Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Baldassari
ISBN: 978-65-00-55408-3
PLAYLIST
A playlist de "Só Por Um Verão" e também a playlist especial do “Luau Só
Por Um Verão" estão disponíveis no Spotify, para ter acesso, selecione o
modo "buscar" no aplicativo, click no ícone da câmera e faça o pareamento
posicionando sobre os códigos abaixo.
Só Por um Verão:
Luau SPUV:
— Mamãe deve estar feliz em nos ver reunidas de novo, ainda que seja em
um momento tão triste — diz Mila, próxima ao meu caixão.
— Que mané feliz, Camila?! Mamãe está morta! — retruca Helena, a minha
filha mais velha, que não desviou os olhos do celular nem mesmo enquanto o
padre dizia algumas palavras mixurucas e decoradas em minha homenagem.
— O quê? Ela tá morta! O que você quer que eu faça? Finja que ela pode nos
ver?
Helena sempre foi a mais parecida comigo: objetiva, decidida e sem tempo
para besteiras.
Ela é aquilo o que os vivos chamam de pessoa excêntrica; que afirma sentir a
energia dos outros e a presença dos mortos, acredita em toda forma de cura
através da natureza e tem certeza de que a sua gata, Elvira, é a encarnação da
minha sogra.
Como já disse, Helena herdou seu ceticismo de mim, então, não me orgulho
em afirmar que sempre endossei o coro de que Mila era um tantinho quanto
aluada e tentei em um ou outro momento convencê-la a ser um pouco mais
racional. Acontece que agora, estando aqui do outro lado, por assim dizer,
percebo que ela é apenas sensitiva e que está certa a respeito de tudo.
Quer dizer, menos sobre Elvira ser minha sogra; essa, infelizmente, ainda está
aqui no plano espiritual, atormentando minha vida após a morte.
— Pff! — Luísa bufa e revira os olhos, de saco cheio das discussões das
duas. — Eu vou procurar alguma coisa para beber. Que tipo de velório não
tem cerveja?
Esse apreço pelos etílicos e falta de delicadeza social, ela herdou do meu
marido.
— Todo tipo, Lu, isso é um velório, não uma rave! — Lara repreende.
Luísa revira os olhos mais uma vez e se volta na direção da saída para
procurar uma cerveja ou coisa que valha, não sem antes levantar o dedo do
meio sobre os ombros para Lara e, de certa forma, para o meu caixão.
Isso ela também herdou do pai.
Uns resmungos que lembram vagamente uma afirmação escapam das bocas
de todas. Mila se vira para mim e pousa sua mão sobre a minha.
Tudo bem, não tinha grandes esperanças de que minhas filhas causassem
alguma comoção no meu velório. Nunca fomos uma família muito unida …
Risca isso.
Deixe-me refazer essa frase: há anos não somos uma família muito unida!
Mas sei que grande parcela da culpa é minha e creio que mereça esse pouco
caso que fazem com o meu cadáver ali esquecido por todas menos Mila.
Contudo, estou confiante de que, com um último grande ato, eu possa pelo
menos restaurar a conexão entre elas.
Não, não; não pretendo ressuscitar dos mortos, nem assombrá-las como
fantasma, não é esse tipo de grande ato a que me refiro, e sim a um que
realizei ainda em vida e que em breve elas descobrirão.
Mas, por ora, estou satisfeita em tê-las reunido sob o mesmo teto por exatos
47 minutos e 39 segundos.
***
Talvez você esteja se perguntando quem sou eu, então, antes de prosseguir,
permita que eu me apresente: meu nome é Leonora Lancellotti e, como você
já deve ter percebido, eu morri.
Se você tem menos de 20, talvez pense que eu já havia vivido bastante, mas,
acredite, quando acordei naquela manhã, não esperava morrer logo depois do
almoço. Eu tinha uma reserva no Orso naquela mesma noite para fechar dois
negócios importantes, havia deixado uma caixa farta de e-mails pra responder
de tarde, ainda não tinha comprado o presente de aniversário do Lucas —
pensava em dar uma bicicleta da Patrulha Canina —, nem terminado as
sessões de peeling que já estavam pagas.
Entretanto, esta história não é sobre mim, nem sobre todas as coisas que teria
feito diferente se soubesse que Hécate me cercava.
Lara passou o dia de ontem inteiro com os filhos na casa da árvore que
mandei construir para eles no meu terreno, e cada um escreveu uma carta
para enterrarem com o meu caixão — bem, Alícia e Lucas desenharam.
Luísa, minha caçula, que foi a que mais sofreu com a morte do pai há quase
11 anos, agora se esforça para ser forte, mas já faz 52 horas que não dorme, e
todas as vezes em que cochilou, saltou minutos depois assustada. Eu sei que é
porque ela tem medo dos pesadelos que, na infância, a perseguiram por
meses após a morte do Leo. Ela passou as duas noites após a minha morte na
balada, usando mais químicos que uma mãe gostaria de ver a filha usar.
Nenhum deles causou o efeito desejado.
A doce e sincera Mila talvez seja a mais transparente, mas sei que mesmo ela
esconde parte de seu luto. Sei que, pela primeira vez em anos, questionou a
certeza que tem no universo e no destino. Sei que sentiu raiva da injustiça de
ela e as irmãs terem que presenciar mais um velório juntas. Sei também que
não consegue meditar há dois dias.
***
Como prometido, ou pelo menos insinuado, todas voltam para o enterro, que
acontece em um cemitério no bairro em que eu moro… bem, morava!
— Tia Lu! — Alícia grita, correndo em direção a Luísa assim que ela chega.
Luísa sorri, talvez pela primeira vez em alguns dias, e se abaixa para pegar a
sobrinha — que não vê há três meses — no colo. Lucas, que já tem 5 anos,
apenas corre para abraçá-la pela cintura. Luísa bagunça o cabelo espetado do
menino e o segura perto da cintura enquanto assistem seis homens carregar o
caixão com o meu corpo.
Nos últimos 11 anos assistimos a três enterros neste mesmo cemitério, sendo
o primeiro, e mais doloroso, o do Leo, meu marido e pai das meninas.
Lembro-me daquele dia com tanta clareza que poderia ter sido ontem: Luísa,
com apenas 10 anos e meio, abraçada a Lara, chorando com a liberdade que
só uma criança se permite, enquanto Lara com todo o seu jeito maternal
tentava consolar tanto a irmã quanto a si mesma. Helena sentada no gramado,
encostada em uma árvore olhando para aquilo sem acreditar realmente; e
Mila, que não soltou minha mão nem por um segundo, se mostrando mais
forte que qualquer uma de nós e tentando manter a união familiar, que, apesar
dos seus esforços, foi danificada para sempre.
E hoje, eu!
Mas, como dizia, não tem nada de muito elegante, apenas algumas pessoas
reunidas; algumas mais dramáticas vestidas de preto, óculos de sol e
sombrinha, apesar de ser fim de tarde e não estar chovendo. Helena é uma
delas, mas sei que os óculos são para esconder as olheiras.
A maioria traz o luto apenas em suas intenções e não em suas roupas, e para
mim é o suficiente.
Lara abraça o filho, que está ao lado de Luísa, e logo o abraço se estende até
a cintura da irmã. Mila se aproxima pelo outro lado para beijar a bochecha de
Alícia e passa o braço pelas costas de Luísa também. Vendo a cena, Helena
suspira e, fingindo não ser nada, dá dois passos à direita, grudando o braço ao
de Lara, que sem perguntar ou pedir permissão, entrelaça seus dedos.
E é assim, abraçadas, que assistem meu corpo descer à cova; Luísa, Mila e
Helena jogam flores. Lara e os filhos, as cartas que escreveram na casa da
árvore.
E dentro de poucos minutos, tudo está acabado para mim, e minhas filhas são
oficialmente órfãs.
— Tia Lu, você quer dormir lá em casa? — Alícia pergunta ainda no colo de
Luísa, enquanto caminham pelo cemitério ao fim do enterro. — Eu tenho
uma barraca, você pode dormir comigo.
Luísa olha para Lara atrás de o que responder. Fazia meses que não se viam,
embora trocassem mensagens de vez em quando, e Luísa não sabe se é ou
não uma boa ideia. Lara apenas assente com a cabeça.
— Não sei, Lili. Você tem cara de que ronca! — Luísa diz com uma careta.
— Nesse caso, tudo bem. Mas se você roncar eu vou te expulsar da barraca!
Alícia apenas sorri e abraça Luísa pelo pescoço. Luísa tem que engolir o nó
que sente na garganta com todas as emoções do dia. Ela não sabe se sente
inveja ou pena de Alícia ser tão pequena e incapaz de compreender toda a
situação.
Mas Alícia compreende a morte, Lara passou o dia anterior inteiro explicando
para ela e Lucas o que significa morrer. Ela sabe que não me verá mais. Mas
não é a morte que ela não entende, é a antecipação da saudade. Ela me viu há
três dias, ainda não está com saudade e não há motivo para ficar triste se, de
acordo com a mãe dela, eu estou em um lugar melhor.
