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Giuliana Sperandio — 1ª Edição — 2019

Copyright

Copyright@2019 Giuliana Sperandio

Capa: Crys Magalhães

Revisão: Nuccia De Cicco


Diagramação Digital: Giuliana Sperandio, Help – Serviços
Literários
Direitos imagens: © pngtree.com.

Está é uma obra de ficção. Seu intuito é entreter as pessoas.


Nomes, personagens, lugares e acontecimentos descritos são
produtos da imaginação das autoras. Qualquer semelhança entre
esses aspectos é mera coincidência.

Esta obra segue as regras da nova ortografia da língua


portuguesa.

Sperandio, Giuliana

Virei o jogo
1ª edição – 2019/ 300 páginas

Ficção Brasileira

Romance

Chick-lit

TODOS OS DIREITOS RESERVADOS.


É proibido o armazenamento e/ou reprodução de qualquer
parte dessa obra, através de quaisquer meios – Tangível ou
intangível – sem o consentimento por escrito das autoras.
Criado no Brasil. A violação dos direitos autorais é crime
estabelecido na lei nº 9610/98 e punido pelo artigo 184 do código
penal.
P

Amanda Bonatti, autora de O Bosque de Faias, Um amor para


Johan, Nas Colinas de Dorsetshire e Lágrimas de Outono.

Escrever o prefácio para um livro de Giuliana Sperandio é mais


do que uma honra, é um presente. Não tem como não se sentir
agraciada em ter em mãos uma obra tão autêntica e irreverente.
Giuliana é assim, então não podia ser diferente (até rimou).
Essas páginas que você está prestes a ler, contém muito
dessa querida autora. Você ri com a Solena (personagem) como
riria com Giuliana, porque ambas têm aquela energia gostosa e
vibrante que é a melhor característica dos amigos. Aliás, prepare-se
para rir muito no decorrer de cada capítulo.

O mais legal desta obra, é que ela cabe certinho na vida de


todos nós, pois é simplesmente fácil de simpatizar com os
personagens, tão verossímeis eles são. Sabe aquele sua amiga
destrambelhada, aquele crush que parece impossível de te notar,
aquela vez que você teve um amor platônico e todas as vezes que
quebrou a cara e contou com a ajuda de amigas para se reerguer?
É nessas situações que vemos um pouco da Sol, do Edu, da
Nuccia, da Suzy, Nat e do Gui,. Todos os personagens são gente
como a gente. Eles erram, acertam, pedem desculpas e buscam
segundas chances.
Nessa história não vemos personagens, vidas e amores
perfeitos, mas sim a verdadeira capacidade que temos de nos
reinventar, de virar o jogo e transformar nossa realidade, buscando
perspectivas que nos levem um pouquinho mais perto da tão
idealizada felicidade.
Então, agora que sei que você, leitor, deve estar ávido para
conhecer um pouco mais sobre a nossa querida Sol, eu darei
apenas um conselho “cuidado para não escolher o crush errado”.

Beijos e boa leitura!

Amanda Bonatti.
Sumário

Copyright
Prefácio
Prólogo
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Capítulo 35
Capítulo 36
Capítulo 37
Capítulo 38
Capítulo 39
Capítulo 40
Capítulo 41
Capítulo 42
Capítulo 43
Capítulo 44
Capítulo 45
Capítulo 46
Capítulo 47
Capítulo 48
Capítulo 49
Capítulo 50
Capítulo 51
Capítulo 52
Capítulo 53
Epílogo
Agradecimentos
Biografia
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Conheça o meu trabalho:
Referências
P

16 anos antes...
Aquele seria um grande dia. Olhei para o papel e reli mais uma
vez, sentia em meu coração a verdade daquelas palavras. Sempre
amei escrever, usava as palavras como uma espécie de desabafo,
não era fácil ser uma adolescente no ensino médio, ainda mais uma
adolescente acima do peso que tem tendências anti-sociais. Amava
ficar na biblioteca entre os livros, meu refúgio e minha paz. Na
última aula de história, o professor Luiz Bruno discorreu sobre a
Segunda Guerra e sobre as bombas que afetaram as cidades de
Hiroshima e Nagasaki no Japão, e foi durante essa aula, sentindo
com todo meu coração as palavras borbulharem de dentro de mim,
que escrevi a poesia que estava em minhas mãos, finalista no sarau
de poesias, no qual estava agora.

Sentada, eu me remexi nervosamente vendo quantas pessoas


estavam ali para se apresentarem e disputarem uma premiação
simbólica. Jamais participaria por iniciativa própria, mas fui
convencida por Luiz Bruno e pela professora de artes que ajudava a
organizar esse evento. Estávamos reunidos no auditório, um bando
de alunos assistindo, professores e nós, os participantes... Olhei ao
redor, parecia que meu corpo tinha dobrado de tamanho e que as
pessoas me observavam, rindo. Eu era a menina que nunca usava
saia ou bermuda por vergonha das coxas grossas, a que nunca
fazia educação física com vergonha de compartilhar o vestiário,
sentia o suor brotando na testa, minhas mãos estavam geladas e
sentia meu coração retumbando em meu peito... Tum-dum... Tum-
dum...

— Solena Lopes. — Ouvi uma voz me chamando, porém as


pernas travaram e minha boca parecia não pertencer a mim mesma.

— Solena Lopes. — A voz chamou mais uma vez, e eu senti


alguém me cutucando.
Virei o rosto para a pessoa, era Elza, a nova professora de
português. Ela me olhava e não era de um jeito amistoso ou
simpático, ela tinha no olhar algo que aprendi a reconhecer desde
muito cedo pelo meu peso: desdém, nojo, repulsa.

Ela aproximou-se de onde eu estava e disse baixinho:


— Não temos o dia todo, senhorita Mundo da Lua, vamos logo
ou desista de uma vez!

— Eu, eu... Não sei se consigo — minha voz saiu trêmula e


gaguejante.
— Você nunca será nada se continuar dando desculpinhas
esfarrapadas e desistir de tudo.

Senti as lágrimas se formando em meu rosto, um bolo subiu


pela minha garganta e parecia que iria me sufocar, as pessoas me
olhavam com expectativa, poucas conseguiram ouvir o que ela
disse, no entanto eu gravei cada palavra.
Uma voz doce se aproximou, era Walquíria, a professora de
artes. Ela sabia que tinha dificuldades em falar em público e sempre
tentava me ajudar. Elza se afastou, revirando os olhos impaciente
com a menina que só causava transtorno. Toda vez que havia algum
trabalho em grupo para apresentar ou evento que tivesse
apresentação, as pessoas sabiam, eu travaria.

— Calma, querida, respira fundo, você consegue. É só ler em


voz alta o seu texto. Ele é lindo. Eu sei que você consegue! — Mirei
os olhos negros e gentis dela, mas só conseguia lembrar da voz e
do olhar da outra professora e uma vozinha interna que me
chamava de covarde... Covarde... Covarde!
Saí correndo sem apresentar meu texto. Os alunos riram da
minha covardia. Quando passei pela professora Elza, vi em seu
rosto a satisfação, ela nunca quis que eu vencesse meu medo. E foi
assim que eu fiz uma promessa a mim mesma; nunca mais
mostraria a ninguém mais nada do que escrevesse.

Desta maneira, desisti do que mais amava, a escrita. Continuei


tendo os livros como meus melhores amigos, uma vez que eles não
humilhavam as pessoas, não as ridicularizavam e se importavam
com a aparência que tinham.

Livros eram confiáveis, as pessoas não.


C 1

Ouvi o despertador tocar… Estiquei a minha mão, tateando


cegamente em cima do criado-mudo à procura do celular. Enfim o
achei e desliguei o maldito. Não sei quem inventou isso, mas
certamente era obra do tinhoso. Sempre que selecionava o som,
eles se pareciam com uma amostra sonora do purgatório.

— Vamos acordar, bela adormecida — exclamei para mim


mesma. Essa é uma das minhas manias, a de falar sozinha.
Olhei para todos os lados, procurando o Sardinha. Ele já devia
ter levantado para garantir o café da manhã. Traidor! Nem dele
receberia um bom dia decente, ando mal na fita mesmo! Tomei
coragem para levantar, respirei fundo e saí da cama. Andei, ou
melhor, me arrastei em modo zumbi pelo quarto em busca da minha
toalha e apetrechos para o banho. Sem uma ducha matinal chegaria
imprestável ao trabalho. Esfreguei os olhos, dei umas batidinhas na
minha cara amassada antes de caminhar trôpega pelos corredores
em busca do banheiro. Durante o curto caminho, fui esbarrando em
todas as quinas possíveis e impossíveis.
Depois de tomar um banho e me sentir mais humana, peguei
meu celular para espiar a hora. Percebi que o tempo passou mais
rápido do que imaginei! Enrolei a toalha de qualquer jeito pelo meu
corpo e saí correndo em direção ao meu quarto. Antes de chegar,
dei de cara com a minha mãe. Minha mãe é aquela pessoa que tem
um bom humor matinal irritante e isso me tirava do sério. Aliás,
julgava que só desejar bom dia era mais do que o suficiente, mas
não! Ela vinha sempre com aquele olhar insano e um sorriso
maníaco, que só as pessoas que têm esse poder extraterrestre de
acordar de bom humor conhecem. É sério! Tenho um problema sério
com isso, gente!
— Bom dia, filhinha linda! Como foi a noite? Dormiu bem? —
indagou minha mãe, com um grande sorriso.
Respirei fundo. Esses “diminutivos” logo cedo soavam tão
insuportável… E o que diabos têm de bom em sair da minha cama
quentinha, no raiar do dia, para ir trabalhar? Contei mentalmente até
dois mil e seiscentos (tô exagerando, deve ter sido até três), pois
precisava controlar a gana de querer matar as pessoas de bom
humor, afinal elas não tinham culpa dessa programação
genética/alienígena. Existe algo mais enervante do que enfrentar um
bem-humorado de manhã cedo?
— Bom dia, mãe! Dormi bem, mas estou atrasada! Por acaso
viu o Sardinha por aí? — Forcei um sorriso, tentando disfarçar o
mau humor.
Sardinha, como vocês devem estar suspeitando, é o meu gato.
Esse nome engraçado tem um bom motivo. Ele foi batizado assim
depois que apareceu do nada em nosso quintal. Provavelmente,
algum vizinho o jogou muro adentro, era uma sorte não termos um
cachorro, caso contrário coitado do gato. Quando começamos a
ouvir um miado insistente, fomos averiguar e... Foi amor à primeira
vista! Ele era um filhotinho, ainda bem pequeno, mal tinha saído do
desmame, sua coloração era marrom, mas depois viemos a
descobrir que o pobrezinho era, na verdade, creme, e que o tom
escuro de seu pelo era imundice. O gatinho miava desesperado no
meio do mato e o cheiro que exalava era mais podre que um
bacalhau em fim de feira. Tinha uma espinha de peixe grudada em
sua pelagem sebosa, a fonte do aroma nada agradável de sardinha.
Como ele conseguiu essa façanha? Não se sabe! Nós até
perguntamos pela vizinhança se alguém tinha perdido um gatinho,
contudo todos fizeram cara de paisagem, então resolvemos ficar
com ele. Joguei o bicho no chuveiro morno e dei uma boa esfregada
com meu shampoo para tirar aquela inhaca. Claro que fui arranhada
até a quinta geração, o que quase me fez arrependida da boa ação.
Na hora de escolhermos o nome veio uma luz ao ver a espinha
jogada na lixeira. O cheiro ainda empesteava todo o banheiro, diria
que até mesmo a casa, e isso influenciou na escolha. Nosso mais
novo membro da família ganhou o nome de... Sardinha!
Continuei o diálogo monossilábico com dona Sônia Lopes,
vulgo minha mãe:

— Mãe, como você consegue tão acordar cedo de bom


humor? Isso é tão irritante. — Não segurei a minha língua. Parti
para atacar e destruir o inimigo; o Bom Humor. Essa era minha
versão “cavala dando coice”. Claro que depois que passava o
azedume, eu me arrependia de ser tão grossa, no entanto, a
entidade mal-humorada que se apossava do meu corpo de manhã
era assim. Minha querida mãe devia estar acostumada, pois, deu de
ombros e me desejou bom trabalho, saindo pelo corredor
cantarolando baixinho alguma música ininteligível. “É, dona Sônia,
dá pra pelo menos tentar ser menos feliz de manhã cedo? Argh!”
Senti pelos macios roçando minhas pernas. Era Sardinha
dando o ar da graça felina; com certeza, já havia comido e agora
barganhava o seu dengo matinal. Outro bem-humorado logo cedo!
O mundo conspirava contra o meu azedume, só Jesus na causa!
— Bom dia para você também, Sardinha! Pelo visto, já encheu
a pança, né? — disse ao bichano, alisando com a ponta dos pés o
seu barrigão.
Como ainda não estou completamente doida para ouvir o gato
respondendo aos meus devaneios, ele continuou lá, com cara de
paisagem, miando e dando umas ronronadinhas enquanto eu
alisava sua pelagem sedosa e bem cuidada. No entanto, não tinha
tempo para ficar ali, agradando o lorde, por isso disparei em direção
ao meu quarto a fim de não perder o ônibus que não tardaria a
passar. Olhei para trás e vi que meu gato tinha ficado com cara de
poucos amigos.
— Foi mal, Sardinha — falei antes de bater a porta para me
arrumar.

Peguei as primeiras roupas que vi pela frente no armário


bagunçado, juntei as que me pareceram confortáveis. Tinha de estar
preparada para enfrentar o calor infernal que faria durante o dia.
Uma coisa que detestava mais do que acordar cedo era ter que
enfrentar o sol de rachar a cuca na rua, mas fazia parte! Afinal, de
princesa não tinha nem a beleza, nem dinheiro e muito menos
“glamour”. Bem-vindo à minha vida real!

Pausa básica: não me julgue uma reclamona, ok? Não sou a


Bete, a feia[i], aquela da novela colombiana, mas também não sou
nenhuma Ana Hickman[ii]. Tenho altura mediana, meu corpo possui
algumas carninhas sobrando, não tanta que tenha que me
preocupar seriamente, pelo menos hoje não mais! Venci essa fase
com muito sacrifício, foram várias dietas do sol, da lua, da luz e de
tudo que vocês possam imaginar. Tudo isso, por que quando cursei
o ensino médio sofri com a rejeição e o bullying. Como diz o ditado:
“o que não nos mata, nos fortalece”; foi assim que aprendi acionar o
botão da minha vida: “Foda-se”.

Antes de sair de casa, fui até a cozinha. Meu estômago


roncava, estava morta da fome. Catei uma banana na fruteira em
cima da mesa e saí correndo para o ponto de ônibus. Sim, eu
estava comendo banana no meio da rua, e daí? Não gostou? Me
processe! Julguei que, por serem 6h da manhã, não teria uma alma
viva nas ruas, ou, pelo menos, poucas almas penadas. Como sou
sortuda, vi que em frente ao ponto onde pegaria meu ônibus havia
começado uma construção e estava lotada de pedreiros
trabalhando. Dado o clichê dessa situação, homens dessa classe
trabalhadora tinha fama de? Isso mesmo… Piadinha e cantadas
sujas! Seria diferente comigo? Claro que não, né? Então, escutei um
monte de piadinhas sujas e escrotas vindas de lá, como:
— Opa! Queria ser essa banana — um homem ridículo falou,
fazendo um biquinho que era ainda mais patético que sua cara.
— Hum!!! A gatinha gosta de uma banana grande? — outro
imbecil questionou, olhando-me com uma cara de tarado.
Outras coisas piores foram proferidas, nem todos participaram,
alguns inclusive me defenderam da baixeza das palavras dos
colegas. Já estava indignada e muito irritada, tanto que até perdi a
porcaria da fome! Por isso, lancei com tudo a banana em direção
àqueles filhos da mãe; já que eles estragaram meu apetite, que
enfiassem ela onde bem quisessem. Estiquei minha mão à frente,
ergui meu dedo médio na direção dos imbecis e falei em alto em
bom som:
— Vão se ferrar, bando de porcos, agora façam bom proveito e
enfiem essa banana em seus rabos!

Os que me assediaram me olharam incrédulos, acho que eles


não esperavam uma atitude assim; talvez por eu ser “apenas uma
mulher”, não me deram credibilidade de defesa. Os que tinham me
defendido bateram palmas, assobiaram e ficaram zoando os
companheiros de trabalhos “engraçadinhos”. Tive que aprender
desde cedo a não levar desaforo para casa por causa do meu peso,
cheguei até a sair no braço com alguns meninos na escola. Agora,
já adulta, não aturaria insultos, assédio ou grosseria de homens
escrotos que se achavam os donos do mundo.
Para muitas coisas até era boba e boazinha e fazia vista
grossa, mas não nessa espécie de abuso, isso não! E disso me
orgulhava. Se era boca suja? Sim, e daí? Pagava minhas contas e
não precisava de ninguém fiscalizando meu vocabulário, exceto
minha querida mãe que ficava horrorizada a cada vez que eu
soltava um singelo “cacete”. Vai entender! Talvez na época dela
fosse algo como um crime inafiançável falar “palavrões”, mas para
mim se tornou tão natural como respirar. O “foda-se” era pra mim
uma palavra libertadora que usava sem moderação.

Graças aos céus minha condução não demorou muito e, como


disse anteriormente, sorte e Solena só tem em comum a primeira
letra do nome, pois na prática as duas são inimigas que vivem se
repelindo. O busão estava mais lotado que Maracanã em final de
FLA X FLU[iii]. Com o calor como agravante, minha irritação subiu
para níveis estratosféricos!

Entrei no ônibus e fui esbarrando em todos, até achar um


lugarzinho no fundo “menos cheio”, se é que era possível classificar
aquilo como mais vazio. Rezava para o motorista meter o pé para
chegarmos antes de eu começar a suar que nem uma porca em
trabalho de parto. Procurei na minha bolsa os fones de ouvido e
liguei meu MP3. Não me olha assim de novo. Eu tenho o meu há
anos e não consegui me desfazer. Ele possui grande valor
sentimental, até um nome dei. Apresento para vocês “a
Carochinha”, minha amiga inseparável. Liguei a Carochinha rosa
neon, deixando-me embalar pelo ritmo “Loka”, uma música da
Shakira[iv]. Tem como não gostar de Shakira?
Estava de olhos fechados, cantarolando bem baixinho, quando
senti algo duro nas proximidades das minhas nádegas. Já imaginei
mil coisas e o meu sangue começou a ferver. Pensei: “puta que
pariu, de novo, não! Agora esse tarado filho da puta vai apanhar”!
Preparei minha cara demoníaca nível hard, cerrei meus punhos e já
ia cuspir fogo pelas ventas, quando notei que quem estava atrás de
mim era uma senhorinha de cabelos brancos, aparentemente
inofensiva, e o objeto duro e suspeito que tinha me assediado era
apenas seu guarda-chuva. Idosos daqui sempre carregavam essas
coisas a tiracolo, mesmo que estivesse um sol de rachar o Saara!
Convenhamos que no mundo em que vivemos, com todas as
notícias sobre abusos e assédio em conduções, a última coisa que
imaginaria era uma sombrinha tarada. Dei um sorriso tímido e
continuei minha cantoria baixa. É claro que as pessoas me olharam
e me acharam uma doida, mas quem disse que ligava para o que
elas pensavam?!
C 2

Depois de tantas confusões, enfim cheguei ao meu trabalho.


Eu levava muito tempo até chegar ao meu destino, o trânsito
sempre estava congestionado. Cheguei pontualmente às 8h00min,
corri para o elevador e fui direto bater meu cartão. Claro que depois
de tanto tempo presa na condução, precisaria urgentemente usar o
banheiro a fim de me ajeitar antes de ir para minha mesa e enfrentar
pilhas e mais pilhas de papéis chatos e burocráticos. Aliás, eram
essas belezinhas que me levavam a enxaquecas terríveis no final do
dia.
Passei pelas fileiras de pessoas trabalhando e alcancei o
banheiro, uma vez que, além de tudo, estava super apertada para
fazer um xixi libertador. Fui apressada, entrei no cubículo e já me
equilibrava sobre o vaso para não me encostar ao assento, coisa
que sempre morri de nojo; apesar de ali, na empresa, tudo ser
aparentemente limpo, nunca era bom dar sopa pro azar, né? Antes
de sair do toalete, retoquei o batom. Essa era uma das poucas
coisas femininas que usava no trabalho, nada de maquiagem ou
apetrechos espalhafatosos que outras mulheres costumavam usar.
Saindo de lá, caminhei como uma diva até minha mesa, só que fui
interrompida quando escutei uma voz me chamando.
— Psiu! Ei, Solena

Olhei para as pessoas à minha frente. A sala era grande e


havia divisórias delimitando o espaço, cada qual tinha seu cantinho,
achava isso uma maravilha, já que assim tínhamos privacidade e
paz para poder resolver nossos pepinos dantescos. Quando achei o
foco do barulho inesperado, vi a cara de riso da minha amiga
Nathalie. “Será que estava com cara de palhaça e hoje todo mundo
resolveu curtir com a minha cara?”, pensei.
— Bom dia, Nat, me chamou? — indaguei impaciente.
Lembram do meu mau-humor? Ele persistiria até às 10h da manhã.
— Sol, sua louca! Olha os seus pés! Está voltando do banheiro
pelo visto… — afirmou rindo e apontando na direção da qual
comentava.

Desci o olhar para onde ela apontou, reparando no motivo que


a fazia segurar uma gargalhada. Comecei a ficar vermelha como um
tomate. “Cacete!”, pensei, “Que maldito dia estava sendo esse”?
Provavelmente estava em meu inferno astral. Talvez Saturno tivesse
colidido com Marte, causando um blecaute de más vibrações na
minha vida. Preso em meus pés, estava um pedaço gigante de
papel higiênico. Era quase uma placa neon que denunciava minha
ida ao sanitário. Virei a cabeça, observado ao redor com desespero
crescente, esquadrinhei o local para ver se mais alguém tinha
reparado em minha gafe.
Já contei para vocês como sou uma pessoa sortuda? Pois é!
Meu chefe estava ali, parado, tendo uma crise de risos por minha
causa. Podia me esconder para sempre em um buraco e esperar
por um meteoro? Ah! Claro! É nessa hora que devo comentar que
meu chefe é um gato? Daqueles homens que você fica olhando e
imaginando mil e uma coisas, entre as quais, certamente, uma crise
de risos não estaria na lista. Guilherme vinha ao meu encontro com
seu olhar embargado de lágrimas pela gargalhada, que ódio!
Abaixei rápido para poder tirar o papel e me desequilibrei,
caindo de bunda no chão. Pronto, se antes só o Gui e a Nat que
tinham reparado no meu mico, agora o mico havia sido promovido a
gorila e eu me transformei em atração de circo. Todos olhavam para
minha cara, rindo. Meu rosto estava fervendo, devia parecer um
pimentão. Olha, vou te contar! Vou processar meu anjo da guarda!
Aquele dia definitivamente não era para ter tirado meus pés para
fora da casa.
Quando Guilherme chegou bem perto, estendeu as mãos em
minha direção para me ajudar a levantar, pois, como sou uma
pessoa de coordenação motora exímia (só que não!), ainda não
havia levantado e continuava com a porcaria do papel no sapato.
Aceitei a sua oferta gentil, mesmo que na cara dele estivesse
escrito: “que mulher atrapalhada”! Essa era eu, a piada ambulante e
a insegurança em pessoa! Os deuses conspiraram para que tivesse
uma sina de desastrada. Julgava que tinha feito algo de muito
errado em outra vida, será que roubei a mamadeira de Jesus, ou fui
a depiladora de Maria Madalena?
Depois de tantos desastres e incidentes, minha cota de má
sorte diária se esvaiu e o resto do dia correu de maneira normal.
Guilherme pediu que mandasse alguns correios eletrônicos para
resolver as pendengas com contribuintes da Receita Federal, então
meu tempo passou se arrastando entre papéis, formulários e e-
mails. Detestava meu trabalho, mas me formei em contabilidade.
Sabe aquela velha máxima? “Quem não tem opção, faça um curso
que te dê uma profissão?” Exatamente! Foi o que fiz. Quando fiz
vestibular não sabia o que queria fazer da vida, então optei por
caminhos seguros. E bem, aqui estava eu, seguramente entediada e
infeliz com essa droga de trabalho. Poderia ser pior, né? Estar
desempregada com certeza me deixaria mil vezes mais entediada,
infeliz e com muitas contas para pagar.
Antes de sentar em minha cadeira e dar início a minha saga,
caminhei para a sala de café dos funcionários e vi que lá estava
Camila, dando em cima do Guilherme. A mulher era linda, porém um
“show” de superficialidade. Mexia nos cabelos loiros e se insinuava
descaradamente, com suas pernas torneadas e bronzeadas à
mostra em uma saia que não era lá muito recatada e nem do lar.
Pelo visto, ele não parecia repelir seus avanços. A cena me fez
perder o interesse no café, então desisti da minha santa cafeína e
deixei os dois aproveitando a dança do acasalamento em paz. O
que tinha a ver com isso? Nada. Mas minha queda pelo chefe
versus a antipatia que nutria pela loira me deixou emputecida e
perdi a vontade de tomar o café.
C 3

Na hora do almoço, Nat e Suzana, vulgo Suzy, vieram me


buscar para lanchar num café que havia nos arredores e usávamos
como nosso QG [v]de reuniões. Fui me arrastando pelo trajeto, uma
vez que meu dia estava virado de cabeça para baixo e,
sinceramente, tinha medo que piorasse ainda mais. Chegamos,
então, ao nosso refúgio, o famoso Bilbo’s Café.
Entramos e caminhamos até o fim do estabelecimento, em um
cantinho que já era quase nosso, pedimos o de sempre; nosso café
gourmet com um pedaço caprichado de torta suíça abarrotada de
chocolate. Cara, na boa! Uma generosa parte do meu salário era
gasto nesse lugar, todavia, sentia que era um dinheiro bem aplicado,
pois ali naquela cafeteria tudo era absurdamente delicioso. A
gordinha que um dia fui me agradecia de joelhos por esses
momentos de gordices.
— E que comece a reunião do trio parada dura — falou Nat,
animada, dando uma leve batidinha na mesa, imitando um juiz com
um martelo.
Meu desânimo era tão evidente que só fiquei ali sem abrir a
boca. Já desconfiava de quem ou o quê estaria na pauta, já que era
a única do trio que ainda morava com a mãe e não tinha um
relacionamento ou pegava ninguém fazia algum tempo. Elas viviam
me enchendo o saco por conta disso, tentavam sempre arrumar
algum par para mim.
— Fala sério, Solena! Você precisa se arrumar melhor e sair
mais de casa. Olha essas roupas! São as mesmas desde que te
conheço. Não aguento mais te ver entocada na casa da tua mãe e
ainda ter que aturar o seu mau humor! Você sabia que, segundo os
especialistas, o sexo faz bem para a pele, reduz a chance de ter
ataque cardíaco e deixa a sua vida mais animadinha, amiga? —
perguntou Nat, debochada.
Como sempre, ela colocava sexo como solução de todos os
problemas mundiais. O mundo está em guerra: sexo! Pessoas estão
ficando desempregadas: sexo. Morreu um pinguim na Antártica:
faça sexo em protesto! Resumindo: Nathalie era uma tarada
compulsiva que pensava que um orgasmo era capaz de resolver
todos os problemas globais, sejam eles climáticos, financeiros,
emocionais ou de qualquer gênero.
— Dá um tempo, gente! Eu tô ótima sozinha! Tenho o Sardinha
e a minha mãe que são ótimas companhias, me divirto bastante
[vi]
lendo os meus livros e vendo séries na Netflix em casa. — Me
defendi.
— O saco de pulgas e a tua mãe, que apesar de ser uma fofa,
não contam como companhias decentes, Solena. E crush [vii]literário
não vai sair do papel pra te dar um trato! Quando foi a última vez
que você saiu, transou ou apenas beijou na boca? — perguntou
Suzy, caindo na pilha de Nat.
Eu percebia que estava lascada com essas duas.

— OK. Confesso que já faz um tempinho, meninas! Mas


quando saio, só arrumo sarna para me coçar ou cometo mil e uma
trapalhadas. Sabe, vocês não entendem, mas tô tirando um tempo
pra me curtir melhor, sou uma companhia bem legal, sabiam? —
falei, dando língua para as duas que me encaravam com cara de
aparvalhadas.
Nat estava com cara de maníaca psicótica, ou daquelas
mulheres bombas prestes a se auto-explodir. Parecia que surgia
uma ideia mirabolante em sua mente caótica, quase um plano
infalível do Cebolinha, e ela sorria de uma forma que me dava
medo. Fui obrigada a me preparar porque sabia que lá vinha
chumbo grosso!
— Solena, sabe… Estava aqui pensando. Talvez a solução
para os seus problemas seja um site de relacionamento. Claro!
Como não pensamos nisso antes? Imagina a cena… Você
conversaria e conheceria melhor os boys, então pah! Você com
certeza encontraria alguém no mínimo interessante, bom de cama
ou com bom papo, talvez não as três coisas, mas pelo menos uma
delas já estava no lucro. Por acaso você conhece o aplicativo
Tinder[viii]? — indagou ainda mais animada do que antes, se é que
era possível.
— Ta confundindo as bolas, meu nome não é Jenifer, Nat! —
revirei os olhos fazendo referência ao hit “Jenifer” do cantor Gabriel
Diniz[ix].

Puta que pariu! Elas devam me achar um dragão de Komodo[x],


ou pior, um ser humano sem habilidades sociais toleráveis, para
sugerir que eu caçasse um namorado na “internet”. Fala sério! Nem
me olhem assim, tenho certos preconceitos em relação a esse tipo
de aplicativo. Fixei minha amiga com minha melhor expressão de
diaba ofendida, armei minha tromba-de-elefante, e só não a mandei
ir para aquele lugar que não bate sol, porque já estávamos quase
atrasadas para voltar ao trabalho. Apesar de gatinho, meu chefe era
uma baita mala, viciado em metas, ainda por cima perfeccionista, ou
seja, um FDP [xi]“sexy” de carteirinha.
Pagamos a conta e fomos o caminho todo sem falar nada. Elas
já sabiam que, pela minha expressão, estavam andando em terreno
minado. Eu estava prestes a dar um piti, então me deixaram quieta
na volta. Como trabalhavam em cantos opostos da sala, pude conter
minha vontade de esganá-las e voltar aos meus papéis.
O meu trabalho era chato, a minha vida monótona e elas
julgando que resolveriam meus problemas com um homem
cibernético? Oi?! Eu era mais que uma encalhada a perigo, né?
Afinal, eu sou uma encalhada, com péssimo emprego, que mora
com a mãe, e um desastre na vida social… Melhor parar! Acho que
ser só encalhada era melhor. Autoestima, minha filha, cadê você?
Puxei meu plano de emergência da gaveta… Sempre tinha ali
dentro minha arma secreta contra todas as minhas inseguranças e
paranoias. Tudo bem que essa era também a principal fonte de
gordura do meu traseiro avantajado, mas situações de emergência
pedem medidas drásticas. Agarrei a barra de chocolate branco com
cookies e comi sem medo de ser feliz. Por alguns deliciosos
minutos, mandei meus problemas para o ar! O poder do chocolate!
Nunca duvide dele.
C 4

Estava sentada numa boa, de frente para o computador em


minha área de afazeres, já tinha até esquecido dos problemas que
minhas queridas amigas pensavam que tinha, quando senti algo
vibrando. Tentei ignorar por um ou dois minutos, mas a curiosidade
era maior que a minha obstinação. Peguei discretamente o celular e
abri a mensagem no grupo das meninas, “Trio parada dura”. Revirei
meus olhos, impaciente, e resmunguei baixinho:
— Eu mereço essas duas mesmo!

Havia na mensagem um link que a maluca da Nathalie


mandou. Provavelmente já devia ter arrumado alguma vítima nesse
tal aplicativo em algum momento de sua caça aos bofes. O coitado
deve ter virado um objeto sexual nas garras dela para depois levar
um pé no traseiro. Tinha pena desses pobres-diabos, nessas horas
dou sorte de não ser homem ou de ser apenas amiga dela, porque
aquela ali não perdoava ninguém!

A mensagem dizia:
Nat: Baixe agora o TINDER no Google play (Link). Solzita,
esse é o APP que falei pra você hoje no intervalo! É uma maravilha,
altos boys magia nele! Entra aí que tenho certeza que vai achar um
peixão pra você, amiga! Vai fazer essa jiripoca adormecida piar,
uhul... kkkkk
Não me fiz de rogada, escolhi o emoji com a imagem do dedo
médio e mandei sem medo de ser feliz. Não demorou muito, meu
celular vibrou avisando uma nova mensagem. É claro que era ela,
dessa vez recebi um gif da Inês Brasil rindo [xii]e rebolando até o
chão. Eu mereço! Era a cara dela fazer esse tipo de coisa. Que
vadia! Eu amava minhas amigas de todo o coração, no entanto, às
vezes, leia-se quase sempre, elas tinham o dom de, ao tentar me
ajudar, acabar me colocando em um momento reflexão sobre a
minha vida, e... Poxa! Eu tô bem do jeito que estou! Não estou?
Depois dessa conversa, passei o resto da tarde sem me
concentrar direito em minhas tarefas. Malditas reflexões! Essas
vacas estavam me fazendo repensar minha condição de solteirona
convicta. Gente, que saco! Qual é o problema delas viverem suas
vidas e deixarem eu viver a minha em paz? Estou em uma situação
confortável, na segurança do lar com minha querida mãezinha e o
meu gatinho pulguento. Não fazia a mínima questão de acrescentar
a essa equação um homem com suas bagagens de exigências e
neuras.
Aí você deve estar me chamando de radical, a feminista que
odeia homens, mas não, não sou assim. Já tive outros
relacionamentos e quebrei a minha cara com essas relações. Elas
sempre começavam com caras que pareciam ser uns amores. Sabe
aquele papo: “você é linda, inteligente, especial e blá, blá, blá”? Eles
pareciam engraçados, gentis e compreensivos… Então, quando
você já estava gamadinha, esses mesmos príncipes começavam
com as reclamações. Criticavam o que você vestia e o que não
vestia, exigiam mais tempo do que você tinha disponível, afastavam
você dos seus amigos e criticavam seu trabalho… Então, seu tempo
passava a ser somente deles, você se sentia cada dia mais
sufocada e sem tempo para si mesma, anulava-se e perdia sua
verdadeira essência. Sem contar que, muitas vezes, essa mesma
mulher que foi toda modificada acabava sendo trocada por uma
sujeita, que era igual ao que você era antes que ele cismasse em
mudá-la por completo. Vai entender!

Claro que isso não é regra! Os homens não são todos assim,
porém está em falta homem bom no mercado. Ou eles são gays, ou
comprometidos, ou ambos. Infelizmente, a minha parca experiência
com o sexo oposto foi digamos… Brochante! Todos os caras com
quem me envolvi eram uma versão bem parecida com esse modelo
popular cheios de defeito de fábrica. Aliás, eles precisavam urgente
de fazer um recall [xiii]desse modelinho que já estava por demais
ultrapassado. Então, fica a pergunta: será que vale a pena entrar em
um relacionamento e se entregar tanto ao ponto de ser moldada
pelo boy? Na minha humilde opinião: nãoooo! Não quero isso para
minha vida. Se um dia achar o cara dos meus sonhos, com certeza
ele não será perfeito, não será nem um pouco parecido com um
“príncipe encantado”. O meu homem certo será aquele que aceitará
as minhas distorções e maluquices, mas, acima dessa superfície de
insanidade e desordem, enxergará minhas virtudes. Viveremos
juntos e não grudados, e ele será assim como eu, um ser imperfeito.
Perfeição não existe! Enquanto perdemos tempo procurando
príncipes encantados, não enxergamos os sapos bem-intencionados
que existem brejo afora. Digo… Mundo afora.
Depois de tanta reflexão, minha amiguinha enxaqueca se
instalou no sofá do meu crânio, colocou as suas “pernas” para cima,
e com isso me fez crer que não seria uma visitinha passageira.
Precisava, o mais rápido possível, colocar uma porcaria de uma
vassoura atrás da porta do meu cérebro, quem sabe assim ela não
aparecesse mais por aqui. Enquanto não descobria como fazer essa
mágica, apelei para os bons e velhos comprimidos emergenciais
que trazia sempre em minha bolsa. Tomei dois de uma só vez.
Agora, ou essa dor iria embora, ou eu ficava grogue o resto do dia,
e, como conhecia a minha tendência a sortuda, meu pensamento
quase gritou: “É óbvio que será a segunda opção, sua monga! E se
prepare, pois, com certeza, você ainda terá alguma atrapalhada
fodástica por causa dessa lezeira”! E não é que minha consciência
tinha toda a razão? Maldita sabichona!
O expediente terminou sem que avistasse as malucas das
minhas amigas novamente. Devem ter saído de fininho mais cedo
para evitar a fúria do dragão que habita o meu ser. Peguei minhas
coisas, passei no banheiro, soltei meus cabelos e passei um
batonzinho básico. Depois, saí do prédio com o andar um tanto
cambaleante pelo calor e sob efeito dos analgésicos. Ainda bem que
o ponto de ônibus não era distante, não sei se me aguentaria em pé
caso precisasse andar mais que alguns metros. Como disse a sorte
não é minha amiguinha, então papai do céu não fez milagre, o
busão estava lotado novamente. Entrei com dificuldade e me
segurei na barra de ferro do ônibus, rezando para não cair no chão
mais uma vez naquele dia. Poxa, esse seria meu recorde! Duas
vezes em um dia, esse era uma meta que definitivamente não
gostaria de bater, sério mesmo!

Andei até o fundão. Estava espremida entre um cara que ouvia


uma música com uma letra do capeta, um daqueles “funks
proibidões”,[xiv] alta demais, insuportável, minha cabeça pedia
clemência, e, do lado oposto, havia outro rapaz, de cabelo raspado,
pele negra, bem cheiroso que trajava uma camisa imaculadamente
branca. Foi atrás dele mesmo que me posicionei, parecia exalar paz
e tranquilidade. Estava ali, “de boas”, olhando aquela brancura da
camisa que causava um efeito hipnótico, e me peguei imaginando
se, de frente, o rapaz era tão gostoso quanto seu perfume. Baixei o
facho quando vi que ele tinha uma aliança dourada gigantesca no
dedo, droga! Os melhores sempre eram comprometidos, mundo
injusto! Foi com esse pensamento, com o balanço do vai e vem e o
branco hipnotizante da camisa que, em uma freada brusca,
consegui fazer mais uma das minhas façanhas geniais. Fui de
encontro à camisa branca, deixando ali a marca de meu batom
vermelho impressa no tecido imaculado.

Puta que pariu! Ele não pareceu notar. Então, surgiu a questão
moral para me afligir: aviso ou não aviso, eis a questão? Pensei por
menos de um minuto e resolvi ser uma FDP, não quis arriscar ser
xingada, por isso saí de fininho de perto dele e fiquei imaginando o
que o homem explicaria em casa… Opa! Mandei muito mal! Foi mal,
cheiroso! Mas acho que você vai apanhar hoje por minha causa.
C 5

“Ufa, cheguei viva em casa”! Esse foi o meu primeiro


pensamento ao chegar ao conforto de meu lar. Mal coloquei os pés
na porta e fui recepcionada pelos miados urgentes do meu gato
faminto. Ele veio em minha direção, em disparada, com os olhos
pidões, de quem quer tudo. Chegou até minhas pernas e ficou se
esfregando, fazendo aquela miadela arrastada e insistente. Como
estava ainda com minha querida dor de cabeça, fui alimentá-lo
antes mesmo de trocar de roupa. Era isso ou eu faria patê dele com
meu estresse encruado.
Coloquei a ração, depois misturei aquela gororoba fedorenta
que eles adoravam e que vinham em latinhas ou sachês.
Sinceramente, não sei como esses bichanos comiam isso com tanta
vontade, se fosse eu que tivesse de comer, colocaria as tripas para
fora no instante que sentisse aquele cheiro, blergh! Mas, pensando
bem, para um gato que vivia caçando besouros, baratas e ratos,
essa espécie de comida deveria ser uma iguaria nobre, tipo um
caviar da vida felina. Fiz um cafuné nele e deixei-o devorando
avidamente sua refeição repulsiva.
Fui para o quarto e me joguei na cama, puxei o travesseiro
sobre minha cabeça. Só queria que a maldita dor me abandonasse
de uma vez. Como minha mãe não estava em casa e muito
provavelmente só voltaria à noite, aproveitei para descansar na
santa paz e no silêncio, coisa rara. Algum tempo depois, fui tirada
do meu recanto pela vibração do celular em cima do criado-mudo.
Olhei para o aparelho com raiva, a soneca estava tão boa! A
verdade é que queria voltar a dormir, entretanto o sono já tinha ido
embora. Notei que, graças ao bom Deus, com o cansaço tinha ido
embora também a minha visitante não grata: a enxaqueca. Pelo
menos essa era uma boa notícia!

Nem olhei para o celular para ver por qual razão ele havia
vibrado. Resolvi primeiro tomar um banho e comer algo antes de
responder a alguma conversa. Com certeza, se pegasse o celular,
ele me roubaria horas do meu precioso tempo, muitas vezes até
deixava de comer quando estava conversando com minhas amigas
nos grupos, e isso era algo que irritava até mesmo a minha santa
mãe. Escolhi meu pijama dos Minions [xv](sim, por dentro sempre
seria uma criançona, me julgue!) e fui ao banheiro. Enquanto a água
escorria morna sobre meu corpo, meu cérebro começou uma
trairagem, me levando para reflexões da qual tentei fugir o dia todo.
Questões como: quão satisfeita estava em minha vida atual?
Ensaboava-me de forma mecânica, enquanto fazia um balanço de
todas as minhas escolhas. E então me fiz a pergunta que assombra
a maioria das pessoas: o que estava fazendo de minha vida hoje
daria orgulho para a criança que fui? Aquela menininha que vivia
dos sonhos, que queria ser bailarina, cantora, pediatra, jornalista ou
atriz. Claro que não tinha talento para nem metade dessas coisas,
mas, a questão principal era: essa era mesmo a vida que escolhi
para mim? Morar com minha mãe aos 31 anos, sem
relacionamentos sérios ou informais, sem sair de casa para me
divertir, vivendo dia após dia sem objetivos e com um trabalho que
só me fazia infeliz? Eram tantos sem… Sem… Sem… O que fiz da
minha vida?!

Saí do banho, que era para ser relaxante, com esse peso em
minha consciência. O que poderia fazer para mudar minha atual
condição? Começar do zero? Será que daria para recomeçar nessa
idade? Não que fosse velha, porém o mercado de trabalho era uma
selva sem escrúpulos, e o tempo de experiência era a chave do
sucesso ou do fracasso. Hoje em dia, começar do zero quer dizer
que você vai começar com experiência zero, e algumas empresas
sequer olham currículos dos “sem experiência”. Julgava que era
tarde demais para aventuras, mas será que era mesmo tarde?
Tantas perguntas me rondavam agora. Vesti meu pijama, encarei o
espelho e vi uma menina gordinha retribuindo meu olhar com um
outro, inquisitivo e esperançoso, que parecia ter um pedido mudo
em seus lábios e gritos em seus olhos: Liberte-se!
Eram estranhos esses questionamentos virem logo agora, tudo
desencadeado por uma conversa boba de lanchonete, entretanto a
verdade era que, lá no fundo, estava anestesiada. Estava deixando-
me ser conduzida pela comodidade da minha rotina confortável.
Sempre usei como pretexto não deixar minha mãe sozinha, no
entanto ela mesma aproveitava sua vida muito mais do que eu.
Cheguei à conclusão óbvia de que não estava existindo, estava
apenas sobrevivendo. Essa constatação me deixou convicta de que
precisava mudar algumas coisas em minha vida.
Fui para meu quarto, liguei o Jack, meu notebook (tinha mania
de nomear meus objetos) e fui ver as últimas atualizações das redes
sociais dos meus amigos. Logo apareceram imagens de todos os
tipos de casais vivendo intensamente em viagens e passeios,
mensagens com gifs brilhosos de bom dia, boa tarde e boa noite
(não sei por que o Facebook autorizou isso, era irritante já na época
do Orkut[xvi]!), pessoas sorrindo, bebendo, saindo, viajando…
Vivendo e aproveitando, e eu aqui sozinha, reclamando! Que saco!
Fui atingida por um azedume insuportável. Fechei o Jack com fúria
(foi mal, Jack!). Só o que faltava para mim era virar uma megera
amargurada daquelas que ficavam invejando a vida alheia! Esse
negócio de recalque, de ficar me corroendo por dentro não era para
mim, afinal, o que me impedia de fazer exatamente aquilo que os via
fazendo, ali naquela tela? Nada. Era eu quem me empatava de
buscar a felicidade.
Peguei meu celular e fui espiar as novas mensagens no grupo
do Whatsapp[xvii]. As notificações vinham das minhas amigas.
Deviam estar doidas de preocupação, uma vez que não sabiam
nada de mim desde a bendita conversa no Bilbo’s. E que
esperassem um pouco mais! Afinal, eram elas as causadoras da
minha dor de cotovelo e dessa crise existencial que se abatia sobre
mim. Por falar em crise, olhei para a hora e vi que já passavam das
21h00min. Onde será que estava a dona Sônia? Não fui ver no
quarto, contudo, como a nossa casa estava muito silenciosa, deduzi
que ainda não havia chegado da rua.
Ai, ai, ai, ai! Ela andava muito saidinha e misteriosa para meu
gosto. Meu lado filha possessiva não queria nem pensar em minha
mãezinha santa namorando. Só que pelo amor de Deus! Já fazia
alguns anos que meu paizinho se despediu e foi morar em outro
plano. Era justo ela ter uma vida, afinal ela estava viva, era ele
quem tinha morrido.

Encaminhei-me até a cozinha, chamando pelo Sardinha. Esse


gato estava muito arredio, não ficava mais perto de mim, será que
tinha me tornado uma má companhia até mesmo para ele?
— Piss-piss-piss... Sardinha, cadê você? — chamei daquela
forma ridícula que chamamos os gatos, parecendo uma louca.
Estava concentrada na procura do gato, quando ouvi um
ranger da madeira atrás de mim, me assustando, afinal, julgava
estar sozinha em casa. Meu coração começou a bater no ritmo do
ragatanga[xviii]. Quando olhei para trás, deparei-me com a visão de
um homem de meia-idade, sem camisa e pensei: pronto! Vou
morrer, é hoje! Agora tudo fazia sentido! As reflexões sobre minha
vida nada mais eram que o prenúncio de minha morte. O grito ficou
entalado na minha garganta, então fechei os olhos e comecei a
rezar baixinho.
C 6

Quando ele se aproximou, tapei a boca com as mãos a tempo,


evitando assim que saísse um baita de um grito. Enquanto o mirava
aturdida e com medo, o homem me olhava com misto de vergonha e
divertimento. Sem esperar reação, ele estendeu a mão de maneira
amigável, percebi que não havia arma ou faca nela, e se
apresentou. Seu nome era Santiago e disse que era… namorado da
mamãe!

Sabe aquela trilha sonora da Maysa[xix], “Meu mundo caiu”?!


Pois então, era exatamente essa música que tocava na minha
mente naquele instante. Pensei: até minha mãe namorava,
transava, saía e eu… bem, na melhor das hipóteses, estava livre por
opção, e na verdadeira hipótese… Encalhada!
Sorri amarelo para o tal do Santiago, ainda pensando que
dona Sônia estava me devendo uma explicação, afinal era sua filha
única e acho que deveria existir alguma regra implícita, na qual ela
deveria pedir permissão a mim, antes de trazer o namorado pra
casa, né? O quão idiota isso soava até para mim mesma? Tinha
mais de trinta anos, já não era nenhuma criança para precisar ser
consultada… A verdade era dura, mas eu estava morrendo de
ciúmes, e talvez, apenas talvez, com uma pontada de inveja de
minha própria mãe… “Caramba! Minha falta de vida social estava
realmente afetando meu senso de ridículo! Se toca, Solena!”
Enquanto minha mente divagava, o pobre coitado ficava me
fitando sem jeito, quiçá julgando se eu teria sérios problemas
mentais, verbais ou ambos. Então me apressei para escapar
daquela estranha situação.
— Ah! Oi, Santiago, é um prazer conhecê-lo. Sou Solena, filha
da minha mãe (dã! não... filha da minha tia… pareço uma
personagem de filme pastelão), digo, da Sônia, fica à vontade. É…
Já estava voltando ao quarto, só vim procurar o Sardinha, quer dizer
não a comida, o gato!… — expliquei idiotamente, querendo que
abrisse um buraco no chão para me tragar. Ele agora ria sem
conseguir controlar, devo ter causado uma ótima primeira
impressão.
Ele retribuiu a saudação e ficou me observando divertido,
enquanto ia me afastando de costas em direção ao meu quarto. Em
uma escala de idiotice, em que nível deveria parecer uma mulher da
minha idade com pijama amarelo dos Minions, agachada na cozinha
à noite, chamando por Sardinha, e que não sabia nem falar de modo
adulto com o namorado de sua mãe sem gaguejar?
Quando estava no meio do corredor, já próxima ao meu quarto,
eis que surge o gato miserento e traidor, correndo pelo passadiço
desvairado, quase me matando do coração e me fazendo dar um
grito estridente. Torci para que eles não viessem ver o tinha
acontecido. Estava muito tensa, só podia ser esse o motivo para me
assustar tanto em um único dia.
Não reparei em nenhum sinal de minha mãe e o tal do
Santiago já devia ter ido novamente para o quarto dela, pois agora a
luz da cozinha estava apagada e tudo reinava no mais absoluto
silêncio. Ainda estava digerindo meu novo “pai”, “padrasto”, “amigo
colorido”, “papi”, ou sei lá o que ele era. Meu Deus! Tinha um
homem ali no quarto com ela… Argh! Nem queria saber o estavam
fazendo, tomara Deus que não ouvisse nada através das paredes,
isso me levaria direto para consultório psiquiátrico! Dormi um sono
agitado, com pesadelos dos quais não lembraria ao amanhecer.
Cheguei à conclusão, depois dos últimos acontecimentos que
precisava virar o jogo da minha vida urgentemente!
No dia seguinte, saí de fininho com antecedência para o meu
trabalho. Chegaria antes de todos, mas e daí? Dane-se! Pelo menos
assim adiaria um pouco o confronto com minha mãe. Bem, no
fundo, sentia-me feliz por ela, afinal é a minha mãe, né? Eu mais do
que ninguém sei o quanto sofreu com a morte precoce do meu pai.
Cara, amo aquela mulher pra cacete, com certeza, sei que ela
merece ser feliz, todavia tinha um diabinho que ficava tizicando com
ideias tolas de ciúmes e inveja. Nada a ver, né? Mas essa sou eu, e
como não domino muito bem os paranauês sentimentais conflitantes
dentro de mim, ajo como uma bela covarde e… fujo!
Peguei a primeira fruta que vi na frente (hoje nada de banana,
não vamos brincar com meus recordes de azar, né?) e passei batida
pela porta. Percebi que não recebi nem um miado de bom dia do
Sardinha, o meu grito de ontem deve ter magoado seus sentimentos
felinos. Fui até o ponto de ônibus, sem nenhuma gracinha de
nenhum operário. Depois do dia da banana, acho que ganhei fama
de louca de pedra, e quer saber? Melhor assim! Não sou um pedaço
de carne para ficarem me secando e falando, como se fosse
comestível.
Puxei a Carochinha rosa choque e liguei em uma música da
Pitty [xx]que amo, “Me Adora”. Quando chegou o ônibus, subi já em
modo automático, e fiquei totalmente entregue ao poder da música.
Elas sempre me ajudavam a relaxar, aliás, sempre ficava tão
relaxada que… Senti um pequeno cutucão e tirei o fone. Uma
velhinha me olhava de cara feia, e uma mãe com seu filho pequeno
também estavam me encarando com cara de poucos amigos.
Coloquei a mão no olho para verificar, sei lá, vai que tô com remela?
Por ser tão cedo e como saí rápido de casa, poderia ser que algo
tivesse saído errado. Conferi os sapatos. Ok. Remela parecia não
ter, o cabelo com certeza está no lugar certo. Então, o que diabos
estava acontecendo para elas me encararem como se estivessem
vendo o próprio anticristo no ônibus?
Um rapaz um tanto desengonçado, cabeludo, com roupas
pretas estava ao meu lado, rindo baixinho, e se tinha uma coisa que
me tirava do sério, era reparar esse tom de escárnio nas pessoas.
Olhei para ele com cara de quem iria matá-lo, mas em vez de ficar
com medo, ofereceu-me um sorriso simpático… bem, confesso que
era até mesmo um sorriso bonito. Aliás, olhando de perto assim, ele
nem parecia tão esquisito. Só que ainda ria de mim, que cretino!
— Hey! Ô, mané! Do que está rindo, por acaso tô de verde? —
Liguei-me em modo jumenta e taquei-lhe logo um coice certeiro.
Ele me olhou com cara de assustado, talvez pensasse que o
meu nível de loucura não fosse chegar ao ponto de tirar satisfações.

— Ah, moça, desculpa. Isso foi engraçado! Não queria parecer


um babaca rindo de você, nem nada do tipo, só que a cena estava
hilária, você aí cantando alto “Me adora” e, tipo, as tiazinhas ali te
olhando feio pelo “me acha foda”… — Desviou os olhos e riu mais
um pouco. Caraca! Com certeza, devo ter ficado parecida com um
pimentão, pois não fazia ideia de que estava cantando alto.
— Não fica assim, estava maneiro! Você canta de boa! Eu
estava até curtindo. A propósito, meu nome é Eduardo, pode me
chamar de Edu. — Vendo meu desconforto, ele foi gentil, se
apresentou estendendo sua mão para me cumprimentar, ou
consolar pelo mico, e sorriu dessa vez não de mim, mas para mim.
— Obrigada, não fazia ideia que estava cantando alto, tô
morrendo de vergonha por ter sido grossa com você. Aliás, as
senhoras ali estão com toda a razão de me encarar zangadas, devo
parecer uma louca desbocada. — Eu me desculpei com um sorriso
amarelo.
— Posso saber seu nome? — Mudou de assunto, talvez para
cortar o clima esquisito.
— Meu nome é estranho, Solena. Pode me chamar só de Sol
mesmo! — exclamei, rindo.
— Belo nome! Solena, bem diferente! E esse apelido combina
com você, me parece uma pessoa bem alegre e enérgica. Como o
sol. — Ele coçou o cabelo e me olhou divertido.
Dois lugares vagaram à nossa frente e nos sentamos juntos.
Ficamos trocando ideias enquanto o ônibus continuava o trajeto.
Descobri que ele gostava de rock e estava terminando o curso
superior em publicidade. Edu confessou que não havia sido a
primeira vez que me via no ônibus cantando. Como ele tinha o
horário da faculdade matutina, às vezes calhava de me encontrar na
hora que eu ia para o trabalho. Explicou que quando coincidia,
sempre gostava de ficar me observando, até poderia ter ficado com
medo dessa parte, porque, afinal, o mundo de hoje está cheio de
gente maníaca e bandida. O cara parecia ser bem legal, e não um
maníaco potencial. Se bem que quem vê cara… Ahhh, foda-se!
Gostei dele e pronto! Sou assim, se meu “santo” for com a sua cara,
em minutos acaba se tornando um amigo. Aliás, na maioria das
vezes que as pessoas me perguntavam como virei amiga de fulano,
nem sabia explicar como.
Estava perto de chegar ao trabalho, graças a Deus ainda
precisava apenas um ônibus, mas Edu tinha que soltar para pegar
outro a fim de chegar à faculdade. Então, nos despedimos, porém
antes trocamos número de telefone e redes sociais. Quem sabe o
destino estava começando a colaborar comigo?
C 7

Um sorrisinho bobo me acompanhou pelo resto da viagem até


chegar ao trabalho e não passaria despercebido pelo radar das
minhas amigas malucas. Bem, não conseguiria ficar com o bico
calado mesmo… Dei de ombros e entrei no prédio da empresa.
Com toda a certeza, Edu e Santiago seriam a pauta da reunião do
dia no Bilbo’s Café.
Quando cheguei, dei de cara com a lacraia da Camila. Ela veio
rebolando sua bunda siliconada. Não me leve a mal, não tenho
inveja dela, não. O.K., ela é linda? Sim! E não tenho nada a ver com
o que é verdadeiro ou falso em seu corpo ou com quem ela ficava
ou deixava de ficar, mas o caráter dela me incomodava muito.
Posso dizer que se pudesse descrever com características físicas o
interior dela, Freddy Krueger[xxi] seria o equivalente ao âmago dessa
criatura. Tudo nela me dava nos nervos por causa de suas atitudes
sempre frívolas e maldosas.
Vou tentar explicar um pouco a espécie de pessoa que é
Camila Mendonça. Sabe aquelas mulheres superficiais e rasas
como piscina de recém-nascido? Ela é exatamente assim, é
daquelas que só se relacionam com pessoas que possam trazer
algum benefício no futuro. Se ela quer alguma coisa, não se importa
a mínima de passar por cima de quem quer que esteja em seu
caminho. Outra “qualidade” da nossa querida Barbie Paraguaia: ela
encarava todo homem bonito, casados ou comprometidos, como um
desafio a ser superado, ou seja, nenhuma mulher comprometida
queria essa jararaca perto de seus boys. Quando calhava de ela
conhecer os “alvos” em potencial, as mais espertas faziam chegar
aos ouvidos dela todas as imperfeições dos caras, desde invenções,
como pinto pequeno, até aumentar defeitos existentes, dizendo que
eles babavam enquanto dormiam, tinham chulé ou soltavam pum a
torto a direito. Com aquela ali, era matar ou morrer… Essa era outra
vantagem de ser solteira nesse campo minado, não corria risco de
ser picada por essa jararaca oxigenada.
Camila levou alguma coisa para o Guilherme. Todos ali
estavam cansados de saber que seja lá o que fosse não passava de
um pretexto para atacar o gostosão. Ninguém era cego, e ela fazia
todos os dias a mesma rotina de sensual seduction[xxii] com o
chefinho desavisado. Tinha até uma aposta rolando para saber se
ele pegaria ou não a lambisgóia, argh! Balancei a cabeça, negando
essa desgraça iminente. Afinal, o Guilherme era o nosso oásis no
deserto, uma visão tão lindamente máscula e viril, moreno, alto,
sempre bem-vestido com roupas sociais escuras, cabelo castanho
espesso, sempre cheiroso e com um sorriso de matar qualquer
mulher de ataque fulminante da periquita (ui! Que calor!)... Imaginar
que ele pegaria tal criatura era como estar em uma linda praia
admirando a paisagem e, do nada, avistar um pedaço de merda
boiando nas águas límpidas. Claro que ela era uma bela merda loira
e esbelta com uma Louis Vuitton a tiracolo; ainda assim, era apenas
isso, uma bela bosta! Parei com a descrição para não correr o risco
de você vomitar!
Fiquei olhando em direção à sala do Guilherme enquanto ia
para meu cantinho onde encontraria uma infinidade de papéis a me
receberem de braços abertos. Eles me amavam, porém o amor não
era recíproco… Doía minha cabeça só de imaginar que estamos
com trocentos IR [xxiii]para fazer. Estou tão louca com esses números
que sinto permanentemente o rugido de um leão em minhas
orelhas. Deve ser isso o maldito causador das minhas crises de
enxaqueca.
Mal sentei a bunda na cadeira, e o ramal tocou. Era Nathalie
querendo saber como estava. Ou melhor, era minha amiga testando
meu humor e minha paciência. Ela estava com sorte, depois
daquele bendito encontrão com o Edu no ônibus, eu estava mais
leve a ponto de não querer mais matar as duas, talvez o massacre
ficasse para outra ocasião.
— Nat, pode ficar tranquila! Já estou com meu ódio controlado,
mas preciso de uma reunião de emergência no Bilbo's regado a
muito café e torta com chocolate extra. Fala com a Suzy? —
anunciei de uma vez por todas, apaziguando os ânimos e
levantando a bandeira branca da paz.
— Claro, ela tá aqui do meu lado te mandando um oi —
respondeu, rindo.
— Preciso contar o meu mais novo drama pra vocês… —
murmurei baixinho para mais ninguém por ali escutar.
— Quais dos seus dramas? Afinal, sua vida é uma novela
mexicana… Ahhhh! Solena do céu! Você viu que a naja oxigenada
entrou na sala do chefinho? Já faz 15 minutos e 18 segundos e
nada de sair? — Nat narrou sem pausa para respirar.
— Puta merda! E você tá cronometrando isso? Não creio,
Nathalie! — indaguei incrédula. Ela era mesmo inacreditável!
— Claro que sim, até porque tenho um bom dinheiro apostado
na naja. — Ela deu uma sonora risada. Mesmo se não estivéssemos
ao telefone, eu a teria escutado de onde estava.
— Você teve a cara de pau de apostar a favor dela? —
questionei, indignada, bufando de raiva.
— Sol, minha amiga, desculpa a decepção, mas sou uma
pessoa matemática e joguei com as probabilidades. Ela é linda, tem
peitos e bunda grandes, e até onde pude perceber o Guilherme não
é gay. A última vez que o vi também não estava morto, então… —
Justificou-se.
— Ahh! Cala a boca, Nathalie, e vai trabalhar! Vejo vocês no
almoço. — Bati meu telefone, espumando de raiva. Merda! Que
reação foi essa, Solena? Nem me reconheci, eu hein!
Tentei focar nos papéis que precisavam de minha total atenção
e concentração. Precisava esquecer as caraminholas que vieram
fazer turismo pela minha cabeça. Tentei usar todo meu esforço para
manter o foco no trabalho, pois só assim não piraria de vez. Só o
que me faltava era ficar me importando com quem o Guilherme saía
ou deixava de sair… Sai fora! Deve ser coisa da minha, já
constatada, carência, que devia estar afetando o Tico e o Teco! Ok,
sempre tive uma queda saudável pelo chefinho. Ele é gato e não
sou cega. Mantinha uma admiração platônica controlada, afinal, fala
sério! Quais seriam as minhas chances com aquele Zeus? Zero
vírgula zero, zero, zero, zero por cento? Ele não devia me ver como
uma mulher e, sim, como uma fonte inesgotável de desastres, ou na
melhor das hipóteses, como uma fábrica de gargalhadas ambulante.
Enfim, não ligo. Não quero nada com ele e nem poderia, uma
vez que a empresa tem uma política clara e rígida: nada de
relacionamento entre funcionários. Agora, você deve estar se
perguntando…, “mas, ué, ela não falou que a naja pega geral”?
Bem, a jararaca sabe dar os seus botes na surdina, digamos assim,
a ponto de nunca ter sido pega com a boca na botija, pois, caso
contrário, teria uma fila de gente que ficaria bem feliz em entregar o
babado aos manda-chuvas e ver seu rabinho oxigenado sendo
chutado para bem longe…
Dei uma olhadinha no relógio e me surpreendi. Como a manhã
havia voado, já estava na hora do almoço! Como disse, me
concentrar no trabalho fazia com que o tempo passasse ligeiro,
“para nooooossa alegria”[xxiv]… Peguei minha bolsa e saí para
encontrar as amigas mais malucas do pedaço, uma vez que estava
na hora do café com bobagens no Bilbo's.

