inimiga. Mas tem outra razão, a mais grave: essa
língua está matando minha língua materna.
A morte de Stálin

Março de 1953. Stálin está morto. Sabemos disso desde ontem à


noite. No colégio, a tristeza é obrigatória. Vamos dormir sem
trocar uma palavra. De manhã, perguntamos:
— Sem aula hoje?
A supervisora fala:
— Não. Vão para a escola como sempre. Mas sem cantar.
Vamos para a escola como sempre, em fila, mas sem cantar. Nos
prédios, esvoaçam bandeiras vermelhas e bandeiras pretas.
Nosso professor está nos esperando. Ele fala:
— Às 11 vai tocar a campainha da escola. Vocês vão ficar de pé
para fazer um minuto de silêncio. Enquanto isso, vão escrever
uma redação cujo título será: “A morte de Stálin”. Nessa redação,
devem escrever tudo aquilo que o companheiro Stálin foi para
vocês. Primeiro um pai, depois um farol luminoso.
Uma aluna começa a soluçar. O professor fala:
— Controle-se, senhorita. Estamos todos muito tristes, de
alguma forma. Vamos tentar dominar a dor. Haja vista o estado de
choque no qual todos vocês se encontram nesse momento, suas
redações não receberão uma nota.
Escrevemos. O professor passeia pela sala, as mãos nas costas.
Toca uma campainha, nos levantamos. O professor olha para
seu relógio. Esperamos. Deveriam tocar também as sirenes da
cidade. Uma garota próxima à janela olha para a rua e diz:
— É só a campainha da lixeira.
Sentamos novamente, dando risinhos.
A campainha da escola e as sirenes da cidade tocam pouco
depois, nos levantamos de novo, mas ainda estamos rindo por
causa da lixeira. Permanecemos assim, de pé, por um longo
minuto, atravessadas por um riso silencioso, o professor ri
conosco.
Guardei no bolso a fotografia colorida do Stálin por vários anos,
mas no momento da sua morte, já tinha entendido porque minha
tia havia rasgado essa foto durante um tempo em que fiquei em
sua casa.
O doutrinamento era grande e particularmente eficaz sobre as
mentes jovens. Rudolf Nureyev, o grande bailarino russo
dissidente, relata: “No dia da morte de Stálin, saí, fui para o
campo. Esperei que acontecesse alguma coisa extraordinária,
que a natureza respondesse à tragédia. Nada. Nenhum terremoto,
nenhum sinal”.
Não. O “terremoto” chegou somente 36 anos depois, e não foi
uma resposta da natureza, mas do povo. Tivemos que esperar
tantos anos para que o “Pai” de todos nós morresse de vez, para
que o nosso “farol luminoso” se apagasse, para sempre, e tomara
que assim seja.
Quantas vítimas tinha em sua consciência? Ninguém sabe. Na
Romênia, ainda contamos os mortos; na Hungria, houve 30 mil
mortos em 1956. O que nunca será possível quantificar é o papel
nefasto que a ditadura teve para a arte e para a literatura nos
países do Leste. Impondo sua própria ideologia, a União Soviética
não só impediu o desenvolvimento econômico desses países
como tentou sufocar suas culturas e suas identidades nacionais.
Pelo que sei, nenhum escritor russo dissidente jamais abordou
ou mencionou esse assunto. O que eles pensam a respeito, eles,
que tiveram que sofrer com o próprio tirano, o que pensam
daqueles “pequenos países sem importância” que, além do mais,
tiveram que sofrer com uma dominação estrangeira, a deles. A do
próprio país? É algo pelo qual sentem ou sentirão algum dia
vergonha?
Nesse ponto, não consigo não pensar em Thomas Bernhard, o
grande escritor austríaco, que nunca parou de criticar e fustigar —
com ódio e amor, e também com humor — seu país, sua época, a
sociedade na qual vivia.
Ele morreu no dia 12 de fevereiro de 1989. Para ele, nada de lutos
nacionais ou internacionais, nem falsas lágrimas, nem lágrimas
verdadeiras, talvez. Somente seus leitores apaixonados, entre os
quais me incluo, perceberam a imensa perda para a literatura:
Thomas Bernhard já não escrevia. Pior ainda: proibiu que fossem
publicados os manuscritos que deixou para trás.
Trata-se do último “não” à sociedade por parte do genial autor
do livro intitulado Sim. Esse livro está aqui, diante de mim, na
mesa com Béton, O náufrago, O imitador de vozes, Árvores abatidas,
entre outros. Sim é o primeiro livro dele que li. Emprestei para
vários amigos, dizendo que nunca rira tanto lendo um livro. Me
devolveram sem chegar até o fim, de tão “desmoralizante” e
“insustentável” lhes pareceu a leitura. Quanto ao aspecto
“cômico” do texto, eles não conseguiam mesmo encontrá-lo.
É verdade que seu conteúdo é terrível, porque esse “sim” é um
“sim”, porém um “sim” para a morte, por isso um “não” à vida.
No entanto, querendo ou não, Thomas Bernhard viverá
eternamente como exemplo para todos aqueles que pretendem
ser escritores.
A memória

