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ONIPOTÊNCIA

Carmen Tonanni
Com a colaboração de André Viana

Livros de família
4 breve justificativa

6 “Não sofra por quem não a merece”


14 Cão e gato
22 A chegada da princesa
28 Mulher-maravilha
36 Em algum lugar
44 Separações
52 Solidão
58 Marilene
74 A velha poltrona
78 O fim é um começo
Breve justificativa De uns tempos para cá, resolvi escrever sobre a
minha vida, sobre algumas dificuldades e desafios
pelos quais passei.
Seria onipotência de minha parte achar que
outros poderiam se interessar ou aprender algo
com as minhas experiências? Não sei, vocês dirão.
De qualquer modo, escrevi.
Dedico este livro aos meus filhos, Flavia e Luis,
e aos meus netos Felipe, Pedro, Helena e Lucca.

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“Não sofra
S
ou hiperativa, desde sempre, assim cresci e
vivi, criticada e rotulada por minha mãe, mas
por quem não admirada e adorada pelo meu pai, o que fez
toda a diferença.
a merece” Minha mãe jamais quis ter filhas, dava valor ape-
nas ao homem. Fazia o necessário para mim e para
minha irmã mais velha, Corina, mas não nos aco-
lhia, não nos dava seu amor incondicional. Tinha
muita dificuldade em lidar com mulher. Para ela,
minha irmã era burra e eu era briguenta. Sempre
que eu abria a boca, ela me criticava: “Carminha,
você é muito agitada! Carminha, você fala demais,
você não para pra pensar!”.
Quando meu irmão Carlos nasceu foi uma festa,
a fábrica apitava, minha mãe finalmente se realizou.
Ela o protegia de uma maneira absurda, dizia que
ele era doentinho, o que não era verdade. Tinha,
sim, as doenças naturais da idade, mas era um me-
nino extremamente inseguro e tímido.
O destino me fez ser a filha do meio, e com isso
fui a mais privilegiada, por não ter sido nem tão
pressionada como Corina, nem tão protegida como
Carlos. Assim, tive espaço para aprender a me de-
fender desde cedo da minha mãe e do mundo. Com
meu pai era diferente. Ele me amava incondicional-
mente. Sempre me valorizava e ficava encantado

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com minha força de vida. Minha mãe me derrubava irmã da minha mãe, em Campinas. Nesse dia, final-
e ele me levantava. Lembro de mim entrando na mente conheci a Licinha, uma das mulheres mais
sala dele, uma sala enorme, na fábrica, que ficava a feias que conheci até hoje. Quando olhei para ela,
apenas um quarteirão da nossa casa. Todo mundo comecei a chorar. Minha tia quis saber por que eu
morria de medo de ir falar com ele, mas eu não. chorava daquele jeito e eu respondi: “Minha mãe
Eu ia entrando aos pulos e ele sempre me acolhia, falou que eu sou a cara da Licinha...”.
olhava para mim com orgulho, e quando eu contava Meu relacionamento com minha mãe era muito
alguma coisa, ele achava o máximo, dava risada. A difícil, com muitas críticas e brigas, e assim passei
confiança que eu tenho hoje foi muito por ele me a vida lutando para não sucumbir, me esforçando
estimular do jeito como estimulou. para agradar e ser amada, e, ao mesmo tempo, ou
Numa outra ocasião, quando eu já tinha uns talvez justamente por isso, sempre me destacando,
14 anos, morávamos em São Paulo e eu tinha uns sendo sempre o centro das atenções – não por ser
flertes com um namoradinho em Jaboticabal. Um a melhor da classe, nem a mais bonita, mas pela
dia, por acaso, esse namoradinho me viu com ou- minha autoconfiança e força de vida.
tro rapaz nos jardins do Trianon. Quando fui para
Jaboticabal, eu me encontrei com ele em uma quer- •
messe e ele me ignorou. Fiquei arrasada. Quando

N
entrei no carro dos meus pais, contei o ocorrido. asci em Jaboticabal, no interior de São
Minha mãe falou: “Você é muito avoada, briguenta, Paulo, no dia 5 de junho de 1941, e carre-
não tem cabeça, só provoca confusão!”. Meu pai, go em minhas veias três partes de sangue
ao contrário, falou algo que nunca esqueci: “Minha imigrante. Meus dois avós paternos eram italianos
filha, não chore, não sofra por quem não a merece”. e meu avô materno era espanhol. Só minha avó ma-
Desde pequena, eu ouvia minha mãe falar assim terna era brasileira. Meu pai, Augusto, era filho de
para mim: “Você é a cara da Licinha”. Licinha era italianos – meu avô Carlos era de Perugia e minha
uma prima dela que eu não conhecia. Quando eu avó Corina, de Mantova.
tinha uns dez anos, fui visitar minha tia Carmita, Meu avô materno, Avelino, havia emigrado para

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o Brasil com 15 anos de idade, conheceu minha avó onde meu pai fundou uma fábrica de brinquedos
em Campinas, casaram e ele quis mostrar a ela sua chamada Vovô Índio e uma outra de carrocerias de
terra natal. Na época da viagem, minha avó já estava caminhões, o que tinha tudo para dar certo, pois es-
grávida e foi por isso que minha mãe, Maria Evelina, tavam acabando de asfaltar a rodovia Anhanguera.
nasceu na Espanha, mais precisamente em Vigo, na Em Campinas, meus pais alugaram uma casa
Galícia, terra do General Franco. Com um mês de muito boa na rua Joaquim Ozório. Eu e minha irmã
idade veio para o Brasil. Corina passamos a estudar no Colégio Sagrado Co-
A mãe da minha mãe se chamava Castorina ração de Maria enquanto meu irmão, que era bem
– Castorina Leme Cavalheiro. De família quatro- mais novo, ficava em casa. Depois de dois anos,
centona, foi uma grande educadora em Campinas, contra a vontade de minha mãe, voltamos para
tanto que tem uma escola com seu nome na cidade. Jaboticabal por insistência do meu avô paterno, que
Infelizmente minha avó morreu cedo, de tubercu- passava por dificuldades na empresa e implorou ao
lose, quando minha mãe tinha 15 anos. meu pai que retornasse.
Quando eu tinha perto de 4 anos de idade, meu A empresa se chamava Carlos Tonanni SA. Havia
pai brigou com o pai dele e nos mudamos para o sido fundada em 1904 e começou produzindo rodas
Rio de Janeiro, onde meu pai foi gerenciar o Hotel de carroça em série. Mais tarde virou fábrica de
Serrador, um dos mais bonitos e antigos da cidade, máquinas agrícolas de beneficiamento de arroz e
que pertencia à nossa família. Lá ficamos por uns de máquinas operatrizes. Meu avô tinha comprado
dois anos, primeiro morando numa casa no bairro uma usina de açúcar no Nordeste, o que levou a
de Botafogo, na rua Dona Mariana, e depois em um empresa a se endividar muito, sendo essa a razão
apartamento em Copacabana, situado em um dos de desavença entre meu pai e meu avô, que nos
prédios mais antigos da avenida Atlântica e que levou a mudar para o Rio de Janeiro.
ainda hoje está lá. Eu tinha 8 anos quando saímos de Campinas e
Minha mãe não gostava muito do Rio, e como voltamos para Jabuticabal. Estava longe dos pro-
meu pai não queria voltar para Jaboticabal, termi- blemas dos adultos. Gostava de pular amarelinha
namos indo para Campinas, terra da minha mãe, na calçada da nossa casa ou então brincar de pega-

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-pega, queimada e outros jogos na praça que havia sucedido, minha mãe tinha uma vida privilegiada.
em frente, onde passávamos as tardes, meninos e A questão era que, por ter perdido a mãe muito
meninas. Eu andava a pé ou de bicicleta pela cidade cedo, ela havia sido criada em parte pelas tias, ir-
inteira, tinha uma liberdade invejável, que hoje não mãs da minha avó, que criticavam tudo o tempo
existe mais, e ia muito à livraria Acadêmica, ponto todo e colocaram muito complexo nela. Isso atra-
de encontro dos jovens. Enfim, me divertia muito, palhou demais sua vida, e acho que de algum jeito
o mundo era meu e eu fazia o que queria, sempre influenciou a relação dela com a própria identidade
com a aprovação do meu pai. feminina e, consequentemente, com as filhas. Ela
De minha mãe, a única lembrança boa que te- era uma mulher extremamente insegura e amarga.
nho são os Noturnos de Chopin que ela tocava ao Via apenas o lado negativo das coisas. Penso, hoje,
piano de casa. Ela começou a estudar piano com que minha personalidade e minha autoconfiança
sete anos de idade, em Campinas, e parou quan- deviam incomodá-la muito. Eu era alta, magricela,
do se casou, aos 21. O professor dela se chamava uma moreninha “feinha e sem graça”, segundo ela,
Ichel Berkowitz, que tinha sido contemporâneo de mas cheia de vida e de alegria.
Arthur Rubinstein. Ela tocava muito bem, chegou Com 13 anos, tive minha primeira festinha com
a dar um concerto aos 18 anos. Guardo até hoje meninos e meninas. Lembro até hoje do meu ves-
o libreto desse concerto. Não sei dizer se ela deu tido estampado de amarelo, com um bolerinho.
outros, mas sei que esse foi muito marcante para Enrolei meu cabelo, que sempre foi liso, e passei a
ela. Ela dizia assim: “O maior erro da minha vida tarde esperando pela festa. Qual não foi minha sur-
foi casar. Eu era uma grande pianista, não devia ter presa quando começaram as danças e os meninos
deixado”. brigavam para dançar comigo, todos disputando a
Minha mãe nutria uma enorme frustração por minha companhia. Não entendi nada. “Por que es-
causa disso, mas, no meu entendimento, ela não tão brigando por uma menina feinha e sem graça?”
tinha razão alguma para ser uma pessoa amarga. pensava. Naquela época eu não sabia ainda que eu
Meu avô tinha uma casa muito bonita em Campi- tinha o que poucas pessoas têm: alegria de viver. O
nas, em estilo holandês, era financeiramente bem mundo era meu.

