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Recordações 2020 8

11/10/2020
Vamos continuar a transcrição do caderno .
Marília, 16 de agosto de 1960
Sinto que a vida toma nova cor, e um interesse diferente me anima e dá novo alento: não mais o tédio,
abaixo o cansaço, resta agora uma força estuante, uma alegria dosada e serena. Eu sei que o fim a que me proponho
será atingido, sê-lo-á amplamente. Um elo inesperado me ligará ao meu amado, o elo da grande amizade que ambos
dedicaremos a uma encantadora pessoa, a Maria Sylvia. E então conseguiremos torná-la muito mais do que já é. E os
três seremos então felizes como é possível ser na Terra.
29/08/1960
Eu queria não ser eu. Queria não viver a minha vida, não estar onde estou; queria não ter essa idade onde
não se é nada; onde se deseja tudo e pouco se obtém. Ás vezes assalta-me a ambição de ser criança de novo, de
brincar ao sol, de rir, de cantar. Sem mágoas, sem temores, sem preocupações; refazer minha vida desde o início,
reformá-la, embelezá-la, endireitá-la.
Freqüentemente desejo anular toda essa bagagem de preconceitos que me acompanha, por mais necessária
que ela seja. Ah, como seria bom esquecer todas as convenções sociais e mundanas, e abandonar-se inteiramente
aos impulsos que vem de dentro... Mas a bagagem lá está, à espreita, pronta pra fazer que não se exteriorizem
muitos pensamentos e desejos.
Como é incômodo estar no meio da escala: não se é animal e não se é anjo: as coisas espirituais nos elevam e
sublimam, deixam-nos ora serenos e calmos, ora inflamados e cheios de ardor, mas sempre felizes. Contudo, outros
interesses nos vêem à mente, outros impulsos nos chamam a atenção, e como não somos anjos, eis-nos chafurdados
na lama, enterrados até ao pescoço num charco de pensamentos viciosos, que nos dão uma visão falha e falsa da
vida...
Ah! Como se debate o infeliz que está no meio: a minha razão me aponta um alvo lindo e radioso a atingir,
mas a minha natureza inferior me impele para a retaguarda, lá onde dominam a inconsciência e a superstição, a
ignorância e a irresponsabilidade! Eu vou, consciente, para um estado mental infeliz, e quando volto a mim verifico
que andei para trás, e que na imensa classe dos que estão no meio, eu pendo mais para baixo do que para cima.
Não consigo saber do que estava falando.
Marília, 27 de Outubro de 1960
Viver é bom! Respirar, sentir o vento bater em nossa face e a umidade penetrar em nossos pés. Ver a beleza
do horizonte: a planície ondulada, a vertente do planalto. O tapete verde a se perder de vista. O contraste do capim
inculto que medra nas ruas e o verde majestoso das mangueiras. O pé de cana ao lado da bananeira, no quintal. O
primeiro azul intenso, aparecendo entre as nuvens escuras, após dias de chuvisqueiro. Do outro lado, a construção
bonita de um prédio novo, que será hospital e auxiliará a felicidade de muitos. E os tratores, que traçam a estrada
oficial, bem atrás da minha casa. Os bois de raça que de vez em quando ficam soltos nos terrenos adjacentes e
pastam rente à janela. As galinhas e marrecos muito mansos, que comem na minha mão, e fazem grande alarido ao
me ver chegar. E o jogo de luz do sol poente, tão belo que eu sinto não ter talento para reproduzi-lo em um quadro
perfeito e fiel.
As nuvens são levadas pelo vento, quase todo o céu ficou azul, eu gostaria de ter os olhos com esse tom
diferente, profundo e macio, ou então da cor maravilhosa da pradaria, quando a luz intensa a ilumina toda.
Como é bonito o Universo! Como a Terra, a cada instante, nos oferece espetáculos novos e contudo sempre
repetidos! E cada dia que passa os achamos mais sublimes e mais originaisl
A Natureza depois da chuva! Será que nós também ficamos melhores e mais belos com o sofrimento?
Marília, 25 de Novembro de 1960