Fico sabendo pelos jornais e pela televisão que uma criança turca
de 10 anos morreu de frio e de exaustão enquanto tentava
atravessar clandestinamente a fronteira suíça junto a seus pais.
Os “coiotes” os deixaram perto da fronteira. Eles só tinham que
andar sempre em frente em linha reta até chegarem ao primeiro
vilarejo suíço. Caminharam por longas horas pelas montanhas e
florestas. Fazia frio. Lá pelo fim, o pai colocou a criança no ombro.
Mas já era tarde demais. Quando chegaram ao vilarejo, a criança
estava morta de cansaço, de frio e de exaustão.
Minha primeira reação é aquela de qualquer suíço: “Mas como
as pessoas se atrevem a se aventurar em situações assim com
crianças? Uma irresponsabilidade desse tipo é inadmissível”. O
contragolpe é violento e imediato. Um vento frio de fim de
novembro insinua-se no meu quarto bem aquecido, e a voz da
memória se ergue em mim com perplexidade: “Como? Você já se
esqueceu de tudo? Você fez a mesma coisa, exatamente a mesma
coisa. E a criança que você carregou era quase um recém-
nascido.”
Sim, eu me lembro.
Estou com 21 anos. Casada faz dois anos, e tenho uma menina
de quatro meses. Atravessamos a fronteira entre a Hungria e a
Áustria numa tarde de novembro, precedidas por um “coiote”. Ele
se chama Joseph, o conheço bem.
Formamos um grupo composto por uma dezena de pessoas,
entre as quais algumas crianças. Minha filhinha dorme nos braços
de seu pai, eu carrego duas bolsas. Numa bolsa estão as
mamadeiras, algumas fraldas, algumas mudas de roupa para a
pequena; na outra bolsa, dicionários. Caminhamos em silêncio
atrás de Joseph por mais ou menos uma hora. A escuridão é
quase total. Às vezes, feixes luminosos e faróis iluminam tudo,
ouvimos estalidos, disparos, logo recaímos no silêncio e na
escuridão.
No limiar do bosque, Joseph para e nos diz:
— Agora vocês estão na Áustria. Só precisam seguir em frente
sempre em linha reta. O vilarejo não fica longe.
Dou um abraço em Joseph. Entregamos a ele todo o dinheiro
que temos, até porque esse dinheiro não teria valor nenhum na
Áustria.
Caminhamos pela floresta. Por muito tempo. Tempo demais. Os
galhos ferem nossos rostos, caímos nos buracos, folhas mortas
nos encharcam os sapatos, torcemos os tornozelos nas raízes.
Alguém liga uma lâmpada de bolso, mas serve somente para
iluminar pequenos círculos, e árvores, árvores sempre. Contudo,
já deveríamos estar fora da floresta. Temos a impressão de andar
em círculos.
Uma criança diz:
— Estou com medo. Quero voltar para casa. Quero deitar na
minha cama.
Outra criança chora. Uma mulher diz:
— Estamos perdidos.
Um jovem diz:
— Vamos parar. Se continuarmos assim, acabaremos voltando
para a Hungria, se é que já não voltamos. Não se mexam. Vou lá
ver.
Sabemos todos o que isso significa, voltar para a Hungria: a
prisão, por termos cruzado de forma ilegal a fronteira, ou mesmo
sermos alvejados pelos guardas de fronteira russos, bêbados.
O jovem sobe numa árvore. Quando volta, diz:
— Entendi onde estamos. Me orientei pelas luzes. Sigam-me.
Nós o seguimos. Pouco depois, a floresta se dissipa e
começamos finalmente a caminhar numa verdadeira trilha, sem
galhos, sem buracos, sem raízes.
Subitamente somos iluminados por uma luz violenta, e uma
voz diz:
— Parem!
Alguém de nós diz em alemão:
— Somos refugiados.
Os guardas de fronteira austríacos respondem, rindo:
— Já sabíamos disso. Venham conosco.
Eles nos levam até a praça do vilarejo, onde há uma multidão de
refugiados. Chega o prefeito:
— Deem um passo adiante aqueles que estão com crianças.
Somos hospedados por uma família de camponeses. São muito
cordiais. Se ocupam da pequena, nos dão comida, nos dão uma
cama.
O curioso são as poucas lembranças que tenho disso tudo.
Como se tudo tivesse acontecido num sonho, ou numa outra
vida. Como se minha memória se recusasse a lembrar o
momento em que perdi uma grande parte de minha vida.
Deixei na Hungria o meu diário com a escrita secreta, assim
como meus primeiros poemas. Deixei lá meus irmãos, meus pais,
sem avisá-los, sem me despedir deles, sem sequer dizer até logo.
Mas principalmente, naquele dia, naquele dia de final de
novembro de 1956, perdi definitivamente meu pertencimento a
um povo.
Gente fora do lugar