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Cão e gato
C
om 14 anos, mudamos para São Paulo. Enquan-
to meus pais organizavam a saída deles de Ja-
boticabal, morei seis meses na casa que era do
meu avô, na alameda Campinas, esquina com a Santos.
Estudava no Colégio Sacré Cœur de Marie, na avenida
Nove de julho, e tomava o bonde na avenida Paulista. O
ônibus elétrico descia a rua Augusta inteirinha e parava
perto do colégio.
Depois de seis meses, meus pais alugaram um
apartamento na esquina da avenida Paulista com a
rua Joaquim Eugênio de Lima e fomos todos para
lá. Como meu pai continuava com seus negócios no
interior, seguimos indo muito para Jaboticabal. Por
morar em São Paulo, e ter interesse e curiosidade
por tudo, uma característica que acompanhou toda
minha vida, sempre que eu ia para Jaboticabal eu
fazia sucesso entre os rapazes. Acreditava uma hora
que era pelo vestido diferente que usava, outra por
vestir calça comprida o que ninguém ainda fazia. Só
não enxergava que o interesse deles era por mim
mesma.
Com 17 anos já tinha me formado no Curso Nor-
mal e ainda não sabia se queria fazer faculdade.
Resolvi, então, trabalhar com meu pai no nosso
escritório de São Paulo. Quando falei para ele da
minha vontade, meu pai aprovou e disse que eu

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seria compradora. Imagine uma garota de 17 anos mim, mas acho que não queria nada sério com uma
sendo compradora em uma fábrica de máquinas menina sem experiências como eu. Passei alguns
operatrizes. Eu não tinha ideia do que eu tinha que anos tentando e ele nunca me deu a menor bola.
fazer.
O gerente Eiffel não apenas não me ensinava •
nada como ainda me boicotava. Quando eu fazia

L
algum pedido e errava por falta de conhecimento, á pelos meus 20 anos, conheci o rapaz com
ele ria de mim. Aos poucos fui aprendendo o ofício quem iria me casar. José Luiz era amigo de um
e passei a ajudar muito meu pai. Visitava as feiras primo que, um dia, o trouxe em minha casa.
de mecânica, ia aos bancos, fazia tudo o que fosse Achei ele brega e muito sério. Usava uns ternos
preciso. Estava sempre presente, sempre pronta apertadinhos, mal feitos, bem cafonas. Eu gostava
para contribuir, sem preguiça, o que faz toda a dif- de ver um homem bem vestido. Naquele dia ele
erença. Trabalhei com meu pai por uns cinco anos vestia uma meia branca, e eu achei aquilo uma coisa
e só parei por imposição do meu futuro marido – o horrível.
que, hoje penso, foi um grande erro. Logo depois de conhecê-lo, fui para o Guarujá,
Em janeiro, eu não trabalhava. Íamos todos os como sempre fazia no verão. Lá comecei a namorar
verões para o Guarujá, onde alugávamos um óti- um outro rapaz, de boa família, muito educado e
mo apartamento na praia de Pitangueiras. Era um que tinha um Jaguar preto esporte que eu achava o
tempo muito diferente. Existia o Cassino, onde à máximo. Marcávamos encontros na praia, e se ele
tarde nos reuníamos, meus amigos e eu, à beira se atrasava, eu ia sozinha e ele vinha atrás. Ele era
da piscina. Na praia, passeávamos e desfilávamos muito independente e confiante de si e acho que
em roupas de banho. Eu adorava. Gostava muito pensava o mesmo de mim.
de dançar, de ir a festas, de me vestir bem, o que Todo fim de semana ele vinha para o Guarujá
fazia com inteligência, pois não tínhamos dinheiro e às vezes passava uns dias da semana também,
para luxo. Não tinha namorado e estava encantada mas aos poucos comecei a perceber certas coisas.
por um rapaz mais velho que até achava graça em Quando ele e os amigos se encontravam na praia,

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as namoradas tinham de ficar dentro do carro, es- começamos a sair.
perando, enquanto os rapazes se reuniam bem Um mês depois, o meu antigo namorado me
longe, na praia. Também em nossas saídas, à noite, telefonou. Sempre fui curiosa e queria ver se ele
comecei a notar que ele ia muito ao banheiro com tinha tomado jeito, por isso aceitei me encontrar
os amigos. Quando lhe perguntei o que fazia, ele com ele. Eu havia marcado de sair com José Luiz
desconversava. Mas logo acabou me confessando às sete horas da noite e o rapaz me ligou às quatro
que usavam drogas – cocaína e maconha. Fiquei da tarde. Saímos e depois fui encontrar o José Luiz.
horrorizada e disse que se continuasse com aquele No fim das contas, esse rapaz de quem eu gostava
tipo de hábito eu iria terminar com ele. Ele me pro- continuava o mesmo. Terminei com ele repetindo
meteu parar. que não aceitava o tipo de vida que levava.
Um dia, liguei no seu escritório e ele me disse José Luiz, não. Era filho único, mimado, mas
que estava jogando cartas com os amigos. Pergun- muito sério e trabalhador. O máximo que fazia
tei se ele não tinha vergonha, eu trabalhando no era fumar. Começou a trabalhar desde cedo nos
escritório do meu pai e ele jogando baralho. Por negócios da família e rapidamente subiu na em-
ser extremamente racional e gostar de trabalhar, presa. Era muito batalhador e logo conquistou um
sempre dei muito valor ao trabalho e não aceitei alto cargo nas empresas. Era isso que eu admirava
a maneira como ele vivia. Drogas, jogos e nada de nele. Gostava da sua maneira de lutar, trabalhar,
sério – não era, definitivamente o que eu queria de fazer as coisas. Com seu gênio difícil e a minha
para a minha vida. personalidade forte, brigávamos feito cão e gato,
Nesse meio tempo, reencontrei José Luiz. Eu eu querendo mandar nele e ele em mim. Tinha um
estava ainda decepcionada com meu namorado, gênio difícil e gritava muito comigo.
quando meu primo me telefonou: “Carminha, es- Apesar disso, passados dois anos de namoro,
tou na casa daquele meu amigo, lembra dele”? Aí marcamos o casamento. Ele foi até Jaboticabal
aproveitei e convidei os dois para irem almoçar pedir minha mão a meu pai. Minha mãe não par-
em casa. Percebi que José Luiz, apesar de brega, ticipou das decisões para o meu casamento. Fiz
era um rapaz muito correto e trabalhador e assim, tudo sozinha: escolhi o enxoval, a igreja, o bufê e a

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música. Minha mãe só foi na prova do vestido de
noiva. Na véspera do casamento, meu avô pater-
no morreu e meu pai queria cancelar a cerimônia.
Não aceitei e nos casamos assim mesmo, no dia 3
de junho de 1967, na igreja Imaculada Conceição,
uma igreja muito bonita, na avenida Brigadeiro Luís
Antônio. Eu tinha 23 anos.
Depois da cerimônia, a festa foi no antigo Bufê
Torres, onde hoje fica o Museu da Casa Brasileira.
Em respeito à morte de meu avô, suspendi a músi-
ca, mas ainda assim a festa foi um sucesso. O bufê
tinha um jardim lindo, havia muitos convidados e
eu ganhei muitos presentes.
Uma vez casados, alugamos um apartamento na
rua Pernambuco, em Higienópolis. Como José Luiz
precisava trabalhar na sede das usinas, íamos toda
semana para o interior. No início, ficávamos na casa
de seus pais em Botucatu. Depois, compramos uma
casinha em Lençóis Paulista. Viajávamos de carro
e quando ele começou a pilotar, passamos a ir de
avião.

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A chegada
N
o início, José Luiz e eu não queríamos fil-

da princesa
hos. Quando resolvemos tentar, tive uma
gravidez na trompa e precisei ser operada
às pressas. Se não tivéssemos descoberto logo, eu
provavelmente teria morrido. Foi tudo extrema-
mente violento para o meu corpo e depois disso
não consegui mais engravidar. Passei os dez anos
seguintes fazendo tratamentos com tudo o que ex-
istia na época. Participei de diversos experimentos
clínicos, como hidrotubagem a sangue frio, um pro-
cedimento complexo para fortalecer as trompas.
Posso dizer que foi um período de muito sofri-
mento para mim, e também de muito desamparo.
Muitas vezes me senti sozinha, e ainda tinha de
ouvir de minha mãe que eu não podia me queixar
de nada porque poucas pessoas tinham o privilégio
e acesso àqueles tratamentos todos como eu tinha.
Sempre fui uma pessoa muito consciente do que
queria e muito determinada. A certa altura, contu-
do, percebi que já tinha sofrido demais com todos
aqueles tratamentos e era hora de parar. Eu estava
então com 35 anos quando ouvi de um médico
brasileiro que morava nos Estados Unidos que eu
estava acabando com a minha saúde, que ele não
entendia como eu ainda não tinha virado homem
de tanto hormônio que havia tomado – ou, no mín-

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imo, ficado louca pela enorme agressão do trata- ajuda da psicanálise, que para mim os outros não
mento. Sugeriu-me, então, que parasse de tentar existiam. Eu não via nem notava os outros, entrava
engravidar e adotasse uma criança. e saia como uma atriz no palco. Mas foi somente a
Pensei muito no assunto. Em uma determinada partir de um fato que aconteceu em minha vida, e
ocasião, encontrei por acaso com a médica Angelita que irei narrar mais adiante, que entendi por que
Aber Gama, que eu conhecia e admirava, e conversei sempre fui tão atacada e odiada. Entendi que, no
com ela sobre adoção. Ela era uma mulher de muita fundo, eu não tinha nenhuma amiga de verdade,
personalidade e firmeza, e me disse sem titubeio: alguém que me amasse como eu era, sem me julgar
“Carmen, não sei o que você está esperando! Você ou invejar. Nunca vou me esquecer do que me disse
não está vivendo bem hoje e nem se preparando um dia minha segunda analista, a doutora Judith:
para o futuro”. Àquela altura, eu já havia começa- “Quem tem um amigo tem um tesouro. Quem tem
do a fazer psicanálise, me sentia mais segura, já dois é rei da Arábia Saudita”. Foi muito duro e difí-
despojada de muitos medos do passado, e me senti cil enfrentar a solidão e aprender a viver só, sem
encorajada para adotar uma criança. amigos. Mas então, veio a Flávia.
Um dia uma amiga me telefonou dizendo que
havia uma criança muito especial no interior de •
São Paulo, cuja mãe precisava entregar para alguém

F
cuidar. Com a adoção já combinada, fiz questão de lávia tinha apenas seis dias de vida quando
não conhecer a mãe, pois era importante que eu me chegou em casa e transformou nossa vida. Eu
preservasse em certos aspectos. No dia seguinte, não fazia ideia de como era cuidar de um bebê.
entrei no carro e enfrentei sozinha a estrada rumo Por sorte, minha amiga Marlene me ajudou muito
ao interior. Cheguei no hospital, peguei a criança e me indicou o melhor pediatra e puericultor que
e voltei para São Paulo. havia em São Paulo, o doutor José Renato Woiski.
Um pouco antes da Flávia chegar, eu estava Marlene fez mais: me emprestou por um mês uma
começando a enxergar a realidade, a entender de suas babás, a Yolanda, que todos chamavam de
como eu era e como o mundo era. Percebi, com a Go, que me ensinou tudo o que eu precisava saber

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sobre cuidados com um recém-nascido. Médicis fantasiada de Rainha de Sabá, e um maravil-
José Luiz contratou um dos melhores advogados hoso chinoiserie Troumeau, também do século 17.
da época para resolver as questões legais da adoção Todos os outros objetos, móveis e coleções foram
e, embora morássemos em um apartamento muito obra de Terry, que as levava pessoalmente em casa
bom, de cerca de 450 metros quadrados, na rua Pi- para que as escolhêssemos. Quanto aos quadros,
auí, em Higienópolis, achou que precisávamos de compramos todos de Renato Magalhães Gouveia,
um lugar maior. Não apenas porque agora éramos que possuía uma ótima galeria. Adquirimos Ismael
três, mas porque seus pais costumavam alternar Nery, Vicente do Rego Monteiro, Eliseu Visconti,
um mês morando conosco e outro em Botucatu. Cândido Portinari, Manabu Mabe, Cristina Canale.
Fui, junto com ele, visitar um apartamento duplex Sempre tive bom olho para a arte. Herdei esse
no Jardins, novo, de 1.100 metros quadrados. A amor de meu pai, que havia estudado seis anos na
psicanálise, àquela altura, como já disse, já havia Itália, em um colégio perto de Roma que deu ao
me ajudado a superar meus medos, e em nenhum mundo dois papas. Eu me lembro com grande clare-
momento pensei: “Como vou tomar conta de uma za dele discorrendo sobre Michelangelo, Bernini e
casa desse tamanho?”. E assim foi. outros gênios italianos. Quando estive em Roma
Demorei um ano para reformar o apartamento pela primeira vez, virei a cidade de cabo a rabo,
antes de irmos para lá, e tive, para isso, a ajuda de querendo conhecer todas aquelas obras de que
dois decoradores. O primeiro foi o José Duarte de tinha ouvido falar quando criança. Já meu gosto
Aguiar. O segundo, um marquês italiano, Terry de pela música vem de minha mãe. Sempre lembro
La Stuffa, que me ensinou o pouco que sei sobre dela quando ouço alguém dedilhar ao piano algu-
arquitetura e decoração. Foi com o Terry que final- ma melodia de Chopin. Hoje pertenço ao comitê
izamos a decoração do nosso novo endereço. da ópera de Nova York, o International Council do
As únicas peças compradas por José de Aguiar, Metropolitan Opera House.
as mais importantes de nossa casa, ambas adquiri-
das em um leilão da Christie’s, em Florença, foram
uma tapeçaria do século 17, que retrata Catarina de

