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ano 2, v. 2, n.

2, 2023
Editorial
À meia-noite de hoje, dia da publicação deste A VI Sappli teve duração de dois dias e contou
IV Folhetim, é Ano-novo. Não é incomum que as com 12 apresentações, oito delas gentilmente dispo-
pessoas que seguem o calendário gregoriano apro- nibilizadas pelos comunicadores para integrar esta
veitem o momento para seguir rituais em busca edição do Folhetim. De produção literária, trazemos
de um recomeço melhor. É como se todo dia 31 de o conto “Antônia, eu e os meus peixes”, de Kelly
dezembro pudéssemos apertar um botão e esperar de Novaes Lopes, e os poemas “Recomeços”, de
que o sol que nasce no dia 10 de janeiro nos trouxesse Pâmela Novaes Rosa, “Cosmogonia: ovo cósmico”,
a oportunidade de uma vida que nunca vivemos, de de Júlio César de Amorim Corrêa, e “Diferentes
experiências que jamais experimentamos. Como diz recomeços”, de Bruna Felsmann. As produções aca-
Caetano Veloso em “Canto de um povo de um lugar”, dêmicas aqui disponíveis são a resenha do livro de
“Todo dia o sol levanta / E a gente canta / Ao sol de Ailton Krenak Ideias para adiar o fim do mundo, por
todo dia”, e aproveitamos essa certeza para deixar Roberto Teixeira de Aguiar Jr., os ensaios “Criando
para amanhã o que não queremos ou não pudemos seus próprios recomeços: a agência de Helena em
fazer antes: aprender um novo hobby após a virada Bom é o que acaba bem”, de Mariane Vincenzi Nunes,
do ano; entrar no curso de idioma no próximo mês; e “Performance e a desconstrução do ‘eu’ moderno
começar a academia na próxima segunda-feira. na literatura ocidental”, também de Júlio César de
Houve um tempo, porém, há séculos, quando as Amorim Corrêa, e o artigo “‘Estou feliz por estar
pessoas não tinham a certeza de que o sol ia nascer viva. Estou feliz por estar viva’: O recomeçar em
de manhã, e por isso elas faziam outros rituais a fim de Luxúria de Raven Leilani”, de Victor Soares Lopes.
garantir essa dádiva que podia assegurar a sobrevi- Somente neste ano, em 5 de maio de 2023 —
vência. Há ainda épocas, ocasionalmente, em que a pouco mais de sete meses atrás —, a OMS declarou o
humanidade passa por momentos históricos trágicos, fim da Emergência de Saúde Pública de Importância
coletivos, quando são muitos os medos e poucas as Internacional. É curioso notar que não passou nem
certezas. A epidemia de Covid-19 foi um deles. Em um ano e já estamos acostumados a falar e ouvir “foi
11 de março de 2020, a Organização Mundial da durante a pandemia...”, como um período distante.
Saúde (OMS) decretou oficialmente a pandemia. Dois Talvez um desejo de tentar deixar para trás tanta
anos e cinco meses depois, felizmente mais de 100 dor e incerteza? Sim, talvez. É certo, porém, que
milhões de brasileiros já haviam tomado a dose de jamais esqueceremos as manchetes dos jornais, as
reforço da vacina contra a Covid-19, quando a equipe curvas crescentes dos gráficos que estampavam na
do projeto de extensão Coruja começava a discutir tevê as perdas, as lágrimas de famílias no Brasil e
um tema para a Semana Acadêmica de Pesquisa e no mundo. E também é certo que podemos contar
Produção Literária de Graduação em Letras (Sappli), com a literatura e as artes para dar vazão aos nos-
que acontece uma vez ao ano e cuja sexta edição sos sentimentos mais viscerais, pois, como aponta o
daria origem a este Folhetim. A ocupação do espaço sociólogo Antonio Candido, a literatura e os direitos
físico das universidades brasileiras, incluindo a nossa humanos estão intrinsecamente relacionados: é por
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, já era meio da literatura que organizamos o que está à
uma realidade segura, e era inevitável sonhar com o nossa volta, construindo nossa visão de mundo e,
fim do pior período enfrentado pela nossa geração e portanto, humanizando-nos; e também é com ela que
vislumbrar a aurora, enxergar o despontar de novos desmascaramos as mazelas materiais e espirituais.
recomeços. O tema — Recomeços — estava claro Boa leitura!
diante dos nossos olhos e acalentava nosso coração. Liciane Guimarães Corrêa (bolsista)

Corpo Editorial Coruja | Ana Carolina Spalla (bolsista), Ana Clara


Barreiros (bolsista), Anna Carolina Pimentel (bolsista), Fabiana
Prieto (bolsista), Liciane Corrêa (bolsista) e Ticiane Sousa (bolsista)
Ilustradora de capa | Bruna Felsmann

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Diagramadora | Liciane Corrêa
Revisoras | Anna Carolina Pimentel, Fabiana Prieto, Liciane Corrêa
e Ticiane Sousa
Agradecimento especial | Profa. Adriana Jordão
Foto de
assoonas

Produção literária

Antônia, eu e os Então, sem imaginar que toda ação tem uma


reação e sem contar muito com a lógica também,
meus peixes ela fez a única alternativa cabível na sua (extrema-
mente) difícil situação de estar cercada de pessoas
Kely de Novaes Lopes chatas: ela se auto sequestrou.
Você pode estar pensando: caralho, mas Antônia
Antônia, coitada, só queria sumir. Mas nada é doida, é? Mas, ora, não sejamos tão malvados com
de mais, ou muito pesado. Ela só queria passar 3 ela. Imagine você entrar todo dia no Twitter e ver
dias sendo bicho, em pleno contato com a natureza pessoas falando besteira? Aquilo foi a gota d’água para
e esquecer todos os grandes problemas da vida Antônia. Quer dizer, não exatamente isso. Antônia
adulta, que acabava de começar. Problemas esses achava que se ela fosse sequestrada, ela poderia fugir
tão grandes, mas tão grandes quanto uma gotinha de todas as suas obrigações e boletos que chegariam
no oceano — mas ela jurava ser o oceano inteiro. na sua casa. E, porra, nesse começo de pandemia o
Antônia, coitada, só não sabia que o oceano inteiro tanto que ela comprou para saciar o vazio existencial
não tinha só caos, mas também a ordem. E ambos de estar a sós consigo mesma não está no gibi.
independiam dela. Que outra solução ela teria? Como ela poderia
No entanto, Antônia não somente não sabia lidar com seus grandes problemas de estar cansa-
disso, como também não sabia de mil outras coisas da de interagir com os outros, boletos chegando
tão complexas, como, por exemplo, saber que seus e pessoas estressantes em casa, no trabalho e até
atos teriam consequências. Ora, quem poderia ima- mesmo na internet? Não tinha outra alternativa.
ginar, né mesmo? Ela precisava se sequestrar.