Do vilarejo austríaco onde chegamos da Hungria, pegamos um


ônibus para Viena. Quem nos paga o bilhete é o prefeito. Durante
toda a viagem minha filhinha dorme nos meus joelhos. À beira da
estrada, desfilam os meios-fios luminosos. Nunca antes tinha
visto meios-fios luminosos.
Quando em Viena, encontramos uma delegacia da polícia para
nos apresentarmos. Lá dentro, num quarto da delegacia, troco as
fraldas da pequena, dou-lhe a mamadeira. Ela vomita. Os agentes
nos dão o endereço de um centro para refugiados e nos indicam a
linha do bonde que nos levará de graça até lá. No bonde, algumas
senhoras bem-vestidas pegam meu bebê no colo e enfiam
dinheiro em meu bolso.
O centro de refugiados é um prédio de grandes dimensões, que
antes poderia ter sido uma fábrica ou um quartel. Em salas
enormes, colchões de palha foram colocados diretamente no
chão. Há chuveiros coletivos e uma grande sala de jantar. Na
entrada dessa sala há uma lousa onde foram fixados anúncios de
procura. As pessoas procuram parentes, amigos perdidos
enquanto atravessavam a fronteira, ou antes, ou depois, na
cidade de Viena, ou entre a multidão e o caos do centro para
refugiados.
Meu marido, como todos os outros, passa o dia nos escritórios
das diferentes embaixadas, esperando encontrar um país que nos
acolha. Eu fico com a criança que, deitada no colchão, faz seus
gorjeios brincando com os fios de palha. Sou obrigada a aprender
algumas palavras em alemão para poder pedir o essencial à
minha filha. Levo ela comigo no colo enquanto vou à grande
cozinha do centro e falo para aquele que ali dentro parece ser o
chef: “Milch für Kinder, bitte”. Ou: “Seife für Kinder”. Ele sempre
me dá pessoalmente aquilo que lhe peço.
O Natal se aproxima quando pegamos o trem para a Suíça. Há
galhos de pinheiro nas prateleiras debaixo das janelas do trem,
com chocolate e laranjas. É um trem especial. Salvo os
acompanhantes, os viajantes são todos húngaros, e o trem para
somente na fronteira suíça. Uma vez lá, somos acolhidos por uma
fanfarra, e algumas mulheres gentis nos passam pela janela copos
de chá quente, chocolate e laranjas.
Chegamos a Lausanne. Somos alojados num quartel que fica na
parte alta da cidade, perto de um campo de futebol. Jovens
mulheres vestidas como soldados pegam as crianças com
sorrisos tranquilizadores. Homens e mulheres são separados para
tomar banho. Levam nossa roupa para desinfetá-la.
Os que, entre nós, já viveram uma situação parecida, vão
confessar, tempos depois, que sentiram medo. É para todos um
alívio nos reencontrarmos pouco depois e, principalmente,
reencontrar nossos filhos, lavados e bem-nutridos. Minha filha
dorme tranquila perto de minha cama, num berço bonito que ela
nunca teve.
No domingo, depois do jogo de futebol, os espectadores vêm
olhar para nós, do outro lado da cerca do quartel. Nos oferecem
chocolate e laranjas, naturalmente, mas também cigarro e até
dinheiro. Isso não lembra muito os campos de concentração, mas
um zoológico. Os mais pudicos entre nós evitam sair no pátio,
outros passam o tempo estendendo a mão através da cerca e
comparando seus butins.
Várias vezes por semana chegam alguns industriais para
procurar mão de obra. Alguns dos nossos amigos e conhecidos
encontram um trabalho e uma pousada. Vão embora, nos
deixando seus endereços.
Após transcorrer um mês em Lausanne, passamos outro mês
em Zurique, alojados numa escola florestal. Nos dão aula de
línguas, mas posso frequentá-las raramente, por causa da criança.
Como teria sido minha vida se não tivesse deixado meu país?
Mais dura, mais pobre, penso, mas menos solitária, menos
lacerada, talvez feliz.
O certo é que eu teria escrito, em qualquer lugar, em qualquer
língua.
O deserto