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Mulher-maravilha
N
o dia da mudança para o novo endereço,
José Luiz saiu cedo para trabalhar e só
voltou à noite. Fiz tudo sozinha. Quando
ele chegou, me perguntou o que eu havia feito o dia
todo, pois o apartamento, segundo ele, ainda es-
tava uma bagunça – e ele não fazia ideia do quanto
eu havia trabalhado. Mas isso não importava. Era
início de 1978 e eu estava feliz com minha filha e
a nossa nova vida naquele belíssimo apartamento.
O lugar era tão grande e tão bem equipado que
dava muito bem para receber 300 pessoas sem
precisar alugar nada. José Luiz me dava o dinheiro
que eu pedia, pois confiava em mim e no meu bom
senso. Mesmo assim, posso dizer que gastávamos
muito para manter nosso padrão de vida. Trabalha-
vam em nossa casa cinco empregados, todos muito
profissionais e corretos, treinados e ensinados por
mim. Nos fins de semana, íamos para nossa casa
em Lençóis Paulista por causa do trabalho do José
Luiz nas usinas.
Nesta ocasião, comecei a me tornar a mulher-
mara­vilha aquela que tudo podia, que não tinha
medo de nada, muito menos de trabalho. A camin-
ho dos 40, eu continuava sendo uma mulher muito
ativa, que não tinha preguiça para nada, e a chega-
da da Flávia me trouxe ainda mais impulso para a
vida. Nada me parecia impossível. Embora tivesse

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parado de trabalhar na empresa do meu pai por Quando meus sogros estavam perto de fazer
exigência do meu marido, eu cuidava da casa, fazia bodas de ouro, resolvi preparar uma grande fes-
as compras, tomava conta da minha filha. ta para cerca de 700 pessoas em Lençóis Paulista.
Para uma pessoa com a energia que eu tinha, Contratei o Buffet França, o melhor de São Paulo.
deixar de trabalhar poderia ser frustrante, mas Minha sogra adorava o Agnaldo Rayol e eu pron-
não foi. Mesmo quando arrumei uma pajem, a Ane, tamente o convidei para cantar na igreja e na cer-
descendente de alemães, uma pessoa maravilho- imônia. Flavia tinha uns quatro anos nessa época.
sa, trabalhadora, eu nunca deixei de acompanhar Só hoje, passadas quatro décadas, revendo o
e cuidar eu mesma da Flávia. Quando precisava filme daquelas bodas, percebo como eu era: uma
levar minha filha ao médico, Ane nos acompanhava. mulher-robô. Tudo organizado à perfeição, da ig-
O doutor Woiski falava que eu era a única mãe do reja à festa, eu linda, magra, bem vestida, elegante,
meu padrão social que ia junto a todas as consultas, José Luiz idem. Neste momento, vendo o filme,
que participava de tudo, que sabia tudo. eu, que sempre reclamei do meu marido, me dei
Eu procurava ser perfeita para ser amada. Era conta de que eu não lhe dava a mínima. Em certo
uma ótima dona de casa, sempre pronta para cuidar momento da filmagem, José Luiz aparece senta-
da minha família e dos pais do meu marido no que do, cabisbaixo, tristonho até. Vi ali que não havia
fosse preciso. Se ele me dissesse às seis da tarde, amor e carinho entre nós – talvez houvesse, mas
que iria receber pessoas naquela mesma noite, não sabíamos como demonstrar, pois máquinas não
eu estava sempre pronta para oferecer o melhor sentem, só cumprem suas funções pré-determi-
jantar. Fazia tudo acontecer de forma impecável, nadas. José Luiz e eu éramos duas máquinas que,
como se fosse fácil, não me queixava nunca e nem juntas, cumpriam um papel familiar e social.
demonstrava o trabalho que tinha tido, mesmo sa- Só então, ao rever esse filme, compreendi que
bendo que minhas frequentes enxaquecas faziam ambos fomos vítimas de uma criação com valores
da minha vida uma trincheira de guerra. Todos po- errados. Não fomos ensinados a amar e a dar amor.
diam contar com Carmen sempre – com Carmen, Para nós, só o mundo material existia. Inocentes da
a mulher-maravilha. vida, não sabíamos ainda que a matéria acaba e o

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sentimento permanece. O essencial, como já disse assim eu precisava tomar cuidado, pois José Luiz
Saint-Éxupery, é invisível aos olhos. Eu não sabia era muito exigente com os gastos, principalmente
disso ainda, pois adorava falsos deuses. em se tratando dos negócios da firma. Fiz belíssi-
mas compras: móveis, pratos, talheres e utensílios
• de cozinha, roupa de cama e banho etc. Ficou um

P
lugar muito aconchegante. Junto com seus primos
ouco tempo depois das bodas dos meus so- e sócios, passamos a ir com certa frequência para lá.
gros, resolvi que queria mais um filho. Con- Passávamos alguns dias com os homens trabalhan-
versei com José Luiz, falei para ele que filho do e as mulheres cuidando das crianças. À noite,
único era muito ruim, tanto para a criança como nos juntávamos todos e era sempre muito divertido.
para os pais, e ele se convenceu. Luiz tinha oito Outro lugar em que íamos muito era uma fazen-
dias de vida quando chegou em nossa casa. Quan- da maravilhosa que tínhamos no Pantanal, a cerca
do olhei para o bebezinho, pensei: “É meu filho!” de 90 quilômetros de Aquidauana. Ela tinha cerca
Flávia estava então com seis anos e ficou com muito de 23 mil hectares – saía do pé da serra e chegava
ciúmes do irmão. Naquela época eu poderia dizer até o Rio Negro. A sede era muito simples, rústica,
que era muito feliz, tinha tudo e não sabia – mas e amávamos ir para lá. Aprendi, com as pessoas da
não tinha e nem sabia dar amor. Aprendi a amar região, a cozinhar pratos como rabo de jacaré, capi-
com os meus filhos. Passei a me dedicar muito a vara, peixe na grelha, pão caseiro e toda a comida
eles, à casa, ao relacionamento da vida em socie- da região. Andávamos muito a cavalo, tomávamos
dade. Eu e José Luiz continuamos a viajar para a banho na cachoeira, cada dia havia um programa
Europa todo ano, ele trabalhava cada dia mais e diferente. Às vezes saíamos de manhã na traseira
conseguiu criar uma grande empresa, que cresceu de uma caminhonete e só voltávamos ao entardecer.
ainda mais ao comprar uma nova usina em Quatá. Quando passávamos pelos retiros, entrávamos em
Quando adquiriu essa nova usina, eu quis decorar alguns para tomar um café com a dona da casa – as
a sede, um antigo casarão com mais de 12 quartos. casinhas eram muito simples, mas todas extrema-
Havia um dinheiro determinado para isso, mesmo mente limpas e bem cuidadas.

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No Rio Negro, pescávamos e nos deitávamos na parou”. Achei aquilo maravilhoso! E assim foi, de-
lona que os peões estendiam, comíamos peixe ou pois de uns 15 minutos, o Pé chegou.
carne na brasa feito por eles, nadávamos em águas O céu, no Pantanal, é uma coisa fora do comum.
povoadas de piranhas e nos deslumbrávamos vendo Você pode se deitar no chão, olhar para cima e ver
todos os pássaros que existem no Pantanal: Tuiuiú, as quedas dos meteoros riscando a noite estrelada.
araras de todas as cores, tucanos, garças, colherei- Hoje, lembrando daquele tempo, penso que poucas
ras, entre centenas de outros. E muito mais: répteis, pessoas tiveram o privilégio de viver momentos
cobras, jacarés, ariranhas, tamanduás, onças, capiv- como os que vivemos lá, experiências mágicas que
aras, porcos do mato, todos os animais da América nos transportavam para um outro mundo, simples,
do Sul. Flávia levava sempre amigos e amigas, Luiz natural, sem maldades, sem TV, sem festas, roupas
quase sempre ia com Maurício (seu melhor amigo sofisticadas, vaidade, inveja e competição. Con-
até hoje) e irmãos e eu também sempre ia com vivíamos com pessoas simples, cujo maior prazer
algumas amigas. era se reunir. Quando fazíamos o forró, chamá-
O pantaneiro é um povo diferente: eles são bons, vamos um sanfoneiro e as moças preparavam um
vivem no paraíso, não têm maldade. Um dia andá- grande bolo. Dançávamos, tomávamos refrigerante,
vamos na traseira de uma caminhonete e o car- comíamos bolo e era essa toda a nossa felicidade.
ro enguiçou no meio do nada. Naquela época não Pena que eu não tivesse consciência disso naquele
havia celular para pedir ajuda, mas o administrador tempo.
que nos levava disse que não nos preocupássemos.
Logo mais o Pé – o rapaz era conhecido por esse
apelido porque tinha seis dedos em cada pé – che-
garia para nos resgatar. Mas como ele nos resgataria
se ninguém sabia onde estávamos? “Dona Carmen”,
me respondeu o admnistrador, “ aqui no Pantanal
nós temos uma outra língua. Quando a gente para
os pássaros avoa, e aí o pessoal sabe que a gente

34 35
Em algum lugar T
odo ano, passávamos uns 20 dias de julho no
Pantanal. Já nossos janeiros, costumávamos
passá-los hospedados no Hotel Casa Grande
Guarujá. Eu ficava lá com as crianças e José Luiz
nos encontrava nos fins de semana. Era uma vida
feita de ostentação, muito diferente daquela que
tínhamos no Pantanal. Eu preparava minhas roupas
com muito capricho, íamos à praia com correntes
de ouro, Rolex no pulso, um verdadeiro desfile de
moda. Jantávamos sempre nos apartamentos de
amigos e os fins de semana eram sempre bastante
animados. Ao fim da temporada na praia, voltáva-
mos para São Paulo e em fevereiro seguíamos para
a Europa porque José Luiz adorava esquiar.
Eu organizava nossas viagens internacionais com
muito cuidado, lia jornais franceses, italianos e in-
gleses para saber os programas culturais do mo-
mento, escolhia hotéis, quartos, restaurantes, ex-
posições, concertos, óperas e passeios. Na França,
gostávamos muito de visitar a região da Bourgogne
e da Champagne – além de Paris, claro. Na capital,
ficávamos no Hotel Plaza Athénée, íamos sempre
ao Louvre, ao Museu D’Orsay, a Versalhes, a Fon-
tainebleau e todos os demais palácios, museus, fei-
ras, exposições, operas e concertos – enfim, não
perdia nada.