O café estava relativamente vazio àquela hora, dei uma boa


olhada no ambiente que me era tão familiar e acolhedor. Tudo tinha
um toque meio “vintage” e misturava o charme do antigo com um
tom de modernidade e conforto. Adorava esse lugar, me sentia
muito bem nessas poltronas vermelhas e nas mesas de madeira
escurecida, dentro das paredes de tonalidade pastel. O local parecia
inspirado naquelas lanchonetes antigas, até um “jukebox[xxv]” idoso
tem por aqui, e isso ajudava a compor o clima retrô do local. O
cardápio plastificado era vermelho intenso e nele havia algumas
peculiaridades como: Milk-shake Hepburn[xxvi], sorvete Marilyn[xxvii],
sanduíche J.D (James Dean[xxviii]), entre outros nomes tão criativos
quanto. Amava esse diferencial.
As meninas apareceram poucos minutos depois de mim,
aleluia! Nathalie, como sempre, estava linda com seus cachos
ruivos arrumados em um penteado social e chique. Trajava um
casaco carmim, que moldava bem suas curvas generosas e
acentuadas. Já Suzy era alta, tinha uma pele morena, os cabelos
caíam como uma cortina negra sobre seus ombros largos, típico de
quem fez natação por muitos anos. Ela estava vestindo um tailleur
social azul-marinho, que combinava com a cor de seus olhos,
idênticos a duas pedras ônix brilhantes. Ao olhar as duas, lado a
lado, via-se quão diferente eram; contudo, ainda assim, era essa
diferença que dava o tom perfeito ao nosso grupo.
Elas se sentaram à mesa enquanto eu devaneava e vieram
trazendo barulho junto. Essas duas não sossegavam nem para
comer.

— Amiga, que cara de jacu pensante é essa? — Delicada


como um coice de mula, essa era Nat, que já chegou com cara de
deboche.
— Dessa vez tenho que concordar, Solena. Quando entramos,
você estava em um transe, só nos percebeu quando já estávamos
quase sentadas ao seu lado. — Suzy completou com um pouco
mais de educação, mas tão curiosa quanto Nat. Ambas me olharam
inquisitivamente, senti-me no banco dos réus.
— Vocês duas sosseguem suas periquitas, caramba! Estou
aqui assimilando tudo que me aconteceu de ontem pra hoje, e vocês
aí, parecendo duas metralhadoras. Credo! — protestei, já mal-
humorada. Se elas continuassem com isso, não contaria nada, mas
que saquinho!
— Hey, pera lá, mocinha! Que agressividade é essa, por acaso
está com TPM? O plano B não estava na gaveta hoje? — indagou
Nat, rindo da minha cara.
Meu olhar deve ter surtido o efeito que minhas palavras não
conseguiram, pois vi ambas fecharem o bico e aguardarem meu
pronunciamento sem mais piadinhas. Elas esperaram alguns
minutos, então o garçom trouxe nosso pedido, o de sempre, nem
precisávamos mais de cardápio: bolo, cappuccino, café, torta, ou
seja, açúcar, cafeína e muitas calorias… Quem ali ligava para peso,
né?!
— Meninas… Tô no fundo do poço, meu mundo caiu! —
exclamei e passei a mão teatralmente na testa para dar efeito
dramático à cena. Então, completei. — Minha mãe arrumou um
namorado… — Despejei a bomba e esperei a reação das duas, o
que não tardou.
Ambas me olharam incrédulas, começando a rir. Olhei com
cara de… “continuem e morram”! Então, dei prosseguimento ao
relato. Contei como conheci o dito cujo na cozinha e como quase
morri infartada, pensando que era um ladrão, e como depois fugi
covardemente para o quarto com vergonha e, o pior, para ficar com
ciúmes da situação de minha própria mãe.
— Podem falar. Sou anormal, né?! — Terminei o relato,
armando uma tromba digna do Dumbo.
— Digamos que nunca te achamos normal, Sol, por isso não
precisa se preocupar ou envergonhar-se com isso, seu segredinho
está seguro conosco — retorquiu Nat, dando uma sonora
gargalhada… Que vaca!
— Bem, Sol, é normal estar com ciúmes da sua mãe, afinal,
você é filha única e o seu pai morreu cedo, mas, no fundo, você
sabe que ela tem todo o direito de ser feliz de novo, então
naturalmente se acostumará. Não se cobre tanto, essa é uma
situação nova para você. Não se preocupe se ficar um pouco
esquisita a respeito dessa situação. — Suzy era a voz da razão, a
mais comedida e racional do grupo.
— Você sempre com as palavras certas nas horas exatas,
Suzy. Obrigada.
— Disponha. Sou a consciência desse grupo; sem mim, vocês
estariam perdidas. — Ela sorriu e deu uma piscadela marota.
Era grata por tê-las em minha vida para desabafar sobre
minhas crises existenciais. Bem, já que cheguei até ali e relatei
sobre o assunto mais difícil, agora precisava falar sobre ter
conhecido Edu e de como estava esquisita com relação ao
Guilherme. Tomei fôlego e continuei as lamúrias.
— Tem mais, meninas. Depois dessa presepada com o meu
futuro “Papi”, saí algumas horas adiantadas de casa, fugindo da
situação como contei, e com isso acabei conhecendo um rapaz
maneiro… — Claro que preferi fazer uma versão com cortes e omiti
a parte da cantoria para não rirem mais ainda da minha cara.
Revelei apenas que ele era legal e que havíamos trocado nossos
telefones. Nat me olhou animada, em seu rosto estava escrito: “Até
que enfim saindo da toca, tatu”! Contudo, Suzy, que era mais
ressabiada, me olhou como se tivesse dito que fiz pole dance [xxix] na
barra do ônibus.
— Solena, você está louca? Dar o teu número assim, pra um
desconhecido que, segundo suas próprias palavras, ficou te
observando durante vários dias? Por acaso você comeu cocô? —
inquiriu Suzy com expressão lívida de desespero e incredulidade.
— Eita! Eita! Suzy, pega leve com ela! A mulher não sai de
casa, não tem namorado há séculos e no primeiro progresso você
solta os cachorros! Por acaso virou a substituta da dona Sônia? A
Solzita deu o número e não a periquita para o carinha do buzão! —
Nat veio em minha defesa. Vi que o clima iria pesar, então resolvi
mudar o disco para o novo hit brega “acho que tenho uma queda
pelo chefinho”.
— Vocês duas, sem brigas, pelo amor de Deus! Suzy gostaria
de lembrá-la que aprecio sua preocupação, mas tenho trinta e um
anos e não doze, OK? Sei que não aparento com essa minha pele
de pêssego, só que é a mais pura verdade, pode perguntar pra
minha mãe — concluí em tom de deboche e as duas caíram na
risada, assim o clima se tornou mais ameno.
Quando os ânimos esfriaram, retornei à conversa.
— Mas falando sério, me sinto esquisita… — confessei.
— Do que você está falando agora, criatura? Está mais doida
que o habitual? Muda de assunto mais do que de roupa —
perguntou Suzy com uma expressão confusa.

— Gente, ando com alguns comportamentos estranhos. Tipo,


sei lá, acho que realmente ando carente, porque ando meio que
sentindo ciúmes do Guilherme com a lacraia… — falei, ficando
vermelha e baixando a cabeça. Sabia que viria zoação a seguir,
nem devia ter falado nada. Droga, eu e a minha língua gigante!
Mais uma vez, minhas amigas deram uma sonora gargalhada,
e fiquei ali procurando lugar debaixo da mesa para tentar salvar o
que restava da minha dignidade. Nessa minha viradinha estratégica
para a fuga, me deparei com quem? Óbvio que não foi com o
Chapolin Colorado[xxx], vindo me defender dessa dupla de amigas
doidas. Quem estava ali era ninguém menos que o Oásis que
resolveu vir ao mesmo lugar que nós. E justo agora quando estava
falando dele! Coincidência ou era apenas o destino querendo me
sacanear como sempre?
Ele estava sozinho e quando nos avistou, veio em nossa
direção, talvez com intuito de se juntar a nós. Guilherme era um
cara legal, apesar da dança do acasalamento com a lagartixa loira
aguada. E nem poderia reclamar, já que ele era um homem solteiro.
Nunca tivemos certeza se algum dia chegou a dar trela para a
criatura.
— Olá, meninas, posso me juntar a vocês? Vejo que estavam
em um papo bem animado… — Sorriu em nossa direção, entretanto
foi nos meus olhos que os dele se fixaram alguns segundos a mais,
e isso me deixou com rosto pegando fogo, além de aumentar minha
vontade de correr. Socorro!
— Claro, Gui! Quer saber a piada? Conta aí, Sol, ele vai amar
o jeito que você conta, é hilário! — Provocou Nat, dando-me um
chute com o pé por baixo da mesa. Ela era mesmo uma cachorra!
Os olhos de Guilherme pararam em mim em expectativa, e eu,
hipnotizada, paralisada e emudecida diante dele, fiquei sem
conseguir agir. Pronto! Agora ele ia pensar que além de atrapalhada
sou retardada também. Putz, mereço! Quem precisava de inimigas
quando tinha essa dupla ao lado?
Para fugir dessa cena bizarra, contei sobre o novo namorado
da minha mãe na cozinha e meu desespero por pensar que era um
ladrão. Ele riu comigo, e não de mim, e confesso que gostei. Tentei
relaxar durante os poucos minutos que nos restavam. Ele nos
acompanhou o caminho de volta, só nos separamos quando cada
um seguiu seu caminho para o devido setor. Adivinhem quem
estava esperando Guilherme? Hum, óbvio que era a naja querendo
dar bote e não gostou nada da visão dele vindo ao meu lado, ainda
por cima rindo.
Vixe! Acho que ganhei uma cobra má de brinde nesse lanche e
nem era McLanche Feliz[xxxi] para vir com surpresa!
C 8

Os dias seguiram e não tive tempo, nem paciência, para


confrontar dona Sônia sobre seu namoro, deixando essa missão
para o final de semana. Ela não escaparia impune da ira ferida da
filha encalhada!

Cheguei ao trabalho no automático, não tinha acontecido nada


de anormal no trajeto até ali. Nada de Edu, tudo anormalmente
normal, sem trapalhadas, tropeços ou confusões. Estava tudo muito
chato à minha volta. Aliás, eu quem estava muito chata esses dias.
Olhava para os lados e tudo soava opressivo de um jeito
assustador, um ambiente com ar saturado. As paredes brancas e a
luz forte misturada com o zumbido do ar-condicionado deixavam-me
com uma sensação de torpor, sentia como se estivesse em modo
zumbi, não tinha nem ânimo para procurar com os olhos a “minha
miragem”.
Só chegava, afundava na cadeira e ficava lá, concentrada nos
números, na burocracia, naquele tédio sem fim. Os papéis gritavam:
se mate! Pensava seriamente em aceitar o conselho das meninas.
Cara! Que chatice de dia, de mês, de ano, aliás, de vida!
Permanecia com esses pensamentos depressivos, quando meu
ramal tocou, e atendi com uma prontidão incrível até para mim.
— Novidades, novidades! — cantarolou uma voz estridente
que só podia ser dona Nathalie.
— Que foi, pentelha? Que novidades?! Aqui está tudo mais
parado que piscina de mosquito da dengue — retruquei de mau
humor.
— Solena do céu, se segura! Vamos ter pela primeira vez uma
bendita festa no dia dos trabalhadores! Abre a porcaria do e-mail,
pamonha! — ordenou alucinada. Se ela estava usando drogas, só
queria um pouco para ter esse ânimo logo cedo, eu hein!

— Nossa, Nat, você é um amor de pessoa... Pamonha é a


vaca da sua mãe! Um segundo, por favor, que já vou verificar se
recebi esse tal e-mail bombástico. — Cliquei no Outlook enquanto
olhava minhas unhas e bocejava. Não tinha me dado ao trabalho de
verificar a caixa de entrada ainda, pois, sempre que abria, saltavam
mais pepinos para resolver, nunca tinha nada de bom vindo de lá.
Nat não parava de falar, já tinha virado um zumbido irritante.
Meus olhos pararam em um e-mail que se destacava pelo assunto.
Cliquei, curiosa, deixei o telefone em cima da mesa com Nat ainda
falando sem pausa. Dava para ouvir sua voz mesmo sem o fone em
mãos, enquanto lia com calma e sem pressa. Acho que ela nem
notara que eu não estava mais na linha…
De: rhangelamuniz@acessoriasn.com
Enc.: solena@acessoriasn.com
Assunto: Comemoração pelo Dia dos
Trabalhadores
Dia 20/04/2016.
Prezados funcionários,
Nós, da Assessoria Souza & Neto, nos
orgulhamos do trabalho que todos vocês têm feito
pela empresa. Para retribuir esse maravilhoso
desempenho de nossa equipe, a diretoria,
juntamente com o RH, preparou um coquetel para
comemorar o Dia do Trabalhador no dia 01/05 às
18h30min no Clube Blue Village. Contamos com a
presença de todos para que seja uma comemoração
de sucesso.
O endereço segue abaixo. Pedimos, por
gentileza, que confirmem esse e-mail caso haja
interesse e disponibilidade.
Att. Ângela Muniz
Coordenadora do RH
Terminei de ler o e-mail em estado de incredulidade, afinal
havia três anos que trabalhava naquela empresa e o máximo que
nos tinham dado até então foi um cartão de feliz Dia do Trabalho e
uma caixa de bombons dos mais populares, diga se de passagem.
Ah! E cada vez mais trabalho. Uma mudança assim era realmente
digna do escarcéu que a Nathalie estava fazendo ao telefone. Falar
em Nat, peguei o telefone de novo, ouvindo a sua voz estridente
quase aos berros.
— Solena, Solena, caramba! Cadê você? Estou aqui faz mais
de quinze minutos esperando você ler essa droga. Dá pelo menos
um sinal de vida, sua vaca!
— Calma, pô! Estava lendo essa meleca de e-mail e tentando
entender. Com você matraqueando, não dava para fazer nenhuma
das duas coisas! — falei, revirando os olhos para o drama dela. Ela
não esperou nem cinco minutos!
— Solena, por acaso você ficou burra de uma hora para outra?
Ali está escrito a palavra “festa”. Festa é festa! Qual a parte da
palavra “festa”, você ainda não entendeu, sua lesada? — perguntou
com voz de deboche.
— Ô, Nathalie, dê graças a Deus que você está a uns bons
metros de distância de mim, caso contrário você entraria para o
Guiness [xxxii]como a primeira pessoa a atender o telefone com a
bunda, já que eu enfiaria ele com gosto nela!
— Uiiii, uiii, uiii, estou morta de medo! Não prometa o que não
vai cumprir, baby! Aliás, só para constar, você não faz o meu tipo!
— Poxa... Magoou, Nat, sempre tive esperanças — disse,
rindo. O papo com Nathalie e Suzana era sempre nesse nível
caótico de maturidade, vivendo entre a zoeira e a zoeira.
— Você já contou para a Suzy sobre a novidade?
— Caraca! Bem lembrado! Farei isso agora mesmo. Temos
que combinar pra comprar umas roupas para arrasar, esse clube é
chique de doer, é lindo, é fino… — declarou eufórica.
— Tá, tá, já entendi, agora vou trabalhar, Nat, do contrário não
chego nem até o dia primeiro, pois serei despedida por ficar de
conversa fiada no telefone da empresa — disse irônica.
— Oh! Sua Nerd, quem seria o doido de te demitir? Para, né,
Solena! É mais fácil vaca dar leite com Nescau do que eles
perderem a funcionária do mês. Dããããã! — debochou da minha
cara. — Beijo, Solzita, pode voltar para os teus pepinos, que vou
ligar rapidinho para a Suzy e comunicar o milagre do ano… fui! —
Finalizou a ligação sem dar tempo de me despedir. Balancei a
cabeça, aquela era mesmo louca de pedra.
Fiquei um bom tempo olhando aquela mensagem. Acho que
poderia ser algo legal. Estávamos mesmo precisando de um pouco
de diversão, distração e ver um pouco de gente nova, mas
principalmente ter um lugar para admirar essa linda miragem que
era o Gui, fora desse deserto caótico e desolador que era nosso
ambiente de trabalho. À tarde, preferi não sair para almoçar com as
meninas, uma vez que havia muito trabalho a ser feito. Como frisou
Nat, eu era, sim, uma boa funcionária, no entanto, o fato de fazer
muitas horas extras é porque sempre estava dura. Sem dinheiro
ninguém sobrevive até o final do mês. Espremia meu salário até a
última moeda, ajudava com as despesas domésticas desde a morte
do meu pai. Como dessa vez me daria ao luxo de comprar uma
roupa nova para a tal festa, afinal, sou mulher e humana e tinha
minhas necessidades, precisava fazer meu dinheiro render um
pouco mais nesse mês.
Ouvi um burburinho atrás de mim e reparei em uma
movimentação que vinha da sala do RH, provavelmente alguma
nova contratação. Curiosa, fiquei observando. A maioria de nós ali
era carente de novidades, então qualquer sinal de estranheza em
nosso cotidiano tinha o mesmo efeito que carniça para urubus. De
dentro da sala, saiu uma moça com uma roupa social justa. Ela era
alta, bonita e exótica tinha os cabelos loiros com as pontas pintadas
de uma tonalidade roxa, parecia uma californiana divertida. Sorri.
A moça vinha andando com passos firmes e um olhar
confiante, não parecia ter a ansiedade que se destacava nos
novatos que entravam ali, alheia aos olhares curiosos que a
espreitavam. A coordenadora do RH, Maria Eduarda, apresentava a
moça para todos que estavam trabalhando. Reparei que ela disse
algo bem de frente para a moça, que assentiu. Então, apontou o
biombo que ficava ao lado do meu.
Era para eu ter ficado nervosa, afinal, isso mudaria um pouco
minha rotina, talvez tivesse que ensiná-la como funcionava tudo por
aqui ou ela poderia ser uma Camila da vida. No entanto, minha
intuição dizia que ser exatamente o oposto. Sabe quando dizem
quando o santo bate com o de outra pessoa? Quando logo de cara
você vê que não foi por acaso que teve uma simpatia gratuita, sem
nem ouvir a voz da pessoa?! Era desse jeito que me sentia nesse
exato momento com aquela novata.
Fui tirada dos meus pensamentos pela voz da Camila, que
veio destilar seu veneno ali, nas minhas costas. Ouvi seu sibilar
quase reptiliano comentando sobre a nova moça com outra garota
que trabalhava no cubículo logo atrás de mim…

— Aí, gente! Não sei como vamos lidar com essa moça nova!
Essa tal de Nuccia. E que nomezinho, hein? Ela deve ter entrado
por cota ou coisa do tipo… — murmurou maldosa. Fiquei sem
entender o motivo desse comentário. Apurei meus ouvidos para
prestar mais atenção ao veneno da naja.
— Camila! Para de maldade, já vai implicar com a moça? Você
ainda nem a conhece… — Larissa, que estava conversando com a
cobra, protestou saindo em defesa da moça.
— Ah, Lari, antes fosse só fofoca. Você não sabe que ela é
surda? Pobre coitada, como vai se adaptar à nossa rotina? Aliás,
como vamos nos comunicar com ela? Eu não sei aquela linguagem
de sinais! — afirmou, um tanto maliciosa.
Ouvi passos se aproximando e uma voz forte e feminina dizer
firme:

— Vou enumerar para você entender, coleguinha, porque


infelizmente não tem como desenhar! Em primeiro lugar, não sou
pobre coitada por ter uma deficiência. Segundo, não sou burra ou
incapaz, devo ter, no mínimo, o dobro do teu QI! Terceiro, não entrei
por cota, sou pós-graduada e perfeitamente qualificada para o cargo
que me deram nessa empresa. Quarto, é língua de sinais e não
linguagem, e consigo ler seus lábios, então é assim que, na maioria
das vezes, me comunico com as pessoas. Nem todos os surdos se
comunicam através de língua de sinais. Por último e não menos
importante… Pode dar licença e sair da minha frente antes que eu
perca a paciência e meta um processo em você por assédio moral?
— finalizou em alto em bom-tom. Se mais alguém ali estava
pretendendo tratá-la com condescendência, desistiu na hora.
Virei a cabeça o mais rápido que pude a tempo de ver uma
Camila, roxa de vergonha, sair em disparada em direção ao seu
covil. Dei um sorriso para minha mais nova melhor amiga e aliada.
Vi que de frágil aquela ali não tinha nada, pelo contrário, sua língua
era tal como a minha, afiada e sem rédeas quando era preciso, e
isso era algo que admirava nas pessoas: atitude!
— Prazer, meu nome é Nuccia, mas pode me chamar de Nu!
— Retribuiu meu sorriso, estendendo sua mão de unhas bem-feitas.
E foi assim que uma tarde monótona e cinza ganhou matizes
de cores vibrantes com a presença vivaz de Nuccia naquele
ambiente pacato e sem brilho. Ao longo do dia, tive oportunidade de
conversar um pouco mais com ela, que sabia fazer leitura labial e
falava tão bem quanto qualquer ouvinte.
Ela me explicou um pouco sobre sua surdez, que ocorreu
tardiamente por causa de tumores raros benignos que surgiram
quando ela tinha vinte e sete anos. Ela teve que se adaptar a essa
nova realidade, aos meus olhos, com muita coragem e bom humor.
Um dia foi o suficiente para admirá-la por ser uma pessoa forte e
maravilhosa, que não se deixava se abater ou ser diminuída por
causa da deficiência. Inclusive, soube que, além de pós-graduada,
era escritora e tinha uma biografia chamada “Pérolas de minha
surdez”. Óbvio que o leria!
Ao fim daquele dia memorável, no qual alguém finalmente
colocou a diaba loira em seu devido lugar, estava exausta. Ainda
bem que era sexta-feira, pois precisava recarregar minhas baterias.
Apresentei Nuccia para Nathalie e para Suzy, que logo que
souberam da história com a Camila a colocaram como nova musa
do grupo. Afinal, não eram muitas que confrontavam a cobra de
chocalho dourado. Despedi-me delas, que ficaram conversando.
Nosso trio se tornaria um quarteto, nosso grupo louco havia
ganhado mais uma integrante. Pessoas improváveis que se
tornariam inseparáveis. Seríamos as quatro, ao infinito e além!
C 9

Quando saí do trabalho, fui para o ponto de ônibus com uma


sensação esquisita, sentia como se estivesse sendo observada.
Aumentei a velocidade dos meus passos, uma vez que já estava
escuro. Por ser sexta, as ruas comerciais estavam quase todas
vazias. O pessoal do comércio local geralmente saía mais cedo para
seus destinos. Senti-me vulnerável, exposta e desprotegida naquele
lugar ermo. Odiava isso; ser mulher tinha esse incômodo, parecia
sempre andava com alvo vermelho na minha bunda e, mesmo que
minhas roupas não fossem chamativas, morria de medo de tarados
de plantão. Ouvia as histórias de algumas amigas, conhecidas e
estranhas que foram molestadas, ou quase… Sinto pavor pela
possibilidade de fazer parte dessa estatística.
Olhei para trás e vi que havia um homem, aparentemente
bêbado, que parecia me seguir. Meu coração gelou dentro do peito,
minhas mãos ficaram trêmulas quando notei que ele fazia gestos
obscenos com uma das mãos, enquanto com a outra tirava seu
membro flácido e nojento de dentro das calças sujas. Rezei
baixinho, pedindo a proteção de todos os santos e anjos que
estivessem de plantão naquele momento. Apeguei-me ao fato de
que ele ainda estava a uns bons metros de distância e, como estava
podre de bêbado, eu teria maior chance de escapar se tirasse meus
saltos. Não pensei duas vezes, descalcei os sapatos e corri com
todas as minhas forças para o ponto de ônibus onde haveria mais
movimentação.
Foram poucos metros até alcançar a parada de ônibus; estava
suada, trêmula e trôpega. As poucas pessoas que estavam ali me
olharam com semblante confuso, principalmente quando repararam
que estava descalça. Apenas me preocupei em recuperar meu
fôlego e olhar para trás, apreensiva, para ter certeza que ele não
tinha me seguido até aqui. Aos poucos, caí na real que meu
pesadelo e meus sapatos haviam ficado para trás, naquela rua
deserta e escura. Agradeci baixinho a qualquer ajuda divina que
tenha intercedido por mim naquele momento caótico. E se não
tivesse reparado ou não tivesse conseguido fugir? Por mais bêbado
que estivesse, por ser homem, ele poderia ter mais força que eu,
uma mulher trêmula e assustada.
Consegui pegar meu ônibus depois de poucos minutos. Dessa
vez veio milagrosamente rápido. As pessoas continuavam me
olhando estranho, talvez pelo meu olhar apavorado ou pelos meus
pés descalços e sujos. Escondi-me, encolhida no fundo do ônibus,
encostando minha testa na barra de ferro frio que usávamos para
nos segurar. Senti lágrimas grossas de alívio e raiva escorrerem
pelo meu rosto. Não me importava quem estivesse vendo, ou o que
pensariam, o que quase passei era mais forte. Sentia-me imunda ao
lembrar a cena. Uma ânsia de vômito subiu até minha garganta,
mas não ousou sair. Respirei fundo, tentando me controlar, estava
emocionalmente em frangalhos, prestes a sucumbir à dor imensa
que era me sentir tão vulnerável, quando um toque se fez presente
em meu ombro. Meu coração gelou outra vez; estava prestes a
gritar julgando que meu pesadelo tinha se materializado ali e estava
logo atrás de mim, quando ouvi uma voz familiar:
— Xiii, calma, Solena... Sou eu, Edu. O que houve contigo,
linda? — indagou com a voz preocupada.
Mirei o rosto confuso e alarmado de Eduardo e não me
importei por nos conhecermos há tão pouco tempo. Ali, ele era única
pessoa que me conhecia, mesmo que pouco, o que fez com que me
sentisse menos sozinha, menos vulnerável e perdida. Abracei-o com
todas as minhas forças, enquanto deixava o soluço da minha alma
sair junto com as lágrimas que molhavam sua camisa preta.
Naquele instante, ele cheirava a conforto e proteção.
Quando consegui me acalmar, expliquei o motivo de estar sem
sapatos e descontrolada. Eduardo fechou as mãos em punho e
enrijeceu a mandíbula de raiva; ele queria voltar, procurar o cara,
arrastar o filho da mãe pela rua até a polícia com suas próprias
mãos, mas antes queria ele mesmo dar umas pancadas no bêbado
tarado. Vendo a postura dele tão decidida e enfurecida, percebi que
estava um pouco melhor, consegui até ver graça na atitude daquele
rapaz que nem me conhecia direito e que queria “lavar a minha
honra”. Sorri em sua direção, era bom ter com quem contar nessas
horas de aflição.
Não conseguimos conversar muito devido ao meu estado de
espírito, porém ele não se deu por satisfeito e fez questão de me
acompanhar até o portão de minha casa para garantir que chegaria
em segurança. Era estranho confiar tanto nele, tendo em vista que o
vi apenas duas vezes. Era inconsequente, porém vi no Edu um
irmão que jamais pude ter. Naquele momento, percebi que ele não
era mais apenas o garoto do ônibus, ele era Eduardo, o rapaz que
em um dos momentos mais tensos me acolheu e protegeu como se
fosse alguém importante em sua vida, então foi assim que,
naturalmente, ele passou a ter a mesma importância para mim.
No trajeto até minha casa, feito quase todo em silêncio, não
tinha como expressar a minha gratidão e nem como externar o
sentimento amargo de impotência diante de uma situação tão
humilhante. Passava pela minha cabeça um pensamento sombrio,
quantas mulheres não tiveram essa mesma sorte que tive hoje,
quantas tiveram suas vidas tocadas pelo mal, pela sujeira e
podridão humana sem ter a mínima chance de fugir como tive?
Deveria dar graças de nada ter acontecido, mas não consegui
naquele momento. Infelizmente, esse acontecimento só serviu para
mostrar o quanto as mulheres ainda eram presas fáceis nesse
mundo; apesar de todas as batalhas que havíamos ganhado com o
tempo, ainda éramos de certa forma vulneráveis, por isso jamais
deveríamos deixar de lutar por um mundo mais justo onde pessoas,
como aquele maldito bêbado tarado, fossem punidas com mais
severidade.
Chegando à frente de minha casa, agradeci mais uma vez pelo
cuidado que Edu tivera comigo nesse dia tão infeliz. Despedimo-nos
com um abraço apertado e reconfortante. Olhei para trás para
observá-lo ir embora e pensei no quanto nossa amizade tinha dado
um bom salto com esse pequeno gesto de empatia. De conhecidos,
passamos a amigos. A vida era mesmo uma caixinha de surpresas,
nem sempre a melodia combina com o momento, mas sempre
haverá algo bom para nos tocar a alma.
Entrei pelo portão não reparando em mais nada a minha volta,
fui direto tomar um banho escaldante apesar do calor. Tirei minhas
roupas e me deixei deslizar debaixo do vapor quente e reconfortante
do chuveiro. Sentia minha pele suja só de me lembrar daquele ser
asqueroso vindo em minha direção com gestos obscenos e aquele
troço pendurado. Por mais que tentasse esquecer, a visão não saía
da minha memória, assombrando-me. Queria ter uma super-
borracha que me ajudasse apagar esse dia do meu calendário, ou
melhor, da minha vida…
Quando estava me sentindo um ser humano de novo, abri o
box e fui para frente do espelho, tentando me enxergar por trás do
embaçado do vapor. O que vi ia além de meu reflexo familiar, vi uma
dor, como se aquele homem tivesse me roubado algo precioso. Ele
tirou um pouco da minha fé nas pessoas, a paz e inocência que
carregava idiotamente, a certeza de que estava segura nas ruas,
sozinha. Nunca imaginara essa situação como sendo provável.
Encarei meu reflexo e vi uma mulher insegura. Essa sou eu de
verdade e não a máscara de perfeição que as pessoas costumavam
esperar de mim. Não era mais a mesma de horas antes, a moça
espontânea e divertida, pois havia perdido um pouco de mim
mesma quando corri sem lutar contra aquele filho da puta
desgraçado!
Vesti meu pijama. Não vi nem sinal da minha mãe,
provavelmente voltaria mais tarde com o tal do Santiago. Sardinha
também estava sumido, então aproveitei esse meu momento para
me deixar afundar na cama entre o cobertor e o travesseiro. Chorei
mais um pouco baixinho, agradeci a Deus pela proteção e pouco
depois fui agraciada pela dádiva do sono pelo cansaço. Na manhã
seguinte, a primeira atitude que tomei foi comprar pela internet um
spray de pimenta, ele seria meu mais novo inseparável companheiro
de bolsa. Pelo menos, esperava me sentir um pouco menos
vulnerável sabendo de sua presença.

Ainda não tivera coragem de confrontar minha mãe e a cada


dia me convencia que minha indignação pelo seu namoro era
descabida e infantil. Estava com ciúmes apenas por minha mãe ter
movimentado um lado de sua vida que, para mim, continuava
estagnado desde meu último namorado, o Rafael.
Fazia mais de um ano que tínhamos dado um ponto final em
nosso monótono relacionamento. Assim como tudo na vida, Rafa foi
apenas uma bengala cômoda em minha existência. Acho que o
sentimento era mútuo, pois o fim desse estranho namoro veio após
dois anos de beijos sem graça, sexo morno e conversas escassas.
Em vez de sairmos magoados, como na maioria dos
relacionamentos que se prezam, ao contrário, ambos parecemos
mais leves e aliviados com o término. Como começou, acabou,
simples assim. Ele seguiu seu caminho, mudou-se para outra cidade
e parece que arrumou uma mulher legal por lá, que estão felizes à
espera de seu primeiro filho.
E eu? Bem, não posso dizer que estou super feliz ou satisfeita
com minha vida, mas nem por isso sinto falta daquela relação de
mentira. Desejava uma paixão avassaladora, daquelas que te fazem
perder a cabeça e esquecer a razão. Nunca havia sido acometida
por um sentimento assim, acho que o mais próximo que cheguei
dessa sensação era com a minha fome, que quando batia se
assemelhava a uma anaconda me abraçando pelo estômago.
Acontecia toda vez que me deparava com a ansiedade.

Não falei sobre o que aconteceu com mais ninguém, nem com
a minha mãe e ou com as meninas. O motivo? Talvez por um pouco
por vergonha ou pela sensação que se falasse muito sobre assunto
poderia atrair novamente algo parecido. No fundo, sabia que era
besteira pura, mas sou cheia de manias bestas. Já bastava o Edu,
que agora era presença constante em meu Whatsapp. Ele me
mandava mensagens para saber como estava, ou apenas contando
coisas engraçadas para me fazer sorrir, mandava áudio cantando e
me divertia com seus papos malucos. Edu era uma pessoa
singular… Era mesmo um cara especial. Deus, inexplicavelmente,
às vezes, traz alguns anjos para nossas vidas da maneira mais
louca. Se você não acredita em Deus, O.K. Então pode pensar que
isso acontece por lei da atração, sorte, destino ou acaso, como
preferir. Só sei que saí no lucro quando escolhi minha playlist
naquele dia em que conheci o Edu.
C 10

Mais uma semana transcorreu, relativamente tranquila. Era


sexta-feira de novo, passado o horário do expediente, arrumei
minhas coisas e fui direto para casa. Pelo caminho, fui
acompanhada de alguns colegas que foram pegar o ônibus no
mesmo lugar. Aprendi às duras penas que andar sozinha por aí nem
sempre é uma boa escolha, ainda mais na cidade e com o índice de
violência que vemos. Como diz o ditado: “gato escaldado tem medo
de água fria”.
Cheguei em casa depois de duas horas sacolejando no busão
e dessa vez nem poderia reclamar, pois, pelo menos, meu balanço
foi com a bunda devidamente acomodada em um dos
disputadíssimos bancos. Em frente à minha casa, notei que as luzes
estavam acesas. Pensei comigo mesmo que era o dia de confrontar
minha mãe sobre seu namoro com o tal descamisado. Já havia se
passado um tempo desde meu encontro com o namorado da minha
mãe na cozinha. Após ruminar sobre a situação, eu já nem estava
mais tão chocada, afinal os sinais estavam mais claros que água:
minha mãe estava sempre animada, voltava cada vez mais tarde ou
não parava em casa. Eu quem nunca juntei os pontos ou conversei
melhor com ela.
Cheguei à conclusão de que estava sendo uma filha egoísta,
relapsa e melodramática. Quando eu estiver com a idade de minha
mãe, caso tenha uma filha pentelha como eu, que ainda more
comigo aos trinta e poucos e se achando no direito de se meter na
minha vida, vou expulsá-la na base da panelada. Se esse dia
chegar para mim, quero que minha filha me apoie e seja uma amiga
acima de tudo…
Então, tudo clareou em minha mente. Essa era a resposta o
tempo todo! Estava bem na minha cara, óbvio! Tenho que agir com
ela como gostaria, se estivesse na mesma situação… Meu
[xxxiii]
raciocínio deu um bug momentâneo, mas ainda bem que não
era tarde demais para vir o “Eureca”!
Entrei em casa feliz. Minha mãe estava no sofá, assistindo
novela. Caminhei até lá e sentei ao seu lado. Ela olhou para mim
desconfiada, tenho certeza que estava pensando que eu daria um
piti. Talvez a antiga Solena desse ataque de pelancas ou algo do
tipo, mas naquele momento via sob a perspectiva de quem quer o
melhor para minha mãe.
Segurei suas mãos e falei:
— Dona Sônia, terá que fazer uma apresentação formal do
garanhão descamisado, O.K.?
— Filha, queria conversar com você antes de trazer o
Santiago. Naquele dia, aconteceu um imprevisto e ele acabou
ficando... Desculpa. Eu deveria ter falado dele com você antes de
trazê-lo. Nem sei se o Santiago é mesmo meu namorado, estamos
juntos há alguns meses, mas ele nunca pediu nada formalmente,
nem temos idade pra isso, acho — disse, desviando os olhos,
parecia um tanto envergonhada.
Naquele momento, percebi toda fragilidade e insegurança por
trás do olhar de minha mãe. Ela que sempre foi uma fortaleza,
agora, diante desse novo sentimento, parecia estar com medo,
insegura com uma possível rejeição, perda, ou até com a
possibilidade de não dar certo. Não fazia ideia… Enxerguei ali como
ela era apenas humana, com suas fragilidades como qualquer
pessoa que se joga em um novo relacionamento.
— Mãe… Não precisa da minha permissão, você é adulta. Sou
só um pouco ciumenta, confesso, e demorei a digerir essa situação,
mas tá tudo bem. Se esse tal de Santiago te magoar, me avisa, pois
com certeza ele se arrependerá de ter nascido… — falei, dando um
beijo em suas mãos.
Ela me olhou confusa, estava estranhando minha atitude
inusitada.
— Mãe? — chamei, conspiratória.
— Fala, minha filha. — Parecia em expectativa.
— Quero que saiba que estou muito feliz por você. De todo o
meu coração! E se um dia quiser conversar sobre qualquer coisa,
pode me procurar. Sempre! Não me deixe fora de sua vida por medo
de que a julgue. Prometo que jamais farei isso. Nunca se esqueça,
dona Sônia, eu te amo mais que tudo nesse mundo, O.K.?!
Ela me olhou com os olhos marejados e me puxou para um
abraço de urso. Quando já estávamos prestes a abrir o berreiro pelo
sentimentalismo, soltei-me sorrateiramente e fui para o banho. Meu
corpo e meu coração tinham o peso de uma bolinha de algodão
naquele instante. Sorri, orgulhosa de mim mesma. Estava
crescendo, e algo dentro de mim estava se transformando.
Depois do banho, fui para o quarto e deitei na cama. Peguei o
Gus, o celular, e comecei a fuçar as redes sociais. Muitos amigos
indo, vindo e vivendo, porém não os olhei com os olhos revoltados e
invejosos da última vez; pelo contrário, achava que tinha que mudar
algo em como estava levando minha vida para obter a tão esperada
felicidade. Ainda não sabia ao certo o que poderia mudar, contudo
estava disposta a aceitar opiniões e sugestões, mesmos as mais
malucas. Não teria medo de arriscar, enfrentaria a vida de coração
aberto.
C 11

Na segunda-feira, assim que sobrou um tempinho no trabalho,


contei sobre a decisão de experimentar novas sugestões para
minhas amigas, e é claro que elas quase caíram na gargalhada. O
que as impediu foi meu olhar 43 que dizia, silenciosamente: “nem
pensem em rir ou ficarão banguelas, vadias”. Nuccia e Nat ficaram
alucinadas. Nat, apoiada pela minha nova amiga, veio de novo com
a ideia do Tinder. As duas queriam me ajudar a separar uma lista de
“pretendentes interessantes”; já Suzy, sempre com o seu jeito mais
contido, era mais cética em relação a esses relacionamentos
virtuais.
Marcamos no Bilbo's para avaliarmos as “melhores” opções.
Lógico que eu daria a palavra final; já que o bofe seria para mim,
nada mais justo! Meu estômago estava se contorcendo, seria de
ansiedade ou medo? Ou um misto dos dois? Não sabia responder.
Esfreguei os olhos com as mãos, nervosa, e tentei me concentrar no
trabalho por mais algumas horas. Tentava esquecer
momentaneamente essa maluquice a que me voluntariei.
Quando chegou a hora do almoço, já não tinha mais tanta
certeza se queria mesmo conhecer gente estranha pela internet. E
se nesse aplicativo houvesse algum louco? Maníaco? Ou pior… Um
machista, um chato, monótono e sem graça?! Argh! Um louco ou
maníaco soava mais promissor.
Reuni toda minha coragem para tentar dizer-lhes que desistiria
dessa loucura, no entanto, quando cheguei lá, estavam as três
aglomeradas em expectativa. Agora, Nuccia fazia parte de toda
essa doideira; aliás, sua presença era tão natural ali que parecia
que sempre esteve entre nós. Dava para sentir o clima de
empolgação no ar, era quase palpável. Não queria desanimar geral,
então, por que não cair um pouco na pilha, né? Pedi meu
[xxxiv]
cappuccino e um joelho de frango e começamos com “A
Seleção”.
Confesso que essa parte foi divertida. A Nat tinha inclinação
para homens tatuados e cabeludos, com ar mais selvagem (tô fora!),
já Nuccia tinha uma queda por poetas ou escritores com jeito de
menor abandonado (carência demais deixa a pessoa pegajosa…
nananinão!), e Suzy? Bem, ela curtia os caras mais comuns e
aparentemente estáveis. A primeira coisa que ela via era se o cara
estava solteiro e empregado. Já eu, observava tudo torcendo o
nariz, nunca tive um homem modelo, sobre o qual dissesse: “sou
atraída por homens assim ou assado”, não, não. Para mim, tinha
que ser um conjunto, não precisava ser lindo (ajudava, mas não era
tudo), não precisava ser rico (não sou iludida) e nem ter um
estereótipo X ou Y: cabeludo, tatuado, estilo fitness e etc… Não,
nada disso. O que importava para mim era simples: conversar por
mais de uma hora sem me entediar. Ou ficará se gabando dos seus
dotes masculinos? Blergh! A verdade é que queria um homem que
me fizesse sorrir, fosse gentil e que, acima de tudo, me enxergasse
como uma companheira e não como uma boa foda, um pedaço de
carne ou uma empregada. Era difícil? Talvez. Mas não impossível, e
sei que conseguiria!

Selecionamos, cada uma, cinco perfis, dos quais seria feito um


pente fino até sobrar quatro opções. Quatro candidatos estava de
bom tamanho para uma loucura dessas, certo? Fui taxativa quanto a
alguns requisitos: tinha que ser solteiro, divorciado ou viúvo, não
podia ter mais de 50 anos e nem menos de 25. Quero alguém que
combine e não um moleque melequento e grudento com fantasias
eróticas juvenis ou um senhor prestes a se aposentar, sem
preconceito! Só estava fazendo um filtro com meu jeito Solena de
ser… Tinha lá minhas restrições, ué! Sou humana, tá legal?
Então, ficamos ali entretidas com a bendita seleção por quase
uma hora. Cada uma pesquisando, anotando as opções em uma
agenda. Nosso curto horário de almoço tinha chegado ao fim, e não
tínhamos feito uma lista muito animadora até aquele momento.
Terminamos a reunião escolhendo apenas quatro opções, um de
cada. Engraçado, julguei que seriam muito mais.

Fomos tagarelando de volta para o escritório e, ao sair do


elevador, com quem trombamos? Obviamente, não foi uma visão
agradável! Nossa cobra mascote vinha com um sorriso cínico em
seu rosto, enquanto conversava com… Ninguém mais, ninguém
menos que nosso Oásis, Guilherme, que estava desperdiçando um
belo sorriso com aquela naja. ECA! Será que ele não via que na
testa da pessoa estava escrito “corre que é furada”? Inclusive, acho
que deveriam fazer um recall e consertar essa diaba, que veio com
autoestima demais e “semancol” de menos de fábrica.
Quando repararam em nós, pararam o que de falar para nos
dar um “oi”. Claro que o “oi” da querida naja saiu dos lábios como
um sibilar acompanhado de um sorriso amarelo em que se lia
“Caíram fora”! Porém, como somos boas amigas dela (#SQN![xxxv]),
começamos a puxar papo com o Gui, e ela teve que sair, bufando,
uma vez que ele parou de dar atenção exclusiva a ela. Se há uma
coisa que gente egocêntrica detesta é ser tirado do centro do mundo
e ser colocado de lado. Sorri, vitoriosa. Placar: Naja 0 x 1 Quarteto
Fantástico! Conversamos um pouco sobre a festa, Guilherme
perguntou animado quem iria, obviamente as meninas confirmaram,
então ele voltou sua atenção para mim e perguntou:
— E você, Sol, vai à festa? — Seu olhar exibia um brilho de
expectativa e seus dentes branquinhos estavam brilhando em um
sorriso perfeito em minha direção… Jesus, me abana!
Devo ter ficado com cara de aparvalhada. Oi? Será que foi por
educação que ele perguntou a mim se iria? Recebi três cutucões
nada discretos e percebi minha mudez. Cacete, logo eu, sem falar?
Estava doente, só podia ser! Jesus, me abana! Jesus, me abana!
Jesus, me abana!
— Caramba, viajei aqui, Guilherme! Estava pensando em
outras coisas e nem ouvi a sua pergunta, desculpa. — Fiz-me de
sonsa para tentar sair dessa saia justa com o chefinho.
— Que nada! Deixa pra lá, não era nada importante. Vou indo,
meninas, o trabalho nos espera. — Dirigiu a mim um olhar
magoado, decepcionado. Será que vi certo ou era mais uma das
minhas loucuras?
— Solena! Que reação foi essa, sua retardada?! Por acaso o
gato comeu sua língua ou você teve algum surto de burrice aguda?
— exclamou Nu que era um poço de sensibilidade.
— Caraca! Essa cena foi mesmo bizarra, parecia até que você
o ignorou ou esnobou propositalmente. Repararam na carinha de
cachorro abandonado do nosso Don Juan[xxxvi]? Inédito isso, hein!
Vamos ter que falar a respeito, na próxima reunião no Bilbo's! —
Comemorou Nat com seu jeito elétrico de ser.
— OK, meninas, agora vamos trabalhar, estou com a cabeça
ameaçando doer, e com enxaqueca fico imprestável, vocês
sabem… — desconversei, pois esse assunto estava rendendo. Já
tinha passado mais de quinze minutos do fim do horário do almoço,
daqui a pouco os mandachuvas mandariam nós quatro para o olho
da rua por justa causa. Por falar em quatro, reparei que a única que
permanecia calada e só observava era Suzy. A cara dela estava
indecifrável. Não houve chance de perguntar, nós nos dispersamos
para podermos produzir algo.

Mais uma semana se passou. Bastante trabalho, diferentes


assuntos na cabeça e quando vi, com a benção de Deus, já era hora
de voltar para casa. Olhei à minha volta e a maioria já estava
saindo. Lembrei-me daquele dia, onde fui perseguida, e de como
parecia ter sido há mil anos. Flashes de lembranças faziam-me
pensar de como Edu tinha sido um anjo em meu caminho naquela
situação. Sorri com a imagem despreocupada e bagunçada daquele
rapaz. Aliás, eu mesma estava organizando minha bagunça e
guardando o que precisaria levar para casa em minha bolsa.
Quando abaixei para pegar uma bolinha de papel, que tinha tentado
inutilmente mirar na lata de lixo. Deparei-me com Guilherme, parado
atrás de mim.
— Hey, a pessoa que tá te fazendo sorrir deste jeito deve ser
muito feliz — falou, coçando a cabeça timidamente, perscrutando
minha expressão alegre.
— Só se estiver falando do meu gato, minha mãe ou dos meus
livros — respondi sorrindo, enquanto pegava minha bolsa para
zarpar dali. Guilherme tinha algo que me deixava desconcertada,
logo eu, que nunca fui dessas mocinhas estilo pimentão, que ficam
ruborizando por tudo, me vi com as bochechas esquentando diante
do olhar penetrante daquele semideus.
— Ok, tá bom! Fingirei que acredito que não tem namorado,
Sol — sondou, e dessa vez notei que foi ele quem ficou com cara de
envergonhado. Eita, que coisa esquisita! Nunca vi esse homem
perder a compostura ou baixar a guarda.
— Claro, Gui...lherme — gaguejei, quase o chamando pelo
apelido também. Ri da minha quase gafe. Já pensou, daqui a pouco
não tardaria a chamá-lo de Miragem, aí ou ele me internava ou me
demitia.
— Pode me chamar de Gui. Sou seu superior apenas em
horário de expediente. Fora daqui, somos iguais — disse, sendo
simpático e rindo do meu jeito atrapalhado.

O.K. Agora apelou. Quase perguntei se ele tem espelho em


casa. Afinal, eu era Sol, a moça faladeira e desastrada que as
pessoas poderiam até achar engraçadinha, mas ele, hum… era “O
Cara”, todo trabalhado na gostosura, charme e carisma. Ele era o
cara que todas, ou quase todas as mulheres ali e até alguns
homens, tinham como uma espécie de inspiração.
— Iguaizinhos, Gui, a começar pela minha barba e a terminar
pelas minhas pernas peludas, né? — retorqui, não conseguindo
segurar a piadinha.
— Ah, Sol! Uma coisa que sempre observei e admirei em você
é esse senso de humor — revelou, sorrindo abertamente.
Cristalizei no lugar. Cara, isso só poderia ser pegadinha, né?
Cadê as câmeras escondidas??? Aliás, câmera tinha até por demais
por ali, só não estavam escondidas, na realidade, eram bem visíveis
para inibir ladrões e assaltantes… Fiquei sem palavras, só consegui
dar um sorriso amarelo em direção a ele. O cara que sempre fiquei
de olho, estava ali em carne, músculos e ossos me dando uma
moral. O mundo estava estranho ultimamente!
Saí de lá antes que acordasse com uma lambida de gato nas
mãos e descobrisse que estava imaginando coisas ou sonhando
aquele tempo todo. Despedi-me sem graça e fui para minha saga no
ponto de ônibus. Deus estava muito bonzinho comigo esses dias,
até consegui sentar em um lugarzinho ao lado da janela mesmo
com o ônibus lotado. Depois de uns três segundos, reparei que não
era sorte coisa nenhuma. A coisa se chamava cecê, asa, futum ou
qualquer coisa do gênero, tudo, menos sorte! Olhei para a criatura
do meu lado, a pessoa parecia ignorar o cheiro que exalava de suas
axilas e estava com um fone de ouvido, balançando a cabeça para
os lados ao som da música. Das duas, uma: ou acabou o
desodorante do cara ou ele era um assassino e escondia pessoas
mortas debaixo do braço. Sinceramente, estava inclinada a acreditar
na segunda opção.
Quando estava quase chorando, com os olhos ardendo de
tanto aspirar aquele gás do demônio, eis que o abençoado gambá
levantou para puxar a cordinha. Quase abracei a criatura de
felicidade e emoção, mas só em pensar nesse cheiro impregnado
em minha roupa, consegui me controlar. Reparei que, enquanto o “lê
gambá[xxxvii]” descia, meu querido herói, Edu, embarcava no ônibus.
Edu vinha com fone de ouvido e, assim como o cara,
balançava discretamente a cabeça ao som da música, ouvindo,
quem sabe, algum rock maneiro. Invejei-o pela leveza em seu
semblante. Eduardo emitia uma energia tão boa, ficar perto dele
parecia tão fácil, tão natural e despreocupado… E o melhor de tudo,
ele era cheiroso!
Quando me viu ali, sentada sozinha, seu sorriso e seu olhar
entraram em sincronismo e exibiram uma verdadeira felicidade em
me ver. Caramba! Como gostava daquele moleque!
— E aí, Solena?! Estava pensando em você! Como andam as
coisas? — perguntou, enquanto sentava ao meu lado e tirava os
fones de ouvido, dando-me um abraço carinhoso.
— E ai, Edu?! Então quer dizer que o senhor anda pensando
em mim? Hum… — Brinquei. — Comigo tudo dentro do normal,
aliás, sempre é tudo normal e chato… — Dei de ombros,
respondendo sua pergunta.
— Olha o desânimo! Cadê a Solena animada, aquela minha
amiga que canta alto e despreocupada no meio do busão com todos
olhando? — perguntou, apertando a ponta do meu nariz de
brincadeira.

— Sei lá! Acho que tô numa vibe [xxxviii]meio esquisita, as


meninas estão tentando arrumar namorado cibernético pra mim,
como se eu fosse “a encalhada do ano”. Não tô sabendo lidar com
isso direito — confessei, sorrindo, mas sem realmente achar graça.

— Conta outro caô[xxxix], gatinha! Até parece que tá na pista[xl]


porque quer! Para, né! — falou, dando-me um cutucão.
— Ué! E por acaso você tá me vendo cercada de carinhas,
Eduardo? Pelo visto, meus pretendentes são todos os seus amigos
imaginários — debochei da cara dele.
— Sol, fala sério, você é melhor que isso! Não deixa as
pessoas tirarem a alegria que mora em você, você brilha, Solzinha!
Não precisa de namorado para provar nada pra ninguém! Mas já
que tá incomodada, pensei aqui em uma proposta tentadora e
maluca... — E finalizou dando-me uma piscadela.
— Desde que não envolva nenhuma tentativa de me
desencalhar com algum amiguinho dragão seu, posso até pensar no
caso — retruquei desconfiada.
— Que mané [xli]amiguinho, Solena! Gata, se fosse para te
desencalhar, seria eu o candidato perfeito, não daria essa honra a
mais ninguém! — Direcionou-me seu sorriso maroto do qual eu
tanto gostava.
Confesso que, mesmo olhando para ele, não pude perceber se
falava sério ou estava brincando. Meu coração deu sinais de
carência, deu um looping [xlii]pelas palavras que proferiu, mas antes
que pudesse assimilar o que dissera, ele se retratou.

— Ei, Sol, tô de zoação[xliii], não precisa ficar tão séria! Deixa te


dizer logo a proposta antes que você pense que estou te
assediando — esclareceu, puxando uma mechinha do meu cabelo
entre seus dedos e dando uma cheirada. Eu, hein, que esquisito!
— O.K. Diz aí, então, sabichão. O que você manda? E larga o
meu cabelo que deve estar cheirando a suor! — protestei,
horrorizada quando vi o que ele fazia, afinal trabalhei o dia todo.
— Deixa disso! Tá cheiroso pra caramba esse cabelo! Mas não
me desconcentra. Estava pensando... — Pareceu de repente
reticente em me contar.
— Desembucha, Edu! Está quase chegando o meu ponto! —
Apressei-o, pois já estava curiosa com a tal ideia.
— Tá, tá! Calma, mulher, relaxa! Ansiedade faz mal para o
coração! — disse apaziguador com as mãos para cima.
— Edu!! — vociferei já impaciente.

— O.K.! Já que insiste! Você contou que está incomodada com


a pressão das minas do teu trabalho que querem te ver com um
namorado, certo? — Balancei a cabeça afirmativamente, sem saber
onde ele queria chegar. Ele continuou. — E se, por um tempo, você
fingisse que somos um casal? Poderíamos sair juntos como amigos,
mas, para todos os efeitos, eu seria seu “namorado”. Enquanto isso,
a gente se diverte e você fica mais leve, o que me diz? — concluiu,
olhando-me em expectativa.
— Sei lá! Eu não sei se acho uma boa ideia… — respondi
sinceramente, tinha medo de misturar as estações.
— Não responde nada agora, seu ponto está chegando. Tenho
dois ingressos para um show do Capital Inicial[xliv], vem comigo na
semana que vem? Se você curtir a companhia, aceita. Senão, não
vai perder nada… — Deu de ombros, jogando-me esse convite
como se não fosse nada, e eu olhando para ele, incrédula.
— Tá maluco? Jura?? Capital Inicial! Como posso dizer não?
Isso é injusto! — falei, fazendo beicinho.
— Então é simples, diga sim, ué! Já tenho os ingressos, falta
só a companhia… — Fez carinha de cachorro que caiu da mudança.
— Hey, cadê as gatinhas da sua faculdade? — inquiri com
sarcasmo.
— Devem estar todas no Pet Shop, sou mais você! —
respondeu, dando uma piscadinha bem charmosa em minha
direção. Não me aguento com esse rapaz!
Acho que devo ter virado um tomate, pois senti meu rosto
esquentar e, quando dei por mim, percebi que se não puxasse o
sinal passaria do meu ponto! Puxei a cordinha desesperada, antes
que o motorista passasse direto e eu precisasse voltar andando.
Enquanto levantava e caminhava para descer, Edu deu uma
piscadinha para mim, acenei e sorri, contudo não respondi seu
convite. Estava com medo. Medo de quê? Estragar essa amizade
tão legal por causa de uma das minhas crises de paixonite. Estava
sentindo aquele embrulho no estômago que precede um mau
agouro, torcia para que fosse apenas fome.
C 12[ ]

Fui para casa pensando em como algumas coisas na vida às


vezes são estranhas. Até pouco tempo atrás, estava de boa com
minha vida e agora parecia que faltava algo. Além desse vazio
descoberto, tinha o fato de Edu e Guilherme estarem povoando os
meus pensamentos mais vezes do que seria natural ou até mesmo
saudável. Quando abri a porta de casa, notei que minha mãe e
Santiago estavam no sofá da sala, assistindo a algum filme, sorrindo
um para o outro, apaixonadamente. Era tão lindo ver isso, minha
mãe saindo do casulo do luto e se deixando ver as flores que a vida
ainda tinha a lhe oferecer, em vez de se deixar afundar na tristeza
da perda. Observei que, agora, ela vivia a saudade de maneira
saudável. Onde quer que esteja papai, com certeza está orgulhoso
da força da dona Sônia.
Tentei não fazer barulho ao me encaminhar para meu quarto,
precisava refletir sobre minha vida. Acho que existem momentos
que sentimos que estamos amadurecendo, parecia ser essa a
minha hora de crescer de vez, já que me sentia uma anciã, pelo
menos nas dores de coluna. Quando tirei minhas roupas para entrar
no banho, notei que meu celular vibrava na bancada, recebendo
novas mensagens. A curiosidade sempre me vencia, então corri até
o aparelho. Um sorriso besta surgiu em meus lábios quando vi quem
era.
Edu: E aí, namorada, chegou direitinho em casa?
Sol: Achei que era só pra fingirmos na presença de outras
pessoas, Eduardo!
Edu: Então você já aceitou?
Sol: Não tire palavras da minha boca, espertinho!
Edu: Que pena! Então vou ter que dar esse ingresso pra outra
pessoa…
Sol: Eduardo, não se atreva!
Edu: Fechou, então! Te vejo sábado que vem, namorada!

Sol: Não sei se te beijo ou te mato, Eduardo!


Edu: Faz assim, gata… Beija minha boca e me mata de
alegria!
Sol: Tchau, Edu, vou tomar banho!
Edu: Beijos, linda, até depois. Vou ficar aqui imaginando você
no banho... (emoji com cara de safado)
Sol: (emoji de dedo do meio)
Olhei incrédula para o celular. Como as coisas estavam
ficando malucas! Já não sabia se o Edu gostava de verdade de mim
ou estava apenas zoando com minha cara! O pior é que já estava
começando a gostar dessa maluquice toda e era muito assustador
me sentir tão eufórica com algo que era apenas uma mentira.
Tomei meu banho e relaxei um pouco, joguei as preocupações
para o alto. Afinal, o que tiver de ser será! Dormi sorrindo pela
primeira vez em dias.

Acordei me sentindo renovada. Olhei para minha janela, ainda


estava sonolenta, reparei que no parapeito tinham duas borboletas
coloridas pousadas ali. Elas pareciam trazer alguma mensagem
subliminar, talvez fosse um presságio de boa sorte ou de
transformação. O meu humor nesse dia tinha acordado animado; se
fosse possível, diria que meu ânimo parecia ter comido um
chocolate da minha gaveta de emergência. Quem sabe em meus
sonhos havia me empanturrado de chocolate e isso afetou minha
disposição matinal!

