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RECORDAÇÕES 2020 2

Minha mãe, Sofia Ribeiro da Silva Alvarenga, nasceu em Mundo Novo, distrito ou antigo nome de
Catanduva, no estado de São Paulo, em 9 de agosto de 1918. Seus pais vieram do estado de Minas Gerais e
diziam que havia muita briga pelas terras. Era um autêntico faroeste. Meus avós maternos tiveram 6 filhos:
Julieta, Isaura, Cecília, minha mãe Sofia, Maria José e Miguel. Parece que houve também mais um menino,
que morreu bebê por sarampo.
A tia Julieta (Leta) casou cedo e foi abandonada pelo marido com cinco filhos para criar: Alípio,
registrado como Ovidio, Floripes, Joaquim, Nilson e Sergio (?). O Nilson era surdo e quando criança
demorou para se desenvolver mas acabou aprendendo tudo que era importante. Ele e o Sergio tinham
olhos verde-azulados. Os outros tinham olhos castanhos. Todos magros e altos. Todos casaram e tiveram
filhos, mas não tive quase contato com eles.
A tia Cecilia formou-se professora e ajudou sempre todos os irmãos e sobrinhos. Casou-se com um
advogado, tio Waldemar Ribeiro do Vale, e teve dois filhos, a Eugenia Maria (Geninha) e o Waldemar
Junior (Vadá). O tio Waldemar era muito legal e eu gostava bastante dele, e de meus primos. Nas férias a
tia Cecilia, que era minha madrinha, me levava para passar uns dias com eles em Araçatuba. Aí eu nadava
na piscina do clube e lia os livros que eles tinham, principalmente o “Tesouro da Juventude”. Meu tio
ganhou algumas causas para os Almeida Prado, paulistas ricos e famosos. Parte dos honorários foram
pagos em terras e assim meus tios também se tornaram fazendeiros.
A Isaura tornou-se costureira muito hábil e requisitada. Comprava os figurinos estrangeiros, como a
revista Burda, alemã, e conseguia fazer todos os modelos. Também olhava as lojas e conseguia imitar os
modelos. As roupas mais bonitas que já tive foram feitas por ela. Era bem paga.
A Maria José formou-se professora, mudou para São Paulo, fez cursos de aperfeiçoamento e virou
diretora de escola. Com as reformas de ensino na década de 1970, na ditadura, seus cursos foram
considerados equivalentes ao de Pedagogia e ela continuou como diretora com salário de nível superior.
O tio Miguel era mais aventureiro, tornou-se alfaiate e teve loja no centro de Santos. Casou-se com
a tia Maria e teve três filhos, o Nilverde e mais dois. Minha triste memória esburacada não reteve os
nomes dos meus outros dois primos.
Tio Miguel teve muitos altos e baixos financeiros, e acabava sendo ajudado pela tia Cecilia e pela tia
Maria José durante os baixos. Tornou-se umbandista e levou meus pais para o centro que freqüentava,
com sede pelo menos em Santos e em São Paulo. Quando maduro teve câncer de ossos e ficou bom com
os tratamentos, tanto físicos como espirituais por cerca de 10 anos. Quando o câncer recidivou ficou
revoltado, fugiu do hospital e se matou em casa com tiro de revolver. Toda a família ficou inconsolável,
porque no Espiritismo, na Umbanda e no Catolicismo o suicídio é considerado muito grave.
O Nilverde formou-se em Direito e teve escritório bem sucedido e também escolas particulares.
Não sei detalhes dos negócios dele, mas parece que, com ajuda do sogro que era rico, também ficou rico.
Ele teve 3 filhos, sendo o mais novo com Down ou algo parecido. Todos se empenharam muito e o menino
ficou bem. Tive pouco contato com eles, pois o Kestutis não se sentia prestigiado pela família do Nilverde.
O irmão do meio do Nilverde casou-se com uma moça que a tia Maria José não gostava. Mesmo
assim ela buscou ajudar o quanto pode. Numa viagem, com tia Maria (mãe do rapaz, mulher do tio Miguel)
sua mulher (?) e a única filha deles, furou um pneu com o carro em alta velocidade. Acho que agora
lembrei os nomes: Miguel Ricardo, o irmão do meio e Marco Neves, o caçula. O Miguel Ricardo, que dirigia
o carro, ficou muito ferido. Tia Maria e a filhinha do Miguel Ricardo morreram na hora.Levou anos para o
Miguel Ricardo se recuperar, tanto física como emocionalmente.
A Isaura e a Maria José tiveram vários namorados, chegaram a ficar noivas, mas brigaram e não se
casaram . Sempre foram muito mandonas.