De certa forma, a lógica infantil é muito mais coerente que a dos adultos; é o
adulto que sofre e anseia por coisas que ainda não aconteceram. A criança
apenas sente o momento enquanto os adultos gastam tempo e dinheiro com
terapia e cursos de meditação apenas para recuperar essa capacidade.
Ela deixa a frase suspensa, como com frequência faz; uma mania que tem
desde criança. Creio que para não parecer incisiva demais como Helena, nem
carente demais como Mila. É uma forma de jogar a conclusão do pensamento
para o interlocutor.
Mila, que caminha segurando a mão de Lucas, topa na mesma hora. Ela é,
das quatro, a que mais sente falta da relação fraterna — ou pelo menos a que
demonstra mais — e a que mais, ao longo dos anos, se esforçou para juntá-
las.
As três olham para Helena, que faz questão de não responder nada no
primeiro momento, mas Lara conhece a irmã, sabe que se ela não quisesse
não pouparia negativas, então, o silêncio prolongado deve ser um “sim”.
***
— Tirem os sapatos — Lara diz, ao abrir a porta de sua casa e tirar seu
mocassim preto.
Mila, que é a única que frequenta a casa com certa assiduidade, já está com o
sapatinho preto de verniz nas mãos para colocá-lo de lado. Luísa chuta as
Doc Martens cada uma para um canto do hall. Helena revira os olhos para o
pedido e mantém seu Jimmy Choo nos pés.
Caso você nunca tenha lido uma revista de decoração, pode imaginar a casa
dela como a personificação da sua pasta “decoração” do Pinterest. Isso se a
sua pasta de decoração for cheia de referências escandinavas.
— Pinot Grigio! — Lara repete para si, pegando a garrafa na pequena adega.
Um silêncio incômodo paira sobre elas enquanto Lara abre a garrafa e serve
as taças.
— … morta, a gente sabe, Lena — Luísa corta antes que ela possa terminar a
frase. — Dá pra deixar de ser brucutu por um minuto e brindar em
homenagem a ela?
— À mamãe!
— Não, não — Mila, responde meio sem jeito. — Ele veio me dar os
pêsames, porque eu era a única filha presente…
— Eu era a única filha presente perto do corpo — corrige Mila. — Ele foi
super atencioso e a gente começou a conversar…
Claro que não estou horrorizada, não sou nenhuma velha antiquada, e o moço
era mesmo muito atencioso e bonito.
— Ah, Lara, primeiro, pra fazer o papel da Lena, mamãe não tá mais aqui,
deixa ela em paz um minuto, por favor. Segundo, deixa de ser chata — Luísa
defende. — Conta mais, Mi.
Lara serve uma tábua de frios, ou o que seria uma tábua de frios se estivesse
servido em uma tábua, mas ela apenas espalha os potes de cada coisa pela
bancada e coloca alguns queijos em pratos com facas de serra para cada uma
cortar um pedaço.
— Ele me convidou para sair no fim de semana — diz Mila com sua típica
fala cadenciada.
— Bom, você merece um pouco de alegria, Mila — Lara fala. — Todas nós,
na verdade.
Luísa aproxima sua taça à de Mila para um brinde informal e lança uma
piscada.
Mila e Luísa sempre foram as duas que tiveram a melhor relação entre as
quatro. Sempre respeitaram a personalidade uma da outra e nunca tentaram
forçar um estilo de vida diferente. E mesmo que se vejam pouco hoje em dia,
sempre conseguem agir naturalmente, como se o tempo não houvesse
passado.
***
— E cadê aquele imbecil do seu ex-marido? — Luísa pergunta, dando um
gole no vinho, já ao final do jantar.
— Ele não podia adiar para ir ao enterro da ex-sogra e avó dos filhos dele? —
Helena pergunta.
— Sim, porque tudo que eu queria era ser mãe solteira! — revida com
sarcasmo.
— Você já era mãe solteira quando estava casada com ele, Lara — Helena
atiça mais.
— O que você sabe sobre relacionamento, afinal? Tem 32 anos e nunca teve
um namorado por mais de três meses.
— Sim, só precisa trabalhar 18 horas por dia e fingir que sua vida pessoal não
existe!
— Pelo menos eu não precisei casar com o primeiro homem que vi pela
frente só pra fazer um filho porque tinha medo de ficar sozinha!
— Vai se foder!
— Mamãe?
Quatro pares de olhos castanhos viram para a pequena Alícia parada na porta
da cozinha.
— Vou! — Luísa vira a taça de vinho que tem na mão e salta da bancada
aproveitando a deixa para sair daquela atmosfera tensa. — Mas eu quero um
pijama igual o seu.
— É porque eu sou muito alta, né? Sua mãe sempre tirou onda com a minha
cara por eu ser baixinha! — diz e se vira para Lara. — Eu sou mais alta que a
sua filha.
Lara sentiu-se agradecida por Luísa tentar amenizar o clima para Alícia não
perceber a tensão. Luísa sempre foi boa nisso, quando era criança, sempre
conseguia melhorar o ambiente depois de eu e o Leo brigarmos ou depois das
irmãs se engalfinharem.
— Eu já vou indo. — Helena pega sua bolsa e sai sem nenhum adeus muito
formal.
Assim que escuta a porta da sala batendo, Mila vira para Lara e informa:
— Eu vou ficar.
Sem nenhum dos filhos em sua cama, Lara fica sozinha com seu luto pela
primeira vez e, enfim, se permite chorar.
Helena se ajeita na sua confortável cama king size e abre a minha caixa de e-
mails cheia de mensagens que aguardam resposta.
CAPÍTULO 2
— Como é que é?
— O quê?
— Você tá me zuando?
— Não, não, calma aí — Helena diz, assumindo a frente. — Isso não pode
ser legal! Lara, isso é legal?
Helena olha para a irmã que estudou direito na faculdade, mas nunca
trabalhou na área. Lara dá de ombros, tão perdida quanto todas as outras.
Helena e Luísa estão sentadas lado a lado na grande mesa de reuniões. Helena
é, das quatro, a que mais se parece fisicamente com o pai, tem a pele mais
clara que as irmãs e o cabelo e olhos castanho claro. Ela está com a sua
melhor postura de empresária, do tipo que se recusa a ser passada para trás.
Ainda bem que já estou morta, porque Helena me mataria se me ouvisse falar
isso.
Mila e Lara estão de frente para as duas. Lara está com o seu lindo e
volumoso cabelo cacheado jogado para o lado com uma franja também
cacheada caindo sobre a testa. Ela tem uma beleza natural que lhe permite
vestir qualquer coisa e ficar bonita, por exemplo, agora veste um terno de
seda floral que faria qualquer pessoa parecer um sósia do Falcão, mas nela cai
lindamente.
Mila, ao seu lado, está num vestido indiano que passa uma imagem de
desapego material, mas que eu sei que custou mais que o terninho branco de
Helena. Mila sempre pareceu ter sido sequestrada de Woodstock por um
viajante do tempo que a trouxe para o presente, está sempre cheia de adereços
nas orelhas, pulsos e pescoço, seu cabelo comprido ondulado e castanho está
sempre iluminado por luzes e enfeitado com trancinhas.
Ela, assim como Luísa e Lara, puxou mais o meu lado da família com um
tom de pele oliva e olhos castanho-escuros; elas também têm os lábios mais
cheios e o sorriso maior que o de Helena, que tem traços mais finos.
— Você pode repetir, por gentileza? Porque acho que não entendi direito —
Lara pede a Armando.
— Tudo bem, a gente escolhe uma de nós para ficar com o acampamento…
— Lara sugere.
— E como a gente decide quem fica com essa merda? Tiramos no palito? —
Luísa pergunta com sarcasmo.
Helena está pronta para sugerir que ela, como a única das irmãs que já cuida
de um dos negócios da família, deveria estar isenta desta decisão, mas seu
pensamento é interrompido por Armando:
— Na verdade — diz ele —, sua mãe deixou isto por escrito também. No
parágrafo seguinte ela expressa: as quatro deverão trabalhar nele por um
verão inteiro e decidirem juntas quem ficará com o acampamento. Apenas
após este período e da decisão tomada, a herança será partilhada.
— Nem fodendo! — Luísa exclama.
— Quê? Ela quer que a gente passe o verão todo no meio do mato? —
Helena se exalta.
Mila coloca as mãos sobre o rosto tentando achar o lado positivo, mas nem
ela consegue entender o sentido disso. Lara olha para Armando esperando
que ele diga que é uma pegadinha.
— Eu ainda não disse — esclarece ele. — Como expresso pela mãe de vocês,
o único bem que não está incluso nestas condições, são as ações do Grupo
Lancellotti, essa vocês herdam a parte dela, que era a sócia majoritária e,
somando a parte que você já tinha, Helena, você se torna a nova majoritária.