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Era óbvio. Assim, ela não teria ninguém co- das divagações e a trouxe de volta para a realidade
brando presença, não teria ninguém perguntando — bom, pelo menos tentou.
como ela está. Imagine o horror de ser perguntado
como está? Que crueldade! Como os outros ousam Mamis ❤️
se importar com ela? E não teria só vantagens em volta pra casa, filha da puta enlouqueceu?
não dar explicações: ela também não seria culpada
de nada. Tudo estaria nas costas do sequestrador. Porra! Quem é sequestrada e deixa o celular
Ela, a única vítima da própria vida, seria paparicada ligado?
quando voltasse — um grande fardo doce e açuca- Recobrou a pseudoconsciência.
rado que teria que carregar. Desligou a internet.
Pronto! Não tinha mais como voltar atrás. Ela Pronto, agora ela estava no mais profundo silên-
estava decidida a sentenciar a sua vida: iria se se- cio possível em plena atualidade: desconectada do
questrar agora mesmo. Antônia tirou os fones de mundo virtual. E quem não está online, não existe.
ouvido, que embalavam seus planos e conversas Agora, não existindo, Antônia teve que lidar
mentais, pegou o celular e ligou para a mãe. com todo o caos que estava surgindo das margens
— Mãe. do seu ser. Aquilo que ela varria para debaixo do
Uma voz fraca, mas firme. Baixa. Abafada pelo tapete explodiu e infectou a sala de ser e estar. E
barulho do motor do ônibus. Antônia era alérgica. Tinha rinite, a coitada.
— Mãe. Quase morreu, mas sobreviveu. E ela nem chega-
— Fala, Antônia — disse ríspida e desconcen- ra ao seu destino de isolamento: já estava no ônibus,
trada do outro lado da linha. mas ainda a caminho da Central.
— Estou sendo sequestrada. Mas estou bem. Cansada de ter que lutar contra si e encarar
Daqui a 3 dias eles vão me soltar. Em casa e bem. seu reflexo, que revelava apenas mais uma mera
Antes que sua mãe pudesse responder, Antônia pecadora — e não pecadora porque ia contra os
desligou. Com o coração acelerado pela adrenalina deuses ou seja lá o que exista, mas porque ia contra
que tomava conta dela agora — afinal, tinha aca- ela mesma. Antônia, no fundo, sabia ser a maior
bado de definir seu futuro —, Antônia apertou a errante que já existiu (junto a outros milhares).
parada do ônibus em qualquer lugar e desceu ali Ela sabia que o seu erro fatal era imputar a si um
na Alameda. Ajeitou a sua máscara, respirou fundo, estado eterno de menoridade. Ela tinha ouvido isso
se engasgou com a própria saliva e tossiu. Tossiu 3 em algum lugar e, desde então, a sua consciência a
vezes e atraiu olhares indesejados. denunciava todos os dias: vai fazer algo por ti, filha
Envergonhada, desceu do ônibus correndo e da puta. Vai aprender a andar sozinha e servir-se
esperou o próximo, com o destino exato: Central. do seu próprio entendimento.
Percebendo que não tinha muito o que fazer e que o Não! Foda-se, pensava Antônia. Eu me auto
ônibus demoraria um pouco, afinal já era tarde da noi- sequestrei para fugir daqueles que me irritavam. Me
te, resolveu tirar o celular e conferir que horas eram. sequestrei pra ter paz, pra não ter mais problemas.
Antônia se assustou com o horário: oito e qua- Pra ficar sussa! Será que é tão difícil assim?
renta da noite. Que inferno! Tinha passado mais Isolada no seu próprio isolamento, Antônia per-
de meia hora parada na porra da ponte e depois cebeu que, aonde ela fosse, os problemas a acompa-
perdeu as contas de quantas travadas deu quando nhariam. Fugir só traria mais complicações. Sumir
o ônibus chegou na Alameda. E ainda faltava mui- era um sonho inútil e burro. Mas ela já se encontrava
to para ela chegar em casa. Ela já não sabia como a caminho do Recreio agora, indo para a trilha do
ainda aguentava esse trajeto do trabalho todos os Perigoso. Era tudo o que ela precisava, não era?
dias, de segunda a sexta. Como alguém poderia se Paz, certo?
submeter a isso? Logo ela, que tinha tanto o que Não... Não era.
fazer. Logo ela, coitada. E em plena pandemia ain- Chegando à praia, jogando a sua mochila de
da. Quer dizer, ela era sortuda por ainda ter como qualquer jeito na areia e encarando o mar, Antônia
trabalhar num momento desses. Mas até a sua sorte sabia que aquilo que ela precisava não era paz. Não
era motivo para seu ódio. Até as suas bênçãos eram era sossego. Não era isolamento. Antônia precisava,
como um suplício. na real, assumir a si mesma e comandar a própria
Porém, não foi só esse devaneio que Antônia vida. Assumir os seus BOs. Ela estava farta até
encontrou ao olhar para o celular. Ele era bem claro mesmo de querer fugir e sumir. Sumir era um sonho
e nítido ao lembrar que ela esquecera a rede móvel distante que a levava para a inatividade. Mas só se
ainda ligada. Uma mensagem da sua mãe a cortara existe na ação.
Antônia agora sabia, enquanto o vento gelado achando que não resistiriam a uma doença ou uma
arrepiava seus braços e tocava seu rosto, lembran- fase ruim,
do-a que estava viva. Ah, sim, ela sabia que o ser mas deu tudo certo.
só se realiza na ação. Além disso tudo,
Então era isso! Antônia precisava agir. recomeçamos todos os dias
Abrindo a sentença, jogando reticências e des- porque nos é dado a chance de consertar nossos
truindo o ponto final, Antônia decidiu adicionar erros,
agora o capítulo da Revolução em sua vida. ser melhores com os outros e nós mesmos.
Correu de volta para sua mochila, pegou o seu Quando você perceber isso,
celular e digitou: talvez tenha mais sentido pra você acordar mais um
dia e tentar de novo.
Mãe, deixa janta pra mim que eu E de novo
estou chegando. — assim jaz a vida.

Afinal, Antônia precisava entregar o trabalho


da faculdade no dia seguinte. E se ela queria, agora,
ser agente ativa daquilo que ela chama de vida, tinha Cosmogonia: Ovo Cósmico
que começar por algum lugar, não acha?
Pois é, eu também. Júlio César de Amorim Corrêa
(E também porque a sua mãe já estava passando
mal e indo pro UPA. Mas isso a gente deixa que ela Memórias de vida e morte
descubra ao chegar em casa.) Que se abrem, que se fecham
Então, foi isso que ela fez. Antônia voltou e me Respirações que vibram e bloqueiam
levou junto, porque até eu preciso dar comida pro Pulmões fatais, explosivos
meu peixe.
Caminhos errantes do inferno
Iluminados pelo fogo, pelas feridas
Da lua, majestosa mãe
Recomeços Que chora sangue e respira fumaça

Pâmela Novaes Rosa Buracos no céu


Balas de lágrimas
Não seremos para sempre os mesmos. Arranhões vermelhos que vibram
Para cada um de nós, E se transformam em cânceres
há um diferente tipo de recomeço.
Há para aquela mulher que sofria com um relacio- Espermatozoides dançantes
namento tóxico Mitocôndrias pesadas
e se libertou. Invadem e violam
Há para aqueles que não sabiam quem queriam ser Os úteros milenares
e, quando se encontraram, foi maravilhoso.
Há aqueles que não sabiam o que fazer da vida Na epigênese do universo
e, depois de muito esforço, chegaram onde queriam, Uma bactéria se explode
começando uma nova fase. No orgasmo caótico
Há aqueles que perderam pessoas, e achavam que De uma boca nuclear
não havia saída
e que tudo havia se esvaído, mas perceberam que Sobre a plenitude poética,
é possível Um glorioso trovão
mesmo que a dor não vá embora completamente. Irradia com morte todos os roteiros
Há aqueles que testemunharam um milagre, E reinicia um ciclo infinito universal

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Diferentes recomeços Rir de uma piada boba de alguém que te ama e sentir
que aquele momento,
Aquela fotografia de tempo e espaço contém nela
Bruna Felsmann toda a felicidade que você precisa.