Hoje, ao som de “Velha e louca” da Malu Magalhães[xlvi],


escolhi uma roupa bem legal e tasquei em meus lábios um batom
vermelho vivo. Fui ao trabalho munida de uma arma que faz tempo
estava esquecida dentro de mim… Confiança e amor-próprio!
Ninguém estragaria o meu dia!
“Nem vem tirar meu riso frouxo com algum conselho que hoje
eu passei batom vermelho, eu tenho tido a alegria como dom em
cada canto eu vejo o lado bom.”
C 13

Cheguei ao escritório, vi que fui notada por olhares


especulativos masculinos e femininos, e, pela primeira vez, tive
certeza que não estavam me vendo por meu jeito espalhafatoso e
estabanado de ser, mas sim pela minha aparência. Sorri satisfeita,
parecia que minha confiança era uma arma secreta e todos
pareciam parar para me observar agora que a estava portando. Ao
entrar no elevador, fui cumprimentada com tantos bons-dias quanto
nunca antes em tantos anos de empresa. Quando saí, todos me
disseram “até logo”; não estava acostumada com tanta atenção, me
senti ligeiramente desconfortável.
Estava passando pelo corredor, “Miragem” vinha andando
distraído, falando ao celular. Ao me ver, pareceu surpreso. Será que
foi impressão minha ou realmente vi seu lindo queixo másculo cair?
Opa! Acho que realmente exagerei na arrumação… Um sentimento
de timidez me tomou e senti que começava a ruborizar, nem dei
tempo para o Guilherme vir falar qualquer coisa comigo, aproveitei a
deixa da ligação e me esquivei para as bandas da pequena copa,
pois precisava de um café forte ou uma água, talvez de ambos.
Não dei muita sorte, já que a cobra estava tomando sua dose
de cafeína para se manter desperta, talvez com a intenção de dar o
bote no maior número de vítimas possíveis e assim quebrar seu
próprio recorde. Logo que me viu, o sorriso falso e debochado dela
entrou em modo “ON[xlvii]”. Já senti meus pelos eriçando, antevendo
que ouviria alguma merda.
— Oi! Solena, gostei do batom. Cor nova? Deixa eu ver… —
Pareceu pensar uns minutos e completou: — Coleção vermelho-
palhaço?! — Gargalhou com a piadinha ácida e maldosa que tinha
bolado.

Mantive meu olhar impassível, como se estivesse “zen[xlviii]”,


mas por dentro estava imaginando o esquartejamento daquela vaca!
— Não, querida! O vermelho-palhaço é uma linha feita
exclusivamente para você, não passo qualquer porcaria em minha
boquinha linda. — Pestanejei e fiz um bico para acentuar meu
escárnio.
Acho que ela não esperava que eu fosse responder à sua
ofensa. Vi o choque em seu rosto, era como se dissesse: “Oh!
Como ousa?”.
— Se emperiquitou toda assim pra quê, Solena? Por acaso,
está tentando chamar atenção de alguém em especial, queridinha?
— O veneno escorria ao pronunciar a pergunta.
— Camila, eu não sou como você, que só vem ao trabalho à
procura de um par de calças e uma carteira de couro — respondi
calmamente sem alterar a voz, afinal estávamos na copa e não
queria que virasse um barraco com plateia.
— Você é ridícula, Solena! Acha mesmo que algum homem vai
te enxergar? Se toca, minha filha! Você é gorda, esquisita e vive
fazendo bizarrice!

— Querida Jararacuçu[xlix], tô cagando e andando para sua


opinião sobre mim, tá se sentindo ameaçada de extinção? Procura o
IBAMA [l]e me erra! — falei, revirando os meus olhos sem paciência
e deixando-a sozinha com seu veneno.
Saí de lá sem pegar meu café, mas fiz questão de sair
triunfante, requebrando a minha “bundinha” na cara daquela
vagaranha. Julgou que me faria chorar com as suas ofensas?
Estava muito enganada! Já a vi fazer esse joguinho baixo nível com
outras mulheres, mas comigo não! Camila quando se sentia
ameaçada atacava sua vítima sem dó, humilhando cada uma delas,
atingindo seus “pontos fracos”. Jogava baixo tentando destruir a
autoestima de sua potencial rival para se garantir. Só gente muito
espírito de porco precisava fazer outras pessoas ficarem por baixo
para se sentirem por cima. No fim, nem de pena ela era digna! No
caminho para meu biombo, as meninas me viram e senti minhas
costas queimarem com seus olhares sobre mim. Meu celular
começou a vibrar, olhei e as mensagens variavam.
Nu: O que “tacontesenu”?
Suzy: Você tá diferente!
Nat: Reunião de emergência no Bilbo's hoje!
Sorri sozinha e me sentei para iniciar meus trabalhos. Lógico
que já sabia o que elas queriam saber, o porquê da minha
transformação de um dia para o outro. Grande parte dessa mudança
era graças ao plano maluco de Edu e a outra parte foi por minha
conta, senti vontade de renovar um pouco. Queria me sentir mais
confiante, admirada e desejada, não era crime, né? Batom vermelho
era vida!
A manhã passou entre muitos papéis e burocracias, nem para
fazer xixi tive tempo. Quando deu a hora do almoço, agradeci aos
céus por me ver livre daquele tormento. Claro que sabia que viriam
três malucas sedentas por sangue fresco e informações. Como
aceitei a maluquice do Edu, jogaria um balde de água fria na missão
cupido que elas estavam orquestrando. Sabia que queriam me ver
feliz com alguém que gostasse de mim, mas essa obsessão de
querer colocar um homem como cura de todos os meus problemas
me deixava bolada. Na moral! Qual era o problema de ter mais de
trinta anos e ser sozinha? Em qual manual do mundo vinha escrito
que tinha que ter um “peidão” do meu lado para ser feliz? Era um
saco isso! Elas tinham atitudes machistas sem nem mesmo
perceber!
Cheguei ao Bilbo's e as três estavam me esperando ansiosas.
Percebi isso pela quantidade de açúcar que estava em cima da
mesa. Elas estavam se preparando para me bombardear com
perguntas. Quase gritei por socorro e dei meia volta! Mas segui em
frente e fui enfrentar as feras. Preparei meu escudo psicológico para
a grande batalha que viria a seguir.
— E aí, meninas, como vocês estão? — Apontei para a mesa
e completei: — Sabiam que esse açúcar todo vai direto para a
bunda? Peguem leve, isso por acaso é TPM coletiva?
— Rá rá rá, Solena, muito engraçado! Já olhou para esse seu
traseiro? Digamos que você não é nenhuma Gisele Bündchen, né,
querida?! — Nathalie, como sempre, retrucou com sua marra
habitual e seu deboche.
— Ei, Nat, pega leve! Só estava de caô. Para provar que vim
na paz, vou pedir uma torta bem calórica de mouse de chocolate
suíço e um capuchino. — Cheguei a salivar em expectativa.
Ficaram me analisando como se fosse o mais novo objeto de
estudo da NASA[li].
— Na moral! Isso já está me estressando. Desembuchem e
parem de me olhar como se tivesse nascido chifres na minha
cabeça! — Levantei as mãos em rendição, revirando meus olhos.
— Você está muito bizarra. O que houve de ontem para hoje
que perdemos, Sol? — Essa foi Suzy, tomando as rédeas com
sensibilidade e tato.
— Meninas, sinto informar que não precisarei mais do serviço
de casamenteiras online que me ofereceram, estou com um carinha
aí… — proferi como se fosse algo trivial, reparando nos olhos
arregalados das três.
— Carinha, como assim? E você achou essa pessoa onde?
Podemos saber? Por acaso foi serviço de entrega em domicílio?
Abre logo o jogo, sua vaca sortuda! — exclamou Nuccia, sendo a
mesma doida desbocada de sempre…
— Lembram que falei do Edu? O rapaz do ônibus.
— O Edu! Rá! Eu sabia que esse estava de olho em você,
Solena! Aliás, tua lista de admiradores anda bem grandinha, hein,
mocinha? — Nat falou provocativa.
— Fala sério! Não entendi, Nat, de onde você tirou
admiradores pra mim, que não sei de mais nenhum?
— Qual é?! Solena, você é tonta? Ou só se faz mesmo? —
Nathalie semicerrou os olhos, especulando.
— Nathalie, acho bom você parar com a torta de nozes, pois
acho que afetou seu cérebro esse excesso de açúcares, já está até
vendo coisas.
— Sol, olha, você pode não ter notado, mas não passa
despercebida no escritório… — revelou Suzy comedida.
— Puta merda! Elas estão certas, Sol! Há poucos dias que
entrei no escritório já notei a cara de cachorrinho pidão do
Guilherme pra você, mulher! Olha, posso ser surda, mas não sou
cega e vi todos os olhares para esse popozão sortudo!
— Gente, credo! Agora estou me sentindo a própria Walesca
Popozuda[lii], me erra! Nem tenho a bunda tão grande assim, parem
com o bullying, O.K.?!
— Aham! — falaram em uníssono, explodindo em uma
gargalhada.

— Vamos fazer um brinde… À nossa amiga que ficaria pra


titia, mas no último minuto do segundo tempo virou o jogo e marcou
um golaço! — exclamou Nuccia, erguendo sua xícara de
cappuccino.
— Tim, Tim! — Entrei na brincadeira, afinal era essa a ideia.
“Fingir o namoro e tirá-las de meu pé, certo?”, pensei olhando para
as três malucas felizes à minha frente.
— Uma coisa te digo… Esse Edu tem o nosso apoio se já no
primeiro dia te fez ficar assim. — Nathalie apontou para minhas
roupas e maquiagem.
— Eu, hein… Quem ouve isso acha até que eu vinha
parecendo uma mendiga pro trabalho, isso é calúnia, dona Nathalie!
— reclamei, indignada.
Às três se entreolharam cúmplices e riram. Eu sabia que
costumava vir ao escritório parecendo um espantalho sonolento,
todavia, não daria o braço a torcer nem que a vaca cantasse “Let’ it
go[liii]”!
— E tem outra coisa — falei, sorrindo.
— Tem mais? — Suzy estava uma pilha tão curiosa e excitada
com a minha repentina mudança quanto às outras duas malucas.
— Sim! A melhor parte vem agora! Ele me chamou pra sair na
próxima semana para um “show”…
— Caraca! Que máximo! E você vai né, Sol?! — Nu indagou-
me com expectativa e animação quase gritando.

— É o show do Capital Inicial! Bitches, please[liv]! Por acaso


sou maluca de perder?!
— Porra! Você nasceu com essa raba virada pra lua mesmo,
Solena! No primeiro encontro com o boy magia, já vai pra um show
do Capital? Cara… Que inveja! Vê se aproveita por todas nós, você
nos deve isso! — Nu finalizou com cara de impressionada, aliás, as
três estavam.
Ri, elas estavam tão animadas, entrando de cabeça na pilha
daquele falso namoro. Tinha que falar com Edu. Ele, com certeza,
acharia engraçado o plano dar tão certo com essas manés. Era um
caô besta, que não prejudicaria ninguém, só faria com que meu ego
subisse e minhas amigas largassem do meu pé.

Voltamos para o escritório como uma alcateia de hienas. Elas


queriam conhecer o “peguete”, e eu disse que na hora certa o
apresentaria para elas. Lógico que essa “hora certa” jamais viria,
antes de acontecer esse impropério eu diria que brigamos ou
terminamos e, enquanto isso, me divertiria na companhia do meu
amigo anjo, que entrou na minha vida para torná-la mais colorida.
Opa! Colorida, lembra amizade-colorida, era melhor que não
enveredasse por esses caminhos mentais, antes que minha mente
pregasse uma peça no meu coração atrapalhado… Meu cupido
sempre havia sido um alcoólatra em ação, espero que desta vez ele
tenha feito uma visita ao AA[lv]!
C 14

Os dias me atropelaram com a expectativa do show. Eu, que


antes estava reticente com a ideia, me vi sorrindo animada pelos
cantos. Aliás, me permitiria fazer uma pequena extravagância de
comprar roupas novas especialmente para a ocasião. Afinal, não era
todo dia que se via o Dinho Ouro Preto em pessoa! Dançaria a
música “Natasha” como uma louca no meio da pista. Porque, meu
bem, pretendia dançar como se não houvesse amanhã! Faria baixar
a Inês Brasil em mim naquele show, não queria nem saber quem
veria, ou deixaria de ver, só sei que me acabaria naquela pista!
Durante os dias da semana só pensava no show. Minha
amizade com Edu havia evoluído mais que Pokémon[lvi],
conversávamos cada vez mais. Era tão fácil falar com ele, gostos
parecidos, riso fácil, tão gostoso ter uma pessoa assim em nossa
história. Essa era a primeira vez que um amigo do sexo oposto
entrava na minha vida desse jeito. Estava acostumada às meninas
do trabalho, nunca tive preconceito com amizade masculina, só
nunca tinha rolado dessa forma, como com Edu, e estava adorando
a novidade. Edu se fazia mais presente na minha vida a cada dia, e
quem diria que o acaso pudesse ser tão favorável, né?
No grande dia, gritei aos quatro cantos das redes sociais que
me acabaria de dançar no show do Capital Inicial. Acho que nunca
na vida um post meu no Facebook teve tantas curtidas. Sorri.
Estava adorando fazer uma invejinha no povo e mostrar que
também tinha uma vida social. Isso fez bem ao meu ego tão sofrido
e maltratado. Olhei-me no espelho, meus olhos estavam brilhantes
de felicidade, eram poucos os dias em que realmente me achava
bonita e esse era um. Pensei como seria legal ser a Natasha por um
dia, né? Cabelo verde, tatuagem no pescoço. Oh, Oh! Dei ideias,
agora meu tico e meu teco ficaram aqui matutando…
Vesti-me que nem uma louca, pois faltava poucas horas antes
do Edu vir me buscar. Tinha tempo para completar meu plano
bizarro. Sentia que meu lado certinho estava mandando sinal de que
deveria colocar um freio nessa ideia e que isso seria um grande e
completo mico, mas quem parou para ouvi-lo? Com certeza, não eu!
Peguei minha bolsa e saí apressada rumo à porta. Sabia onde
estava indo e o que queria fazer. Seria uma grande surpresa para
todos!
C 15

Consegui! Não acredito que tive coragem! Meu Deus do céu!


Queria só ver a cara do Edu quando me vir. Piraria o cabeção.
Pensei enquanto terminava minha maquiagem pretinha e nada
básica nos olhos, tudo com direito a muito delineador, rímel e até
cílios postiços! Na boca, usei um batom nude [lvii]para não ficar muito
caricata, porque, hum… Já estava bem chamativa com meu novo
visual. Opa! O modo insegurança começou a bater forte, respirei
fundo e falei lentamente, olhando para meu reflexo no espelho:
— Não pira, Solena! Hoje você é Natasha. Repita comigo. Eu
sou Natasha, eu sou Natasha. — Pausei a maluquice quando ouvi
um barulho na maçaneta. Ferrou! Devia ser a minha mãe!
— Sol, tô entrando… — Vi quando minha mãe abriu a porta
entreaberta, já que antes estava sozinha em casa. — Solena! O que
você fez com o seu cabelo? — quis saber, a sobrancelha erguida,
olhos arregalados. Sua expressão dizia claramente: MINHA FILHA
FICOU LOUCA!
— Mãe é hoje! Aquele show do Capital Inicial que te falei!
Aliás, o Edu já, já tá passando por aí pra me buscar. Ficou tão ruim
assim?
— E… o que, diabos, Capital Inicial tem a ver com esse cabelo
VERDE, Solena? — minha mãe falou a palavra “verde” como se
estivesse explicando para uma criança que engolir sabão não
soltava pum com bolinhas.
Revirei os olhos impaciente, pois minha mãe podia ser bem
careta quando queria.
— Mãe. Hellouuu... Natasha! — tentei elucidar sem sucesso.

— Você bebeu vodca [lviii]a essa hora?! Ai, meu Deus! —


indagou horrorizada, colocando as mãos na boca que estava
escancarada.
— Mãe! Não é essa Natasha! Aliás, tá sabendo os nomes das
pingas, hein? Anda por barzinho com o Santiago, hein, danadinha?!
— zombei da cara de assustada dela.
— Solena, não muda de assunto! — falou, ruborizando. —
Quem, diabos, é essa Natasha? E o que ela tem a ver com essa
grama na sua cabeça? — questionou, rindo.
— Poxa, mãe, valeu! Agora minha autoestima acabou de pular
pela janela, se suicidando, dona Sônia! — esbravejei, vendo-a cair
em uma risada descontrolada.

Liguei o celular, cacei a música na playlist e coloquei para


tocar na parte certa…
(...) cabelo verde, tatuagem no pescoço.
um rosto novo, um corpo feito pro pecado.

a vida é bela, o paraíso um comprimido (...)[lix]


Dei pause na música e olhei para a cara dela, à beira de uma
crise histérica de risos. Coloquei a mão na cintura, impaciente, e
esperei até vir a bomba…

— Não quero cortar o teu barato, filha, mas acho que você já
passou um tantinho dos dezessete, né? — Fez troça e desatou a rir
que nem uma hiena.
— Mãezinha linda, eu te amo, porém estou prestes a deserdá-
la! Será que posso um dia tentar me divertir sem ser zombada?
Valeu, falou?! — retruquei, indignada com as piadinhas.
— Calma, estressadinha! Você ficou muito bonitinha de
cosplay [lx]de incrível Hulk[lxi], ou seja lá do que esteja vestida. —
Então, ela fez o inimaginável: puxou seu celular mirando-o na minha
direção.
— Eita, porra! Lá vem ela! — Tentei correr, me esconder, mas
não teve jeito, minha mãe acabou tirando uma foto minha, vestida
de “Natasha”, e enviou para o grupo da família! Ou seja: zoação
garantida pelas próximas três décadas. Valeu, mãe.
Do nada, ela se voltou para mim, parecendo que me engoliria.
Ai, Jesus! A mulher pirou de vez. Senhor, me salva! Edu, meu filho,
cadê você? Claro que tudo isso apenas pensei na minha mania de
dramatizar tudo. Ela me olhou de cima a baixo, virou-me de costas e
achou o que procurava. Fechei os olhos e esperei pela bronca.
— Aiiiiiiiiiii, meu Deus do céu, você fez de verdade? — disse
com uma voz estridente.
— Do que você está falando dessa vez, dona Sônia? — Fiz-
me de burra para tirar com a cara dela… Maldade! Estava ligada na
versão “filha terrorista”.
— Não se faz de boba, mocinha! Estou vendo, não sou cega!
Você não tinha isso no pescoço antes! — Apontou para a tatuagem
nova ali.
— Tá, dona Sônia, não pira! Essa é adesiva, vai sair depois de
algumas lavagens! Não tô tão biruta… ainda não, pelo menos! Se
tivesse feito hoje, aliás, nem poderia exibi-la, essas coisas demoram
para cicatrizar e tal. — O que ela não sabia é que a minha intenção
era fazer uma verdadeira. Por um momento pareceu que vi passar
um misto de decepção e tristeza no olhar dela. Oi? Ela queria uma
de verdade?
— Hey, mamy, porque parece que está desapontada com a
tattoo de mentirinha?
— Não é isso, é que achei linda, posso contar um segredo?
— Diga logo, sou um túmulo! Sem o cheiro podre,
obviamente…

— Sol, túmulos não possuem cheiro de podre, só para constar.


— Dei de ombros, pois essa informação era irrelevante no
momento, foi apenas uma analogia…

— Bem, a confissão é que sempre quis fazer uma tatuagem.


Então, quando vi a sua tatuagem, pude me enxergar em uma versão
mais moça por uns três segundos, até observar o seu narigão que é
todo do teu pai — falou essa parte meio que pra si mesma.
— Hã. Como assim narigão? — perguntei, colocando a mão no
meu nariz em uma atitude defensiva.
— Não, não. O seu nariz é lindo, minha filha — falou, rindo. —
É brincadeira essa parte! Mas, sempre quis uma tatuagem e, na
época, seu pai foi contra. Com o tempo, achei que já estava velha
demais pra essas coisas — confessou, dando de ombros.
— Velha coisa nenhuma! Vamos juntas? Quero fazer uma
borboleta no mesmo lugar que está esse infinito agora, já é? —
convidei animada, reparando na centelha de alegria em seu olhar.
— Ah, sei lá! Não é idiota uma mulher na minha idade fazer
tatuagem? E o que o Santiago pensaria?
— Bem, mãezinha, se o Santiago encher o saco, você pega
um salto bem pontudo e dá um bicão na bunda dele. Homem que te
faz desistir das paradas que você gosta não te merece!
Minha mãe ficou ali me olhando, sorrindo animada com a
perspectiva de realizar um sonho tão bobo que, para ela, parecia
algo inalcançável, e isso me fez amá-la ainda mais. Como podíamos
ser, ao mesmo tempo, tão iguais e tão diferentes? Ela foi em direção
à saída e, antes passar pela porta, virou como se lembrasse de algo
importante…
— Filha — chamou da porta.

— Fala, mãe — respondi com um sorriso.


— Você está linda, viu? Nunca deixe de acreditar em si
mesma! Você é extraordinária, minha linda, e às vezes me assusto
por você ser tão… singular. Mas de onde quer que seu pai esteja,
pode ter certeza que também está morrendo de orgulho da mulher
que você está se tornando, Solena. — Reparei que seus olhos
estavam marejados quando falou essas palavras.
Sabe aquele momento de medo que você pensa que vai
escorrer rímel e sombra preta pela cara toda, como se fosse um
temporal de verão prestes a desabar dos seus olhos? Era
exatamente assim que me sentia. Nesse instante, fui salva pelo
gongo, ou melhor, pelo meu telefone que começou a tocar. O toque
era Natasha, isso significava que era o Edu, provavelmente em
frente à nossa casa.
— O.K., dona Sônia, também te amo! Agora, vamos parar com
isso que logo parecerei realmente ter dezessete anos ao sair que
nem uma fedelha chorona na rua — falei, sentindo as lágrimas
boiando em meus olhos.
Ela sorriu e saiu do banheiro. Tive que abanar as mãos sobre
os olhos umas cem vezes, mirando o teto para não chorar como
uma mulherzinha sensível. Não era fácil ser eu! Essa minha mãe
sempre com suas palavras sentimentais, logo quando estava sem
rímel à prova d'água, pô, que vacilo!
C 16

Quando abri a porta para o Edu, ele me deu um “oi” com cara
de espantado, olhou-me dos pés à cabeça de uma maneira
diferente de qualquer olhar que já tenha recebido, quase de
veneração. Sorri satisfeita por tê-lo impressionado positivamente,
porque, cara, caprichei de verdade dessa vez. Eu própria estava me
gostando. A produção contava com botas pretas de couro cano
longo e salto 15, saia de courino preto com tachinhas prateadas,
uma blusa estilo baby-look do Capital que possuía um generoso
decote e mostrava o top vermelho sangue. O cabelo verde caía em
ondas até metade das costas e estava com um penteado de lado,
que aprendi a fazer no YouTube (bendito seja, sempre me salvando
nas horas de sufoco) e que deixava à mostra a tatuagem. Tudo
temporário, pois não queria ser vista como Natasha no trabalho e
ser motivo de piadinha.
— Fala alguma coisa, Edu! Até parece que viu um fantasma,
está catatônico?
— Cacete, Solena! Quem você está querendo matar vestida
desse jeito? — exclamou com o queixo caído e olhos esbugalhados.
— Saí fora! Eu, hein, tô normal — ironizei, rindo da cara dele.
— Normal?! Tá bom! Vou fingir que te vejo sempre assim no
ônibus quando está indo para o trabalho. — Revirou os olhos e me
deu um cutucão no braço, brincando.
— Edu! Vamos nos atrasar se continuar com essas bobagens.
Mexe logo essa bunda magrela! Se perdermos o show, te pico e te
jogo no penico! — Ameacei, envergonhada com os olhares dele.
— Ui!! Linda e perigosa. Assim gamo, dona Gramínea!
— Rá Rá Rá, muito engraçadinho! — Puxei-o porta afora antes
que dona Sônia se juntasse no coro do bullying com o meu visual
“Natasha de ser”.

Edu veio com a moto do primo, uma daquelas bem bonitonas,


porém, como não entendo porcaria nenhuma de motos, não fazia
ideia de que marca ou modelo era. A verdade era que morria de
medo, e, como sou orgulhosa, não dei o braço a torcer, pulei na
garupa, afinal não ia perder o show do Capital nem que a vaca
tossisse o alfabeto grego de trás para frente! Coloquei o capacete
reserva que ele trouxe e me agarrei bem firme na cintura do Edu.
Caso caíssemos, pelo menos cairíamos juntos. Quem sabe seus
ossinhos poderiam amortecer nossa queda? Cruzes, que maldade!
Ele virou para trás, levantou a viseira (hum que charme!) e
perguntou:
— E aí, dona Natasha paraguaia, está pronta para conhecer
meu lado radical? — Seu olhar era divertido.

— Nem fodendo você vai correndo, Eduardo! Por Deus! Te


faço comer esse capacete e nem quero saber como vai sair de
dentro de você para depois devolver ao seu primo — Ameacei,
usando meu olhar mais maligno. O desgraçado deu uma risada de
quem não estava nem aí para minhas pseudo-ameaças e deu a
partida, fazendo o motor da moto roncar furioso abaixo de nós.
— Que Deus me ajude! — Fechei os olhos enquanto ele
acelerava e ia à toda pelas ruas. Na verdade, ele provavelmente
estava obedecendo aos limites legais de velocidade e sinais, mas,
como sou medrosa, julguei que estava a 300 km/h.

Senti a moto parar algumas vezes, deve ter sido nas sinaleiras,
não dava para saber já que meus olhos continuavam bem
fechadinhos. Notei que dessa vez a pausa estava mais duradoura,
esperei ele me chamar enquanto agarrava sua jaqueta de couro
com todas as forças. Era como se Edu fosse uma boia em alto-mar.
Já comentei com vocês que ele tem um cheiro maravilhoso? É meio
cítrico com marinho! Respirei fundo pelo menos umas três vezes,
guardando esse cheirinho bom comigo.
— Solena… Pode parar de me cheirar e abrir os olhos.
Chegamos! — revelou Edu em um tom bem-humorado que parecia
querer explodir em uma gargalhada.
— Tá maluco? Que te cheirando o quê, Eduardo?! Se enxerga,
mané! Eu estava com medo… e… e… e… A minha respiração
estava desregulada de nervoso, você correu que nem um idiota! —
esbravejei, tentando disfarçar meu constrangimento por ter sido
pega em flagrante. Dei um soquinho no ombro dele e desci da moto
já bem emputecida, só que esse estado de chilique durou apenas
alguns segundos, até ver que estávamos de frente para casa de
shows. Comecei a pular de alegria… É, meus amigos, o meu caso
era de tripolaridade!
— Nossa, Sol! Que romântico! Essa foi nossa primeira
briguinha como casal, meu amor — ponderou, fazendo troça do
nosso acordo.
— Olha só, Edu. Não se empolga. Esse acordo é para enganar
o povo do trabalho e não tem ninguém de lá aqui, seu espertinho —
disse, mostrando a língua.
— Bem, querida Solena, nunca se sabe, né? Sempre é bom
garantir que a farsa seja bem interpretada e tal… — Então, ele me
puxou e deu um beijo no meu pescoço.
Olhei para ele sem ação. Não que não tenha gostado, aí que
estava o problema. Gostei, na verdade, até demais para o meu
gosto, e pensei no quanto isso estava ficando estranho. Pô, ele era
meu amigo, certo? Não podia começar a criar monstrinhos verdes
na minha cabeça, uma vez que era especialista em me ferrar com
essas ilusões. Além de foder com a amizade, acabaria com o
coração em frangalhos, e isso era algo que não dava pra deixar
acontecer!
— Dez reais pelos seus pensamentos, garota do cabelo verde!
— Caraca! Meus pensamentos estão valendo pouco, hein! —
falei, brincando, em uma tentativa de aliviar o clima neurótico que se
instaurou em mim. — Bora, Edu? Quero entrar e dançar até não
poder mais!
— O seu desejo é uma ordem, senhorita Gramínea — falou,
rindo e me puxando pela mão.
Ele me arrastou pelo meio da multidão que fazia filas
quilométricas para entrar, foi em direção a um cara alto, bem bonitão
e fortão, por sinal, que parecia ser um dos seguranças da casa de
shows. Eduardo falou com ele, os dois trocaram cumprimentos
rápidos de mãos, e fiquei olhando, idêntica a uma abobalhada, para
todo movimento a nossa volta. Nem mesmo o grandão fortão tirou
minha atenção da verdadeira euforia, que era ver pela primeira vez
Capital Inicial!
— Bora! — Ele me puxou, o grandão estava piscando em
nossa direção e abrindo a parte que separava a multidão da
entrada. Confesso que nessa hora morri de medo de ser linchada,
dada a cara feia do pessoal que ficou ali na fila.
— O que você fez para que entrássemos antes desse povo ali
fora, Edu? Pensei que nos fuzilariam com os olhares.
— Ah! Tenho meus truques, baby. Sabe a moto? É do meu
primo! — proferiu, como se assim respondesse todas as minhas
dúvidas.
— Tá! Isso eu sei, mas o que, diabo, isso tem a ver com a
nossa entrada, dã? — Revirei os olhos impacientemente.
— O cara ali fora, por acaso, é o meu primo, sua lentinha! Foi
ele quem me deu os ingressos quando eu disse que estava
namorando… — Pestanejou os olhos com uma falsa cara de
inocência.
— Mas você não está namorando! — falei irritada
— Ele não precisa saber que é de mentirinha… — Piscou
matreiramente.
— Ahhhhhhhhhhh! Por isso, você me deu o beijo no pescoço?
Seu safado! Você me usou para ganhar ingressos grátis! — Dei
outro tapa em seu braço em protesto.
— Captou, baby! Está ficando mais espertinha! — Gargalhou
da minha cara lívida.
Estiquei meu dedo do meio em direção a ele, em resposta
gargalhou ainda mais alto. Saí pisando duro, indo na frente dele
para saber que não tinha curtido ser usada daquela forma, mesmo
que de brincadeirinha.
— Hey, calma, Sol! Vamos curtir a noite sem briguinhas
bestas, já passamos dessa fase. E outra, não fiz só pelos convites,
fiz porque queria estar com você. — Edu puxou o meu braço com
delicadeza com semblante arrependido.
— O.K., sou um pouco chata. Me desculpa por esse chilique,
foi desproporcional, mas não mente mais para mim. Odeio isso.
Agora, vamos entrar que quero ver essa sua bunda magrela
dançando na pista! Antes vem aqui e vamos tirar uma foto para
matar as meninas de inveja. — Ri, maldosa.
— Você é má, Solena! E eu gosto assim! — disse, juntando-se
a mim e fazendo pose.
Na foto, eu e Edu estávamos com rostos grudados, uma
expressão de felicidade. A imagem ficou linda! Se eu mesma não
soubesse que era um namoro de mentira, teria acreditado também.
C 17

Em pleno sábado, estava sozinho curtindo minha própria


companhia. Sinceramente? Estava cansado. Trabalhava para
caralho naquele escritório e sabia que possuía uma péssima fama
de pegador por lá, mas parte disso era fofoca. Nunca saí com
mulheres que trabalhavam ali, incluindo uma que todos pensavam
ser minha “peguete[lxii]”, e não era, a tal da Camila. Falava com ela
numa boa e achava-a bem gostosa, afinal não era cego, mas não
era para mim. Não fazia meu gênero. Meu tipo era… Fechei os
olhos para tentar imaginar que espécie de mulher seria o meu tipo,
porém quem vinha na minha mente quando parava para pensar
nisso? A mulher mais desastrada e graciosa que já havia entrado
naquele departamento: Solena! Ela era tão engraçada e tinha uma
beleza despreocupada, leve, sem esse nhém, nhém fútil que muitas
tinham por aí.
Regressei dos meus pensamentos com o som do meu celular
tocando. Pensei seriamente em não atendê-lo, estava de folga e
queria descansar, contudo não conseguia me desligar, o toque era
muito irritante.
— Alô, quem é? — indaguei mal-humorado. No visor, o
número aparecia como privado, ou seja, era mais um bom motivo
para ter ignorado.
— Oi, Gui, aqui é a Ca! Tudo bem? — uma voz fina e melosa
respondeu.
Demorou algum tempo até situar quem seria essa tal de “Ca”.
Aí a ficha caiu, é claro que era a Camila! A mulher era insistente,
devia ter problemas com rejeição, só podia ser.
— Fala, Camila, algum problema? — inquiri secamente, nem
sei como descobriu meu telefone. Não queria me prolongar naquele
papo.
— Ah não, nenhum! É que hoje é sábado e pensei quem sabe
você não tá afim de dar uma voltinha comigo. — Ignorou a minha
descortesia. Senti uma pitada de insegurança na voz dela, essa era
nova! A mulher era uma metralhadora de ego.
— Não sei, Camila, hoje estou aproveitando o dia para
descansar, a semana foi tensa, você sabe…
— Poxa, Gui! Tenho aqui comigo dois ingressos para um show
maravilhoso hoje, não queria ir sozinha… — falou com a voz
manhosa.
— Não sei. Acho que prefiro ficar por aqui mesmo.

— O show é do Capital Inicial, é imperdível! — choramingou.

PQP[lxiii]! Um dos meus calcanhares de Aquiles eram os shows


de rock. Bem melhor do que ficar em casa, olhando para o teto,
sozinho.
— Você venceu, gata! Diz onde te pego e a que horas —
retruquei mais animado.
Ouvi uns gritinhos histéricos abafados na linha e revirei os
olhos de impaciência. O que essa mulher tinha de bonita, tinha de
sem noção… Por uma noite, quem sabe, daria para aguentar,
aquelas curvas até valiam a dor de cabeça!
— Ai, Gui, estou tão feliz por aceitar meu convite. Quem sabe
esticamos a noite no meu apartamento, né? Gato, prometo que você
não se arrependerá!
— Claro, quem sabe, né? Anotei o endereço, passo daqui a
pouco para te pegar.
— Hum, espero que pegue mesmo!
Foi com essa piadinha de duplo sentido, digna de um homem
cafajeste, que Camila desligou o telefone, deixando-me um tanto
quanto sem graça.
Ao chegar no endereço de Camila, deparei-me com uma
versão dela ainda mais ousada. Ela estava com roupas que não
deixavam nada para ninguém tentar imaginar como seria seu corpo.
Os poucos centímetros de roupa que existiam eram feitos para
ressaltar seus atributos voluptuosos. A mulher parecia um furacão
de linda e veio para deixar bem claro o que queria. Sentia-me, ao
mesmo tempo, excitado e um tanto inibido com a determinação
daquela mulher. Seguimos de carro para o show, sua mão alisava
minha coxa o tempo todo. Não tive dúvidas sobre os pensamentos
dela, estavam muito além de qualquer música, ela queria me pegar
de jeito.
Chegamos ao local que estava fervilhando de gente. Achei que
seria impossível conseguirmos entrar no meio daquela massa
alvoroçada. Camila me puxou pela mão até um carinha que parecia
conhecer e que estava selecionando quem entrava ou ficava
esperando na fila. Logo, o tal cara nos liberou e fomos em direção à
pista que estava lotada. O show começava, Capital tocava “Olhos
Vermelhos”, uma multidão em volta cantava enlouquecida.
Fomos primeiro ao bar pegar uma bebida. O ambiente estava
muito abafado. Peguei uma cerveja para mim e Camila pediu uma
vodka com energético; pelo jeito, a intenção dela era me arrasar. As
músicas começaram a ficar ainda mais animadas e o show estava a
toda. Uma música, que particularmente gostava muito, começou a
tocar…
(...) Dezessete anos e fugiu de casa

Às sete horas da manhã do dia errado


Levou na bolsa umas mentiras pra contar

Deixou pra trás os pais e namorado (...)[lxiv]


Ao vislumbrar as pessoas no meio da pista, reparei que tinha
uma mulher que dançava linda, leve e solta. Mesmo um pouco longe
de onde estava, consegui sentir a vibração de seu sorriso irradiar
por todo aquele lugar. O tempo pareceu parar, não parecia ter mais
ninguém além de mim e aquela moça de cabelos verdes, saia e
botas de couro. Era a própria Natasha que se materializou de dentro
da música da banda e parecia dançar de forma hipnótica naquela
pista, especialmente para mim.
Ela bailava despreocupada, rebolava e rodopiava, não era
exatamente uma coreografia ensaiada, parecia possuída pela
música. Dançava para si mesma sem a menor pretensão de seduzir
e não reparava que estava sendo vista com misto de inveja e
admiração por todos que a cercavam na pista. Meus pensamentos
foram interrompidos pela voz de Camila.
— Olha lá quem está pagando mico com cabelo verde!? —
Fez cara de nojo.
— Você conhece a moça, Camila? — indaguei surpreso.
— Ah! Qual é Guilherme? Aquela ali é a ridícula da Solena se
exibindo! Tudo bem que ela está mais estranha que o habitual, mas
você não reconheceu mesmo? — perguntou, revirando os olhos,
com um sorriso de deboche.
Olhei incrédulo para a pista e reparei melhor na moça que
dançava feliz ao lado de um rapaz que parecia bem mais jovem que
eu, e era realmente a Solena! Fiquei dividido entre estar feliz por vê-
la ainda mais linda e solta ali naquela pista e com ódio mortal
daquele frangote que não perdia oportunidade de ficar bem perto,
tocando naquilo que sempre só pude admirar à distância. Nunca
quis misturar as estações no trabalho com medo de que pudesse
prejudicá-la, afinal eu era seu chefe imediato, a empresa poderia
fazer vista grossa para relacionamentos de pessoas de setores
diferentes, mas não nesse caso. Além do mais, ela nunca deu sinais
que estava interessada em mim.
— Ah! Na verdade, não enxergo bem de longe, então nem
tinha reparado quem era, só tinha visto os cabelos verdes. Até achei
interessante, combinou com a música. — Sorri.
— Credo, ficou brega! Horrorosa essa produçãozinha de
quinta. E quem é aquele pobre coitado desavisado que está com
ela? Não me é estranho, mas não lembro de onde o conheço. Será
que nossa gata-borralheira arrumou um sapinho cururu? — ironizou
maldosa.
— Nossa, Camila, porque a implicância com a moça? Ela é
legal e muito competente — rebati impaciente e irritado com as
coisas que ela dizia. Começava a me arrepender de ter aceitado
aquele convite, isso nunca daria certo!
— Aquela dali não me engana! Ela se faz de sonsa e
estabanada, mas sei bem que no fundo é uma cobrinha. Não quero
estragar a nossa noite falando da Solena — falou com uma voz
provocante em meu ouvido.
Olhei de uma para a outra e não pude deixar de compará-las.
Enquanto Solena parecia brilhar de felicidade e alegria, Camila era
uma nuvem pesada de inveja. Parecia linda e, com certeza era, mas
somente por fora, por dentro era superficial e sem brilho, talvez por
isso a luz da Sol a ofuscasse tanto. Engraçado, “Sol” era realmente
um apelido apropriado para um ser humano tão cheio de alegria
como a Solena.

No final das contas, depois de tudo que Camila falou não


consegui levá-la para casa e cair em suas garras. Era difícil estar
em um mesmo ambiente com duas pessoas tão diferentes, ver a
mulher mais incrível do mundo e se contentar com a Camila. Queria
mais, muito mais! Eu queria a Sol para aquecer meu corpo e minha
vida. Como era de se esperar, Camila não ficou nada satisfeita com
o desfecho daquela noite, quando a deixei em frente ao seu
apartamento sem subir. Azar o dela!
C 18

Dançava como se não houvesse amanhã! O show estava


perfeito, a companhia de Edu estava sendo a melhor possível e, em
determinado momento do show, senti vários olhares em cima de
mim, enquanto sentia a música com meu corpo e minha alma. Não
ligava de parecer ridícula, havia fechado meus olhos e curtia o
momento com meu coração aberto. Toda a minha emoção e espírito
viraram música naquele instante; na verdade, sentia-me possuída
pelo som, ritmo e pela dança.
Quando, enfim, decidimos dar uma pausa na pista de dança e
fomos ao bar para tomar alguma coisa e descansar um pouco, notei
que meus pés latejavam de tanto que pulei. Mas fala sério? Que se
fodesse tudo! Aquele era o dia de exorcizar todos os meus
demônios interiores, toda minha insegurança, tristezas, e também
por todas as vezes que disse “não” e terminava o final de semana
em casa, sozinha, mentindo para mim mesma, dizendo que era
exatamente isso que preferia.
Nasceu em mim uma vontade de ser feliz, de dizer mais “sim”
para a vida! É surpreendente o que pode vir pelo simples fato de
sermos corajosos o suficiente para pronunciarmos essas três letras
mais vezes. Sim, quero viver intensamente! Sim, quero conhecer um
amor de verdade! Sim! Vou me permitir usar mais essa “Natasha”
interior para me libertar de tudo que me reprime, tudo que me faz
andar para trás. Senti que, pela primeira vez, abria meus olhos para
o sorriso que a vida me oferecia e aceitava de bom grado, como um
presente e não como uma esmola. Porque agora constatava no
fundo de minha alma que merecia ser feliz. Olhei para o Edu do meu
lado, que tomava a sua bebida e cantava “Primeiros Erros” junto
com a banda, e puxei-o para um abraço apertado. O momento às
vezes não exige explicações, necessita de uma ação direta.
Cheguei no seu ouvido e agradeci baixinho, dando-lhe um beijo no
canto da sua boca.
— Obrigada.
Ele me olhou surpreso, mas tinha alegria em seus olhos.
Apertou-me um pouco mais forte em seus braços e disse também
no meu ouvido.
— De nada, doidinha!
E terminamos a noite assim nesse clima de felicidade, amizade
e gratidão ao som de Capital Inicial.

Acordei preparada para tirar os resquícios da Natasha.


Retornaria à boa e velha Solena de cabelo castanho sem tatuagem,
roupas maneiras e maquiagem pesada. A velha Sol das roupas
tradicionais e da cara lavada. Só que… Ai meu Deus! Por mais que
esfregasse, não saía o verde do cabelo! A tatuagem também não
saía do lugar! O cara da loja garantiu que o adesivo sairia fácil, filho
da puta!
Me apavorei! Por mais que lavasse e a água até saísse tingida
de verde, não retornava ao castanho natural. Comecei a chorar,
desesperada. Afinal, tinha que trabalhar no dia seguinte. Como
apareceria no escritório com os cabelos verdes? Pensei em comprar
outra tinta e jogar por cima, mas, com a minha sorte, poderia ficar
todo manchado e pior do que já estava. Isso se meu cabelo não
caísse inteiro! Já tive experiências horríveis com meu cabelo para
evitar uma manobra desesperada dessas.

Maldita hora que fui encarnar a Natasha, agora ela não queria
mais ser exorcizada da minha vida! Olhei no espelho. Não estava
feia, mas estava, digamos… Chamativo? Diferente? Será que as
pessoas me achariam maluca? Encarei-me no espelho e falei para
mim mesma:
— E se acharem? O que diabos as pessoas de fora têm a ver
com sua vida? Você estava feliz ontem? Então… Foda-se! O resto é
só o resto!
Senti-me melhor depois desse diálogo comigo mesma. Devia
ser a Natasha que habitava em mim se manifestando. Que coisa
mais bizarra, meu Deus! Dei uma risada alta, ouvi batidinhas de
patinhas na porta. Abri e um vulto ligeiro pulou para dentro.
— Oi, Sardinha! Bom dia, gatinho sumido! Você anda me
trocando pelas regalias da dona Sônia e o Santiago, né? Seu
vendido!
Ele me olhou e começou a se lamber, distraído, ou me
ignorando propositalmente, sabe-se lá. Em se tratando do Sardinha,
nunca terei certeza. Saí do banheiro e ele veio atrás de mim com
seu miado insistente. Acho que estava com fome e minha mãe
ainda devia estar dormindo.
— Bora comer, gatinho folgado! Só me procura na hora do
aperto. — Olhei-o acusadoramente, mas me sentia com ótimo
humor.
Senti o celular vibrando no bolso do meu roupão. Peguei para
ver quem era, afinal minha curiosidade ainda era maior que minha
fome, e é claro que eram as meninas. Viram algumas das fotos com
o Edu e estavam me bombardeando no grupo do Whatsapp.
— Viu, Sardinha? Elas caíram que nem patinhas no meu
“namoro” com Edu, ou seja, estou livre dos sites de relacionamentos
e possíveis encontros desastrosos com esquisitos ou velhotes por
aí. — Sorri, enquanto meu gato me olhava com cara de paisagem
como quem diz: “Vai rolar o rango ou não?” — Não me olhe assim!
Sardinha, você é um morto de fome, já tô indo! Tô largando o
celular, viu? Vou deixar as três se roerem um pouco mais…
Abri uma lata de sardinha para o Sardinha. Bizarro! Se
pararmos para analisar era quase um canibalismo! Ás vezes, minha
imaginação parecia tão fértil que dava para supor, ou ter quase
certeza, que minha mãe me deu adubo líquido ao invés de leite na
mamadeira. Confesso, isso foi nojento! Blerg! Mas se não tenho
filtro na língua, que dirá na minha imaginação!
Quando terminei de forrar a barriga do meu gato guloso, e
claro também a minha, ele saiu disparado para o quarto da minha
mãe e voltei sozinha para o meu. Não disse que ele era uma traíra?
Joguei-me na cama, curtindo a vibe da preguiça. Peguei “meu
amigo” rosa-choque, coloquei meu fone e joguei na seleção musical
do Capital para relembrar os momentos perfeitos do dia anterior.
Aliás, pensando nisso, notei que o Edu não tinha enviado nem uma
mensagenzinha. Será que ainda estava dormindo? Estávamos no
meio da tarde!
Estiquei o braço para pegar o celular e mandei uma
mensagem para ele.
— Hey, belo adormecido, acordaaaaaaa!
Pelo visto não estava conectado. Esperei alguns minutos e
nada, que droga! Já estava com saudades daquele doido. Fui para o
grupo das meninas para ver o que elas queriam antes. Abri o grupo
do quarteto fantástico e estava cheinho de conversa e estava quase
passando batido por ela, quando uma parte me intrigou. Voltei ao
início e li atentamente toda a conversa.

Nu: Oi, Sol! Que gatinho esse Edu, hein! Eu pegava fácil!
Nat: E aí, gatinhas? Bom dia! Achei ele um tanto magrelo para
o meu gosto, mas nada mal para quem estava a perigo! E aí, Sol,
sua safadinha, você esticou a noite ou ficou enrolando o garoto?
Suzy: Ei, meninas, pelo amor de Deus! Ela nem deve estar
vendo as mensagens agora, com certeza está dormindo ou
aproveitando o domingo. Sosseguem o facho de vocês!
Nat: Às vezes, acho que você é uma velha presa no corpo de
jovem, Suzy. Mudando de assunto... Vocês viram quem também
estava lá?
Suzy: Velha é tua bunda, Nat. E como você sabe quem tava
lá, tá doida, Nat? Por acaso, a senhora foi ao show em modo
espírito ou virou uma mosca e saiu voando?
Nat: Oh, senhora engraçadinha, caso não saiba, me atualizo
nas redes sociais ao contrário de vocês! E, por acaso, tenho a
Vacamila no meu Facebook.
Nu: Mentira que o demônio oxigenado estava assombrando o
mesmo local que a Sol?! Que merda! Será que ela destilou algum
veneno na nossa amiga?
Suzy: Eita porra! Que vocês duas estão com tudo na fofoca,
hein? Só observo.
Nat: Porra nenhuma! Duvido muito! Dou o meu lindo rabinho
para cachorro comer se ela não ficou é muito longe de nossa
Solzinha e seu "boyfriend", já que ela estava era muito ocupada pelo
visto.
Nu: Como assim?!! Conta esse babado direito, Nathalie!
Suzy: Tô aqui pegando a pipoca, porque vi que papo vai
render.
Nat: O Chefinho gato estava com a nossa malvada nada
favorita!

Suzy: Não brinca?!


Nu: Puta que pariu! “Num” sacaneia!
Nat: Posso ser linda, gata, irresistível, gostosa para caralho,
mas mentirosa não…! rsrsrs. Se vossas senhorias duvidam de
minha pessoa, é só ir até perfil da Camila. Tem uma foto dos dois na
frente da entrada do show e ela deixou em modo público!
Nem esperei para ler o resto da conversa do grupo, saí que
nem um foguete da cama para pegar meu notebook, que estava em
cima da estante, com intenção de poder ver melhor essa palhaçada.
É claro que, quando estava ansiosa versus puta da vida, o meu
computador resolvia travar mais que coluna de aposentado em aula
demonstrativa de Zumba[lxv]. Corno filho da puta, liga logo!
Primeiro, fui ao perfil do Guilherme para dar uma fuçada, lá
não tinha nada desde anteontem. Que tipo de sujeito não atualiza a
rede social há dois dias? Mudei de tática e fui bisbilhotar o perfil da
jararacuçu oxigenada e estava lá, a foto dela com uma roupa
provocante atracada no Guilherme que dava um sorriso meio
forçado. Pelo menos a cara dele não estava das melhores. Como
não vi essas criaturas por lá? Será que eles me viram? Não, né?
Afinal, era muito fácil não os encontrar em uma casa de show lotada
até o teto de gente pulando e dançando. Não viaja, Solena!
Dei uma olhadinha nas minhas notificações das redes sociais.
Tinha muitas curtidas nas fotos minhas com o Edu, algumas
estavam elogiando o visual da noite, outras parabenizando pelo
namoro, outras perguntando como foi o show. Estava com preguiça
de responder aquele povo, então fiz o que sempre faço de melhor,
meti emoji bonitinho em tudo quanto é resposta. Esses desenhinhos
me salvavam, muitas vezes não sabia o que responder ou não tinha
disposição… Ser social na rede social dá muito trabalho!
Não sabia dizer o porquê me incomodava tanto o fato do
Guilherme ter saído com a Camila. No fundo, sempre soube que ela
estava afim dele, e ele não era imune, afinal, era homem e, como
minha mãe sempre diz, mulher oferecida e homem safado tem ímã.
Deveria esperar por isso, mas sinceramente? No meu íntimo, me
deixei iludir com as piadinhas das meninas que diziam que ele
estava a fim de mim. É, sou uma besta, não me enxergo ou me
ponho em meu devido lugar. Oi, insegurança, você por aqui?
Homens lindos e bem de vida, como o Guilherme, não
olhavam para uma criatura desastrosa, nada “sexy” e que gostava
mais de livros do que maquiagem e moda; pelo contrário, esses
caras gostavam de sair com beldades para se vangloriar a seus
outros amigos bem-sucedidos. Sim, é um pensamento um tanto
quanto preconceituoso, mas é o que penso.
Larguei o celular de lado, deitei na cama e fechei os olhos. Só
quando senti um rabo peludo na minha cara, notei que tinha
cochilado. Sardinha resolveu que deitar na minha barriga com a
bunda peluda grudada no meu queixo. Para ele, deveria ser sua
melhor ideia de domingo. Dei um susto nele, que saltou três metros.
Ri alto da travessura, mas me arrependi, tadinho! Como era má! O
gato ficou puto comigo e saiu disparado porta afora. Logo, logo nem
o gato me aturaria mais.
Ao final da tarde, quase noite, me entreguei a uma leitura de
um livro, no qual não consegui me concentrar quase nada. Não tive
sinais de Edu, achei estranho. As meninas continuavam entupindo o
grupo, e também em mensagens privadas, com perguntas, mas
ignorei de propósito, não estava a fim de dar trela. Estava chateada
com sumiço do Edu e também com o comportamento tipicamente
masculino e imbecil do Guilherme. Segunda-feira estava quase
batendo às portas, então não poderia escapar do trio de fofoqueiras.
Até lá, resolvi curtir a leitura e minha bad.
C 19

Em plena segunda-feira, meu ânimo era de quem vai por


obrigação para um velório de uma tia distante, ou seja, fui ao
trabalho me arrastando com roupas escuras e óculos de sol. Deixei
meus cabelos presos a fim de não chamar muita atenção para
minha pessoa bitolada. Claro que não tive sucesso, pois, onde
passava, as pessoas me olhavam como seu fosse a mulher Hulk
viúva. Adolescentes e crianças se cutucavam e riam baixinho; às
vezes, gostava da minha camuflagem diária de pessoa comum, se
destacar na multidão se mostrava bem constrangedor.
Estava de mau humor, talvez de TPM, ou talvez fosse a falta
de notícias do Edu e excesso de informações do Guilherme. Essa
bendita tinta também tinha culpa no cartório, era para ser temporária
e não saía nem com um caminhão de xampu. Faltava menos de dez
dias para a festa da empresa. Será que teria que ir com cabelo
abacate? Se fosse uma festa à fantasia mexicana, poderia fingir que
estava vestida de guacamole. Isso foi péssimo! Nem meu senso de
humor estava colaborando hoje.
Subi no ônibus com a disposição de quem estava cada vez
mais próxima de ser dissecada em uma aula de ciências. Cabeça
baixa, peguei minha Carochinha rosa e coloquei para tocar o novo
álbum da Clarice Falcão. Adorava as letras sarcásticas e divertidas
dela, ajudava a relaxar e animava ao mesmo tempo; era uma
contradição que combinava perfeitamente na descrição de suas
músicas.
Pela milésima vez, me perdi misturando meus pensamentos e
as músicas que estavam tocando. Cada uma tinha um ponto que me
identificava que levava a novas reflexões. Eu estava bem distraída
quando senti dedos me cutucando. Lá fui, munida do meu olhar 43
de quem quer matar cinco fuzilados de uma só vez, e vi a carinha de
animação de Edu. Sim, o besta ficou um dia inteiro sem dar notícias
e depois me olha com esse sorrisão, como se estivesse tudo bem,
típico do Eduardo. Exagerada? Talvez, mas tenta falar isso para
minha TPM!
— Minha namorada preferida! — exclamou, sorrindo e se
aproximando para me abraçar.
— Tira suas patinhas de mim, querido ex-namorado de
mentirinha — adverti, armando carranca.
— Hey, Natasha paraguaia, que agressividade é essa? —
indagou, confuso. Seu sorriso murchou.
— Poxa! Você me deixou o dia inteiro no vácuo ontem e chega
como se eu fosse o quê? — retruquei brava. Já mencionei que
minha TPM era linguaruda e desaforada?
— Sol, relaxa, fiquei sem internet e estava sem créditos. Foi
um dia só, criatura! Só fiquei sem falar com você no domingo,
namorada possessiva e ciumenta! Valeu pelo menos pra ver que
sentiu saudades de mim — sorriu vitorioso.
— Ha ha ha! Convencido! — retruquei debochada, mas a raiva
já tinha se dissipado.
Edu era o tipo de cara que não dá para ficar perto e sentir raiva
por muito tempo. Até porque todo esse piti, com certeza, era culpa
dos meus malditos hormônios e da TPM. Teria que acionar minha
gaveta de emergência no trabalho, lá tinha minha arma secreta para
sobreviver a essa doideira hormonal mensal.
— Falando sério, Sol, o show foi ótimo! Não disse que valeria à
pena?
— O.K., Edu, você estava certo! Mas não se gaba, garotão!
Porque Capital Inicial é o que é! Na chuva, na rua, na fazenda ou
numa casinha de sapê[lxvi], saporra [lxvii]
estava fadada a ser foda,
porque eles são do caralho!
— Garota, alguém precisa lavar essa sua boquinha linda com
sabão! — gargalhou. — Tirando a metralhadora de palavrões
disparadas, concordo em gênero, número e grau.
— Tá bom, senhor quadrado. Desculpa por ofender seus
ouvidinhos puros e inocentes com a minha boca malcriada. — Dei
língua.
— Eu não me importo com seu vocabulário, dona encrenca!
Pelo contrário, admiro muito sua franqueza e falta de filtro. — Piscou
matreiramente.
— Se isso é um elogio, muito obrigada, querido amigo. —
Sorri.
— Putz! Você me quebra me chamando assim… — disse
bufando e passando uma de suas mãos em seus cabelos. Já havia
reparado que era uma mania sempre que ficava chateado.
— Como? — Olhei espantada, já que não tinha sido minha
intenção irritá-lo dessa vez. — Chamá-lo de querido ou de amigo?
— indaguei, confusa.
— Das duas coisas, Solena, parece até que sou apenas um
amigo qualquer — respondeu baixinho e revirou os olhos.
— Não é o seu, o próximo ponto, Edu? — desconversei com
um sorriso amarelo. É aquele famoso ditado… “Quem fala o que
quer…”
— Sim, senhorita. Fica com seu celular a postos, pois em
breve te mandarei uma mensagem para um novo programinha a
dois! — Deu uma piscadela e um beijo estalado na minha bochecha
e saiu em disparada para saltar do ônibus.
Então, assim como surgiu, se foi e fiquei imaginando que tipos
de planos mirabolantes ele tinha naquela mente fértil. Perguntei-me
o quanto das coisas que Edu dizia eram verdades, porque ou sou
muito tapada, ou o moleque tá arrastando uma asa, duas coxas e
uma crista para mim… Sei lá, sempre fui a rainha das confusões.
O restante do caminho passei perdida em minhas divagações,
procurei no arquivo mental qualquer coisa que realmente
demonstrasse o interesse do Edu, mas cheguei à conclusão de que
estava vendo chifre em cabeça de porco, só podia. Recoloquei
meus fones de ouvido para deixar as músicas abafarem meus
pensamentos bestas e segui meu trajeto. Havia muitas coisas
acontecendo na minha vida naquele momento. E, pela primeira vez,
cagaria e andaria para consequências ou para minha consciência.
Cheguei ao trabalho mais cedo do que deveria. No elevador,
encontrei Nuccia que, ao me ver, já arregaçou um sorriso que dizia
“te peguei! Agora você não escapa”. Olhei em volta e, como o
elevador estava com outras pessoas, não pude fazer nenhum gesto
obsceno ou dar uma resposta afiada. Então, só revirei os olhos e
tentei me fingir de desentendida.
— Bom dia, Sol, bonito o cabelo — ela falou, segurando uma
risadinha de escárnio.
Movi minha boca, dizendo, sem som, palavras para que só ela
pudesse entender:
— Vai ser ferrar, Nu! — Mandei um beijinho no ombro.
Óbvio que acabamos rindo tal qual duas hienas no elevador
lotado de gente. Todos deveriam pensar que tínhamos algum
problema mental. Nuccia era sempre tão leve, mesmo tendo tantos
motivos para não ser, que me fazia um bem imenso estar ao seu
lado. Estar em sua companhia era como tomar uma dose pura de
animação, ela era ligada nos 220V e, quem estivesse perto dela, ou
se adequava ou, como dizia o capitão Nascimento[lxviii], “pedia para
sair”.
Entramos no departamento e demos de cara com o chefinho
que estava vindo da copa. Quando nos viu, sua expressão foi de
surpresa à irritação. Não entendi, sinceramente, mas homem é
bicho doido; era eu quem tinha motivos, pelo menos razões mentais,
para estar puta. Dei meu melhor sorriso e um “bom dia” antes de
seguir para minha mesa. Chegando lá, adivinha? Tinha um post it
laranja grudado na tela do meu computador, escrito:
“Precisamos nos reunir para nos contar cada detalhe de
sábado! Não pense que vai escapar, mocinha! Ass.: trio do
quarteto”.
Sorri. Elas realmente não desistiriam tão cedo. Já estava me
sentindo uma carniça fresca (será que existe isso?), prestes a ser
devorada por um bando de urubuas (será essa outra invenção de
palavras do meu dicionário privado, Solrélio?). A manhã foi
tranquila, só de vez em quando ouvia a jararacuçu passando por
mim com cara de deboche por conta do meu novo "look", o cabelo
castanho esverdeado ou verde acastanhado. Ainda estava
decidindo qual cor prevalecia. Na real, estava me lixando para o que
aquela mocreia [lxix]oxigenada achava. O que me deixava assim, sei
lá mesmo, foi a forma com que Guilherme passava por mim, com
um semblante chateado, sério demais. Chegou a parecer desviar de
mim algumas vezes, isso sim foi estranho.

Na hora do almoço, corri para o nosso QG[lxx] e lá estavam as


três, sentadas com caras ansiosas. Dava pra perceber o quão
doidas estavam para começarem a inquisição. Fiz um sinal da cruz
e entrei com passos firmes, tinha que exorcizar de vez a curiosidade
daquelas diabinhas.
Sentei e fui logo falando:

— O.K., vocês venceram, batata frita[lxxi], me rendo!