Contudo, todos os outros bens e investimentos estão atrelados ao testamento
e ao acampamento. Estamos falando de 15 milhões.
— 15 milhões de dólares.
Às vezes me pergunto de onde minhas filhas acham que vem a vida boa
delas. Mila passa mais tempo viajando, fazendo cursos de meditação e ioga
na Índia, Nepal e Califórnia do que trabalhando… se é que dá pra chamar de
trabalho essas imersões meditativas que ela organiza a cada três meses.
— As quatro passam o verão juntas trabalhando no acampamento, ou
nenhuma receberá a herança — repete ele.
— Então ninguém vai receber porra nenhuma, porque eu não volto para
aquele lugar! — Luísa diz e se levanta.
— A Luísa nunca vai aceitar voltar pra lá, vocês sabem disso — Helena diz
com uma risada nervosa, tentando disfarçar o medo de ver a herança
escorrendo por entre os dedos.
***
Acho que cabe aqui uma elucidação de o que diabos está acontecendo.
Foi lá que eu e o Leo nos conhecemos, quando eu tinha 16 anos e ele 17.
O Leo também amava o lugar e por muitos anos ele que administrou
pessoalmente enquanto eu tomava conta do Grupo Lancellotti. Depois da sua
morte, como eu não tinha tempo para cuidar do acampamento, passei essa
função para o nosso sócio e melhor amigo do Leo, Chico Lima.
Outro ponto é que precisamos de sangue novo para tentar recuperar a glória
do lugar. Há muitos investimentos para fazer e, nos últimos anos, as
matrículas têm caído bastante. É preciso pensar em novas formas de atrair as
crianças e gerar movimento o ano todo.
Eu sei que isso pode soar meio antiquado, ainda mais eu sendo uma senhora
morta, mas a tecnologia tem sido a nossa maior concorrente. As crianças
querem passar mais tempo com seus videogames do que ao ar livre. E se o
acampamento continuar perdendo inscritos, terá que fechar depois de 45
anos.
Tudo que peço é que uma de minhas filhas se certifique de que esse trabalho
de anos não vai simplesmente desaparecer.
***
Por uma semana inteira, as minhas filhas fingem que o testamento não existe.
Elas não se falam, nem falam sobre o tema com outras pessoas.
Mas eu não estou preocupada com isso, tomei algumas providências para
garantir que elas aceitem os termos…
— Mila? — Lara indaga ao abrir a porta e dar de cara com a irmã. — Como
você conseguiu subir?
— Que Cadu?
Mila é do tipo que se apaixona com facilidade. Ela é uma dessas pessoas que
consegue ver nos outros suas melhores qualidades. Vive intensamente seus
amores e, na maioria das vezes, a relação é leve para os dois lados e acaba da
mesma maneira que começa, com naturalidade e um sentimento forte de
amizade.
Eu diria que, de todas, ela é a mais bem resolvida no campo amoroso, apesar
de nunca ter tido um namoro muito duradouro.
— E o que você tá fazendo aqui? — Lara pergunta vendo que Mila está
incomumente agitada.
Ora, francamente, como se eu não tivesse mais nada para fazer da minha
morte.
Boa pergunta!
— Acontece que quando eu fui pagar, meu cartão foi recusado porque ele tá
bloqueado!
— Ué, e por que você não desbloqueia? Você não tem o aplicativo?
— Não, não… — Mila diz —, ele está bloqueado! Tipo, a mamãe bloqueou!
— Do que você tá falando, guria? Isso tem alguma coisa a ver com essas suas
viagens espirituais? Você sabe que eu não curto essas coisas!
— Não entendi…
— Você não?
— Não!
— E quem paga por tudo isso, Lara? — Mila pergunta, estreitando os olhos,
sabendo muito bem que ser mãe em tempo integral, por mais nobre que seja,
não paga contas.
— É a Lu, eu mandei mensagem pra ela antes de vir aqui. Calma aí — diz e
atende o telefone, colocando no viva-voz. — Oi, Lu.
— Lara?
— Sem contar que agora ela é a sócia majoritária do Grupo Lancellotti — diz
Luísa.
— Mesmo assim, ela não vai querer abrir mão da herança, não — Lara fala.
As três ficam em silêncio alguns segundos enquanto Mila faz uma chamada
conferência para o celular da irmã mais velha.
— É melhor mais alguém ter morrido para você ficar me enchendo o saco
desse jeito, Camila. Eu já respondi sua mensagem: eu não sei como
desbloquear seu cartão!
— Luísa?
— Alguém morreu?
— E porque vocês acham que ela fez isso, afinal? — Lara pergunta.
— Isso não importa, eu não entendo quando ela fez isso? Quer dizer, ela
sabia que ia morrer? Que tipo de termo maluco é esse? — Helena pergunta,
perspicaz como sempre.
Essa é uma excelente pergunta e embora não possa responder a elas, posso
responder a você:
— Bom, não é como se essas crianças não tivessem pai, Lara — provoca
Helena.
— Você pode visitar uma vez por semana — Mila tenta ajudar. — O Luneta
fica só a uma hora e meia daqui, além disso, você sabe que eles vão ficar
mais com os avós do que com o Felipe.
Lara bufa, mas o pensamento da herança está flutuando na sua mente. Ela
sabe que o dinheiro também é dos seus filhos.
— A gente vai mesmo fingir que o papai não morreu lá? — Luísa pergunta,
irritada com o simples fato de elas estarem considerando.
— E daí?
— E daí que você precisa superar! — Helena diz. — O papai foi imprudente,
a culpa não é do lugar, foi um acidente! Poderia ter sido na nossa casa
mesmo.
— Lu, a gente vai estar lá com você — Mila diz com gentileza.
— Você adorava aquele lugar quando era criança — Lara diz. — Talvez
esteja na hora de você encarar ele de novo!
— Foda-se — ela diz depois de um tempo. — Quando a gente tem que ir?
Talvez seja apenas porque aqui no além, o tempo passe de forma diferente,
mas quando me dou conta já estamos em fevereiro.
Nada de muito relevante aconteceu nesse tempo. Apenas Mila e Lara que
tiveram que deixar o orgulho de lado e pedir dinheiro emprestado a Helena.
Já Luísa, por outro lado, se virou nesses três meses tocando em bares e
eventos.
Confesso que quando ela me disse que queria estudar música em Barcelona,
eu tentei impedir e convencê-la a estudar alguma coisa de verdade; mas
admito que ela é muito boa e creio que ame o que faz. Pelo menos ela
consegue se sustentar sozinha, o que já é mais que metade das minhas filhas.
Mas, como dizia, os três meses nem custam tanto a passar e ao cabo desse
período, estão todas a caminho do acampamento para viver o verão de suas
vidas — ainda que elas não saibam disso.
Além da sede, há várias outras cabanas menores nas quais nossos pequenos
hóspedes dormem. São mais simples, mas seguem o mesmo estilo.
***
A cada minuto que passa, tenho mais certeza de que esse retiro forçado juntas
é mesmo muito necessário, porque tendo absolutamente zero consciência
ambiental, ou qualquer senso fraterno, minhas quatro filhas chegam em
quatro carros separados.
Assim que estacionam, Mila e Luísa que estão acostumadas com mochilões e
programas mais “roots”, como diria a Mila, pegam suas mochilas — e a caixa
com a Elvira — e levam até a sede do acampamento, enquanto Lara e Helena
tentam arrastar suas malas de rodinhas sobre lama e pedra.
Trinta e dois!
Que elas sejam pessoas urbanas, vá lá, eu entendo, mas que elas tenham se
esquecido completamente de como é o campo sendo que passaram a infância
toda vindo a este lugar, aí já é demais.
Se bem que, em defesa de Lara, ela ainda não sabe sobre os uniformes.
Ele trabalha no acampamento há seis anos e, embora deva ter uns 40 e poucos
anos, é desprovido de qualquer jovialidade ou atrativo físico, para ser sincera;
se eu tivesse que descrevê-lo eu diria que ele parece o James Taylor pós-
calvície: nariz longo e pontudo e uma cabeça calva que ele tenta com bastante
afinco disfarçar, penteando para o lado o pouco cabelo que cresce nas
laterais.
— O Chiquinho teve que dar uma saidinha, mas ele deve voltar logo. Vocês
podem esperar por ele aqui… ou dar uma volta no terreno, é claro, vocês são
as donas, podem ir aonde quiserem.
O pobre homem, sem saber o que falar ou fazer para entreter as quatro,
apenas assente com a cabeça e sai.
Se eu fosse ele, também teria saído, Helena e Luísa estão com cara de que
talvez cometam um homicídio até o fim do dia.
Enquanto Lara pega o celular para tentar ligar para o Felipe — eu digo tentar,
porque o sinal aqui não é o que chamamos de excelente —, Luísa pega um
cigarro da mochila e o coloca atrás da orelha, mete o isqueiro no bolso do
shorts rasgado e sai.