01/09/2020

Agora, cada vez que lembrar alguma coisa e quiser escrever, vou datar.
Assim saberei com que freqüência me lembro e quero escrever.
Vou mandar para a Márcia uma vez por semana. Depois que mandar abro novo documento,
sempre datado.
Vou tentar não censurar nada. Se repetir a mesma coisa várias vezes e de cada vez diferente, que
seja. Tentarei me despreocupar com seqüência ou exatidão, ou correção lingüística. Do jeito que vier vai
sair. Do contrário vou travar e não escreverei mais nada.
Nasci em Pereira Barreto, no estado de São Paulo, em 1943. Meu irmão, Edison, nasceu em São
José do Rio Preto, em 1941. Não sei quando nós mudamos para São Lourenço, em Minas Gerais. Imagino
que eu tinha uns dois anos. Minha mãe sempre contava de um acidente comigo. Ela e meu pai iam ao
cinema. Moravam num sobrado, e deixaram meu irmão e eu, cada um na sua cama. Antes mesmo de
saírem ouvirem um ruído: Bah! Foram conferir e me acharam no corredor. Só tive uns arranhões e falei
para minha mãe que uma mulher me segurou lá embaixo. Algum tempo depois todos foram para um
casamento em Aparecida do Norte, em São Paulo. Era costume de muitos se casarem naquela cidade,
considerada milagreira. Depois da cerimônia minha mãe estava conversando do lado de fora da igreja
quando eu fiquei puxando a saia dela e chamando com insistência. Finalmente ele me atendeu e foi
comigo até onde eu queria. Parei na frente do altar, apontei Nossa Senhora e disse : “Foi ela que me
segurou lá embaixo”.
Muitos anos depois consegui lembrar ou inventei o que aconteceu. Logo que minha mãe desceu as
escadas, fui brincar com meu irmão. Subia na máquina de costura e pulava na cama. Aí sentei no
parapeito da janela e encostei. Ela estava aberta e eu caí. Do que a minha mãe sempre contou não lembro
nada. Devia ter uns 3 anos.
Ainda em São Lourenço, brincando na rua, pulávamos os buracos dos alicerces de uma casa em
construção. O Edison caiu de mau jeito no buraco e quebrou o braço perto do cotovelo. Não havia meio de
firmar. Calcificava errado. Minha mãe foi atrás de um padre milagreiro famoso numa cidade que não
lembro o nome. Não sei se era o frei Galvão ou outro padre. No terreiro, no meio da multidão, minha mãe
ouviu um “crec” vindo do braço do Edison. Depois foi ao médico e o osso fraturado tinha sarado. Ele devia
ter cerca de 6 anos.
Eu vivia me machucando e ficava com cicatrizes. Um dia meu pai me falou, quase chorando:” tenha
mais cuidado. Você é menina. Não pode ficar cheia de cicatrizes”. Fiquei com pena do meu pai. Tomei mais
cuidado e quase não machuquei mais. Devia ter menos de 6 anos, pois tenho certeza que ainda foi em São
Lourenço.
Tenho várias fotos tiradas em São Lourenço, num parque muito bonito da cidade. Meus pais tinham
um bar, perto do cassino. Meu irmão ia com os amiguinhos e todos se esbaldavam de tomar sorvete. Devia
ser um grande prejuízo. No meu caso, tanto minha mãe não me deixava tomar sorvete, que acabei me
convencendo de que eu não gostava. Só fui gostar bem depois de adulta.
Quando o presidente Dutra proibiu o jogo no Brasil os cassinos foram fechados e o bar começou a
dar prejuízo. Então eles se mudaram para Dracena, no estado de São Paulo. Depois foram para
Adamantina, de novo Dracena,Marilia, Adamantina e finalmente se aquietaram em Marilia.
Eu tinha entrado na primeira série ainda em São Lourenço. Com todas essas mudanças fui reprovada.
Minha mãe não aceitou e me matriculou na segunda série em Marilia. Fiquei reprovada na segunda série.
Depois disso, nos demais anos,sempre passei em primeiro lugar da sala durante o primário. No começo do
ano as notas eram baixas e iam subindo gradativamente até o final do ano. Não sei se era só comigo ou se
era uma espécie de estratégia dos professores com todos os alunos.
No quarto ano, em Setembro, minha mãe me matriculou num cursinho particular de preparação
para o vestibulinho do ginásio. A professora, dona Lidia, me fez sentar com as duas melhores alunas, a
Reiko e a Fuzeko. A Reiko me emprestou os cadernos dela para eu copiar. A minha letra era horrível. Ora
grande, ora pequena, quase invisível. Ora reta, ora inclinada para a direita, ora inclinada para a esquerda.
A letra da Reiko era lindíssima. Toda redondinha, de tamanho médio, sempre na vertical. Morria de inveja
da letra dela. Quando eu já tinha copiado tudo, meus cadernos sumiram. Procurei na casa toda e não
achei. Tive que copiar tudo de novo. No final do ano achei os cadernos no ninho das galinhas. Como foram
parar lá? Até hoje não sei.