— Puta que pariu, Sol. Resgatando Blitz[lxxii]? Você é uma
dinossaura mesmo. — perguntou Nat, dando uma gargalhada
sonora que chamou atenção de todos na lanchonete.
— Música boa é atemporal! — Me defendi revirando os olhos
impacientemente.
Todas riram e me metralharam de perguntas, que respondi
enfeitando um pouco mais do que a verdade, pois, se era para
enganar, tinha que ser com estilo para fazê-las morrerem de inveja
do meu boy magia, né?!
Então conversamos como o Edu era divertido, carinhoso e
inteligente (isso não era mentira), como ele sempre me entendia
(isso também não), como nos dávamos bem e éramos feitos um
para o outro (aí começava o confete!). Disse como a noite foi ótima,
mas que não contaria as partes calientes (outra mentiririnha).
Quando me perguntaram se nós dois vimos a surucucu de chocalho
dourado ou o Guilherme por lá, respondi a verdade, que não
tínhamos ideia de que estavam lá até eu pegar o celular e ler as
mensagens no dia seguinte. Fiz a pergunta que estava me
perturbando desde que as mensagens me acertaram no dia anterior:
— Vocês sabem se eles nos viram?
— Então… — Suzy disse, coçando a nuca. — Ouvi hoje a
cobrinha fazendo piadinhas sem graças sobre sua dança e seu
cabelo para algumas estagiárias que estavam com ela no banheiro.
Se ela viu...
— Provavelmente ele também — completou Nat, perscrutando
por trás do meu olhar. — Mas isso não é importante, certo, Sol?
Afinal, você está feliz com o Edu e tal.
— Ou por acaso você ainda tem queda pelo chefinho
miragem? — inquiriu Nuccia com um sorriso zombeteiro. — Se for o
caso, joga o Edu pra cá!
— Sempre achei ele bonito. Aliás, vocês também! Isso não
chega a ser uma queda, suas exageradas! — falei irritada.
— Calma, Sol, estamos só brincando! — As três levantaram as
mãos em forma de rendição e eu ri.
— Uma palavra pra vocês: TPM!
Nat levantou da mesa sem dizer nada, foi até o balcão e voltou
alguns minutos depois com uma bomba de chocolate enorme na
mão com um sorriso triunfante no rosto. Aproximou-se de mim e me
deu a guloseima. Já estava salivando e fiquei muito agradecida com
a gentileza.

— Isso é pelo interrogatório e para que saiba que, quando se é


uma menina boazinha, é recompensada pelas amiguinhas —
explicou, tentando pegar um pedaço da bomba que agora estava
em minhas mãos.
— Muito agradecida, Nat. Eu te amo! Agora recolha as suas
patinhas daí, antes que morda seu dedo junto.

— Ei, Sol. Olha a violência! Já diz o ditado… “Não morda a


mão que te alimenta”! — falou num tom falso magoado e nós quatro
caímos na gargalhada.
Era muito bom estar entre amigas que me amavam e me
aceitavam com todos meus muitos defeitos, até mesmo com TPM!
C 20

O dia da confraternização estava quase pulando do calendário


na nossa cara. Todos estavam animados, e eu? Bem, estava meio
louca, paranoica e indecisa entre não ir ou me jogar da ponte Rio-
Niterói. Uma vez que as meninas jamais permitiriam que escolhesse
a primeira hipótese, estava maquinando um plano de como chegaria
à ponte e me jogaria de lá de cima sem alarde.
Você está aí pensando que estou dramatizando outra vez,
certo? Não estou! Toda vez que havia um acontecimento ou evento
importante que juntava muita gente conhecida ou desconhecida,
perdia minhas habilidades sociais, era controlada por uma crise
infernal de ansiedade e medo. Podia-se dizer que ficava um
monstrinho apitando no meu ouvido, coisas como: “você pagará
mico”, “todo mundo te achará uma idiota”, “com que roupas você
pensa que vai?”, “não importa o quanto você se esforce, isso não
acabará bem!”, “vê se maneira na comida, hein, sua balofa”. Parecia
uma intuição do mal, daquelas que te fazem ter uma crise de pânico
gigantesca, acompanhada de aperto no peito, enxaqueca, dor no
estômago, irritação e, de quebra, te deixando com uma aparência
horrível, com olheiras, cara de cansada e o corpo parecia
substituído por cinquenta sacos de cimento ambulante. Essa era eu,
ansiedade em pessoa!
Estava no trabalho, olhando para meus correios eletrônicos,
mais lerda que o habitual, as horas pareciam que se arrastavam no
meu ritmo, ainda não estávamos nem metade do expediente. Era
sexta, e a festa seria no sábado à tarde. O clima no escritório estava
animado, o que me fazia sentir pior pelo meu desânimo. A palma
quente da mão de alguém se fez sentir em meus ombros. Levei um
susto, era como se, por um instante, essa mão me passasse uma
corrente que fez vibrar todo o meu corpo. Ao virar, deparei-me com
Guilherme sorrindo.
— E aí, Sol, está animada para amanhã? — indagou com um
lindo sorriso.
— Na verdade, sei lá, acho que não vou, Gui. Me sinto
indisposta. — Abaixei meus olhos a fim de evitar que ele lesse as
entrelinhas que eram letras garrafais e piscantes em neon: “Estou
mentindo, não quero ir, pois morro de medo de pagar mico ou ter um
ataque de pânico”.
— Poxa! Seria uma pena não ter sua presença animada por lá.
O que você está sentindo? Quem sabe, se for ao médico hoje e
repousar, amanhã já esteja melhor. Quer que te leve?
Levantei minha cabeça e olhei em seus olhos, ele parecia
genuinamente preocupado, sentia em sua expressão certa
decepção pela possibilidade de eu não comparecer à festa. Será
que ele fazia mesmo questão da minha presença? Uma vozinha
maldosa me dizia “Não viaja, Solena, ele só está sendo educado, se
toca!”. Mas outra voz esperançosa dizia “Não desperdice essa
oportunidade, mulher, se joga!”. Confesso que essas minhas vozes
mentais (ou seria minha consciência?), pareciam ter fisionomia. A
otimista parecia a voz da Nuccia e a malévola... essa tinha o meu
timbre e minha cara, ou seja, eu podia ser minha maior inimiga.
— E então, Sol? Vamos ao médico? — inquiriu, tirando-me dos
pensamentos voadores.
— Hã, é… talvez não precise, Guilherme. Acho que se
descansar um pouco, posso ir amanhã e… — Vi o rosto dele se
iluminar ao me ouvir, mas continuava com uma fagulha de
preocupação no olhar.
— Sol, então vamos fazer assim, hoje te dou resto do dia para
descansar e amanhã você promete que se esforça para ir,
combinado?
— Mas… — tentei protestar, não queria prometer nada, minha
ansiedade estava começando a comer minhas tripas por dentro!
— Sem “mas”! Ou é isso, ou vou te levar daqui direto pro
médico, sem terceira opção. — Determinou categórico.
— Tá bom, Guilherme, não sabia que você era tão cabeça
dura — falei contrariada e sorrindo. Já não sentia tanta timidez em
conversar com ele, até me senti mais leve depois daqueles dias em
que ele ficou esquisito, aqueles após o show.
— Quer que alguém te leve, ou… — Pareceu engasgar um
pouco, pigarreou e seu rosto aparentou perpassar um
constrangimento momentâneo. — Quer ligar para seu namorado vir
buscá-la?
Em menos de alguns segundos, notei o semblante de Gui
mudando de alegre para triste. Oi? Quase um minuto se passou
comigo confusa até entender de quem ele falava. Estava claro que
era do Edu, então ele realmente me viu no show naquele dia? Será
que isso explicava porque ficou diferente? Lá estava eu, divagando
de novo, e ele continuava me olhando. Pareceram séculos até que
reaprendesse usar as palavras e respondesse a ele.
— Hã, não tenho namorado. — Fiz pausa para organizar as
palavras que escaparam da minha boca sem refletir. Devia estar
com uma cara estúpida. Ainda bem que ele não tinha intimidade
com as meninas para contar a elas a verdade. Não queria voltar ao
mesmo patamar de encalhada que me colocavam.
Acho que ele entendeu que fiquei constrangida, então ele
passou as mãos pelos seus cabelos e sorriu desconcertado, a
situação estava muito surreal. Talvez tenha encarado minha
resposta como se eu tivesse terminado com Edu. Melhor assim. Não
entendi como aquilo importava para ele, mas estava começando a
ficar com uma esperança chata de que as meninas estivessem com
razão e que a miragem pudesse me notar tanto quanto eu o notava.
Isso era maravilhoso e assustador.
— Mudanças de planos! Vou garantir que minha melhor
funcionária chegue sã e salva em sua casa para ficar novinha em
folha para amanhã — falou com uma súbita animação.
— Hã? — Minha cara deve ter sido cômica ou trágica naquele
momento, não estava mais entendendo nada.
— Vamos! — Olhei para ele como se fosse uma “Pegadinha do
Malandro[lxxiii]”, observei a nossa volta para ver, idiotamente, se
apareceriam câmeras. Minha cara deveria estar incrédula, pois ele
soltou uma risada gostosa.
— Vamos, Sol! Não me olha assim, estou me sentindo como
um ladrão potencial dos seus rins.
Relaxei e sorri. Peguei minha bolsa e aceitei sua carona.
Quando saímos juntos no meio do expediente, fomos
acompanhados por vários olhares. Senti um olhar em particular me
fuzilando pelas costas. Lógico que era a Vacamila, mas não estava
ligando a mínima; na verdade, estava olhando para frente, um tanto
estupefata pela irrealidade da situação, imaginando que estava
dormindo na minha cama e que logo, na melhor parte do sonho,
seria acordada pelo rabo do Sardinha no meu nariz ou com o
despertador tocando estridente em meus ouvidos.
Não acordei e, ainda por cima, me vi no carro do Guilherme.
Senti aquela fragrância masculina em tom entorpecentes de
marinho que me trouxe uma paz e uma esperança e que cismou de
se instalar em meu coração. No carro, instaurou-se um silêncio
estranho, então Gui ligou o rádio. Estava tocando uma música que
gostava muito, de AnaVitoria[lxxiv], “Agora eu quero ir”. Reparei que
ele me dava uma olhadinha de rabo de olho às vezes,
estranhamente sem palavras. Reparei mais duas coisas: ele não
perguntou meu endereço e o caminho pelo qual estávamos indo não
chegava nem perto de onde eu morava. Oh, Oh! Quebrei o silêncio.
— Hum... Gui, acho que estamos indo pelo caminho errado,
moro na zona oeste e não na sul. — Dei um sorriso amarelo
envergonhado.
— Calma, Sol, só queria dar uma voltinha com você antes.
Achei que um ar fresco te faria bem, mas se quiser que
retornemos... — Riu dos meus olhos arregalados e minha boca
aberta.
— Não precisa voltar. Agradeço a preocupação. — Quase bati
na minha testa de tanta asneira que falava isso quando não ficava
muda.
— Relaxa e curte um pouco o passeio. Prometo que não serei
um mala. — Deu-me uma piscadinha
— Confio em você, aliás, nunca te achei chato. — Sorri mais
leve e consegui ser sincera. Ufa, estava voltando ao normal.
— Hum, é bom ouvir isso. — Os olhos dele brilharam com
minhas palavras e um sorriso lindo preencheu seu rosto.
Então, Gui fez uma coisa que tirou o meu ar. Quando o carro
parou em um sinal fechado, ele tocou de leve minhas mãos com a
sua. Estranho, elas estavam suadas e frias. Será que ele estava tão
nervoso quanto eu? Fechei meus olhos sem nenhum desconforto,
apenas curtindo aquele momento surreal. Meu coração batia
acelerado, nunca fui romântica, mas quem nunca sonhou com um
amor de livros com aqueles carinhas perfeitos que, de repente,
mudavam seu jeito de ser pela mocinha gente boa? Que atire a
primeira pedra! No fundo, queria ser uma mocinha gente boa com
um final feliz. E o Gui, bem… Ele era um ótimo partido para
qualquer mulher com bom gosto. Afinal, ele era lindo, cheiroso,
bem-sucedido e gostoso. O.K.! O gostoso só acho, não provei, mas
queria. Melhor parar de pensar e sentir, curtir e, quem sabe, sonhar
um pouco!
Estava no comecinho da tarde quando o carro entrou na orla
de Copacabana; ali, tudo parecia vivo e cheio de energia. As
pessoas enchiam o lugar, havia vários bares e restaurantes,
barracas, exposição de artesanato ao ar livre e muitos ambulantes
em seu trabalho. Ele estacionou em um daqueles barezinhos com
marquise verde e vista para o mar, saiu do carro e, quando fui abrir
minha porta, ele correu, segurou o puxador e abriu como um
verdadeiro cavalheiro. Balancei a cabeça um tanto perdida. Aquela
situação estava lindamente insana.
— Vamos tomar uma água de coco, ou você prefere ficar me
olhando até que nasçam chifres em minha testa? — falou, dando
uma sonora gargalhada. Eu deveria ter o espanto estampado no
rosto.
— Sério, o que é tudo isso? — perguntei confusa.
— Não é todo dia que posso levar pra dar uma volta a própria
Natasha saída da música do Capital, né? — explicou com um
sorriso conspiratório.
— Ah, para! Pelo amor de Deus, quero esquecer esse mico! —
Fiquei constrangida com a lembrança daquele dia e baixei os olhos
para o chão, minha insegurança estava me cutucando.
Ele ergueu meu rosto carinhosamente e disse:
— Eu nunca vou me esquecer do dia que te vi dançando. Você
estava… — Suspirou. — Inacreditavelmente linda!
Assustei-me com a forma que ele falava, não imaginava que
tinha me visto e muito menos que havia gostado do que tinha
observado. Fiquei estarrecida com o andar dos acontecimentos.
Olhei para o Guilherme ali e uma coisa estranha no meu estômago
nasceu.
— Anda logo! Vamos pra mesa, Guilherme! Está todo mundo
olhando para nossa cara de pateta aqui, parados quase no meio da
rua. — Tentei puxá-lo pelo braço (e que braço!), mas ele não moveu
um centímetro.
— Vamos. — disse, rindo da minha cara envergonhada.
C 21

Vocês devem estar morrendo de curiosidade sobre o que


aconteceu no passeio com o Guilherme, certo? Até poderia
aproveitar esse clima e tentar enrolar mais alguns parágrafos para,
enfim, contar e assim preservar a atmosfera de “suspense” da
história. Entretanto, vou ser sincera logo de cara e dizer que se você
ficou imaginando uma declaração dele para, então, termos uma
linda noite de amor e viveríamos felizes para sempre, sinto informar
que você está lendo o livro errado! A minha vida não é um conto de
fadas açucarado cheio de musiquinha nhenhenhém, blá blá blá e
juras de amor eterno, sou a Solena, oi?

O restante daquela tarde foi muito agradável, tomamos uma


água de coco juntos e conversamos sobre nossa vida particular,
nossos gostos, medos e sonhos. Descobri, por exemplo, que ele,
assim como eu, amava músicas, principalmente rock’n roll. Contou
que chegou a montar uma banda na faculdade que obviamente não
engrenou, pois, do contrário, ele nem estaria naquele trabalho
enfadonho. Disse que fazer faculdade de administração foi ideia do
seu pai, seu grande sonho era ser músico, mas não queria nadar
contra a maré e se adequou ao modo de viver da sua família.
Vocês agora devem estar imaginando se somente ele falou…
A verdade é que para muitas das perguntas que me fez dei
respostas evasivas. Por exemplo, qual era meu maior sonho? Eu
não sabia responder, então falei o que todos falam: ser feliz. Mas o
que me deixava realizada? O que levava ao sentimento de
contentamento, me tornava útil e tirava o melhor de mim? Essas
perguntas me acompanharam até em casa naquele dia. Me
assustei, já que não sabia as respostas. Nos despedimos, e ele
perguntou se eu estava melhor. Toda a crise de ansiedade que
sentia se esvaiu de meu corpo e isso era um bom sinal, a presença
dele me fez bem. Confirmei minha melhora e prometi que iria à festa
no dia seguinte. Já vou adiantar que me arrependeria daquela
promessa com todas as minhas forças.
Ele me deixou na porta de casa antes do fim da tarde, ainda
nem tinha escurecido. Minha mãe não estava, então fui
recepcionada por um miado faminto do meu gato guloso. Queria
ignorá-lo com todas as minhas forças e ir descansar um pouco,
tentar colocar os pensamentos em ordem. Lembrei que tinha uma
mensagem não lida do Edu e fui em modo zumbi, arrastando os pés
até a cozinha para dar comida ao Sardinha e, dessa forma, me livrar
dessa mini-assombração pedinte. Não me entenda mal, apesar de
[lxxv]
parecer um brucutu às vezes, amava esse pulguento com todo o
meu coração e é por amá-lo que sabia o quanto o bichinho podia ser
chato quando possuído pelo demônio da gula em seu pequeno
corpinho peludo. Assim que dei sua preciosa comida, ele saiu do
meu caminho e pude ir para meu santuário bagunçado.
O sol ainda batia com vontade na janela, iluminando todo o
meu quarto antes de se despedir. A poeira que penetrava em meu
santuário sagrado de paz era refletida pelos raios furtivos do sol,
parecendo um caleidoscópio multicolorido. Olhei para minha estante
de livros, eram muitos, muitos mesmo para qualquer ser humano.
Contudo, como dizia a minha mãe, eu não era todo mundo e sempre
julgava que eram poucos. Era como aquelas garotas que olhavam
para as roupas e sapatos e pensavam que não tinham nada para
usar mesmo com o armário cheio. Eu sentia isso em relação aos
livros, sempre acabava comprando novos mesmo que tivesse outros
cinquenta não lidos na fila.
Abri meu celular sem mais demora. As mensagens do quarteto
eram bobas, alguns gifs, vídeos engraçados e algumas mensagens
de conversas entre elas. Na outra janelinha, o nome de Edu vinha
com várias mensagens não lidas, todas com um tom que parecia
exalar insegurança por alguma coisa. Eu o estava ignorando?
Talvez… Mas por qual motivo fazia isso, se gostava tanto dele? Aí
estava o xis da questão, gostava tanto dele que estava apavorada
de confundir tudo e fazer merda com a amizade que tínhamos, afinal
ele era o melhor amigo homem que já tive na vida. Estava louca
para ler as mensagens dele, mas tinha medo de respondê-lo e
meter os pés pelas mãos.
Minha língua, ou melhor, meus dedos criavam personalidade
própria incontrolável quando estava ansiosa, e era exatamente
assim que me encontrava naquele momento. Desinstalei o
Whatsapp, precisava de algumas horas de paz antes da festa. Uma
coisa por vez! Respirei fundo para acalmar meus pensamentos. As
janelinhas piscando e o bip insuportável do celular só me deixavam
mais louca. Mais até do que normalmente já era, o que, de acordo
com a OMS[lxxvi], o patamar máximo da loucura medida era o Solibéis
(tá! Estou inventando palavras novamente, não disse que sou
alienada?).
Fui até a estante e passei a mão pelas lombadas dos livros
que possuíam várias cores e tamanhos; tantos mundos e história ao
alcance dos dedos que chegava a me emocionar. Acabei optando
[lxxvii]
pelo meu Kindle e escolhi reler um livro, “S.O.S fui traída”, da
autora nacional Fê Friederick Jhones, por se tratar de uma dinâmica
leve e diferente. Fazia pouco tempo que conhecia seu trabalho e a
seguia nas redes sociais, já era fã. Ela tinha uma energia tão para
cima, um sorriso que contagiava e o talento nem se fala! Havia
várias outras autoras nacionais que admirava, muitas que inclusive
acompanho. O que me entristecia é que muitas delas nem eram tão
conhecidas no meio. Em minha opinião, uma injustiça, pois talento
tinham de sobra. Sempre admirei demais essa profissão, acredito
que escrever é uma missão acima de tudo. Poucas são as pessoas
que conseguem transpor seus sentimentos para o mundo através
das palavras. Menos ainda são as que tocam a alma de quem está
lendo. Eles pareciam deixar seus sonhos descobertos como a nudez
de sua alma artística.
Cliquei no livro e me perdi ali dentro. Os livros tinham o dom de
transformar meus problemas em fumaça e acabei adormecendo
com o Kindle em cima de mim.
Acordei algumas horas depois, quando já tinha escurecido,
com um susto tremendo. Sardinha, como sempre, pulava sem
cerimônia em cima da minha barriga. Esse era um claro sinal de que
precisava urgentemente de uma dieta, uma vez que virou costume
ser confundida com uma almofada para felinos. Conferi se ele não
tinha derrubado o meu leitor; felizmente para ele, o aparelho estava
intacto ao lado de minha cama. Levantei, ainda grogue de sono,
fazendo com que o saco de pulga me olhasse com cara de poucos
amigos. Decerto, na cabeça dele, eu era uma abusada por ousar
sair debaixo de Vossa Majestade. Não resisti e dei língua para o
gato. Oh, oh! Vocês já devem ter notado até aqui que meu nível de
maturidade para alguém de trinta e um anos é bizarro, né? Mas,
essa sou eu, sem confetes e sem máscara, a Solena louca e
simplória cheia das neuras, que não está nem aí para o que pensam
dela. Não gostou, larga esse livro e vá ler Tolstói[lxxviii]!
Segundo meu celular, já passava das 22h. Fui espiar se dona
Sônia já estava em casa. Minha mãe, depois de ter sido pega no
pulo do gato com namorado, estava cada vez mais parecida com
uma adolescente apaixonada, chegava altas horas, com sorriso
bobo nos lábios. Estava feliz por minha velha se encontrar em uma
fase tão boa (que ela não escute isso, pelo amor de Deus! Se ela
me ouve chamando-a de velha, acho que viraria um patê para o
Sardinha).
A porta do seu quarto se encontrava aberta. Sendo assim,
podia considerar que ela ainda estava pela rua. Como era sexta, as
pessoas que têm vida social ativa saíam; eu, como sempre, estava
em casa… Veja bem, disse “criaturas que têm uma vida social”, a
minha, bem… Tirando aquele dia com Edu — Putz! (bati em minha
própria testa) O Edu! Precisava ver o que ele tinha me mandado no
Whatsapp! Ainda bem que tinha feito backup das mensagens!
Antes, fui à cozinha caçar algo doce, o chamado da natureza
operava em meu estômago. Abri a geladeira e estava lá, graças aos
céus, nem minha mãe e nem o Santiago viram minha caixinha de
leite condensado… Chupei com vontade! Não pense em coisas
eróticas, hein, mente poluída? Voltemos ao Whatsapp e ao Edu!
Hum! Minha mente fértil deu uma volta de novo e veio um
pensamento nada católico… Será que o Edu com leite condensado
ficava bom? Balancei a cabeça: SOLENA, FOCO!
Sentei no banquinho da cozinha, detonando o doce como se
não houvesse amanhã, adquirindo quilos ou celulites para me
preocupar… Abri o Whatsapp, olhei as mensagens, tinham muitas
das meninas, mas as que me chamaram atenção de imediato foram
do Edu, trinta e nove! Cheguei a engasgar com o troço na boca e fui
atrás de água. Sei que estava enrolando para abrir e ver as
mensagens, mas, cara, estou em um momento de carência (leia-se,
taradice) que posso confundir “lé” com “cré” e aí daria uma merda
federal. Corri os olhos na tela…
Edu: Bom dia, namorada de mentirinha!
Edu: Sol, tai?
----Chamada perdida-----
Edu: Solena, oi, cadê você?
Edu: Poxa, Sol, estou com saudades :(

Edu: Sol, solzinha, Sol…


Edu: Você é luz, é raio, estrela e luar, manhã de Sol, meu iaiá,
meu ioiô… (Áudio com música cantada por ele)
Edu: Sol, sério! Tô preocupado! Faz dias que não nos falamos,
se continuar assim, vou à sua casa ver como você está!
----chamada perdida------
Edu: Sol, fiz algo errado? Fala comigo, por favor!
Foram duas semanas sem nos falarmos. Tudo bem que ele só
tentou contato depois de segunda, e eu também sou turrona quando
quero. Não contive o sorriso malévolo depois de ler as mensagens.
Edu se preocupava mesmo comigo e, pelo jeito, gostava da minha
companhia tanto quanto apreciava a dele. Ao me preparar para
mandar um áudio, daqueles caprichados, de três horas de duração,
apareceu uma ligação dele. Certamente me viu online e aproveitou
a oportunidade. Atendi rápido para acabar com os mal-entendidos.
— Olá, Edu, pelo jeito estava com saudades, hein? — Saí da
cozinha e voltei ao quarto, onde me joguei na cama, fitando o teto,
com um sorriso bobo nos lábios.
— Caramba, Solena! Se me desse mais gelo, faria um teste
para dublê do iceberg do Titanic[lxxix].
— Deixa de exagero e drama! Você sumiu também, nem vem!

— Tive uma semana louca de provas na faculdade, desculpa,


Sol. — Sua voz parecia cansada.
— Está perdoado! Eu também andei enfrentando um colapso
existencial, não era boa companhia para ninguém. Amanhã é aquela
tal festa do trabalho. Hoje tive uma crise de ansiedade…
— Eiiii… Calma lá, mocinha, tem que cuidar disso, Sol!
Respira, inspira e não pira. Me conta. O que te aflige? Pode abrir
seu coração para seu namorado preferido.
— Edu, você não é meu namorado! E outra, nem tenho outro
pra você ser o preferido…

— Deixa de ser chata!


— Olha lá que vou dar mais uma semana de gelo, hein?
— Tá bom, parei! Sua malcriada.
— Senti sua falta, Edu! — revelei de coração.
— Eu também, Sol!
Aquela declaração tinha muita verdade de ambos os lados,
além de qualquer amizade. Em tão pouco tempo, ele se tornou
muito importante para mim. Quem diria que, em um busão cheio,
fosse achar esse doidinho tão gente boa?!

— Edu, o papo está maravilhoso, mas tenho de acordar cedo


amanhã para ir à tal festa, prometi às meninas que iria, e sabe como
é, se der para trás…
— Elas te matam… Sei, sei. Nem precisa se preocupar.
Também já vou indo, tô feliz de ter conseguido falar com você. Topa
um milk-shake no domingo?
— Golpe baixo, Edu, assim não resisto… Só se for de
ovomaltine!
— Mas é claro e existe outro sabor, por acaso, senhorita?

— Nope[lxxx]! O resto são apenas imitações de mau gosto.


— Então, combinado. À tarde passo aí! Quem sabe tem algum
filme decente no cinema…
— Tá abusadinho, hein?! Era milk-shake, agora cinema. Se
não me cuidar, você emenda uma viagem pra Vegas para casarmos
escondidos…
— Não é má ideia, viu… — Ouvi quando ele riu.
— Para de ser besta!
— Beijos! Te adoro, maluquinha!
— Também te adoro, seu besta, boa noite!
— Boa festa! Sol?
— O que foi, peste?

— Sonha comigo…
Desliguei, sorrindo de orelha a orelha. Era tão fácil conversar
com o Edu, era incrível como ele sempre me fazia tão leve.
C 22

Ouvi batidas na porta do quarto. Abri os olhos e vi no celular as


horas. Gritei um “já vai!” com minha voz esganiçada pós-sono de
beleza e quase caí da cama, pois passavam das 11h00min da
manhã. Oh, Deus!… Não tinha dormido. Havia desmaiado! A última
coisa de que lembrava era da conversa que tive com Edu por
telefone, depois jantei e me joguei na cama pela terceira vez
naquele dia. Devia estar muito cansada mesmo. A realidade me
atingiu como um golpe quando lembrei que hoje não era um sábado
de preguiça qualquer, era o grande dia! Dia da festa no trabalho!
Meu estômago deu sinais de vida e começou a entrar no clima,
dançando o Ragatanga de nervoso. Eram mágicos os efeitos da
ansiedade sobre mim: em um minuto, estava tudo bem, e no outro,
puft! Doía cabeça, revirava estômago, suava frio, ou seja, era uma
desgraça só!
Parei de enrolar e levantei de uma vez. Melhor me meter no
banho para tentar dissipar as neuras da minha cabeça. Antes de
entrar no banheiro, escolhi uma seleção musical acústica para ouvir
enquanto estava debaixo do chuveiro, mas meu cérebro não
conseguia focar em nada, nem mesmo em música. Terminei
pulando de uma faixa para outra que nem uma idiota, então desisti
de ouvir música. Pelo jeito, minha mãe havia desistido de mim,
devido à minha lerdeza em abrir a porta. Só lamento! Esse negócio
de acordar pronta para tudo era com a ela e, e isso era tão irritante!
Era nosso o direito incontestável de acordar com uma bela dose de
preguiça e mau humor, oras bolas!
Ainda ignorando o banheiro, fui dar aquela espiada básica no
armário. Parecia que um tufão tinha passado por ali. Não fazia a
mínima noção do que vestiria para a tal festa. Será que deveria ir de
Natasha de novo? Melhor não! Ri sozinha da ideia absurda. Olhei o
espelho para dar aquela espiadela básica no meu aspecto,
precisava urgentemente de um bom corte, uma hidratação e uma
tintura… Opa! Que isso, Solena? Bateu o bichinho da Nuccia em
você, menina? Nunca tive essas frescuras de mulherzinha. Ri.
Como se não fosse uma mulher! Dã! Na verdade, admirava quem se
cuidava, só não tinha paciência para fazer isso. Parecia uma perda
desnecessária de tempo já que poderia usá-lo… Lendo! Tá! Sou
uma Nerd mesmo, me condenem!
De volta ao meu pesadelo com as roupas, revirei ainda mais a
bagunça já feita. Coloquei tudo na cama e fui pegando as peças
uma a uma, jogando para o lado o que não era bom. Obviamente, a
pilha do “ruim” já estava quase uma escultura da minha altura, e o
montante do “bom”, bem… Voltamos à roupa daquele dia com
Edu… Ninguém merece! Acho que precisaria de uma mãozinha do
“shopping” para essa festa, isso que dá nunca atualizar as roupas
para sair… O que achava mesmo? Que roupas novas brotariam da
bagunça em um passe de mágicas? Tenho que ser muito lerda para
achar isso…
Peguei uma calça jeans qualquer, uma blusinha de mangas 3/4
roxa e, agora sim, fui correndo ao banheiro para um banho ligeiro
antes de ir às compras. Tentaria encontrar uma peça satisfatória
para aquela festa. Oh, céus! O shopping decerto estaria pior que
final de campeonato no “Maraca”[lxxxi], lotado! O povo ama esses
locais aqui, talvez seja porque a probabilidade de acontecer algo
violento, dentro de um ambiente fechado com câmeras e segurança,
é bem menor que em qualquer outro lugar ao ar livre, ou talvez
fosse apenas pela presença ilustre do ar condicionado. Já debaixo
do chuveiro, ouvi novas batidas na porta.
— Mãe? — gritei.
— Filha, vai sair? — perguntou aos gritos. Caraca! Como
somos escandalosas!
— Tenho que ir ao shopping comprar algo usável, hoje tem
aquela festa do trabalho mais tarde — falei alto para que me
ouvisse, a preguiça de esticar o braço e abrir a porta era maior que
eu.

— Até que enfim! Que maravilha, minha filha, é bom mesmo


você fazer umas comprinhas, afinal, só tem trapo naquela zona que
você chama de armário! — gritou do outro lado da porta, rindo.
— Como você é um amor, dona Sônia! Sei que a senhora
chegou tarde ontem. Depois teremos uma conversinha, hum! —
retruquei, também rindo.
— Hahaha… Você não sabe de nada, menina! Eu nem voltei
pra casa ontem…
Ouvi sua gargalhada bem-humorada e seus passos se
afastando da porta. Era sério mesmo que minha mãe estava me
zoando? Que mundo virado, onde eu, a filha, era mais comportada
que minha mãe! Ri alto no chuveiro, lavei bem as madeixas, pois se
sobrasse tempo passaria em um salão para fazer alguma coisa
diferente nele. Não queria chegar ao lugar com cabelo parecendo
uma piaçava fedida, né? Saí do banho e mandei mensagem para as
meninas. Quem sabe elas não quisessem me ajudar nessa difícil
missão de arrumar uma roupa decente e mudar um pouco esse
[lxxxii]
cabelo que estava mais batido que caipifruta em festa de São
João?
Sol: Olá, vacas! Good Morning!
Nat: Bom dia nada, né, Solzinha? Já é quase meio-dia!
Nu: Não pentelha a menina, Nat! Hoje é sábado, dã!
Suzy: E aí? Vocês estão animadas para a festinha hoje, girls?

Sol: Houston, we have a problem![lxxxiii]


Nat: Solena, nem começa o caô ou iremos todas na sua casa
e carregamos você de pijama mesmo!

Nu: Apoiada
Suzy: Apoiada 2
Sol: Nat, você não é motorista, mas chegou ao ponto! Se
vocês não me salvarem nesse momento, terei que ir de pijamas
mesmo!
Nat: Tão engraçadinha... Nem brinca com uma coisa dessas!
Você vai fazer todo mundo sair correndo se aparecer com esse
pijama dos Minions sinistro… hahahaha
Sol: Rá!… Muito espirituosa você, Nathalie!
Suzy: Falando sério. O que você precisa de nós, Sol?
Nu: Obviamente, essa mocoronga só reparou que não tinha
roupa no último minuto do segundo tempo. Tô errada, Solzita?
Sol: Não, vaca! — Revirei os olhos e não deixei de sorrir, elas
me conheciam muito bem…
Nat: Então, bora levantar a bunda gorda e caçar uma roupa
bem chegay pra você virar a Miragem da nossa Miragem!
Sol: Não exagera, Nathalie!
Suzy: Não se preocupa, Solzinha, o esquadrão do bom gosto
te salvará da difícil tarefa de escolher roupas no shopping!

Sol: Oh, oh. Só não me façam me arrepender deste pedido,


meninas!
Nu: Na realidade, você vai ver ao longo do tempo que foi a sua
melhor decisão, mesmo que demore anos para colocar o orgulho de
lado e nos confessar isso… kkkkk.
Sol: Oh, Deus! Estou ficando mais apavorada que já estava!
Posso desistir e voltar para os meus livros?
Suzy: Nem se atreva! Vá já para o shopping agora mesmo!
Chegaremos lá daqui a pouco. O.K., girls?
Nat: Ok 2!
Nu: Ok 3!
E foi assim que saí de casa pronta para o abate, acatando as
ordens do trio que estava sedento por sangue fresco. Rezei para
Nuccia não me enfiar em nada vermelho, ou que a Nathalie não
tentasse me introduzir em um tubinho tão colado e curto que me
faria parecer uma mortadela prensada e produzida para ser
degustada com cerveja… Lembrei do Edu e mandei uma mensagem
rápida para ele…
Sol: Edu, socorro!
Edu: Boa tarde, namorada, o que te aflige?
Sol: Serei sequestrada e forçada a comprar roupas novas no
shopping pelo trio de loucas!

Edu: Ih! Disso nem o Homem de Ferro[lxxxiv] te salvaria, gata!


Essas três são mentes perigosas, capaz de eu tentar te salvar e
elas me obrigarem a renovar o meu guarda-roupa também… kkkkk
Tô fora. Boa sorte, namorada!
Sol: Traíra! :( Estou indo pra guerra, se sobreviver nos vemos
amanhã!

Edu: Com certeza vai sobreviver e se divertir! Relaxa, Sol,


tenho certeza que ficará linda, afinal…

Sol: Afinal???
Edu: Você já é linda, Sol!
Sol: :P
Revirei os olhos com o elogio, sorri. Peguei minha bolsa, nem
comeria nada antes, meu estômago já estava cantando uma ópera,
decidi chamar um carro pelo aplicativo, seria mais fácil e mais rápido
chegar e acabar logo com a tortura!

Acho que demorei uns vinte minutos para chegar ao shopping,


que era próximo da minha casa. E, é claro, estava lotado! Mandei
uma mensagem no grupo para saber se as três já tinham chegado.
Sol: Chegay!
Nat: Também chegamos, sua poia! Veio de jegue? Venha nos
encontrar na praça de alimentação, estamos traçando um Mc.
Suzy: Venha logo que essa vaca esfomeada da Nathalie vai
comer tudo! Até compramos o teu para adiantar, suas batatas já
estão pela metade!
Nat: Dedo Duro!
Nu: Mexe o popozão, Solena! Anda logo, pois temos pouco
tempo para fazer milagre!
Sol: Ok, chego em um minuto. DEIXEM AS MINHAS BATATAS
AI OU MATO VOCÊS!
Saí correndo em direção à praça, quem me visse acharia que
eu ia salvar a mãe da forca. Mas, na real, faria uma coisa muito
mais difícil, que era salvar as batatas da forca, ou melhor, da orca
da Nat! Ainda bem que a praça ficava no mesmo piso que estava,
então cheguei a tempo de dar um tapa na mão da Nathalie, que já
estava se aproximando do meu saquinho de batatas.
— Tira as patolas daí, desgraça! — Quase rosnei.
— Ora, ora, ora… Quem é viva sempre aparece… — falou
Nat, lambendo os dedos com sorriso de deboche.
— Hi, Girls! Me deixem primeiro alimentar o monstro que está
rugindo na minha barriga, depois sou toda de vocês! — falei,
sentando e pegando o meu lanche, dando uma abocanhada com
vontade.
— Come logo e vamos! Estamos ansiosas para fazer “A
TRANSFORMAÇÃO”. — Os olhos de Nuccia chegaram a brilhar
com um olhar um tanto quanto satânico ao proferir isso. PQP[lxxxv]!
Eu estava ferrada. Como diz o ditado: “Ajoelhou tem que rezar”.
Seja o que Deus quiser!
Comi tudo igual a uma esfomeada. Claro que acompanhada
por vozes carinhosas que diziam ao meu lado: “Anda, Vaca! Engole
logo isso”, “Bora, Rex, traça esse hambúrguer com a classe de
tiranossaura que sabemos que você tem”, e algumas ameaças da
Nathalie, como “Come logo isso, se não termino o serviço por você”.
Depois de tantas demonstrações de amor e carinho, finalizei em
tempo recorde. Com certeza, teria uma congestão; nem deu tempo
de raciocinar sobre o assunto, pois elas me arrastaram pelo
shopping na peregrinação às lojas.
C 23

Elas me arrastaram por inúmeras lojas, corríamos contra o


tempo. Parecia aqueles programas de TV dos anos 90, onde você
tinha um tempo predeterminado para colocar todas as coisas no
carrinho e levar até o caixa ou perdia tudo (Supermarket).[lxxxvi] Tirei e
coloquei tantas vezes as minhas próprias roupas, que julguei que
elas se rebelariam e sairiam correndo pelo shopping gritando
“Salvem-me dessas loucas”. Depois de um bom tempo gastando a
sola dos meus All Stars, chegamos a uma loja onde vi algo que fez
brilhar meus olhinhos boludos e sonhadores. Era um vestido
bafônico, todo liso, azul-marinho, com um comprimento pouco
abaixo das minhas coxas, um decote em V nas costas que descia
até depois da cintura marcada. A saia tinha pregas que davam um
leve rodado. Era, ao mesmo tempo, simples e lindo, chique e
informal, ou seja, era minha cara, nem tão extravagante e nem tão
conservadora! Apesar de ter custado um pouco mais do que um rim
e meio fígado, fiquei realmente contente de tê-lo comprado. Olhei
para a cara das meninas que me observavam de cima a baixo com
uma expressão questionadora e cochichando algo entre si. Estava
com medo de descobrir o que aquelas três mentes diabólicas e
maquiavélicas tramavam… Nat pareceu entender a minha cara de
interrogação, e sendo direta e reta, disse:
— Solzita… A quantas andam a depilação dessas pernocas?
— perguntou com um sorriso sardônico no rosto.
— Oh, Oh! Isso é sério, Nathalie? Temos pouco tempo para
tantos detalhes… Pra que se preocupar com isso agora se temos
meia calça, hein? — retruquei, corando, afinal, isso estava indo
longe demais. Daqui a pouco iriam querer conferir se a periquita
também estava em dia. Sai fora!
— Nada de meia calça com esse calor infernal! Tá louca? Será
festa ao ar livre e estamos no Hell de Janeiro, sua tonta! Pela tua
[lxxxvii]
cara de tomate, se te chamássemos de Chewbacca agora,
seria um elogio, né? Vamos, meninas! A Sol precisa de um serviço
completo — Nuccia proclamou e as três me arrastaram.
Lideradas pela mente pervertida de Nuccia, Nathalie e Suzy
me levaram a um salão com centro de estética bem chique e lindo,
que deveria custar mais do que minhas córneas. Mais parecia um
sequestro do que um passeio entre amigas, então resolvi me render
e deixar para lá. Afinal, fui eu quem pediu por ajuda, mesmo que, no
fundo, uma vozinha me dissesse que aquela ideia de chamá-las me
faria muito mais falida do que já era e que me traria uma dor de
cabeça colossal.
Sentei na cadeira de tortura e depois de puxarem meu cabelo
para um lado e para outro, como se fosse bala puxa-puxa, pintarem,
cortarem e quase arrancarem os dedos dos pés e das mãos, isso
sem contar a sessão de agonia máxima na mesa de depilação, pois
elas mandaram fazer a completa (não disse!), além das minhas
sobrancelhas que também foram atacadas, fiquei pronta! Olhei a
hora em meu celular… Meu Deus! Já passavam das 17h e eu tinha
que correr para casa e me vestir! A festa seria às 18h30 e o local
não era muito próximo de onde morava, então caso não corresse…
Minhas amigas se entreolharam com cara de missão cumprida.
E, é claro, no momento em que me vi no espelho, amei e odiei as
três mocorongas na mesma proporção. Avaliando o reflexo que
retribuía meu olhar, não podia negar que eu realmente parecia ter
saído do programa de transformação da Xuxa!
Sorri e segui para a saída na companhia das minhas três
malucas preferidas. Eu estava com cara de quem poderia enfrentar
tudo o que estava por vir, até mesmo a VacaMila ou minha
ansiedade. Mas, lembrem-se, sorte e Solena eram duas palavras
antagônicas… Sempre estou errada nas minhas suposições e dessa
vez não seria diferente. Nenhuma dessas transformações me
prepararam para tudo que viveria no que restava daquele dia.
C 24

Achava uma perda de tempo essas festas de empresa. Havia


nelas um bando de gente chata e bajuladora, alguns que se
excediam e pagavam micos. Preferia descansar ou ir a um lugar
mais tranquilo. Como chefe, era obrigado a comparecer. Hoje, no
entanto, terei um ótimo motivo para estar presente, uma vez que
Solena confirmou sua vinda. Seria imperdível, paguei para ver!
Arrumei-me em estilo casual, nada de ternos. Afinal, mesmo como
chefe e cercado por pessoas do meu trabalho, estávamos todos
comemorando. Perfumei-me, coloquei uma calça jeans e uma
camiseta de gola pólo e entrei no carro.
Confesso que estava um pouco ansioso por rever Solena
depois de nosso inusitado passeio pela praia. Foi encantadora a
maneira como ela pareceu tão deslocada e sem graça, como se eu
fosse o último ser humano que pudesse levá-la em uma voltinha na
praia para tomar água de coco. Minhas intenções com ela eram um
tanto bagunçadas, sempre a admirei por seu jeito de ser, e sentia
que ela mexia comigo, mas fugia de tudo por ela ser funcionária e
eu, seu chefe. Naquele show, ao vê-la, qualquer noção de bom
senso foi para o alto. Cara, aquela roupa, aquele cabelo, aquela
dança! Puta que pariu! Balancei a cabeça para os lados, sorrindo;
ela, com certeza, virou meu juízo do avesso. A mulher não tinha
noção de quanto era linda e sensual e esse era seu maior encanto.
Cheguei ao local, muito bem decorado e de bom gosto. Dessa
vez, os chefões fizeram algo decente, não economizaram nos
detalhes. Havia uma piscina enfeitada com balões dourados, uma
pista de dança com DJ e luzes estrobocópicas piscando, além do
bar ao lado, que oferecia inúmeros drinques aos convidados já
presentes. Perto da piscina, havia um grande quiosque com mesas
de buffet e vários petiscos. Em vários lugares espalhados sob a
área coberta e na área ao ar livre, foram colocadas mesas com
toalhas brancas e douradas, tendo em cima castiçais com velas
elétricas, pois ventava, se fossem reais as chamas já estariam
extintas.
Verdade seja dita, nenhum daqueles detalhes me importava
muito. O local ainda estava relativamente vazio. Olhei para todos os
lados em busca da única pessoa que queria ver naquele dia, mas
não a encontrei. Ela não chegara, nem as suas amigas pelo jeito.
Era 18h45 ainda, então fui até o bar pegar uma bebida e
cumprimentar os chefões, afinal ficaria muito feio se os
desmerecesse, já que também fazia parte da chefia. O Sr. Álvaro
Nunes, o gerente-geral da filial e meu chefe imediato, estava
sentado com outras pessoas da diretoria e, para minha infeliz
surpresa, Camila estava metida entre eles. Ela estava
deslumbrante, usando um vestido tomara-que-caia vermelho. Uma
visão luxuriante, confesso, porém tão diferente da beleza graciosa e
sem pretensões da Sol que causava até um certo sentimento de
pena. Camila queria ser o centro das atenções a todo custo, isso era
nítido. Já Solena, não. Ela gostava de ficar na dela e passar
despercebida. Como alguém com um senso de humor tão enérgico
e uma personalidade tão deliciosamente desastrada poderia ficar
muito tempo sem ser notada?
Segurando meu copo de uísque nas mãos, cumprimentei
todos. Camila deu um sorriso safado em minha direção,
acompanhado de um olhar que, se pudesse ser descrito em
palavras, seria algo como: “Vou te pegar”! Causou-me certo
constrangimento, pois estávamos entre outras pessoas. Ficamos ali,
conversando amenidades, elogiei o Sr. Álvaro pela linda festa. Sem
que os outros se importassem ou reparassem, Camila continuava
lançando olhares desejosos para mim, contudo meu olhar estava
inquieto e corria para entrada a cada cinco minutos. Obviamente,
ela reparou no meu interesse na entrada e ficava me observando
intrigada para ver a quem eu esperava tão ansioso.
Em uma das minhas espiadelas furtivas, vi o objeto de minha
atenção chegando com suas amigas. Não consegui disfarçar meu
sorriso que cresceu na mesma proporção em que meu coração
acelerava. Era como se um carro esporte em fúria roncasse em meu
peito, ela estava espetacular! Dessa vez, a minha “Natasha” dos
cabelos verdes deu lugar a um mulherão, vestida de forma
provocante e elegante; sua pele aveludada se tornava alva em
contraste com o tecido colado azul-escuro, os cabelos soltos
destacavam o brilho de todas as estrelas que a mulher carregava
em seu olhar e sorriso. Conheci mais uma das faces de Solena e
reparei assustado que estava ficando caidinho por todas elas.
Nossos olhares se encontraram. Sorri para ela que ia em
direção ao bar. Diferente de Camila, Solena não gostava de ficar
puxando o saco dos chefes, então nada mais normal que vê-la indo
de encontro à diversão, ou seja, bem longe de onde o papo chato e
burocrático acontecia. Por falar em Camila, ela identificou o alvo do
meu olhar, fuzilou-me com o afrontar feroz de uma leoa que foi
desafiada em seu próprio habitat. Pouco me importei. Pedi licença e
fui de encontro às meninas que já dançavam na pista ao som de
Anitta.
Solena começou acanhada, mas logo estava requebrando no
meio da pista, sacudida pelo mais novo sucesso da cantora “pop”
nacional. Eu não curtia o som de “funk”, porém se aquele gingado
não era obra de Deus, então, certamente, devia ser a tentação
terrena do próprio Diabo. Seu corpo não era padrão como as
modelos nas capas de revista, Solena tinha curvas generosas e
possuía fartura de carnes nos lugares certos. Isso era uma
qualidade do qual ela, provavelmente, não tinha muito conhecimento
de causa ou ignorava de propósito, o que tornava tudo ainda mais
sexy. Esse pensamento fez com que meu corpo se aquecesse,
levando-me a desviar da rota para pegar uma bebida que, dessa
vez, precisaria de muito, muito gelo para abrasar o fogo que me
tomou…
C 25

Chegamos atrasadas na festa, mas, de fato, ao observarmos a


nossa volta, reparamos que havia ainda poucas pessoas pelo local.
Dentre os que já chegaram, estavam a VacaMila e nosso Miragem,
Guilherme, na mesa junto com os chefões. Quando Guilherme
percebeu nossa presença, exibiu um lindo sorriso. Já Camila, bem,
ela fez uma cara de quem estava tomando óleo de rícino ao invés
do drinque exótico que estava segurando em suas garras. Reparei
que trajava um vestido vermelho berrante, daqueles que mostravam
mais do que cobriam. Tinha de admitir que estava linda e também
vulgar, principalmente por se tratar de uma festa de trabalho e não
uma balada qualquer. Eles estavam junto com os mandachuvas, já
houveram rumores (leiam-se fofocas) de que Camila já tinha dado
um bote no tal do Sr. Álvaro. Até admiro sua coragem se for
verdade, já que o senhorzinho era medonho! Só de pensar nisso me
arrepiei toda. No entanto, estava mais do que evidente que seu
objetivo era Guilherme, a nossa Miragem.
As meninas me arrastaram para o barzinho que ficava ao lado
da pista de dança. Minha ansiedade estava parcialmente controlada,
mesmo assim precisava de uma bebida para poder me soltar um
pouco e não parecer uma estátua petrificada e tensa no meio da
festa. Elas debatiam sobre qual dos inúmeros nomes esquisitos e
cores exóticas oferecidos pelo barman escolheriam. Peguei uma
boa e velha brazuca caipirinha. Elas me olharam com cara de
desdém e eu dei de ombros; prefiro beber o que sei que gosto a
experimentar uma mistura de bebidas que farão um carnaval fora de
época no meu estômago. Tudo que menos queria era terminar a
noite enfiada com a cara no vaso sanitário. Argh!

O DJ colocou a música “A Paradinha” da Anitta [lxxxviii]para tocar


e, apesar de “funk[lxxxix]” não ser o gênero que mais me agradava,
existia uma coisa nas canções dessa cantora que parecia dar vida
própria aos meus quadris e ao meu popozão. Fazer o quê, né? Sou
carioca e não sou imune ao som das ruas, aliás, amava música toda
espécie, como necessitava de oxigênio.
— Ei, bonecas! Vou esperar por vocês na pista! — Direcionei-
me à pista, já dançando. Outra coisa sobre mim: quando estou
possuída pelo som, perco totalmente a linha e esqueço onde estou.
Elas concordaram, julgando que a bebida já estava surtindo
algum efeito. Fui possuída novamente pela música, tentando tomar
cuidado para não derramar metade do meu copo em minha roupa
nova. Rebolei e dancei como se não houvesse mais pessoas no
ambiente e nem reparei que o trio também estava ali por perto,
dando show no rebolation[xc]. Nuccia não ouvia, mas dançava mais
que qualquer uma de nós. Já falei para vocês que ela é bailarina de
dança do ventre? Pois é, a mulher era foda! Senti um puxão leve no
meu cabelo e olhei com cara de cão chupando manga na direção de
quem teve a ousadia. Claro que era Nat. Todas as três tinham
parado de dançar e estavam fixas em uma vertente específica.
— Solena! Olha quem está vindo em nossa direção, seja
discreta! — cochichou Nat próxima ao meu ouvido.
— Oh, oh — respondi e virei com a delicadeza de um mamute,
quase quebrando o pescoço, para ver quem era. Suzy e Nuccia
riram e Nat parecia querer me trucidar. Quem vinha em nossa
direção era, ninguém mais, ninguém menos, que nossa Miragem,
Guilherme!
— Enquanto você dançava, ele não tirou os olhos de você, sua
tonta sortuda! — Nat avisou, com um sorriso de orelha a orelha.
— É, tô pensando que o gatinho do Edu vai levar um galho!
Pobrezinho nem conhecia, mas já considerava pacas... — Nu disse
em um tom de lamentação, balançando a cabeça em negativa.
Então, abriu um sorriso safado, sua face mudando na velocidade de
um relâmpago. — Já que você não quer mais, apresenta! Quem
sabe ele não quer uma mulher mais experiente? — falou em tom de
deboche. Fuzilei-a com meu olhar.
— Recolhe as garras do meu franguinho, sua tarada!
— Não tá mais aqui quem falou... — gargalhou da minha cara.
Por falar em Edu, senti uma dorzinha no peito, um
pressentimento ruim, como se realmente estivesse prestes a
magoá-lo, mas balancei a cabeça em negativa e repeti mentalmente
que ele era apenas um amigo. Um grande amigo, e que esse papo
de namoro era apenas mentirinha para aquelas tontas, que
andavam comigo parar de me chamarem de encalhada e tentarem
me empurrar homens-bombas goela abaixo. Em meio a essa
viagem pela consciência, vi Guilherme atravessar a pista para pegar
uma bebida. Logo depois, veio em nossa direção. Na minha face, o
tom da surpresa, mas nem tanto, afinal Gui vinha se mostrando um
doce ontem mesmo… Bem, vocês já sabem! Contei isso há alguns
capítulos atrás, hellouuu!
— Olá, meninas. Estão gostando da festa? — indagou com
aquela voz tão linda e sedutora. Ouvi-la era como tomar chocolate
quente em um dia frio de inverno (eu hein! Que analogia estranha,
não viaja na maionese, Solena, foco!).
— Oi, Mir… — Nuccia deu uma leve engasgada — ... Gui —
emendou. Quase deu uma bola fora, chamando-o pelo apelido
secreto.
— Olá, Gui! — respondi, tentando segurar uma risada. Nunca
fui boa em me conter, e acabei rindo alto, deixando-o sem entender
a piada.
— Oi, Guilherme! — Suzy também respondeu, tentando
enfatizar o nome para nos situar que estávamos na festa do trabalho
e aquele ali era o nosso chefe.
Olhei para Nuccia e Nat e elas riam também, ufa! Pelo menos
não estava sozinha nesse mico.
— Perdi a piada, meninas? — indagou com olhar divertido.
— Não esquenta, Gui. Essas três quando bebem acabam por
rir sem motivos que nem hienas — explicou Suzy, revirando os
olhos.
Ele sorriu, não parecia incomodado. Olhou-me interessado e
perguntou se estava melhor. Confirmei e comecei a agradecer pela
tarde de ontem, notando que as meninas saíram à francesa, com
uma desculpa esfarrapada sobre irem ao banheiro. Mais tarde
pegaria às três de jeito, essas vacas! Ele notou que fiquei
subitamente quieta e um pouco envergonhada e me ofereceu mais
uma bebida. Aceitei de pronto, precisava mesmo de uma. Ao
contrário de Edu que me deixava despreocupada, Guilherme
deixava-me nervosa e sem palavras. Não sabia ao certo o motivo,
talvez fosse uma tensão causada pela sua beleza ou pelo fato de
que, mesmo em uma festa, ainda continuava a ser meu chefe! Claro
que piorava com a certeza de que estava sendo metralhada por
olhares de ódio da Camila, fixa em nós dois, ainda sentada à mesa
com os chefões.
— O que você quer tomar?
— Pode ser outra caipirinha mesmo, obrigada — agradeci com
um sorriso amarelo.
— Volto em um minuto. Não vai fugir? — avisou e me olhou
tão intensamente que fiquei sem palavras. Meu coração ribombava
ao som da música à nossa volta. Precisava de algo com álcool
urgente!
— Claro, não vou me mexer! — Fui sincera, pois nem se
quisesse conseguiria sair do lugar, estava um tanto quanto
petrificada e, ao mesmo tempo, derretida com as atenções de
Guilherme. Meu estômago estava revirado de nervoso. (Oi!
Ansiedade! Você por aqui de novo? Pode isso, produção?)
Observei aquele homem enquanto pegava nossas bebidas. Ele
era a verdadeira definição do “Homão da porra” que as mulheres
dizem por aí. O cara era lindo, bem-sucedido e ainda cheirava bem
para caraca! O que diabos ele queria perto de uma tonta como eu?
(Hello, baixo autoestima e insegurança! Vocês também estão na
festa?)
Dei uma olhadinha à minha volta e notei que o local já estava
mais lotado. Droga! Tive o desprazer de me deparar com a
Jararacuçu que vinha rastejando em minha direção. Mentalmente,
comecei a rezar um Pai-Nosso e três Aves Marias. Merda! Esqueci
meu “kit” anti-demônio! A água benta e o crucifixo ficaram na bolsa
do trabalho… Oh! Socorro, irmãos Winchester[xci]!
C 26

Então, o inevitável aconteceu. A cascavel de vermelho se


aproximou de mim com o chocalho balançando, pronta para dar o
bote. Fala sério, com certeza, não tinha ido até ali para me
cumprimentar por ter ido à festa ou pela escolha do meu look, né?
Camila chegou rebolando, fingindo dançar bem pertinho de mim e
simulando uma intimidade que, Deus me livre, de ter com aquela
mulher! Confesso que fiquei com medo do veneno não ter sido
drenado, mas não sairia correndo covardemente nem a pau,
Juvenal!
— Olá, querida! Tudo bem? — cumprimentou com a sua voz
fina e melosa, mais falsa que nota de três reais!
— Cancela essa intimidade que você pensa que tem comigo,
Camila! Fala logo o que você quer. — Cortei a falsidade sem
paciência para os joguinhos dela.

— Está nervosa, florzinha? Eu só vim te dar um oizinho, afinal


somos colegas de trabalho, temos que manter a cordialidade entre a
equipe, né? — respondeu, mexendo no cabelo oxigenado e fazendo
cara de ofendida.
— Claro, inclusive somos amicíssimas lá, né nom, gata? O que
você quer, naja? Sibila logo e rala peito daqui! — Queria despachar
a assombração antes de o Gui voltar. Ele estava demorando! A fila
das bebidas estava um pouco grandinha.
— Já que você não quer enrolação, vou te jogar uma real, sua
tonta! Tá vendo aquele gostoso na fila de bebidas? Ele tem dona!
Sai do meu caminho ou vai se arrepender! — disse com olhar feroz
em minha direção. Agora, sim! Essa era a verdadeira Camila, em
osso e veneno.
— Sério? Ele sabe disso, linda? Porque ontem, quando a
gente saiu junto, sabe, não pareceu que ele tivesse dona. Não vi
nenhuma coleira, nem escrito em alguma parte do corpo dele
“playground de cobra”… – Coloquei o dedo sobre os lábios, como se
estivesse tentando lembrar, para irritá-la mesmo. Se ela queria
maldade, eu estava pronta!
— O que teve ontem, sua sonsa? — indagou, confusa. —
Estou tentando ser boazinha e te avisar antes da rasteira que darei
em você se continuar me provocando. Não paga pra ver, Solena!
Você não sabe do que sou capaz! — proferiu entredentes, tentando
soar ameaçadora, contudo só me soou mais patética e
desesperada. Alguém estava se sentindo ameaçada por mim…
Sorri com as ironias da vida, quem diria, hein?
Guilherme estava chegando com as bebidas e, pelo seu olhar,
ficou confuso de ver logo a Camila ali, “conversando” comigo. Era
nítido nosso antagonismo. Eu nunca consegui ser falsa, então
minha antipatia por ela vinha escrita em letras garrafais em minha
testa.
— Algum problema, meninas? — Ele deve ter reparado na
minha cara de poucos amigos e adivinhado que a víbora estava me
incomodando. Agradeci por ele ter se aproximado rápido.
— Nada, Guizinho! Estávamos só conversando, disse para
Solzinha como ela está linda hoje, né? — perguntou-me com o
sorriso mais falso do mundo e retornando à sua voz melosa e
estridente.
— Claro que sim! — Sorri, angélica. — Inclusive, Camila disse
que já estava de saída para o banheiro, contou que estava com dor
de barriga, né Camilete? Deve ter sido algum dos seus chás de
emagrecer, né? — Pestanejei e sorri.
— Solena, como sempre uma brincalhona! Adoro seu senso de
humor — Guilherme falou e deu uma sonora gargalhada.
A loira azeda me olhou com cara de quem queria cortar minha
garganta e fazer morcela [xcii]com meu sangue. Triunfante, sabia que
estava cutucando a cobra com vara curta e fiquei com um pouco de
receio do que ela poderia tentar fazer para me prejudicar. As
meninas definitivamente deram um jeito de sumir até o Guilherme
me largar e ele não parecia estar com pressa de ir a lugar algum.
Confesso que estava gostando dessa atenção, era a primeira vez
que me sentia tão confiante. Digo, segunda, a primeira foi vestida de
Natasha junto ao Edu naquele show do Capital. Esperamos Camila
se afastar, bufando e pisando duro, então ele me estendeu o copo
com a caipirinha. Virei quase metade do copo em um gole só, de
nervosismo.
— Pega leve, Sol! Isso não é água — advertiu-me com um
sorriso divertido. Acho que nunca me viu daquele jeito. — Não
conhecia esse seu lado malévola. Fiquei até com pena da Camila.
— Ah! Me irritei com essa mulherzinha, mas já tô bem melhor!
Coloquei ela em seu lugar! — respondi, já um tanto corada pelo
efeito do álcool versus a irritação pela audácia daquela mulher de
me ameaçar abertamente.
— Vamos dançar? — indagou com um sorriso no rosto,
pegando em minhas mãos.