Ela caminha até o bosque à direita da sede e se senta em uma das raízes de
uma figueira, acende o cigarro e encara o lago com tanta intensidade que é
capaz de fazer a água ferver a qualquer segundo. Sei que ela não entende os
meus motivos e que está zangada comigo por muitas razões, inclusive por
morrer.
Essa situação é difícil para todas elas, mas é especialmente difícil para Luísa;
e não me parece justo que ela ainda tão jovem não possa mais contar nem
comigo, nem com o pai.
Ela está distraída e não percebe quando uma outra moça se aproxima, e é só
quando ela coloca a botina sobre a raiz em que Luísa está sentada e apoia o
antebraço sobre o joelho que sua presença finalmente é notada.
Luísa olha para cima e estreita os olhos para focalizar melhor o rosto dela por
entre os raios de sol que penetram a copa da árvore.
— Sofia? Não fode?! — Luísa, com toda a falta de delicadeza social que
herdou do Leo, pergunta.
Sofia deixa escapar uma risadinha e Luísa dá mais uma tragada naquela
piteira do câncer.
Eu realmente espero que essa menina pare de fumar logo, a nossa família já
não tem uma expectativa de vida lá muito alta.
Luísa olha para ela sem esconder a surpresa; a Sofia criança era magricela e
virada em olhos, e não lembrava em nada a Sofia adulta.
Tenho certeza de que era bonita a palavra que ela quis usar, mas Luísa nunca
foi muito boa com elogios.
— Nem tanto, acho que é a perspectiva — ela diz e se senta ao lado de Luísa,
tentando regular suas alturas. — Já você não mudou nada, continua com a
mesma cara de rebelde!
Ela sabe que não deve jogar a xepa no chão — pelo menos com isso ela se
preocupa — e ao mesmo tempo não sabe o que fazer, então fica, igual a um
cachorro procurando um lugar para fazer xixi, olhando ao redor tentando
descobrir o que fazer com o cigarro. Por fim, desiste e fica com ele na mão
mesmo.
— Ah ha! — exclama Luísa. — Eu por outro lado não sabia que você estaria
aqui! — diz e abre um sorriso.
Um sorriso!
Eu não pensei que fosse vê-la sorrir na primeira semana inteira. Luísa é um
tanto rancorosa e mal-humorada quando quer. Mas veja só, ela está sorrindo.
Impressionante!
Luísa limpa a garganta ao perceber o que falou e Sofia sente suas bochechas
esquentarem um pouco com o comentário.
— Na verdade, foi uma surpresa quando meu pai me contou que vocês
viriam.
— Foi uma surpresa pra gente também — ela devolve. Depois de ver a
expressão confusa de Sofia, acrescenta: — longa história. E você trabalha
aqui também? Ou só mora aqui com seu pai?
— Tá estudando jornalismo em São Paulo. É quase certo que não volta mais.
— Entendo. Eu também não voltaria — diz, mais para si, ou para mim, do
que para Sofia.
— Você costumava gostar daqui — Sofia tenta, sem saber ao certo o porquê.
— Isso foi antes desse lugar se tornar meu refúgio oficial de luto.
— Acho que meu pai deve estar te esperando — Sofia diz, tentando mudar de
assunto.
— Um cara que parece o sr. Burns dos Simpsons disse que ele saiu.
— Deve ser o Zeca! Ele nem é tão velho, mas se parece mesmo com o sr.
Burns, coitado. Bom — ela diz, levantando-se —, eu te vejo daqui a pouco na
reunião, então.
***
Uma hora mais tarde as irmãs estão reunidas na grande sala da recepção da
sede enquanto Chiquinho as recepciona com certa pompa e circunstância que
provavelmente serve apenas para adiar o desconforto que ele sente por ter de
comunicar a elas o teor do envelope que segura nas mãos.
— Bom, meninas, vamos logo ao que interessa. Como vocês sabem, em dois
dias receberemos as crianças da temporada de verão e precisamos organizar
quem vai ficar responsável pelo quê. O resto dos monitores chegará amanhã,
por isso é importante que a gente já tenha tudo organizado.
— O resto dos monitores, além de vocês quatro e da Sofia — ele aponta com
a cabeça na direção da filha, que está sentada em uma das banquetas do
balcão da recepção.
— Quê?! Eu não vou ser monitora, de onde você tirou essa ideia, Chiquinho?
— Espera, mas o testamento diz que temos que trabalhar aqui, não que temos
que ser monitoras! — Lara contrapõe.
Helena tem uma ojeriza à criança que beira a patologia. Sinceramente, não sei
nem de onde vem, porque a única criança que ela teve que conviver depois de
adolescente foi a Luísa, que apesar de um pouco rebelde, nunca incomodou
Helena.
— Bom, é que não tem muito mais o que fazer aqui — Chiquinho diz,
encolhendo os ombros. — Eu faço o administrativo e a coordenação, fora
isso, há o trabalho de monitoria, consertos, cozinha e limpeza. E acho que
vocês não gostariam de ficar em nenhum dos três últimos.
Luísa solta uma bufada e deixa a cabeça cair para trás na poltrona em que
está sentada.
— Isso é loucura, minhas irmãs não sabem cuidar nem delas mesmas que dirá
de um monte de crianças — argumenta Lara.
— Ei! Você acha que só porque é mãe, é mais qualificada que a gente? —
Mila protesta.
— Acho!
— Não se preocupem, meninas. Tudo isso foi levado em conta, por isso
vocês vão trabalhar em pares com monitores mais experientes. Todos eles
têm treinamento de salvaguarda, primeiros-socorros, dinâmicas de grupo e
mediação de conflitos. E é claro, todos passaram por seleção e capacitação
para trabalhar com grandes grupos de crianças.
Chiquinho fita o olhar dela e vejo o brilho do seus olhos se tornar um pouco
mais opaco antes de assentir e endossar com certo pesar:
— Houve um.
Há onze anos, ele saltou em uma das áreas proibidas e bateu a cabeça em uma
pedra. Os bombeiros que recuperaram seu corpo disseram que ele deve ter
desmaiado com a batida e se afogado.
Essa era uma característica bastante difícil dele, apesar de se preocupar muito
com as crianças, sempre foi aventureiro demais e sempre teve o impulso de
quebrar as regras só para provar que conseguia. E sempre conseguiu… até o
dia que não conseguiu mais.
— Tem um monitor designado para cada faixa etária das crianças. Mas a
notícia boa é que vocês vão poder escolher com qual idade preferem
trabalhar.
— Nem pensar!
Mila vira para Luísa com curiosidade e ergue uma sobrancelha. Luísa apenas
dá de ombros antes de concordar:
— Por mim!
— Vou ficar com os mais velhos — Mila diz antes de Chiquinho continuar.
— Me dou melhor com adolescentes.
— Bom, até que foi mais fácil do que eu pensei — responde Chiquinho com
um sorriso, anotando tudo na prancheta.
CAPÍTULO 4
Após o jantar, elas tentam se acomodar e se habituar com o que será seu novo
lar pelas próximas semanas.
Lara tenta mais uma vez ligar para Felipe e dessa vez consegue manter uma
chamada por mais de alguns segundos. Confesso que até eu já estava
tentando dar uma mãozinha para que esse sinal se mantivesse, mas como
ainda não cultivei um bom networking do lado de cá e ainda não conheço
quase ninguém, não pude ajudar muito.
Ainda assim, dessa vez dá certo e ela consegue falar com os filhos. Graças a
Deus, porque essa mulher já estava à beira de um ataque de nervos.
— Graças a Deus! Esse lugar tem um sinal de merda! Como estão as coisas
aí? Eles estão bem?
— Eles estão como estavam quando você deixou eles aqui há algumas horas
— Felipe responde com pouca paciência.
— Um negócio que parece um nuggets de legumes, minha mãe que fez, pode
confiar…
— Uhum — ela resmungou. — Deixa eu falar com eles!
— Você tá com tanta pressa assim pra se livrar de mim? — ele pergunta com
algo que eu diria que lembra um flerte.
Cristo.
Laranjinha? Credo!
— Nós terminamos — ele enfatiza o “nós” como se tivesse sido uma decisão
conjunta — porque estávamos infelizes, não porque não nos amávamos mais.
Ela revira os olhos, mas parte dela fica um pouco balançada e ao mesmo
tempo confusa. Felipe sempre bateu na tecla do divórcio e era Lara que ainda
tentava uma reconciliação pelo bem dos filhos.
— Nós estávamos infelizes porque você vivia fora de casa e aí achou que a
melhor forma de resolver era sair de vez!
— Lara…
— Mamãe!
Ela, por sua vez, faz exatamente as mesmas perguntas que já fez para o Felipe
para ter certeza de que seus filhos comeram bem, já tomaram banho, já
escovaram os dentes e que estão com o pijama certo para a temperatura do
dia e etc.
Lara pode ser um pouco controladora, mas ela tem boas intenções.
***
Ela pergunta para Luísa que está largada no sofá dedilhando alguma coisa no
violão.