Vou interromper a transcrição do caderno, para registrar algumas lembranças imprecisas da infância, muito ruins e
que nunca falei para os meus pais, nem para ninguém.
Inicialmente, uma de quando tinha mais ou menos 7 anos. Meus pais tinham um hotel, não sei se em
Adamantina ou Dracena. Um hóspede me mandou sentar no seu colo. Quando sentei imediatamente percebi um
volume grande e estranho. Apavorada, saí correndo e tratei de sempre me esconder e nunca mais falar com este
hóspede.
Por volta dos 11 anos, tínhamos um casal de vizinhos, provavelmente de origem paraguaia. Um dia o homem
começou a falar comigo e queria fazer massagens, dizendo que eram boas para a saúde. Graças a Deus a mulher dele
desconfiou, entrou na sala e o agrediu com palavrões, tapas etc, levando-o para fora. Nunca mais me importunou,
mas acho que ela me livrou de um estupro.
Também por volta dos 11 anos, nossa casa não tinha chave. Era fechada por dentro com um pedaço de
madeira bem forte que era encaixado em suportes de cada lado da porta. Certa vez um amigo de meu pai veio
procurá-lo quando ele não estava em casa. Deixei o senhor entrar. Logo que percebeu que eu estava sozinha,
começou a querer me pegar e apalpar. Imediatamente peguei o bastão e o ameacei e expulsei de casa. Se não
tivesse reagido com violência sabe-se lá o que poderia ter acontecido.
12/10/2020
Vamos voltar a transcrever o caderno
Marília, 25 de Novembro de 1960
Senhor! Neste momento uma grande dilema se me apresenta; vibro de angústia e a aflição não me deixa
raciocinar. Seriam falsas as primícias que me orientam? Onde está a verdade? Qual a melhor, a Ciência ou a Moral, a
teoria ou a ação? Há muito supunha ter encontrado a resposta correta, e agora já não sei. Terei razão em não querer
debater os problemas espirituais, ou a Nilce e a Yoshi terão razão ao dizer que fujo do assunto? Que deverei fazer?
Senhor, se é verdade que a prece é um estado de espírito, dá que eu aprenda a orar. Senhor, dá que eu escolha o
caminho do dever, e não fuja às oportunidades do serviço. Senhor, que eu saiba viver pelo amor do meu semelhante,
que não pense nas vantagens, materiais ou não, que advirão para mim do meu esforço. Dá, Senhor, que em tudo eu
veja e sinta a sabedoria e bondade do Ser Supremo que nos deu a vida! Que por amor a Deus e a seu sublime enviado
eu vibre e me esforce. Por favor, ajuda-me a vencer a crosta empedernida de hábitos adquiridos em vidas sucessivas
de erros e desvios. Que eu aprenda a viver em função do amor e da compreensão, da pureza e da justiça, afim de que
a razão fria e falível não seja minha única orientadora. Dá que eu vença a hidra do egoísmo e arraste com ela o
orgulho e a presunção. Eu quero a paz, e a única coisa que ma pode dar é a ação desinteressada em prol do meu
semelhante, seja numa palavra amiga, numa anedota divertida, num pequeno serviço sem importância, ou obras de
vulto. Que eu saiba valorizar o mínimo esforço alheio,sem dar, de fato, no mais íntimo do meu ser, importância ao
meu próprio. Que assim seja!
Marília, 14 de Dezembro de 1960

Hoje o 3º científico partiu para o Rio. Com eles seguiu parte de mim, pela admiração e amizade que
dedico a todos daquela classe. Contudo ficou comigo o meu dilema, o conflito interno que me assoberba.
A vida, essa criatura de mil faces, cheia de encantos e de surpresas, nos oferece também problemas
vários: se fugimos e eles, nos tornamos infelizes. Agora o meu problema é diferente...
* **
Que problema seria este? Já nessa época, comecei a fugir de debates realmente. Notei uma
motivação muito forte para ganhar , e uma exaltação quando conseguia. Depois, uma queda total, quase
uma depressão. Fiz um esforço muito grande para eliminar estes altos e baixos. Consegui, mas tudo ficou
sem graça. Depois desisti, pois conclui que o preço dos baixos que devia pagar por cada alto, compensava.
Era melhor ter alguns altos, do que nada.
13/10/2020
Notei que no caderno não há nada sobre 1961. Foi a ano em que cursei o 3º científico. Nossa classe
ficou reduzida a 10, 11 pessoas, não lembro bem o número. A pirâmide educacional daquela época era
terrível. Começamos o científico com duas classes diurnas e uma noturna, todas lotadas Terminamos com
apenas uma com 10, 11 alunos. Aalguns alunos mudaram para a escola particular para fugir da reprovação
e não voltaram, e outros mudaram para São Paulo, para já fazer cursinho para o vestibular para o ensino
superior, então podemos considerar que tivesse 20, 25 alunos. Mesmo assim é muita perda.
Acho que foi nessa série que passei por uma espécie de “bulling”. Meus colegas resolveram brincar
que eu estava apaixonada por um colega. Eu não estava e achava o rapaz feio. Eles ficavam insistindo. Aí
resolvi fingir que estava mesmo apaixonada. Eles levaram um grande susto e nunca mais me
incomodaram.
Também foi o ano em que comecei a trabalhar e piorei minhas notas no colegial. Porisso acho que
o trabalho junto com o estudo prejudica muito o aluno. Se puder deve ser evitado.
Em 1962 meus pais se mudaram para Santa Isabel, porque não queriam que eu viesse sozinha para
estudar. Em Santa Isabel morava o irmão de papai, o José Alvarenga, que já fazendas, estava muito bem
financeiramente, e tinha sido até prefeito da cidade por duas vezes. Papai tentou montar um escritório de
contabilidade, mas não aceitava tirar os fregueses do outro contador que já tinha na cidade. Dessa forma
não deu certo e tratou de mudar para São Paulo. No começo não conseguia emprego, por já ter mais de 40
anos. Eu já era amiga da Marilu, colega do curso de Pedagogia, cujo pai era pequeno (médio?) industrial e
reclamava que precisava de um bom contador, para a firma não falir. Falei do meu pai e eles conversaram.
Papai trabalhou para o Sr. Lino por uns três anos. A firma faliu do mesmo jeito, mas conseguiu se manter
ainda por aqueles três anos. Depois, com a carta de recomendação já foi mais fácil para o papai conseguir
emprego até se aposentar no tempo certo.
Agora vou continuar a transcrição do caderno

