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O estilo bricolagem: Confluências entre Gilda de Mello e Mário de Andrade.

Felipe Elessu Alves | N° USP: 13644308 | Filosofia Geral I | Noturno | Profa. Silvana Ramos

“Nos meus cursos anteriores havia uma preocupação clássica de analisar as grandes categorias estéticas: o
sublime, o belo etc. Percebi que isso não tinha mais sentido. O importante era saber quais das grandes
categorias ainda resistem. A arte mudou de objetivo. Comecei a me interessar pelos problemas da arte atual.
Nesse momento, definitivamente, decido que não queria fazer outra coisa senão estudar do século XIX para cá.
O mundo podia cair que eu não ia falar sobre Schiller, Goethe ou Kant. Ia me fixar desse século para cá. Foi
quando passei a dar o que considero os meus melhores cursos” (Souza, Gilda de Mello. A Palavra Afiada, Rio
de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2014, p. 105).

O presente trabalho pretende analisar a existência de uma relação na construção do


conhecimento entre a filósofa Gilda de Mello e seu primo poeta, Mário de Andrade, através
da interpretação do filme-documentário, Exercícios do olhar – para falar de Gilda de Mello e
Souza, feito em estilo bricolagem a partir das falas de Gilda de Mello e Souza, extraídas de
textos publicados e entrevistas e produzido pela cineasta Angélica Del Nery para o SESC de
Araraquara/SP, cidade natal de Gilda, e onde Mário de Andrade escreveu, durante seis dias
ininterruptos, Macunaíma, seu magnum opus.

Somos apresentados pela primeira vez à personagem que o filme busca retratar, por um
vídeo instável, que no momento oportuno foca no rosto de Gilda. Quem grava a cena, com
uma câmera super-8 conduzida por mãos rápidas e inovadoras, é o inventor do estilo de tocar
violão mais moderno presente na música brasileira: João Gilberto, músico da bossa-nova.
Movimento brasileiro estético-musical do final dos anos 50 que, como bem notou Manoel
Bastos, pode ser considerada a “realização do projeto musical modernista de Mário de
Andrade”1.

Acompanhando as filmagens de João, notas melancólicas de um piano como trilha


de fundo se sobressaem compondo a cena. Quase como se o mestre maior de Gilda, Mário de
Andrade, que estudou piano desde cedo e também foi seu tutor, à introduzisse no filme, no
sentido que a música para a realidade mística afro-brasileira, também é um meio em que
invocamos alguma força divina e ancestral (BASTIDE, 1958). O piano, instrumento que

1
Bastos, M, (Re)arranjos de uma “utopia do som nacional”: a bossa nova como realização do projeto musical
modernista de Mário de Andrade, Revista Tempo e Argumento, vol. 1, núm. 1, pp. 136-154, 2009
Mário se dedicou por anos na prática, e que, após um trauma envolvendo seu irmão mais
novo, o debilitou de exercer o ofício plenamente, fez com que ele se dedicasse mais à teoria
musical e outras áreas do conhecimento. É nesse contexto que, assim como Mário,
entendemos o estilo desse filme, como um trânsito de um domínio para o outro, "sob a égide
da Música”, da estética marioandradiana.

Após esse pequeno prelúdio, Angélica Del Nery anuncia se tratar de uma obra estilo
bricolagem. O termo Bricolagem, cunhado originalmente por Lévi-Strauss em sua obra O
pensamento selvagem, é usado para descrever um modo de pensar e resolver problemas
caracterizados pelo uso de ferramentas ou recursos disponíveis para criar algo novo ou
abordar um desafio específico. No contexto da pesquisa antropológica, a bricolagem envolve
reunir informações e percepções de uma variedade de fontes para obter uma compreensão
mais abrangente de uma determinada cultura ou fenômeno social.

Para Strauss, a bricolagem era um componente chave do método científico, e ele a


via como uma forma de reconciliar a aparente tensão entre a busca científica da verdade
objetiva e o processo criativo e subjetivo de interpretação. Utilizando uma gama de recursos e
ferramentas, o bricoleur é capaz de construir uma compreensão única de um determinado
assunto, que é informada tanto por dados objetivos quanto por interpretações subjetivas.