37
A Itália também era um destino frequente: entre outros. Também gostávamos muito de visitar
Nápoles, Perugia (terra de meu avô), Mantova igrejas: as quatro Basílicas – de São Pedro, a maior
(terra de minha avó), Roma, Florença, Pisa, Milão, Igreja Católica do mundo, de São João de Latrão,
Veneza, Cortina D’Ampezzo e Conegliano, região de São Paulo Extramuros e de Santa Maria Maior;
dos meus sogros. Em Veneza tínhamos um grande as catacumbas de São Sebastião e de São Calixto,
amigo, Gianni de Pool, dono de uma fazenda no na via Appia, a mais antiga de Roma.
Brasil. Em Cortina D’Ampezzo fui eleita Miss Cor- Além de França e Itália, outros destinos fre-
tina. Roma, cidade eterna, era passagem certa sem- quentes nossos na Europa eram na Suíça, Genebra,
pre que íamos à Itália. Zurique e Saint Moritz. Também fomos algumas
Lá, ficávamos geralmente hospedados no Hotel vezes a Londres. Onde quer que fôssemos, eu sa-
Hassler, no alto da escadaria da Piazza di Spagna. bia tudo o que estava acontecendo na cidade, onde
Em uma de nossas idas, passamos perto de um ficavam as boas galerias de arte e as melhores bou-
mês lá, José Luiz trabalhando e eu descobrindo a tiques. José Luiz me dava o dinheiro que eu pedia
cidade, visitando igrejas, palácios, antiquários, fa- para que eu comprasse as melhores roupas, peles,
zendo compras na via Condotti e na via Veneto. bolsas e sapatos. Eu era muito vaidosa e acho que
Nunca estudei italiano e o pouco que falo apren- José Luiz gostava de me ver bem vestida. Quando
di conversando com as pessoas em lojas, táxis e eu saía para comprar uma roupa mais cara, eu sem-
restaurantes. Visitamos o castelo Sant’Angelo, o pre queria que ele fosse junto para opinar no que
Castelo Gandolfo, residência de verão do Papa, os eu fosse comprar. Eu escolhia, compunha e criava
jardins de Tivoli, Villa d’Este, Ostia Antica, as Ter- as melhores peças, e passei a me destacar muito
mas de Caracalla, a Escada Santa, o Fórum Romano, por isso nas rodas da sociedade.
o museu da Villa Borghese, com seu belíssimo e Em Saint Moritz – um destino, na época, predo­
vasto jardim. minantemente frequentado pelas pessoas mais ri-
Tive o privilégio de ver de perto as pinturas mais cas e elegantes do momento –, eu copiava estilos e
magníficas que a humanidade já produziu, escultur- sempre me destacava. Naquela época, não me dava
as inesquecíveis como as de Michelangelo e Bernini, conta, mas José Luiz tinha muito ciúmes de mim

38 39
pelo meu jeito extrovertido e confiante. Nada nem comerciais. Voamos por uns seis anos nele e era
ninguém me intimidava. Eu via as mulheres itali- fantástico, duas vezes a velocidade do som. Uma
anas, sempre muito exuberantes, chegando com viagem à Europa que normalmente levava 12 horas
aqueles cabelos compridos, aquelas peles enormes em um voo comum, levava a metade do tempo em
em volta dos ombros, e eu achava tudo uma beleza, um Concorde – e isso com uma escala em Dakar.
parecia-me que eu estava dentro de um filme, e José Luiz também gostava de ir a lugares altos, en-
copiava tudo que podia. Um dia me arrumei para tão sempre visitávamos torres, domos de igrejas,
ir a um coquetel em Saint Moritz com um tomara rooftops dos mais altos edifícios, montanhas, cume
que caia e José Luiz me disse que eu não poderia ir de vulcões etc. Se estivesse vivo, provavelmente ele
vestida daquele jeito. É claro que fui mesmo assim! iria querer ir ao espaço.
Ele nunca falou abertamente que tinha ciúmes, mas José Luiz sempre me criticava. Em uma das nos-
em algumas ocasiões demonstrou muito, mas eu sas viagens, estávamos jantando nós dois, muito
não tinha consciência disso. elegantes. Comecei a puxar conversa, falei de um
assunto e ele não gostou, falei de outro e ele me
• criticou. Falei das pessoas que estavam sentadas
próximas a nós e ele disse que eu só sabia falar

A
pesar de tudo, poderia dizer que naquele mal dos outros. Então eu me calei e pensei: “A pior
tempo éramos muito felizes. Durante nosso solidão é a solidão a dois que não se comunicam,
casamento, que durou perto de 20 anos, José que falam línguas diferentes”. Nunca me senti tão
Luiz e eu viajamos também para Argentina, Estados só como naquele momento, o que me fez pensar no
Unidos, Canadá, México. José Luiz tinha um espíri- porquê de tudo aquilo: roupas bonitas, lugar per-
to aventureiro diferente do meu, mas gostava de feito, casal aparentemente perfeito... e tanta solidão.
experimentar tudo que havia de novo e adiantado Assim era minha vida com ele, tinha tudo que eu
em termos de tecnologia. Quando começaram os queria, mas não havia companheirismo, carinho,
voos do Concorde no Brasil, todos os anos viajamos troca. Eu não sabia o que era o amor.
nele e assim foi até a empresa suspender seus voos José Luiz costumava me chamar de burra, de

40 41
me acusar de não saber o que eu estava dizendo, pedida para ele. Fui a Brasília e contratei a pessoa
de dizer que eu não fazia nada certo, exatamente que fazia os discursos do Tancredo Neves para faz-
como minha mãe fazia comigo. O tempo inteiro er o discurso dele e do Sr. José Lorenzetti, nosso
ele me colocava para baixo – e palavras, sabemos, sócio-acionista.
ferem tanto quanto uma agressão física. Um noite, Escolhi o Jockey Club de São Paulo como palco
ofereci um jantar em casa, doze pessoas sentadas à da festa, convidei 15 ministros, donos de jornais,
mesa. Quando o primeiro prato chegou, José Luiz empresários, banqueiros, contratei aviões, carros,
deu uma garfada e decretou: “Isso aqui está uma disponibilizei toda uma estrutura para este even-
porcaria! Você não sabe tomar conta de uma casa?”. to tão importante. Cometi apenas um único erro:
Eram cenas assim, vividas sozinha ou à vista dos fiz tudo isso sem consultá-lo. Resultado: quando
outros – e eu fui engolindo tudo isso durante anos. descobriu o plano, dois dias antes do evento, José
José Luiz me criticava, meus sogros me criticavam, Luiz resolveu cancelar tudo.
minha mãe me criticava. E meu pai, ao contrário Eu me decepcionei muito com esse episódio e, a
do que fazia na minha infância, ficava omisso. Nas partir daí, meu casamento começou a ruir. Continu-
temporadas em que meus sogros passavam em São amos viajando para o Guarujá e para a Europa, mas
Paulo, todo domingo eu fazia um almoço em casa. em algum lugar dentro de mim eu havia mudado.
Mal começávamos a comer e Luiz, meu sogro, que Não estava mais presente como costumava estar e
era muito crítico, questionava alguma coisa. Hoje passei a fazer o que eu queria, sem pedir satisfação.
percebo que ele não fazia por maldade, não era má Tive vontade de trabalhar ou estudar para ganhar
pessoa, e aprendi com o tempo a gostar dele. De meu próprio dinheiro e não depender mais exclu-
todo modo, eu sempre me sentia acuada com todos, sivamente de meu marido. Deixei de aceitar seu
acabava reagindo e levando a fama de briguenta. despotismo e comecei a viver minha própria vida.
Em 1983, José Luiz era presidente da Coopersu- Inseguro, orgulhoso e ciumento como era, em vez
car a maior multinacional brasileira da época. Ele de conversar comigo para saber o que estava acon-
estava para sair e muito preocupado como seria tecendo se omitiu e pensou o pior. José Luiz, nunca
sua sucessão. Resolvi então fazer uma festa de des- me conheceu – nunca conheceu minha essência.

42 43
Separações
N
o início de 1986, voltando da Europa, re-
solvi fazer uma plástica no rosto com o
famoso cirurgião Ivo Pitanguy. Não pre-
ciso dizer que fiquei ótima, o que fez aumentar o
ciúme e a insegurança de José Luiz. Foi quando ele
achou que eu tinha um amante. A barreira e a falta
de diálogo, que já eram grandes, só fez crescer, até
chegar num ponto sem volta.
José Luiz e eu nos separamos em outubro de
1986 e ficamos praticamente dois anos brigando na
Justiça antes de concluir o divórcio – ele fazendo de
tudo para dificultar a separação, pois não a aceitava,
e eu lutando com todas as minhas forças para me
libertar. A Lei do Divórcio havia entrado em vigor
alguns anos antes, permitindo que as separações
fossem feitas sem a partilha dos bens, e o advogado
de José Luiz queria fazer o divórcio sustentando-se
nessa lei.
Tive cinco advogados me auxiliando, quatro dos
quais desistiram do processo no meio do cami­nho
por causa da influência de José Luiz. Apenas Arlin-
do de Carvalho Pinto seguiu como meu advogado.
Eu estava no primeiro ano da faculdade de Direito,
começava a entender as leis, e já não confiava mais
em advogado nenhum – tirando o Arlindo de Car-
valho Pinto, é claro.

45
Na véspera da audiência, consegui falar com havíamos realizado de comum acordo e me disse:
o juiz e contar para ele minha versão dos fatos. “Pode assinar”. Além da partilha, fiz questão tam-
Narrei, durante mais de uma hora, toda a minha bém de tirar o sobrenome de José Luiz – Zillo – do
história, aos prantos, com a porta da sala do juiz meu. Nessa hora, José Luiz, que até então estava
aberta, gente entrando e saindo a todo instante, controlado, emocionou-se. Foi um momento difícil.
porque em vara de família não se atende ninguém Mas quem não tem coragem, não merece ser feliz.
a portas fechadas. Implorei ao juiz, no fim, que me Depois de oficialmente separados, nunca deixei
concedesse a metade que me era de direito em um de facilitar as visitas de José Luiz às crianças. Da
casamento que havia sido originalmente celebrado, primeira vez em que Luiz e Flávia foram passar o
décadas antes, na partilha da comunhão de bens. fim de semana com o pai, eles estavam com três e
No dia da audiência, José Luiz estava acompan- nove anos, respectivamente. Para mim foi muito
hado de três advogados, sendo um deles o famoso duro ver meus filhos se desgarrando de mim, mas
Silvio Rodrigues, e eu com outros três. Doutor Sil- nunca impedi que a relação deles se desenvolvesse
vio queria fazer o divórcio e deixar a partilha para longe dos meus olhos. José Luiz sempre foi muito
o dia de são nunca. Eu sabia que José Luiz tinha um ligado aos filhos e os via quase todo fim de semana.
pé atrás com advogados, então, em uma brecha da Fora isso, eu estava bem, realmente muito bem,
audiência, perguntei ao juiz se os advogados dos me sentia uma outra mulher. Estava mais bonita,
dois lados não poderiam sair da sala por um instan- magra, alegre e livre. Achava tudo o máximo, não
te e nos deixar – eu, José Luiz e ele – a sós. O juiz estava nem aí para o que pensavam de mim. Não
acatou meu pedido e aí começamos nós três, sem o deixei de notar, contudo, que os convites sociais,
palpite dos advogados, a discutir a partilha oficial. que antes abundavam quando casada, minguaram
Ficamos lá umas três horas dividindo os bens. Foi depois da separação. Havia um preconceito enorme,
nessa ocasião que me tornei sócia da empresa, que na época, em relação às mulheres divorciadas.
na época se chamava ainda Zillo/Lorenzetti. Eu cursava Direito e decidi fazer novos amigos
Quando o doutor Arlindo retornou novamente na faculdade. Mas as pessoas são as mesmas em
à sala, leu na mesa da estenógrafa a divisão que qualquer lugar – e eu, com a minha personalidade

46 47
e minha maneira de ser, sempre incomodei muito. para os Estados Unidos. Eu, Flávia, Luiz e uma
Mesmo assim, consegui fazer amizade com alguns acompanhante fizemos um giro por Nova York,
jovens colegas. Cheguei mesmo a ser madrinha de Los Angeles, San Francisco, Carmel e Aspen para
casamento de dois deles. esquiar. Em San Francisco, visitamos um parque
esplêndido, repleto de sequoias gigantes e mara-
• vilhosas. Em Aspen, ficamos em um dos melhores
hotéis da cidade.