Santa Isabel, 13 de Junho de 1962


Autor desconhecido
Não devo amá-la... e amo-a com loucura!
Quero esquecê-la...e trago-a na lembrança!
Ai! Quem me livra deste mal sem cura
A que o destino trágico me lança!

Uma nuvem de tédio e amargura


Cobre-me a loura estrela da esperança...
Tudo cansa por na vida escura,
Só este amor infindo é que não cansa.

Se os olhos baixo, vejo-a nos meus sonhos,


Se à noite acordo, sinto que enlouqueço
De uma angústia nos vórtices medonhos...

E esta noite em que vivo jamais finda


Pois quanto mais procuro ver se a esqueço
Sinto que a adoro mais ainda.

15/09/2020
Continuo a transcrição do caderno
Santa Isabel, 14 de julho de 1962
Hoje tive uma grande decepção. Quando uma pessoa se entretém criando castelos imaginários de
areia, acaba crendo neles. E um sopro da realidade, destruindo-os, repercute dolorosamente.
No entanto, embora eu saiba que é um grande vício, não quero deixar de embalar-me em sonhos
quiméricos. Por isso, jamais posso culpar ninguém pelos meus desenganos, exceto a mim mesma. Uma
poesia de um autor romântico é o que me retrata:
Matas-me, é minha e não tua,
Essa culpa sem perdão,
O crime de um suicida,
Que em soluços esbanja a vida
Sabendo que sonha em vão!

Santa Isabel, 16 de Julho de 1962


Não saber o que se quer! Não achar interesse na ausência! Pequeno problema aflitivo e cruel...
Quando voltarei a ter ideais tão sublimes que me façam esquecida do meu eu? Quando deixarei de
procurar o Amor para de fato vivê-lo?
Creio nunca ter amado ninguém. Sempre tive caprichos, mais ou menos intensos, mais ou menos
duradouros; agora, contudo, superei em tudo na volubilidade e na indecisão.
Seria tão simples dizer: o que sinto não é amor legítimo, é farsa, é simulacro. Cessemos então a
farsa e vivamos a vida real!
Porém, embora eu saiba disso, prefiro continuar joguete das circunstâncias. Saber que uma coisa é
impossível e querê-la, desejá-la ainda assim, apesar de tudo...
Será de fato apesar de tudo, ou por causa de tudo? Quem sabe essa paixonite tão estranha e
teimosa não tem raízes numa inconsciente revolta contra as convenções? Numa necessidade de auto-
afirmação mediante um ato “suigeneris”
Se assim for, onde está a solução para que ela acabe e não deixe cinzas capazes de se reacenderem?
Certamente não é satisfazendo os seus anseios de aceitação e carinho.
Esse meu caso não tem solução plausível: se o rapaz quisesse, ambos viveríamos um pequeno
drama na oposição familiar. Como ele não quer, eu fico angustiada e insatisfeita. Devia receber umas
palmadas, afim de agir sensatamente.
Oxalá chegue logo Agosto. Começando o cursinho, o estudo não me dará tempo de alimentar
obsessões!
Que mania de escrever sem dizer os nomes. Agora tenho que adivinhar do que eu estava falando.
Tudo indica que se trata da paixão que tive por um amigo do Edison, o Domingos. Ele era mulato. Sempre
soube do racismo no Brasil, mas imaginava que a minha família não era racista. Ledo engano. Quando a
Terezinha, minha prima, traiu minha confiança e contou a todo mundo minhas confidências secretas, foi
uma tremenda tempestade. Ninguém queria esse namoro, e os argumentos eram os mais variados. Perdi a
idolatria pelo meu pai. E passei a ter mais admiração pela minha mãe. Ela sim sabia argumentar, e acabou
me convencendo. Diante do racismo geral, terrível realidade do país, se acabasse namorando, me casando
e tendo filhos, eles iriam sofrer demais com os preconceitos. Isso me convenceu. Não queria que meus
possíveis filhos viessem a sofrer. Mas o motivo real de não ter namorado o Domingos foi que ele adorava
uma ex namorada dele.Logo fizeram as pazes. Acabaram se casando, e, pelo que eu saiba, são felizes até
hoje.

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