Em algum momento a gente passa pelas coisas


Olhos que enxergam sem sentir, e elas vão ficando em preto e branco.
Lapsos de cor que desaparecem, e voltam só em
Meus olhos se acostumaram a ver as coisas como lembranças nostálgicas.
são, e não como poderiam ser. Não são o agora, o sempre, como antes.
Ou ainda, eles sempre as viram como eu as vejo,
mas agora, em preto e branco. Então, sonhos, que lá atrás eram uma certeza de
Faltam as cores vibrantes, que não distorcem as um futuro,
formas, mas as colorem em explosões de pos- São transformados em informações vazias.
sibilidade. De poesia, de magia, de sentimento. “Você quer viajar pra Índia? Que legal.”
Como os fogos no ano novo, ou um quadro de Van “Não brinca que você sabe pintar?”
Gogh. “Nossa, com isso aqui dava pra ser poeta, hein”
As coisas como são, mas vistas por outros olhos. Falta tempo, falta dinheiro, falta inspiração, falta
Meus olhos não enxergam, sabe-se lá por qual mo- talento, você já está velho demais, cansado demais,
tivo tem filhos demais, tem problemas demais.
(vida adulta, guerra, um burro no controle, ou o Sejamos realistas, realizar sonhos é pra quem pode.
quilo do tomate a seis reais) O resto (nós) tenta sobreviver.
(Sendo sincera, por esse preço, o tomate deveria Pensar diferente é otimismo ou estupidez (sinô-
curar ansiedade) nimos).
Mas seja como for, as cores se foram.
Mas me dói, veja bem, porque eu não perdi com-
Em outras palavras: pletamente a esperança.
Eu perdi a esperança, e isso me incomoda. Aquele gosto do futuro-certeza, aquele gosto do
Não se engane, sempre fui cínica, sarcástica, sar- “eu sei que vai dar certo”
dônica, Aquele cheiro de chuva ou as luzes do sol pelas
Mas costumava ver as cores e acreditar nelas. árvores, ainda vêm até mim.
Atrasada pra escola, a espera de um ônibus que Eu corro e os abraço, e tento mantê-los comigo.
não chegava Digo que sinto saudades.
Eu olhava para os feixes de sol que venciam as folhas É um esforço tremendo, ver as cores do mundo.
das árvores para tocar meu rosto Mas quando tudo inevitavelmente volta ao preto
A luz que dançava, reluzia e branco
A beleza que enchia meus pulmões como ar fresco. (seja pela vida adulta, guerra, o burro que acha
Qual foi a última vez que você acordou e enxergou que está no controle ou o quilo do tomate a oito
o mundo como belo? e cinquenta)
Eu me sinto ainda como uma cafeteira vazia
Não estou falando de fotos estáticas de paisagens da Olhe lá dentro, o cheiro do café, o tom escurecido.
Grécia, não estou falando de um pôr do sol gené- Está e não está.
rico, mas da vida. As pequenas coisas, todas elas. Eu ainda sinto o gosto do colorido.
O pão na chapa, o cheiro do café.
Entrar em um táxi e aquela música estar tocando.
Uma bucha novinha pra lavar a louça, a toalha macia
depois de um banho.
O barulho da chuva no asfalto, a areia entre os dedos
dos seus pés.

Foto de halimqd

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(Re)Começo Paciência
Chuta o balde, menina e sente Minha doce flor, de pétalas tão jovens
Sente as cores, as luzes, sorrisos, Martirizada pelas dúvidas de um mundo sem res-
Minhas mãos. postas,
Aprenda que o tempo de navalha pode ser amigo
Que teu passado é elenco de feras, sábio,
E o futuro repleto de quimeras, E sussurrar para ti tudo em seu momento.
Mas não aceites a solidão.
E segue a vida sem saber onde vai dar…
Chuta o balde, menina e veja Ó bela flor, aceita teu destino e chora
Essas amarras escorrerem de tuas ancas. Pois pensas que já passaste da hora
Hoje o dia é livre pra correr, E que o mundo não vai mais te esperar…
O relógio é engano.
Seus dias colorem os meus, Mas surpreenda-te talvez em saber
E fazem o tempo contar. Que a vida é uma escola
E o fim de uma lição é o começo de outra
Chuta o balde, menina, se entrega. Para aqueles que sabem ouvir.
Se deixa sentir, sorrir, correr,
Não deixa Talvez não saiba o que esperar
De amar. Mas ao bater da hora, quando todos forem embora
e só sobrar você
Foto de Allexxandar

A razão vai cantar em teus ouvidos a verdade:


Que o passado é poeira e o futuro não brotou
Mas o agora é feito de areias de ouro
Agarra-as entre os dedos e o mundo é teu.

Produção acadêmica

RESENHA combativa e denunciativa das barbáries promovidas


por aqueles que se arrogam o título de ‘verdadeiros
humanos’. Oras, tal aspecto é trazido à tona por
KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. Krenak logo no início do livro após compartilhar co-
São Paulo: Companhia das Letras, 2019. nosco sua recusa de “atravessar o oceano por razões
afetivas e históricas” (p. 7) por mais de meio século,
Roberto Teixeira de Aguiar Jr. pois não achava que tinha muito o que conversar
com portugueses. A seguir, ele comenta justamente
“Ideias para adiar o fim do mundo”, “Do sonho sobre o documentário Ailton Krenak e o sonho da
e da terra” e “A humanidade que pensamos ser”, pedra, de onde surge o mote para falar dessa ideia
duas palestras e uma entrevista, compõem a obra de humanidade, algo construído durante centenas
intitulada Ideias para adiar o fim do mundo, de Ailton de anos e que fez manifestar em Ailton a dúvida de
Krenak. Uma reunião de transcrições que nos per- se isso não seria algo apenas para justificar o uso
mite observar muitas das inquietações oriundas de da violência. Violência gerada pelo branco europeu.
um homem cuja vida pública sempre se mostrou Em suas palavras:

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A ideia de que os brancos europeus podiam sair Talvez nossa maior dificuldade se dê justamente
colonizando o resto do mundo estava susten- por termos sido condicionados desde o nascimento
tada na premissa de que havia uma humani- a acreditar que o nosso modo de ver a vida é o único
dade esclarecida que precisava ir ao encontro possível, logo, encontrar com aquele que pensa, fala,
da humanidade obscurecida, trazendo-a para ou age diferente de nós tende a nos gerar repulsa e,
essa luz incrível. Esse chamado para o seio da consequentemente, criar a necessidade de reagirmos
civilização sempre foi justificado pela noção de com violência, não nos percebendo como defenso-
que existe um jeito de estar aqui na Terra, uma res da uniformidade – de preferência, tendo a nós
certa verdade, ou uma concepção de verdade, que mesmos como fôrma a ser copiada –, geradores de
guiou muitas das escolhas feitas em diferentes mortes (físicas e subjetivas), negando toda outra
períodos da história. (Ibid, p. 8). episteme e modos de ser/existir.
Não é em vão que Krenak trata sobre isso em sua
Ele, em seguida, ressalta o nome de institui- segunda palestra, “Do sonho e da terra”, tratando
ções que, segundo sua visão, servem para exercer daqueles que foram excluídos desde o início, mais
o controle sobre territórios que não podem su- do que isso, foram dizimados, porém, como ele mes-
cumbir à violência gerada por essa humanidade, mo traz à baila, existe uma questão: “a questão do
tornando-se, assim, no futuro, amostras do que que fazer com a parte da população que sobreviveu
a Terra já foi um dia; além de limitarem toda e aos trágicos primeiros encontros entre os domina-
qualquer criatividade negando às pessoas a pró- dores europeus e os povos que viviam onde hoje
pria existência e liberdade, o que o faz indagar se chamamos, de maneira muito reduzida, de terras
não seria “nossa velha disposição para a servidão indígenas” (Ibid, p. 20). Aqui, ele novamente fala
voluntária?” (Ibid, p. 8). dessa humanidade dominadora que rechaça tudo o
Outro ponto a ressaltar é a ponte que ele faz que não seja sua cópia, expondo que não sabem o
da humanidade para o mito da sustentabilidade, que fazer com as populações que não cederam aos
o que, devo dizer, em tempos de multinacionais seus mandos, isto é, permaneceram com seus modos
propagandeando projetos para a preservação da de organização, gerindo suas vidas.
natureza é, além de fantástico, essencial, pois como Mais uma vez ele retoma a questão do rio Doce,
ele bem frisa, foi projeto dessa humanidade pôr a chamado pelos Krenak de Watu, cuja função vai além
Terra de um lado e a humanidade de outro, como de ser um rio, como é visto pela humanidade, mas
se, de fato, não fossem uma mesma coisa. Aqui sim um avô, uma pessoa. Ele diz que o rio “não é
podemos observar uma outra cosmovisão trazida algo de que alguém possa se apropriar; é uma par-
por Krenak. Não à toa ele traz um acontecimento te da nossa construção como coletivo que habita
supostamente acidental de sua região: “o rio Doce um lugar específico” (Ibid, p. 21), porém, digo eu,
foi atingido pela lama da mineração” (Ibid, p. 10); não há nenhuma incongruência nisso, visto que
compartilhando mais um pouco da forma que veem essa mesma humanidade escravizou negros – assim
a vida, bem diferente da forma plástica, artificial como tentou com os indígenas, portanto, não veria,
que pela qual nos acostumamos a ver a vida e em absoluto, problema em tomar recursos de um
tudo que pode ser, e é, gerado nela. Acabamos nos rio, que, inclusive, está abaixo de homens brancos,
acostumando com a violência que a nossa huma- segundo sua hierarquia socioeconômica; logo, per-
nidade criou. O modo de acabar com isso, ou pelo manecerá deixando órfãos tanto indígenas quanto
menos resistir um pouco mais à chegada do fim negros, LGBTQIA+ etc. Por isso é necessário so-
do mundo que isso tem provocado, é olhar para o nhar, pois a terra está sendo devastada por meio da
outro e ouvir suas histórias, pois: realidade gerada pela humanidade que acha que “a
ideia de sonhar é abdicar da realidade, é renunciar
Há centenas de narrativas de povos que estão ao sentido prático da vida” (Ibid, p. 25), porém, hoje,
vivos, contam histórias, cantam, viajam, con- gradativamente, isso começa a ser mudado, posto
versam e nos ensinam mais do que aprendemos que se juntam a essas vozes outras tantas, também
nessa humanidade. Nós não somos as únicas oriundas da academia, demonstrando que os sonhos
pessoas interessantes no mundo, somos parte são extremamente reveladores, do ponto de vista
do todo. Isso talvez tire um pouco da vaidade de orientações para o viver bem, não violentando
dessa humanidade que nós pensamos ser, além o próprio corpo, a própria existência, e, por conse-
de diminuir a falta de reverência que temos o guinte, a própria terra.
tempo todo com as outras companhias que fazem O que nos leva ao terceiro texto, a entrevista
essa viagem cósmica com a gente. (Ibid, p. 15). “A humanidade que pensamos ser”, devido, como

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o próprio nome diz, ao modo que pensamos ser a as humanidades, isto é, pessoas que foram apagadas,
única forma de existir enquanto humanos. Krenak impedidas de participar do processo de comunicação
retoma o tema da ideia única expondo o “nosso e cuja menção sempre foi imprecisa ou indefinida
apego a uma ideia fixa de paisagem da Terra e de (seja porque a humanidade não quis saber, seja porque
humanidade” (Ibid, p. 29) dizendo que é fruto de não lhe interessou dar a indicação precisa), nomeadas
algo criado por nós ao longo de várias gerações outrem, apareçam para um recomeço em que suas
para que, em determinado momento, sentíssemo-nos ideias sejam somadas, assim, integrando-as, pois,
identificados com essa imagem construída por nós de fato, precisamos do máximo de ideias para adiar
mesmos. Talvez seja isso que nos desespere ao nos o fim do mundo.
depararmos com quem, de acordo com o nosso crivo,
possa modificar essa imagem, tão somente pelo fato
de existir de uma outra forma, mas não nos aten-
tamos para a verdadeira destruição ocorrendo em
Criando seus próprios
nós e por meio de nós. Como nos habituamos com o recomeços: A agência
prazer que essa imagem que criamos nos dá, o uso
da violência para parar aqueles que não se adequam de Helena em Bom é o
à nossa humanidade é válido (na verdade, mediante
nossa consciência cauterizada, é validado). Com isso,
que acaba bem (1604-5)
não percebemos que nos chamamos de cidadãos
quando na verdade nos tornamos consumidores... Ensaio acadêmico escrito a partir da pesquisa rea-
Clientes mesmo. lizada com o benefício fornecido pelo programa de
Iniciação Científica da FAPERJ.

O fim do mundo talvez seja uma breve inter- Mariane Vincenzi Nunes
rupção de um estado de prazer extasiante que a
gente não quer perder. Parece que todos os arti- Tudo parece bem; se assim findar
fícios que foram buscados pelos nossos ancestrais Toda amargura havemos de adoçar.
e por nós têm a ver com essa sensação. Quando William Shakespeare.
se transfere isso para a mercadoria, para os ob-
jetos, para as coisas exteriores, se materializa A peça Bom é o que acaba bem (1604-5), escrita
no que a técnica desenvolveu, no aparato todo por William Shakespeare (1564-1616), é uma pe-
que se foi sobrepondo ao corpo da mãe Terra. ça-problema relativamente esquecida do autor em
Todas as histórias antigas chamam a Terra de comparação com outras produções de sua autoria.
Mãe, Pacha Mama, Gaia. Uma deusa perfeita e Por demonstrarem instabilidade em relação ao gê-
infindável, fluxo de graça, beleza e fartura. [...] nero, as peças classificadas como peças-problema
Não tem nada a ver com a imagem masculina costumam trazer um certo incômodo aos leitores
ou do pai. Todas as vezes que a imagem do pai com seus finais desconfortáveis e questionadores,
rompe nessa paisagem é sempre para depredar, e Bom é o que acaba bem não foge dessa definição.
detonar e dominar. (Ibid, p. 30). Segundo Katherine Maus, na introdução escrita
para Bom é o que acaba bem na coletânea The Norton
Parece-me, na verdade, que Krenak nos chama Shakespeare (1997), a peça nos traz uma inversão de
à liberdade gratuita da mãe Terra, pois somente gênero para um padrão de histórias muito comum
assim conseguiremos nos desvencilhar das inúmeras em contos de fadas, que seria o do herói que realiza
violências perpetradas por nós mesmos, advindas uma tarefa quase impossível e em troca consegue se
da cultura patriarcal que abraçamos, alcunhada por casar com uma “mocinha” que seria de uma classe
nós de humanidade – a única que permitimos existir, social acima dele. Mas, essa inversão surge primeiro
mas que só tem aproximado mais o fim do mundo: em uma das fontes inspiradoras da peça, o conto da
“Assim como nós estamos hoje vivendo o desastre Giletta de Narbona presente em Decameron (1353),
do nosso tempo, [que a] grande maioria está cha- de Boccaccio (1313-1375).
mando de caos social, desgoverno geral, perda de No entanto, enquanto a história de Giletta tem
qualidade no cotidiano, nas relações, e estamos todos uma atmosfera leve de “felizes para sempre”, este não
jogados nesse abismo” (Ibid, p. 34). é o caso de Bom é o que acaba bem, onde é possível per-
Faz-se, urgentemente, necessária a exclusão ceber um questionamento um tanto quanto diferente
dessa humanidade para que, no seu lugar, surjam — poderia realmente haver um “felizes para sempre”?