— Que mau olhado? Esse lugar não tem olhado nenhum, nem bom nem mau.
— Meditando lá no trapiche.
— Espero que ela não meta fogo na cabana espalhando essas porcarias e
saindo.
— Pelo menos a gente ia conseguir resgatar a herança sem precisar ficar com
esse lugar! — Luísa diz com um sorriso travesso.
Apesar de eu saber que é brincadeira, devo dizer que não achei muita graça.
Helena, entretanto, solta uma risada.
— Quem dera. Faz um tempão que não consigo criar nada novo, desde que a
mamãe… enfim.
Helena lança um olhar para Luísa que continua os acordes sem desviar os
olhos de uma das fotografias penduradas na parede da sede.
Não posso dizer que goste de ver esse tipo de interação entre as minhas
filhas; na verdade, detesto vê-las agindo como se fossem duas estranhas,
como se não tivesse sido Helena a ensinar as primeiras notas no piano para
Luísa.
Ela segue o caminho que contorna o lago, notando que, exceto por uma
melhoria ou outra, pouca coisa mudou ali. Caminha distraída pela passagem
de pedra, sem se preocupar com a direção, até que uma voz, não muito longe
dali, chama sua atenção.
Sua voz ecoa pelo ar e ela solta uma risada tão espontânea e contagiante que,
sem perceber, Luísa sorri também.
Luísa percebe seu ato intrusivo e se põe a caminhar novamente; mas, apesar
de deixar a casa de Chiquinho para trás, não consegue deixar a filha dele:
Por algum motivo, Luísa não imaginou que Sofia tivesse namorado; talvez
por se lembrar dela com 10 anos de idade ou talvez por ela mesma nunca ter
namorado sério.
Luísa é muito parecida com Mila nesse quesito. Nunca se envolve por mais
do que algumas semanas, mas diferente de Mila que aproveita intensamente
seus affairs, Luísa está sempre mais preocupada em terminar as relações do
que em vivê-las.
Quando Luísa se aproxima mais uma vez da sede, vê que Mila ainda está no
píer. Ela não está mais meditando, mas sentada à beira do lago com as pernas
balançando sobre a água. Luísa caminha até ela e se senta ao seu lado.
— Esse é um ótimo lugar para fazer um detox, Lu. Aproveita para relaxar,
você tá com a aura muito carregada.
— Não é porque você tá aqui obrigada que não possa tirar algum proveito —
Mila diz como se fosse algum guru do bem-estar ou coisa assim. — Só tô
falando que aqui tem uma energia ótima para relaxar um pouco, só isso.
Uma das coisas que ele mais gosta sobre morar ali é justamente poder tomar
seu café todo dia olhando para o lago e sentindo a brisa da manhã.
Hoje, no entanto, assim que se aproxima do lago, vê que seu lugar favorito já
está ocupado por Mila, que está Saudando o Sol. Chiquinho dá mais uma
olhada no relógio de pulso só para ter certeza de que ele não perdeu a hora.
Quando era criança, uns dois meses depois do acidente, ela começou a pedir
para que eu, Mila e Lara revezássemos para dormir com ela. Geralmente uma
de nós contava uma história ou lia um livro com ela e depois dormia na
mesma cama. Essa rotina durou vários meses, até que a sua psicóloga nos
explicou que seria importante para ela aprender a dormir sozinha e que nossa
presença era uma muleta no processo de luto da Luísa, então, aos poucos,
fomos diminuindo a frequência até que ela, por fim, voltou a dormir sozinha.
Sua rotina, no entanto, não mudou muito, ela adquiriu o hábito de ler um
livro sempre antes de dormir. Hábito esse que preserva até hoje. Mas apesar
de os pesadelos terem diminuído ao longo do tempo, ela passou a não gostar
de dormir.
Ela não tem nenhum problema neurológico e nem sofre de insônia ou coisa
assim, ela simplesmente não gosta de dormir desde então. Vai para o quarto
sempre o mais tarde que consegue e, se acorda no meio da noite, se levanta e
começa sua rotina.
Chiquinho solta uma risada, porque ele sabe que ela, assim como as irmãs,
está ali por obrigação.
Luísa fita ele com curiosidade. O fato de ele entender qual é o problema dela
com o lugar surpreende nós duas, mas Chiquinho sempre foi muito bom com
pessoas, certamente melhor do que eu. Luísa apenas assente com a cabeça e
toma um gole do café aguado que sai da máquina de café da recepção da
sede.
***
Não para as minhas filhas, é claro, que nem sabem o que esperar desse verão,
mas para a equipe, que finalmente está completa, com todos os colaboradores
presentes.
Helena, Lara, Mila e Luísa se sentam uma ao lado da outra e assistem tudo
com certa desconfiança.
Mas para as minhas filhas deve ser mesmo uma surpresa ver quase trinta
pessoas reunidas para essa finalidade.
— Bom — Chiquinho diz e bate uma palma —, acho que, com exceção do
Zeca que tá arrumando um vazamento que encontramos no banheiro das
meninas, está todo mundo aqui.
— É aquele que parece o Drauzio Varella que carregou nossas malas ontem
— Lara responde.
— Se você não tá gostando, pode pegar suas coisas e sair, meu anjo —
Helena diz sem descruzar nem os braços nem as pernas.
Pati, ao ouvir seu nome, abre um largo sorriso e abana com entusiasmo para
Helena, que apenas força um sorriso. Dessa vez é Luísa que tenta, em vão,
conter um risinho. Sei que ela abriria mão da herança toda só para ver Helena
passando um mês inteiro com uma figura tão sorridente e alegre como Pati.
As quatro procuram Betina com os olhos. Betina apenas ergue a mão com
sobriedade para se identificar no meio das pessoas e sorri de maneira formal e
gentil para Lara.
Nesse momento ela está com um vinco na testa enquanto digita com força no
teclado:
“Eu preciso que você leia com atenção e me retorne com alguma solução o
mais rápido possível. Não tenho muito tempo para resolver isso.”
Hm, suspeito.
Helena sempre foi obstinada, e eu sempre admirei isso nela. Mas ao mesmo
tempo que isso é a sua melhor qualidade, é também um grande peso. Ela
jamais admite uma derrota.
Do dia para a noite tive que lidar sozinha com quatro filhas e uma empresa
gigantesca. E se não fosse Helena assumir o papel de braço direito, não sei
como teria conseguido.
Mas ao mesmo tempo que sou grata a ela por isso, eu sei que ela se agarrou
tanto na sua carreira que minou qualquer outro campo da sua vida. Lara pode
ser apegada demais, mas Helena não se deixa apegar a nada… a não ser a
uma ideia fixa.
E por isso sei que ela não irá aceitar a cláusula do testamento sem lutar. Sei
que tentará, a qualquer custo, arrumar uma solução. Estou preparada para vê-
la tentar e talvez ganhar. Mas torço para que meu plano seja mais eficiente.
Ao seu lado, Lara, que depois de um dia e meio percebeu que poderia usar o
telefone analógico da sede para ligar para o Felipe, está falando com Alícia e
Lucas. Luísa está jogada no sofá com os pés sobre a mesa de centro tentando
resolver um cubo mágico.
Mila chega à recepção com uma saia floral esvoaçante até o pé, rasteirinha e
um top de crochê que mais parece um biquíni, além, é claro, dos seus
inúmeros acessórios.
— Pro luau.
— Pff. — É tudo que Luísa oferece antes de voltar para o cubo mágico que
ela jamais vai conseguir resolver.
Mila olha para Helena, que responde sem ao menos desviar os olhos da tela
do computador.
— Lara?
— Só um minutinho, meu amor — ela diz para um dos filhos no outro lado
da linha, antes de se virar para Mila. — O quê?
Mila apenas solta um suspiro. Ela sabe que a ligação não vai durar muito
tempo, mas está na cara que Lara não vai mesmo assim.
— Por favor, Lu, não me deixa ir sozinha! — Mila implora à irmã mais nova.
— A Sofia parece legal — ela diz com um tom que não sei exatamente como
descrever, sugestivo, talvez?
— É, ela é.
Enfim… por cima da camiseta cropped de banda ela está com uma camisa de
sarja amarela mostarda que é três números maior que o tamanho dela, porque,
apesar de ser fevereiro, à noite aqui sempre tem uma brisa fresca.
O cabelo, que ela pintou de loiro com as pontas rosa logo depois da minha
morte, já começou a crescer, mostrando a raiz castanha, e agora está preso em
um pequeno rabo de cavalo rosa. Luísa não costuma usar tantos acessórios
como Mila, usa apenas um piercing no septo que eu já cansei de falar que é
joia de gado, não de gente, mas que ela adora.
Ela e Mila caminham na direção do luau, que é no mesmo lugar em que foi a
reunião mais cedo, mas dessa vez, é claro, a fogueira está acesa.
Assim que elas se aproximam, a música das caixas de som invade seus
ouvidos.