O DJ começou a tocar “Here comes the sun” dos Beatles[xciii],


parecia premeditado. A música “Lá vem o Sol” não podia ser
coincidência, fala sério? Vi que Gui acenava um agradecimento para
o DJ, e o DJ respondendo com o polegar erguido em nossa direção.
Não sabia o que pensar da situação, meu coração batia tão forte
que pularia fora e dançaria junto conosco na pista de dança. Puxou-
me para mais juntinho do seu corpo forte e estremeci quando
começou a cantar trechos da música em meu ouvido.
Little darling, I feel that ice is slowly melting
Little darling, it seems like years since it's been clear
Here comes the sun, here comes the sun
And I say it's all right

Here comes the sun, here comes the sun

It's all righ[xciv]


Fiquei sem ar, sem ação e um sorriso imenso preenchia meu
rosto abestalhado, enquanto Guilherme me segurava junto a ele e
me rodopiava pela pista. Teve um momento em que percebi em um
cantinho meu trio de amigas rindo, pulando e dando gritinhos mudos
de comemoração. Em um desses rodopios, notei também Camila
que estava com o olhar mais assassino que já tinha presenciado na
minha vida.
Guilherme aproximou-se mais um pouco e disse no meu
ouvido.
— Você está tão linda, Sol! Você sozinha é capaz de iluminar
todo esse local. Não sei o que tá acontecendo comigo, só sei que,
desde que te vi naquele show com os cabelos verdes, dançando tão
linda e tão solta… — falou, coçando a barba que não existia. Ele
estava notoriamente nervoso.
Talvez não fosse só eu que tinha bebido um cadinho demais.
— Desde que me viu naquele dia...? — Encorajei-o a
continuar.
— Estou caidinho por você! — revelou com a voz rouca e
olhos brilhando de desejo.
Por dois segundos, perdi todo meu ar e também dei adeus ao
meu autocontrole. Fiz a maior merda que poderia ter feito ali,
naquela festa, com tanta gente nos olhando. Segurei seu rosto com
as duas mãos e beijei-o fervorosamente, puxando-o para perto de
mim. Mandei tudo às favas! Não pensei se era ou não uma festa da
empresa com todos os donos e funcionários por ali e que… Puta
merda! Não podia ter relacionamentos entre pessoas do mesmo
setor, muito menos com meu chefe!
C 27

Sabe aquela música da cantora Luka[xcv]? Não?! É aquela…


“Tô nem aí, tô nem aí”... Essa foi tirada do fundo do baú das
músicas, eu sei! Só que era bem assim que estava me sentindo
naquele momento. Talvez, só talvez, as caipirinhas tivessem tudo a
ver com isso, mas me sentia nas nuvens. Completamente forte e
poderosa!
Ah! Guilherme correspondeu lindamente ao beijo, só que durou
apenas alguns segundos, pois a magia quebrou e ele pareceu cair
em si sobre onde estávamos e quem mais estava ali também. Parou
o beijo e deu uma olhadinha em volta. Poucas pessoas
presenciaram nossa cena de cinema, graças aos céus! Dentre elas,
estavam minhas amigas que vieram em nossa direção com olhos
arregalados, um misto de incredulidade e divertimento.
— Nos dê um minutinho com a Sol, Gui, por favor — disse
Suzy, a mais certinha. Entendia que, dessa vez, ela não estava
sendo só a correta, estava com completa razão! Fiz meu melhor
olhar de criança sendo pega em uma grande travessura e sem um
pingo de arrependimento em resposta.
— Ok. Vou pegar uma bebida pra nós, querem algo? —
perguntou Guilherme, desconcertado com os olhares de reprovação
de minhas amigas.
— Não, obrigada. Para a Sol, nada de álcool, ela vai dar um
tempo, tá alegrinha até demais! — respondeu Suzy, semicerrando
os olhos em minha direção como se me desafiasse a contrariá-la.
— Uma coca, então, a mamãe aqui me deu bronca. —
respondi, dando um sorriso amarelo que Guilherme retribuiu.
— Já volto — avisou e saiu, deixando-me no meio da fogueira
para ser queimada pela Santa Inquisição do trio à minha frente.
— Vocês dois estão loucos? E o Edu? Onde cabe nessa
história? E o trabalho? Perdeu a noção do perigo?! — diziam todas
ao mesmo tempo, puxando-me para um cantinho mais reservado a
fim de que ninguém ouvisse o sabão que eu estava levando.
— Vocês só reclamam! Antes era porque não saía, não
aproveitava ou curtia. Contavam até os beijos que não dava e
tentavam me arrumar um macho a qualquer custo. Agora, que estou
aproveitando, me recriminam. Por que vocês não me erram? —
protestei mal-humorada. Às vezes, elas me tiravam do sério.
— O.K... Só que essa não é você. E, mais do que ninguém,
podemos dizer isso na sua cara. Ficar com dois ao mesmo tempo,
além de arriscar o emprego, não faz teu tipo. Nós só queremos o
seu bem — explicou Suzy e as outras concordaram.
— Tudo bem, eu também amo vocês, só que às vezes queria
que não pegassem tanto no meu pé. Tentar agradar todo mundo é
cansativo, sabiam? — desabafei. Sabia que tinha feito merda, mas
agora já estava feito. Quem está na chuva é para se molhar.
— Vocês são dois loucos! A Camila viu e, com certeza, isso se
espalhará como rastilho de pólvora. Sacou? — alertou Nuccia que,
apesar de estar mais descontraída que Suzana, apresentava uma
preocupação velada em sua voz.
— Acho que a Jararaca não vai fazer nada contra a Solzita ou
com Guilherme, já que ela tem dois motivos óbvios para querer
esquecer o que viu — argumentou Nat depois de uma olhada
pensativa para Camila do lado oposto de onde estávamos.
— E quais seriam esses motivos, Nathalie? — questionei
confusa.

— Simples! Mesmo sendo uma mala-sem-alça, ela não vai


querer se queimar como dedo-duro e o outro motivo é orgulho
ferido, apesar de todos estarmos carecas de saber que ela corre
atrás do Guilherme. Ele preferiu ficar com a Solzita, e bem… Ela
não vai dar o braço a torcer que perdeu tão facilmente para a Sol —
falou, sorrindo como se fosse óbvia essa dedução.
— Espero que você esteja certa, Nat — Suzy disse cautelosa.
— O que está feito, está feito! Agora deixa quieto, Guilherme
está voltando e não quero cara de velório. Hoje é dia de balançar o
esqueleto e mandar o bom senso pro alto! — exclamei. Tinha
perdido a noção e não enxergava bem a seriedade da situação,
estava sob efeito do álcool. Geralmente bebia pouco, então era
fraca para, mas ali pesavam na balança também minha euforia e a
falta de comida.
— Guilherme, leva a Sol pra comer alguma coisa e tomar essa
coca, pelo amor de Deus, antes que ela faça mais besteira… —
pediu Suzy e todas as outras concordaram.
— Pode deixar que fico de olho nela. — Ele voltou com minha
coca e um semblante pensativo. Tranquilizou-as, levando-me dali.
Ofereceu-me o braço para me dar equilíbrio. Fomos atrás de
uma mesa vaga próxima da piscina. Olhou para mim e avisou que
iria atrás de algo para beliscarmos a fim de cortar o efeito do álcool.
Fiquei olhando as luzes dançando a minha volta com um sorriso
besta na cara. As meninas estavam afastadas, porém podia sentir a
apreensão das três me vigiando.
Elas deviam estar com medo de eu fazer mais merda por
causa da bebida; o que elas não sabiam é que não foi apenas por
causa do álcool que ataquei o Guilherme (claro que a minha
[xcvi]
amiguinha Cátia ou Catchaça tinha ajudado a dar um
empurrãozinho). Estava feliz. Pela primeira vez tinha deixado de me
sentir uma tonta desajeitada e me sentia uma mulher que
conquistava até mesmo o Miragem. Ora, ora, como evoluíste,
Pokémon! E foi com esse último pensamento que gargalhei sozinha,
atraindo alguns olhares curiosos.
Guilherme chegou, trazendo um pratinho com alguns canapés.
— Come aí, maluquinha! Toma a coca também, vai ajudar
amenizar o efeito da caipirinha — ordenou com um sorriso e
divertido.
— A Coca tem álcool? — indaguei, zombeteira, com ar de
inocência.
— Mocinha, chega de beber por hoje! Daqui a pouco te levarei
para casa — informou-me, pegando um canapé e enfiando na
minha boca.
— Ah não, para! Ainda quero dançar mais um pouco… —
resmunguei com voz enrolada.
Em um dado momento, em que ele estava distraído, levantei e
fui cambaleando para a pista. Como não podia me impedir sem
causar um estranhamento, ficou sentado, olhando-me ir ao bar.
Estava irritada com tudo e todos. Eles estavam estragando
tudo, tratando-me como uma criança! Que merda! Eu tenho trinta e
não quinze anos!

Pedi uma dose dupla de caipirinha[xcvii]. O barman me


olhou com cara de quem estava vendo uma louca desvairada, mas
me fez assim mesmo e entregou dando de ombros. Virei o copo em
dois goles e fui para pista. Estava tocando uma música da
Ludmila[xcviii], já cheguei à pista de dança cantando…
“Chegueiiiiiiiiiiiii”! Obviamente, já estava possuída pela mistura
perigosa do álcool e “funk”.
Cheguei (cheguei)
Cheguei chegando, bagunçando a zorra toda
E que se dane, eu quero mais é que se exploda

Porque ninguém vai estragar meu dia


Avisa lá, pode falar
Hoje eu tô a fim de incomodar
Se não gosta, senta e chora
Mas saí de casa pra causar
Comecei a cantar, rebolando até o chão a plenos pulmões,
causando um burburinho na festa. As pessoas que estavam
conversando, viravam o pescoço para ver quem era a louca que
cantava alto, enquanto esfregava a bunda no ar: “Se não gosta,
senta e chora!”
As meninas, que tinham se distraído o suficiente para só me
verem ali, descontrolada, nesse minuto, ainda tentaram me tirar da
pista, mas não dei a mínima. Estava cagando para os modos de boa
moça que sempre tive naquela merda de empresa. E quer saber?
Eu queria incomodar, já que fizeram questão de me azedar!
Precisava exorcizar minha vontade de chorar pelo que Guilherme
disse. Ele não tinha gostado do beijo? Porra, me levar pra casa, no
meio da festa? Não foi ele que insistiu para que eu viesse?
Dançava possuída e nem vi quando Guilherme se aproximou,
tentando me tirar dali. Já que estava do meu lado, nada melhor que
ficar por ali também, não é? Aproveitei a deixa e o puxei para
dançar comigo. Passei a cantar no seu ouvido, dançando
sensualmente a sua volta:
Porque garotas não mordem
A menos que você peça
Porque garotas não mordem

A menos que você peça


Garotas gostam de atenção, sedução
Menos papo e mais ação[xcix]
— Ouviu, Miragem? Menos papo e mais ação! — dizendo isso
minha mão deu uma boa apertada em seu traseiro. Sua reação
automática foi arregalar os olhos com cara de “o que tá
acontecendo?”. Ri alto e gostoso! Encontrei minhas amigas
boquiabertas, fitando-me como se um chifre tivesse nascido bem no
meio da minha testa.
— Solena, você tem noção do quanto você fica linda assim,
louca? E de como estamos ferrados depois desse espetáculo
público? — sussurrou Guilherme em meu ouvido.
Não conseguia raciocinar direito, então exclamei o que me veio
à cabeça, ainda dançando, ou melhor me esfregando naquele
homão da porra.
— Cala a boca e me beija, Guilherme! — ordenei, sentindo
meu corpo queimar em brasa, tamanho era o desejo por aqueles
lábios maravilhosos.
Nessa hora, algo brilho em seus olhos. Ele jogou tudo às favas
e me segurou com firmeza, junto de seu corpo forte e cheiroso e
beijou-me fervorosamente. Cheguei a sentir que “alguém” ali
embaixo, além de nós dois, tinha ficado muito animadinho naquela
pista. Safadinho, hein?!
C 28

Acordei com uma baita dor de cabeça sem entender como


havia parado ali. Estava em casa, isso era fato, uma vez que meu
gatinho pulguento estava, nesse exato momento, dormindo em cima
de mim tranquilamente. Tateei o criado-mudo ao lado em busca do
celular e… Cadê o filho da mãe? Não queria abrir totalmente os
olhos, pois parecia que se olhasse para a luz ficaria cega a qualquer
minuto. Lembrei-me da noite anterior de forma vaga e difusa, sem
fazer a mínima ideia sobre como cheguei à minha casa ou como
terminou a noitada. Desconfiava era culpa das benditas caipirinhas.
Afinal, quantas havia tomado? Três ou quatro? Sei lá! Devia ter sido
um bom número, o suficiente para causar aquela baita ressaca.
Resolvi parar de tentar adivinhar como acabou a noite e em
que lugar estava meu celular e considerei despertar para tomar um
analgésico. Essa era a minha vontade, levantar para tomar o
bendito remédio, mas minha cabeça e meu estômago pareciam não
concordar muito comigo. Sabe aquela impressão de estar em um
barquinho bem balançante, para lá e para cá? Pois, é! Essa era
minha atual sensação com um agravante… Precisava fazer o que
quer que estivesse boiando à deriva em meu estômago sair urgente.
Não sei como consegui alcançar o banheiro. Chamei o Raul e
não, não era o Seixas[c]! Esse eu curtia. Aquele era outra espécie de
Raul, um bem nojento! Despejei um líquido indescritível e
indecifrável no vaso, então vi algo suspeito… “Oi, celular”. Sim, o
maldito estava dentro do vaso agora mesmo, coberto de eca! Com
certeza seria perda total. “Como ele se meteu dentro do vaso”?
Essa é uma pergunta que você deve estar se fazendo aí, e, bem,
também estava me questionando o mesmo. Mas, estava mais
ocupada, tentando me equilibrar sem mergulhar de cabeça dentro
do vaso sanitário, enquanto terminava de colocar tudo para fora.
Não pude dar total atenção à preocupação de estar desprovida de
celular, ainda bem que era domingo e não precisava me preocupar
com…
Merda! Bati a mão em minha testa e essa foi uma péssima
ideia. Tinha marcado de tomar milk-shake com o Edu! Tinha me
esquecido totalmente desse detalhe. Precisava virar gente antes de
ir, já que nem tinha como desmarcar, pois meu pobre celular
repousava placidamente ao redor de… Hum? Vocês já entenderam
do quê, né?
Em nossa humilde residência, não tínhamos telefone fixo e
minha bela mãe devia ter saído com o namorado para algum lugar,
enquanto eu estava tendo uma bela porcaria de dia com uma
ressaca daquelas! O gato estava aos meus pés, miando com fome.
Aliás, qual era a novidade? Sardinha era um poço sem fundo de
fome infinita, em outra encarnação esse bicho fora uma draga ou
um Tiranossaurus rex!
— Sossega aí, fera! Estou tendo um pequeno probleminha
aqui — respondi quando voltou a miar e se esfregar em mim,
ansioso.
Ele parou, ergueu o focinho e deu um miado despreocupado,
começando a se lamber como quem diz: “O.K., humana, mas não se
esqueça do meu café da manhã ou se arrependerá amargamente”.
Meu gato parecia aquele gato da Sabrina[ci]. Ao contrário do Salém,
Sardinha não falava (obviamente), mas tenho quase certeza de que
dava para ler seus pensamentos felinos através da sua expressão.
Era um gato muito expressivo!).
Depois que o serviço de chamada ao Raul terminou, procurei
uma sacola plástica para resgatar o celular de dentro daquela
nojeira sem sujar as minhas mãos; sem sucesso, obviamente, já
que a sacola tinha microfuros. Mil vezes eca! Teria que amputar a
mão depois daquela nojeira! O bichinho, que era meu velho
companheiro de guerra, morreu bravamente em batalha, seja lá qual
batalha que tivesse travado ontem à noite. Ele era um herói de
batalha, da guerra contra minha estabanação diária. Foram muitas
quedas e tombos, pobrezinho! “Será que deveria fazer um funeral”?
Pensei, contemplando o display preto e molhado no tapete do
banheiro. Não me olhem assim, não estou louca gente! A gente se
apega a uma coisa que usamos tanto no dia a dia. Uma lágrima até
se formou no cantinho do meu olho. Acho que a tristeza real era por
pensar que ficaria mais dura ainda, tendo que gastar em um celular
novo. Mas me diz aí, quem fica sem celular em épocas atuais
quando suas melhores companhias estão dentro dele? Pois é, sei
que agora você está aí com pena de mim, valeu pela empatia!
Depois de ter resolvido meu problema gástrico, jogar um vidro
de álcool nas mãos e quase enterrar meu ex-amiguinho, escovei os
dentes e lavei o rosto bem até tirar de mim todo vestígio de sono e a
máscara de manguaceira. Agora, com minha higiene matinal feita,
tinha quase me tornado um ser humano novamente, um ser humano
com muita dor de cabeça e que precisava de uma aspirina urgente,
mas, ainda assim, uma pessoa e não uma meleca, como me sentia
antes.
Fui para a cozinha com o gato como minha sombra, que vendo
o fim da minha saga no banheiro, recomeçou a “melô do miado”.
Oh, bichinho egoísta…! Olhei para ele e sorri, achando graça, só
mesmo o Sardinha para fazer meu dia ficar menos pior, se é que
essa palavra existia em meu dicionário particular “Solério”. Busquei
as vasilhas que estavam embaixo da mesa, enchi com comida e
água novinha para poder ter um pouco de silêncio e paz. Espiei o
relógio ao lado da geladeira que horas e me assustei por já passar
do meio-dia. Fiz um suco de laranja e peguei algumas bolachas de
água e sal com medo que isso pudesse desencadear a sessão
enjôos novamente. Como precisava de algo no estômago para
tomar um remédio e findar a dor insuportável que se instaurou em
minha cabeça, não havia outra saída. Sabe aqueles batuques de
carnaval fora de época? Pois é, acho que o Araketu estava, nesse
exato momento, fazendo uma apresentação no meu crânio, sem
nem ao menos precisar comprar um abadá para participar!
Engoli o comprimido e fui para o banheiro novamente. Não se
preocupem! Dessa vez, não foi repeteco do Raul, entrei apenas
para um belo banho antes de receber meu amigo para o tal milk-
shake e cinema.
Por que fui combinar isso? Amava sair com o Edu, mas
naquele dia só queria curtir a paz de um dia preguiçoso na cama,
afinal era minha primeira ressaca na vida!
Lavei bem os cabelos, escovei-os e coloquei um creme de
pentear para não se tornar uma juba inabitável. Vesti uma roupa
confortável e leve, um vestidinho há muitos anos esquecidos e que
serviria muito bem para a ocasião. O dia era um daqueles domingos
ensolarados em que pessoas de bom humor já saíam da cama
cantando “Oh, happy day[cii]”. Eu estava mais na vibe do “Quem não
tem colírio, usa óculos escuros” do… Raul Seixas, nossa que
coincidência. Nada mais apropriado!
C 29

O banho e o remédio me ajudaram a sair da ressaca. Sentia-


me quase pronta para enfrentar o Edu, o cinema e o “shopping” que
certamente estaria lotado. De novo. Peguei o livro “Quando menos é
mais”, da autora Crys Magalhães, uma comédia romântica para
passar o tempo. Não tinha como me comunicar com as meninas.
Pensando bem, acho que até não era uma má ideia ficar sem
celular, já que não sabia quão mal fora minha conduta ontem.
Tirei umas horinhas de paz com essa leitura leve e engraçada
a fim de fazer uma faxina mental. Tentei, em vão, lembrar tudo que
acontecera. Recordava de algumas partes, mas não sabia qual a
parcela verdadeira e qual o delírio de uma mente ébria. Impossível
esquecer aquela boca quente e macia do Gui, uma dança
desconcertante na pista, muitas caipirinhas, declaração apaixonada
do Guilherme (essa tinha quase certeza que foi um sonho) e
ameaças da Camila. Talvez lembrasse até um pouco mais do que
ousava dizer e, no fundo, torcia para que algumas daquelas
lembranças fossem produtos da minha imaginação. Só agora meus
botões pensantes perceberam o quanto fui longe como essas
atitudes poderiam me prejudicar no trabalho. Suspirei. Era domingo,
resolvi não me estressar com aquilo.
Preferi ficar longe do meu computador e das redes sociais até
o fim da noite. A verdade era que estava com medo do que poderia
encontrar por lá. Sabe quando você é criança e tem ciência de que
aprontou e que é inevitável levar uma bronca de sua mãe, então fica
com medo de entrar em casa? Assim que eu me sentia. Só que as
coisas eram bem mais complicadas do que na infância. Guilherme
não era só um “homão”, era meu chefe, e aquela era uma festa do
trabalho, no qual estive exposta a todos os olhares críticos, dos
mais altos escalões da empresa, meus superiores, aos mais baixos.
Sabia sobre a política da empresa, estava ciente de ter feito besteira
e a bebida não podia ser uma desculpa para ter agido tão
imprudente.
O tempo passou voando enquanto lia, o livro era
superdivertido. Só emergi daquele mundo paralelo quando ouvi a
campainha. Levantei sem sinal da dor de cabeça, porém a
ansiedade voltou e estava dando um “oi”. Acho que sair de casa, no
fim, não seria tão má ideia.
Abri a porta e dei de cara com um Edu animado. Ele estava
arrumadinho da sua maneira, ou seja, desordenado! Vestia uma
camisa preta com estampa de uma banda heavy metal,
acompanhada de calça jeans surrada, o cabelo comprido meio
bagunçado. Sua empolgação era destoante da minha; enquanto ele
quicava de alegria, eu me encolhia de remorso. Em uma das mãos,
uma caixa de chocolates que foi logo estendida para mim. Ele me
olhou de cima a baixo, avaliando sei lá o quê, e exibiu um sorriso
divertido nos lábios, daquele tipo de quem “entende das coisas”.
— E aí, Sol! Parece que a noite foi divertida ontem, só que o
efeito “Cinderela[ciii]” meio que já acabou né, abobrinha? — Brincou,
à sua maneira maio boba, sem esconder o sorriso de deboche
quando me deu dois beijos no rosto e um abraço. Minha cara devia
estar péssima.
— Rá, Rá, Rá! Muito engraçado, Eduardo! Entra logo aí!
Obrigada pelos chocolates, algo me diz que vou precisar deles mais
do que nunca em algum momento desse dia, ou de amanhã... —
falei, desanimada.
— Foi tão ruim assim, Sol? — inquiriu, preocupado.
— Não foi ruim. Foi... sei lá… Não vou saber te explicar! Entra
que não quero ficar na porta discutindo sobre as mazelas da minha
vida para todos os vizinhos terem novo assunto de fofoca! — falei,
tentando fugir pela tangente. O remorso em peito retumbava ao som
de corrida de elefantes.
— O.K., mas nem vem com desculpas! Você vai dar uma volta
comigo nem que tenha que te arrastar pelo nariz!
— Não vou cancelar. Ufa, meu nariz está a salvo, então.
Vamos combinar de não falar da festa, O.K.? Ainda estou em modo
de processamento dos dados que estou recebendo lentamente pós-
ressaca.
— Solena, você tá me assustando! Por acaso fez strip-tease
na mesa do chefe? — Fez piadinha, seguida de uma gargalhada.
Mal sabia ele que foi quase nessa vibe.
Olhei com cara feia e acabei rindo junto. A meu ver, não era
tão ruim assim, pelo menos esperava que não tivesse chegado a
tanto. No entanto, como não tinha certeza, nem me meti a
desmentir. Por fim, ele levantou as mãos em rendição e concordou
em não tocar mais no assunto delicado, completando com um “por
enquanto” enfatizado por um olhar zombeteiro. Por dentro, agradeci
a Deus por ele ser tão compreensivo, tão amigo. E murchei por não
poder falar com ele sobre Guilherme.
— Ô, Sol, tentei te ligar antes de vir, mas só dava caixa postal.
Desligou o celular?
— Ah...! Meu celular faleceu de causas naturais… — disse
com voz tristonha.
— E, porque tenho a impressão que essas “causas naturais”
não foram nada de naturais de fato? — Ergueu uma sobrancelha e,
em seguida, abriu outra vez aquele sorriso debochado no rosto.
Tudo para ele era motivo de brincadeira.
— Vamos dizer que meu celular deu uma de aventureiro e
confundiu meu vaso sanitário com o oceano em plena aula de
mergulho — respondi, tentando me esconder atrás das mãos e
mordendo os lábios para não rir.
— Putz, Sol! — Desatou a rir que nem um louco, deixando-me
com cara de tacho.
Dei uns cutucões na costela dele para que parasse com as
zoações. Estava mais leve com sua presença. O motivo de não
querer falar da festa é que teria de incluir no pacote o beijo (ou os
beijos) com o Guilherme e a dança vergonhosa no meio de todo
mundo. Não queria, nem ia, colocar o Gui no meio da minha
amizade com Eduardo. Tinha medo de magoá-lo, pois as reais
intenções dele sempre me pareceram um pouco suspeitas, nunca
tinha certeza se as piadinhas sobre o “namoro” eram somente para
descontrair e me incomodar, ou se ele realmente nutria algum
sentimento por mim. Na real? Nem eu sabia o que sentia por ele, e
menos ainda por Guilherme, no entanto a última coisa que queria
perder na vida era essa amizade com o Edu, ela valia muito para
mim.
— Bora, Sol, o tempo muge, mulher! — disse, gracejando,
tirando-me dos meus pensamentos.
— É urge, cabeção! Deixa pegar a minha bolsa e vamos. —
Corrigi e ri da piada boba bem típica dele.
— Eu sei, abobrinha. Ah! Sol... Vim com a moto do meu primo
— falou, coçando a cabeça e olhando para o meu vestido.
— Eu me recuso a trocar de roupas, então vamos “expor
[civ]
minha figura na Medina”! O que é um peido pra quem já está
cagada? — exclamei, levantando os braços e simulando uma dança
do ventre.

— Credo, Sol! Que linguajar! “Inshalá, muito ouro[cv]”—


repreendeu-me de brincadeira, dando uma sonora gargalhada.
— Não sabia que você era noveleiro! — gargalhei, fechei a
porta de casa e fomos pra calçada onde estava estacionada a moto.
— Você não conhece as minhas mil faces, baby! — disse,
colocando o capacete.
— E posso saber por que sempre pega emprestado a moto, ao
em vez de comprar uma?
— Baby sou um pobre universitário, nem trabalho tenho, só um
estágio furado que mal dá pra pagar a gasolina da moto que pego
emprestado. — explicou, deu de ombros e sorriu.
Esperei que ele subisse na moto e, logo a seguir, alcei a perna
com cuidado para não deixar uma banda da minha pequena grande
bunda de fora, para o deleite dos tarados de plantão que estivessem
pelo caminho. Segurei-me bem firme nele e fomos em direção ao
shopping. Ele manteve uma velocidade agradável e pude sentir a
brisa do dia quente tocar minha pele, os cabelos voavam livremente
por baixo do capacete e nem me importei que eles virariam um
ninho de mafagafos. O importante é que, naquele momento, nada,
nem ninguém, poderia me perturbar. Existíamos apenas nós dois na
estrada lotada. Minha insegurança e medo do que poderia ter
acontecido no dia anterior haviam ficado alguns quilômetros para
trás, junto com a poeira do asfalto. Era mesquinho, eu sei, mas
sentia alegria por estar novamente na presença do Edu.

Chegamos ao shopping antes do que imaginava, uma vez que


o trânsito em dia de domingo é calmo. Desci da moto e ele me
ajudou a tirar o capacete.
— E aí, hoje você nem deu crise, hein? — inquiriu divertido.
— Ah! Até quando você vai me lembrar do meu primeiro fiasco
em cima dessa moto? Nunca tinha subido em uma, aquele foi meu
primeiro dia, poxa! — repliquei, fazendo um tom magoado.
— Até que você é guerreira, namorada! Sua segunda vez na
belezinha aqui e já veio com salto e vestido, sem dar nenhum
gritinho — gargalhou.
Belisquei-o para ele parar de fazer troça com a minha cara.
Puxei-o pela mão para entrarmos logo no shopping. No caminho até
a praça de alimentação, notei que nossas mãos continuavam
entrelaçadas, e era tão natural o encaixe que em nenhum momento
me incomodou. Sua mão era quente e firme, ao mesmo tempo, o
toque era gentil e reconfortante. A imagem do beijo do Guilherme
passou em meus pensamentos, o beijo, a dança... Soltei a mão do
Edu disfarçadamente.
A parca refeição matinal cobrava o seu preço, e meu estômago
mugia que nem uma vaca faminta. Pedi um milk-shake de
ovomaltine do maior tamanho disponível. Edu me olhou com um
brilho orgulhoso de quem aprova as boas escolhas da vida e pediu
um igualzinho para ele. Sentamos lado a lado na praça, tomando as
bebidas em um silêncio amistoso, daqueles de quem sabe apreciar
uma coisa deliciosa com respeito quase solene. Estávamos tão
próximos que quase podia sentir seu calor em ondas vindas através
da sua camisa, tocando minha alma. Nada poderia ser mais perfeito
que um domingo pacato, desfrutando a simplicidade compartilhada
de uma amizade sincera.
— E aí, está gostoso? — indagou o rapaz, quebrando nosso
silêncio.
— Está uma delícia — E eu não falava apenas do milk-shake,
mas também da companhia. — Aiiiiiiiii! — reclamei repentinamente,
colocando a mão sobre a testa.
— O que foi, mulher, por acaso achou um prego de brinde aí
no meio? — questionou preocupado.
— Saporra tá gelada! Congelou meu cérebro! — respondi com
cara de sofrimento.
— Isso é feito de sorvete, Sol, queria que estivesse quente? —
Desandou a gargalhar da minha cara.
— Muito engraçadinho você, Edu! Não tô brincando… Isso dói,
poxa! — Simulei um biquinho, mas ri junto.
— Pensa pelo lado positivo, agora sua inteligência foi
imortalizada através do frio, daqui a muitas décadas vão poder abrir
sua cabeça, descongelar seus neurônios e estudá-los!

Dei um tapinha em seu ombro e ri. Estava me divertindo com


ele. Que bom que não tinha ficado mais um dia em casa remoendo
meus pepinos.
C 30

O domingo com a companhia de Edu transcorreu de maneira


agradável, regado a muita conversa, gargalhadas e uma sessão de
cinema com um filme de terror e muita pipoca. Cada vez que levava
um susto na sessão, ele ria da minha cara. Houve momentos que,
antevendo meu pavor, ele segurou minhas mãos carinhosamente, o
que fez com que eu me sentisse segura e esquecesse ainda mais
dos recentes problemas. Isso não tinha preço.
Fazia pouco tempo que ele tinha me deixado em frente à
minha casa e foi embora. Aproveitei a ida ao shopping e comprei um
novo celular, pagando em duzentas vezes. Apesar de não ter
sentido falta do aparelho durante os momentos com o Edu, sabia
que logo a abstinência bateria fundo em minha alma. Minha mãe
estava na sala com Santiago, vendo algum filme ou série. Os dois
olharam quando fechei a porta atrás de mim. Sorriram e, em
uníssono, deram um “olá”. Parecia cena de filme romântico, os dois
em plena sintonia.
— Oi, filhinha, tentei te ligar! Onde você se meteu o dia todo?
— minha mãe questionou com cara zombeteira.
— Fui dar uma volta no shopping com o Edu, mãe. Mas, que
eu saiba, quem anda sumida é a senhora, dona Sônia! — Ergui as
sobrancelhas em desafio. — E outra, ontem tive um pequeno
probleminha com o celular, por isso a senhora não conseguiu falar
comigo. Sem preocupação, já resolvi! — respondi, sorrindo e
apontando para a sacola que carregava junto à minha bolsa.
— Hum!? Ontem foi a tal festa de trabalho? Como foi? Senta
aqui e nos conte tudo. — Indicou o lado do sofá para que me
sentasse com eles.
— Ah não, mãe! Estou morta de cansada. E, e… Não quero
atrapalhar o programa a dois de vocês, quem sabe outra hora,
O.K.? — Fugi pela tangente.
Nem morta que eu ia contar do meu primeiro vexame com
bebida. Não até pelo menos saber o que tinha acontecido e todos os
estragos que havia causado pelo caminho.
— Tudo bem, então, mas de amanhã você não escapa,
mocinha! Boa noite e bom descanso — falou, jogando um beijo.
— Beijos! Comportem-se, hein?! — Despedi-me. Santiago
acenou, ruborizando, ele parecia bem caidinho pela minha mãe.
Cheguei ao meu quarto e joguei os sapatos para o lado, tirei a
roupa e troquei pelo pijama dos Minions. Coloquei pantufas e fui
para a escrivaninha para dar uma olhada nas redes sociais. Ver as
últimas novidades, afinal desde ontem não tinha notícias do trio e
nem do Miragem. Liguei o computador e, enquanto esperava iniciar,
coloquei o celular novo para carregar na tomada.
O computador como sempre demorou a dar sinal de vida,
então sentei relaxada na cadeira giratória e fiquei girando
descontraída até que iniciasse por completo. Cliquei no navegador
na área de trabalho, prendi meus cabelos em um coque com uma
caneta e olhei para a tela, concentrada, enquanto um bilhão de
notificações pulavam na minha cara. Era ficar apenas um dia sem
olhar rede social e parecia que o mundo inteiro ficava louco. Até
tataravó morta há séculos ressuscitava para me marcar em
postagens ou mandar solicitação de amizade.
Claro que não havia só notificações, tinha também dezenas de
mensagens no privado, isso me deixava louca! Atacava minha
ansiedade essa “atenção” toda. A maioria das mensagens eram
aquelas de correntes chatas e GIFs com imagens de bom dia, boa
tarde e boa noite. Essas, eu ignorava veementemente, detesto! Nas
outras janelinhas, vi mensagem das meninas e eram muitas. Meu
coração começou a galopar, deixei-as por último já que previa que
talvez fosse uma bomba. Fui em frente e achei também três
mensagens do Guilherme. Isso era novidade! Ele nunca tinha falado
comigo por aqui! Resolvi começar pela mensagem do Gui. Abri com
misto de ansiedade e apreensão.
Guilherme: Oi, Sol, está por aí?
Alguns minutos depois…
Guilherme: Tentei te ligar o dia todo, queria saber se está
bem.
Guilherme: Sol, estou preocupado de verdade, quando ler
essa mensagem, me liga!
Olhei a hora, já passava das 22h, com certeza já estaria
desconectado. Deixei uma resposta assim mesmo para não o deixar
mais preocupado.
Sol: Oi, Gui, passei o domingo off. Meu celular deu um
probleminha ontem, mas estou bem, amanhã nos falamos no
trabalho.
Completei a mensagem mandando o emoji de coração.
Não tive muita paciência para ver as muitas notificações, então
voltei ao bate-papo, para a janela da conversa do quarteto, com a
finalidade de saber o que essas loucas queriam de mim. Depois do
pequeno showzinho que dei na festa, elas julgaram que eu passaria
o dia todo na cama. Suspirei e li a conversa.
Suzy: Sol, cadê você? Por que não responde no celular?
Nu: Calma, gente! A essa hora, ou ainda está dormindo ou
está vomitando os bofes! O celular deve estar desligado.
Nat: Típico da Solena de sumir sem nos contar as melhores
partes, que vaca!
Suzy: Vocês estão aí, brincando, mas estou bem preocupada
com ela. Não faz o feitio da Sol sumir assim, ainda mais depois do
que ela aprontou ontem.

Nu: Calma, Suzy, essa louca deve estar dormindo o dia todo!
Não foi feita pra manguaça.
----Três horas depois-----
Suzy: Gente, ainda nenhum sinal da Solena? Tô preocupada!
Tentei ligar um milhão de vezes, só dá caixa postal!
Nat: Cara, pior que até eu estou preocupada.
Nu: A hora que ela ver o que está rolando na “internet”, vai
surtar!
Suzy: Puta merda! E quem não surtaria?
Nat: Será que foi a vagaranha da Camila?
Nu: A única pessoa que tinha algo a lucrar espalhando esse
vídeo era essa surucucu loira oxigenada…
Nat: Espero que amanhã ela vá com uma armadura anti-
porrada. Porque ninguém me segura, vou dar naquela mulher até
ela trocar de pele!
Suzy: Não faz merda! Em vez de uma demissão, serão duas.
Nat: Mas vocês acham realmente que demitiriam a Sol por
causa de algo assim?

Nu: Não faço a mínima ideia. Vamos ter de esperar até


amanhã.
Suzy: Cadê você, Solena?!
Nat: Aparece!
Nu: Liga esse celular, sua vaca!
Depois de acabar de ler toda a conversa, se formou um nó em
minha garganta e uma vontade louca de sair correndo. Fosse o que
fosse, do que estavam falando, a frase da Camila na festa não saía
de minha cabeça. “Você vai se arrepender”. Sabia que estava
ferrada e o pior é que fui eu quem cavou a própria cova. O que o
amanhã reservava para mim era uma surpresa desagradável da
qual sabia que seria inesquecível, da pior maneira possível.
C 31

Não tive coragem de respondê-las no Messenger. Estava com


medo de ver que coisa era essa da qual falavam. Você deve estar
me achando uma covarde e não está de todo errado em concluir
isso, mas eu me conheço e se visse o que as apavorava, com
certeza nem trabalharia amanhã. Não poderia me dar a esse luxo,
pois precisava do emprego. Éramos só eu e minha mãe para
sustentar nossa casa. Ganhava relativamente bem, apesar do
trabalho ser chato. Verifiquei as horas no celular novo, agora
completamente carregado e configurado. Consegui até mesmo
recuperar meu número, pois comprei na loja da operadora e lá
arrumaram tudo isso pra mim sem que precisasse esquentar minha
cabeça mais do que já estava.
Passava das 23h. Não queria falar com ninguém. O aparelho
apitou como se tivesse sofrendo um ataque, deveriam ser as
milhares de mensagens das meninas. Resolvi que ficaria longe das
redes sociais até o dia seguinte, deixei apenas os aplicativos de
leitura. Sentia um aperto em meu peito e uma sensação de que
minha vida tinha virado do avesso em poucos dias. A impressão era
de que estava em uma locomotiva descarrilada, a todo vapor, e via
tudo em suspenso, sem controle, não conseguia fazer nada para
detê-la ou pular antes da colisão. Tentei ouvir musicas para relaxar,
contudo nada fazia acalmar a ansiedade que me consumia
internamente.
Peguei meu celular e fucei no aplicativo de leitura Wattpad
para buscar alguma leitura que me transportasse para outra época,
outra vida e outro momento que não o turbilhão vivenciado agora.
Eram tantos os sentimentos controversos dentro de mim: medo,
insegurança e... paixão? Será que o que estava sentindo por
Guilherme poderia ser chamado de paixão? Tudo estava tão
misturado e confuso! Sempre soube que era a rainha das
trapalhadas e confusões, no entanto quem diria que minha vida,
antes tão monótona, em tão pouco tempo fosse se transformar tanto
a ponto de estar preocupada em perder o conforto da minha rotina
enfadonha no trabalho?
Achei um livro de uma escritora chamada Amanda Bonatti,
cuja capa me chamou atenção pela beleza simples, parecia se tratar
de um romance de época, o que comprovei lendo a sinopse. O livro
chamava-se “O Bosque de Faias” e contava a história de uma moça
chamada Joana Our, na França do século XIX, que lutava pelo
direito de não ser forçada a se relacionar por conveniências ou
acordos pela sua família. A personagem tinha uma personalidade
enérgica e decidida. Senti uma simpatia imediata por ela, pois me
sentia empurrada pelas minhas amigas para ter um relacionamento
sério. Fora esse o motivo para o início do “namoro de mentira” com
o Edu. As loucas queriam encontrar um homem pela “internet” para
mim, ou seja, era quase um arranjo à moda do século XIX, destino
do qual fui salva bravamente pelo príncipe roqueiro que, ao invés de
cavalo branco, vinha montado em uma motoca de duas rodas
turbinadas.
A leitura era leve e deliciosa e me fez esquecer os problemas.
Pensei em como pareceria gratificante ter esse poder de transportar
pessoas através das palavras para outras épocas e outras vidas há
muito esquecidas. Devia ser maravilhoso fazer leitores que nem
conhecemos pessoalmente, sorrirem e se emocionarem com nossas
histórias, mesmo que, na prática, esse povo todo esteja mergulhado
até o pescoço em problemas. Eu invejava essa capacidade e queria
poder um dia ser assim, ter esse dom. Deixei-me ser conduzida por
meus sonhos, contudo minha insegurança, que já era de casa, me
disse baixinho ao pé do ouvido: “Você não seria capaz! E caso
conseguisse escrever suas baboseiras, quem as leria? Recolha-se à
sua insignificância, criatura”. Balancei minha cabeça, tentando
dissipar essa negatividade. O sono já estava vindo, mas antes de
largar o capítulo do livro, resolvi escrever uma mensagem para a
autora.
“Olá, Amanda, tudo bem? Estou mandando essa mensagem
para dizer o quanto estou amando sua história, parabéns! Estou
ansiosa para saber o que acontece com a Joana e com o Alexandre!
Ando torcendo para que tenham um final feliz juntos!”
Acabei adormecendo mais leve, sem aquele peso no peito que
antes me sufocava com mãos invisíveis. A literatura sempre teve
esse poder em minha vida de me resgatar dos confins dos meus
piores pensamentos e me aconchegar em braços quentes e
seguros, embalando-me placidamente para que, enfim, caísse em
sonhos reconfortantes e tranquilos.
Acordei cedo, antes do despertador começar com seu grito
estridente. Hoje seria o dia de enfrentar minhas ações impensadas.
Vocês podem estar pensando que estou fazendo tempestade em
copo d’água, afinal nem sabia ao certo o que havia de errado. Nem
ao menos sabia se a situação tinha chegado até os meus superiores
ou, se realmente havia chegado até lá, se seria um real problema.
Além disso, também estava receosa sobre como seria meu novo
relacionamento com Guilherme. Será que ele me achou uma louca
desvairada e bêbada? Louca, já tinha fama e levava numa boa, já
que não adiantava correr disso, uma vez que reforçava diariamente
a reputação adquirida.
Eu trabalhava há alguns anos naquela empresa. Começara ali
com vinte e poucos, recém-formada no curso de administração.
Nunca procurei um novo emprego, pois, apesar dos pesares, o
trabalho não pagava mal e tinha o bônus de ter a companhia das
minhas duas, agora três, melhores amigas. O meu trio louco. O que
seria de mim sem aquelas três ao me lado? Sabe aquela música:
“Eu não existo longe de você… Piu-Piu sem Frajola…”[cvi] e tal? Era
exatamente assim que me sentia só pela mera possibilidade de nos
separarem. É claro que não significaria o fim do mundo, já que
poderíamos nos encontrar em outros lugares, mas seria ruim pacas,
pois não seria todos os dias e poderia se tornar escasso devido aos
horários de expediente.
Enfrentei meu medo tomando um bom banho. Vesti uma roupa
confortável e fui até a cozinha tomar o santo café de cada dia para
encarar a batalha que seria travada logo mais. Minha mãe já tinha
saído para o trabalho; fiquei ali, na cozinha, na companhia das
vozes que habitavam meus pensamentos nervosos. Estranhei a
ausência de Sardinha em meu quarto, entretanto, como dona Sônia
e Santiago estavam tratando o bichano como rei da casa, era
provável que tivesse me traído sem remorsos, alimentado por eles.
Era melhor assim. Meu dia seria cheio de estresse e o pobrezinho
sentia quando eu estava prestes a explodir como uma bomba
atômica. Abri o armário da cozinha e puxei os chocolates que o Edu
havia me dado. Coloquei-os na bolsa, pois assim poderiam ser
acionados em caso de emergência.

Corri para o ponto de ônibus. Estava com a mente acelerada,


mas meu corpo não acompanhava o ritmo alucinante da minha
imaginação, então me sentia pesada e exausta. Não precisava
acrescentar à minha lista de broncas o fato de chegar atrasada,
então peguei o primeiro ônibus que passou, mesmo que estivesse
cheio como uma lata de sardinha. Ri com essa frase. Era bom,
mesmo no limite da minha paranóia, manter a essência que me
fazia sorrir com as minhas pequenas besteiras.
Depois de um longo trajeto com o ônibus em um balanço
intermitente, onde enchia a cada nova parada, o que, para piorar
meu estado psicológico mais do que em frangalhos, levou-me a uma
sensação claustrofóbica. Odeio ambiente cheio e apertado. Cheguei
ao ponto de ônibus e me benzi, descendo os degraus do coletivo,
recebendo em meu rosto o dia ensolarado do lado de fora. Respirei
fundo o ar que parecia carregado por uma notória poluição, mas,
ainda assim, apresentava a atmosfera bem mais agradável que o
aroma acre e abafado do ônibus, onde tinha ficado confinada
naquela nauseante situação.
Caminhei até o prédio onde trabalhava arrastando os pés.
Sabe aquela sensação do condenado indo em direção ao cadafalso
para conhecer o seu algoz? Era exatamente como me sentia
naquele momento. Engoli em seco enquanto as portas automáticas
se abriam, apertei o botão do elevador que me levaria para cima,
porém, ao contrário de parecer estar mais próxima do céu, parecia
estar ali para fazer uma visita ao purgatório.
C 32

No elevador, dei uma olhadinha à minha volta e as pessoas me


pareceram desconhecidas, provavelmente funcionários de outros
andares com outras funções. O lugar foi esvaziando de forma
gradativa antes de chegar ao meu derradeiro destino. No painel, os
números vermelhos iam avisando os andares. Eu rezava baixinho
para que a porta do elevador não abrisse, mas nenhuma prece me
ajudaria nesse momento. Só aconteceria algum imprevisto caso
estivesse com pressa para entrar. A porta metálica abriu, e caminhei
direto sem olhar para os lados pelo corredor que levava ao meu
cubículo. Percorri o caminho com passos desanimados. Claro que
ouvi uns “psiuuuuus”, indicando que as loucas me chamavam, mas
nem me atrevi a responder ou olhá-las, queria adiar o inevitável o
quanto pudesse.
Sentei na cadeira dentro da minha cabine e liguei minha
máquina. Em regra, quando chegava, era recepcionada por uma
alegre pilha de papéis burocráticos que ficavam à minha espera. Um
arrepio de mau agouro percorreu meu corpo quando vi que o lado
onde eles ficavam estava vazio e reluzia com aspecto limpo e
lustroso. Parecia uma sirene apitando acusadoramente. Abri meus
e-mails, e, entre outros, um com endereço do RH se destacou. “Pqp,
agora a vaca foi pro brejo”!
Antes de sair de casa instalei os aplicativos de redes sociais
no novo celular, mas o mantive em modo avião. Apenas agora me
dei ao trabalho de tirá-lo desse modo e ativar o wifi da empresa. O
celular começou a vibrar em minha bolsa e pareceu-me como um
enxame de abelhas prestes a me atacar. Abri e dei uma espiada, vi
que eram mensagens das três malucas piscando em frenesi. Não
abri. Sabia que estava ferrada e não queria falar com ninguém. Se
pudesse desaparecia da face da Terra, porém a vida não é tão
simples, um dia precisamos enfrentar os problemas, ainda mais
aqueles que nós mesmos causamos. O celular vibrou mais uma vez,
só que agora uma mensagem de um número desconhecido. Como
nunca recebia ligação ou mensagens de pessoas desconhecidas, a
curiosidade foi maior que a prudência e abri. Nessa mensagem,
havia um link do Youtube. O nome do link era como uma acusação:
“Como pagar mico na festa da empresa”. Fiquei olhando horrorizada
para aquela mensagem como se fosse me dar um bote a qualquer
momento. Abrir ou não abrir o vídeo? Eis a questão! Pensando bem,
isso soava mais filosófico e funesto do que o famoso “ser ou não
ser” de Hamlet[cvii]. No meu caso, soava como um chamado da forca.
Fechei os olhos e passei as mãos nervosamente pelo rosto, a
enxaqueca já batia a porta outra vez e, pelo andar da carruagem,
vinha com uma bagagem imensa. Imaginei uma pessoinha chata,
carregando uma mala e cantando: “Eu voltei, e agora é pra ficar!
Porque aqui, aqui é meu lugar!”... Dei um sorriso desanimado com
minha tentativa vã de fazer graça das minhas desgraças. Falhei
miseravelmente em clicar no vídeo, tampouco no e-mail do RH[cviii].
Só conseguia ficar olhando como uma pateta para frente, perdida
em milhões de pensamentos e nenhum deles eram bons.
Decidi que procrastinar seria meu lema, então fui ao banheiro
retocar o batom, que nem usava, depois disso fui à copa tomar um
café para ver se a coragem vinha de alguma maneira. Chegando lá,
enchi uma xícara até a borda para bebericar sem pressa e tirar mais
alguns minutos dessa paradinha estratégica antes de arriscar
enfrentar o dragão. Estava lá, sossegada (ou fingindo, pelo menos),
com a xícara nas mãos, tomando café concentrada e perdida em
meus pensamentos, quando ouvi passos. Não me preocupei em
olhar para trás, aliás, o que queria mesmo era que o café tivesse
alguma substância capaz de me tornar imperceptível. Obviamente,
com meu pequeno tamanho, não passei despercebida. Ouvi uma
voz conhecida e dei de cara com meu Miragem. “Corta essa
intimidade de meu, Solena, sua iludida”! Era aquela vozinha fofa da
baixa autoestima mais uma vez cortando meu barato com a faca do
Jack, o estripador!
— Olá, Sol, tudo bem? — Estava sério, com um semblante
pesaroso.
— Tudo e você? Como foi o domingo? — Tentei esquivar-me
do assunto onde, com certeza, ele queria chegar: “A Festa”.
— Foi mais ou menos, e o seu? — perguntou educado sem
ânimo na voz.
— Foi bom, hã? Saí à tarde toda e só voltei à noitinha —
respondi, sentindo meu rosto esquentar, afinal omiti que não havia
saído sozinha.
— Hum? Que bom, Solena. Preciso falar com você na minha
sala. Depois que você terminar de tomar seu café, espero você lá,
O.K.? — disse com semblante indecifrável ligado no modo “chefe”.
— Tudo bem. Termino aqui e passo lá daqui a pouco —
respondi, sentindo meu coração acelerar. O café entalou na minha
garganta.
— Até logo, então — despediu-se, dando-me as costas e indo
em direção ao corredor que levava à sua sala.
Engoli em seco. O café, ao invés de me dar energia,
começara a apresentar sinais de que havia um revertério em minhas
tripas. Não sei por quê, mas tinha impressão que aquela visita ao
seu escritório não seria para me dar elogios ou tapinhas de
consolação nas costas. A verdade é que estava morrendo de medo.
Será que tinha a ver com o tal e-mail do RH? Ou tinha a ver com o
tal vídeo, ou com (os) beijos? Será que, na verdade, era uma
mistura de tudo isso? Eram tantos serás, que pensei em cantar a
[cix]
música do Legião Urbana no meio da copa, igual a uma louca,
dado o nervoso que me tomava por inteiro. Sim, quando ficava
nervosa, meu cérebro tinha essa estranha mania de buscar
amenizar a tensão com piadinhas sem graças. Nunca funcionava e
nem sei por que ele continuava insistindo nessa tática falida!
Benzi-me, lavei a xícara na pia (nunca demorei tanto para
realizar essa tarefa) e fui em direção à toca do lobo. Meu coração
fazia um batuque louco no peito, poderia jurar que teria um treco a
qualquer momento! O estômago assemelhava-se a um ser vivo,
contorcendo-se em agonia, como se estivesse banhado em soda
cáustica, em vez de café. A cabeça latejava tanto que poderia pular
para fora do meu pescoço e me denunciar por maus tratos. Sentia
como se andasse na lua, vendo tudo em volta em uma espécie de
transe, desprovida de qualquer autoconfiança ou pensamento
positivo. A situação era tão surreal que lembrava um pesadelo do
qual, dessa vez, sabia que não acordaria.
Vocês podem achar exagero tudo isso, mas acreditem em
mim, quem tem transtorno de ansiedade passa por isso
constantemente em situações de estresse e nervosismo. O trabalho
era chato e monótono, mas era meu! O medo de ficar sem ele era
quase insuportável. Perderia a rotina e sentiria como se estivesse à
deriva na vida, sem saber que direção tomar. Estar desorientada e
tendo que lidar com uma bomba relógio chamada ansiedade era
uma sensação nada divertida. Meus olhos se enchiam de lágrimas
só de ponderar essa possibilidade. Não lidava bem com mudanças,
tinha problemas sérios em sair da minha zona de conforto e tudo
isso estava me destruindo psicologicamente nesses poucos minutos
de pensamentos. Quando cheguei à porta da sala de Guilherme,
murmurei para mim mesma…
— Seja o que Deus quiser. Força na peruca, Solena!
Bati à porta, e não demorou até que uma voz grave me desse
permissão para entrar. Abri a porta devagar e o vi. Já fora à sala do
Guilherme outras vezes sem nunca reparar em muitos detalhes; no
entanto, dessa vez, os meus olhos corriam pelo ambiente, gravando
cada detalhe como se fosse uma prévia despedida. A sala era de
tamanho médio e o tom escuro prevalecia. Era ladeada por paredes
em um tom de azul fechado, onde se viam estantes repletas de
volumes de livros grossos de administração e contabilidade. Na
parede oposta à porta, ficavam os arquivos com os dados dos
maiores clientes, uma porta ao lado desses arquivos era o banheiro
privado de Guilherme; defronte à porta, ficava a escrivaninha de
carvalho escuro, atrás da qual Guilherme estava sentado, em sua
cadeira de couro preta e imponente, aguardando-me com semblante
frio. Olhou-me sem vestígio do sorriso caloroso e vivaz que sempre
tinha para me oferecer.
— Fecha a porta e sente-se, Solena. Por favor. — Indicou-me
uma cadeira estofada de couro existente em frente à sua mesa.
“Ferrou mesmo! Ele me chamou de Solena outra vez, sem
usar meu apelido”, pensei. Fechei a porta atrás de mim e andei até
a cadeira, afundando o meu peso nela. Não sabia se estava
preparada para o que quer que tivesse de me dizer. Fiquei ali,
emudecida, e esperei, segurando-me para não sair correndo,
chorando como uma criancinha desamparada e amedrontada.
C 33

A vida é engraçada, a gente reclama o tempo todo de uma


situação, mas quando tudo está prestes a mudar, sentimos medo. A
novidade assusta mais do que o tédio, estamos acostumados a uma
zona de conforto e quando isso está prestes a nos ser arrancado,
sofremos um baque. É como se estivéssemos na cama, no
quentinho, e alguém puxasse o cobertor.
Olhei para Guilherme, aguardando o veredicto final e o
desfecho dessa novela dramática. Ele pigarreou para dar início à
conversa, parecia bem nervoso e visivelmente desconfortável com a
situação. Pudera! Se eu estivesse deduzindo bem o motivo de estar
aqui, ele estaria diretamente ligado ao meu “problema”. Claro que
não demitiriam o chefe! Sabem aquela velha máxima, “a corda
sempre arrebenta do lado mais fraco”? Pois é! Estamos prestes a
ver isso na prática.
— Então, Sol… Acho que você desconfia por quê te chamei,
né? — Finalmente, deu início à conversa com uma voz desanimada.
— Hum? Acho que não é para me promover, né? — Dei um
sorriso sem graça, arriscando uma piadinha, sem obter sucesso. Ele
continuou sério.
Guilherme passou as mãos nervosamente pelo rosto e cabelo.
Sua boca estava rígida, a máscara de homem responsável. Quase
não dava para vislumbrar o mesmo homem que me beijou com tanta
paixão no sábado, nem o mesmo cara legal que tinha feito questão
de me levar para casa, quando tive minha crise de ansiedade.
Naquele momento, ele era apenas o chefe, o “big boss”, e estava
pronto para dizer à frase que deu fama ao Roberto Justus no
programa “O Aprendiz[cx]”: Você está demitida!
— Como queria que tudo fosse mais fácil, Sol. Você merece
tantas coisas boas em sua vida, é uma pessoa tão maravilhosa. Eu
nunca quis isso, sempre me mantive afastado de você exatamente
pra não chegarmos até aqui… — Sua voz era doce e triste. A
máscara de chefe caiu por um instante, então pude perceber como
estava sendo difícil para ele também, parecia arrasado por ser o
portador das más notícias.
— Guilherme, sei que fiz merda. Não precisa me enrolar. Os
chefões mandaram você me demitir, é isso? — Não segurei minha
língua, pois o “suspense” da situação era mais nocivo do que ser
direto.
— Veja bem, Sol… Eu não tenho escolha. Fui colocado contra
a parede. Tentei argumentar, mas um vídeo foi parar na internet e se
espalhou para todos os funcionários. Sem ele, talvez não precisasse
disso tudo. Agora... Todos viram inclusive o Sr. Álvaro, e ele queria a
demissão de quem publicou o vídeo também, afinal a festa era
privada, a pessoa violou uma das regras da empresa, assim como
nós. Só que... não temos provas de quem é o responsável —
explicou pesarosamente.
— Bem, eu não vi o vídeo, mas uma ova que não sei quem fez
isso! — exaltei-me, afinal não tenho sangue de barata. Fiz uma
promessa mental: antes de sair daquele lugar, faria um patê de
cobra! Foda-se o Ibama, com suas leis de proteção aos animais.
Aquela jararaca merecia ser extinta da face da terra! Camila me
pagaria caro por tudo que estava causando em minha vida por pura
maldade e despeito!
— Sol, não temos como provar! Eu sei que você está
desconfiada da Camila, também pensei nisso. Mas como
provaremos isso? E mesmo que tivesse provas, você seria demitida
do mesmo jeito, porque as imagens sempre valerão mais do que mil
palavras, ainda mais para os cabeças duras que mandam nessa
empresa — replicou com frustração.
— Tudo bem, entendi. Agora posso ir? — indaguei com uma
vontade louca de sair correndo e chorar. Meus olhos já tinham se
tornado duas poças gigantescas de mágoas. Meu coração estava
em pedaços por ser demitida, porém o pior de tudo era ser deposta
pela pessoa que eu gostava tanto.
— Puta que pariu… Isso é tão injusto, Solena! — Socou a
mesa com força, fazendo o barulho seco e forte reverberar pelo
ambiente como um trovão, assustando-me.
— O que nessa vida é justo, Gui? Entendo a sua posição e,
mesmo que me arrependa de muita coisa, inclusive ter bebido tanto
a ponto de ficar tão exposta, sabia dos riscos, assumo o que fiz e
vou enfrentar as conseqüências de cabeça erguida. E quero que
saiba, Guilherme, não me arrependo do nosso beijo e sinto muito se
você se arrependeu. — Levantei-me prestes a sair correndo e abrir
o berreiro que nem um bebê. Queria ter dignidade para chegar ao
banheiro antes, não pretendia chorar ali na frente dele.
— Me perdoa, Sol...
Ele recomeçou a falar e estava prestes a se levantar e vir em
minha direção. Como odeio que sintam pena de mim, ergui-me e saí
em disparada pela porta sem olhar para trás. “Desculpa? Desculpar
por ter correspondido meu beijo? Por ter me iludido achando que
finalmente estava sendo notada por ele? Isso soava pior do que a
demissão”. Caminhei pelos corredores, sentindo meu rosto em
chamas. Quando estava triste e chorava, parecia um pimentão.
Tentei disfarçar enquanto passava pelas pessoas que trabalhavam
freneticamente a minha volta. Era difícil imaginar que não teria mais
aquilo me esperando todos os dias, não teria mais reunião no Bilbos
´s Café com as meninas. Meu Deus! As meninas! Pensar nelas me
fez choramingar ainda mais, em especial por estar ciente que
tentaram me salvar naquele dia e fui uma teimosa inconsequente
sem dar ouvidos à razão.
Consegui chegar ao toalete sem chorar em público, para meu
alívio e também meu desespero. Esperava chorar ali sozinha até
recuperar minha dignidade, para depois ir ao RH resolver essa
situação, porém, quem encontrei ali, parada com um sorriso de
triunfo e escárnio? Sim, ela! A VaCamila em osso e veneno!
Essa visão fez meu sangue ferver de ódio. Camila me
encarava com um sorriso debochado naquela cara nojenta,
segurava o celular aberto no aplicativo do Youtube. Prestei atenção
na tela do vídeo e a imagem familiar de uma mulher que dançava
loucamente na pista enquanto apertava a bunda do… Ai, meu Deus!
Guilherme! Depois, uma cena de fazer todos os forninhos
despencarem, uma dança sensual sendo finalizada com chave de
ouro por um beijo daqueles capazes de tirar os planetas de órbita.
Eu realmente tinha passado dos limites, que droga! Ela pausou o
vídeo com suas unhas longas e vermelhas manicuradas à perfeição
e disse com a voz triunfante.
— Eu avisei que você se arrependeria, não avisei? Agora, vira-
lata, recolha a sua bunda obesa e os seus trapinhos, e dá o fora! —
Cuspiu as palavras cheias de veneno e júbilo.
Eu tiraria a minha bundinha dali, mas antes… Antes ensinaria
àquela vaca que eu podia ser boazinha, sim, mas que não estava
[cxi]
morta! Ah, se iria! Anos jogando Mortal Kombat no fliperama
seriam úteis agora!
C 34

Sabe quando você está prestes a explodir? O cérebro não


estava mais sendo racional desde que saí da sala do Guilherme e,
bem, já tinha sido demitida mesmo, né? Então, por que diabos
aturaria essa lesma debochando da minha cara, se podia tacar sal
com minhas próprias mãos? Voei no pescoço magricelo daquela
Barbie paraguaia com toda a fúria do Ninja Jiraya[cxii]! Meu sangue
fervia, eu queria tirar a pele daquela surucucu e fazer uma carteira
novinha para depois vender no camelô a qualquer mulambento
crackudo que tivesse cinco reais no bolso!
Ela, reparando em meu olhar com um brilho louco e homicida,
começou a gritar histérica por socorro. Coitada! Isso me deu mais
ódio. Puxei a cabeleira dela e saiu um chumaço lindo de Mega Hair
em minhas mãos! Minha intenção era desmontar ela todinha! A
porta do banheiro se abriu e por ela surgiram minhas três amigas e
mais algumas pessoas curiosas. Arrancaram-me de cima de Camila,
droga! Neste momento, nós duas já tínhamos perdido qualquer
estribeira e estávamos jogadas no chão do banheiro. Ela tentava me
atacar, mas eu estava virada no demônio, queria pegar o fígado dela
e virar do avesso. Infelizmente, minhas amigas não deixariam que
fizesse isso e fosse presa por homicídio ou agressão, então com
muito esforço e algumas cotoveladas de protesto conseguiram nos
afastar.
— Me soltem, vou matar essa vaca! — exclamei em fúria,
estava descabelada e vermelha como um tomate.
— Contenham essa demônia! Vou chamar a polícia pra você,
Solena! Olha o que você fez com meu cabelo, sua assassina! Sabe
quanto custou isso? — choramingou agachada, juntando os tufos de
Mega Hair.
— Você acabou com minha vida com esse vídeo estúpido por
causa de um macho que não estava nem aí pra você e eu que sou a
má? Poupe-me Camila, nem te bati! Seus cabelos mereceram pagar
o pato pela sua maldade. Agradeça a interferência das minhas
amigas, pois com ódio que estou não sobraria nem o pó dos seus
ossos moídos! — bradei, aprumando e respirando fundo para não
voltar a atacá-la e dar umas bolachas naquela sem-vergonha.
— Eu tinha te aconselhado na festa! Avisei que o Guilherme
era meu! Você teimou, você me desafiou! Só recebeu o que merecia
— falou, erguendo-se e recuperando um pouco a postura de naja.
— Cala essa sua boca e rala peito daqui, antes que todas nós
desistamos de conter a Sol e a ajudemos a te quebrar em mil
pedaços, sua vaca despeitada! — Nuccia advertiu, agarrando
Camila pelo braço e empurrando em direção à porta.
— Outra coisa... — falou Suzy com a voz desafiadora,
mostrando o celular em mãos. — Eu gravei tudinho e se antes não
tínhamos como provar que foi você, agora, com a sua confissão,
nós temos! Sol pode ir pra rua, mas você vai junto. Sr. Álvaro está
doidinho pra saber quem vazou aquele vídeo e expôs a empresa!
Chupa essa!
— Mandou bem, Suzy! Manda logo a parte do vídeo em que
ela confessa para o Guilherme, vai! Manda já! Deixa de fora a briga,
pelo amor! — ordenou Nat que encarava Camila com cara de raiva.
Ela, por sua vez, retribuía com olhos esbugalhados de terror.
Desviei os meus olhos da víbora e fitei com amor e gratidão
aquelas três loucas. Elas me defenderiam contra Deus e o mundo
se fosse preciso. Compreendia que nossa amizade ia muito além do
ambiente de trabalho, elas estariam comigo para sempre em meu
coração por onde quer que fosse! Assim, entendi que o medo real
de perder o emprego era maior por receio de perdê-las e estava
enganada. Essa amizade nem Camila, nem ninguém seria capaz de
nos roubar.
Quando Camila saiu de lá, com medo e ainda chocada por ter
sido pega no flagra, as três se uniram e me abraçaram apertado.
Sou grata por tê-las, algo de bom levaria dali, apesar dos pesares.
Chorei todas as minhas dores e amarguras por tanto ódio gratuito
vindo de uma pessoa mesquinha e maquiavélica. Por alguns
segundos, arrependi-me de ter usado minhas mãos para bater em
alguém, mas ao olhar para o chão e ver o emaranhado de cabelos
caídos não pude deixar de rir. Não era tão boazinha assim no final
das contas, tinha adorado dar uma lição na mocréia!
Saímos do banheiro abraçadas. Um grupo de pessoas estava
no corredor olhando-nos com expressões aparvalhadas. Guilherme
estava na porta de sua sala e nos observava de longe com um
semblante pesaroso. Chegou a fazer menção de vir atrás de mim,
sendo impedido pelo olhar de Nu que sinalizou para que me desse
um tempo. E eu precisava desse tempo. Estava tão atordoada que
sequer reparei em Nat segurando meu celular em suas mãos. Só
notei quando ela já o desbloqueava (minha senha era a mesma do
celular antigo, tracejado de S, dã! Mais fácil, só se deixasse sem) e
digitava freneticamente no aplicativo do Whatsapp. Ergui a
sobrancelha em interrogação e ela, dando de ombros, disse:
— Estou chamando uma ajudinha para te levar para casa —
informou e deu uma piscadinha.
— Minha mãe está trabalhando, sua retardada! Não a
preocupe com besteiras. — Enviei meu olhar assassino para ela.
— Estressadinha! Pra começo de conversa, não estou falando
com a sua mãe. E pra finalizar, você não está em condições de ir
sozinha para casa! Olha essa sua cara! Se você sair assim pela rua,
te internarão no hospício, Solena — explicou calma e deu um riso
debochado.
— Quem então? — indaguei sem saber de quem estava
falando.
— Nosso príncipe encantado do busão! Dã! Até eu matei essa
charada antes que você, sua lerda! — Nu disse, revirando os olhos.
— Tadinho do Edu, porque vocês foram incomodar ele? — soei
irritadiça, estava cansada de ser tratada como criança por elas.