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Em Bom é o que acaba bem, o arco principal conta seu “diálogo da virgindade” com Parolles. Yachnin
a história de Helena, uma jovem de classe média, filha (2003) observa que, no início da conversa, a metá-
de um médico, que se torna protegida da Condessa fora utilizada em relação à virgindade de Helena é
de Roussillon após a morte de seu pai. Quando a a de um linguajar de guerra. No entanto, Parolles
peça começa, já se passaram alguns meses desde muda o rumo da conversa e compara a virgindade
esta morte e logo na primeira cena descobrimos que a uma commodity, o que faz Helena entender que ela
o marido da Condessa acabou de morrer. Por causa pode oferecer algo que tem (ex.: sua virgindade e
disso, o Rei se torna o novo responsável pelo filho da seu conhecimento medicinal) como moeda de troca
Condessa, Bertram, que precisa ir para Paris ficar ao para conseguir o que quer. Após essa realização e
lado de sua majestade, que se encontra doente. Todos considerando-se que Helena é uma pessoa sagaz,
estão tristes e parece que no futuro haverá ainda mais detentora de uma alta capacidade de análise, pro-
tristeza. Mas por causa de Helena, tudo isso muda. vavelmente advinda dos ensinamentos passados
Helena também está inconsolável e todos pen- pelo seu pai, e que agora possui um dote dado pelo
sam que seja por causa da morte de seu pai, mas Rei, a personagem consegue criar caminhos para
logo após esse primeiro momento, a personagem fica concretizar seu desejo de ficar com Bertram no
sozinha no palco e temos a revelação da real razão final da peça, apesar dos dois inicialmente serem
para a tristeza da protagonista: Helena não está de classes sociais diferentes.
triste por causa do luto, e sim porque o homem que Observando a forma que Helena age para conse-
ela ama — Bertram — está indo embora. Ao ouvir guir seu objetivo final, podemos questionar o caráter
seu solilóquio, percebemos que, em sua visão, esse da personagem: ela finge sua própria morte para
relacionamento é impossível. No entanto, após um poder ir atrás do homem que ama, engana Bertram
diálogo entre ela e o personagem Parolles, a visão ao realizar uma bed-trick (um artifício narrativo que
de Helena em relação à situação presente se altera. propõem uma troca de personagens quando uma
Neste momento, ela percebe o que tem que fazer relação sexual irá acontecer) e cria uma confusão que,
para conseguir se casar com Bertram: curar o Rei. junto de outros problemas, quase resulta na prisão
O conhecimento para realizar essa tarefa advém do de Diana, a virgem com a qual Bertram acreditava
fato que o pai de Helena, que a Condessa menciona ter tido uma relação sexual. Ela não mede esforços
ter sido um dos melhores médicos já existentes, para conseguir o que deseja e, portanto, cria-se um
havia lhe passado todo o seu saber medicinal para dos supostos incômodos em relação à narrativa.
a filha. Logo, Helena consegue curar o Rei, assim Ver uma mulher deliberadamente enganando e
como consegue o direito de se casar com Bertram, praticamente forçando um homem a se casar com ela
criando um recomeço para todos. não é confortável para uma audiência acostumada
Mas Bertram a rejeita justamente por Helena a ver o contrário. Em diversos contos de fadas e
ser de uma classe social inferior à dele, mesmo com comédias românticas nos deparamos com a história
o Rei garantindo o dinheiro para a sua ascensão de uma herói que faz de tudo para conseguir con-
social. Entretanto, Bertram não tem escapatória, já vencer sua amada a ficar com ele, incluindo ações
que o Rei o obriga a casar com Helena. Após o seu manipuladoras. Contudo, costumamos encarar es-
casamento, Bertram impõe uma série de condições sas ações como atitudes românticas ao invés de
para ficar com ela: questionar a ética ou o que a personagem feminina
deseja. Ao observar as atitudes de Helena, a audi-
Quando conquistar o anel que trago em meu ência tem dificuldade para aceitar que uma mulher
dedo, e que não sairá nunca, e me mostrar um force um homem a ficar com ela, mesmo que na
filho gerado por seu corpo do qual eu for o pai, história Bertram concorde com o casamento ao
então chame-me de marido; porém nesse ‘então’ dizer: “Senhor, se ela diz só a verdade,/ Eu hei de
eu escrevo ‘nunca’. (SHAKESPEARE; 1604-5, amá-la para a eternidade.” (SHAKESPEARE; 1604-
p. 1.357). 5, p. 1.412).
Mas justamente por usar essa inversão de gênero
Contudo, a personagem, por conta de sua agên- no desenrolar das situações na peça, Shakespeare nos
cia, capacidade de análise, sagacidade e dinheiro, mostra que esta circunstância estabelece uma ordem
consegue atender todas as condições de Bertram, forçada, mesmo que termine com casamentos (o Rei
criando novamente uma solução para os obstáculos também propõe casar Diana, mesmo ela dizendo
que se colocam entre ela e o seu objetivo. que quer ser virgem para sempre), o que causa um
A capacidade de Helena de solucionar esses desconforto. Dentro da própria peça, o persona-
obstáculos surge, principalmente, por conta de gem do Rei expressa este incômodo, entendendo

9
que se as coisas parecem bem e se assim continu- Caro leitor, é com muita gentileza que eu peço
arem, então “Toda amargura havemos de adoçar.” um pouco mais de atenção. Perceba: conquistamos
(SHAKESPEARE; 1604-5, p. 1.412). o direito ao verso livre e podemos tocar, em notas
Desse modo, se analisarmos essa condição, en- dissonantes, as guitarras que gritam, vibram e ar-
tendemos que o que Helena cria para si própria não dem em ondas sonoras. É o milagre da linguagem
é um final feliz, mas sim um recomeço, com novas musical, como a nossa majestosa Rita Lee fez com
possibilidades e desafios. os Mutantes, naquele brilhante rock psicodélico,
novo e experimental. Lembremos de Ludwig Van
Referências Beethoven, o verdadeiro pai do rock, que rompeu
com o classicismo e defendeu ferozmente a liberdade
MAUS, Katherine. “All’s Well That Ends Well”. de criação.
In: GREENBLATT, Stephen [Ed.]. The Norton Lembremos: CRIAÇÃO.
Shakespeare. New York: W.W. Norton & Company, Beethoven compôs a 9ª Sinfonia, obra apoteóti-
1997, p.2175-2182. ca que atravessou o tempo e reverberou em livros
SHAKESPEARE, William. “Bom é o que acaba e filmes, como em Laranja Mecânica, no qual o
bem”. IN: SHAKESPEARE, William. William anti-herói Alex Delarge é viciado na canção de
Shakespeare Teatro Completo. Vol.1 – Tragédias e Beethoven. Perceba: A 9ª Sinfonia foi composta
Comédias Sombrias. Trad. Bárbara Heliodora. num momento em que Beethoven já estava surdo.
São Paulo: Nova Aguilar, 2016, p.1301-1413. Ele não pôde ouvir a própria sinfonia, mas sentiu
YACHNIN, Paul. “Shakespeare’s problem plays as ondas sonoras de sua criação.
and the drama of his time: Troilus and Cressida, Ficar surdo, em um mundo moralista, é parar
All’s Well That Ends Well, Measure for Measure.” de ouvir as regras de como se portar na sociedade.
In: DUTTON, Richard e HOWARD, Jean [ed.]. Acaba virando, de certa forma, um exercício de
A Companion to Shakespeare’s Works: The Poems, autoconhecimento, já que o indivíduo não ouve,
Problem Comedies, Late Plays. Londres: Blackwell diariamente, as regras que nos são impostas a todo
Publishing, 2003, p.46-68. instante. Elas são incontáveis. O nome, por exemplo,
BOCCACCIO, Giovanni. Decameron. Nova Delhi: é a primeira regra de chamamento. E a gente sequer
General Press, 2022, p. 326-336. escolhe como queremos ser chamados. O nome já
nasce antes mesmo do nascimento do indivíduo,
sem a permissão do mesmo.
Logo, faço-lhes a proposta: não ouçam os mora-
Performance e a listas, e também questionem a moral vigente, como
desconstrução do Beethoven fez primorosamente.
Sem ninguém por perto, sem um ser onipresen-
“eu” moderno na te, que te observa a cada segundo, você consegue
ser você mesmo? Ou a culpa ainda toma conta do
literatura ocidental seu “eu”?
Agora pense Hamlet, de Shakespeare, como um
Júlio César de Amorim Corrêa dos primeiros personagens da literatura ocidental
a questionar o ser (nesse caso, o ser existencial),
Deus está morto, no sentido mais literal possível. quase como um personagem criado para representar
Agora, portanto, possuímos o direito de questionar o subjetivismo cartesiano. O sujeito que pensa e
o sujeito interno, aquele que antecede o próprio profere “Ser ou não ser? Eis a questão”, em diálogo
nascimento. Em outras palavras, podemos nos des- com Descartes, em seu Discurso do método: “Penso,
construir e virar pó, até que possamos ressuscitar, logo, existo”. Existindo, podemos questionar tudo,
como num gesto messiânico. Podemos, também, inclusive tudo aquilo que nos antecede.
bater as asas e arder em chamas, até que a carcaça A liberdade de questionamento a qual me re-
de matéria orgânica vire pó e consigamos renascer firo, na verdade, não é antiga. Os eus literários
das cinzas, como uma Fênix que retroalimenta o da antiguidade eram quase sempre, desprovidos da
seu nascimento através da morte. voz interior que questiona, duvida e investiga.
Se Deus está morto, então tudo é permitido. Foi apenas na modernidade que conquistamos a
Podemos devorar o fruto do conhecimento (a ci- tal liberdade.
ência), sem sofrer penitências em vida ou temer a O eu, o indivíduo, a unidade de ser, o sujeito,
eterna tortura nas chamas de um inferno. não existiu na antiguidade. Mas não pensem nisso