E dessa união de falas diversas, baseadas em textos de ensaio e crítica escritos por
Gilda de análise de obras artísticas, que o filme vai percorrendo os caminhos traçados pela
autora ao longo de sua trajetória. Uma vez que, ao conhecer mais a obras analisadas;
conhecemos também mais sobre Gilda, seu percurso intelectual e também sobre a
efervescente produção cultural de seu tempo.
As primeiras palavras de Gilda narradas no filme, é sua análise da obra
cinematográfica do cineasta italiano Federico Fellini, 8½ (Oito e Meio), filme lançado em
1963, ano em que Gilda começou sua carreira acadêmica na Universidade de São Paulo. O
fato de um filme ter sido a a forma artística escolhida para abrir as sequências de textos
narrados sobre o ponto de vista de Gilda, pode nos parecer uma escolha inusual. Mas, nada
mais justo, para quem encontrou no cinema (arte moderna por excelência e denominada
“sétima arte” por aglutinar várias artes em si), o meio de encontrar no objeto artístico
analisado, questões filosóficas profundas.
Em O salto mortal de Fellini , Gilda nos fala do ‘tempo subjetivo” presente na obra do
cineasta: “[...] ele [Guido] é o criador aprisionado na sua temporalidade cotidiana.” (SOUZA,
2008). O retrato multifacetado do personagem, encontra nele mesmo, a chave para o mundo
da infância, da fantasia e da memória. Todo labirinto atemporal em que a obra de Del Nery se
sitúa.

As cenas iniciais do filme são, nesse sentido,


exemplares, e a queda de Guido, do céu em que
flutua como um enorme espantalho ao mar, nos
adverte o que será o filme: um mergulho no seu
ser mais profundo. O devassamento impiedoso
irá questionar tudo: o comportamento no amor, o
processo pessoal da criação, as angústias
religiosas. E a chave de tudo estará na infância,
ou nos sonhos e devaneios do adulto (SOUZA, 2008,)
.
E, é através da obra de Fellini que a cineasta se propõe a mergulhar na alma de Gilda e
nesse mundo quase memorialista. Acompanhado por uma trilha circense, que reforça o
sentido infantil e de retorno ao passado que o filme pretende alcançar ao mesmo tempo, se
iguala ao espírito contestador da realidade de Gilda. Como um mergulho no tempo, vemos
um vídeo de Gilda, já madura, sendo chamada para compor à mesa em algum evento
acadêmico e recebida por palmas.
Iniciar o filme por uma obra do cinema europeu, é justamente, ter como princípio,
aquilo que Ismail Xavier chamou de "centro nervoso da reflexão de Gilda"2, pois, de certa
forma, ela quebra paradigmas e se interessar pelo que não é comum - aqui se vê o cinema
europeu e o ocidental de forma geral como forma dominante e o cinema brasileiro como
aquele subdesenvolvido, em mudança constante, dependente de conjunturas políticas internas
e externas – E tudo isso se encontra em Gilda: a tentativa moderna de criar uma crítica de arte
brasileira, que não tenha apenas como modelo padrão o “sublime” ou o “belo” estabelecido
por regras canônicas.
As fotos de Gilda vão mudando conforme transcorre uma linha do tempo indeterminada, de
forma rapsódica, como em Macunaíma (SOUZA, 2003, pag. 34); de uma Gilda mais madura
até a jovem de Araraquara do tempo convergente da fazenda. As fotos, os personagens, as
obras de arte, que se apresentam ao longo do filme, surgem como “Uma a uma vão chegando
todas as personagens, da infância ao presente, que a lucidez não soube ordenar.” (SOUZA,
2005); da maturidade à infância, da cidade de São Paulo, onde Gilda nasceu, para o interior. O