Do centro de refugiados de Zurique, somos “distribuídos” para


vários cantos da Suíça. É dessa forma, totalmente casual, que
chegamos até Neuchâtel, mais exatamente em Valangin, onde
nos espera um apartamento de dois cômodos mobiliado pelos
moradores do lugar. Algumas semanas depois começo a trabalhar
numa fábrica de relógios em Fontainemelon.
Levanto às cinco e meia. Amamento e logo visto minha
pequena, me visto eu também e vou pegar o ônibus das seis e
meia, que me leva até à fábrica. Deixo minha filha na creche e
entro na fábrica. Saio às cinco da tarde. Busco minha filha na
creche, pego o ônibus de volta para casa. Faço compras na
mercearia do vilarejo, ligo a lareira (não tem aquecimento central
no apartamento), arrumo a janta, ponho a criança na cama, lavo a
louça, escrevo um pouco e logo vou deitar também.
Para escrever poesia, a fábrica é ótima. O trabalho é monótono,
é possível pensar em outra coisa, e as máquinas têm um ritmo
regular que cadencia os versos. Tenho um papel e um lápis na
minha gaveta. Quando o poema pega forma, anoto. De noite,
passo tudo a limpo num caderno.
Na fábrica trabalha uma dezena de húngaros. Nos encontramos
na cantina durante a pausa do meio-dia, mas a comida é tão
diferente daquela com a qual estamos acostumados que não
comemos quase nada. Quanto a mim, por um ano pelo menos, no
almoço não como nada a não ser pão e café com leite.
Na fábrica, todos nos tratam bem. Sorriem para nós, falam
conosco, mas não entendemos nada.
É aqui onde começa o deserto. Deserto social, deserto cultural.
À exaltação dos dias da revolução e da fuga, se sucedem o
silêncio, o vazio, a nostalgia dos dias em que tínhamos a
impressão de estar participando de algo importante, talvez
histórico, a saudade de casa, a falta que fazem a família e os
amigos.
Esperávamos alguma coisa vindo aqui. Não sabíamos o que
esperar, mas com certeza não isso: esses dias cinza de trabalho,
essas noites silenciosas, essa vida contraída, sem mudança, sem
surpresa, sem esperança.
Do ponto de vista material, vivemos um pouco melhor do que
antes. Temos dois quartos ao invés de um só. Temos carvão e
comida suficientes. Mas em comparação com aquilo que
perdemos, é um preço alto demais.
No ônibus da manhã, o fiscal senta perto de mim, de manhã é
sempre o mesmo, um sujeito grandalhão e jovial, ele fala comigo
durante todo o trajeto. Não que eu o entenda muito bem, mas
entendo que ele quer me tranquilizar explicando-me que os
suíços nunca permitirão que os russos cheguem até aqui. Diz que
não preciso mais ter medo, que não preciso mais ficar triste, que
agora estou protegida. Sorrio, não posso lhe dizer que não tenho
medo dos russos, e que, se estou triste, é pela minha grande
segurança atual, e porque não há nada a fazer ou a pensar a não
ser o trabalho, a fábrica, as compras, a roupa para lavar, a cozinha,
e não há nada a esperar a não ser os domingos para dormir e
sonhar um pouco mais com meu país.
Como lhe explicar, sem ofendê-lo, e com as poucas palavras que
sei em francês, que seu lindo país é apenas um deserto para nós
refugiados, um deserto que temos que atravessar para chegar
àquela que chamam “a integração”, “a assimilação”. Naquele
momento eu ainda não sei que vários entre nós não
conseguiriam chegar até lá.
Dois de nós voltaram para a Hungria apesar da condenação à
prisão que os esperava. Dois outros, jovens solteiros, foram
embora para mais longe, para os Estados Unidos, para o Canadá.
Outros quatro mais longe ainda, no lugar mais distante de todos,
para além da grande fronteira. Essas quatro pessoas, conhecidos
meus, se mataram nos dois primeiros anos do nosso exílio. Uma
por meio de soníferos, outra com gás, outras duas enforcando-se.
A mais nova tinha 18 anos. Se chamava Gisèle.
Como alguém se torna escritor?