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de forma radicalizada. Apenas quero dizer que, em Em sintonia com a moral platônica, o cristianis-
tempos remotos, a arte estava inclinada para as for- mo também condena os prazeres. Para Nietzsche,
mas, PARÊNTESES: formas semântica, sintáticas Sócrates e Jesus Cristo moldaram a moral do mundo
e de toda a semiótica. Pense numa forma de bolo, Ocidental, e, portanto, o que pensamos ser bem e
quadrada ou redonda, ou em qualquer outra forma mal, são heranças de um moralismo platônico e
que NÃO seja quadrada ou redonda. Perceba que cristão. É aí que o sexo se torna pecaminoso, pois é
continua sendo um pensamento que nasce a partir um prazer da carne. Logo, todos nascem da prática
da figuração de uma forma, seja ela inerte ou forma pecaminosa. Olhemos, por exemplo, para o mito
que se transforma. da Virgem Maria. Seria chocante, a partir de uma
Com a conquista da liberdade no mundo ociden- ótica moral, que o filho de Deus nascesse a partir
tal, Nietzsche, que, antes de se tornar um grande de uma prática carnal e pecaminosa. A carne é tão
filósofo, foi um filólogo de formação e de ofício, demonizada, tanto em cristo quanto em Platão, que
investigou profundamente as cargas semânticas e até hoje a prática da autoflagelação é permitida pelo
sintáticas das palavras dos mais diversos idiomas. E Vaticano. Você fere a carne e martiriza o corpo para
essas investigações ficaram marcadas na obra intitu- purificar a alma, como um gesto de penitência, a
lada Genealogia da moral, em que Nietzsche buscou depender do peso de cada pecado ou crime cometido.
investigar, na história das línguas e culturas, como, A figura materna, no Mundo Ocidental, da mãe
por que e por quem a moral ocidental foi criada. Lendo que ama o filho incondicionalmente, que faria tudo
esse livro, percebemos que os significados das pala- por ele… a mãe vista quase como se fosse santa,
vras estiveram, ao longo de toda a história, nas mãos é uma figura pautada no arquetípico da Virgem
daqueles que detinham o poder: a realeza, nobreza, Maria. É essa moral platônica e cristã que moldou
etc. Logo, as palavras como conhecemos hoje, que os conceitos de bem e mal, como também definiu
antes de serem proferidas, são formadas na mente e o ideal de um indivíduo que ama o outro, que tem
já estão carregadas de significados milimetricamente compaixão, que olha mais para fora de si e é despro-
arquitetados pelos grandes mandantes da história. vido de um autoconhecimento, de um saber emocio-
A culpa recai sobre Cristo e Sócrates, como buscarei nal ou pautado no empirismo. Por isso que a cobra
sintetizar mais à frente. representa a ciência. Ela ofereceu a Eva o fruto do
O pensamento platônico consiste na ascensão conhecimento. Por isso, também, tantas figuras
existencial através da negação dos sentidos; pois, femininas sempre foram demonizadas. Era proibido
a partir desta lógica filosófica, tudo que é material, ter acesso ao conhecimento. Deus não queria que
tangível, audível, olfativo, e tudo que é visual, não pas- soubéssemos decifrar enigmas.
sa de uma ilusão. Tudo ao nosso redor, portanto, Performamos uma identidade que nos é im-
é enganoso, pois os sentidos não leem a realidade posta. Nascemos sem escolher nossos nomes, com
como ela é. Por tal motivo, Platão condena os vícios uma unidade de chamamento pré-estabelecida pelos
e prazeres. Sócrates foi o primeiro a seguir esse nossos progenitores que sequer escolhemos ter.
caminho. No Banquete de Platão, há uma passagem Somos alfabetizados num mundo cheio de imagens,
interessante que exemplifica o que estou dizendo. representações, significados e significantes. Mas
Num jantar seguido por bebidas e discussões, prá- lembremos: Deus está morto, e, não sendo vigiados
ticas comuns dos simpósios gregos, Sócrates vê, de por ele, agora possuímos a liberdade de ser, agir e
longe, um belo jovem. Era o jovem mais belo daquele pensar sem medo do inferno.
lugar. Uma curiosidade, é que naquela noite versava Existe, na produção artística pós-moderna e
o Eros, que, na Grécia Antiga, possuía uma carga ocidental, uma tendência de refletir o “eu” que se
de amor erótico. Todos os olhos estavam vidrados estabeleceu no passado, numa tentativa de investigar
no belo jovem, chamado Alcibíades. Sócrates, que ou mesmo renunciar a ideia deste “eu”, carregado
o observava de longe, teve tanto desejo pelo rapaz, de marcas apolíneas e repleto de influências morais.
que sentiu o próprio corpo arder, enquanto imagi- Para tanto, podemos observar a descorporificação em
nava Alcibíades sem as vestes. Do mesmo modo, Franz Kafka a partir de Gregor Samsa, personagem
Alcibíades logo ficou encantado por Sócrates, o central da novela A metamorfose (1915). O persona-
velho mais feio daquele lugar, e admirado como mais gem, que se transforma num inseto monstruoso, em
sábio. Todos queriam o jovem, e o jovem só queria nenhum momento é nomeado como “barata” pelo
Sócrates, mas o filósofo negou o próprio desejo, autor, mas é descrito como se fosse uma. “Quando
numa tentativa de não obter qualquer prazer car- o homem determina tudo o que existe como repre-
nal. Resultado: Alcibíades tentou seduzir Sócrates sentável, ele mesmo se põe em cena, no círculo do
e dormiu sob seu leito, e nada mais aconteceu. representável, colocando-se a si mesmo como a cena