E
ntrar na faculdade foi fácil, difícil foi sair dela. Um dia saí para fazer compras e fui a uma bou-
Mas com minha persistência de sempre, não tique recomendada pelo concierge do hotel. Lá,
só concluí o curso como ainda fiz o exame da conheci por acaso uma americana da mesma idade
Ordem dos Advogados e passei na primeira tenta- que eu. Meu inglês era primário, mas como eu não
tiva. No campo afetivo, cerca de um ano depois da tinha vergonha de nada e era muito segura de mim,
separação conheci uma pessoa, o Paulo, com quem virei-me como pude e marcamos de nos ver. Saímos
tive um ótimo relacionamento amoroso e que me para almoçar juntas, passamos horas conversando.
mostrou quem eu realmente era – uma pessoa es- Como? Eu não sei, porque aquela mulher também
pecial, coisa que eu até então não sabia. Ele me fez não falava uma só palavra em outra língua que não
perceber que eu não era aquela mulher de que fala- fosse a sua. Trocamos cartões de visita e foi assim
vam minha mãe e José Luiz: ruim, feia, briguenta, que começou minha amizade com Bren Simon, es-
burra. Pelos olhos dele, eu era uma mulher bonita, posa de Melvin Simon, criador dos malls e, depois,
forte, interessante. dos shoppings centers.
Namoramos por um ano e meio, mas quando Pouco tempo depois de nos conhecermos, Bren
o divórcio saiu e me tornei uma mulher rica, isso me convidou para ir visitá-la na casa que havia
passou a incomodá-lo, o que acabou se tornando pertencido aos Vanderbuilt em Boca Raton, Palm
um problema incontornável na nossa relação. Não Beach. Depois, fui com ela à República Dominicana,
demorou muito para que nos separássemos. Era onde ela desejava comprar uma casa e queria ouvir
1989 e resolvi fazer uma viagem com meus filhos minha opinião. Com o tempo, passei a viajar com

48 49
Bren ao redor do mundo. Na sua companhia, con- À medida que o tempo foi passando, no entanto,
heci Indianapolis, fui à sua casa de Aspen e fomos senti que Bren foi se transformando. Um dia, convi-
juntas a Londres, onde ela tinha uma town house. dei-a para ver uma ópera em Nova York. Foi dificíli-
Com minha ajuda, Bren adquiriu também uma casa mo arrumar os ingressos, mas acabei conseguindo.
em Bodrum, na Turquia, para onde fomos a bordo Bem no meio do espetáculo, ela se virou para mim e
do Gulfstream do marido e onde passamos perto de falou: “Vamos embora? Isso aqui está muito chato”.
um mês. E não parou por aí. Fizemos juntas, ainda, Bren não tinha a mesma sensibilidade que eu para
uma viagem para o Ártico a partir de Vancouver, no as artes, não ligava para música clássica, museus
Canadá. Comemoramos o aniversário de Melvin e afins, ao contrário de mim. Eu sabia disso, mas
em um resort em Porto Rico. Viajamos muito pelo achei mesmo assim um comportamento estranho
Caribe e pela Europa. Voltamos mais de uma vez a sair no meio de um espetáculo para a qual tinha
Aspen. Encontrei-a diversas vezes em Los Angeles sido convidada.
e outras mais em Palm Beach. Fomos também para Olhando hoje em retrospectiva, sinto que, apesar
Las Vegas. Em resumo, eu passei a levar uma vida da nossa intimidade, eu nunca a conheci realmente,
de milionário americano – uma vida bem longe da e nem ela a mim. Talvez Bren se encaixasse nas
minha realidade. minhas fantasias: uma mulher rica, poderosa, que
Bren também veio algumas vezes para o Brasil, fazia o que bem entendesse. Ela encarnava um
uma delas especialmente para minha formatura mundo que eu tanto admirava. Hoje me pergun-
em Direito, em 1993. Em outra ocasião, fomos para to como consegui ficar amiga de uma pessoa tão
Lençóis Paulista para ela conhecer uma de nossas diferente de mim, com outra mentalidade, outra
usinas de açúcar. Foi nessa viagem que ganhei dela sensibilidade, outro universo. Quem sabe eu a
o apelido de Sugar queen. Bren e eu convivemos in- tenha tomado por aquela irmã que nunca tive, pois
tensamente por quase três décadas. Foi uma época a relação com minha irmã sempre foi muito difícil.
maravilhosa e absolutamente diferente para mim, Enfim, coisas da vida...
ia e voltava quando queria pois eu estava livre, com
dinheiro, podia fazer o que quisesse.

50 51
Solidão
E
m 1999, comprei um apartamento em Nova
York. Estava, na verdade, à procura de uma
casa de campo nos arredores de São Paulo,
mas passávamos uns dias em Nova York e minha
filha me sugeriu que eu comprasse um apartamen-
to lá. A ideia me pegou de surpresa: quem era eu
para comprar um apartamento em plena capital
do mundo? Uma amiga me apresentou a um bro-
ker, que prontamente nos levou para visitar alguns
imóveis. Como era um fim de semana de feriado,
visitamos alguns apartamentos e eu gostei apenas
de um, justamente o primeiro que havia visitado.
Combine com o broker que voltaria a Nova York
para ver mais alguns apartamentos. Vinte dias de-
pois, eu estava de volta à cidade, visitei, como com-
binado, vários outros apartamentos, e no fim falei
para o broker: “Quero voltar ao primeiro que eu vi”.
Ele tentou ser sincero ao dizer que havia aparta-
mentos melhores, que o bairro daquele apartamen-
to não era bom, que a rua não era tão chique como
a Park Avenue. Mas quando voltei lá e avistei no-
vamente pela janela o Central Park inteiro à minha
frente, pensei que a região podia não ser boa, mas
aquela vista eu nunca perderia.
Apesar da localização, comprei o apartamento.
Pouco depois, para minha grande sorte, a rede Ritz

52 53
Carlton arrematou o Saint Moritz, um hotel deca- as pessoas. Ao comemorar meus 60 anos do jeito
dente que havia na esquina de casa, e iniciou uma que comemorei, atraí muita inveja – o que, no calor
reforma completa no edifício todo. Era o início da do momento, não percebi. Só vim me dar conta
revalorização daquela região da cidade. A maioria disso há pouco tempo, analisando, no vídeo feito
das lojas de fake Lalique pouco a pouco foram sain- na ocasião, o olhar das pessoas que estavam comigo.
do de lá e na esquina do Columbus Circus con- Ao me rever, percebo que estava claramente feliz
struíram o prédio da Time Warner, um conjunto de e não ligava para o que os outros pensavam. Tam-
apartamentos, hotéis, com ótimos restaurantes e pouco imaginava que cada degrau que eu galgava
lojas. O tempo, em resumo, mostrou que eu havia rumo à minha felicidade pessoal era um inimigo a
feito um excelente negócio – de todas as coisas que mais que eu arrumava na vida.
já investi na vida, talvez essa tenha sido a melhor. Havia uma pessoa em especial, uma das mulhe­
Quando ainda estava negociando a compra, fui res mais ricas do Brasil, que achei que gostasse de
apresentada a um advogado americano chamado ­mim. Sempre a tratei muito bem. Um dia, convi-
Malcolm Taub, um homem muito alegre e confi- dei-a, juntamente com sua mãe, para um jantar na
ante. Começamos a namorar e ele passou a vir ao minha casa de praia. Durante o encontro, a mãe dela
Brasil quase toda semana. Namoramos por uns cin- comentou que minha casa era a casa de praia mais
co anos. Foi durante nosso namoro que dei minha bonita que ela havia estado. Percebi que minha ami-
festa de 60 anos, uma festa black-tie com show de ga ficou muito irritada com o comentário da mãe.
Martinho da Vila. Convidei umas 300 pessoas e es- Em outra ocasião, quando eu estava vivendo um
tava radiante como nunca. momento difícil, essa mesma pessoa me convidou
Hoje revendo o filme da festa percebo a diferença para sua casa de fazenda. Durante o jantar, ela e
entre a Carmen robô dos primeiros anos de casada suas amigas começaram a me bombardear de per-
e a Carmen que aprendeu a sentir e a amar aos 60. guntas inconvenientes, ao que reagi de imediato.
Somente hoje constato, para minha enorme sur- No dia seguinte, depois que eu já tinha ido embo-
presa e tristeza, que a felicidade e a alegria que eu ra, escrevi um e-mail para ela desabafando sobre a
estava sentindo naquele momento incomodavam situação vivida. A resposta dela não foi de acolhi-

54 55
mento, como eu esperava, mas agressiva. Só então
percebi a raiva que ela sentia de mim – a inveja por
eu ser como era.

U
m pouco antes de Flavia nascer, graças à
psicanálise, eu comecei a enxergar a reali-
dade, a enxergar como o mundo era e, con-
sequentemente, como eu era. Entendi que, para
mim, os outros não existiam. Eu não via nem per-
cebia as pessoas, entrava e saia como uma atriz
no palco. Mas foi somente a partir de um fato que
aconteceu em minha vida, e que irei narrar a se-
guir, que entendi por que sempre fui tão atacada
e odiada.
Levei muitos anos para perceber que, no fundo,
eu não tinha nenhuma amiga de verdade, alguém
que me amasse como eu era, sem me julgar. Nunca
vou me esquecer do que me disse um dia minha
segunda analista, a doutora Judith: “Quem tem um
amigo tem um tesouro. Quem tem dois é rei da
Arábia Saudita”.
Foi muito duro enfrentar a vida sem a fantasia
de ter bons amigos e aprender a viver só. A solidão,
por vezes, é a única companhia que nos resta.