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XAVIER, Ismail. As técnicas do olhar.
mesmo movimento hidrográfico do Rio Tietê, que, quase como um presságio geográfico,
colocou São Paulo do lado oposto das grandes metrópoles marítimas até então. Esse mesmo
movimento de "volta ao sertão", é também empregado por Mário de Andrade em sua busca
por um Brasil profundo.
É interessante notar que a primeira imagem de Gilda criança, tem com pano de
fundo sonoro – novamente - um piano, que toca a melodia de uma cantiga tradicional
folclórica brasileira: Samba-lêlê, cantiga de roda, de origem ibérica, que no Brasil adquirem
elementos sonoros e vocábulos africanos de origem Banto. É também a primeira fala da
filósofa sobre uma pessoa, no caso, a primeira figura da tríplice imagem que ela tem como
lembrança de seu primo. Conhecido por suas andanças e coletas de materiais produzidos pela
cultura popular, Mário teve uma importância fundamental na construção de uma identidade
sonora brasileira, além disso, se envolveu nas mais diversas áreas do conhecimento, como:
literatura, etnologia, fotografia e crítica.
Essa figura polímata de Mário, estabelecida na idéia da construção do
desenvolvimento de uma possível identidade nacional pretendida pelos artistas da geração de
22, também acompanha o trajeto multifacetado de Gilda, e dos críticos nascedouros da
geração Clima, no papel de interpretação dessa identidade criada e o que ela representa para
construção da arte moderna no Brasil.
A fazenda em que Gilda passou a infância e que Mário regularmente passava as
férias, era como um ponto de organização das diversas áreas de conhecimento que Mário, ao
longo de anos, de viagens e pesquisou, coletou e que se concretizou no nascimento de
Macunaíma, nesta mesma cidade.
Após seu fracasso nas aulas de música, em que Gilda falhou em conseguir aprender o
ofício de seu primo e se tornar uma pianista. Gilda se aventura pela pintura, e, através das
análises que ela faz das obras de Almeida Júnior, onde predomina uma representação de um
típico modo de viver caipira. Finalmente, acompanhado pelo som da viola do homem
sertanejo, podemos perceber o primeiro mergulho do filme na realidade paulistana e do
interior em que Gilda passou a infância. Almeida, entra aqui como aquele que fez parte de
uma etapa importante na constituição de uma arte verdadeiramente nacional; mais do que
isso,  os quadros de temática regionalista, que aponta para um artista preocupado em retratar
questões da sua terra, reforçam essa visão. Esse, de certa forma, era o plano modernista da
geração de 22, que de certa forma, sempre ocupou o objeto de estudo da autora. Ou seja, em
investigar o não-convencional, o outro lado da história. A busca por uma estética "pobre" à
que se refere Gilda em sua aula inaugural sobre os professores franceses.
De certa maneira, essa escolha pelo "pobre" foi uma das bandeiras erguidas pelo
modernismo na busca do rompimento com a tradicional arte européia, o “bom gosto”
difundido pelas convenções acadêmicas tradicionais. Como Mário de Andrade afirma3, a
origem da modernidade artística no Brasil se deu com as primeiras representações do homem
e da terra na pintura brasileira. Portanto, Almeida Júnior, seria um dos precursores do
modernismo no Brasil.
Como se seguisse o mesmo caminho percorrido por Macunaíma, que abandona a
realidade rural e selvagem do “Matovirgem”, seguindo o rio Araguaia na direção oposta, do
interior para o mar. Assim, como o herói de Mário, Gilda se debruça na paisagem vertical da
Capital Paulista e analisa pinturas de Gregório Gruber, representando paisagens urbanas
tradicionais do centro da cidade, uma São Paulo quase sem figura e sem forma. É a cidade
máquina e moderna, do igarapé Tietê que, o amazônida Macunaíma, se depara. E se torna
esse também o novo lar que a jovem Gilda, ao se mudar para sua nova casa, a casa da Mãe de
Mário na rua Lopes Chaves , terá que se adaptar.

A formar de criação artista de Grabe Gruber, de métodos tradicionais, mas sempre se


preocupando em “interpretar o presente ". Também se encontra com o estilo de Gilda. Estilo
esse descoberto em sua estadia na capital que, ao perceber que a pintura não seria o melhor
caminho para seguir, descobre na forma do ensaio, o estilo perfeito de traduzir e transmitir sua
visão de mundo.

Estilo ensaístico sempre encontrou forte oposição por partes de filósofos da


Alemanha, como nos lembra Adorno em O ensaio como forma, publicado em 1954. Para ele,
o ensaio não só critica o processo científico, como também a base filosófica desse processo
enquanto método, doutrina, teoria, sistema; crítica: é o ensaio – e quase tão somente o ensaio
– que questiona, “ o direito incondicional do método”(ADORNO 2012).

Para Adorno, portanto, o ensaio não se restringe a um princípio e nem busca o todo;
ao contrário, o ensaio ao dedicar-se ao fragmentário, ao transitório, as “pequenas partes”
realça, antes, “o parcial diante do total”. O ensaio não procura em sua forma, por isso, uma
construção completa, seja partindo de observações particulares às mais gerais ou vice-versa.

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ANDRADE, Mário de. As artes plásticas no Brasil.
Não poderia existir um gênero melhor em que Gilda poderia expressar seu conhecimento do
esse estilo.