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da representação.” (2008, p. 21). Sendo um inseto, de um quarto. A barata nos remete a um período
Gregor não está de acordo com as leis e regras de pré-histórico, pré-civilizatório, que antecede a exis-
um mundo civilizado e “comandado” por homens. tência dos dinossauros e da performatividade na vida
Não é homem e nem mulher, é monstruoso, como o pública tal como conhecemos. Esse teor primitivista
autor descreve nas primeiras linhas da novela. Ele aparece, pela primeira vez, quando G.H. se depara
não é mais um humano. Não pode, portanto, seguir a com um desenho na parede que, para ela, lembrava
cartilha das convenções sociais. Não pode trabalhar as pinturas rupestres. Esvaziada de significados
para sustentar a família, e isso é atormentador para afáveis num mundo de representações estéticas onde
o pobre do Gregor, que é tomado pela culpa de viver o “belo” exclui qualquer caráter primitivo, velho,
em um mundo onde as pessoas devem trabalhar. antigo, a barata é uma praga nojenta e desprovida
Sendo uma não-pessoa, o insetinho tampouco pode de uma ternura representativa ou polidez imagética.
tentar qualquer contato com um humano, pois sabe Em 1979, Emmanuel Carneiro Leão, filósofo e
que seria assustador. Por outro lado, ele ganha a professor da UFRJ, pronunciou, durante a Semana de
liberdade de não seguir o que a cartilha determi- Filosofia, a seguinte reflexão de seu ensaio O desejo
na. O personagem perde, enquanto não-pessoa, as de poder: “O homem, o mais feroz dos predadores,
obrigações da coletividade e até mesmo as cobranças deixa de matar e transforma a caça em religião. O
que a individualidade humana exige. animal sagrado só pode ser morto ritualmente, [...]
Não estou insinuando, contudo, que a atuação da no rito de interiorização da morte”. O teor ritualís-
vida pública, o caráter humanístico pós-moderno, tico e sacral da experiência epifânica aparece não
enfim, não desejo argumentar que as representa- nas entrelinhas, mas na superfície do texto. Comer
ções e reapresentações são ilusórias. Precisamos, a barata é, portanto, uma tentativa de interiorização
aqui, nos abster da verdade e da mentira, e pensar da morte, de contato com o núcleo primitivo do “eu”,
o fazer-humano como algo que independe destas desprovido de um espírito apolíneo ou dionisíaco,
categorias. desprovido de qualquer entulho civilizatório ou
Diferente de Kafka, que permite aos leitores construção artificial do humano. Nas palavras de
que imaginem o inseto monstruoso sem o nomear, Emmanuel Carneiro Leão, “Depois de milênios de
Clarice Lispector nomeia o inseto barata, em sua razão, um dos ritos mais esotéricos da humanidade
obra A paixão segundo G.H., publicado pela primeira é a celebração da morte da vítima-Deus sacrificada
vez no ano em que se instaurou o regime militar pelos homens para que se possa renovar o milagre
no Brasil, em 1964. A autora faz, nessa obra, um que transforma a morte em vida.”. O contato com
movimento anti-platônico que se estabelece através o outro (a barata) pode nos despertar espanto ou
da aporia de linguagem da narradora-personagem, medo, seja por instinto territorialista ou até mesmo
como vemos na primeira linha do texto: “estou pro- por certa identificação.
curando, estou procurando. Estou tentando enten- O que eu quero dizer, de todo modo, é que às
der.”. Curiosamente, a primeira palavra da obra vezes o desconforto pode ser maravilhoso. E Clarice
é colocada com a inicial em minúscula, como se causa muito desconforto, embrulho no estômago e,
aquele não fosse o seu começo, como se houvesse em leitores mais sensíveis, pode provocar o vômito
algo anterior ao movimento de busca e de enten- mesmo. Quanto ao caráter performático e de espe-
dimento, como se estivéssemos começando a ler o táculo da obra, ele também é subvertido na Clarice
livro pela metade. e em outros autores pós-modernos. Não deixa de
G.H., personagem que não possui nome, tem a existir, certamente. Muitos atores, em seus maduros
sua identidade reduzida numa sigla que não sabemos anos de carreira, alegam que não sabem mais quem
o que significa, sinalizando o afastamento de um eles são de verdade, pois muitos se entregam à arte
“eu” moldado socialmente. O que muitos chamam performática e assim permanecem sem conseguir
de despersonalização ou dissolução do ego. É quan- sair dos personagens. É provável que o mesmo
do o indivíduo se desfaz para se refazer como bem aconteça conosco e qualquer um ao nosso redor,
desejar. De todo modo, observamos a recorrência pois, como bem mencionado aqui, quase tudo que é
de G.H. num jogo dialógico com Gregor Samsa, ou nosso, é construído, é artificial; o que não significa
com o autor mesmo, como em vários momentos onde dizer que são mentiras. Pelo contrário. É a partir da
ela afirma estar se metamorfoseando em si mesma. performance que também podemos nos constituir
Uma nítida referência ao Kafka, como se o símbolo enquanto sujeitos, artistas, leitores e/ou escritores.
do inseto monstruoso representasse uma experiên- Como podemos fazer, porém, para nos atermos
cia parecida com a de Gregor Samsa, que também ao real e nos desapegarmos das ideias e crenças
permanece, na maior parte da narrativa, dentro imateriais, tal como um espírito dionisíaco faria?

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A resposta: a desracionalização, despersonalização que uma pessoa pode chegar pela falta do dinheiro,
e desrealização. Estas são as três chaves para des- sugerindo o quanto a estrutura afeta o indivíduo.
construir o “eu” e posteriormente reconstruí-lo. A obra foi publicada em 2020 e não demorou para
O exercício da desracionalização é dificílimo, receber a devida atenção. O romance foi eleito um
e abandonar as nossas máscaras também pode ser dos melhores livros do ano por jornais consagra-
perturbador, como também pode nos proporcionar dos como The Guardian, The New York Times, Los
a descoberta de um verdadeiro eu, que se molda Angeles Times e outros.
continuamente. No Brasil, Luxúria foi traduzido por Ana
Se deus está morto, então sejamos os nossos Guadalupe para a editora Companhia das Letras, e a
próprios deuses, ovulando, nutrindo, parindo e mol- autora concedeu uma entrevista para a revista Gama
dando quem somos a partir das nossas próprias von- sobre a sua estreia. Em 2022, a obra foi selecionada
tades e desejos, distanciados das proibições cristãs e como livro do mês de agosto para o encontro do
academicistas. É por isso, por conta do verso livre, clube do livro de Literatura Inglesa Brasil, projeto
como também do direito de ir e vir, que escrevo e de extensão da Uerj integrante do Departamento
falo em primeira pessoa. É assim que utilizo o bar- de Letras Anglo-germânicas.
ro para moldar quem eu sou, ou pelo menos como Embora o livro tenha repercutido nos veículos
exercício de autoconhecimento. Para renascer das jornalísticos e entre os leitores, não se vê a mesma
cinzas, ressuscitar de um sacrifício, e tocar o barro discussão no espaço acadêmico, apesar de os temas
com as próprias mãos. levantados por Leilani em Luxúria serem ampla-
mente contemporâneos e urgentes. Partindo dessa
Referências lacuna, a ideia da apresentação sobre o romance
para a VI edição da Sappli surgiu.
KAFKA, F. A metamorfose. Trad. Modesto Carone. Edie é a protagonista da história, uma jovem
São Paulo, Brasiliense, 1993. mulher negra de vinte e três anos. Embora o ro-
KLINGER, Diana. Escrita de si como performance. mance não foque na relação dela com os pais, cobrir
Revista Brasileira de Literatura Comparada, v. 10, o contexto familiar com o qual a personagem cres-
n. 12, 2018. ceu ajuda a entender o contexto nada saudável no
LISPECTOR, C. A paixão segundo G. H. Rio de qual Edie passou a infância e como há marcas no
Janeiro: Rocco, 2014. presente da protagonista. A mãe de Edie consumia
LEÃO, E. C. O desejo de poder. LETRA: Revista e vendia entorpecentes com ajuda de uma amiga em
da Faculdade de Letras da UFRJ., v. 1. n.1, jan./ Nova York. Mais tarde, ela conheceu o que viria a
jul. 1980. ser o pai de Edie, um ex-oficial da Marinha que a
NIETZSCHE, F. A genealogia da moral. Trad. Paulo ajudou a pagar o seu tratamento em uma clínica de
C. de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, reabilitação.
1998. Alguns anos depois, o pior aconteceu: a mãe e
NIETZSCHE, F. O nascimento da tragédia ou helenis- o pai faleceram em um intervalo de dois anos de
mo e pessimismo. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: diferença. Com a morte dos pais, Edie revive os
Companhia das Letras, 2001. momentos traumáticos que passou. Ela sugere que
PLATÃO. O banquete. Trad. Maria Teresa Schiappa herdou o modo de vida “contraditório” do pai, como
de Azevedo. Lisboa: Edições 70, 2007. veremos adiante, e a solidão passa a ser uma forte
característica da personagem.