56 57
Marilene
A
pesar de tudo, eu não tinha do que recla-
mar da minha vida. Viajava quando bem
entendesse, para onde quisesse e, quando
estava em São Paulo, vivia confortavelmente no
meu duplex nos Jardins. Apesar do conforto, o lu-
gar começou a se tornar grande demais para mim.
Manter aquela casa custava meu esforço e, a certa
altura, a minha sanidade. Toda aquela onipotência
de repente parecia já não caber mais na minha vida.
Um dia, ocorreu um vazamento hidráulico do
andar de cima, alagando todo o andar de baixo.
Aquele episódio me convenceu definitivamente a
mudar de apartamento. Visitei vários imóveis até
encontrar este onde vivo hoje, sempre nos Jardins.
Passei um ano reformando, e, pouco antes de me
mudar, resolvi enxugar o staff de casa e contratar
uma pessoa só que desse conta de vários serviços.
Foi quando conheci a Marilene.
Outra funcionário já antiga, Romilda, somou-se
a nós no período de mudança para o novo aparta-
mento. Marilene era uma excelente profissional,
muito competente, e executava as tarefas domésti-
cas com destreza. Era bastante atenciosa dedicada,
atenciosa e prestativa no que fazia. Sempre de bom
humor, cuidava de tudo, cozinhava, lavava. Estava
claro, para minha tranquilidade, que eu estava em

58 59
boas mãos. sobre sua vida e, ao saber que tinha um marido,
Com nossa relação já bem estabelecida, ao fim quis conhecê-lo. Marilene o levou em casa um dia,
de um ano de sua contratação, Marilene já conhe­cia mas menos palavras ainda tinha o homem, que mal
muito bem minha rotina de trabalho, e eu, por ser me cumprimentou. E desse modo, Marilene seguia
muito só, comecei a lhe confidenciar fatos da minha protegendo sua vida privada de mim. Hoje, contan-
vida. Sua presença no meu dia a dia me dava cada do dessa forma, acredito passar a impressão de que
vez mais segurança para eu poder fazer minhas Marilene era um mistério completo, mas à época
coisas com calma. Quando precisei viajar para os eu não tinha essa percepção. Eu a sentia próxima
Estados Unidos, não pensei duas vezes: providen- de mim – e isso me bastava.
ciei a documentação dela para que fosse comigo.
A partir dali, Marilene passou a viajar em minha •
companhia de duas a quatro vezes por ano, cada

E
vez mais presente no meu cotidiano. m fevereiro de 2017, José Luiz morreu subi-
Depois de um ano, resolvi chamar mais uma pes- tamente do coração em Saint Moritz. Estava
soa para ajudá-la em casa. Contratei uma jovem com 77 anos. Taciana, sua esposa na época,
vinda do Sul do Brasil para auxiliá-la nos afazeres me deu a notícia e eu avisei a Flavia e o Luiz, que
domésticos. Mais um ano se passou até que a jovem moravam nos Estados Unidos. Combinamos que
um dia pediu demissão e foi embora sem dar muitas eles viriam para o Brasil o mais rápido possível para
explicações. Foi então que contratamos uma diaris- o enterro. Tão logo chegaram, nos reunimos no sí-
ta, a Maria. Marilene e Maria se deram muito bem tio de Lençóis Paulista, onde esperamos a liberação
e logo se tornaram grandes amigas. Enquanto isso, e chegada do corpo. Houve uma missa no próprio
com meus dois filhos vivendo nos Estados Unidos, sitio e outra, de corpo presente, na Catedral da ci-
eu me sentia carente e só. dade de Lençóis. Não fui ao cemitério – e da igreja
Apesar de presente no meu dia a dia, Marilene voltei para o sítio.
era uma pessoa muito discreta. Ouvia meus relatos, Apesar do choque, tudo estava aparentemente
mas pouco falava de si. Comecei a perguntar mais bem na nossa família. Fizemos uma reunião no

60 61
escritório do testamenteiro Dr. Hamilton Dias de Quando morreu, José Luiz estava afastado da
Souza, o “melhor amigo” de José Luiz, que me mos- direção da empresa havia já alguns anos. Presidia
trou, claramente, estar defendendo os interesses somente o Conselho, de maneira informal. O CEO
de Taciana. Dr. Hamilton tentou me convencer a da empresa era um primo do José Luiz chamado
dar mais dinheiro a ela, pois, segundo ele, José Luiz Antônio José Zillo. Estava no cargo havia mais ou
tinha lhe dito que assim o desejava. Com o pouco menos uns 15 anos e era considerado uma pessoa
que tinha aprendido na Faculdade de Direito, eu de sua extrema confiança. Eu, pessoalmente, não
sabia que na lei brasileira vale o que está escrito no gostava dele, além de não confiar. Quando, na
testamento. Seguimos desse modo, demos a Taci- posição de acionista, lhe fazia perguntas, ele nunca
ana tudo o que constava no testamento e nada mais. respondia, era sempre evasivo.
Por volta de julho daquele mesmo ano, sempre na Depois que José Luiz se foi, meus filhos e eu,
companhia de Marilene, encontrei-me com Flávia maiores acionistas da empresa, com 40% do capital,
em Annecy, onde havíamos combinado de nos ver decidimos que era hora de mudar algumas coisas
– mas foi por pouco tempo. Logo tive de regressar lá dentro. Fabiano, filho de Miguel, um outro pri-
ao Brasil depois que meu filho Luiz me ligou con- mo de José Luiz, e também sócio da empresa, nos
tando que Taciana estava criando problemas. Imag- ajudou nisso. Cada vez que Miguel e Luiz iam falar
inei alguma bobagem, mas quando cheguei fiquei com Antônio José Zillo, ele desconversava, e tudo
sabendo que José Luiz e Taciana haviam deixado continuava igual. Até que nos juntamos, meus fil-
dois embriões congelados sob custódia no Hospital hos e eu, com o grupo do Miguel, e criamos o grupo
Sírio Libanês. de controle, com 60% da empresa.
Por se tratar de um assunto muito recente, a lei Estávamos com uma grande dívida, mas nas re-
referente ao tema é bastante imprecisa, quase sem uniões parecia que ninguém se importava com isso.
jurisprudência. Cada país segue sua regra. Com a Em um dos encontros do Conselho, interpelei o
história dos embriões, não deu para fazer a par- grupo e perguntei quando poderíamos substituir
tilha e o patrimônio ficou travado. Cinco anos se Antônio José Zillo pelo Fabiano. Foi um choque
passaram até que em novembro de 2022 consegui- geral. Antônio José, visivelmente abalado, respon-
mos fazer um acordo com a viúva. deu que Fabiano não tinha experiência, apesar de já

63
trabalhar em uma grande empresa. Perguntou-me tar, os velhos acionistas tentavam boicotar. Prin-
se eu não tinha confiança nele, ao que respondi que cipalmente por eu ser mulher.
não. Neste momento, ele percebeu que eu seria Com a criação de um setor jurídico sólido e a
irredutível e que com 60% estávamos no controle prova de corrupção, um novo conselho e uma nova
da situação. assembleia, começamos, finalmente, a transformar
Começamos a trabalhar na direção das mudanças a empresa. Hoje, apesar de todas as dificuldades,
que achávamos necessárias. Uma das primeiras posso dizer que esta epopeia valeu a pena, pois a
pessoas com quem conversei, o Lopes, da KPMG empresa virou outra: diminuímos a dívida, inves-
Brasil, me falou que o primeiro passo era “mudar timos muito em pessoal, na lavoura e nas usinas.
a governança”. Eu não fazia ideia do que ele estava Hoje estamos em outro patamar e já podemos pen-
falando, não tinha ideia do que era governança. mas sar em crescer e aumentar ainda mais nosso campo
comecei a aprender, a entrevistar novas pessoas de atuação no mercado.
para os cargos de conselheiro. Não conhecia a parte
técnica, admito, mas sempre tive boa intuição. •
Trabalhávamos noite e dia, Luiz e eu, pois ele

E
tinha um conhecimento que eu não tinha. Colo- m fevereiro de 2018, fiz uma viagem de vinte
camos Fabiano como Presidente e, com a ajuda de dias pelo Japão. Foi uma experiência marcan-
Lopes e Blanchet (um dos advogados que entrev- te, pela distância e pela diferença dos cos-
istei), montamos um novo Conselho, formado por tumes. Eu estava numa fase ótima. Fui e regressei
dez pessoas – sete acionistas e três conselheiros sozinha, com saúde e disposição, e logo retomei
externos, sendo que somente um desses três con- minha rotina em São Paulo, longe dos filhos e na
selheiros tinha direito a voto. Apesar da esperada companhia diária de Marilene.
resistência da antiga diretoria, pouco a pouco fo- Ao voltar da viagem, comecei a lhe contar sobre
mos mudando o quadro, trocando seus membros, tudo o que vi e vivi, o que tinha comprado e gasta-
nunca de forma fácil e natural, mas sempre em do. Mas Marilene já não era a mesma, mostrava-se
frente. Cada novidade que tentávamos implemen- cada vez mais ríspida e impaciente comigo, talvez

64 65
sentida por eu não tê-la levado comigo, ou quem receber alta e voltar para casa, nova queda e mais
sabe por inveja da minha situação financeira, que uma semana de hospital.
me permitia viver o que quisesse, quando quisesse. De repente, aquela havia virado minha rotina:
No inicio de 2019, vendi minha casa da praia, que não importava o que eu fizesse ou para onde fosse,
eu gostava muito, mas que me dava muito trabalho. havia sempre uma queda repentina. Eu não era
Consegui um preço muito bom, à vista, e em pou- mais dona do meu próprio corpo. Vivia cheia de
cos dias o dinheiro estava na minha conta. Marilene hematomas da cabeça aos pés. Lembro vagamente
provavelmente me ouviu falar para alguém sobre da Marilene me fotografando sem roupa, não sei se
os valores envolvidos na venda porque, passado por que eu pedia ou por iniciativa dela. Só tenho
um tempo, ela me disse que se eu não lhe desse certeza porque tenho essas fotos no meu celular.
um milhão e meio de reais, ela iria embora. Depen- Uma vez caí no banheiro e machuquei violentam-
dente cada vez mais dela, mas ainda consciente de ente o rosto. Marilene estava ao meu lado, poderia
que a quantia que pedia era absurda, respondei que ter me segurado, mas nada fez. Em outra ocasião,
não poderia lhe dar aquele valor. Este foi meu erro, sentada na sala de minha casa, enquanto ajudava
minha onipotência: no momento em que ela me Maria a por ordem nos porta-retratos, acabei cain-
pediu um milhão e meio de reais, eu deveria tê-la do e fraturando uma costela, que perfurou meu pul-
mandado embora imediatamente. Depois de uns 15 mão. Fiquei internada por mais uma semana.
dias, ela concordou em permanecer comigo, com a Quando recebi alta e voltei para casa, eu estava
condição de que pelo menos lhe desse um aumento. tão debilitada que foi preciso contratar uma cuida-
Aceito o acordo e lhe dei o aumento. dora para me auxiliar no dia a dia. Para me deslo-
A partir daí, a memória que tenho dos fatos que car, eu precisa de uma cadeira de roda ou de um
se sucederam se esvanece, os dias se confundem. andador. Passava tanto tempo deitada, dormindo
Sei apenas que cada vez mais comecei a me aciden- ou imobilizada na cama, que meus calcanhares fic-
tar. Certo dia, indo ao nutricionista, caí de repente aram em carne viva. As idas ao neurologista e seus
no hall do seu consultório. A queda me deixou uma respectivos exames nada apontavam de anormal
semana de molho no hospital. Semanas depois de no meu organismo. Clinicamente, eu continuava