— Acho que ele não se sentiu nem um pouco incomodado,


ficou bem feliz de vir te buscar. E relaxa, não contei nada pra ele,
O.K.? — falou Nat na defensiva.
— O que você disse a ele? — perguntei curiosa.
— Só falei que você não estava muito bem e precisava ir mais
cedo para casa. Agora, o que você vai contar para ele é problema
seu! — Nat deu língua para mim.
— Meninas… Temos de voltar ao trabalho, senão nós também
vamos para rua. — Suzy chamou a atenção das duas.
— Obrigadas, meninas, por tudo! — agradeci com sinceridade.
— Ih! Solena, isso não é despedida não, hein! Logo, logo
estaremos na casa da sua mãe, te incomodando e exigindo saber
tudinho da sua vida como sempre — disse Nuccia, sendo prática.
Abracei-as e peguei as coisas que estavam em minha mesa.
Não eram muitas, mas não queria deixar nada para trás. Coloquei
na bolsa os retratos com as meninas, um da minha mãe com
Sardinha no colo, um meu com meu paizinho. Peguei tudo que tinha
na gaveta, inclusive os chocolates que Edu me deu e que eu havia
despejado ali quando cheguei. Esses, comeria pelo caminho, era
um conforto afinal. O quê? Me julguem!
Guilherme sumiu do meu campo de visão, melhor assim! Sem
despedidas e sem mais dor e decepção. Teria que voltar para
assinar as papeladas no RH; pelo menos, fui demitida com todos os
meus direitos, o que me daria um dinheiro e alguns meses de
tranquilidade até arrumar outro emprego. Não quis pensar na
questão naquele momento. Eu já disse que tenho medo de coisas
novas, né? Essa incerteza era torturante para mim. Fui em direção à
saída, carregando o peso do mundo na bolsa e no coração.
C 35

Quando Edu chegou de moto, estava sentada cabisbaixa no


meio-fio comendo os chocolates. Ele veio em minha direção e
estendeu as mãos para me ajudar a levantar. Aceitei e me ergui com
um sorriso triste nos lábios. Edu, olhos nos meus olhos e sem
palavras, me puxou para um abraço. Precisava tanto desse apoio
nesse momento que me deixei afundar no contorno do seu pescoço,
enquanto as lágrimas escorriam pelo meu rosto livremente. Tinha
impressão de que Edu estava sempre me resgatando dos meus
piores dias e era grata por isso.
— Dia difícil? — perguntou em meu ouvido, acariciando meus
cabelos.
— Põe difícil nisso! Desculpa, Edu, estou molhando sua
camisa — desculpei-me, fungando baixinho. Passei debilmente as
mãos pelo tecido em uma tentativa vã de tirar as lágrimas de lá.

— Deixa disso, Sol! Garotas grandes também choram, não


precisa ter vergonha de sua tristeza. Agora, pode secar essas
lágrimas, mocinha, hoje vim te sequestrar! Sobe na moto! —
Estendeu o capacete em minha direção.
— Tá doido? Onde você pensa que vai me levar? — questionei
com um sorriso que brotava de dentro pra fora. Edu aquecia meu
coração.
— Surpresa! Manda uma mensagem para dona Sônia e avisa
que você só volta amanhã pra casa — ordenou com olhar matreiro.
— Pirou? E a sua faculdade, menino? Hoje é segunda-feira! —
Por mais que a ideia soasse tentadora, estava destroçada e só
queria chorar em casa, deitada em minha cama quente.
— Confia em mim? — Um brilho de expectativa perpassou por
seus olhos castanhos.
— Sempre! — exclamei e subi na moto, deixando
momentaneamente as minhas neuras e problemas para trás.
Agarrei-me firme à sua cintura e afundei o rosto em sua camisa,
aspirando aquele aroma tão gostoso e reconfortante.
A brisa do tempo morno batia em minha pele, secando as
lágrimas salgadas. O céu estava com uma tonalidade azul clara
linda, nuvens flutuavam acima de nós como belos tufos de algodão.
Edu guiava a moto com a competência e facilidade de quem sabia
exatamente aonde queria ir. Eu sorri com o meu príncipe às
avessas, ele mais uma vez me salvou das garras do dragão. Dessa
vez, o dragão era Guilherme, e a masmorra, o trabalho que tanto me
era familiar. Já não sentia tanta tristeza, todavia sabia que uma hora
todos os sentimentos adiados viriam cobrar seu preço em lágrimas
que molhariam o travesseiro. Apertei com mais firmeza as costelas
de Edu, que correspondeu apertando levemente minhas mãos por
um instante, antes de retornar ao guidão da moto.
Depois de um bom tempo sentada em sua garupa, apreciando
o silêncio e a paisagem que passava com rapidez por nós, ele parou
em uma lanchonete de beira de estrada. Estava perto do meio-dia e
ambos estávamos famintos. Aproveitaria o momento a fim de avisar
minha mãe para que não se preocupasse com meu paradeiro
quando não me encontrasse em casa e também para que não
chamasse a polícia, caso passasse a noite fora. Podia parecer
estranho esse tipo de coisa, ainda mais para uma mulher da minha
idade, mas foram poucas as vezes em que passei noites fora. É
claro que viajava de vez em nunca, sempre na companhia de
amigas ou da minha mãe. Com homem ou namorado era raríssimo
e, tratando-se da Cidade Maravilhosa e seus perigos, era sempre
bom deixar alguém informado, né?
Eu não me preocupava de para onde iríamos, só queria ir para
bem longe de Guilherme. Meu coração estava em pedaços. Durante
o trajeto, procurei não ler as placas para me deixar surpreender com
o destino que me aguardava. Quando me deixei ser “sequestrada”,
vim de peito aberto, confiando em Edu. Podia parecer loucura para
muitos sair assim, sem destino, mas para mim, naquele momento,
fazia mais sentido do que qualquer outra coisa que já fizera.
Descemos da moto, e ele entrelaçou suas mãos nas minhas.
Segurei firme e o segui para o balcão, onde decidimos com rapidez
o que comeríamos. Peguei uma coxinha e uma Coca e o Edu, que
de magro só tinha mesmo o corpo, uma vez que seu apetite era
equivalente ao de dez mendigos, pediu um x-salada, mais um
salgado e uma Coca. Comemos em silêncio cúmplice. Eu não
estava com ânimo para conversar sobre o que ocorrera. Contar tudo
ao Edu implicaria em explicar sobre a festa e ter ficado com meu
chefe, por quem sempre fui apaixonada. Julguei que o magoaria.
Ele era o melhor amigo que tinha e minha intenção jamais foi a de
magoá-lo. Ele pareceu respeitar minha quietude de forma
compreensiva. Depois do “boto” comer tudo e ainda devorar o que
sobrou de minha coxinha (que de "inha" só tinha o nome, pois ela
era enorme), partimos.

Chegamos ao município de Mangaratiba depois de umas duas


horas de viagem, em que rememorei um milhão de vezes meus
sentimentos, o (os) beijo (s) na festa e minha demissão. Ainda era o
começo da tarde, mesmo que tenhamos feito umas duas paradas
para esticarmos as pernas. O lugar era pitoresco e as praças
mantinham uma veia histórica e familiar, muitas crianças e famílias
perambulavam por todos os cantos, rindo descontraídos. O clima
era agradável e fresco, bem diferente do calor sufocante da cidade
do Rio de Janeiro. Já conhecia o lugar de passagem, de uma
viagem de formatura com minhas amigas para Angra dos Reis,
porém não havíamos parado. Estava gostando de poder conhecer
melhor a localidade. Edu sorriu para mim e retribuí o sorriso.
Edu continuou dirigindo e fomos um pouco mais em direção ao
centro da cidadezinha, passamos por uma ponte acima de um rio de
águas calmas que dividia o espaço com a praia local. O nome do
lugar soava estranho, “Praia do Saco”, contudo o ambiente
transmitia a paz e a boa energia que eu necessitava. Não era alta
temporada, então eram poucos os quiosques abertos aqui e ali, na
beira da praia de águas escuras e plácidas. Observava tudo com
uma curiosidade satisfeita, a natureza transmitia uma energia
sublime e revigorante que transpassava meu corpo, indo
diretamente até minha alma.
Paramos em frente a uma casinha pequena de coloração
creme e janelas de madeira. Edu me ajudou a descer da moto,
estava grata de apear, pois apesar das paradas estava com meus
membros enrijecidos pela viagem, afinal era minha primeira viagem
em cima de uma moto.— Onde estamos? — perguntei, quebrando o
silêncio que nos envolvia.
— Pedi emprestada a chave a um primo meu. Ele que é dono
dessa casinha.
— Hum... Esse seria o mesmo primo da moto? Aquele do
show? — indaguei, rindo.
— É! Esse mesmo! O cara é maneiro, e bem… Segundo ele,
“estou tanto tempo na seca” que quase vibrou de satisfação quando
falei que queria trazer minha namorada. — Riu com uma visível
timidez.
— Esse deve gostar mesmo de você, hein? — afirmei, dando
um leve tapinha em sua cabeça.
— E quem resiste ao meu charme arrebatador, Solena? —
falou, rindo, balançando as sobrancelhas rapidamente, gerando um
ar cômico para a situação.
— Metido! — Dei uma ombrada nele e ri, mas me sentia
culpada por estar enganando um cara tão legal. Será que estaria
aqui comigo se soubesse o motivo da minha tristeza?
C 36

Ficamos muito pouco tempo na casa. Ele me arrastou porta


afora para a ruazinha que ficava em frente à praia. Nosso destino
era um prediozinho de dois andares com telhas avermelhadas, onde
ficava uma sorveteria de movimento alegre, cheia de famílias
inteiras, amigos e até namorados compartilhando sorvetes, a beleza
do local e a companhia. Os olhos de Edu brilhavam felizes como os
das crianças que estavam por ali. Fui obrigada a sorrir.
— Agora você vai espantar essa tristeza em grande estilo,
tomando o melhor sorvete da região! — falou com uma voz animada
que combinava com o brilho do seu olhar de menino travesso.
—Hum! Já estou acima do peso, e você ainda quer me fazer
engordar mais? Assim vou continuar encalhada pra sempre! —
protestei.

— Você está encalhada?! Jurava que era o seu namorado! Já


me deu um pé na bunda, Sol? — Fingiu tristeza e decepção.
— Ah, é, o namoro de mentira... Nossa, é realmente um
progresso! — argumentei, rolando os olhos de impaciência para ele.
Ele parou de repente e me olhou nos fundos dos olhos, muito
sério.
— Só é de mentira porque você quer que continue assim… —
disse e terminou a frase com um beijo em minha testa. Sorriu, deu
uma piscadela, deixando-me sem palavras. Será que isso seria uma
declaração? Sério?! Não, né?
Edu me puxou para uma mesinha com vista para a praia, que
ondulava as águas calmas. O sol deixava nas ondas um reflexo de
brilho intenso nas cores prata e ouro, nessa movimentação de ir e
vir por trás das nuvens.
Fiquei em silêncio, não queria causar mais confusões na
minha atual precariedade de paz. Ofereci um sorriso em resposta à
sua possível brincadeira, não poderíamos confundir a nossa
amizade e assim colocar uma das coisas mais bonitas que já tive
em risco até porque meu coração batia em outra sintonia. Um
homem de meia-idade, com a pele curtida de sol e um sorriso
amistoso no rosto nos recepcionou com um cardápio.
Cumprimentou Edu pelo nome e saiu, deixando-nos para escolher
entre a miscelânea de cores, sabores e qualidades de sorvete que
havia no menu. Fiquei sem saber qual escolher, quando senti que
Edu tirava de minhas mãos o cardápio com um puxão nada gentil. O
cardápio ficou fora do meu alcance. Ele me olhou com uma
sobrancelha erguida em desafio.
— Eiii, você é minha sequestrada e disse que confia em mim,
né? Então deixe que eu escolha e se surpreenda!
— O.K.! Surpreenda-me então! — Levantei as mãos em
rendição. Ri ao lembrar que tinha lido isso em um livro. “Solena não
viaja”! Sacudi a cabeça para dissipar as maluquices.
— Você fez uma cara engraçada. O que passou por essa sua
cabecinha, hein? — Edu me olhou inquisitivamente, o bom humor
ainda evidente.
— Ah, nada! É que você me fez lembrar um personagem de
um livro que li há um tempinho, deixa pra lá — respondi, corando
um pouco.
— Hum, e que livro é esse? — perguntou, divertido.
— Ahhhhh, não! Você nem deve conhecer! É livro de mulher…
Vamos pedir logo o sorvete? — desconversei com o rubor tomando
meu rosto.
— Hum… Espero que você goste de leite condensado. A calda
deles é irresistível! — Piscou sedutor.
Engasguei e comecei a tossir como uma idiota. Puta que o
pariu! Será que essa peste em forma de gente conhecia o meu
crush literário? Fiquei espreitando, cheia de suspeita, mas me
pareceu que ele não entendia porque o olhava, e eu não falaria nem
a pau que me lembrava de um personagem de livro HOT! Estou
ficando com sérios problemas mentais!
Trocamos amenidades, ele me contou de todos os verões que
já havia passado ali com sua família, a convite dos seus primos.
Olhou-me com cara travessa quando me informou que foi ali onde
tinha se iniciado na arte da conquista. Deu de ombros e corou.

— Na verdade, to exagerando tudo isso! Sempre fui um


magrelo esquisito, então se tive umas poucas almas bondosas que
me deram bola é muito, e se deram foi por falta de opção, pois aqui
não tinham muitos rapazes, e os que tinham eram mais feios do que
eu. — Gargalhou.
Foi minha vez de contar as histórias dos caldos que tomei nas
praias que fui com minha família e de como nunca fui muito fã de
entrar no mar por conta da vergonha pelo meu excesso de peso na
adolescência. O homem sorridente que nos atendeu voltou um
pouco depois e Edu pediu dois especiais da casa com muita calda
de chocolate e leite condensado.
— Não que hoje eu tenha um corpão! Mas, acho que, com a
idade, acabamos deixando essas vergonhas de lado — completei,
sorrindo e apontando em direção ao meu corpo nada perfeito.
— Quem gosta de osso é cachorro ou não é chegado na fruta,
Solena! Homem de verdade não liga muito pra esses detalhes —
falou alegremente e me olhou de cima a baixo, completando. —
Acho que você não ia à praia por besteira, mas, na real, é até bom,
sabe? Porque odiaria imaginar os marmanjos babando nas suas
curvas generosas!
— Para de ser besta! — Cutuquei o ombro dele. Alguma hora,
ficaria roxo de tanto tapa e cutucões que dava. Eu sabia que ele só
estava tentando ser gentil, afinal era o que os amigos faziam, certo?
Colocavam a gente para cima nos piores momentos de nossas
vidas.
Nossa conversa foi interrompida pelo homem simpático
novamente, agora trazendo nossos sorvetes equilibrados em uma
bandeja prateada. Colocou na mesa duas embalagens, uma com
calda caseira de chocolate e outra que era mais clarinha, a de leite
condensado. Os sorvetes vinham em taças grandes de vidro
transparente que deixava ver uma variedade multicolor de sabores
com muita castanha por cima e três palitinhos de “waffles” cravados
em ordem. O arremate era uma linda e enorme cereja vermelha de
aparência suculenta. Salivei imediatamente ao vislumbrar a porção
generosa de felicidade gelada.
— Hum! Isso parece estar uma delícia, Edu! — exclamei em
êxtase de animação, até batia palmas. Tinha certeza que quem me
visse de fora veria o mesmo sorriso infantil que eu vira na expressão
dele quando chegamos à sorveteria.

— Eu disse que valeria à pena! Bon appetit, mon amour[cxiii] —


respondeu com um francês pomposo de filme de quinta categoria.
[cxiv]
— Oui, mon Cher! — retruquei satisfeita por saber, pelo
menos, uma resposta em francês. Enchendo de calda meu sorvete,
levei uma colherada generosa à boca, fechando os olhos de prazer
ao sentir a maravilhosa mistura dos sabores brincando em meu
paladar.
— Olha lá! Não sabia que tu manjava de francês! Além de
linda, divertida, também é bilíngue? — inquiriu, sorridente, enchendo
a boca de sorvete e se lambuzando todo.
Lá estava ele, todo melecado e, como uma boa aprendiz de
dona Sônia, usei meu dedo indicador para tirar o excesso de calda
que se perdera no canto direito de seus lábios.

— Hum, nem tanto! Conhece o Duolingo[cxv]? — Gargalhei.


Ele me fitou com um olhar que parecia faiscar. Em sua boca,
um meio sorriso sacana. Enrubesci com aquela intensidade nada
normal no rosto descontraído de Edu.
— Que foi? Por acaso estou suja também? — perguntei,
passando o guardanapo sobre meus lábios.
— Inacreditável! Você não faz ideia do quanto pode ser
sensual sem fazer esforço, né? — falou, abaixando a cabeça e a
balançando para os lados. Em seguida, a jogou para trás,
gargalhando.
— Como assim? Eu? Você está louco, Eduardo? Para com
isso! Está me deixando encabulada! — Joguei uma bolinha de
guardanapo na testa dele. Então, lembrei que Guilherme tinha dito
algo semelhante na festa, e lembrar do Guilherme me fez sentir uma
pontada de dor no coração. Como ele poderia ter estragado tudo
que passamos naquela festa pedindo desculpas por me beijar?
C 37

Aproveitamos o restante da tarde em total sintonia. Ele ainda


não havia questionado sobre o que havia acontecido no trabalho e
eu não queria contar e estragar o clima amigável entre nós. Fui a
uma lojinha na mesma rua da sorveteria e comprei dois vestidos de
tecido leve, de alcinha. Eles eram um pouco mais curtos do que
gostaria, mas eram os últimos do meu tamanho, para minha sorte e
azar. Adquiri também um chinelo, daqueles comuns sem floreios, e
uma calcinha, afinal, já que passaria a noite por ali, não dava para
permanecer com a mesma roupa, não com o calor que fazia e após
horas de estrada em cima de uma moto, né? Edu aproveitou para
adquirir um bermudão, chinelo e uma camiseta preta. Nem na praia
vestia-se com outras cores! Isso me fez rir da cara dele, recebendo
um dar de ombros em resposta.
Caminhamos na beira da praia, aproveitando para contemplar
o céu que já recebia os primeiros sinais do crepúsculo. As cores se
misturavam, tons de alaranjado e azul faziam do céu uma aquarela
multicor, como uma obra de arte natural pintada pelas mãos de
Deus. O cheiro de maresia era pungente no ar fresco, a brisa estava
agradável bagunçando de leve nossos cabelos e esvoaçando as
roupas. Em determinados momentos, julguei que o vento faria meu
vestido se erguer, deixando-me exposta. Por precaução, uma das
minhas mãos segurava teimosamente a ponta do vestido. Não
estava habituada a usar esse tipo de roupa, então todo cuidado era
pouco nessa hora.

A maré subia rápido, fazendo com que a grande faixa de areia


diminuísse tomada pela imensidão de ondas espumosas.
Caminhamos até o pacífico rio de águas transparentes e nos
sentamos nas pedras lodosas que rodeavam o local. Havia poucas
pessoas àquela hora por ali, alguns pescadores estavam na parte
mais funda do rio, entretidos em uma pescaria solitária e silenciosa.
Supus que deviam ser moradores locais, e senti uma ponta de
inveja por eles terem aquele paraíso de calmaria à sua disposição
todos os dias. Viver na cidade era como estar em uma selva ou pior,
como residir em uma loucura, trânsito caótico, violência, poluição de
todos os tipos, disputas e brigas vãs por coisas tão superficiais e
sem sentido.
Fechei meus olhos, respirando fundo. Tentava carregar para os
pulmões aquele ar de serenidade. Com calma, abri-os e deixei
minha vista passear pelo local. Era incrível como a maioria das
pessoas se deixava levar pelos problemas da vida, sem dar uma
pausa para contemplar e agradecer tudo que possuímos à nossa
disposição, gratuitamente na natureza. O céu, o mar, o rio, até
mesmo os peixes que logo virariam alimento para as famílias que
nos cercavam. Tudo era parte de um todo. Será que quem vivia por
ali se dava conta do quão sortudo era? Edu me acompanhava em
um silêncio contemplativo, perdido em meio aos seus próprios
pensamentos e divagações.
— Uma pizza por seus pensamentos. — Empurrei-o com meus
ombros, em um carinho leve.
— Hum, pizza? Gostei da ideia! Será a nossa janta então!
Estava pensando nisso, mas de um modo diferente. Vem comigo! —
Segurou minhas mãos e me levantou com um puxão ansioso.
— Para onde vai me carregar dessa vez? — perguntei com a
voz preguiçosa. O dia fora cheio de fortes emoções e me sentia um
tanto exausta.
— Vamos até a casa, aí vou deixar você tomar um banho em
paz, enquanto faço algumas coisas, e volto daqui a pouco. Beleza?
— explicou-me com um jeito misterioso.
— O.K.! Você venceu, batata frita! — Para concordar comigo,
meu estômago resmungou com fome.
— Acalma a fera aí que logo, logo estarei de volta com nosso
rango. — Riu descontraído.
Fomos andando até a casinha. Chegando lá, Edu me deu
todos os apetrechos que precisaria para um bom banho e saiu.
Aproveitei para meditar um pouco debaixo daquela ducha fria sobre
meus sentimentos por Guilherme. Eu só queria que ele tivesse
mandado à merda a pose de chefe e me abraçado, gostaria que
tivesse dito que, apesar de tudo, estaria comigo e enfrentaríamos
juntos os problemas. Era sonho? Talvez, no entanto, depois do dia
em que me levou à praia e da festa, me enchi de esperanças que
foram jogadas ao vento junto com a demissão. Saí do banho e me
vesti, arrumando-me como pude. Infelizmente, tive de usar a mesma
roupa íntima, estava ainda cheirosinha! Ocupei-me em lavar a nova
e colocar atrás da geladeira para secagem mais rápida. Não sairia
usando uma calcinha que um monte de gente segurou nas mãos
sujas!
Depois de limpa e arrumada, fui dar uma olhadinha pela casa
que era simples e muito bem equipada para o veraneio. A cozinha
era pequena, toda branca e azul, bem arrumadinha; de lá, andei em
direção à sala e lá eram vistos objetos mais artesanais, feitos de
bambu e tecido, que se assemelhavam aos usados para confecção
de redes de dormir. O sofá era nada mais que um pallett cheio de
almofadas, parecia ser bem útil e confortável. Ao lado, havia um
caixote de madeira rústico com um abajur artesanal e, na parede
logo atrás, prateleiras com poucos livros. O espaço tinha uma
grande janela com cortinas brancas de renda que deixava o
ambiente iluminado e arejado. De frente para o sofá, um rack com
uma antiquada TV de vinte e nove polegadas, em que se via um
aparelho em cima, talvez um daqueles antigos de sintonizar canais.
Continuei minha exploração através do pequeno corredor, onde
encontrei três portas. Como já conhecia uma delas como sendo o
banheiro, abri a primeira do lado direito e me deparei com um quarto
de casal, a cama também feita com pallet e um colchão em cima
forrado por uma colcha de retalhos. Simples, havia um criado mudo
e um armário grande de madeira antiga, a janela dava para a
ruazinha simpática e totalmente arborizada. O outro quarto era
quase idêntico, o que diferenciava é que, ao invés de uma só cama
grande, haviam dois pallets menores, como camas de solteiro, um
armário e, pendurado na parede, um violão preto envernizado que
dava ao ambiente um ar, ao mesmo tempo, praieiro e masculino.
Imaginei Edu adolescente com os seus primos, talvez em uma
conversa calma e tranquila, alguém tocando o violão e contando
boas histórias. Não pude deixar de sorrir.
Quando estava saindo do quarto, dei um pequeno pulo de
susto com a repentina aparição de Edu. Obviamente, ele riu da
minha cara de assombro. Observei que trazia junto a si uma cesta
grande de vime, provavelmente contendo nossa refeição. Ele entrou
no quarto do qual havia acabado de sair, subiu em cima da cama e
alcançou com seus braços longos o violão, colocando-o pendurado
pela correia através do seu peito. Estendeu a cesta para mim, mas
deu um tapinha leve em minha mão quando, curiosa, tentei abrir e
ver o que continha. Puxou-me pelas mãos em direção à saída.
As ruas já estavam mais calmas com a chegada da noite, a
temperatura não desceu muito, mas a pele se arrepiava com aquele
aspecto mais fresco que só encontramos à beira da praia. Apesar
do vento inclemente, que fazia o cabelo recém-lavado secar de
forma natural e, provavelmente, deixava-o uma bagunça, não estava
frio. Lamentei-me por não ter me decidido pela roupa com que viera
da cidade, sendo obrigada a continuar a segurar meu vestido
naquela ventania. Estava me sentindo tão bem que nem havia me
ligado nesses detalhes. Ele me levou a um ponto onde poderíamos
dividir a vista entre a praia e o rio. Ambos jaziam escuros; o rio
agora estava mais cheio e imponente com a subida da maré.
O local onde estávamos era parcialmente iluminado pelas
parcas luzes dos postes da via. Encontramos o que parecia ser um
princípio de fogueira que fora apagada. Edu forrou cuidadosamente
a faixa de areia fofa com uma toalha retirada da cesta de vime.
Reparei que o local fora preparado naquele pouco espaço de tempo
em que fui deixada na casa. A consciência estava pesada, não
parava de pensar no Guilherme e estava aqui ao lado de Edu que
fazia de tudo para transformar esse dia em algo inesquecível. Olhei
para meu amigo com um misto de arrependimento e carinho. Ele
pegou o acendedor na cesta e fez o fogo arder, iluminando um
pequeno espaço com um brilho alaranjado e aquecendo o ar em
torno de nós.
— Agora você vai conhecer meus outros dons, Sol — afirmou,
sorrindo. Segurou o violão entre seus braços com a intimidade de
quem sabia o que estava fazendo.
— Estou curiosa, senhor Eduardo — retruquei, reclinando a
cabeça para olhar as estrelas que já enchiam o céu com sua luz
cálida, as mãos para trás, sorrindo.
Então, ele começou a tocar e a cantar uma música, olhando
diretamente em meus olhos. Sua voz ecoou rouca e apaixonada
pela noite fria. A melodia soou quente, forte e viva como a fogueira
que queimava em brasa à nossa frente. Admirada, fui obrigada a me
sentar sobre a toalha e retribuí seu olhar. Não reconheci a música
até que veio o refrão e meu coração se encolheu em meu peito pela
consciência pesada. “Será que eu estava brincando com os
sentimentos do Edu?”
É-é-é era só o começo ou uma coisa boba
Era só para se mostrar
E no mar de tanta indiferença
Era o sol que me faltava
Era o sol que me faltava[cxvi]
A música findou-se e ele se sentou ao meu lado, arrematando
o clima com a frase:
— Sol, você é como essa música, era só o que faltava em
minha vida.
Não resisti. Beijamo-nos e eu me entreguei àquele momento
como uma tentativa de apagar todas as dores que vivenciei. O beijo
foi doce e terno, entretanto não senti meu coração saltar do peito e
minhas pernas tremerem como aconteceu com o Guilherme. Gui me
tirava as palavras, o ar e até mesmo a noção de onde estávamos.
Essa percepção doía, porque eu queria amar o Eduardo, seria mais
fácil e descomplicado, mas meu coração era de outro. Quanto
tempo demorei a ter essa certeza? Quanto tempo ignorei meus
sentimentos por causa da minha insegurança?
A culpa do fracasso com Guilherme era minha também, por
não correr atrás dos meus sentimentos, por medo. Medo de não ser
o bastante, medo de me magoar, medo do que os outros achariam.
O medo nos cega, nos freia e nos mantém no conforto da
comodidade. Eu precisava mudar, e a mudança não estava em me
esconder atrás de um namoro de mentira, ou de brincar com os
sentimentos de um amigo, ainda mais um amigo como o Edu. A
mudança era correr atrás do que me fazia feliz, do que me
completava. Eu precisava buscar ser feliz, e minha felicidade nunca
seria com Edu, era com o Guilherme que queria estar. A quem
estava tentando enganar?
Ele parou de me beijar quando percebeu que eu já não o
retribuía. Edu me soltou e me encarou, esperando que dissesse
algo, que explicasse o que estava acontecendo. Meus olhos
encheram-se de lágrimas, e o abracei forte.
— O que foi Sol? Não gostou do beijo? — indagou, confuso
com minha atitude, ou falta dela.
— Edu, eu te amo, muito, muito! Você é muito importante pra
mim, sabe disso, não é? — comecei com as lágrimas rolando
quentes pela minha bochecha.
— Mas... Tem um “mas”, né? — perguntou com um sorriso
triste.
— Edu, eu não fui honesta com você. E te peço um milhão de
desculpas por isso! Você é um dos melhores presentes que a vida
trouxe pra mim, mas não dessa maneira. Eu te amo como amigo, o
melhor amigo que qualquer um poderia ter — expliquei, respirando
fundo. Deixara isso ir longe demais, precisava pôr um fim a todos os
mal-entendidos.
— Não entendo, Sol. Sinceramente! Sempre demonstrei meus
sentimentos e você parecia corresponder. Agora que chegamos aqui
e você descobre, de repente, que não quer nada comigo. Você
gosta de outra pessoa? Seja sincera comigo, acho que mereço —
implorou, magoado. Seus olhos pareciam duas poças de água, e
meu coração estava esmigalhado por ver sua dor.
— Eu nunca achei que você estava falando sério e estava
confusa. Queria muito poder fica com você, mas não é o certo e tô
cheia de fazer as coisas mais cômodas e não ser feliz. Não seria
justo com nenhum de nós dois. Somos amigos, e essa amizade é
linda, acho que até mesmo você não gosta de mim como acha, está
confuso.
— Não ponha palavras em minha boca, Solena. Eu sempre te
amei e amo, fui honesto até mesmo nas brincadeiras...
— Edu, fui demitida hoje por beijar meu chefe na festa do
trabalho. Eu sempre gostei dele e nunca achei que seria
correspondida. Quando ele falou o que sempre quis ouvir, fiquei
eufórica, bebi demais e fiz essa merda me expondo para todos. Ele
teve que me demitir e isso doeu demais. Mesmo assim, não é justo
te usar. Não é justo me entregar a uma relação e estragar uma
amizade sabendo dos meus sentimentos.
— Eu... Sol, não sei o que dizer. Tô sentindo um babaca por
supor que gostava de mim e saber agora que esse tempo todo você
mentiu, beijou o cara, gostava dele e ficava brincando de namorada
comigo. Sinto-me usado, preciso de um tempo pra assimilar isso —
disse, afastando-se de mim e indo para a beira do rio.
Vi quando pegou uma pedra e arremessou com tamanha força
que fez a água espadanar. O gesto me doeu, dava a impressão que
ele queria arremessar o amor que sentia por mim. Encolhi-me de frio
mais próxima da fogueira, abraçando meu próprio corpo.
Não sabia se nossa amizade sobreviveria a isso. Senti um bolo
na garganta e um soluço cortou o silêncio da noite. Crescer era isso,
precisava me responsabilizar por meus erros. Ter brincado com o
coração do Eduardo foi o pior de todos eles.
Adormeci sem perceber, com o coração despedaçado, cheia
de vontade de me jogar no mar e afundar como uma oferenda para
Iemanjá, pois só fazia besteira!

Senti a claridade em minhas pálpebras. Havia uma manta


sobre mim, mas sem sinal de Edu. Levantei e olhei ao redor,
procurando por ele, e o vi sentado em uma das pedras, mirando o
mar. O remorso me atingiu como uma flecha envenenada. Minha
vontade era levantar e abraçá-lo, quem sabe tentar algo, quem sabe
fazer brotar amor na amizade. Mas sabia que não era o caminho
certo, era apenas o mais fácil, era o medo de perdê-lo em minha
vida que fazia brotar essas ideias. Recolhi as coisas, enfiando-as
dentro da cesta, dobrei a toalha, peguei o que restava e fui aonde
ele estava.
— Bom dia, Edu. Passou a noite aqui? — indaguei, sentando
ao seu lado.
— Bom dia. Sim, fiquei aqui, pensando em tudo. Obrigada por
pelo menos por ser honesta comigo — respondeu com um sorriso
que não chegou ao seu olhar. — Vamos? Vou te levar pra casa, meu
primo falou que precisaria da moto antes do meio-dia.
— Vamos, mas... Edu como fica a nossa amizade? Eu não
quero que fique nada estranho entre nós... — Puxei seu rosto para
que me encarasse e o que vi em seus olhos era apenas mágoa.
— Solena, dá tempo ao tempo, O.K.?
— Edu? Me perdoa? — supliquei com olhar.
— Eu te amo, Sol — falou, sem responder minha pergunta,
levantando. Eu apenas o segui sem dizer mais nada.
Pegamos nossas coisas na casa e nos prepararmos para a
longa viagem de volta para a realidade no Rio de Janeiro. O
desfecho não foi como ele ou eu tínhamos em mente e, talvez,
quando saíssemos dali, perdêssemos a magia que nos envolvia e
virássemos abóboras, ou pior, apenas dois estranhos.
C 38

O caminho de volta foi sem a alegria que nos envolvia.


Paramos para esticarmos as pernas e comermos algo, mas nada
me desceu, nem mesmo Edu parecia com fome. Edu estava
econômico com as palavras, bem diferente do rapaz leve e
irreverente, sempre com uma piadinha pronta na ponta da língua.
Ele sofria com a rejeição, e eu sofria vendo seu padecimento.
Ele me deixou em frente de casa antes das 10h, com um “nos
vemos por aí” e deu partida na moto. O.K., eu o tinha magoado, mas
precisava de tanta frieza? Fui recepcionada pelo meu saquinho de
pulgas preferido que, ao me ver, veio esfregar sua pelagem clara e
macia nas minhas pernas, cobrando um afago. Peguei-o no colo sob
miados de protesto; ele não gostava muito de demonstrações de
afetos tão emotivas e intimistas, mas eu precisava de conforto,
então o abracei ao estilo Felícia[cxvii]. Meu gato tinha uma
personalidade, digamos, um tanto quanto única (leia-se selvagem)
para se deixar carregar no colo.
— Aiiiiiiiiii! Você é um gatinho muito chato, Sardinha! Só queria
um carinho, estou precisando, poxa! Menino mau! — choraminguei,
largando-o no chão, mortificada depois de levar um baita arranhão
no pescoço.
Se ele se arrependeu do tratamento a mim oferecido, não deu
sinais. Começou a se lamber tranquilamente, sem dar bola para
meu semblante magoado. Olhou-me de esguelha, como se
dissesse: “Nem me olha assim humana, você que começou! Eu
queria cafuné e não ser amassado como um urso de pelúcia idiota.
Vê se anota e aprende.” Saí de perto dele, revirando os olhos pela
linda forma com a qual fui recebida em meu lar. Quase pude ouvir a
voz do pessimismo dizendo-me: “Bem-vinda de volta à realidade,
Solena!”.
Fui ao banheiro ver o tamanho do estrago que meu gatinho
filho da mãe tinha feito, pois ardia como o diabo. Nem a vaca da
Camila me deixou marca na briga, que desaforo! Em falar na naja,
será que ela realmente fora demitida depois do barraco no
banheiro? Precisava me atualizar nas últimas fofocas com o trio
antes de voltar ao local do crime. Apesar de tudo, não queria rever o
Guilherme tão cedo, pois ainda me sentia traída por ele, mesmo
sabendo que a culpa da demissão fora mais minha do que de
qualquer outra pessoa.
Meu celular estava na bolsa lá no quarto. Eu o mantive no
mudo durante todo passeio, usando-o apenas para avisar minha
mãe sobre a volta no dia seguinte. Ela ficou encasquetada, tentou
até tirar algumas informações de com quem estava e para onde ia.
O bom da minha relação com dona Sônia era a confiança, ela nunca
me questionou demais, afinal já não era mais criança há algum
tempo, e julgava que sabia me virar sozinha. Nunca fui uma filha
rebelde ou desmiolada, então sempre confiou em minhas decisões e
as respeitou, dando-me seu apoio.
Quando cheguei à frente do espelho, notei que minha imagem
estava com um péssimo aspecto, os olhos inchados e olheiras, além
do vergão avermelhado que se concentrava no lado direito do meu
pescoço bem abaixo da orelha. Lavei a área com água e sabão,
sentindo uma ardência que fez meu lado malévolo aflorar e meus
pensamentos vaguearem para as mil maneiras como poderia fazer
um bom churrasco com meu gato.
— Ah, Sardinha! Se não te amasse tanto, te mataria! —
Coloquei os pensamentos em voz alta para extravasar um pouco
minha amargura. Tudo estava dando errado na minha vida.
Fui para o quarto e peguei meu celular, joguei-me sobre a
cama para fuçar. Apesar de saber que elas sempre davam um
jeitinho de olhar o celular em furtivas idas ao banheiro durante o
horário de trabalho, com certeza estavam preocupadas comigo
depois de o que houve, ainda mais por eu ter passado o resto do dia
sem dar notícias. Dei uma rápida olhada no meu feed de notícias,
pelo menos ali não tinha sinal de marcações do vídeo que Camila
havia espalhado na rede. Senti-me aliviada. Já bastava que tivesse
acabado com meu emprego, detonar com minha vida pessoal
também seria demais, né?
Fui verificar as mensagens e lógico que tinha muitas das
meninas, contudo haviam muitas outras, de pessoas que
trabalhavam comigo e que lamentavam o ocorrido, desejando-me o
melhor. Era certo que minha demissão fora percebida, ainda mais
depois do escândalo de ontem. Nossa! Tudo isso havia ocorrido a
menos de vinte e quatro horas! A sensação era de ter se passado
meses após esse apocalipse em minha vida. A ida a Mangaratiba
com Edu me deu algo de bom, fez-me ver minha biografia sob
outras perspectivas, e talvez, só talvez, a Camila tivesse me feito
um favor por ter me tirado desse comodismo. Decisões difíceis
precisavam ser tomadas se almejava a felicidade em minha vida.
Claro que não foi a intenção dela, mas será que eu pediria demissão
algum dia para tentar algo que me fizesse feliz de verdade?
Continuamente ouvi aquela velha frase do filósofo Confúcio,
“Escolhe um trabalho de que gostes, e não terás que trabalhar nem
um dia na tua vida”. Sempre tive medo e pensei que fosse uma
utopia, por que não? Se não tentasse alguma mudança tudo
permaneceria igual, dependia de mim mesma virar o jogo da minha
vida. O Edu é uma prova do quanto a vida pode virar tudo do avesso
e tornar tudo muito mais interessante em pouco tempo.
Será que aquela fantasia com Guilherme não era apenas isso,
um sonho de uma garota grande que ainda sonhava com príncipes
encantados? Será que fiz uma burrada dispensando meu sapinho
cururu que só tentava me fazer sorrir e me amava sem reservas?
Agora já era! Duvido que Edu me perdoasse por tê-lo feito de bobo.
E por falar em Guilherme, tinha alguma mensagem dele por ali
também? Tinha. Merda! Leio ou não leio? Meu coração acelerou,
sentia o rastro quente dos seus lábios nos meus naquela festa, era
tão vívida a lembrança, foi tão bom! Por que tinha que se
transformar nesse pesadelo, não podia um dia ser Cinderela sem
sapos e bruxas más? Que saco! Estava muito encrencada nessa
confusão de vida!
Comecei uma conversa comigo mesma: “Deixa de ser imbecil,
Solena, o Guilherme foi um lindo sonho em sua vida, mas a sua
realidade é outra, fofa, ele nem foi atrás de você ontem, quando
estava destruída! Aliás, o Gui deve ter apenas feito uma boa ação
com você naquele dia, te viu ali na festa e resolveu bancar o bom
samaritano, não se iluda, mulher!” Mas se realmente foi só uma
ilusão da minha cabeça tonta, por que ele pareceu ter ciúmes do
Edu aquela vez que me trouxe em casa? Por que quis tanto que
fosse à festa? E por que, diabos, ele pareceu triste por ter de me
demitir ontem? O que queria de mim afinal? Eram tantas perguntas,
e meus sentimentos ainda estavam confusos em relação à minha
amizade com Eduardo... E eu, que julgava que estava muito bem
sozinha, acabei me metendo em um triângulo amoroso. Ninguém
merece!
Decidi responder às meninas primeiro e depois dar uma
olhadinha na mensagem do Guilherme. Não estava com pressa de
me sentir mais iludida com esperança. O trio conversara
freneticamente ontem, tinham mais de 400 mensagens, e eu estava
sem paciência para ler tudo aquilo. Aqueci meus dedinhos para
começar a digitar uma explicação para meu sumiço.
Sol: Oi, meninas, alguém pode fazer um breve resumo do que
houve na minha ausência? Vocês falam pra caramba!
Fiquei olhando a tela para ver se dava algum sinal de vida.
Não demorou para que Nat visualizasse a mensagem e
respondesse.
Nat: Onde você se enfiou, vaca? Estávamos aqui pensando
em procurar seu corpo pelos necrotérios do RJ!
Sol: Olha o drama! Estava com o Edu, não foi você mesma
quem o chamou, sua besta?
Nat: Ah! É verdade! Conta tudo! Não, pêra! Acho que antes
tenho que contar algumas fofocas. Mas merda! Não vou ter tempo
de passar tudo agora. Tentamos falar com você ontem, onde meteu
teu celular, sua tosca?
Sol: Hum! Passei a noite fora com o Eduardo, oras.
Nat: Pqp, Solena! Para uma tonta lerda, você anda bem
rapidinha, hein?
Sol: Seu carinho por mim é comovente, Nathalie, muito
obrigada! Mas não é bem isso que tua mente corrompida está
pensando... Preciso conversar com vocês, pois, na verdade, foi bem
triste o dia de ontem, mais do que posso dizer nesse momento sem
que você comece a encher o meu saco. Não é conversa pra se ter
por mensagem.
Nat: Eita, Sol! Não pense que você nos escapa! Vou falar com
as meninas, vamos te resgatar dessa bad, nos aguarde! Vou tentar
fazer breve resumo dos acontecimentos das últimas 24 horas, O.K.?
Sol: O.K.!
Nat: A Vaca foi pro brejo depois da briga no banheiro e pela
descoberta de quem foi a responsável pelo vídeo da festa. A
confissão que fez isso para te prejudicar, no outro vídeo gravado
pela Suzy, ajudou bastante, claro. Hahahaha... tinha que ver a cara
dela choramingando com Guilherme pelo corredor, pedindo perdão,
foi hilário! Queria ter gravado pra te mostrar, mas acho que deu de
vídeos, né?!
Sol: Hum! Que bom que, pelo menos, ainda há alguma justiça
nesse mundo.
Nat: Teve uma coisa muito mais bafônica, mas não dá pra
dizer assim, agora tenho que ir mesmo! Mais tarde te ligo, ou mando
áudio no zap zap, beijos! E se cuida ai, não fica triste. Já to bolando
algo pra te tirar da fossa na sexta!
Sol: Vai lá, Nat, vou tirar uma soneca, porque ontem o dia
ontem foi péssimo, a noite pior ainda… Queria um abraço, mas
como não tenho, vai de sono mesmo.
Nat: Ai, Solzita, não faz assim que derrete meu coração de
Elsa. Não fica triste, vai descansar que logo, logo nos falamos e
você nos dá a lista de quem temos que matar. Beijos, vaca S2, fui!
Desliguei o celular e me deitei na cama, fixando o teto e
tentando pensar nos últimos ocorridos. A mensagem do Guilherme
devia ser sobre isso. Decerto, ele queria me contar sobre a
demissão da Camila, nada a ver com nós dois. Ele já devia até ter
esquecido do nosso beijo. Decidi que não queria ver nada agora,
determinei que faria exatamente aquilo que disse para Nat que faria.
Coloquei o celular no criado-mudo e depois me deixei mergulhar no
sono pelo cansaço de todas as emoções expostas e ainda latejantes
dentro de mim.
C 39

O que aconteceu entre mim e a Sol ainda estava fresco em


minha mente, seu beijo permaneceu comigo, era como um gosto
inebriante que fica depois do primeiro gole de vinho. Eu desejava
mais. Seu cheiro adocicado e fresco como flor de laranjeira parecia
impregnado em meus poros e pensamentos. Não parecia possível,
mas tinha ficado ainda mais louco por aquela mulher linda e
engraçada que se deixou levar pelo momento sem amarras,
destemida e ousada. Tive medo, o que queria era dar tudo o que a
Solena merecia: amor, carinho e meu coração. Que se danasse tudo
e todos! Soquei a mesa à minha frente de raiva. Só o que queria era
ela e nada mais.
Quando a levei para a casa no fim da noite depois da festa,
declarei-me para ela do fundo do meu coração. Enquanto colocava
a mulher da minha vida em sua cama, expressei toda paixão e
admiração que sentia por ela. Sol estava ainda sob efeito da bebida
e tentou me puxar para sua cama, mas não quis me aproveitar de
seu estado de embriaguez. Eu a queria, porém com toda lucidez
que o momento necessitava. Não imaginei que não se lembraria de
nenhuma das minhas palavras e talvez tenha sido melhor assim.
Sua decepção estampada no rosto, alguns minutos atrás, quando
tive que demiti-la, me mostrou que não a merecia.
Toda e qualquer possibilidade de algo brotar entre nós foi-me
tirada no domingo quando recebi o vídeo com as lembranças ainda
frescas em minha memória. Nele, os detalhes eram expostos de
maneira vulgar e estúpida. O que fizeram foi com o claro intuito para
ridicularizá-la, para que todos pudessem rir daquilo que, para mim,
pareceu tão sublime e único. Sabia que o resultado iria além de
mero cyberbullying[41]. Eu, como chefe, tinha uma merda de papel
a seguir. Tentei freá-la naquele dia, mas reconheço que fui fraco,
deixei-me levar, beijei-a naquela bosta de festa como se fôssemos
apenas nós dois, correspondendo com todo ardor como um filho da
puta egoísta que sou. Na segunda-feira, recebi um correio eletrônico
do Sr. Álvaro, pressionado a demiti-la “pela conduta inadequada de
funcionária” e a quem mais estivesse envolvido. Os mandachuvas
haviam recebido o tal vídeo. Era tudo injusto! Eu também deveria
ser dispensado, então; quando questionei sobre isso, disseram que
ela havia provocado e que minha presença na empresa era de suma
importância para eles, ou seja, como a corda sempre arrebenta para
o lado mais fraco, seria Sol a pagar por tudo.
Olhei-me no espelho do banheiro da minha sala, passando
nervosamente minhas mãos pelo rosto. Sentia-me um lixo depois de
vê-la sair sem fazer nada para impedi-la. Seus olhos tão tristes e
perdidos... Minha vontade era abraçá-la e dizer que tudo ficaria
bem, que estaria com ela, porém fui covarde e a deixei ir sem dizer
nada. Sem repetir as palavras que tinha dito na noite de sábado,
sobre o quanto mexia comigo e que estava apaixonado por ela,
como era, sem tirar nem pôr.
Desconfiava da autoria daquela maldade, e mais uma vez me
senti uma bosta, pois isso também era por minha culpa. Camila
jamais faria isso se não fosse por despeito pela atenção que eu
dava a Solena e pela brecha que dei quando aceitei ir em sua
companhia àquele show. Devia ter deixado mais claro que não
queria nada com ela.
Quando ouvi um burburinho no corredor e logo depois uma
gritaria no banheiro, não entendi o que estava acontecendo. Meu
medo era de ter ocorrido algo com Solena, mas quando a porta se
abriu e vi que quem saía descabelada e choramingando era Camila,
reclamando de ter levado uma surra da louca da Solena, sorri
discretamente e admirei-a ainda mais pela coragem daquela mulher.
Mesmo quebrada, não sairia por baixo das piadinhas infames e
baixas, que certamente a outra tinha lhe dito, aproveitando-se de
sua “fragilidade”. Solena era mais forte do que parecia e isso era
nítido. Ao deixar o cômodo entre suas amigas e me notar,
empertigou-se para não demonstrar fraqueza ou angústia.
Entrei em minha sala, fechando a porta atrás de mim. Quis ir
atrás dela, mas as amigas a protegiam como leoas. Havia ficado
com uma sensação inquietante sem saber o que fazer. Milhões de
pensamentos se digladiavam em minha cabeça, os sentimentos
subiam pela minha garganta, fazendo-me morder o punho fechado
de frustração. Decidi ir atrás dela depois de alguns minutos de
conflito interno entre o que era certo e errado. Mandei tudo pro
inferno e abri a porta, indo em direção à sua mesa. Chegando lá, vi
que jazia vazia, era tarde demais, ela já fora embora.
Nathalie, que era uma de suas melhores amigas, quando me
viu parado, olhando perdido o vazio, parou ao meu lado e fitou-me
nos olhos.
— Ela já foi, Guilherme! O Edu vai levá-la pra casa, eu mesmo
o chamei — informou com um olhar de desafio.
Ela deveria estar com raiva de mim, pudera, eu sentia o
mesmo por mim naquele momento. Olhei assustado. “Eles não
tinham terminado?”, pensei sem conseguir colocar para fora a
pergunta, não tinha direitos sobre ela. Um ódio teve início dentro de
mim, fazia-me querer socar Deus e o mundo pelas coisas que
estavam acontecendo.
— Como disse… Chamei o Eduardo. Ele faz bem pra Solena.
E nessas horas, ela precisará de alguém que esteja ao seu lado
para o que der e vier. Uma pessoa que tenha coragem de mandar o
mundo se foder se for preciso, por ela — falou desdenhosa.
Eu mereci essa indireta bem direta.
— Pelo jeito, não sou um cara assim, né? — indaguei com a
voz entrecortada de tristeza misturada com frustração. Parecia ter
levado um soco no estômago com aquelas palavras, eu merecia.

— Não sei. Você é? Se é, então prove! Deixa de se esconder e


lute por aquilo que quer, a não ser que a Sol seja só uma espécie de
passatempo. Se for esse o caso, fique longe e deixa-a ser feliz —
proferiu sem deixar tempo de tentar formular alguma resposta. Foi
em direção ao banheiro, deixando-me ali sozinho com aquelas
palavras rondando meu pensamento.
Eu era? Não sabia responder se era o cara certo pra Sol, mas
nunca passou pela minha cabeça brincar com seus sentimentos.
Estava apaixonado por ela, isso era claro como água pra mim. Saí a
passos largos daquele lugar que parecia me sufocar. Esperei o
elevador e apertei impaciente o andar térreo, sentia como se
estivesse andando em câmera lenta e comecei a remexer os pés de
impaciência, antes ter ido pelas escadas! Será que ela ainda estaria
lá fora? Torcia para que sim, eu só queria repetir tudo aquilo que
havia lhe confessado no sábado e dizer que estaria com ela se
assim me quisesse, estava completamente louco e apaixonado por
tudo nela, até suas manias loucas e inconsequentes.
Quando o elevador enfim chegou ao térreo, corri para a
portaria sem me importar com o que o zelador ou as outras pessoas
que passavam pensariam de minha atitude desesperada. Sabia que
se não a alcançasse, poderia perder a oportunidade de tê-la para
mim. Encontrei-a sentada no meio-fio a mais ou menos duzentos
metros de distância. Parecia triste e perdida em seus pensamentos
com uma caixa nas mãos comendo bombons, parei alguns
segundos, respirei fundo e fui caminhando lentamente em direção a
ela, não queria chegar suado e correndo tal qual um louco maníaco
ou, no mínimo, a assustaria.
Foi quando uma moto parou. Meus pés congelaram no chão,
quando o motoqueiro tirou o capacete reconheci de imediato o
rapaz. Era o tal do Eduardo. Um gosto amargo subiu pela minha
garganta. Ele sorria, estendendo a mão para a Sol, puxando-a para
seus braços. Eles não me viram, mas observei quando ela guardou
o chocolate e subiu na moto, desapareceu junto com ele pela rua
lotada de pessoas e carros para todos os lados. Fiquei ali, com as
mãos caídas ao lado do meu tronco, enquanto deixava minha
oportunidade ir embora como uma pena voando ao sabor do vento.
C 40

Dois dias se passaram desde que tudo desandou em minha


vida. Pensava em Edu de forma constante, pois me sentia mal por
ter aberto o jogo. Afinal, não queria iludi-lo com mentiras ou
omissões. Como poderia começar um relacionamento se o amava
apenas como amigo? O quanto de mim Edu realmente conhecia ou
pensava conhecer para estar apaixonado nessa magnitude?
Porque, apesar dos pesares, e de estar sob efeitos visíveis da
bebida, aquela que deu show na festa fui eu. Não tinha
arrependimentos por ter beijado Guilherme, gostava dele no fim das
contas. Meu real arrependimento era ter feito dessa maneira tosca,
bêbada e na frente de todo mundo.
Precisava ser honesta comigo mesma antes de resolver
qualquer coisa. Não podia colocar uma expectativa gigante no Edu
por sempre me salvar das piores situações da minha vida, né? Não
poderia ficar me escondendo atrás dele e usando-o como escudo,
tinha que aprender a enfrentar meus próprios monstros. Não podia
depender de ninguém para me resgatar de minhas mancadas.
Precisava ser forte e me tornar a adulta que a identidade acusava
que era! Já não era mais uma criança, nem uma menininha
indefesa, teria de me responsabilizar pelas minhas próprias vitórias
e derrotas, mas como, se me metia debaixo do escudo protetor do
Edu após a primeira intempérie que a vida me apresentava? O que
seria das próximas agora, sem ele?
Necessitava mudar minha vida e teria que começar fazendo
isso tomando decisões importantes nos próximos dias. A primeira
era: o que faria já que estava oficialmente desempregada?
Arrumaria um emprego burocrático e chato para depois permanecer
mais dez anos acomodada ou chutaria o pau da barraca? Hum?
Não precisava de um regresso para uma zona de conforto já
conhecida. Devia realizar um grande projeto para me satisfazer
profissionalmente. Mas, afinal, qual era o meu sonho?
Vasculhei minha mente atrás de respostas e meus olhos
pararam na minha estante de livros, que pareciam cintilar como uma
lâmpada mágica. Lembrei da minha paixão pela escrita que foi
abafada na adolescência por minha ex-professora (bruxa) Elza. E
porque não? O que tinha a perder? Podia-me aguentar por um
tempo enquanto arriscava, tenho certeza que minha mãe me
apoiaria. Já pensou? Solena Lopes, escritora! Chupa mundo! Isso,
sim, seria virar o jogo da minha vida, sair de uma zona de conforto e
me aventurar em um sonho. Senti um frio na barriga de animação.
Durante toda minha vida amei a literatura. Flertava com a ideia
de dar alma a algo tão sublime como uma história. Doar
personalidade e sentimentos para pessoinhas que só existiriam
dentro de quem as criasse, e que, após serem lidos, passariam a
existir para milhares de pessoas. E não só isso! Fascinava-me o fato
dessas histórias poderem ajudar outros indivíduos com mensagens
subliminares contidas nas narrações.
Escrever um livro me parecia como jogar uma garrafa de vidro
ao mar com uma mensagem dentro. No entanto, em vez de um
bilhete curto e simples como “siga seus sonhos”, a mensagem
aparecia disfarçada como um enigma que para cada leitor se
revelava de uma forma única. Nunca vi várias pessoas terem a
mesma interpretação sobre um mesmo livro, porque cada um vai ser
tocado de maneira pessoal. A mágica de se criar histórias é uma
espécie de alquimia ou feitiçaria, na qual o autor tece sonhos.
Parece que estou viajando na maionese? Contudo, é dessa maneira
que sempre me senti.
Sem querer parecer estranha, mais do que o habitual pelo
menos, sempre senti uma voz que me chamava através dos livros;
essa voz dizia que ali estavam minhas respostas, meu refúgio e
minha paz. Mas... e se essa voz também estivesse me dizendo que
também era minha missão? E eu sempre a ignorei? Soa louco
demais tudo isso, eu entendo. E sei que estou em um momento que
pareço um pouco perturbada com tudo que aconteceu. O que
precisamos, às vezes, é de uma boa dose de loucura para enfrentar
nossos dragões e nos tornarmos a heroína da própria história. Só
assim podemos batalhar pelo tão sonhado final feliz.