É nesse cenário de transição e escolhas que o segundo Mário se apresenta para


Gilda. No momento em que ela abandona a pintura como futuro artístico e entra na faculdade
de filosofia, onde irá abraçar o ensaio, como forma de produção de conhecimento definitiva e
o utilizando de forma inovadora.

O terceiro e último Mário da lembrança de Gilda, é, por fim, desse período acadêmico,
já na faculdade de Filosofia (FFCL-USP), em que a figura de Mário, se apresenta como uma
estrela orientadora; paralelamente à Roger Bastide, professor francês recém chegado ao Brasil
que futuramente orientaria Gilda em sua tese de Doutorado. É nesse período de prolifera
produção acadêmica, que Bastide entra no debate artístico da época, alinhado com as recém
produções dominantes da geração de jovens críticos modernistas da revista Clima.

Bastide, com seu olhar crítico, buscava uma espécie de “alma brasileira”, seguindo o
ideal modernista (ANDRADE, C.D., 1982), porém de forma mais radical; definindo o
percurso da sua interpretação sobre o Brasil e o seu próprio percurso como intérprete que vem
de fora, do mar, do outro lado do Atlântico; de forma oposta ao sertão caipira que corre o Rio
Tietê. Bastide se vê diante de uma posição analítica um pouco diferente da de Mário. Se os
modernistas estavam diante da preocupação de superar a imagem do Brasil como um país
exótico, para Batiste, o Brasil era sinônimo de Exótico. A procura da África no Brasil, que o
francês se empenhou em dar à luz - em contraponto a predominância de temas Indigenistas
que fundamentaram alguns modernista - para Bastide, o rompimento com a tradição, se dá, de
fato, com a procura do “outro do outro”, como uma espécie de oitava maior modernista.

Todo composto sincrético de forma amálgamada de pequenas produções para


compressão de um todo presente na obra de Bastide, é a essência da construção da bricolagem
de Gilda e Mário. O saber produzido de forma quase artesanal que, possibilitando a existência
de outros caminhos de reflexão, permite ter uma visão revista pelo que, até então, era deixado
de lado por certos setores academicistas.

Gilda foi uma mulher inovadora e pertencente ao seu tempo. Foi capaz de reunir
diversos tipos de saberes artísticos para dar à luz a um sentido filosófico presente na produção
moderna que foi revisitada pelo seu olhar apurado. Assim como estilo empregado por Mário
em Macunaíma e Del Nery em seu filme sobre a filósofa, Gilda não só soube interpretar a
bricolagem de Strauss, como foi ela própria um ser bricolor. Levando para dentro de si a sina
de seu mestre de "ser trezentos".

Bibliografia
‌ADORNO, Theodor W. Notas sobre literatura. Editora 34, 2012.

ANDRADE, Mário de; DRUMMOND, C. A lição do amigo : cartas de Mário de Andrade a Carlos
Drummond de Andrade, anotadas pelo destinatário. São Paulo, Sp: Companhia Das Letras, 2015.

MÁRIO DE ANDRADE. Macunaíma. São Paulo: Novo Século, 2017.

ANDRADE, Mário de. As artes plásticas no Brasil. Revista da Academia Paulista de Letras, São
Paulo, Ano 7, v. 26, 1944. p. 27

ARANTES, Otília Beatriz Fiori. Notas sobre o método crítico de Gilda de Mello e Souza. ESTUDOS
AVANÇADOS, 2006.

BASTIDE, R. O candomblé da Bahia. [s.l], 1958.

EMÍLIO, Paulo. A crítica como perícia

PONTES, Heloísa. A paixão pela forma. NOVOS ESTUDOS CEBRAP 74, março 2006. pp. 87-105.

RAMOS, Silvana de Souza Nunca houve uma mulher como Gilda de Mello e Souza. Revista Ideação,
N. 42, Julho/Dezembro 2020.

SOUZA, Gilda de Mello e. A idéia e o figurado. . São Paulo: Duas Cidades/Editora 34. . Acesso em:
05 fev. 2023. , 2005

LÉVI-STRAUSSC.; ROSA FREIRE D'AGUIAR. Tristes trópicos. [s.l.] São Paulo Companhia Das
Letras, 2007.

SOUZA, Gilda de Mello e. O tupi e o alaúde. [s.l.] Editora 34, 2003.

SOUZA, Gilda de Mello. Exercícios de Leitura, São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2008.

SOUZA, Gilda de Mello. A Palavra Afiada, Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2014, p. 105.

XAVIER, Ismail. As técnicas do olhar.

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