66 67
saudável, embora meu corpo dissesse claramente consentimento ou orientação médica. Não acred-
o contrário. itei no seu relato. Preferi imaginar haver ali algu-
Comigo totalmente ausente do mundo, Marilene ma intriga entre elas, desentendimentos comuns,
comandava a casa. Com acesso aos meus cartões como havia acontecido com Angélica e Marilene
e senhas, fazia compras, abastecia a casa com o no passado. Minhas quedas, contudo, persistiam.
que fosse preciso, pagava os funcionários. Quanto Em pouco menos de dois anos, contabilizei nada
a mim, cada vez mais afundada em um estado de menos que cinquenta e duas quedas.
torpor profundo, não garantia mais a coerência das Em setembro de 2020, Flávia, de passagem pelo
minhas interpretações. Brasil, veio me visitar e ficou chocada com meu
A situação se agravava: depois das habilidades estado: eu não conseguia falar, nem enxergar, mui-
motoras, fui perdendo a memória, a consciência, to menos me equilibrar. Na mesma hora ela ligou
a capacidade de agir. Já não conseguia mais juntar para meu neurologista, o doutor Ivan Okamoto,
o pensamento e a fala. Era difícil de aceitar que eu que solicitou internação imediata. Eu relutei, pois
tivesse me debilitado tanto em apenas dois anos. já não aguentava mais as idas e vindas do hospital.
Ninguém acreditava quando eu dizia que algo estra- Daquela vez, no entanto, foi diferente. Flávia pediu
nho estava acontecendo. Todos me tratavam como que Flávio e Reginaldo, meus motoristas, me carre-
uma doente esclerosada que babava quando falava. gassem no colo até o carro e de lá seguimos para o
Flávia, nos Estados Unidos, não me via pessoal- hospital. Marilene também foi junto. “Minha mãe
mente e, portanto, não dimensionava a gravidade está morrendo! Minha mãe está morrendo!”, ela
de meu estado. repetia, desesperada. Apesar da minha resistência,
Quase ninguém conseguia me entender, exceto não me recordo de ter sentido nada naquele instan-
Alexandra, a folguista que vez ou outra ia trabalhar te – apenas me deixei levar.
em casa. Foi ela a primeira a notar alguma estra­ Cheguei ao hospital Albert Einstein quase em
nheza dentro de casa. Com algum constrangimento, coma. Meu filho Luiz chegou logo em seguida e,
ela me contou ter visto Marilene pingar alguma junto com Flávia, tomou as decisões relativas à
subs­tância no meu suco de forma deliberada, sem minha internação. Meu estado era tão grave que fui

68 69
levada diretamente para a Unidade de Tratamento ir muito adiante para concluir que algo estranho
intensivo, onde começaram a estabilizar meu or- estava acontecendo dentro de minha própria casa,
ganismo e a realizar uma bateria de exames para longe das vistas das pessoas. Por saber que a pessoa
tentar descobrir a causa daquele meu estado clínico mais próxima a mim era a Marilene, ele resolveu fo-
extremo. Enquanto os resultados não saíam, fiquei car sua investigação na direção dela. “Doutora Car-
monitorada 24 horas por dia, com direito a breves men tem o costume de beber? Por que você acha
visitas. que ela cai? O que ela anda tomando?” Marilene
Apesar dos cuidados a que estava sendo sub- se negou a responder muitas das perguntas que
metida, Marilene continuava sendo minha fiel pro- o doutor Ivan lhe fez. Claramente incomodada
tetora, pronta para tudo que pudesse aliviar meu com aquele interrogatório, deixou de ir me fazer
sofrimento. Ainda na UTI, lembro dela me dando companhia no hospital alegando ter contraído a
um Dormonid sem ordem médica. Um dia, uma Covid-19. Por se tratar de alguém de minha total
enfermeira foi checar se eu precisa de algo e notou confiança, obviamente que não solicitei teste ou
que o oxímetro que monitorava minha oxigenação atestado médico que confirmasse o diagnóstico.
não estava no meu dedo, mas no dedo de Marilene. Depois de 22 longos dias internada, recebi alta e
Espantada com a cena, a enfermeira perguntou a voltei para casa. Poucos dias depois, imagino que
Marilene por que ela estava fazendo aquilo. “Obe- tenha sido assim, voltei a cair e precisei voltar ao
deço quem me paga” foi sua resposta. Curta, sim- hospital para novos exames. Foi quando o doutor
ples e direta, Marilene sempre pareceu leal a mim, Ivan chegou para mim com os resultados dos novos
muito embora eu não estivesse em um estado claro exames na mão e me disse, sem rodeios: “Carmen,
de consciência e não lembre até hoje de ter feito sua funcionária está lhe drogando”. Espantada com
tal pedido. aquela acusação despropositada, respondi: “Impos-
Foi então que os resultados dos exames sível, doutor Ivan! Ela trabalha há seis anos na minha
começaram a chegar. O primeiro deles, de urina, casa. Ela é de minha inteira confiança!” Meus argu-
constatou alto teor de Clonazepam, o princípio ati- mentos, contudo, eram bem mais frouxos que os fa-
vo do Rivotril. Doutor Ivan Okamoto não precisou tos. Os exames toxicológicos continuavam apontan-

70 71
do uma dose elevada de calmantes que eu não havia
ingerido – pelo menos não por vontade própria. Foi
quando, pouco a pouco, comecei a juntar as peças
do quebra-cabeça que vinha sendo montado havia
muitos anos à minha revelia.
A partir dessa conversa com o doutor Ivan, meus
filhos e eu não vimos outra solução que não fosse
mandar Marilene embora. Flávia, a mais revolta-
da, queria colocá-la imediatamente na cadeia, mas
não permiti, pois, conhecendo a Justiça brasileira,
e sendo ela a psicopata que parecia ser, fiquei com
medo da sua reação.
Contratamos um advogado trabalhista, que jun-
to com Flávia e Luiz, acertaram as contas com ela e
a dispensaram. Minha filha, inconformada em vê-la
solta depois de quase ter me matado, fez questão
de confrontá-la, de indagar se ela tinha noção da
gravidade do que havia feito comigo e deixou bem
claro que não era para ela cruzar mais na frente dela
ou na minha frente. O advogado, que acompanhou
toda a cena, depois me contou que o que mais o
surpreendeu foi o fato de Marilene não ter se de-
fendido de nenhum ataque que Flávia que lhe fez.

73
A velha poltrona
L
ogo depois da saída de Marilene, contratei
uma outra empregada, mas cometi o erro de
conservar as diaristas que estavam ligadas
a ela. Passaram-se alguns meses até eu enxergar
que precisava trocar o time todo. Com minha cons­
ciência voltando gradativamente, percebi um dia
que dez mil dólares haviam sumido do meu cofre,
junto com um brinco de rubi maravilhoso que eu
guardava lá. Não tomei nenhuma atitude por pura
falta de força, mas comecei a me dar conta de que
Marilene sabia de todos os pormenores de minha
vida: onde ficam as joias, as senhas dos cartões de
crédito – inclusive os internacionais–, onde eu ia
ou deixava de ir, a vida dos meus filhos, dos meus
netos... E foi assim que eu, que nunca tive medo de
nada, que sempre fui uma mulher preenchida pela
onipotência, passei a ter medo.
Apesar da raiva, estava muito assustada com to-
das aquelas revelações. Durante anos, acreditei que
Marilene tivesse carinho por nós. Agora via que
se tratava de uma pessoa fria, sem sentimentos e
calculista. Recapitulando os fatos, me dei conta de
que ela não havia esboçado reação alguma diante
das 52 vezes em que caí. Que me deu Dormonid
na UTI não porque eu tivesse pedido, mas porque
queria que eu permanecesse distante da realidade.

74 75
Foi quando lembrei do dia em que ele comentou e a parabenizei sem imaginar que ela estava con-
com não sei quem que me dava remédios para que struindo aquilo com meu dinheiro. Demorei para
eu “não desse trabalho”. Ou então que eu caía “para assumir o quanto fui ingênua ao acreditar que eram
chamar a atenção”. verdadeiros os laços de amor que eu, tão carente,
Voltando ainda mais na linha do tempo dessa enxerguei nela.
tragédia, percebi que Angélica havia pedido de- A fim de seguir com os cuidados intensivos para
missão sem muitas explicações muito provavel- minha plena recuperação, passei a receber em casa,
mente porque não aceitava o que Marilene estava três vezes por semana, um fisioterapeuta que me
fazendo comigo. Alexandra, a diarista, me revelou ajudou a recuperar os movimentos e o equilíbrio.
que tinha ouvido um dia Marilene falar ao telefone Contratei também uma fonoaudióloga, que me
com Maria que “um pinguinho de remédio para ensinou a reunir novamente pensamento e fala. E
mim não bastava, era preciso um balde”. Enquanto mantive por um bom tempo ainda uma cuidadora
eu estava entorpecida, Marilene fazia compras para para me auxiliar nos cuidados básicos do dia a dia.
si e para suas cúmplices. No início, antes da vida se tornar o pesadelo que
Flávio, o motorista, foi outro injustiçado. se tornou, eu costumava sentar na poltrona da sala
Marilene escondeu duas vezes suas chave, tentando ver televisão e jantar, servida por Marilene. Outras
fazer com que eu o demitisse para poder contratar vezes, sentava ali para tomar minha dose de Vodka
seu marido. Muito embora Marilene precisasse de com água ou então uma tacinha de vinho do Porto
mim viva para poder ter acesso aos meus cartões à noite. Depois de tudo o que passei na mão dela,
de crédito, estremeço ao pensar que se aquela nunca mais me sentei naquela poltrona. De mulher
tormenta tivesse continuado certamente ela teria onipotente, forte, com uma vida esplêndida, tendo
me matado. Outro mistério que permanece sem passado por momentos incríveis, repletos de con-
solução foi o fato de ela ter me mostrado certo dia quistas, tornei-me vulnerável e assustada. Aprendi
um prédio de seis andares, quatro apartamentos a ter medo da morte e da velhice. Tudo isso ficou
por andar, que estava construindo. Na época, vi no cristalizado naquela velha poltrona da sala.
celular o vídeo do empreendimento em construção

76 77
O fim é um começo
H
oje, abri o computador atrás de algo para
me alegrar. Tenho uma pasta só com ar-
quivos de vídeos que me mandam em que
aparecem pessoas, anônimas ou famosas, cantan-
do e dançando. Abri três arquivos que me tocaram
muito da primeira vez em que os vi e seguem me
emocionando.
Um é o de uma mulher em uma cadeira de rodas
que começa a cantar e falar algo como: “Deus, me dê
forças para que eu consiga resolver os problemas do
dia porque eu não sei se amanhã eu vou estar aqui…”
Depois, abri uma música famosa, The Sound of
silence, de Simon & Garfunkel. Acho a letra mara-
vilhosa porque ela descreve perfeitamente aquelas
pessoas que falam sem saber o que estão falando e
ouvem sem saber o que estão ouvindo, e eu já vivi
muito esse tipo de situação no passado, então acho
que ela me toca por isso.
Por fim, abri um arquivo de Charles Aznavour can-
tando J’avais vingts ans, Eu tinha vinte anos. Sempre
achei que Aznavour canta minha vida nessa música.
É uma letra nostálgica, que diz mais ou menos o se-
guinte: “Eu tinha 20 anos e não pensava no futuro,
vivia o presente como se ele fosse eterno”, e por aí
vai. Passei minha vida assim, sem jamais pensar na
coisa mais importante de todas que é o amor.