02/09/2020
Meu primeiro dia de aula no ensino primário, lá em São Lourenço, tinha um cartaz bem grande e
colorido com uma menina comendo doce. Em baixo, com letra de forma iniciando com maiúscula de
depois minúscula, “Eu gosto de doce”. Cada criança recebeu uma folha igualzinha ao cartaz. Não lembro
das atividades, mas nós levávamos as folhas para casa. Depois mudava a lição e a gente ia colecionando.
Lembro apenas de ter muita inveja das coleguinhas porque as folhas delas eram impecáveis e as minhas
eram amarrotadas, manchadas e feias.
Agora, acho estranho só lembrar disso. Nenhum nome, nenhuma face ou vulto, nem de menino,
nem de menina, de professor, professora, inspetor de alunos. Só a sensação de inveja e inferioridade.
Seria eu sempre rebelde, e recusei ajuda da minha mãe? Ou ela achava que era trabalho meu e não
interferia? Nunca mais saberei . Não há mais como perguntar. De qualquer maneira, um pouco mais de
ajuda e de orientação para fazer o trabalho contribuiria para ficar mais organizada e caprichosa. Sentir
inveja é muito ruim.
Quando, no meio do ano, mudamos para Adamantina ou Dracena, usavam a cartilha “Caminho
Suave”. A primeira lição era: A pata nada. Pata . pa. Nada. Na. Demorei para me adaptar. No ano seguinte
mudamos para Marilia. Fui matriculada na 2ª série, mesmo tendo sido reprovada na primeira. Estava com
muita dificuldade. Antes do meio do ano voltaram para Adamantina, de lá para Dracena. De Dracena para
Adamantina de novo e finalmente para Marília. Voltei para a mesma classe, já cerca de Outubro, mas já
perdido totalmente o pé e fiquei reprovada.
Nas demais séries fui bem e terminei o ano em primeiro lugar. Mas não lembro do nome nem da
fisionomia das professoras, exceto do 4º ano. Esta, dona Cecilia, era excelente. Ela falava com voz suave,
sem nunca se alterar. Quando precisava sair da sala pedia para nós fazermos silêncio. “ Não quero ouvir
nem uma mosca”. Nós, por amor a ela, fazíamos silêncio absoluto. Ela dava muitos exercícios de ortografia,
com muitas listas de palavras difíceis, primeiro de um tipo, até decorarmos, e depois de outro com
semelhanças ou diferenças para decorarmos de novo. Depois, confrontando as duas. Dessa forma todos
aprenderam. Dava exercícios de redação à vista de gravuras. Ela lia para nós três ou quatro redações como
modelos, tanto de descrição como de invenção de estórias. Depois cada um fazia sua redação. Ela corrigia
todas as redações e comentava como melhorar. Como ela trabalhava as outras matérias não me lembro.
No final do ano, os alunos que iam fazer o vestibulinho foram para a classe de 5º ano. Era uma
classe que atendia os alunos que não tinham idade no ano anterior para fazer o vestibulinho (menos de 11
anos até Julho), ou que não passaram no ano anterior no vestibulinho. A professora era a mesma do
cursinho particular que eu tinha entrado em setembro. No entanto ela gritava, desmerecia os alunos, e
quando saía da sala era a maior bagunça. Nunca consegui perdoá-la por um comentário que fez a meu
respeito. Em geografia tínhamos que decorar os países e suas capitais do mundo inteiro. Estudei muito mas
esqueci os nomes de alguns países. Ela disse que quem estuda não esquece. Fiquei muito revoltada.
No vestibulinho tinha provas escritas e orais. Eram vários dias seguidos de provas. Na primeira
prova fui bem. Estava com um vestidinho amarelo com babados muito bonitinho. Achei que o vestido tinha
dado sorte e fui em todas as provas com ele. Acabei passando em 3º lugar no vestibulinho, que tinha
crianças de todas as escolas da cidade (quatro grupos escolares e talvez também escolas particulares). No
entanto achei que não foi justo. Eu deveria tirar notas menores, porque tive nota 9,0 em matemática e
devia ter nota 5,0 ou 6,0, porque errei um problema. Os examinadores deram nota para o raciocínio
(acertei tudo) e para cada conta indicada. Eu errei a primeira conta (6 dividido por 3, devia dar 2 e eu
considerei 3) . Depois tinha divisão pelo resultado da primeira, multiplicação pelo resultado da segunda e
assim por diante. Deu dizima periódica, cada conta mais difícil que a anterior. Mas todas certas pelas
minhas indicações. O resultado final era errado, mas só descontaram a conta errada. As contas certas do
problema eram muito mais fáceis, não tinha nem decimal. Mas até hoje acho errado. Nunca almejei
nenhuma carreira que exigisse cálculos. E se a ponte caísse, o astronauta se perdesse no espaço, o doente
morresse por erros de cálculo?
Também tive muita sorte. Em geografia caiu só o que eu sabia. Em história tinha a Guerra do
Paraguai. Era um texto de duas páginas. Consegui decorar até o penúltimo parágrafo, mas não o último.
Caiu a Guerra do Paraguai. Comecei a falar: patati, patatá,tarará tarará. Lá pelo meio o professor me
mandou embora e deu nota 10,0. Se esperasse até o fim o resultado seria outro.

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