— Ah, desculpa, eu não sabia que tinha trazido a Helena comigo, senhorita
“nada me agrada”! — Mila provoca.
— Vem, Heleninha — Mila diz —, vamos pelo menos tentar aproveitar essas
férias forçadas.
A maior parte das pessoas é a mesma que trabalhou no ano anterior, tirando
alguns poucos novatos. O luau de boas-vindas serve para o exato propósito de
fazer os novatos se sentirem parte do grupo e de reunir aqueles que já se
conhecem.
— Sabe como são aquelas duas — Luísa confirma caminhando até a caixa de
isopor atrás de uma cerveja.
Mila lança um sorriso para ele, que se vira e volta para o grupo de pessoas
com quem conversava.
— O que você quer, Mi? Tem cerveja, Keep Cooler e… — ela diz, olhando
os rótulos na caixa —, não, é isso mesmo. Cerveja e Keep Cooler. Ah! Tem
Coca também.
Ela entrega a garrafinha para Mila e pega uma cerveja longneck para si.
— Oh lá a filha do Chiquinho sofrendo com a Chernobyl — Mila diz, e Luísa
vira na direção que ela está olhando.
Ela brinca com o gargalo da longneck que está segurando enquanto olha para
a fogueira e balança a cabeça de vez em quando para algo que Michelle diz.
Mas assim que vira na direção da irmã, vê um rapaz loiro, daquele tipo de
cabelo loiro queimado de sol, se aproximando; e Luísa se lembra de ele ter
sido apresentado na reunião como um dos salva-vidas.
Luísa revira os olhos, porque, apesar de não ver as irmãs com frequência,
conhece Mila o suficiente para saber que ela vai conversar com esse moço a
noite toda e deixar ela sozinha.
Luísa nunca foi tímida ou teve alguma dificuldade para socializar. Quando
ela era criança, principalmente, sempre chamava a atenção dos adultos com a
eloquência e charme com que conseguia manter uma conversa.
E, mesmo hoje, ela é capaz de encantar a maioria das pessoas com seu humor
leve e inteligência. Contraditoriamente, ao mesmo tempo em que ela pode te
envolver em seu campo gravitacional com facilidade, ela pode também
afastar a todos quando se sente mais introspectiva, o que é o caso desde que
chegou ao acampamento.
Ela não se sente à vontade para sair conversando com as pessoas com as
quais passará o próximo verão; e com exceção de suas irmãs, Chiquinho e
Sofia, ela ainda não falou com ninguém. E por ela, tudo bem continuar dessa
forma.
Sendo assim, ela bebe sua cerveja sozinha em uma cadeira de acampamento
que encontrou vaga perto da caixa de bebidas.
É bizarro que a filha que menos conviveu com o Leo seja a que tenha mais
trejeitos parecidos com os dele. Ela se senta com um cotovelo apoiado no
braço da cadeira e o queixo apoiado sobre os nós dos dedos, o outro braço
está caído para o lado com a longneck sendo segurada pelo gargalo,
exatamente como Leo fazia quando estava entediado ou irritado.
Apesar de não estar tão perto da fogueira, ela consegue sentir o calor que
emana das chamas.
Depois de umas duas músicas, as quais ela tinha algum comentário interno a
fazer, mas cantarolou mesmo assim, ela se levanta para pegar outra cerveja.
Ela vira em direção a voz e vê Sofia esperando para pegar outra bebida na
caixa térmica. Luísa esboça um sorriso.
Ela não deixa de notar como Sofia está diferente agora. Só a tinha visto com
roupa de trabalho: botina, short cáqui e camiseta amarela. Mas agora ela está
com uma rasteirinha, shorts jeans e uma blusa larga de fio caindo em um dos
ombros e deixando à mostra uma regata branca com renda nas alças.
Ela abre uma longneck e oferece a Sofia, que aceita com um sorriso, em
seguida abre uma para ela mesma.
— Touché.
— A maioria das pessoas tem certo receio de falar com vocês… — Sofia diz
e se encosta na mesa de madeira que está sendo usada de apoio —, com você
e com as suas irmãs, eu digo.
— Ué, por quê?
— Eles acham que vocês são tipo as Kardashians do sul e que são metidas a
besta.
Sofia também ri. Apesar de nunca ter convivido muito com Helena, a fama da
minha filha a precede.
Um silêncio paira por alguns segundos entre elas e sei que nem Sofia quer se
afastar, nem Luísa quer voltar a ficar sozinha, mas elas não sabem como
continuar.
— E como foi essa última noite para você? Conseguiu dormir bem ou os
sapos martelo te perseguiram?
Oh.
Provavelmente foi o que ela contou para Sofia na época, para não precisar
falar sobre o real motivo de não conseguir dormir.
— Eu… eu, não lembro muito daquele verão, pra ser sincera — Luísa
confessa, encolhendo os ombros.
Mas sinto que ela está começando a se lembrar desse caso específico. Creio
que a presença de Sofia está desencadeando algumas memórias perdidas de
Luísa.
Luísa esqueceu boa parte do ano em que Leo morreu. Sei por que sempre que
conversava com ela sobre aquela época, notava que ela não se lembrava de
quase nada. Acredito que seja um mecanismo de defesa para evitar reviver
aquilo.
Luísa sentiu suas bochechas esquentarem, e tenho a impressão de que ela não
se lembrava disso.
Mas faz sentido ela ter começado a pedir para que eu ou as irmãs
dormíssemos com ela depois que voltou do acampamento. Provavelmente,
percebeu que se sentia mais segura com outra pessoa próxima.
— Se eu tenho que sofrer, todo mundo vai sofrer comigo — ela diz, com
humor. — Mas nenhum sapo me incomodou dessa vez.
Sofia está prestes a responder alguma coisa quando sente algo na sua canela,
ela olha para baixo e dá de cara com um par de olhos negros e um miado.
— É a vovó!
— É a gata da Mila, Elvira, mas ela jura que a nossa vó tá reencarnada nessa
gata. E, sei lá, ela é meio sensitiva…
Sofia solta uma gargalhada e segura Elvira de frente para ela para encarar
novamente os olhos da gata.
— Prazer, vó da Luísa! — Elvira mia de maneira doce (isso por si só já
deveria provar para Luísa que essa certamente não é a minha sogra!) — Até
que ela é simpática!
— Sim! Você deve lembrar da Luna, nossa labrador, ela tá com 14 anos já!
Mas temos um filhote de labrador também, o Paçoca, e um vira-lata que
resgatamos ano passado que meu pai batizou de Bartolomeu, mas a gente
chama de Bartô.
Luísa sempre adorou animais, mas desde que passou a morar sozinha nunca
teve nenhum. Acredito que ela tenha medo de não conseguir cuidar deles e
também não queira deixá-los sozinhos tantas horas em um apartamento.
— E cadê eles?
— Ah, por aí, daqui a pouco você topa com um deles — diz e solta Elvira,
que caminha até Mila e se enrosca na sua saia. — E você tá preparada pra
amanhã?
— Nem um pouco!
— Não se preocupa, vai ser tranquilo, eu vou tá com você o tempo todo.
— Vish, então lamento te informar que escolheu a irmã errada. A Helena que
é a atleta da família; se vir alguém correndo de madrugada por aí pode ter
certeza de que é ela.
— É? — Sofia pergunta com seriedade. — Será que ainda dá tempo de
trocar? Eu vou lá falar com o meu pai, pera aí.
— Não, não — Luísa a segura pelo pulso para impedi-la, e Sofia finalmente
abre o sorriso que estava segurando. — Eu tenho energia pra caralho, eu juro!
Ela ainda segura o pulso de Sofia, e o toque traz consigo mais uma memória
resgatada daquele verão: as duas em uma atividade de arvorismo e Sofia
pegando na mão de Luísa para ela não ter medo.
Eu lembro que depois do acidente, Luísa passou a ter medo de fazer quase
todas as atividades que antes adorava fazer com o pai, inclusive subir em
árvores.
Michelle continua olhando para Sofia, como que esperando alguma coisa,
Sofia responde o olhar, estreitando os olhos, e Luísa apenas observa a
interação.
Luísa deixa escapar uma risada cínica e morde o lábio. Se tem uma coisa que
ela detesta é quando pessoas pressupõem saberem da vida dela.
Para mídia, não importava que ele havia sido demitido e processado, nem que
havia sido o único responsável e beneficiário do caixa dois. A única coisa que
importava era que havia sido dentro da nossa empresa e por isso o meu rosto
e o das minhas filhas ficaram aparecendo em jornais, revistas e blogs por
meses até se cansarem da história.
— Bares, eventos… luau com músicas melhores que esse — diz com um
sorriso para Sofia, ignorando Michelle.
— Foi meu pai que escolheu a playlist, não tenho nada com isso — ela se
defende elevando as mãos em rendição.
— Ah, mas mandar um monte de criança escolher entre jogar futebol ou vôlei
também não é trabalho! — Luísa diz e dá mais um gole na cerveja.