78 79
Aprendi o que é o amor quando tive meus filhos. quem me disse um dia que eu era muito inteligente,
Eu os amava, mas, mesmo assim, sem a consciên- mas não tinha nem um pouco de sabedoria, e eu
cia do amor que tenho hoje, perto de fazer 82 anos. pensei: “Mais uma coisa para aprender”. Depois da
Somente hoje, cinco anos depois da morte de José doutora Judith, anida fiz terapia por outros 12 anos
Luiz, realizo que ele foi o homem da minha vida com a doutora Maria Helena Salles. Só hoje, chegada
e eu fui a mulher da vida dele. Embora fosse par- na oitava década de vida, posso dizer que tenho um
te dos meus problemas, ele nunca faltou, estava pouco de sabedoria e reconheço que a terapia fez de
sempre presente nos meus momentos difíceis. Ao mim o ser humano que sou. Sempre tive muita força
lado dele, eu me sentia protegida. José Luiz não de vida, mas sem a terapia não teria sobrevivido.
era fácil, tinha uma personalidade forte como a Os três vídeos que abri hoje para rever talvez te­
minha, e por isso brigávamos muito. Mas às vezes nham me tocado, agora pensando, porque todos
isso também é amor. eles, de certa forma, falam de finitude – e esse tem
sido um tema delicado para mim desde a descoberta
• do câncer. Tudo começou no início do ano passado,
quando voltei de Nova York achando que havia con-

C
omo já disse, comecei a fazer psicanálise um traído a Covid-19. Eu não tinha certeza, mas estava
pouco antes da Flavia nascer. Fiz nove anos muito mal, não tinha força para andar e comia muito
com a doutora Abigail Leão Rego, indicada pouco. Cheguei a perder uns cinco quilos na época.
pelo doutor Pontes, que um dia foi o médico da Em junho, quando voltei para o Brasil, procurei
família. Com doutora Abigail comecei a aprender meu clínico geral. Doutor Hélio Romaldini, que não
o que era terapia. Quando estava para me separar escondeu certa preocupação com o fato de meus
de José Luiz, comecei a fazer terapia com doutora exa­mes de sangue indicarem anemia. Em seguida,
Judith Teixeira de Carvalho Andreucci, que sub- ele me examinou e, somente pelo tato, sentiu que
stituiu a doutora Abigail depois que ela resolveu meu baço estava muito inchado. Pediu que eu fizesse
voltar para Alagoas, sua terra natal. Doutora Judith um novo ultrassom, sendo que o que eu havia feito
foi minha terapeuta por 12 anos. Foi doutora Judith meses antes, em fevereiro, não havia mostrado nada

80 81
de anormal. O novo ultrassom, contudo, confirmou ser atingida pelo câncer. Sinto, hoje, que banalizei
o que o doutor Hélio havia intuído pelo tato: baço um pouco a doença, mesmo depois de saber dela.
com dimensão acima do normal. O passo seguinte Meu psicanalista sempre diz que quanto mais eu
foi fazer uma biópsia. Fiz com dois médicos. Um falar, melhor. Por isso, fui a ele e contei a história
deles, o doutor Nelson Hamerschlak, hematologista toda da minha doença. E segui contando para Deus
e oncologista, pediu como complemento um PET e o mundo. Mas foi só quando comecei de fato o
Scan – esse, sim, um exame do qual nada escapa. tratamento, em agosto de 2022, que a ficha caiu.
Quando os resultados saíram, doutor Nelson me Foram ao todo dez sessões de radioterapia, todas
chamou em seu consultório e me mostrou a imagem no Hospital Albert Einstein. Cada sessão não durava
do PET Scan. “Você tem um linfoma”, ele me disse, mais do que um minuto. Um minuto não parece
sem rodeios. “O que é linfoma, doutor?”, perguntei. tempo suficiente para curar um câncer, mas não é
“Às vezes é câncer?”. Ele me olhou sério e respondeu: bem assim. A radioatividade é tão forte que perdi
“Às vezes, não. Sempre. Todo linfoma é câncer”. Eu 10 % da audição depois do tratamento.
tinha linfomas no baço e na corrente sanguínea. Na
verdade, meu câncer era no sangue e havia afetado •
o baço, responsável por “filtrar” o sangue do corpo.

A
Sob a orientação do doutor Nelson, comecei o ssim que terminei a radioterapia, comecei a
tratamento. Na paralela, meu doutor Hélio, que segunda fase do tratamento, a imunoterapia.
seguiu acompanhando meu tratamento, deixou Não é algo que eu recomende a alguém. A
claro que meu câncer era crônico e que, portanto, medicação é intravenosa, as sessões levam horas e
eu nunca me livraria dele – mas que seria possível mais horas e as reações alérgicas podem ser fortíssi-
mantê-lo sob controle. No começo, eu faria o trat- mas, como eu mesma descobri já na primeira sessão.
amento, seguido de exames de controle a cada três Mesmo assim, um dia, enquanto recebia o remédio
meses. Se tudo ocorresse bem, esses exames logo no braço, deitada, pensei: “Eu não posso reclamar.
passariam a ser feitos a cada seis meses. Tenho que agradecer a Deus por estar no melhor
Até o diagnóstico, jamais suspeitei que poderia hospital da América do Sul, assistida pelos melhores

82 83
médicos, ter dinheiro para pagar por tudo isso e, biografias de grandes personagens da História. Mas
acima de tudo, por ter aproveitado muito a minha de repente – de repente, não: depois de ser drogada
vida”. por anos com calmantes por Marilene – já não con-
Ao fim da sessão, enquanto caminhava pelos seguia mais me concentrar para nada. Agora estou
corredores do setor de oncologia, vi várias crianças voltando a ler novamente, porque a alegria de viver
de dois, três anos de idade, sem nenhum fio de cabe- está voltando.
lo na cabeça e um pensamento parecido com aquele Hoje tenho plena consciência da morte. Enquan-
outro me veio: “Já vivi 81 anos, se eu morrer agora to estiver bem, quero viver cada dia que ainda tiver
estou no lucro. Mas por que uma criança precisa pela frente e peço força a Deus para continuar e me
passar por isso?”. Situações como essa reforçam em mostrar o que preciso fazer. Alguns momentos são
mim diariamente o sentimento de aceitação e me difíceis, mas não quero desabar e alimentar a dor.
impedem de questionar o motivo pelo qual tenho O câncer nos faz enxergar a vida por outro ângulo.
essa doença. Fora que a doença coincidiu com o processo de
Pelo contrário. Enquanto o caso Marilene injetou escrita destas minhas breves memórias, e rever to-
em mim um sentimento de medo do mundo e me dos esses capítulos da minha vida me fez ter um
fez perceber a realidade da morte, sinto, hoje, que novo olhar sobre o passado. É sobre isso que es-
o câncer me resgatou de volta para a vida. Mais que sas breves memórias tratam: sobre a vida. Como a
isso. Talvez esteja finalmente aprendendo de uma canção do Charles Aznavour, desejo que este livro
vez por todas que nem tudo na vida precisa estar possa ajudar alguém, porque envelhecer não é um
sob meu comando para funcionar. Mais do que ser processo fácil. Gosto de pensar que alguém lendo,
a executiva dura que dá ordem, eu preciso respeitar quem sabe, possa se identificar e perceber que nen-
o tempo e o espaço do outro para também poder hum sofrimento representa o fim, mas a possibili-
ser respeitada. dade de um recomeço.
Tenho me esforçado a cada dia para me tornar
uma pessoa melhor, a aproveitar mais a vida, a viajar, •
a ler mais. Li a vida inteira, adoro ler, principalmente

84 85
P
assei minha vida inteira achando que minha bem em uma peça – e olha que sou bastante crítica
mãe não gostava de mim. Que ela sempre me –, mas logo abandonou o palco. A vida no Brasil a re-
colocava para baixo e não me dava valor. Lem- traiu, felizmente se casou como uma pessoa muito
bro da minha festa de 60 anos em que ela chegou, boa e hoje tem uma vida ótima nos Estados Unidos.
se sentou em um canto com a cara fechada, como Já meu filho vai indo muito bem. Ele precisa trilhar
se estivesse com raiva do que eu havia conquistado. seu próprio caminho dentro da empresa agora que
Quando contei essa história para meu psicólogo, já estou me afastando. Tem sido difícil porque, para
ele fez o seguinte comentário: “Eu não acho, Car- mim, trabalhar é vida. Gosto de enfrentar homens
men, que você não foi amada pela sua mãe. Quem de negócios, mas muitos assuntos hoje já não en-
tem tanta força de vida como você tem é porque foi tendo como meu filho Luiz entende. Mesmo assim,
muito amado”. sigo indo ao escritório, gosto de saber o que está
Minha mãe não era uma pessoa carinhosa, nem acontecendo e, modéstia à parte, tenho uma visão
comigo nem com ninguém, mas um dia lembrei da muito boa do todo, apesar de me faltar conheci-
vez em que ela me disse que começou a amar meu mento específico.
pai quando eu nasci. Percebi, no fim, que sou fruto Quando você sente que a vida deve ser do jeito
do amor. E quando falo em amor de mãe, penso que você deseja, você consegue tudo que quer. Isso,
também, obviamente, em meus dois filhos. Já me no meu entender, é onipotência. Ainda acredito que
magoei muito com eles, mas hoje entendo que ser continuo onipotente – a gente nunca deixa de ser, na
filhos de pais fortes não é fácil. Meu ex-marido era verdade. Durante muitos anos, essa onipotência me
um homem difícil como eu, tanto que entramos ajudou a ter força de ir à luta. Para mim, o difícil da
em choque e nos separamos. Sinto que, para meus onipotência é quando é mal usada, mas isso é algo
filhos, é como se nunca fossem acertar e ser como que ainda preciso analisar. Nem todas as questões
foram os pais deles. da vida têm uma conclusão.
Minha filha é uma mulher linda e tímida. Nunca Eu no sabia que iria envelhecer, não sei nada so-
pareceu ter consciência da própria beleza. Na juven- bre a morte, e nem vou saber. Não sei nada sobre
tude, fez teatro por um tempo, chegou a atuar muito ressurreição, e também nunca vou saber, não impor-

86 87
ta o quanto eu leia sobre assunto. Algumas religiões
dizem que voltamos para a mesma família para res-
gatar o que ficou mal resolvido. Sei que precisaria
acertar minha relação com minha mãe, talvez com
meu irmão, sem dúvidas com meu ex-marido, que
foi o único homem da minha vida, embora nunca
tenhamos tido consciência do amor. E com meus
filhos. Algumas coisas da vida permanecem um
mistério e é no desconhecido que mora a beleza
delas. Perceber isso é um sinal de que estamos cres­
cendo.

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© Carmen Tonanni 2023
© Livros de Família 2023

Este livro foi originalmente escrito por Carmen Tonanni e contou com a
colaboração de André Viana nas entrevistas e na coordenação editorial,
transcrição das entrevistas de Luciana de Oliveira, capa e projeto gráfico
de Paula Carvalho e revisão de Thaís Jacaúna.

Nesta edição, respeitou-se o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de


1990, em vigor no Brasil desde 2009.

As fontes usadas foram a Freight para o texto, a Berlingske Serif para


títulos a Apercu para as legendas. O papel usado para o miolo foi o pólen
80g/m² e a impressão foi da Forma Certa.

Agosto de 2023.

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