“Estou feliz por estar (...) só tinham se passado cinco meses desde a
morte dela [mãe de Edie] e que meu pai já estava
viva. Estou feliz por estar saindo com outra pessoa. Essa era a contradição
que viria a me definir por anos, minha tentativa
viva”: O recomeçar em de garantir solidão integral e minha imediata
Luxúria de Raven Leilani disposição a abandonar essa intenção assim que
um homem interessado aparecia. Eu fingia não
me preocupar com as consequências do meu
Victor Soares Lopes isolamento. Mas sempre que conversava com
alguém eu me via fazendo o dobro do esforço
Raven Leilani é autora do romance Luxúria, para compensar minha atrofia social. (LEILANI,
uma história surpreendente que expõe os limites 2021, p. 47-48).

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Agora órfã, Edie tenta recomeçar a vida em Nova Eles estavam se relacionando secretamente pela in-
York trabalhando como coordenadora editorial há ternet há poucos meses, mas trata-se de um relacio-
três anos, mas a posição no cargo não é motivo de namento no mínimo conturbado devido à diferença
satisfação para quem acompanha a história. Ela foi de raça, classe e idade entre eles. Eric tem o dobro
contratada pelo Programa de Diversidade da editora da idade de Edie e é casado com Rebecca. Eles têm
por ser uma mulher negra. Edie e Aria são as únicas um casamento aberto e uma filha adotiva, Akila. A
pessoas negras trabalhando no departamento. A menina tem treze anos e é negra. Ela se sente isolada
empresa usa as duas como símbolo para promover e incompreendida pelos pais por serem brancos, mas
a inclusão, porém trata-se de uma inclusão ilusória, Akila segue as regras inconvenientes da casa com
tendo em vista que só existem duas pessoas negras medo de ser trocada de família novamente.
cercadas em um ambiente repleto de pessoas brancas. A dinâmica familiar que Edie transita é descon-
A prática da empresa é conhecida como tokenismo fortável e ela é colocada em situações constrange-
nos estudos da área. doras por ser a amante de Eric. Rebecca não mede
A chegada de Aria na editora desequilibra Edie esforços para tornar a chegada de Edie um evento
porque ela acredita que poderá ser substituída pela desagradável, embora ela própria tenha a convidado
novata. Com isso, é gerado a rivalidade feminina para passar um tempo em sua casa até Edie con-
entre as duas com o objetivo de permanecer na seguir um emprego. A relação de raça e classe fica
empresa. Ela acredita que por Aria ser mais gentil cada vez mais em evidência, pois Akila e Edie são
e bonita, Edie perderá o cargo, reforçando o padrão as únicas negras no espaço, o que nos relembra da
insustentável de mulheres negras. Contudo, Edie injusta dinâmica de trabalho na editora.
passa a ter consciência de que o grande problema Morando temporariamente na nova casa, Edie
não é a colega de trabalho, e sim a manutenção é constantemente confrontada pelos anfitriões. O
inapropriada da empresa que enfraquece mulheres novo lugar é situado em um bairro nobre em Nova
negras. Jersey e trata-se de um lugar onde somente pessoas
brancas frequentam, remetendo novamente à situa-
A única coisa que me incomoda é que eu ainda ção na editora que Edie trabalhava. Morar em uma
quero ficar amiga dela [Aria]. Em seu primeiro casa de classe média alta é uma nova realidade que
dia, ela chegou à empresa toda meiga e linda, Edie passa a ter, uma bem diferente da qual costuma
prontinha para ser transformada em token. E levar. Para se manter no novo espaço, ela precisa
como nos acostumamos a fazer — porque sempre seguir as normas de convivência nada convencionais;
fomos a única “outra” no recinto, porque nos as imposições de Rebecca tornam as relações cada
agarramos, sabe-se lá por que, à esperança de vez mais complicadas.
que o próximo recinto possa ser diferente —, Edie deseja sair da casa o quanto antes, mas sem
ela olhou ao redor, me procurando. Quando me emprego nada será possível. Ela desesperadamente
achou, quando nos olhamos daquela primei- envia o currículo para os mais diversos empregos
ra vez, finalmente libertas da nossa respectiva apenas para conseguir dinheiro. Edie se candidatou
condição de token, eu senti um alívio absurdo. para vagas como secretária em escola de palhaço e
(LEILANI, 2021, p. 26). revisora em uma revista especializada em armamen-
to, citando apenas algumas das escolhas aleatórias.
Edie enfrenta mais um desafio na vida. Ela é Enquanto tenta sobreviver com o casal, Edie reflete
chamada na sala da chefe para ser demitida, con- sobre a falta de convivência entre pessoas negras,
firmando a sua intuição inicial. Por ser negra, ela assim como o desconforto que sente em estar com
ficou sempre em estado de alerta, pois sabia que a pessoas privilegiadas.
qualquer momento poderia perder o emprego. Não
trabalhar significaria não ter dinheiro para pagar a Penso nos meus pais, não só porque sinto sauda-
sua parte do aluguel, pois ela dividia um apartamento de deles, mas porque às vezes você vê uma pessoa
com uma roommate para economizar as finanças. Edie negra de mais de cinquenta anos andando na rua
não pode contar com ajuda de familiares porque os e sabe que essa pessoa já aguentou muita merda.
únicos com quem tinha contato já faleceram e ela Você sabe que essa pessoa é mestre da dupla
não é uma pessoa que costuma cultivar amizades consciência, do gerenciamento da fúria discreto
devido a sua “atrofia social”. sob a rígida vigilância e a violência casual do
Desempregada e sem rumo, Edie passa a morar mundo externo. Você sabe que essa pessoa estava
na grande casa de Eric, um homem branco que tem sangrando e agradeceu, e, apesar das baratas e
um emprego consolidado na área de arquivologista. do mingau instantâneo e do hematoma no rosto,

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você ainda tem mais sorte do que essa pessoa vidas privilegiadas e estabilizadas. Luxúria é uma
jamais teve, tanto que perder um subemprego obra que se propõe a retratar os Estados Unidos
no mercado editorial não é só uma besteira, é na contemporaneidade, focalizando seu aspecto real
um ultraje. (LEILANI, 2021, p. 86-87). para além do “sonho americano”. Por muito tempo
foi vendido um ideal perfeito dos Estados Unidos,
A escolha de relacionamento questionável e o mas a realidade é cruel e difícil, ainda mais para
aceite em morar com pessoas desagradáveis talvez minorias e para quem precisa recomeçar a vida
choquem o público leitor, mas a personagem do quase do zero, assim como a protagonista do livro,
livro não tinha esperança de sobreviver em Nova uma mulher negra em situação de precariedade
York sozinha no atual contexto. Por isso, Edie se financeira. O romance denuncia as consequências
sujeitou a conviver com pessoas que confrontavam do capitalismo desenfreado a partir das experiên-
a sua existência em troca de poder dormir debaixo cias de Edie.
de um teto. Luxúria denuncia as consequências de
viver em um sistema opressor que submete pessoas Referência
minoritárias a situações desumanas.
Recomeçar a vida para Edie não é uma tarefa LEILANI, Raven. Luxúria. Trad. Ana Guadalupe.
fácil como seria para Eric ou Rebecca que têm São Paulo: Companhia das Letras, 2021.

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