Sofia bebe também, mas tenho a impressão de que é para disfarçar o sorriso.
— Na verdade…
— Ah, eu adoraria tirar um ano sabático e viajar pela Europa, mas não sei.
Para ser sincera eu não sei dizer se foi genuíno ou forçado, porque Sofia tem
sempre uma expressão doce e gentil, mas como acho difícil alguém querer
passar um ano todo com essa Michelle, vou chutar que foi forçado.
Talvez seja apenas meu instinto materno querendo defender a Luísa, mas essa
moça é intragável.
— Não sei, não queria deixar meu pai sozinho tanto tempo e acho que talvez
seja mais sensato arrumar logo um emprego.
Bom, nisso essa moça tem razão, Chiquinho não precisa de ninguém
cuidando dele.
Oh.
Nunca nem desconfiei que ela tivesse medo de ir; ela parecia tão obstinada
com a decisão de estudar fora. No fim das contas, nós nunca sabemos o que
se passa na cabeça das pessoas, mesmo essa pessoa sendo sua filha.
Ela não elabora mais do que isso, mas é o suficiente para que Sofia entenda.
Luísa continua:
— Ah, Lara — Luísa tenta ajudar —, também não é pra tanto, a Mila não vai
fumar com as crianças ou coisa assim… quer dizer, não, né? — Luísa
pergunta diretamente a Mila.
Ploc.
Epa!
— Esse tipo de negatividade não faz bem pra sua aura — Lara zomba.
— Vou falar pro Chiquinho cancelar com o resto das crianças, já que já
temos três aqui! — Helena dispara ao ver a cena: Luísa segurando Mila pela
cintura para não avançar em Lara ou talvez pular no lago atrás do pacote.
— Ai, já chega vocês duas, que chatice! — Luísa intervém, soltando Mila.
As duas soltam uma bufada, que sou obrigada a concordar com Helena e
admitir que parece de duas crianças.
— Cuidado, Lu, que a fiscal do Proerd aqui pode jogar seu cigarro no lago —
Mila revida, e Lara apenas rola os olhos.
— Ela falou várias vezes que se eu quisesse fumar o problema era meu.
Eu só estava usando psicologia reversa! Por que os filhos são assim? Quando
a gente fala “não faz”, eles fazem para contrariar, quando a gente fala “faz”,
eles também fazem, só pra poder dizer que a gente não se importa.
— Nunca pensei que eu usaria uma frase da mamãe mas: quando vocês forem
mães, vão entender — diz Lara com um suspiro.
A partir de hoje, elas terão que fazer todas as refeições no refeitório com o
resto do pessoal e não mais na sede, já que todos os cozinheiros estarão na
cozinha central.
— E como estava o luau ontem? — Lara pergunta como uma mãe pergunta
às filhas adolescentes.
— Sim, passei a noite ouvindo a simpatia da Michelle insinuar que não faço
nada da vida… divertida ela.
— Ah! Achei que ela tinha arrumado um homem também — Lara comenta
levemente decepcionada.
— As duas eram que nem unha e carne quando eram crianças — Helena diz.
— Natural que voltem a ser amigas.
Luísa esboça um sorriso vencedor para Mila. Seja lá o que está acontecendo,
Luísa não está a fim de compartilhar com todo mundo.
Mila apenas rola os olhos como faz toda vez que sabe ser a única a
compreender uma situação; o que acontece com certa frequência.
A princípio você pode imaginar que Mila tem algum tipo de clarividência ou
coisa assim, mas creio que seja apenas interesse no próximo. Helena, Luísa e
Lara estão sempre tão focadas no próprio umbigo que não percebem nada que
acontece ao redor delas. Já Mila tem um interesse genuíno nas pessoas —
todas as pessoas — e por essa razão é bastante observadora. E às vezes ela
consegue enxergar melhor uma situação do que quem a está vivendo.
— Eu estava perguntando sobre os meus filhos, Lena. Não tinha nada demais
na conversa.
***
Mas apesar das caras de velório, elas estão uma gracinha vestidas todas iguais
com o uniforme dos instrutores.
É bem verdade que Luísa teve que lembrar Lara e Helena três vezes de que
elas estavam ali pela herança até finalmente as convencer de se vestirem com
a bermuda cáqui e a camiseta amarela clara, mas valeu a pena.
Não as vejo assim, todas com o mesmo uniforme, desde que a Luísa começou
no primeiro ano e, por um breve período de tempo, as quatro estudaram na
mesma escola. Até os resmungos e as lamentações são os mesmos, é quase
como se o tempo não tivesse passado.
Ele está mais que acostumado com isso e sabe melhor do que ninguém que é
perda de tempo tentar controlar o ímpeto das crianças nesses primeiros
minutos, quando tudo que querem fazer é conversar com os amigos ou
conhecer crianças novas.
Uma vez, quando as meninas eram crianças, Luísa acertou uma bola de vôlei
sem querer em um vespeiro lá na nossa casa e as vespas saíram ensandecidas
voando para todo lado, nós saímos correndo, é claro, para não sermos
picadas. Essas crianças aí me lembram aquelas vespas!
Não demora nem dez minutos para que surja o primeiro joelho ralado, mas
com a mesma velocidade com que a criança cai, um monitor já está ao seu
lado para levá-la à enfermaria para limpar o ferimento. Ao mesmo tempo, não
muito longe do acidente, outro monitor aparta a primeira briga entre os pré-
adolescentes, e outro consola uma menina chorando porque quer ir para casa.
Minhas filhas podem até não externalizar, mas sei que estão impressionadas
com a dinâmica do momento.
Todos parecem saber o que estão fazendo e prontos para qualquer coisa…
menos elas, é claro.
— Ô! — responde Helena.
Chiquinho apenas sorri; sei que ele está se divertindo com a situação.
— Luísa, como você vai ficar na recreação, pode se juntar a Sofia lá no píer
que ela vai te explicar todo o cronograma.
Luísa não perde tempo em dar o fora dali, sabe que teve mais sorte que as
irmãs em não precisar fazer dupla com uma desconhecida.
As três, sem muita saída, o seguem até o grupo de monitores que conversam
sob uma árvore.
Pati abre um sorriso e eleva a mão para um high-five com Helena; como a
retribuição nunca vem, Pati abaixa a mão sem jeito.
— Bem — Chiquinho diz ao resto —, pra essa manhã a única tarefa é ajudar
as crianças a encontrar suas respectivas cabanas e se certificar de que todas
estão alojadas e bem instaladas. Depois disso elas estão livres até o almoço.
As atividades começarão às treze horas em ponto.
CAPÍTULO 8
Sofia está no píer separando os coletes salva-vidas por tamanho para as
atividades da tarde.
O sol já está alto e reflete no lago formando uma faixa prateada na água. O
cheiro de água doce misturado com o das folhas molhadas nas margens
preenche as narinas de Luísa quando ela se aproxima de Sofia.
— E aí? — o salva-vidas loiro que estava com Mila ontem pergunta assim
que chega ao píer. — Luísa, né?
— É — ela responde sem dar muita bola.
Luísa encara a mão dele por meio segundo antes de aceitar o cumprimento
com certa desconfiança.
— E aí — ele repete —, sua irmã disse que você é a que mais curte uma
baladinha. Vai ter uma festa de música eletrônica sexta na cidade aqui do
lado, você se encarna em ir comigo?
“Se encarna”? Isso por acaso é um convite? Os jovens falam assim agora?
— Quando eu fui beijar ela, ela me deu um toco e disse que tá a fim de um
outro carinha aí.
— Não, e não perguntei, né? — ele responde, passando a mão no cabelo loiro
com um sorriso constrangido.
— Pelo jeito os velórios da sua família são animados — Pepa diz com uma
risadinha.
— Fica quieto, Pedro Paulo — Sofia diz e revira os olhos para ele.
— Ih, foi mal, foi mal — ele diz, elevando as mãos. — Mas se você quiser ir
sexta, me dá um toque.
Luísa apenas assente por educação, e Sofia joga os coletes com um pouco
mais de força no guarda-corpo do deck.
— Basicamente.
— Eu sabia que deveria ter um motivo sádico para você gostar da recreação.
***
Um deles passa a mão no cabelo bagunçado, com uma cara tão animada
quanto a de um defunto, e fala:
— Escuta aqui, guri, nós não somos tuas tias — Mila responde ao primeiro e
se vira para o segundo — e você nos respeite se não quiser levar uns tabefes!
***
Lara assiste tudo com olhos arregalados, ela nunca viu alguém falar neste tom
com uma criança ou, neste caso, doze.
Lara abre e fecha a boca algumas vezes, tentando pensar em uma tréplica.
Betina não dá nem tempo para Lara questionar mais alguma coisa e continua:
***
— PENSA RÁPIDO!
Helena escuta o alerta, mas antes que possa reagir ou identificar de onde vem,
ela vê Pati se abaixando e, voando por cima de sua cabeça, um balão cheio de
água, que acerta Helena em cheio e encharca todo o seu uniforme.