Primeiramente, é claro, é preciso escrever. Em seguida, é preciso


continuar escrevendo. Inclusive quando não interessa a
ninguém. Inclusive quando temos a impressão de que nunca
interessará a ninguém. Inclusive quando os manuscritos se
acumulam nas gavetas e nós os esquecemos, mesmo
continuando a escrever outros.
Ao chegar à Suíça, minhas esperanças de me tornar uma
escritora eram quase nulas. Publicava, sim, alguns poemas numa
revista húngara, mas minhas chances, minhas possibilidades de
ser publicada, acabavam aí. E quando, após muitos anos de
teimosia, consegui terminar duas peças de teatro em língua
francesa, não sabia muito bem o que fazer com elas, para onde
enviá-las, a quem mandá-las.
Minha primeira peça encenada, intitulada John e Joe, foi
montada num bistrô, no Café du Marché de Neuchâtel. Às sextas
e aos sábados, após a janta, alguns atores amadores organizavam
“noites de cabaret”. Assim começou minha “carreira” como
dramaturga. O sucesso dessa peça, encenada por diversos meses,
na época me deu uma grande alegria e me encorajou para
continuar a escrever.
Dois anos depois, outra peça de minha autoria foi encenada no
teatro La Tarentule, em Saint-Aubin, um povoado perto de
Neuchâtel. Quem recita são sempre atores amadores.
Minha “carreira” parece terminar aqui, e minhas dezenas de
manuscritos amarelam lentamente numa estante. Felizmente,
alguém me aconselha a enviar meus textos para o rádio, e é o
começo de outra “carreira”, a de autora radiofônica. Aqui, meus
textos já vêm encenados, ou melhor, lidos por atores profissionais
e recebo verdadeiros direitos autorais. Entre 1978 e 1983, a Rádio
da Suíça francesa produz cinco das minhas peças, até recebi uma
encomenda por ocasião do ano da criança.
Ainda assim, não abandono o teatro. Em 1983, aceito trabalhar
com a escola de teatro do Centro cultural de Neuchâtel. Meu
trabalho consiste em escrever uma peça sob medida para 15
alunos. É um trabalho de que gosto muito e acompanho todos os
ensaios.
Normalmente, as aulas começam com todo tipo de exercício
físico. Esses exercícios me lembram aqueles que fazíamos
quando crianças, meu irmão e eu, ou eu e uma amiga. Exercícios
de silêncio, de imobilidade, de jejum… Começo a escrever textos
breves sobre minhas lembranças da infância. Nem sequer
imaginava que esses textos um dia se tornariam um livro. No
entanto, dois anos depois, tenho sobre minha mesa de trabalho
um grande caderno que contém uma história coerente, com um
começo e um fim, como um verdadeiro romance. Ainda é preciso
passar para a máquina de escrever, corrigi-lo, reescrevê-lo
novamente na máquina, eliminar tudo aquilo que sobra, corrigir
mais e mais, até que o texto me pareça apresentável. Novamente
não sei bem o que preciso fazer com o manuscrito. Enviá-lo para
quem, para quem entregá-lo? Não conheço nenhum editor, e não
conheço ninguém que conheça um editor. Chego a pensar na
Editora L’Âge d’Homme, mas um amigo me diz: “É preciso
começar pelos três grandes em Paris”. Ele me traz o endereço de
três grandes editoras: Gallimard, Grasset, Seuil. Faço três cópias
do manuscrito, preparo três pacotes, escrevo três cartas
idênticas: “Senhor Diretor…”.
O dia que envio isso tudo no correio, anuncio para minha filha
mais velha:
— Terminei meu romance.
Ela me diz:
— É mesmo? Você acha que alguém vai publicá-lo?
Respondo:
— Sim, tenho certeza.
De fato, não duvido nem por um instante. Estou convencida,
tenho a certeza de que meu romance é um bom romance, e que
será publicado sem problemas. Fico, portanto, mais surpresa do
que decepcionada quando, quatro ou cinco semanas depois,
Gallimard devolve meu manuscrito, em seguida Grasset,
acompanhado por uma carta de recusa, gentil e impessoal. Penso
que preciso começar a procurar o endereço de outros editores
quando, numa tarde de novembro, recebo uma ligação. Do outro
lado do fio, Gilles Carpentier, das edições Seuil. Ele me diz que
acaba de ler meu manuscrito e que faz anos que não lia algo tão
bonito. Diz que após uma primeira leitura, leu uma segunda vez o
romance todo e que pensa em publicá-lo. Mas que, para isso,
ainda precisa do aval de muitas pessoas. E que ligará de novo para
mim dentro de algumas semanas. Ele me liga novamente na
semana seguinte, dizendo: “Vou preparar seu contrato”.
Três anos depois, passeio pelas ruas de Berlim com minha
tradutora, Erika Tophoven. Paramos diante das livrarias. Nas
vitrines, meu segundo romance. Em minha casa, em Neuchâtel,
na prateleira, O grande caderno, traduzido para 18 idiomas.
Em Berlim, à noite, nos espera uma leitura pública. Pessoas
virão para me ver, me escutar, para me fazer perguntas. Sobre
meus livros, sobre minha vida, sobre minha trajetória como
escritora. Eis a resposta à pergunta: alguém se torna escritor
escrevendo com paciência e obstinação, sem jamais perder a
confiança naquilo que escreve.
A analfabeta