Algum tempo atrás me aventurei no Wattpad[cxviii], escrevi um


noveleta com um pseudônimo e tive até uma quantidade razoável
de leituras. Isso, escondida, não sendo eu mesma, nunca tinha
pensado em me revelar. Só que chegou a hora de deixar de me
esconder! Eu seria como as autoras que admirava. Lembrei quanto
elas tinham me feito bem com suas histórias sem nem ao menos se
darem conta disso. Queria agradecê-las e abraçá-las, desejava lhes
dizer, por mais difícil e solitária que pareça a caminhada na
literatura, para não desistirem, que seus livros salvam vidas, e que
foram várias as vezes em que fui salva por eles. Agora meu desejo
era ser uma dessas salvadoras por tê-las como inspiração.
Agora tinha o esboço de uma resposta a minha questão sobre
o que me faria realizada profissionalmente, mas como começar a
construir tudo isso? Talvez pelo começo seria legal, né? Dã! “Mas,
sério, sobre o que escreveria?”, pensei com meus botões.
Minha vida parecia uma comédia trágica, ou uma tragicomédia
como diria o povo cênico, então que tal transformar minhas
aventuras em um livro? Sabe quando você fica com frio na barriga e
mesmo assim parece eufórica? Pois é, era exatamente assim que
me sentia quando peguei o notebook e comecei a escrever
frenética. Primeiro,o título...Tamborilei de leve meus dedos nas
teclas. Se misturaria um pouco da minha vida e da minha vontade
de mudar tudo isso… O melhor nome seria… Claro! Eureca! “Virei o
jogo”! Agora você deve ter juntando as peças, não é? O manuscrito
terá muita ficção e boas doses de exagero, mas vou deixar que
vocês decifrem sozinhos, afinal qual é a graça de se contar
exatamente a verdade, hein? Sorri comigo mesma, talvez estivesse
encontrando um caminho na minha vida.
Ainda precisaria ler a mensagem do Guilherme antes de ir à
empresa assinar a demissão, mas, por enquanto, curtiria essa
minha inspiração e escreveria até meus dedos pularem da mão,
precisava disso. Necessitava de uma motivação que me empurrasse
para frente, não poderia fazer ninguém de bengala ou muleta. Se
gostava de verdade do Gui ou se minha amizade com Edu voltaria
um dia ao normal era algo que teria que descobrir sem essa
pressão.
C 41

Senti-me um merda depois da tentativa fracassada com


Solena, mas o que me deixou mais triste, e até puto, é que jamais
imaginaria que ela estivesse afim de outro cara. Ela teve um milhão
de oportunidades para me contar sobre essa tal festa, esse chefe e
o vídeo, mas escolheu fazer isso no exato momento em que a beijei.
Soquei a parede de raiva.
Desde a primeira vez que a vi no ônibus, com os fones do
ouvido, cantando toda descontraída e louca as músicas de seu
MP3, quis para mim. Éramos perfeitos juntos, como ela não viu
isso?! Amava cada centímetro seu, curtia até mesmo sua forma
desinibida de enfrentar o mundo, os palavrões que ela falava e dos
quais eu fingia que implicava, mas no fundo gostava. Nunca havia
conhecido uma mulher tão adorável e autêntica. Se estou
apaixonado? Bem, acho que não teria como negar. Não tenho a
mínima vergonha de dizer que estou caidaço por aquela doidinha!
Quando a amiga dela me enviou aquela mensagem, que dizia
que a Sol precisava de mim, não hesitei.Sem pensar em mais nada,
pedi ao meu primo as chaves da moto e da sua casa em
Mangaratiba emprestadas a fim de levá-la para longe do que a
atormentava. Leonardo é um cara maneiro, crescemos juntos e
sempre torceu para que eu deixasse de ser um mulambo, fora de
órbita e que me acertasse com alguém que me fizesse bem e me
tornasse mais sociável. Julgava que Solena era essa pessoa, aliás
era mais, era quase um sol particular, que iluminava meus dias e
aquecia meu coração. Ri amargamente da maneira melosa com que
andava pensando, quem diria, hein, Eduardo? Logo eu, que nunca
acreditei nessas coisas de amor, estava aqui falando palavras como
“aquece meu coração”, fala sério?!
No momento em que a vi sentada no meio-fio, tão triste e
desamparada. Quis pegá-la em meu colo e matar quem fosse o
responsável pelas suas lágrimas e sua tristeza evidente. Ela não
merecia isso, e não é por estar caído por ela. Solena é daquele tipo
raro de pessoas, sem frescuras e “não-me-toques”, ela é uma boa
pessoa, mas não é de levar desaforo para casa. Ela encantava as
pessoas à sua volta sem o mínimo esforço, e era exatamente isso
que fascinava quem convivia com ela. É claro que não podia negar
que era bonita, no entanto o que era mais belo nela era o espírito
livre, a alma que reluzia de energia. Fora isso que me encantou, e
perceber que alguém foi capaz de tirar o sorriso dos seus lábios,
deu raiva e um sentimento de proteção que jamais sonhei possuir
antes de conhecê-la.
Fiquei radiante por ela ter aceitado ir comigo, confiando em
meu plano maluco de última hora, sem ao menos questionar onde a
levaria. Ela se deixou entregue em minhas mãos e me senti um
verdadeiro herói, o cara dos caras! Afinal, carregava na garupa da
moto a garota mais legal do Rio de Janeiro e com a importante
missão de trazer de volta seu sorriso roubado.
Imaginei cada detalhe, precisava mostrar para ela minhas reais
intenções sem assustá-la. Amava sua amizade, mas não queria
apenas isso. Sou um pouco mais novo que Solena e sei que muitas
vezes ela considera o que digo como brincadeira, entretanto queria
mostrar que poderia ser uma opção para seu coração, se assim ela
desejasse. Quando nos beijamos na praia e ela não correspondeu,
minha autoconfiança foi ao chão e, junto com sua explicação, foram-
se minhas esperanças. A merda toda dessa história é que suas
omissões foram como punhaladas, como se a minha garota tivesse
se tornado uma estranha. Se ela me desse uma oportunidade, até
passaria por cima disso e tentaria conquistá-la, mas vi que seria
inútil, era perceptível que ela gostava do tal vacilão do trabalho. Se
pudesse, socaria a cara desse bundão.
Estava prestes a sair para a faculdade, quando meu celular
sinalizou uma nova mensagem. Era de Solena. O coração deu uma
falhada, os sentimentos se misturavam, cogitei nem respondê-la,
queria um tempo. Mas não resisti e abri o aplicativo com meus
dedos pegajosos de suor. Parecia um adolescente, era assim que
me sentia ao seu lado.
Sol: Edu... Está por aí?
Edu: Oi, Sol. Tô aqui, estou saindo para a faculdade, tudo
bem?
Sol: Você me perdoa? Ainda seremos amigos.
Edu: Não esquenta, Sol. Me dá tempo pra digerir o passa fora.
Sol: Edu, precisamos conversar, não precisa ser assim. Você é
muito importante pra mim, não some da minha vida.
Demorei a responder, olhando para a última mensagem com
olhos marejados.
Edu: Você também é importante pra mim, mas preciso colocar
as coisas no lugar, entende? Eu te amo, Sol, e não é como amigo.
Te desejo, quero te beijar, abraçar e te proteger do mundo. Não sei
se consigo ser apenas seu amigo, não sei se aguentaria ver você
com outro cara numa boa.
Sol: Me perdoa, por favor?
Edu: Beijos, Sol. Vou ter que sair agora.
Depois que digitei isso, quis bater minha cabeça na parede de
arrependimento.E se ela sumisse da minha vida? O que era pior, tê-
la apenas como amiga, ou não tê-la mais em minha vida? Merda!
Sou um babaca mesmo.
Sol: Tudo bem, Edu. Beijos.
Meu coração se comprimiu. Sentia que havia algo de muito
errado e que nada seria como antes. Eu tinha perdido a Solena para
sempre.
C 42

Era triste e, mesmo com coração aos pedaços, não insistiria


com Edu, sabia que tinha magoado seus sentimentos, mas seria
muito pior ter permanecido na mentira, com a iminência do
sofrimento de ambos. Resolvi não visualizar e nem responder
Guilherme. Precisava acertar os ponteiros do meu relógio interior,
necessitava resolver minha vida e reescrever minha história de
maneira a não usar ninguém como escudo. Afinal, existem horas
nas quais as pessoas são obrigadas a crescerem e enfrentarem
seus próprios erros, e só depois tentar fazer as escolhas certas.
Estava tentando fazer as minhas de uma maneira sensata.
Minha ida ao RH para acertar minha saída ocorreu sem
dramas. Fui cedo, antes mesmo do horário de expediente das
meninas, não me depararia com ninguém. Já não me sentia mais
tão triste e perdida com o fim do meu emprego, até reconhecia que
um peso de grande carga sumira das minhas costas. O dinheiro da
saída e mais o seguro-desemprego me trariam certa tranquilidade e
estabilidade por um tempo. Uma luz começava a brilhar no fim do
túnel, finalmente! Esperava que essa luz não fosse um trem
desgovernado que me atropelaria no fim das contas. Olá
pessimismo!
Dona Sônia, vulgo mãe, apoiou-me quando contei tudo o que
aconteceu no trabalho e que tentaria escrever um livro nesse tempo.
Senti que ela ficou aliviada de ver que estava longe daquele
emprego chato, que, segundo ela, apagava minha alegria ano após
ano. Quem sou eu para contrariar a sabedoria materna? Por
enquanto, nada nos faltaria, pois minha demissão tinha me
proporcionado uma boa poupança, tinha dez anos de casa e recebi
a multa pela rescisão. Ah! E não foram tempos de mudança só em
minha vida. Dona Sônia tomou coragem e pediu Santiago em
casamento! Isso ai, ela quem pediu! Ele viria morar conosco em
breve, ou seja, mais uma pessoa para ajudar nas despesas, ufa!
Descobri nesse ínterim o quanto ele era legal e que gostava de
verdade da minha mãe, tinha feito amizade com meu gato e olha
que Sardinha é um felino muito seletivo quanto às amizades. Se ele
foi aprovado pelo pulguento e pela dona Sônia, logo tinha também
conquistado minha confiabilidade.
O meu trio preferido de amigas superpoderosas continuava
elétrico no Whatsapp. Era assim que eu ficava por dentro das
últimas fofocas, mesmo estando à distância. Confesso que nos
primeiros dias senti falta daquela rotina que tinha, mas depois de um
tempo, fiquei bem animada com a história promissora que se
formava em minha mente. Enfim colocava em primeiro lugar a
realização de um projeto que sempre quis, meu livro ganhava forma
dia após dia e estava orgulhosa de mim.
Eduardo estava cada vez mais afastado de mim. Apesar da
dor de perdê-lo como sempre temi, acho que foi melhor para ambos
eu ser honesta. Brincar com os sentimentos dele seria muito pior,
jamais me prestaria a esse papel.

Estávamos no fim do mês de junho. Completei trinta e dois


anos, ainda solteira e morando com minha mãe e meu gato e,
futuramente, com um padrasto. Comemoramos com um bolo e uma
festinha simples em casa, com a presença das minhas amigas. A
diferença da Solena de 31 para a de agora é que estava correndo
atrás dos meus sonhos sem neuras de achar que precisava de
homem para me completar. Joguei minha vida amorosa nas mãos
do senhor destino e de Deus, apesar de ainda sentir falta da
amizade do Edu e da presença constante e beijos do Guilherme.
Por falar nele, tinha sumido, talvez tenha entendido minha falta de
resposta como desinteresse. As meninas nem falavam mais nele, e
eu nem insistia, tentando esquecê-lo. Mas, ainda doía.

Coincidentemente, em julho começava um evento literário


mundial, onde os autores usavam um site para se ajudarem a
cumprir metas diárias, o tal de CampNaNoWriMo. Animei-me com a
possibilidade de poder trocar ideias com outros autores e arrumar
um estímulo para ir em frente com meu projeto “Virei o jogo”. Entrei
em um grupo de escritoras que me ajudariam nessa aventura no
mundo literário; era engraçado, pois havia pessoas ali que, como
eu, não tinham tanta experiência e outras que já eram veteranas.
Assim, juntamo-nos com intuito de apoiarmos umas às outras. Era,
ao mesmo tempo, emocionante e divertido!
Ah! Sabem aquela autora do Wattpad que contei para vocês
alguns capítulos atrás. Aquela que havia mandado mensagem, a
Amanda Bonatti? Foi outra pessoa que virou não só uma grande
amiga, como uma apoiadora da minha decisão de me tornar uma
colega de profissão. Nós nos falávamos quase que diariamente.
Sentia-me em casa em meio à literatura, e foi assim que, de grão
em grão, de capítulo em capítulo, foi nascendo um sonho que criava
asas através dos meus dedos e da minha imaginação. Misturava
minhas trapalhadas reais com imaginárias, personagens criados
com “nuances” de pessoas existentes e confesso que estava
gostando do esboço geral do que estava saindo! Sentia-me
orgulhosa e revigorada a cada vez que terminava um capítulo.
Escrevia por horas durante o dia e, às vezes, até altas horas da
noite. Chegava exaurida ao fim de cada jornada, todavia também
muito feliz. Isso ajudava a amenizar a dor de cotovelo por
Guilherme.

Santiago se mudou finalmente em uma sexta-feira de meados


de julho e todos os dias nós três (quatro! Contando com o Sardinha)
nos reuníamos à mesa durante as refeições para bater papo em
família sobre quase tudo. Eu me sentia feliz e à vontade com aquela
nova presença entre nós. A felicidade de dona Sônia era evidente
pelo brilho incandescente em seu olhar. Lembra que ela tinha um
bom humor matinal irritante? Pois é, tinha piorado! Ela acordava e ia
dormir com um sorriso bobo no rosto. Em uma dessas ocasiões, em
mais uma das minhas crises de mau-humor, disse para ela tomar
cuidado ou ficaria com a cara paralisada naquela expressão
abobalhada. Obviamente,ela não me deu à mínima, e ainda ganhei
um tapa na bunda. Minha mãe me chamou de invejosa, rindo
consigo mesmo da façanha. Dá para acreditar nesse abuso?

Um final de semana em que saí com minhas amigas, contei


toda a verdade sobre o namoro de mentira com o Eduardo e
também sobre desfecho na praia. Ficaram chocadas, claro, mas
entenderam minha reação. Outra lição que aprendi nesse caso, se
tivesse sido incisiva em minha opinião com minhas amigas sobre
minha situação amorosa e contado sobre os sentimentos
verdadeiros pelo Guilherme, elas teriam me apoiado e respeitado
sem querer me meter em furadas. Não me arrependia, pois gostei
daqueles dias de “namoro de mentira”.
C 43

Era sexta à noite e estava jogando buraco com minha mãe e


Santiago na sala, quando a campainha tocou. Pensei que seria o
trio vindo me ver, mas minha cara de surpresa deve ter sido hilária
ao me deparar com a imagem imponente (e de tirar o fôlego) de
Guilherme, usando roupa social, cabelos ligeiramente desalinhados.
Ele exibia um sorriso encabulado, em suas mãos carregava um
buquê de lírios brancos; sua barba, sempre bem-feita, estava
crescida e seu aspecto geral estava um tanto abatido. Permaneci
por alguns instantes estática, sem palavras. Meu coração parecia ter
acordado do coma e dava sinais de estar mais vivo que nunca. Não
sabia se falava com ele do lado de fora ou o convidava para entrar.
Minha mãe, notando que eu estava aparvalhada, resolveu meu
problema chegando atrás de mim e o convidando para entrar. Pqp!
Só o que faltava! Como essa criatura me faz uma dessas?
— Boa noite, rapaz. Sou a mãe da Solena. Entre, vejo que é
amigo dela. Amigos da Solena são sempre bem-vindos aqui —
exclamou, fechando a porta atrás dele.
— Boa noite. Obrigado.
— Prazer, meu nome é Sonia, e aquele ali na mesa,
esperando por nós, é o Santiago, meu esposo. Estávamos jogando
buraco, quer se juntar a nós? — Minha mãe convidou e arregalei os
olhos como quem diz, a velha pirou?! Nem conhece o cara e já vai
mandando entrar... Só minha mãe mesmo! E se ele fosse um
psicopata? Ok. Um psicopata lindíssimo, mas ainda assim
psicopata! Tá, to exagerando um pouco... Força do hábito.
— O prazer é todo meu, sou Guilherme. Sou... digo, fui... —
Gui tentou se explicar, mas não conseguiu completar. Ele parecia
um tanto nervoso.
— Guilherme era meu chefe no trabalho, mãe. — Resgatei-o
das garras da minha mãe e frisei bem o nome para que ela
soubesse de quem se tratava. Estava careca de saber sobre o
“Miragem”.
Ele sentou ao meu lado no sofá, ali naquele ambiente que era
meu habitat natural. Senti minha pele avermelhando, tímida (Oi?
Você tímida, criatura? Se enxerga!). Vi quando Santiago e dona
Sônia cochicharam e sorriram. Certamente estavam se divertindo
com minha cena de constrangimento.
— Vim para vê-la, saber como está. Senti saudades, Sol... —
começou a falar, mas notei que estava sem graça com a presença
deles ali.
— Ééééé... Sônia preciso te mostrar uma coisa lá no quarto,
vem comigo? — Santiago pigarreou e puxou minha mãe, deixando-
me a sós com Guilherme. Valeu papito...
Ficamos em silêncio até os dois sumirem de vista. Quando
ouvimos o clique da porta, nossos olhares se encontraram. Remexi
minhas mãos no colo de nervoso. Guilherme se aproximou um
pouco mais de mim de tal forma que meu coração passou a martelar
em meu peito e senti um frio no estômago. Quantos anos eu tinha
mesmo? Não perde a linha, Solena.
— Essas flores são para você. — Quebrou o silêncio ao me
entregar o buque de flores que estiveram esquecidas em seu colo.
— Obrigada — agradeci, levantei do sofá, peguei as flores de
suas mãos e levei até um vaso no centro da mesa onde Sardinha
estava deitado. “Enxerido nem tinha se dado trabalho de sair e nos
dar licença como minha mãe e Santiago haviam feito”. Quando
sentei novamente, virada para ele, recomeçou a falar.
— Sabe, eu não parei de pensar um só minuto naquele beijo...
Imaginei milhões de formas de começar essa conversa e, agora que
estou na sua frente, as palavras me fogem, parece que voltei à
adolescência — falou, passando a mão pela barba e sorrindo sem
jeito.
— Hum... Agradeço as flores, Guilherme, são lindas, mas não
entendo o que veio fazer aqui e onde essa conversa vai nos levar.
Você já me pediu desculpas, e aceitei, entendi que se arrependeu
de me beijar daquele jeito na frente de todos... Se for pelo meu
perdão que veio, está perdoado, pode ficar em paz — disse, as
palavras saindo mais ríspidas e magoadas do que tencionava. Mas
pelo menos saíram, e me senti até mais leve.
— Não é nada disso. Você entendeu meu pedido de desculpas
errado, Sol. — Passou as mãos nervosamente pelos cabelos.
— Então vamos lá, o que entendi errado, Guilherme? A
demissão entendi bem, você era meu chefe e estava cumprindo
ordens, ok. Não ter ido atrás de mim ou me procurado depois disso
também foi bem esclarecedor. O que diabos quer dizer com “entendi
errado”? — indaguei destacando as últimas palavras.
— Sol, eu te amo... — afirmou, olhando bem dentro dos meus
olhos. Pausou quando viu a minha cara surpresa. Abri a boca para
falar, e as palavras não saíram, então continuou. — Nenhuma
desculpa ou justificativa é o bastante para as merdas que fiz. Fui
covarde em não a ter procurado, não era pra ter sido daquele jeito...
Mas estou aqui para dizer mais uma vez o que sinto. Aliás, o que
sempre senti. Dessa vez da maneira certa, porque sei que vai
lembrar amanhã, quando eu for embora. Mesmo que me odeie, vai
saber que não sou um completo babaca, mas sim um cara que erra,
que não te usou. Eu sempre te amei, porra! — exclamou a última
parte baixinho, passando as mãos pelo rosto emocionado.
— Opa, perai! Calma aí! Vamos devagar que não estou
conseguindo acompanhar... Como assim “dizer mais uma vez”? Oi?
Onde perdi essa parte? Quando disse a primeira vez? Bebeu? —
perguntei confusa. O resto das palavras me soaram como um
chiado. Foquei no “mais uma vez” para não surtar. Isso só poderia
ser um sonho muito doido.
— Mais uma vez, Sol, pois no dia da festa, quando te trouxe,
eu falei o que sentia. O quanto amava o seu sorriso, sua maneira
leve e engraçada de levar a vida, cada curva do seu corpo e te disse
que se você me aceitasse jogava tudo para o alto por você, inclusive
aquele emprego de merda —revelou, alcançando minha mão que
estava caída ao lado do meu corpo.
Ele ajoelhou à minha frente. Arregalei os olhos assustada, sem
palavras, sem ação, congelada. “O que estava acontecendo? Que
reviravolta era essa, minha gente!”Minhas mãos tremiam, e ele
ainda as segurava entre as suas. Depositou um beijo doce sobre
elas e me encarou com olhos cheio de amor.“Cheios de amor?
Que???”
— Então, da maneira certa, vim aqui hoje para pedi-la em
namoro, para ser o meu Sol. E mesmo que não me aceite, e
entendo completamente, afinal fui um babaca por tanto tempo que
sei que não te mereço — revelou com olhos marejados —, ainda
assim precisava te ver. Tentar, mesmo que saia daqui sem nada,
pelo menos estarei vencendo minha covardia.
Eu permaneci olhando para ele estática. Então não fora uma
alucinação de uma mente ébria aquela lembrança?! Recordei que,
no dia seguinte, depois de ter colocado meus bofes para fora, tive
várias lembranças do dia da festa e uma delas foi o Guilherme se
declarando, mas achei que era loucura, afinal quem sou eu na fila
do pão? Ainda me parecia loucura ver o cara que sempre foi meu
“Miragem”, que bagunçou minha vida e fez estrago no meu coração,
ajoelhado aqui me pedindo em namoro. Isso está tão clichê, tão
anti-Solena! Eu hein...
— Não entendo, Guilherme. Por que demorou tanto? Por quê?
— perguntei com meus olhos enchendo-se de lágrimas. — Foram
meses achando que você não sentia nada, que era completamente
alheio aos meus sentimentos, e agora está aqui ajoelhado, se
declarando. Por que tanto tempo de silêncio? — Terminei de falar,
largando sua mão e secando as lágrimas que caíam do meu rosto.
Meu corpo estava trêmulo, respirei fundo várias vezes tentando me
acalmar.
— Quando disse que largaria tudo por você em nenhum
momento falei da boca para fora, Sol. Na ocasião em que te demiti,
fui atrás de você, mas quando cheguei na portaria e te vi indo
embora com aquele... Eduardo — respirou fundo, ele parecia
visivelmente abalado com a conversa —, entendi que não era justo
permanecer naquele emprego se quisesse uma chance de tê-la em
minha vida, pois você pagou algo por nós dois. Eu fui tão culpado
quanto você por aqueles beijos, nunca desejei tanto beijar uma
mulher como a desejei naquele dia. Então... Demiti-me.
— Você o quê?! — Encarei-o, boquiaberta com a revelação. “O
mundo tinha virado do avesso? Como assim tinha se demitido por
minha causa? Cadê as câmeras escondidas? Isso só podia ser
pegadinha!”
— Exatamente isso, me demiti. Mandei um e-mail
encaminhado para todos os chefões e disse que tinham cometido
um grave erro em demitirem a melhor funcionária que tiveram e me
mantendo ali, mesmo com motivação, e que não era justo você
pagar por algo que fizemos juntos.
— Mas... Não!... A culpa foi minha, eu quem bebi e... —
Comecei a dizer ainda um tanto zonza com todas essas revelações.
Parecia final de filme, no qual a mocinha descobre um monte de
verdades ocultas e que tinha entendido tudo errado a respeito de
quem amava.
— Eu sempre quis seus beijos, Solena. Sempre quis você.
Senti que era um maldito filho da puta de sorte quando percebi
aquele dia que você correspondia aos meus sentimentos. Nunca fui
atrás de você e tentei disfarçar ao máximo meu interesse porque era
seu chefe. Não quis te prejudicar no trabalho e veja onde estamos...
No fim, estamos aqui com coração quebrado e sem emprego —
proferiu,secando minhas lágrimas com seus dedos quentes e dando
um sorriso triste.— Nathalie me procurou assim que me demiti. Ela
me abriu os olhos. Suas palavras exatas foram: “até que enfim virou
homem e largou tudo por ela, agora sim! Ganhou moral com a
gente. Vai atrás dela, Miragem!”
Eu ri, mesmo sentindo mais lágrimas escorrendo, era bem o
tipinho de Nat falar esse tipo de coisa. Ele continuou.
— Ela contou que o namoro com o tal do Eduardo foi uma
mentira para enganá-las e que você sempre esteve apaixonada por
mim. Pediu para dar um tempo antes de procurá-la, que talvez a
mágoa te cegasse. E acho que ela tinha razão. Tem noção do
quanto me senti idiota por nunca perceber isso? Mas era como se
ganhasse uma nova oportunidade, recomeçar da maneira certa e
aqui estou. Meu coração é todo seu, pode me mandar embora e
jogá-lo pela janela se quiser, eu mereço.
— Não precisava demorar tanto, né?! — disse, puxando seu
rosto para próximo de mim e beijando a sua boca apaixonadamente.
Ela estava perfeita como em minhas lembranças, macia, quente e
doce. Quando senti seus lábios nos meus, meu coração pareceu
dançar, vivo e feliz. Pensei nas ironias da vida, às vezes tudo
precisava que desmoronar para se erguer da maneira certa
novamente. — Mas é claro que aceito ser sua namorada! Meu
Deus, e como aceito! Espero que não seja um sonho e eu acorde
com a bunda do Sardinha na minha cara.
Gargalhamos. Minha mãe e Santiago apareceram e viram
nossa emoção e felicidade. Era hora de nos entregamos a uma
deliciosa comemoração.
— Quê? Que sardinha? —perguntou confuso.
— Nada! Cala a boca e me beija!
Eu era oficialmente a namorada do Miragem! Olha as voltas
que a vida dá. Rá! Duvido que tenha imaginado isso, pois eu nunca
imaginei!
C 44

O dia anterior havia sido intenso com a visita inesperada do


Guilherme, me senti sem órbita. Afinal, eu lutava diariamente para
esquecer aquele fatídico dia, mas pelo jeito ele não tinha esquecido
e me surpreendeu com tantas revelações e um pedido de namoro.
Disse que sempre foi apaixonado por mim. Como assim, gente?
Logo eu, a rainha do caminhão da bolacha Maria[cxix]?! O que diabos
ele viu em mim? Será que era pena, por ter me dado um pé na
bunda no trabalho? Não, né?! Nem a minha falta de autoestima me
faria crer numa sandice dessas!

Guilherme terminou a noite com o coração da minha mãe na


mão. Ela certamente tinha virado #TeamMiragem. Até Santiago
tinha gostado dele à primeira vista. Em defesa dos dois, tenho que
dizer que ver o Guilherme todo lindão, com um buquê imenso de
flores e aquele sorriso arrebatador de calcinhas, era praticamente
impossível não se encantar ou achá-lo respeitável e admirável. Ele
foi embora levando um pouco da minha sanidade dentro daquele
terno “sexy” do caralho! Estava ferrada, sim ou lógico?
No sábado, mandei uma mensagem para as meninas,
contando tudo em detalhes. Elas enlouqueceram com a novidade,
se estivéssemos perto seus gritos teriam me ensurdecido. Afinal,
elas sempre souberam que tinha uma quedinha (digo, Cataratas de
Iguaçu) por ele. Tinham presenciado o quanto sofri durante todo
esse tempo por achar que não foi recíproco e que tinha sido
demitida por uma paixão platônica. Então marquei com elas uma
comemoração em grande estilo! Veríamos juntas o show da Pitty!
Marcamos de ir à uma casa noturna badaladíssima. Shows me
faziam lembrar do Edu. Bateu uma dor no peito e saudades da
nossa amizade. Ele tinha sumido, sem ligações ou mensagens, e
como já não pegávamos o mesmo ônibus era inevitável nosso
afastamento. Ainda me sentia mal por tê-lo magoado, mas seria
bem pior se tivesse mantido a farsa apenas por medo de perder
nossa amizade. E uma coisa que sempre tive convicção na vida era
de que nada que fosse verdadeiro e forte acabava de uma hora para
outra. Se ele tinha se deixado levar pela mágoa, sem que eu tivesse
culpa, é porque nossa amizade nem era tão importante assim para
ele. Ninguém manda no coração, não poderíamos ser felizes
vivendo essa mentira. Ele havia sido o cara mais legal, gentil e
diferente que conheci na vida. Edu foi o melhor amigo que qualquer
pessoa no mundo iria querer por perto, aquela criatura que te coloca
para cima mesmo que o universo à sua volta esteja desabando.
Porém, o que houve com essa amizade? Será que era via de mão
única e para ele sempre foi algo a mais? Sempre tive medo de
misturar as estações e nos magoarmos, e tinha razão.
As horas passaram rápidas demais para o meu gosto!
Sardinha estava inquieto devido à minha ansiedade. Tentava fazer
carinho nele, mas certamente não estava ao seu gosto, pois ele
começou a morder minha mão, até estar estressado de vez e sair
disparado quarto afora sem nem olhar para trás, no encalço de
minha mãe ou do Santiago que, por sua vez, estariam lá no
aposento deles em paz e o mimariam com chamego em dose dupla,
transformando-o no rei do recinto. Traíra!
Quando a noite chegou, a expectativa e alegria tinham se
instaurado em meu coração. Guilherme ligara mais cedo
perguntando se poderia me ver hoje, mas expliquei que seria noite
das meninas. Ele me apoiou e demonstrou felicidade por saber que
sairia um pouco de casa com minhas amigas. Eu estava eufórica,
estava namorando,veria as meninas e iríamos dançar, e não era em
um show qualquer, era em um baita show do cacete do piru torto,
como dizia Nuccia. Era a Pitty, puta merda!!

Depois desse pensamento, consegui me arrumar com um


sorrisão no rosto. Meu armário estava mais abastecido, comprei
roupas novas depois que saí do emprego. Investi em mim mesma,
me julguem! Coloquei uma blusa com estampa de caveira dourada,
uma jaqueta de couro e uma saia com uma meia-calça daquela que
parecem toda esburacada e velha, mas que, na verdade, era a
última moda rockwear[cxx]. Às 19h em ponto, chamei um carro por
aplicativo e fui ao encontro das minhas doidas preferidas!
— Mãe, tô saindo! Boa noite para vocês! — informei a eles
quando fui à sala com minha bolsa a tiracolo.
— Quem te viu, quem te vê, hein, filhota! Nem parece mais
aquele tatu do mato que vivia enfurnado, devorando livros e doces.
Olha, os ETs que te abduziram estão de parabéns, fizeram um ótimo
trabalho de lavagem cerebral — minha mãe respondeu com as
sobrancelhas erguidas, divertida, colocando a língua de fora e
fazendo o sinal de “rock” com os dedos.“Olha ela começando com o
bullyng de novo!”

— Olha o bullying[cxxi], dona Sônia! —respondi, dando língua e


todos riram, o clima estava descontraído.
Minha mãe estava certa, já não era a mesma e me sentia bem
melhor com essa nova versão de mim. A gente reclama de tudo e
de todos, que nada acontece de bom em nossa vida, mas quantos
de nós enxergamos que precisamos mudar nós mesmos em
primeiro lugar para mudanças externas acontecerem? Como viraria
o jogo da minha vida sendo a mesma Solena? Não dava, né?
A noite estava linda cheia de estrelas, uma bela lua cheia
iluminava ricamente o caminho, o trânsito estava um tanto
congestionado, mas quem estava com pressa quando tudo parecia
tão perfeito? O lugar ficava no parque do Flamengo, uma das casas
de espetáculos que mais bombavam no Rio, a “Vivo Rio”. Tínhamos
ingressos disputadíssimos de camarote nas mãos, Nat estava
pegando o tal de Leo, primo do Eduardo. Depois que falei dele para
ela, nem precisou de muito esforço para que Nat desse um jeitinho
de descolar o número do boy com Edu. Seríamos as rainhas do
show! Nada nem ninguém poderia azedar minha noite, foi o que
pensei... A noite prometia!
[cxxii]
Um pequeno Spoiller do próximo capítulo: como sempre,
eu estava redondamente enganada!
C 45

Quando cheguei, paguei o motorista que era muito simpático.


Apesar de ser um docinho, ele teve que me deixar um tanto
distante, pois estava apinhado de carros, motos e vans, obrigando-
me a dar uma boa pernadinha até chegar ao local da entrada e
ponto de encontro com as meninas. Olhei para os lados, admirada
com o povo circulando. Como acharia as loucas ali? Estava
apinhado de gente! Um mundaréu de pessoas vestidas de preto; ao
invés de um show, aquilo se assemelhava a uma procissão fúnebre,
viva o rock´n roll! Na entrada, seria impossível conseguir encontrá-
las. Já sacava meu celular, quando ouvi uma voz familiar gritar...
— SOLENAAAAAA!!!!!
É, não deveriam ter outras Solenas por ali, pois só eu me virei,
revirando os olhos. À minha frente vinham Nat, Nu e Suzy, abrindo
caminho entre as pessoas para me alcançarem. Elas me
circundaram em um abraço grupal, gritando que nem hienas
desvairadas.

— Ahhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh!!! Nem acredito que


estamos juntas no show da Pitty, vaca!!! — Nu exclamou com um
sorriso gigantesco.
— Graças a Nat e o charme avassalador que jogou em cima
do primo do... ah, Sol, foi mal, não queria te fazer lembrar do Edu.
— Suzy ficou sem graça.
— Ah, Suzy! Para de besteira. Tô tão feliz que até esqueci isso
— falei, abanando as mãos como se fosse besteira. Era mentira,
principalmente ali. Sentia ainda mais saudades da amizade dele,
mas não estragaria essa noite por nada e nem ninguém. “Seja bem-
vinda, maturidade!”
— Me venerem! O gostoso realmente arrasou, ganhou vários
pontinhos com a deusa dele, já disse que o recompensarei... Até dei
uma passadinha no sex shop...
— Nos poupe dos detalhes sórdidos, Nathalie! — protestou
Suzy, fazendo careta. Todas nós caímos na gargalhada.
Caminhamos entre o mar de gente, torcendo para
conseguirmos entrar sãs e salvas sem sermos espancadas ou
pisoteadas. Nat sabia exatamente para onde nos guiar e logo
encontramos nosso facilitador de entradas e a mais nova vítima das
garras de Nat, o tal Leonardo. Ele estava trabalhando como
segurança por ali e liberou nosso acesso, após uma troca de
olhares quentes que pareciam despir Nat, os quais foram retribuídos
por uma Nathalie lambendo os lábios e jogando um beijo no ar para
o grandão que deu um sorriso sacana de tirar o fôlego de qualquer
mulher. Bem, qualquer uma menos eu, que me sentia a mais
sortuda das mulheres com o meu Miragem (agora eu podia chamar
de meu! Chupa mundo!). Entramos rápido para não provocar
confusão na multidão que nos fuzilava com seus olhares.
Dentro do camarote, nós nos acomodamos perto do bar; Nat
era prática, disse que quando enchesse mais não conseguiríamos
nos mexer, quiçá pegar bebidas, então aquele lugar seria funcional.
Quem éramos nós para discordar? Apenas sorríamos, nossas
expressões deveriam ser tipo as de crianças que vão pela primeira
vez à Disney. Bobas felizes, e era tão bom ser feliz!
— Vocês não sabem o que descobri com o Leo! Sabe aquele
show do Capital que você foi com Edu e que Camila estava com
Guilherme? — Nat disse, chamando-nos no canto. — Ele me contou
que já deu uns pega na larápia! Que ela é conhecida de velhos
carnavais, segundo suas próprias palavras. Eita mundo pequeno,
hein! — disse, revirando os olhos. — Quase desisti dele ao saber
que aquela peçonhenta tinha colocado suas patinhas venenosas
naquele corpinho, mas ele é gostoso demais pra me apegar nesse
detalhe. E digamos que não sou uma virgem pudica, né?
— Fala sério? — Nu falou ao final da leitura labial.
— Seríssimo! Pelo menos sabemos que ela tem bom gosto.
Encheu o saco do Guilherme e pegou o Leo, de dedo podre não
posso acusá-la. — Deu de ombros, indo em direção ao bar e nos
arrastando junto.
Quando foi minha vez de escolher a bebida, fiquei indecisa. E
o medo de aprontar de novo? Peguei apenas uma coca, as meninas
me olharam e riram.
— Que foi? Não quero acabar em outro vídeo no Youtube. —
Dei de ombros para a expressão interrogativa delas.
— Sábia escolha, amiga. O seu anjo da guarda agradece a
folguinha! — disse Suzy, dando um tapinha confortante nas minhas
costas.
O show não tinha começado, mas havia muita música tocando
e as pessoas dançavam frenéticas à nossa volta, então nos
deixamos entrar no clima e começamos a dançar também.
No entanto, como se só de falarem alma penada tivesse o forte
poder de invocação, quem estava lá, na pista? Adivinhem só a
minha sorte? Ela mesma! Pois é, às vezes o Rio de Janeiro
aparentava ser um ovo e não uma cidade grande. Tanto lugar para
essa mulher ir, tinha que ser logo no mesmo show que nós? Ela
estava acompanhada, mas ainda não dava para ver quem estava
com ela. Estávamos distantes e só vimos de relance a naja
agarrada em um cara. Parecia mais novo de camisa preta. Será que
tinha conseguido entrar graças ao Leo? Ele não faria isso sem falar
com a Nat, né? Merda! Se esse fosse o caso, significava que essa
mulherzinha descarada dividiria o mesmo camarote que estávamos?
Ahhhhhhhh! Eu devia ter jogado pedra na cruz mesmo!
Quando o rapaz olhou em nossa direção, meu queixo caiu, o
mundo rodou e senti como se fosse cair de bunda no chão. Quem
estava com a VacaMila era, ninguém mais, ninguém menos, que...
Pasmem! Eduardo. Meu amigo, ou ex-amigo, sei lá. Ele deu me um
sorriso amarelo, o qual nem retribui. Se era alguma vingança por tê-
lo dispensado como namorado, pegou pesadíssimo. Afinal, Camila
tinha me humilhado inúmeras vezes, fez com que fosse demitida e
ainda tentou se sair de boazona no banheiro, tripudiando da minha
desgraça. O.K., ele não sabia disso, ou pelo menos eu torcia para
que não soubesse. Então, o som foi silenciado, o mundo parecia ter
parado, mas era só a banda dando início ao show, enquanto eu
ainda os olhava, estarrecida. Começou a tocar “Máscara” e nem em
filme colocariam uma trilha sonora tão perfeita.
“Diga quem você é, me diga, me fale sobre a sua estrada, me
conte sobre a sua vida. Tira a máscara que cobre o seu rosto, se
mostre e descubra se eu gosto do seu verdadeiro jeito de ser...”[cxxiii]
— Sol? — Nat ergueu uma sobrancelha inquisitiva, não
entendendo porque eu estava estática e olhava a pista como se
tivesse visto um fantasma.
— Putaquepariu! Vou matar o Leonardo. Não acredito que deu
ingresso para aquela vaca! — Nat ficou vermelha de raiva.
—Caralho do céu! É o Edu com ela, Sol? — Nu falou, tapando
a boca que tinha se aberto de espanto.
— O.K. Vamos para o outro lado antes que ela nos veja então.
— Suzy nos puxou para o lado oposto onde Camila dançava se
esfregando em Edu.
Agora, com a distância entre nós ampliada, peguei-me um
tanto trêmula e sem chão. O que Eduardo fazia com aquela mulher?
Não era possível ser coincidência, né? Será que o tal do Leo contou
para o Eduardo que viríamos e ele resolveu aprontar essa
vingancinha ridícula? Ele era meu melhor amigo! O que faziam
juntos? Tentei prestar atenção nas músicas que rolavam a toda, as
meninas me olhavam penalizadas com a situação. Elas sabiam o
quanto gostava do Edu, o quanto isso me soava como uma traição.
Não que ele não pudesse seguir em frente, claro que podia, devia!
Eu torcia para que ele fosse feliz, assim como estava feliz com meu
namoro com Gui, mas isso me soou como uma afronta, vingança
por algo que não tinha controle. Eu não mandava na porra do meu
coração. Eduardo estava com orgulho ferido e deve ter sabido do
meu namoro pelo primo ou sabe-se lá Deus como! E resolveu que
se vingar, sair com a Camila devia ter soado como a melhor ideia do
mundo. Que infantil! Como posso ter me enganado tanto?
Eles tinham sumido de vista. Eu agora curtia o som de Pitty,
maravilhosa, cantando seus maiores sucessos. Comecei a me
liberar, dançar e cantar junto a plenos pulmões. Era fã dessa mulher,
caralho! Foda-se, Eduardo! Foda-se essa amizade de mentira!
Porém, quando estava de olhos fechados e comecei a cantar “Me
adora”, em coro com as meninas, bem alto para exorcizar o
momento, senti a mão de alguém me puxando. Abri os olhos
confusa, julgando que fosse delas e me deparei com Eduardo.
— Oi, Sol. Tudo bem? Lembra? Essa era a nossa música! —
Os olhos dele estavam vidrados, senti o cheiro pungente de álcool
em seu hálito. Seu olhar estava em minha boca. Se não estava
entendendo errado, pressenti sua aproximação para um possível
beijo.
— Edu! Você está louco?! Bebeu e perdeu a noção? Cadê a
sua acompanhante? — quase gritei, tentando me esquivar dele no
meio da multidão.
— Eu te amo, Sol. Porque fez isso comigo? Porque me trocou
por aquele playboy? Eu só queria uma chance! — falou, me
segurando, completamente descontrolado e alcoolizado. Senti pena,
mas também nojo de sua atitude.
— Não fiz nada, Edu. Nunca te prometi nada além da minha
amizade. E veja o seu estado, pelo amor de Deus! Cadê o seu amor
próprio? Olha a ceninha ridícula que está fazendo! Eu não mereço
isso, sempre te respeitei — bradei raivosa por estar passando por
mais essa. Será que o álcool sempre faria estrago na minha vida?
— Fica comigo, Sol! Ele não vai te fazer feliz como eu. — Sua
voz saiu engrolada e chorosa. A nossa volta, todos pararam para
olhar o show particular que Eduardo estava dando. Queria sumir, me
enfiar no chão.
— Eduuu!!!! — ouvi a voz de Camila chamando por ele logo
atrás. — Fala sério que veio atrás dessa baleia? Tendo essa sereia
aqui do lado! — revirou os olhos.— Solena, você nunca me
enganou. Você é sonsa. Brinca com as pessoas como se fossem
brinquedos e depois euzinha que sou a ruim! — sibilou, agarrando-
se nele, fingindo indignação, quando era evidente que ela própria
tinha criado essa situação.
— Será que não vê que essa mulher tá te usando, Eduardo?
Você é tão manipulável assim?! Sempre te amei como amiga, nunca
te iludi! E se acha que brinquei com os seus sentimentos é sinal
claro que nunca me conheceu de verdade — Eu me defendi, vendo
que Camila mantinha um sorriso cínico nos lábios.
Ele se afastou de mim com os olhos marejados de lágrimas e
senti em meu rosto lágrimas de raiva por, mais uma vez, Camila
ferrar com algo em minha vida. Primeiro tirou meu emprego, agora
levava embora meu amigo. As meninas me abraçaram e me
levaram dali.A noite tinha acabado.
Foi uma luta para chegarmos à saída. Tropecei algumas vezes
e quase derrubei as pessoas que permaneceram no meu caminho.
Meus olhos flamejavam de ódio e decepção. Esperaria isso de
muitos homens, mas do Edu? Nunca! Jamais! Bem feito para mim
por acreditar assim nas pessoas sem nem ao menos as conhecer
tão bem. Afinal, fazia quanto tempo que era amiga do Edu? Quatro
meses? Só porque ele era legal, não quer dizer que não fosse
infantil ou manipulável. Peguei meu celular e abri o aplicativo para
chamar um carro e sair daquele pesadelo. Ainda bem que nessas
horas existia essa opção, já vez que táxi a essa hora seria
impossível e caríssimo.

O carro não tardou a chegar. As meninas foram comigo


silenciosas, sabiam que não tinha nada para fazer além de me
oferecerem seus ombros e compreensão. Cheguei à minha casa e
elas se ofereceram para ficar comigo, mas neguei, queria ficar
sozinha, digerindo mais essa picada da cobra.
Notei que as luzes todas já estavam apagadas.
Provavelmente, minha mãe já tinha se recolhido com o marido, já
que esperava que eu chegasse muito tarde. Sardinha devia estar
aboletado no conforto do quarto do novo casal. Melhor assim, não
queria explicar para ninguém nada do que havia acontecido naquela
noite. Só precisava dormir e esquecer o mundo.
Adormeci com dificuldade depois de cansar de tanto chorar; já
tinha me conformado em não ter o Edu em minha vida, não
precisava dessa decepção. Poderíamos ter ficado apenas com os
bons momentos, mas a naja roubou até mesmo isso. Que ódio! A
noite havia sido longa demais. O telefone apitou algumas, muitas
vezes ao longo das horas que passei olhando para o teto, refletindo.
Não fiz questão de ver quem era, tinha uma vaga noção de quem
poderia ser. Não havia desculpas que ele pudesse dar que eu
aceitaria. Ele era infantil demais, tinha feito suas escolhas, eu as
minhas. Nossa amizade se foi como uma folha ao vento e se perdeu
para nunca mais voltar.
C 46

Tomei uma decisão. Peguei o celular, cheguei nos contatos do


Whatsapp e bloqueei o Edu. Não queria desculpas esfarrapadas e
nem melodramas ou despedidas desnecessárias. Viraria logo
aquele capítulo de uma vez por todas, sem olhar para trás. O bom
de ser geminiana é que você pode chorar todas as mágoas
possíveis em uma noite e no outro já estava com ânimo de
recomeçar tudo de novo. Não me esqueci do Facebook, lá também
bloqueei o filho da puta e sua cobrinha de estimação, não queria
mais ver as fuças daquela desgraça da Camila na minha frente, nem
pintada de ouro. Se a visse, com certeza acabaria em uma
delegacia do meio ambiente por maus tratos a animais.
Sentia dor no peito por ter perdido a amizade daquele que
achei ser tão legal e também por ter ganhado uma decepção tão
grande, mas fazer o quê, né? A vida era cheia dessas surpresas,
umas agradáveis como o Guilherme e outras não tão agradáveis
como Eduardo e outras intragáveis como a Camila. Meu celular deu
sinais de vida e meu coração se aqueceu quando vi que era
Guilherme
Gui: Bom dia, meu amor! Como foi a noitada com as meninas?
Sol: Bom dia! Não muito boa, mas sua mensagem melhorou
meu dia.
Gui: Ué, estava tão animada. O que houve?
Sol: Assombrações.
Gui: Hã? Não entendi.
Sol: Encontrei por lá a Camila e ela estava com Edu. Foi
tenso.
Gui: Que merda, hein? Quer que vá até ai agora? Ela fez
alguma coisa contra você?
Sol: Estou vacinada com veneno dela, mas dói perder um
amigo.
Gui: Estou indo aí!

Encantei-me com seu jeitinho protetor, esse era o mesmo cara


que me levou para tomar água de coco e aliviar minha ansiedade. O
cara que era lindo por fora e maravilhoso por dentro. Não era à toa
que tinha me ganhado por inteiro, nunca me senti tão feliz por tê-lo
em minha vida. Puta que pariu, que sortuda eu era de ser sua
namorada!
Sol: Obrigada, amor! Até já.
Gui: Até daqui a pouco, my sunshine!
Ri com apelido, saboreando as palavras em meus lábios.
Sunshine. Brilho de sol. Amei!
Tomei um banho, escovei os dentes e me arrumei para esperar
meu namorado, que doido isso! Meu namorado! Quem diria, hein?
Olhei as mensagens das meninas que estavam preocupadas, mas
acalmei-as, dizendo que estava bem e que ficaria em ótima
companhia nesse domingo.
Não tardou para que Guilherme chegasse. Ele trouxe flores
novamente, esse homem me mimava demais e eu estava amando
isso! Dessa vez foram girassóis vivazes para dona Sônia, um
ratinho de pelúcia para o Sardinha e uma bela caixa de trufas para
mim, esse sabia agradar em todos os sentidos! Meu coração e meu
estômago estavam caídos de amores por Miragem e seus mimos. E
a família toda tinha se tornado fã dele, até mesmo Sardinha, o gato
mais difícil das galáxias, estava caidinho de amores por meu
namorado!
Passamos um dia agradável, almoçamos com minha mãe e
Santiago e assim nos conhecíamos um pouco mais, fora do
ambiente de trabalho. Guilherme era divertido, inteligente e muito
carinhoso, sentia-me amada e protegida ao seu lado. Passamos o
restante da tarde assistindo séries, abraçados entre beijos,
chocolates e risadas.

Meu livro fluía, agora que minha vida estava no rumo certo.
Passava horas e horas escrevendo; quando não estava com o
notebook, estava com Guilherme, lendo ou com as meninas. Gui
passou a ser presença constante em minha vida e me apoiava em
meu sonho. Eu sorria à toa. Estava feliz que nem pinto no lixo!
Estava finalmente vivendo. Emprego? Não estava tão preocupada,
ainda tinha meses de seguro e dinheiro na poupança. Viveria esse
sonho que era escrever meu livro, minha história, era tão excitante.
Era agora uma escritora! Minha mãe e Santiago estavam se virando
bem sem mim no quesito despesas e senti o peso sair um pouco
das minhas costas. Seguia meus sonhos, vivia um amor, curtia meu
tempo com as pessoas que eu amava e que me amavam. Estava
finalizando outro capítulo, quando recebi uma mensagem. Era do
meu Miragem. Meu, meu, meu! Todinho meu.
Miragem: E aí? Será que minha escritora preferida, topa dar
uma voltinha?
Sol: Como posso ser sua escritora preferida se nem terminei o
livro, seu bobo?
Revirei os olhos depois que digitei a resposta, sorrindo que
igual a uma besta.
Miragem: Tenho absoluta certeza de que será um sucesso.
Até porque se esse livro consegue te roubar de mim, ele tem que
valer muito a pena. Não disse se topa.
Sol: Acabei de finalizar um capítulo, acho que posso tirar uma
folguinha.
Miragem: Deus seja louvado! Até mais tarde então, vou contar
os minutos daqui até a hora de beijar sua boca de novo.
Fiquei sem fôlego e sem fala com essa última frase.

Sol: Aiii, aiii acho que logo mudarei o gênero do meu livro se
continuar me falando essas coisas! — gargalhei.
Miragem: Mulher não me faz te sequestrar agora mesmo,
porque tenho planos e não posso ceder a essas tentações nesse
momento. Você me deixa louco, my sunshine.
Sol áudio: Me manda um áudio me chamando assim? — Pedi
dengosa. Eu amava ser chamada assim por seu timbre forte e ao
mesmo tempo sedutor.
Miragem áudio: — My sunshine, ai,Sol, como te quero. — ele
falou com a voz rouca de desejo, estremeci e me arrepiei toda. Ai
que homem delicia!
Sol: Eu vou ficar ouvindo esse áudio até você chegar, você me
deixa doida, Guilherme.
Miragem: Não me tenta, te sequestro, uma semana sem sair
com a cara na rua. Eu, você e uma cama.
Sol: Pelo amor de Deus, Guilherme! Para de falar essas
coisas, preciso de um banho frio!
Miragem: Puta que pariu, e agora como fico imaginando essa
cena?
Sol: Você quem provocou, agora aguenta!

Miragem: Beijos, amor, até mais tarde.


Sol: Agora quem tá contando os minutos sou eu.
Passei o resto do dia mais agitada que milk-shake caseiro.
Pegava um livro e não me concentrava, tentava ver uma série e não
conseguia… A todo o momento vinha a imagem do Guilherme em
meus pensamentos, todo lindo e maravilhoso, agarrando-me pela
cintura e me dando um beijo daqueles de tirar o fôlego;cenas mais
quentes, proibidas para menores e que não cabem em um chick-lit
também dançavam em minha cabeça.
Resolvi que me daria um trato antes de encontrar com
Miragem, eu tinha que estar poderosa para sanar os problemas que
ficaram no ar com aquela conversa. Fui para o banho carregando
um “kit” de emergência que raramente usava. Nele tinham uns
cremes faciais, esfoliante corporal e para o rosto, apetrechos para
fazer a unha e máscara hidratante para os cabelos, ou seja, um "kit
[cxxiv]
mulherzinha" dado pela minha BFF Nat, em um amigo oculto de
Natal. Na época, torci o nariz, não sou dada a essas coisas. Mas
naquele momento fiquei grata, esse kit pareceu ter caído do céu.
Minha mãe até bateu à porta do banheiro para saber se estava
viva, e quando me viu sair, olhou com cara de surpresa e
aprovação. Minha mãe sempre disse que precisava me cuidar mais,
que era muito moleca e necessitava de um toque mais feminino. Ela
mesma era mais vaidosa que eu, ia com frequência ao cabeleireiro
e fazia as unhas semanalmente. Eu? Bem… Digamos que a última
vez que tinha feito minhas unhas e meus cabelos havia sido para
aquela festa e só porque fui obrigada pelo trio naquela operação
transformação.Parecia ter rolado há séculos tudo isso! Onde será
que o Guilherme me levaria? Um arrepio de expectativa percorreu
meu corpo e corei com os pensamentos de que talvez precisasse
muito mais do que apenas meu jeans básico e uma blusinha
qualquer. Peguei o vestido azul da festa de primeiro de maio. Era
repetir roupa, mas quem ligava para isso? Até as princesas repetem
roupa, não acredita? Então procura no Google as princesas da
Inglaterra!
Quando enfim estava pronta, dando últimos retoques na
maquiagem em frente ao espelho, a campainha tocou. Borrifei em
mim o perfume com cheiro refrescante de maracujá, amava o toque
frugal. Conferi o look no espelho; não estava nada mal, ainda mais
para quem tinha feito uma caminhada no purgatório nos últimos
meses e saído como uma fênix, renascida das cinzas de minhas
próprias dores.
Ouvi passos e depois uma batida na porta, era minha mãe
avisando que Guilherme estava na sala. Ela carregava um brilho
divertido no rosto, nunca fui muito namoradeira, pelo contrário, tivera
uns dois relacionamentos sérios e pouquíssimos ficantes. Os
relacionamentos não deram certo, pois ambos julgavam que eu era
“careta demais”, e eu realmente saía pouco naquela época, mas era
algum crime gostar de ler, preferir ver uma boa série e um filme na
TV? Tinha mudado um pouco, estava mais aberta a sugestões e
mudanças, até saía um pouco mais, desde que… Refreei meus
pensamentos antes que eles me levassem até o Edu. Pois havia
sido ele quem mostrou que não precisava deixar de fazer o que
gostava e até poderia descobrir outras maneiras de me divertir. Era
grata a ele por isso, afinal ele tinha me mostrado uma Solena que
estava escondida dentro dos meus medos e ajudou a libertá-la com
sua amizade.
Saí do quarto e encontrei Guilherme sentado conversando com
Santiago e com minha mãe, Sardinha animado esfregou-se nas
pernas dele. Ele esticou as mãos para alisar a pelagem macia do
gato folgado sem se importar com os pelos que ficariam grudados
em sua roupa. Ai, como ele é lindo, meu Deus. Admirei-o. Aquele
homem era maravilhoso e meu! Já falei meu? Pois é, ele era
meuuuuuu!
Quando Guilherme me viu, seus olhos brilharam com a
intensidade de dois diamantes brutos. Senti minha pele queimar
com o tão transparente sinal de aprovação pela minha produção,
afinal esse vestido trazia lembranças de como tudo começou. Valeu
a pena usar aquele “kit” esquecido que Nat me deu, talvez ele não
ficasse mais tão desdenhado no final das contas. Cumprimentei-o
com um selinho e despedi-me da minha mãe e do Santiago.
Guilherme tomou minhas mãos com um gesto cavalheiro, sem tirar
os olhos quentes e desejosos dos meus, beijou o dorso delas como
um gentleman que parecia saído de um livro do século dezoito.
Lembrei-me do personagem de “O Bosque de Faias” e sorri, arfando
de surpresa, estava gostando do novo jogo de sedução entre nós.
— Se a intenção era me deixar mais louco do que já estou,
então seu objetivo foi alcançado com sucesso, my sunshine — falou
com a voz rouca em meu ouvido e minhas pernas amoleceram de
desejo. Ai minha nossa senhora da periquita, me ajuda com esse
homem! Vou acabar estuprando meu namorado se ele continuar me
seduzindo assim!
Seguimos para o carro de mãos dadas, ainda bem, pois do
jeito que eu estava molinha era capaz de cair na calçada. Ele abriu
a porta do carona para mim. Entrei sem mais palavras, tentando
acalmar meu coração que estava a mil por hora, e nem tínhamos
saído do lugar. Ainda estava inebriada por aquele homem tão lindo
estar ali por mim, tão atencioso, gentil e, ao mesmo tempo,
irradiando uma energia sensual que me envolvia em um estupor
hipnotizante. Quando recuperei minha fala já estávamos na estrada
a caminho de nosso destino. A noite estava fresca, e a minha pele
estava eriçada. Ele passou de leve uma de suas mãos grandes e
quentes pelo meu braço e desligou o ar-condicionado.
— Desculpa, Sol, devia ter deixado desligado, é a força do
hábito.
— Não é pelo frio do ar que estou assim — respondi,
oferecendo um sorriso travesso.
— Ai, ai, ai mocinha, se continuar me tentando dessa maneira
nos atrasaremos para nosso destino— assegurou, mordendo os
lábios. Percebi que o fogo não era só meu. Acho que baixou espírito
da Nuccia ou da Nathalie em mim, ou de ambas e estava muito
ferrada!
— Essa ideia me soa tentadora, mas é melhor evitar sermos
presos por atentado ao pudor — falei, e gargalhamos juntos.
—Com certeza perderia uns pontos com a sua mãe — falou,
ainda rindo.
— Dona Sônia tem aquele jeitão de matrona, mas ela é bem
moderninha, aliás, até um tempo atrás eu quem era a careta da
casa. Você não faz nem ideia!
— Que bom que minha namorada não é nem um pouco careta,
né? — Suas mãos vieram em direção à minha coxa por baixo do
vestido e fechei os olhos, enrubescendo.Elas subiram até uma
altura que não me ajudou a raciocinar.