Um dia, minha vizinha e amiga me diz:


— Vi uma transmissão de televisão sobre as mulheres
estrangeiras que trabalham como operárias. Trabalham o dia
todo na fábrica e de noite se ocupam da casa e dos filhos.
Digo:
— É o que fiz assim que cheguei à Suíça.
Ela diz:
— Mas elas, além disso, não sabem nem o francês.
— Nem eu sabia.
Minha amiga está incomodada. Não pode me contar a história
impressionante que ela viu na televisão sobre as mulheres
estrangeiras. Esqueceu tão bem meu passado que já não
consegue imaginar que fiz parte daquela categoria de mulheres
que não conhecem a língua do país, que trabalham na fábrica e
que de noite se ocupam da família.
Já eu me lembro muito bem disso: a fábrica, as compras, a
criança, as refeições. E a língua desconhecida. Na fábrica, é difícil
conseguir se comunicar, as máquinas fazem muito barulho. É
possível falar somente nos banheiros, fumando rapidinho um
cigarro.
Minhas amigas operárias me ensinam o básico. Dizem: “Hoje
está bonito”, indicando-me a paisagem de Val-de-Ruz. Me tocam
para me ensinar outras palavras: cabelos, braços, mãos, boca,
nariz.
De noite, volto para casa com a criança. Minha filhinha me olha
com olhos arregalados quando falo com ela em húngaro.
Uma vez, ela começa a chorar porque eu não a entendo, outra
vez porque é ela quem não me entende.
Cinco anos depois de ter chegado à Suíça, falo francês, mas
continuo sem saber lê-lo. Voltei a ser analfabeta. Eu, que já lia
com quatro anos de idade.
Conheço as palavras. Quando as leio, não as reconheço. As
letras não correspondem a nada. O húngaro é uma língua
fonética, o francês o exato contrário.
Não sei como pude viver sem a leitura por cinco anos. Havia,
uma vez por mês, a Gazeta Literária Húngara, que na época
publicava meus poemas; havia também os livros húngaros da
Biblioteca de Genebra, que recebíamos por correspondência.
Eram livros que na maioria das vezes já havia lido, mas não tinha
importância, era sempre melhor reler do que não ler nada em
absoluto. E, felizmente, havia a escrita.
Minha filha está quase completando seis anos, prestes a entrar
na escola.
Eu também começo, recomeço a escola. Com 27 anos, me
inscrevo nos cursos de verão da Universidade de Neuchâtel para
aprender a ler. São cursos de francês pensados para estudantes
estrangeiros. Há ingleses, americanos, alemães, japoneses, suíços
germânicos. O exame de ingresso é um escrito. Sou muito fraca, e
fico com a turma dos iniciantes.
Após algumas aulas, o professor me diz:
— A senhora fala muito bem francês. Por que está num curso
para iniciantes?
Respondo:
— Não sei ler nem escrever. Sou analfabeta.
Ele começa a rir:
— Isso é o que vamos ver.
Dois anos depois consigo a Certidão de Estudos Franceses com
uma ótima avaliação.
Sei ler, sei ler de novo. Posso ler Victor Hugo, Rousseau, Voltaire,
Sartre, Camus, Michaux, Francis Ponge, Sade, tudo o que quero
ler em francês, e inclusive os autores não franceses traduzidos,
Faulkner, Steinbeck, Hemingway. O mundo está repleto de livros,
de livros finalmente compreensíveis, inclusive para mim.
Logo depois terei mais dois filhos. Com eles farei novos
exercícios de leitura, de ortografia, de conjugação. Quando eles
me perguntam o significado de uma palavra, ou sua ortografia,
nunca digo:
— Não sei.
Direi:
— Vou verificar.
E vou ver no dicionário, sem jamais me cansar. Me torno uma
apaixonada por dicionários.
Sei que nunca conseguirei escrever o francês como escrevem os
escritores franceses de nascença, mas o escreverei como puder,
da melhor maneira que eu puder.
Essa língua, o francês, não fui eu quem a escolheu. Ela me foi
imposta pelo destino, pelo acaso, pelas circunstâncias.
Escrever em francês é uma necessidade. É um desafio.
O desafio de uma analfabeta.
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
de acordo com ISBD

K92a
Kristóf, Ágota
A analfabeta: Um relato autobiográfico / Ágota Kristóf. Tradução: Prisca Agustoni.
São Paulo: Editora Nós, 2024
56 pp.
Título original: L’Analphabète : Récit autobiographique
ISBN: 978-65-85832-15-1
1. Autobiografia. 2. Literatura húngara. I Agustoni, Prisca. II. Título.
2024-74 CDD 920 CDU 929

Elaborado por Odilio Hilario Moreira Junior, CRB-8/9949


Índice para catálogo sistemático:
1. Autobiografia 920
2. Autobiografia 929
© Editora Nós, 2024
© Editions Zoé, 2011
Edição publicada em acordo com Agence Littéraire Astier-Pécher

Direção editorial Simone Paulino


Editor Schneider Carpeggiani
Editora assistente Mariana Correia Santos
Assistente editorial Gabriel Paulino
Preparação Alex Sens
Revisão Alex Sens
Projeto gráfico Bloco Gráfico
Assistente de design Stephanie Y. Shu
Produção gráfica Marina Ambrasas
Coordenador comercial Orlando Rafael Prado
Assistente comercial Ligia Carla de Oliveira
Assistente de marketing Mariana Amâncio de Sousa
Assistente administrativo Camila Miranda Pereira
Produção de ebook S2 Books

Imagem de capa Jean-Pierre Baillod (1970s).


Ágota Kristóf Collection, Swiss Literary Archives,
Swiss National Library (Bern).

Texto atualizado segundo o novo


Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa

Todos os direitos desta edição reservados à Editora Nós


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Vila Madalena, São Paulo, SP | CEP 05435-030
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