— Guilherme, você tem duas horas para tirar a mão daí! —


ponderei com dificuldade e respiração entrecortada. Esse homem
vai me matar!— Gui, sério, presta atenção no trânsito seu doido! —
Com relutância, dei um tapa na sua mão.
—Ai, Sol! Você me deixa enlouquecido! Estou arruinado, você
roubou meu coração e minha alma, mulher! — confessou, retirando
a mão e balançando a cabeça para os lados, dando uma deliciosa
gargalhada.
Percebi que já não era tão cheia de neuras. A intimidade entre
nós era latente e, ao contrário da Solena que fui, essa versão de
mim era mais ousada e segura de si. A vida havia me transformado
depois de tanta lambada, e isso era algo bom. Depois de tantos
tombos que tomamos nas ruas da vida, não podemos focar nos
machucados ou nas cicatrizes, mas, sim, na maneira como nos
erguemos e não desistimos de seguir adiante em busca da nossa
felicidade.
C 47

O restaurante escolhido era uma cantina italiana que servia um


maravilhoso e variado rodízio de massas. Miragem não era fresco
para comidas e nem ficava reparando no quanto eu comia, e olha
que era muito! Principalmente porque eram pizzas e massas de
todos os tipos, doces e salgadas! Me julguem! Sabe quando você
sente que vai estourar o zíper das calças? Pois é! Dei graças ao
bom Deus de não estar de calças ou elas explodiriam! Mas, sentia
uma protuberância em minha barriga que crescia a cada garfada.
Era oficial, estava com uma pochete em ascensão. Mas ele não
pareceu nem minimamente preocupado, e sim muito divertido com
meu apetite de dinossauro!
— Não sabia que uma mulher podia ser sexy comendo que
nem uma mendiga — gargalhou, limpando os lábios com o
guardanapo de linho branco.
[cxxv]
— Você nem é o Grey e possui gostos peculiares! Quer
dizer que me observar comendo que nem uma morta de fome é
sexy?! Fala sério — concluí, sugando outro macarrão para dentro da
boca e sujando o queixo com molho à bolonhesa.
— Não, é sério! Nunca vi uma garota comer com tanto gosto e
sem neura de engordar, ainda mais massas! — disse, às
gargalhadas, estendendo seu guardanapo e limpando meu rosto
com delicadeza.
— Certamente não viria a um rodízio para comer só saladas,
nem ferrando! Não finjo que não como para impressionar— declarei,
sorrindo. — Aliás, fiz um pacto divertido com minha mãe. Disse que
se ela me visse em um rodízio, seja do que for, e eu estivesse
comendo salada, poderia chamar a polícia,porque eu teria sido
raptada!
Ele gargalhou e pediu mais um vinho para o garçom. Já
estávamos na segunda garrafa, e digamos de passagem era um
ótimo vinho, um tinto suave e estava no ponto, bem encorpado e
saboroso, não estava nem muito gelado e nem quente. Sentia-me
relaxada com meu rosto um tanto ruborizado pelo efeito do álcool,
entretanto, estava extasiada com a conversa, com a deliciosa
comida e com a noite.
Depois que meus olhos estavam esbugalhados de tanta
comida e não sobrou um espaço nem para uma azeitona recheada,
ele pediu a conta, insistiu em pagar tudo, e não senti a mínima
necessidade de retrucar. Ele sabia que eu estava guardando minhas
economias para investir no livro. De acordo com as conversas que
tive com vários autores, teria um belo gasto pela frente depois de
finalizado caso não fosse publicada de forma tradicional.
Após o jantar, ele me levou para o Mirante do Morro do
Pasmado. Ainda não conhecia o lugar e achei muito lindo, se
situava em Botafogo, próximo ao túnel do Pasmado. Não ficava
muito longe da pizzaria que estávamos jantando, portanto ele tinha
articulado isso, espertinho! Saímos do carro e ele me abraçou por
trás, contou que antigamente havia uma favela naquele local, mas
que os moradores haviam sido realocados para conjuntos
habitacionais e o morro tinha passado por um processo de
reflorestamento. Eu observava tudo em volta fascinada, as árvores
coloriam o chão com suas folhas e flores avermelhadas caídas,
como um tapete aos nossos pés. À nossa frente, uma vista
belíssima do mar que, à distância, parecia sereno, a lua cheia
refletida fazia com que as águas emitissem uma luz prateada e
mágica.
Já estava tarde e a brisa noturna soprou fria através das
árvores, fazendo-me encolher involuntariamente e tremer de frio
contra o seu corpo. Guilherme me envolveu ainda mais em seus
braços, enchendo-me de beijos à luz da lua, aquecendo-me com a
força de mil lareiras. Ainda bem que era um lugar deserto, pois as
mãos dele perpassavam meu corpo enlouquecendo minha razão.
Éramos loucos por nos agarrar assim em um local público, mas
onde há razão na paixão? Depois de um tempo, quando
conseguimos aquietar nossos corpos, saciados pelas caricias
trocadas, permanecemos admirando a beleza do lugar. Eu estava
com rosto afogueado, com o homem que amava, cheia de amor e
feliz pela primeira vez em trinta e dois anos.
Refleti como seria maravilhoso se fizessem com as inúmeras
favelas que coexistiam pelo Rio o que fizeram com o Morro do
Pasmado. Esse era um sonho um tanto quanto utópico, ainda mais
se fôssemos imaginar a quantidade de favelas e pessoas que viviam
nelas, mas sonhar não custa nada, não é mesmo?
C 48

Encontrava-me cada dia mais encantado pelo jeito da Sol,


cada gracejo, ironia.Até mesmo a sua maneira sonhadora e
estabanada de encarar a vida cativava o meu coração. Nunca estive
tão feliz com outra mulher, sorria mais, me sentia mais leve e até
mais inconsequente quando estava ao seu lado. Ela me mostrou as
pequenas belezas que antes deixava passar despercebido. Estive
na escuridão antes da minha Sunshine entrar em minha vida.
Conseguia ver tudo com mais clareza. Não era um cara muito novo,
estava com quase quarenta anos, bem vividos e aproveitados, aliás.
Larguei tudo por causa dela e desde aquela noite no mirante vinha
pensando que não seria nada mal encerrar de vez minha vida de
solteiro com a pessoa certa. Ela estava em todos os meus
pensamentos da hora que acordava até a hora que ia dormir.
O processo de criação do seu livro estava indo de vento em
popa. Estava muito orgulhoso de sua determinação, mesmo que
não quisesse me mostrar antes de pronto; eu respeitava seu
espaço. Já fui um leitor ávido, claro que com passar dos anos os
romances tinham sido substituídos por livros acadêmicos, que me
ajudaram na área que havia escolhido para a vida, mas sempre
tinha um ou outro clássico na cabeceira da minha cama. Sentia uma
profunda admiração por quem dava vigor e asas à sua imaginação,
criando histórias. Meu coração se enternecia quando via em seus
olhos o brilho incomensurável do quanto aquilo era importante e
crucial para ela, e eu a apoiaria como pudesse para que se tornasse
algo real.
Estava à procura de um novo emprego; já tinha visto um ou
dois que ficaram de me dar retorno. Solena me apoiava e me
incentivava, disse que eu deveria seguir meus sonhos como ela.
Quem visse minha situação de fora, pensaria o quão louco fui por
jogar ao ar uma carreira já consolidada, mas não foi assim. Nunca
fui feliz naquele emprego e o que fizeram a ela só me fez ter certeza
que ali não era meu lugar. Nos finais de semana, aproveitávamos o
tempo livre curtindo um jantar a dois ou cinema, às vezes uma tarde
preguiçosa no meu apartamento ou na casa dela com seus pais em
uma partida de buraco com muita pizza, pipoca e risadas. Dona
Sônia era uma mulher maravilhosa, dava para ver de quem a filha
tinha herdado todo encanto e simpatia, Santiago era muito simpático
e nos demos bem; sentia-me parte da família, até o gato, Sardinha,
que a Sol dissera ser o mais exigente da casa, tinha me aprovado.
Arquitetei uma surpresa da qual, esperava, Solena jamais
esqueceria. Contei com toda ajuda de sete pessoas e um felino para
que tudo saísse perfeito e torcia para que não fosse precipitado e a
fizesse correr ao invés do efeito desejado que era exatamente o
oposto.
Foram dias de preparação, mas agora estava pronto. Era
chegado o grande dia e eu era um poço de aflição. Todas as
pessoas envolvidas ficaram eufóricas e cumpriram bem seu papel,
só faltava a peça principal! Estava indo buscá-la para a surpresa e
rezando baixinho para que tudo desse certo. Falei com ela ao
telefone e não parecia desconfiar de nada, ou seja, nenhuma língua
nervosa tinha dado nos dentes. Olhei-me no espelho e falei comigo
mesmo em voz alta, como que para me incentivar: “Tenha coragem,
Guilherme”. Tomara que o plano maluco saísse como planejado, ou
seria um grande fiasco! Fiz uma ligação e confirmei com as duas
últimas pessoas se estava tudo O.K., e se elas estavam a caminho
do local combinado. Recebendo a resposta positiva, caminhei até a
porta com a chave do carro em mãos.
Peguei meu celular e digitei uma mensagem:
Miragem: Está pronta? Tô saindo agora mesmo.
Sol: Estou terminando de me arrumar, mas até você chegar
estarei prontinha, vem logo! Estou ansiosa pra te ver!
Gui: Hum. Se vestindo? Já tô com visões pecaminosas desse
seu corpo delicioso. Estou morrendo de saudades da sua boca,
Sunshine!
Sol: Não fala assim que me atrasa! Ah! Deixa te contar uma
coisa esquisita. A maluca da minha mãe saiu com o Santiago e
levou o Sardinha, estavam todos os três arrumados, acredita? Que
gente louca! Como você não saiu correndo de nós ainda?
Miragem: Ué? Que estranho! Onde será que levaram ele?

Sol: Não faço ideia, mas preciso largar esse telefone e deixar
você livre para chegar logo, também tenho que terminar o serviço
aqui, antes que se depare com uma bruxa mal acabada e dê meia
volta.
Gui: A bruxinha mais linda. Beijos, meu amor, até daqui a
pouco.
Sol: Beijos, Miragem!
Sorri com a última mensagem, lembrando-me da primeira vez
que ela me chamara assim sem perceber o que estava fazendo, e
como se tornara um tomate sem conseguir conter a risada de seu
rosto afogueado. Foi nesse dia que me explicou como surgiu o
apelido entre ela e suas amigas. Depois disso, todas as vezes que
me deparava com as três, não conseguia conter um sorriso
conspiratório. Peguei meu carro na garagem do prédio e rumei pelas
ruas do Rio de Janeiro com o coração aos pulos.
49

Senti o clima misterioso para lá de estranho! Percebi uma


atmosfera de conspiração no ar. Minha mãe, Santiago e até
Sardinha pareciam estar mancomunados com o Guilherme em algo
que não fazia a mínima noção do que seria. Arrumei-me com
capricho, uma vez que Guilherme avisara que a noite seria muito
especial; não sabia exatamente como deveria me arrumar, mas
tinha ciência que teria de estar muito bem-vestida.
Depois que resolvi virar o jogo da minha monótona história, dei
vida ao meu guarda-roupa com uma mãozinha das meninas. Doei
quase todas as roupas velhas para o exército da salvação, coloquei
no armário algumas saias, vestidos, meias-calças estilizadas,
blusas, com cortes, cores e acessórios que, descobri, destacavam
os “meus dotes”, sem abrir mão da minha personalidade despojada,
apenas repaginando o visual que senti que fazia parte dessa
transição. À medida que ia às lojas e saía com bolsas nas mãos,
ficava mais satisfeita comigo mesma. Eu era como crianças em dia
de São Cosme e Damião, acabei me entregando a essa mudança. A
grana? Bem, só sentiria o baque após as suaves 36 prestações (ou
quase isso). Era quase um consórcio de casa ou carro. Por
enquanto, com a bufunfa da demissão, ainda sofria da doce ilusão
que era Rhyca e Phyna, né nom monamú?[cxxvi]
Escolhi para essa ocasião um vestido pretinho básico que ia
até pouco acima do meu joelho, de tecido leve, porque ninguém
merecia nada pesado com o calor dessa cidade. Tinha um decote
em V que valorizava minhas peitcholas, um babado abaixo do busto
e uma parte com transparência que mostrava pouco, sem mostrar
exageradamente, até porque o melhor do meu corpinho só
Guilherme via em off… Era justo na cintura, com a saia mais solta.
Completei com um scarpin vermelho envernizado, ah! Adquiri alguns
pares de calçados “mais” femininos, mas mantive meus All Stars
confortáveis! Estava tão feliz por estar saindo um pouco da minha
toca, não foi como se me sentisse pressionada a ser quem não sou,
mas, sim, de querer melhorar por minha própria vontade. Eu me
amo e se posso melhorar, porque não, né?
Após um último retoque no batom vermelho (da sorte) e na
minha maquiagem, soltei meus cabelos que estavam comportados e
ondulados, aleluia! Foi o timing perfeito; a campainha tocou e saí
apressada em direção àporta, imaginando o quanto ele chegou
rápido. Da última mensagem até agora, tinham se passado o quê?
Uns dez minutos? Ainda mais se contasse o fato de eu morar na
parte bagunçada da cidade e o Guilherme na zona sul.
Quando abri a porta, meu sorriso morreu no meio do caminho.
Quem estava ali era Eduardo e não Guilherme. Sabia que isso
poderia me trazer um estresse desnecessário e acabar com minha
noite feliz. Ele me olhou de cima a baixo, com cara de abobalhado.
As pessoas ainda estavam se acostumando com esse meu lado
mais “sofisticado” e “feminino”, e não poderia culpá-lo, também era
novo para mim.
— Boa noite, Sol! Você está linda… É... hã? Vai sair? —
indagou, gaguejando. Parecia um pouco sem graça.
— Oi, Edu. Estou esperando o Guilherme. Ele deve estar
chegando — disse de uma vez para ver se ele se mancava e dava
meia volta. Seu sorriso murchou quando terminei a frase.
— Ah! tá… Tudo bem. Eu, eu… Só queria mesmo saber como
você estava, mas já vi que você está ótima, né?— falou de uma
maneira que me soou como uma crítica magoada e isso me atingiu
como um soco no estômago, afinal ele fez merda e acabou com
nossa amizade.
— Estou ótima! Eu amo o Guilherme, Edu. Sabe, você precisa
seguir sua vida. Jogou nossa amizade no lixo quando ficou com a
Camila — proferi. Mesmo tendo virado a página, a lembrança era
triste. Quando nos tornamos dois estranhos?
— Você nunca me deixou explicar o que aconteceu, Sol! Eu
não sou o filho da puta que você pensa que sou. Acho que merecia
uma chance de me explicar, porra! Você primeiro me dispensou em
Mangaratiba, contou que estava apaixonada por outro,
simplesmente me riscou da sua vida como se eu fosse um nada!
Acha isso justo? — disse, exasperado.
— Eu nunca te iludi, Eduardo. Sempre disse que você era meu
amigo, apenas isso. O que fez com a Camila foi uma vingança
imbecil sua e dela!
— Me deixa explicar, pelo amor de Deus!— pediu baixinho.
— Tenta, vai lá, mas seja rápido, tenho um compromisso com
meu namorado. — Deixei que as palavras saíssem dos meus lábios
como flechas cheias de veneno. Qualé, não tinha sangue de barata!
— OK! Eu fiz aquilo por ciúmes, tá bom? Você me dispensou
e a Camila me procurou, disse que você estava me usando, que
você sempre pretendeu ficar com o tal do engomadinho do seu ex-
chefe. Ela me mostrou o vídeo. Me senti traído, você mentiu para
mim, Sol. E fiquei louco de ciúmes. Então, ela me deu a ideia de
vingança, não devia ter sequer pensado nisso. Eu bebi, fui um
imbecil e me deixei envolver naquele plano idiota. Não tinha direito
de ficar com ciúmes, mas tive. A bebida não é desculpa, mas o
amor que sempre senti por você, sim. Você mentiu pra mim. Se
tivesse aberto o jogo desde o começo, nada disso teria acontecido e
talvez estivéssemos juntos.
— Então é isso? Por um ciúmes imbecil jogou nossa amizade
fora? Com uma mulher que me prejudicou, que me fez perder meu
emprego? Esse vídeo ela usou contra mim no trabalho. Nunca te
enganei. Nunca fui desonesta, sempre prezei nossa amizade em
primeiro lugar, mas agora ela acabou, né? Aliás, acho que quem
mentiu pra mim foi você, parece que amizade do seu lado nunca
existiu, né? — inquiri irônica. — Você provou que não merece minha
confiança, Eduardo. Não te quero como amigo, nem como nada! —
falei e nem reparei que o carro do Guilherme havia chegado nesse
meio tempo e que ele nos observava.
Um puxão forte e delicado me fez dar um passo para trás e
Guilherme entrou na minha frente, apertando-me entre seus braços,
por saber que eu estava triste. Deixei-me encaixar naquele abraço.
Aquele homem lindo e maravilhoso me segurava como se eu fosse
seu próprio mundo.

Ele me puxou e me beijou apaixonadamente. Só ouvi o barulho


de uma moto acelerando e saindo à toda.
C 50

Entramos em minha casa, abraçados. Não queria estragar


nossa noite por causa do Eduardo. Deixe-o na sala, enquanto
retocava minha maquiagem no banheiro. Ouvi seu celular tocar
enquanto estava lá dentro e reparei quando ele se afastou a passos
largos para atendê-lo. Achei estranho, mas dei de ombros. Quando
já estava pronta e apresentável, saí e fui em direção a ele, no sofá.
— Está melhor? Podemos cancelar o resto da surpresa se
você não estiver bem — perguntou com olhar preocupado.
— Não, não! — neguei veemente. — Estou melhor, só
precisava respirar fundo e dar um jeito na maquiagem, mas já estou
prontinha! — afirmei sorrindo, tentando mostrar uma animação que
quase esmoreceu com a ceninha do Eduardo.

— Ufa! Graças a Deus! Estava com medo de você dizer que


não queria mais sair. Sua mãe, o Santiago, suas amigas e até o seu
gato, ficariam realmente muito decepcionados comigo. — Deu uma
piscadinha charmosa e sorriu aliviado.
— Sábia! Então era realmente uma conspiração pelas minhas
costas?! Bonito isso, hein, senhor Guilherme? — exclamei, dando-
lhe uns tapinhas de indignação fingida.
— Uma conspiração por uma ótima causa, garanto!
—Vamos? — falei prontamente.
— Ok, vamos!— Puxou minhas mãos com ar apaixonado e as
tocou com seus lábios. Ainda assim, ele parecia um tanto
incomodado.
Puxei minhas mãos e lhe dei um tapinha nas costas para que
fôssemos logo onde quer que o resto do povo estivesse nos
esperando. Quando ele começava a sentir ciúmes assim, ficava um
pouco receosa. Não queria que ele visse todos os homens do
mundo como uma ameaça perpétua, eu estava ao seu lado e ele
precisava confiar em mim e nos meus sentimentos. Certo?
Já dentro do carro, estávamos envoltos por um silêncio
constrangedor. Reparei que seu semblante estava um tanto
crispado, parecia pensativo. Então quebrei a calmaria
desassossegada, tentando aliviar o clima que estava um tanto
quanto denso.
— Aonde vamos, afinal? — Apertei de leve uma de suas
pernas.
— É surpresa! Não vamos estragar mais do que o franguinho
que quase destruiu tudo com sua presença. — Sua resposta soou
amarga.

— Gui, eu não sabia que o Edu estava indo lá. Não desconta
em mim, tudo bem? — falei magoada.
— Eu sei, mas você poderia ter mandado ele embora, né? Deu
confiança para esse cara ficar de blá, blá, blá, Solena! Mesmo
depois de me contar que ele foi um babaca com você, ainda assim
parou pra dar trela, não te entendo às vezes! — exclamou irritado.
— Guilherme, ele veio pedir desculpas e tentar explicar o
inexplicável. E eu o recebi por achar que era você. Eu o ouvi por
educação, Eduardo foi um amigo muito querido pra mim e doeu
muito perder a amizade dele. Eu, eu… só queria que as coisas não
fossem tão difíceis e dolorosas, sabe? Você devia tentar me
entender um pouco — expliquei tristemente.
— Mas ele te magoou! Estou aqui agora!— falou e socou o
volante exasperado. Estava na cara que esse dia especial iria ser
"fail".
— Claro que sim! Mas se continuar não confiando em mim e
agindo como um troglodita toda vez que alguém se aproximar de
mim, não sei se vai dar certo! Não sei por que diabos você me pediu
em namoro se não confia nos meus sentimentos, Guilherme! —
protestei irritada, cansada e triste.
— Eu te amo! Te amo desde quando te vi dançando
loucamente naquela pista com os cabelos verdes balançando ao
som de Natasha! Aliás, amo muito antes disso, antes mesmo que
me desse conta de que te amava. Será que isso não conta?—
Parecia magoado também, e senti-me mal por isso.
— Desculpa. Só não esperava mesmo que o Edu aparecesse
hoje e isso me deixou triste e desestabilizada. Você é maravilhoso e
estou sendo uma boba. — Sorri e coloquei a mão na coxa dele em
busca de sua mão. Em uma discussão besta se a gente quer que
uma relação dê certo, alguém precisa dar o braço a torcer, e lá
estava eu erguendo a bandeira da paz, tudo que menos queria era
os fantasmas do ciúme e da insegurança entre nós.
— Desculpe também, Sol. Estou sendo um idiota insensível e
troglodita ciumento. Sei que ele era seu amigo e você gostava dele,
e tenho que me acostumar que, sendo você uma pessoa tão doce e
especial, sempre existirão outros sujeitos babando por você. O que
importa é que você escolheu ficar comigo, isso basta. — disse e
sorriu. Sua mão alcançou a minha e apertou em tom tranquilizador.

— Acabamos de ter nossa primeira DR[cxxvii]! — ri, achando


graça da situação.
— Verdade! E sobrevivemos! Acho que isso é bom sinal. —
Sorriu de volta, seu semblante mais leve.
O resto do caminho foi percorrido em clima descontraído e
logo Edu e toda a carga pesada daquele começo de noite ficaram
para trás. Tínhamos uma noite de surpresas à nossa espera.
C 51

Estávamos indo por um caminho que reconheci, estarrecida. O


lugar estava lindamente iluminado por luzes dos postes, a
decoração era suave e natural feita pelas árvores com belas flores
alaranjadas e amarelas, recepcionando-nos com um tapete
multicolor de cores vibrantes. Descemos do carro. Ele pegou em
minha mão para me conduzir até uma tenda grande que foi erguida
no topo do mirante, branca e imaculada, presenteando a todos com
a vista aérea maravilhosa da praia sob a lua, que resplandecia no
céu estrelado e sem nuvens da orla de Botafogo. Estávamos
novamente ali, no alto do Mirante do Morro do Pasmado.
Quando entramos, já estava tudo lindo e perfeito. Minha mãe e
Santiago estavam sentados com meu gatinho ao seu lado, usando
uma coleira, comportadamente jogado na grama, parecendo curtir
esse inusitado programa em família. Na mesma mesa, estavam
minhas amigas que conversavam animadas até perceberem nossa
chegada. No meio da mesa, um lindo bolo confeitado com flores
amarelas e roxas, que pareciam ter caído da própria natureza ao
nosso redor, um balde com champanhe, taças e talheres
minuciosamente preparados, com certeza com ajuda de minha mãe,
que me olhava de olhos marejados e apertava firme a mão de seu
amado.
Tudo ficou ainda mais mágico com o surgimento de um
violinista… Mas gente! Que chique! Era cenário de sonho, filme ou
cena pertencente a um dos meus livros românticos. Estava
emudecida diante de tantas surpresas, tudo parecia suspenso, o
tempo jazia parado e tinha impressão que se abrisse minha boca, o
encanto se quebraria e acordaria com o barulho infernal do meu
despertador (sou traumatizada, não me culpem!). Nunca me permiti
ser romântica, aliás, a minha parte sonhadora que acreditava no
amor e em finais felizes tinha morrido na adolescência, quando
acreditei que os homens eram apenas sapos e pulavam de brejo em
brejo atrás de pererecas. Mas, eu estava ali, com meu próprio
príncipe encantado, lindo de doer, fazendo-me sentir uma maldita
princesa de contos de fadas! Se isso fosse um sonho, processaria
Deus por propaganda enganosa! Ah, se ia!
— Gui, o que é isso tudo? — indaguei com a voz embriagada
de emoção, vendo aquela loucura toda.
— Isso tudo é para você, Sunshine — proferiu.
Minha mãe chegou perto, trazia o Sardinha no colo.
— Esse rapazinho aqui tem um presente para você — ela
disse, mostrando-me o laço no pescoço do meu gatinho, no qual
havia um pequeno pacotinho preso. Olhei atônita para os lados, era
um complô, eu sabia!
— Vamos ver o que o gatinho guarda nesse pescocinho... —
disse, tentando desatar o nó.
Acho que devo ter apertado sem quer o laço, pois meu gato
deu um miado sofrido e um salto, correu para debaixo da mesa de
bolo, com olhar desconfiado e magoado. As pessoas ali se
entreolharam e foram atrás do gato fujão. Quem conseguiu pegar o
gato, no fim das contas, foi o garçom contratado. Usando um
canapé da bandeja como isca, chamou pelo gato que por comida
era capaz de tudo, ou quase tudo. Todos riram com a peripécia do
felino.
— Valeu, Tobias! — Guilherme pegou o gato enquanto ele,
distraído, comia o petisco e tirou com cuidado o pequeno pacote de
seu pescoço, colocando-o em minhas mãos. — Agora, sim, esse é
para você, meu amor. — disse com um sorriso divertido.
Abri o pacotinho e fiquei pasma com a beleza do objeto e o
peso que carregava em seu significado e responsabilidade. Olhei
para aquele aro arredondado dourado, cravejado de mini pedrinhas
brilhantes em sua volta e uma maior, na cor âmbar, com detalhes no
que parecia ouro branco que lembravam os raios do sol. Tapei
minha boca, emocionada, sem ar e abestalhada com tanta sutileza e
delicadeza, contidas em algo tão pequeno e grandioso ao mesmo
tempo.
— Isso é sonho? É pegadinha? Ou algo assim? Me belisca!—
indaguei incrédula, olhos arregalados e boca pendente de espanto;
devia estar parecida com um peixe bagre recém-pescado.
Ele pegou sua linda mão (tudo nesse homem era lindo, Jesus
me abana!) e beliscou meu traseiro por cima do vestido, fazendo-me
dar um grito histérico. Agora sim, pude perceber que o que quer que
isso significasse, era real. Ele se voltou para mim e deu um sorriso
resplandecente que indicava uma desculpa pelo seu comportamento
inadequado. Deu de ombros, como quem diz: “você quem pediu!”.
Minha família e amigas escarneciam da atitude de Guilherme,
e eu só consegui rir incrédula e avermelhada com um misto de
constrangimento e diversão. Quem imaginaria que meu Miragem
teria um comportamento tão ousado em um pedido de casamento.
Meu Deus! Nossa senhora das encalhadas! Era isso? Isso tudo era
uma festa de noivado? Olhei para ele a tudo em nossa volta,
observei o anel, que agora estava em meu dedo e parecia cintilar ao
brilho etéreo do luar. Eram muitas emoções, precisava sentar ou
cairia dura e esturricada antes mesmo de dizer sim ou não!
Enquanto o homem vestido a rigor tocava uma música de
forma mais lenta do que era normalmente tocada, eu conhecia essa
canção e amava, Guilherme se aproximou e me conduziu em uma
dança sob os olhares das pessoas que mais importavam em minha
vida. Ele cantava baixinho, com sua voz rouca e grave, a letra da
música “Here comes the sun”, dos Beatles, nossa música:
— Here comes the sun
Here comes the sun
And I say
It's all right
Little darling
It's been a long cold lonely winter
Little darling
It feels like years since it's been here[cxxviii]
Sabe quando você parece estar flutuando? Não, né? Quem
flutua, Solena?! Dã! Mas juraria que estava voando conforme ele me
conduzia, pois não parecia ter mais ninguém além de nós e daquela
música cantada por ele em meu ouvido. Esse homem existe
mesmo, produção? Deveriam fazer um estudo com seu DNA e
clonar esse homem para alegria de outras malucas que, como eu,
estavam desacreditadas com o romantismo. Amigas, ouçam a
Solzita aqui, romantismo é que nem aquele negócio que é caro pra
dedéu e chique de doer, aquilo que é usado na cozinha pelos chefes
bambambãs, a tal da trufa; Era raro para caraio, mas quando
achado era uma delícia! E olha que nem precisei de um porquinho
para caçar o meu!
A noite estava mais que perfeita, minhas amigas loucas
cumprimentaram Guilherme com palmadinhas nas costas e
piadinhas sobre o beliscão e nossa dança, juraram que viram uma
mão boba em minha bunda. Claro que era brincadeira e rimos
daquelas três patetas. Elas vieram pulando eufóricas até a mim,
abraçando-me e quase me jogando no chão de euforia
descontrolada. Fui puxada por minha mãe em um abraço forte e
emocionado, durante o qual disse baixinho o quanto estava feliz de
poder estar ali, e como meu pai também deveria estar onde quer
que estivesse. Fiz tudo que pude para me controlar e não cair no
choro que nem uma garotinha com as palavras da minha mãe e o
abraço carinhoso do Santiago.
Eu olhava para a aliança no dedo ainda incrédula; meu sim
não saiu, e não é que pretendesse dizer não, só achava tudo muito
precipitado. Guilherme aceitou a aliança no dedo como confirmação
e estourou a champanhe para o brinde. Comemoramos extasiados o
momento, os meus velhos ali, olhando-me orgulhosos, até meu gato
e minhas amigas pareciam emocionados (felinos se emocionam?),
estava tudo perfeito, tudo maravilhoso e Guilherme me observava
como se tivesse ganhado na loteria. Mas...algo lá no fundo me
incomodava. Será que casar agora não seria andar para trás? Eu
amo o Guilherme, mas ser esposa com véu e grinalda, festa,
daminhas e filhos nunca foi um sonho... A ideia não era seguir meus
sonhos e virar o jogo?
C 52

Seis meses depois…


Senti uma cafungada em meu pescoço e dessa vez tinha
certeza de que não era meu gato metido, ou melhor, era sim meu
gato, mas o que não miava e nem atendia pelo nome de Sardinha!
Estava em um estado de letargia preguiçosa após… bem, vocês
sabem depois do quê, né? Nada de detalhes sórdidos, podem tirar o
cavalinho da chuva, esse livro não é hot!
— Bom dia, Sunshine — murmurou com a voz rouca em minha
orelha, enchendo-me de beijos e me puxando para mais junto dele.

— Bom dia, Miragem! — soltei-me de leve do abraço e virei de


frente para beijar seus lábios. Já tínhamos intimidade suficiente para
conhecermos como acordamos, ele continuava lindo mesmo de
manhã cedo e jurava que era recíproco o sentimento. O amor é
iludido!
— Então, hoje faz nove meses que estamos juntos! Estamos
próximos de completar um ano. Quanto mais a senhorita vai me
enrolar com desculpas para juntarmos de vez nossas escovas de
dentes? — redarguiu com olhar brincalhão, enquanto dava uma
mordida leve em meu pescoço.

— Ui! Não se faz de Edward Cullen[cxxix], que eu gamo!


Ahhhhh, Gui… Pra que a pressa? Estamos curtindo tanto assim… e
outra, estou sempre por aqui ou você lá em casa! É como se já
estivéssemos casados, mas sem a parte chata! — retruquei,
alisando seu peitoral (aiiiiiiiiii, que homem, meu Deus!).
— Então, se estamos praticamente casados, vamos oficializar
de vez, sua teimosa… — retrucou com voz rouca, puxando a
camisola que eu vestia e vindo para cima de mim.
— Aiiii, isso é jogo baixo! Olha essa mão boba aí, rapaz! —
disse sorrindo, enquanto deixava o assunto morrer nos toques
deliciosos daquele homem. Esse homem é meu mesmo? Fechei os
olhos e deixava me guiar por seu corpo, sua boca e carícias
deliciosas.

— Precisamos sair dessa cama, Guilherme! Hoje é domingo e


minha mãe está nos esperando com uma lasanha! — disse, pulando
da cama e pegando minha roupa jogada pelo chão.
— Como sempre, estou sendo trocado por comida! Oh, vida
injusta!Acho que você ainda vai me trocar por um chefe de cozinha
só pela sua gula! — lamentou-se, mas estava sorrindo daquele jeito
que me deixava desnorteada e completamente apaixonada.
— Me chamando de gorda??? E ainda quer que me case com
você, seu grosso! — Embolei a camisa dele e joguei em sua
cabeça, enquanto me vestia.
— Comilona e violenta! Que destino triste esse de um homem
apaixonado! — gargalhou, colocando as mãos no coração como se
tivesse sido atingido por um tiro. Fuzilei-o com o olhar, e ele sabia
que com minha fome não dava para competir. — O.K., O.K.! Você
venceu! Mas a senhorita não escapa desse assunto, dona Solena.
— Tá! Agora levanta daí e se veste logo que o caminho até
minha casa é longo e o meu estômago está colando nas tripas. Só
de imaginar aquela lasanha indefesa cercada por bocas ferozes me
dá uma dor no peito, sinto que ela precisa de mim!
Ele riu e se vestiu. Aleluia! Não aguentava mais me esquivar
daquele assunto, não estava preparada para dar um passo tão
largo, estávamos tão felizes do jeito que vínhamos levando nossa
relação. Para que a pressa? Somos jovens. O.K., nem tanto, mas
ainda assim jovens, não precisávamos ir assim tão rápido para os
finalmente, né?

Minha mãe estava toda sorridente ao chegarmos. As


mudanças que ocorreram em nossas vidas nesses meses foram
gigantescas, contudo todas benéficas, até meu gato estava menos
ranzinza. Mentira, esse continuava o mesmo folgado de sempre, só
amolecia o coração com comida... Tal mãe, tal filho! Tanto eu,
quanto Dona Sônia estávamos mais leves, arriscava a dizer que até
mais bonitas, mesmo que soasse suspeito, afinal ela é minha mãe e
sempre a achei maravilhosa!
— Oi, amores! Chegaram em uma ótima hora! A lasanha
acabou de sair do forno! — Minha mãe veio ao nosso encontro,
dando um abraço. — Vão para a sala. O Santiago está me ajudando
a arrumar a mesa, né, amor? — gritou e ouvimos um barulho de
panelas caindo dentro da cozinha.
— Está tudo bem aí? Quer ajuda, Santiago? — perguntei em
voz alta, rindo.
— Tudo sob controle, meninas! Aconteceu apenas um
desentendimento de leve com a saladeira, mas já fizemos as pazes!
— Santiago gritou da cozinha para se fazer ouvir.
— Vão sentar, meus filhos! Vou lá ver se minhas panelas
sobreviveram às mãos do Santiago. — disse, saindo em disparada
novamente até a cozinha. Ela tinha adquirido hábito de chamar
Guilherme de filho nesse ínterim, e ele adorava. Já que sua mãe era
falecida há anos, adotou dona Sônia como sua mais nova figura
materna.
Sentamos no sofá, enquanto ouvíamos risadas na cozinha. O
aspecto da casa era de lar, não que antes não fosse, mas casa
cheia tem um aspecto mais aconchegante. Antes éramos só eu,
minha mãe e o Sardinha, esses dois homens vieram para nos ajudar
a colorir um pouco mais nosso cotidiano. Porém, por mais que
achasse linda a relação de Santiago e minha mãe, não me via
naquele papel de dona de casa, mãe e esposa. Quem sabe mais
para frente. Naquele momento queria aventuras que nunca pude
viver, e não, não pense besteiras, essas experiências não eram de
cunho sexual ou amoroso, era sentir adrenalina e curtir com o
Guilherme. Eu tinha medo de expressar isso para ele, já que ele
sempre parecia tão feliz com a ideia de casamento e acabar me
entendendo errado.
— O que essa cabecinha linda anda pensando? — ele
indagou, beijando a ponta do meu nariz.
— Hum… No meu livro! — menti.
— Ah!? E como anda, já está próximo do fim? — perguntou
curioso. Ele ainda não lera, porque eu não tive coragem de mostrá-
lo para ninguém. Estava entalada há meses no final, não queria
fazer nada piegas como: “e viveram felizes para sempre”,
casamento com bandinha, mulheres grávidas e um céu azul em fim
de tarde em uma praia paradisíaca! Eu queria algo mais… mais
“Tcham”! Afinal, o nome do livro era “Virei o jogo”, precisava ser com
estilo, não é?
— Terra chamando Solena… — Estalou os dedos na frente do
meu rosto.
— Ahhhhhh! Desculpa, Gui, ando frustrada com isso, na
verdade. Estou há meses com o projeto parado no final, sem saber
como terminá-lo… — confessei, respirando fundo.
O seguro-desemprego acabara, o dinheiro não entrava e só
saía, logo teria que cair na real e procurar outro emprego. Ainda
tinha a quantia da demissão na poupança, mas não queria ficar
enrolando sem fazer nada em casa. Guilherme estava trabalhando
em outra empresa, conseguira um bom cargo por recomendação
dos chefes antigos, uma vez que ele não saíra da antiga empresa
brigado com ninguém. A ideia era virar escritora e, mais uma vez, eu
estava com um projeto inacabado me azucrinando. Parecia que
minha vida era uma sucessão de coisas inacabadas.
— E porque não escreve o final então? — perguntou confuso.
— Não é simples assim, Gui… Esse livro mistura minha vida
com ficção, o nome é “Virei o jogo”, mas está tudo estagnado! Se
inventar um final extraordinário, me sentiria uma mentirosa, pois não
mudei totalmente minha vida, entende? Daqui a pouco o dinheiro
acaba e virarei abóbora novamente em empregos chatos e
monótonos como o anterior.
— Hum... E o que você acha que seria uma grande virada, um
bum na sua história? Algo extraordinário que você queria que a sua
personagem fizesse para mudar de vez a vida? — especulou,
perscrutando os meus olhos.
— Algo louco, inusitado e muito legal! Tipo uma viagem pelo
Brasil de carro em busca de aventuras, praias, trilhas, cachoeiras!
Mas imagina… Algo assim é muito irreal, todos saberiam que é
ficção, afinal quem largaria tudo, inclusive conforto, para viver em
cima de quatro rodas, passando por estradas mal cuidadas, na
insegurança. Isso é doideira de uma mente fértil e desocupada —
confessei. Ele me puxou em seus braços e beijou meus lábios,
sorrindo, deve ter me achado uma boba, retribuí o beijo e me deixei
esquecer mais uma vez as ideias para o final do meu livro
inacabado. Com certeza, jamais o terminaria, como tantas outras
coisas na minha vida. Talvez a professora Elza tivesse mesmo razão
quando me disse para desistir.
— Hora de matar a fome, tá na mesa, pessoal! — exclamou
Santiago, imitando o cozinheiro da TV Colosso, fazendo-nos
gargalhar na sala.
C 53

Estava esperando pelo Guilherme. Ele havia telefonado


dizendo que tinha uma surpresa como comemoração pelo nosso
primeiro ano juntos. Sorri, olhando para a aliança em meu dedo. Já
se passaram meses desde a última surpresa e um ano desde o
início! O tempo é algo tão engraçado, quando estamos tristes
parece que se arrasta, mas quando estamos felizes e cercados por
quem amamos corre solto como um sopro! Estava acompanhada
por minha mãe e minhas amigas, fora um pedido dele. Depois de
tantos meses enrolando-o para marcar o casamento, estava com
medo de que ele resolvesse trazer um padre, pastor, pai de santo ou
juiz para nos casar sem que desse mais desculpas esfarrapadas.
— Eita! Solena, se continuar andando de um lado para outro
desse jeito, vai furar o assoalho da sua mãe! — Nuccia riu da minha
cara de agonia.
— Mas pudera, também estaria assim. Lembram o que ele fez
na última surpresa? Pois então, não duvido que ele traga um casório
todo contratado a domicílio para prender de vez essa enrolona! —
gargalhou Nathalie.
— Credo, meninas! Tadinha da Sol, deixem de implicar com
ela. Calma, Sol, tenho certeza que será algo muito lindo, Guilherme
te ama muito — disse Suzana em tom apaziguador.
— Eu sei o que é! Mas não conto… — minha mãe se
pronunciou, dando as costas com sorriso conspirador para Santiago.
— Isso é maldade, mãe! Traição das grandes! — reclamei com
um bico.
— Sossega o facho e espera como a boa menina que sei que
criei e está perdida dentro dessa ogra ansiosa que a possuiu.

30 minutos depois…
— Vocês estão ouvindo isso? — indaguei, quando escutei o
som de uma buzina em frente à nossa casa, mas não era o som da
buzina do carro do Guilherme, essa reconheceria em qualquer lugar.
— Sim. Deve ser algum maluco tentando se mostrar! —
esbravejou Nathalie, indo bisbilhotar na janela. — Opa! Sol… Acho
bom você vir dar uma olhadinha aqui…
— O que foi? Não vão dizer que é o Eduardo? — indaguei
apreensiva. Desde o dia da aliança, ele não mais tinha me
procurado, mas vai saber! Ele tinha o pior senso de timing, sempre
atrapalhando as surpresas…
As meninas correram para ver o mesmo que a Nat e viraram
para mim boquiabertas gritando em uníssono:
— Vem logo, Sol!
Olhei para elas, depois para minha mãe e Santiago que
sorriam, e corri para ver o que estava acontecendo. Quando enfiei
minha cara pela janela, minha boca se abriu surpresa. Havia uma
Kombi com um laço lilás e os dizeres “Virei o jogo” na lateral, com
Guilherme na direção exibindo um sorriso imenso no rosto.
— O que é isso? — Olhei atônita para todos ali presente, meu
coração disparado no peito. — Alguém sabe o que aquele louco faz
com uma Kombi com o nome do meu livro?
— Vai lá receber o seu noivo, sua tonta! — falou minha mãe
com lágrimas de emoção e sorrindo.
Abri a porta veloz, senti que fui acompanhada por todos em
silêncio. Quando saí, Guilherme descia do carro sorrindo. Veio em
minha direção, beijando meu rosto.
— O que significa tudo isso, Guilherme, está doido? — Olhava
dele para a Kombi incrédula.
— Ué! Precisamos dar um final ao seu livro, então eu trouxe a
“Natasha” para dar uma mãozinha! — revelou, como se não tivesse
falando a maior loucura do mundo.
— Como assim? Endoidou de vez? Quem é Natasha?

— Você disse que sua personagem precisava de uma virada


na vida, certo? E que uma viagem pelo Brasil seria um bom final...
Então comprei a Natasha! Entra aí e vamos escrever juntos o último
capítulo de nossa história, sua doidinha!
— Mas... E o seu trabalho? Você tá doido? Isso implica em sair
por aí sem destino, como você faria isso junto comigo? — indaguei
atordoada, estava com um sorriso bobo em meus lábios.
— Pedi demissão. Lembra que te disse que estaria sempre
com você para o que der e vier? Não estava brincando. Seu sonho é
o nosso sonho, Sunshine. Vou aproveitar para vivenciar cada minuto
dos meus dias com a mulher da minha vida.
— Seu inconsequente! — exclamei, jogando-me em seus
braços e beijando-o apaixonadamente. — Se não o amasse tanto,
teria me apaixonado de novo por você nesse exato momento,
irresponsável!
— O que mais quero é fazer você feliz, te conquistar todos os
dias, aproveitar sua companhia a cada minuto, fazer você sorrir e
nunca te deixar ir. —Tomou meus lábios com uma paixão visceral.
Escutei um pigarro, provavelmente era minha mãe e Santiago, e
corei.
Minhas amigas entraram na Kombi todas animadas, fui junto
olhar e era inacreditável! O carro estava totalmente adaptado para
ser um motorhome[cxxx]! Eu sorria e chorava que nem uma louca, ele
me puxou em sua direção e disse em meu ouvido:
— E aí, senhorita Solena, aceita viajar conosco por esse país
afora, conhecendo os melhores lugares, na alegria e na tristeza, na
riqueza e na pobreza, até que a falta de gasolina ou de GPS nos
separe?
— Sim! — respondi eufórica e o beijei. Daquela vez não havia
dúvidas sobre a resposta. Só uma vontade gigantesca de entrar
naquela Kombi e acompanhar as estradas, seguindo o destino
traçado por nossos corações, escrevendo o último capítulo da série
que seria a nossa vida!
— Tem algo em seus braços que me faz querer morar em seu
coração para sempre. Que em nossa história haja sempre
reticências e nunca ponto final. Feliz aniversário de namoro, meu
pedaço de Sol!
Ouvimos aplausos e gritinhos de felicidade à nossa volta. E foi
assim que, em poucos meses, virei o jogo daminha vida monótona,
transformando meus sonhos em realidade, acreditando em mim
mesmo e tendo fé de que somos parte da mudança que queremos
em nossa própria história.
E

Por Nuccia De Cicco


Autora de “Pérolas de minha surdez” e
“Cadeados”.

— Senta logo essa bunda aí, caralhos! — falei, dando um tapa


no traseiro da Nat.
— Alguém pode me dizer por que a vaca da Solena só
respondeu pra você? — perguntou Nathalie, indignada, o rosto
quase colado no meu para ter certeza de que eu estava lendo bem
seus lábios. — Todo mundo aqui manda um trilhão de e-mail pra ela!
— Sei lá, pergunta a ela quando mandar o mail um trilhão e
um! — respondi, tentando conseguir algum espaço pessoal em
minha mesa de trabalho.
— Praticidade, Nat, uma resposta só, mas um resumão, né...
— Foi a vez da Suzana sensata dar o ar da graça.
— Então levanta daí que eu leio em voz alta.
— Nat! — Suzy a repreendeu ao mesmo tempo em que dava
um tapa na própria testa.
Fiz minha melhor cara de “Sério, mermão?!”. E se diz minha
amiga!
— Vou fingir que você não disse isso.
— Quê? — A cara de indignada merecia um Oscar. Demorou
até cair a ficha. — Ah, porra, Nu, desculpa...
— Tá, tá, tá... Se desculpe me comprando um pote daquele
doce de leite. — Dei uma piscadela. — Senta logo aí que eu vou ler
em voz alta.
“Oi, meninas!
“Primeiro: Nat, tô mandando a resposta pra Nu porque a
mensagem dela foi a última que li. Deixa de paranoia!”

Não resisti e me virei pra Nat exibindo uma careta, a língua de


fora.
— Ai! — falei alto quando recebi um tapa no ombro.
— Vocês duas...! — Suzy disse, inclinando-se para a tela do
meu computador.
— Ela que começou! — reclamou Nat.
— Vou te mostrar quem começou... — Girei a cadeira e passei
a fazer cócegas na minha amiga.
— Cantor?! — Suzy exclamou.
— Quê? — Nat me segurou, olhando para Suzy. — Ei, você
não podeler antes da gente! —Ela está lendo sem esperar a gente?!
Virei de volta e dei um empurrão na apressadinha antes de
continuar a ler.
“Estamos saindo de Blumenau a caminho de Porto Alegre. Faz
um frio da porra aqui no sul do país! Natasha está resistindo bem,
mas sinto que não tardará a falhar. Só espero que não pife à noite
numa estrada deserta outra vez!
“Se tudo der certo, terminamos essa parte da turnê de
autógrafos e voltamos ao Rio até o final do próximo mês. A
recepção do livro está sendo fenomenal! Nas feiras, ganhou
destaque por causa do conteúdo, sabem? Por ser diferente, tão...
eu! Nunca imaginei que teria tanto leitor a fim de fofocar sobre
minha vida! Hahahaha... E Gui começou as aulas de canto e de
violão para seguir na carreira de cantor, já tem até agente dando
força!
“Vocês me viram naquele programa do canal 11? Que
loucura!!! Nunca imaginei que receberia um convite para ir na TV!!!
Tô pirando na batatinha até hoje!! Falei muita merda? Saiu uns
caralhos voadores sem querer... Tua culpa, dona Nuccia desbocada!
E aquela surpresa do Guilherme? Cantar “O Sol” na cara e na
coragem para mim na frente de toda aquela platéia em rede
nacional?! Que loucura, se vocês estivessem lá teriam berrado que
nem hienas no cio...
“E mamãe, já voltou da lua de mel tardia com Santiago? Eles
não me mandaram uma única foto de Fernando de Noronha,
ingratos!! O Sardinha melhorou daquela queda? Aliás, Nu, me
explica como o gato conseguiu subir e se pendurar na varanda do
seu vizinho???
“Tô morrendo de saudade das minhas vaquinhas preferidas!
Suzy, espero que o doidão que tu arrumou te faça bem! Vai fundo,
garota, dá com gosto! Nat, para de dar trela pra árabe maluco do
facebook!!!! Bebeu absinto vencido?! Tem muita gente maluca atrás
de um perfil bonitinho, mulher! E, Nu... até pode ser traição sair com
ex de amiga, só que o Edu não é meu ex, sua besta! Bom, é ex,
mas ex-amigo, não ex-ex... Ah, porra, você entendeu!”
— Vo-cê-saiu-com-o-Edu???????? — Nat me estapeava nos
braços a cada sílaba. — Onde você enfiou a cabeça, sua vaca? Na
privada da Camila?
— Ai, meus caralhos saltitantes! Tá doendo, para com esse
chilique! — Estiquei a coluna, empertigando-me, arrumei meu
cabelo de volta no lugar, tudo para dar tempo de acalmar a fera.
Respirei fundo para explicar. — Lembra que eu disse que conheci
um cara maneiro no show do Kid Abelha que fui com a galera da
dança? — As duas confirmaram. Suzy já exibia uma careta de “Lá
vem merda”. — Então... Edu. Só que eu só descobri que era O Edu
quando a jeripoca já tinha piado. Mais especificamente, foi depois
da terceira... não, acho que da quarta vez...
— Argh! Não precisa numerar — Fui interrompida por mais
tapas da Nat antes de continuar.
— Vocês têm de entender que eu e vinho tinto nos damos
muito bem, bem pra cacete, tão bem que todo mundo fica igual! Em
minha defesa, posso garantir o dito cujo tava com uma aparência
diferente daquele dia lá no show da Pitty.
— Sei que vou me arrepender, mas... Garante como? — Quis
saber a Suzy.
— Fotos! — Puxei o celular e abri a galeria, selecionando uma
foto que tiramos juntos no show. Nat, impaciente, puxou o aparelho
da minha mão e começou a passar as fotos, sem dar tempo de eu
avisar que...
— É, tá bem diferente mesmo, mudou um pouco o cabelo, tá
de barba e bigode, ficou mais cafajeste ainda. E... puta que me
pariu, Nuccia!!! — Gritou, chamando atenção de algumas pessoas
nos boxes laterais, jogando o celular em cima de mim. Limpava as
mãos na roupa. — Nunca na minha vida vou conseguir “desver”
isso!
— Culpa sua. Ninguém mandou pegar meu celular. — Eu ri,
mas com respeito.

— Eu vou querer saber? — perguntou Suzy.


— Não! — dissemos juntas.

— Enfim, só liguei nome à pessoa quando a gente resolveu


levar um lero, eu já tava menos calibrada. E aí eu tava contando
sobre as minhas amigas, e aí o nome da Sol pintou e aí...

— E o que você fez depois disso? — Nat perguntou, ainda


indignada, os braços cruzados. Eu ia pagar caro. Pela pegada e
pelas fotos.

— Ah... bem, eu tentei parar o esquema, saca, mas... digamos


que o rapaz tem lábia, se é que vocês me entendem...
— Pelo amor de tudo que é sagrado, ninguém quer saber
como Eduardo usa a língua! Termina logo de explicar! — implorou
Suzy, exasperada.
— Foi só isso! Nem saímos mais. Foi meio que um acordo
implícito pós-sexo casual. Então falei com a Sol porque, né, minha
amiga e tal... Enfim, todo mundo pode ficar tranquilo, porque já tem
outro na jogada. Conheci um escritor de terror pelo facebook, mora
em São Paulo, que é uma gracinha e...
— Pode parando! Já chega da sua vida sexual por hoje, sua
louca. Termina de ler — pediu Suzy, tentando apaziguar as coisas.

— Ah, lá! Pegando escritor pelo facebook! Depois fala de mim


e do meu árabe! — Nat me deu um novo tapa no ombro. Já devia
ter um hematoma enorme ali.

— “Blá-blá-blá, meu árabe”... — desdenhei. Nunca que ia


perder a oportunidade de atazanar minha amiga. Antes de receber
um novo tapa, virei de volta para a tela do computador.
“Eu sei que tu é louca. E outra... Não sei de onde você tirou
que o tal escritor é bonitinho. Não vi nada de bonito nele. Aliás, nem
confio, minha intuição diz que vai babar.”
Fiz uma careta. Ele era bonitinho, sim. E escrevia bem. Tinha
quase certeza de que a gente ia dar certo. Se ao vivo for parecido
com as conversas de madrugada pelo facebook... UAU! Melhor
continuar a ler.

“Conversamos mais na minha volta! Terei que ir, meu tempo na


lan-house está para acabar. Sessenta dias! Aguentem!

“Amo vocês, vaquinhas!”


— Poxa, que saudade da Sol... — Suzy enxugou uma lágrima
teimosa.
— Ah, amiga, falta pouco, viu? Um ano passou rápido! E ela tá
feliz, amando, famosa. Virou o jogo de verdade! — Dei um abraço
apertado, que foi logo duplicado pela Nat.

Estava feliz por minha amiga. Gostei de ver que ela não se
apoquentou por causa do meu caso com Edu. Solena estava em
outra e estava voltando! O trio viraria quarteto de novo em breve e a
gente ia inventar novas aventuras.

Desliguei o computador e saímos para tomar um sorvete de


fim de expediente, ainda conversando sobre escritores, árabes e a
lábia do Edu. Restava torcer para que os próximos sessenta dias
passassem logo, que Natasha não pifasse e que a vaca não fosse
para o brejo.

Assim seja, cacetes! Assim seja!


A

Gratidão é tão maravilhosa, não é? Então, vamos lá!


Parece que foi ontem que terminei “Violet” e hoje estamos
aqui! Para quem imaginava que nunca conseguiria finalizar um só
livro, tenho três em menos de dois anos! Isso é uma baita surpresa
até mesmo para mim! Sei que também serve de inspiração e
incentivo para muitos que, como eu, não acreditam ou desanimaram
no meio do caminho. A estes, um recado especial: insista, persista e
não desista! Se for teu sonho, agarre a oportunidade e batalhe
firme, peça ajuda, estude, não se deixe abater pelas intempéries,
tenho certeza que o fruto valerá a pena!

Quero agradecer em primeiro lugar à minha família que


sempre me apoia e incentiva em cada novo trabalho. Ao marido,
Mauro Maier, filho Mike, que é o meu anjo! À mãe (Sandra), irmã
(Aline), pai (Antonio), avós (Regina e Eugênio), sobrinhos Leo, meu
grandão, e Laís, minha princesa. Aos cunhados, em especial à
Pâmela Maier. À minha sogra Sol (nome da personagem foi
inspirado no dela), primas (especial Jacqueline) e amigos de
infância e longa data, em especial: Vanda Costa, Marcelle Lima,
Katherine Iriarte e sua baby linda, a Lavínia.
Quero agradecer com muito amor a todos os leitores
maravilhosos que espalham amor em forma de foto, torcida,
opiniões e carinho. Vocês nem são gente, são anjos de Deus! Em
especial, à Michele Inácio, que é minha fanzoca, e sempre me apoia
em todas as minhas obras! Um mega obrigada a Nathalia
Bitencourt, Ana Paula Maciel, Miriam Pilar, Laneeh Martins e
Lisandra Dilara. Todos vocês são minha motivação para continuar
colocando no papel as histórias que brotam em meu coração.
Nesse caminho literário, encontrei pessoas maravilhosas e sou
grata de uma forma especial a cada uma delas! Meus parceiros:
Roberta Costa, Aninha Vasconcelos, Ana Luz, Mayara Milesi,
Gilvana Rocha, Kerrolyn Lopes, Zilda Colares, Lua Andrade, Ana
Mercury, Letícia Linhares, Vanessa Vieira, Kerollyn Lopes, Ju
Rovere, Mirelle Almeida, Nathalie Louzada, Amanda Leandro,
Amanda Bonotto, Tânia Donizete, Leandro Teles, Wesley Ítalo, Aline
Moreira, Andreia, Ísis Danielle, Awlly Cristyenn S. Silva, Daiane
Cardoso e Kamila Sthéfane.

À editora que abriu as portas e coração para que minhas


histórias entrassem e fizessem morada, The Books Editora; Wall
Oliveira e Crys Magalhães, vocês são minhas fadas madrinhas,
amigas maravilhosas que sempre dão força para continuar, minha
gratidão é imensa e não caberia em apenas uma página. Crys você
é minha fada das capas maravilhosas, te venero!

Agradeço ao diagramador, amigo e colega de profissão Pablo


Madeira pelo capricho e apoio.
Gratidão às minhas amigas escritoras apoiadoras lindas: Aricia
Aguiar, Suzana Chaves, Fê Friederick Jhones, Amanda Bonatti,
Nuccia De Cicco (de novo e de novo e ever!), Malu Simões, Jenny
Martins, Li Ferreira e as meninas do grupo Zamigas: Tatiana
Domingues, Aline Cabral, Mariana Helena, Sandra Milani Moreira,
Ingrid M.S, Barbara Garret, Gia Oliver e tantas outras que meu
Deus! Precisaria de umas dez páginas de agradecimentos...rsrs.

Ao grupo de leituras coletivas “Leitores lindos”. É exatamente


isso que são, uma lindeza em nossa vida! Ana Paula Maciel, Daiane
Cardoso, Aline Cristina Moreira, Andreia Coutinho, Thainá e Galaxe
Marcelino e outros que esqueci nome, me perdoem!

O quarteto da Sol é inspirado em amigas maravilhosas que


existem. Claro que misturei com ficção, mas tem um pouco da
essência de cada uma delas: o jeitinho da Nu, a acidez da Nat, a
sensatez da Suzy, tudo isso é bem real! A amizade com a autora
Amanda Bonatti é baseada em fatos e, assim como a personagem
Solena, sou fã dela e da Fê Friederick Jhones.

Esse livro teve betas/amigas maravilhosas que me


enlouqueceram e fizeram com que mudasse muitas coisas no
decorrer da história da Sol. Graças a elas, o livro saiu redondinho
sem furo e fez meu coração sorrir por saber que é uma história
crível com personagens com características reais. Obrigada
Fernanda Friederick, Suzana Chaves, Sabrina Oliveira e Ana Paula!
Vocês são as melhores betas do mundo.

Vou agradecer mais uma vez à Nu aqui pelo epílogo perfeito!


Quem curtiu a história, lá vai um spoiller: teremos novidades sobre o
quarteto em um futuro não muito distante (espero) rsrs.
Enfim, obrigada a você que chegou até aqui! Receba toda a
gratidão do mundo. Espero que tenha curtido essa história, como
curti escrevê-la. A Sol tem um pouco de mim, mas muito de cada
mulher que não desiste de seguir seus sonhos e buscar a felicidade.
Espero que essa história tenha acendido em você o desejo de virar
o jogo da sua vida!

Beijos.
Giuliana Sperandio.

(Junho/2019)
B

Nascida em 1986, a Carioca Giuliana Sperandio mora em


Santa Catarina. Esposa e mãe é também leitora voraz. A sua estreia
como escritora foi em 2015 com a publicação de contos na
“Amazon” e no “Wattpad”. Participou de várias antologias, inclusive
como organizadora. Violet foi o seu primeiro romance solo
publicado. É autora também do duo de terror em parceria com Crys
Magalhães “Fear of the Darkness” com o seu livro “A boneca
Maldita” que também possuí sua versão e-book independente na
Amazon e “Virei o jogo” chick-lit publicado em 2019 pela The Books
Editora.
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Conheça o meu trabalho:

Violet, 2018 – The Books Editora

Sinopse: Ela só queria fugir do seu passado e recomeçar uma


nova vida. Os ventos do destino a levaram para o coração de
uma cidadezinha pitoresca chamada Holambra, onde a
esperança tem cheiro de flores. Ele é um viúvo que perdeu o
seu grande amor, vivia apenas por sua filha e tinha perdido a fé
em recomeços.

Duas histórias que se encontram, dois corações marcados por


dores. Seriam eles capazes de enxergar os planos do destino
para suas vidas?

O perdão é a chave, a esperança é a porta. Será que eles


estariam prontos para atravessá-la juntos?

Compre em edição impressa: AQUI – E-book: AQUI


A Boneca Maldita/ Fear of the darkness, 2018 – The
Books Editora
Pessoas mentem...
Pessoas matam...

Quando a ganância e a maldade incrustam-se no cerne da


alma humana. A penumbra a toma por inteiro, arrastando-a
para o abismo. Devoram os seus sonhos e até mesmo a sua
sanidade.
O bem já não mais existe. Apenas o mal em sua forma mais
bruta e pérfida.
A escuridão reina. Espalhando-se sorrateira e voraz. No
momento em que as trevas clamam a sua alma. Não adianta
correr, não mais...
A salvação inexiste para quem brinca com a chama da morte.

Prove que não tem medo da escuridão: abra esse livro e seja
abraçado pelas criaturas que vivem nela. Aposte a sua alma e
esteja pronto para perdê-lá.
Compre a edição impressa AQUI

A BONECA MALDITA

Até onde você iria para cumprir uma promessa?Duas famílias


foram marcadas pelo sofrimento.
Uma proposta irrecusável foi feita, seria um milagre ou uma
maldição?
O amor às vezes pode ser tão letal quanto o ódio e o mal
reside onde há dor.

Reze pela sua alma perdida, antes de selar o pacto.


Leia o e-book Amazon: AQUI
Virei o Jogo, 2019 – The Books Editora
Sinopse: O que fazer quando sua vida não é exatamente o que
você esperava? Aos 30 anos, morando com a mãe e seu gato
Sardinha, sem namorado e com um trabalho do qual não gosta,
Solena se refugia na música e se distrai com “Miragem”, seu chefe
que é seu crush secreto. Mas um acontecimento inesperado traz
consequências para a sua vida, e isso a impulsiona a mudar,
fazendo-a perceber que ao seu redor existe mais do que Miragens,
gatos fofos e acontecimentos desastrosos. Preparem os lenços
para chorar de tanto rir, se divertir e aprender junto com essa mulher
pronta para virar o jogo!

Compre versão impressa AQUI

Contos publicados:

Juntos pela Eternidade - Leia o e-book amazon AQUI


Sacrifício - Leia o e-book amazon AQUI
O Menino anjo - Leia o e-book amazon AQUI
O amor tem cheiro de flor - Leia o e-book amazon AQUI

Antologias que participou:

Através da Escuridão – 2015


Bastidores, um dia na vida de um blog literário – 2016,
Editora Illuminare (esgotado)

Entre amigos – 2017 – Editora Sinna


Quem me conta um conto? - 2018 – The Books Editora

Encontro Natalino - 2018 – The Books Editora


Noite Feliz - 2018 – Help Serviços Literários/Amazon
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[viii]
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[xii]
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[xiii]

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[xv]
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[xviii]
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[xix]
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