Meu pai amado! É hoje que minha filha vai presa por infanticídio.
Pobre criança.
— Desculpa, tia, era para acertar o Pedro — o menino diz com um sorriso
levado, tentando apelar para o charme.
— Toma mais cuidado da próxima vez, Ju! — Pati diz, cortando Helena, que
vira para ela como se tivesse sofrido a mais alta traição.
— Pode deixar, tia Pati! — Júlio diz e sai correndo para perto de outras
crianças sem nem ousar olhar para Helena.
Esperto.
— Esse é o Júlio — Pati diz com um sorriso. — E aquela — Ela aponta para
outra menina parecida com ele — é a Júlia, irmã gêmea dele.
— Eles são de uma das casas de abrigo que temos parceria — Pati conclui,
dando a Helena a chance de ligar sozinha os pontos.
— Hm. E porque ele é órfão, pode tacar água nas pessoas e sair ileso?
***
— Me dá a sua mão — Luísa diz para um dos meninos que não está
conseguindo voltar.
Ele segura firme na mão dela, mas antes que possa ajudá-lo a subir, ele a
puxa com força e ela cai na água.
Mesmo estando de colete, assim que ela emerge na água vejo seus olhos em
pânico. Ela se vira para o menino que a puxou e uma faísca de raiva cruza
seus olhos e, se esquecendo completamente de que está trabalhando e que
aquelas são só crianças, joga água na cara do menino.
— Vai se foder!
Luísa pega a sua mão, e Sofia nota que ela está trêmula e fria apesar do dia de
calor.
— Vitor, da próxima vez você vai se entender com o meu pai lá na diretoria
— Sofia diz, e o menino fica vermelho.
— Desculpa, tia — ele diz a Luísa que já está na lancha enxugando o rosto
com uma toalha.
Ela apenas gesticula algo como se dissesse “tá, tá, não me enche”.
Sofia termina de puxar o resto das crianças para o Banana Boat, enquanto
Luísa tenta recobrar a calma.
Por sorte, o resto da tarde passa sem mais nenhum incidente, mas, apesar
disso, ao fim, Luísa está morta de cansada.
— Meu Deus, acho que preciso mesmo largar o cigarro — ela diz, sentindo-
se sem ar.
Ao lado da arara de coletes tem uma caixa térmica que Luísa abre com certa
voracidade.
— Mas apesar de você resmungar igual a uma velha, até que se saiu bem. —
Sofia lança uma piscada para ela.
Luísa sente suas bochechas corando de leve. Ela disfarça, abrindo uma
garrafinha de água e bebendo como se estivesse há dias no deserto.
— Ei, você tá a fim de dar uma volta de barco sem esses pestinhas dessa vez?
— Sofia oferece.
Luísa sorri para ela e joga a garrafinha agora vazia no lixo reciclável antes de
caminharem juntas até a lancha.
Luísa sente os cabelos ao vento enquanto Sofia conduz até o outro lado do
lago.
— É mesmo, gosto de vir no fim do dia porque, como você pode notar, é o
local mais silencioso do acampamento.
Sofia apenas sorri e continua a conduzir a lancha pelo lago mais uma vez em
silêncio.
— Manda.
— Não, na verdade pratiquei natação por alguns anos — ela diz sem
esclarecer muito.
Sofia não sabe como continuar a pergunta sem parecer enxerida ou invasiva.
Mas ela se lembra de que Luísa adorava nadar no lago quando era criança, as
duas adoravam.
Luísa desvia o olhar para a margem que agora tem a vegetação bem mais
densa. Em uma das curvas do lago há uma pedra enorme que forma um píer
natural sobre o lago; Luísa sente um aperto na boca do estômago ao ver a
placa fincada ao lado da pedra.
Sofia nota os olhos vidrados de Luísa e vira para ver o que retém a atenção
dela.
— Foi por isso que você ficou daquele jeito? — Sofia pergunta com
gentileza. Luísa apenas assente com a cabeça, sem desviar os olhos da placa.
Sofia continua: — Desculpa, não imaginei que você se sentiria dessa forma
aqui no lago.
— Não, não — Luísa sacode a cabeça, voltando-se para Sofia. —Tá tudo
bem, eu acho que fui pega de surpresa àquela hora, mas não tem nada a ver
isso, já faz 11 anos.
— Tá tudo bem se não estiver tudo bem — Sofia diz com um meio sorriso
que forma uma covinha na sua bochecha.
***
— Eu odeio esse lugar! — Helena diz ao se sentar à mesa para o jantar com
suas irmãs.
— Pelo menos você não está fazendo dupla com a Miss Trunchbull — Lara
rebate levando dois dedos às têmporas.
— Ela não parece tão ruim assim — Mila diz. — Pelo menos você não
precisa ficar ouvindo cantada de moleque cheirando a leite!
— Que ela teria que fazer aquela torta de banana que você adora.
Eu tive que escutar algumas vezes dos meus netos que a outra avó deles
cozinhava melhor que eu. E eu não podia nem argumentar com eles, porque
eu detesto cozinhar e a mulher é realmente muito talentosa.
— Só não deixa o Lucas comer muito; ele sempre passa mal quando come
muito doce.
— Sim, senhora.
— Sim, ela disse que não sente mais nada, mas eu tô acompanhando. E você,
como tá aí?
— Cansativo.
— Olha, eu sabia que a sua mãe era excêntrica, mas por uma dessas eu não
esperava, viu.
Como esse sujeito poderia esperar alguma coisa de mim, se mal convivia com
a nossa família?
— Eu também não — admite Lara. — Você acha que eu devo ficar aqui,
Lipe? Não me conformo em estar cuidando de crianças que não são as
minhas!
— Tenta aproveitar um pouco, usa esse tempo como um retiro, férias, sei lá.
E não se preocupa com os pequenos, eles estão bem comigo.
— É, pode ser.
— Você sabe que pode confiar em mim com os meus filhos, né? — Felipe
pergunta em um tom mais sério.
***
Ano passado, Felipe quis levá-los para passar essas duas semanas em Cancun
e na Disney, mas Lara o proibiu de levar seus filhos para outro país sem ela.
Por fim, os quatro fizeram a viagem juntos.
Qualquer um que visse as fotos e legendas nas redes sociais dela poderia
pensar que eles haviam reatado, mas foi só pisar em solo brasileiro de novo,
que tudo voltou ao normal.
Agora, sem os filhos para distraí-la, ela simplesmente não sabe o que fazer
para que o tempo passe ou o sono venha.
Ela deveria estar exausta do dia cansativo e estressante que teve, mas, ao
contrário, está agitada demais para conseguir dormir.
Ela olha mais uma vez no relógio e vê que já passa de uma da manhã.
Depois de mais alguns segundos olhando para o teto, decide se levantar e dar
uma volta para tentar espairecer ou ficar com sono.
Lara consegue caminhar tranquilamente pelo ambiente sem precisar acender
nenhuma luz; as enormes janelas e claraboias deixam a luz do luar penetrar o
ambiente. Isso, somado ao eterno cheiro de madeira que exala da construção,
dá à sede uma aura tranquila e agradável. Bom, é bem verdade que o ranger
frequente do piso e dos móveis causa certo incômodo e apreensão, mas só se
você tiver medo de fantasma ou coisa assim. O que não é o caso de nenhuma
das minhas filhas.
Ela continua sua jornada, passando por Elvira, que dorme tranquila em uma
das poltronas do saguão, até a varanda lateral. Assim que Lara pisa lá, vê uma
figura familiar deitada em um dos bancos de madeira ao ar livre logo ao lado
da escadaria.
Luísa disfarça o susto que levou com um meio sorriso e dá mais uma tragada
no cigarro antes de se levantar do banco, para dar espaço à irmã.
— Você lembra daquele último verão que a gente passou aqui com o papai?
— Lara pergunta.
— Você lembra que ele levou a gente numa trilha noturna para ver o céu, e a
mamãe ficou possessa quando descobriu, porque você só tinha 9 anos?
Luísa franze a testa com a memória, tentando resgatá-la de um daqueles
compartimentos que ela trancou a sete chaves em seu cérebro, mas com um
pouco de esforço ela consegue vislumbrar uma lembrança brotando.
Lara continua:
— Ele dizia que apesar do céu ser mais limpo aqui, a luz da sede e dos postes
do lago interferiam, e que pra ver o céu bem estrelado de verdade, a gente
tinha que ir pra essa tal trilha aí.
— Ah, eu lembro disso — Luísa diz com um sorriso. — Eu insisti que só iria
se a Sofia pudesse ir também, aí foi ele e o Chiquinho guiando e nós três
seguindo, não foi isso? — Luísa pergunta e Lara confirma com a cabeça. —
Mas pra ser sincera, eu não lembro de como era o céu.
— Mas quando a mamãe descobriu no outro dia, ela ligou para ele super
brava por ele ter te levado junto, disse que era perigoso e que ele era
imprudente e coisa e tal, aquelas coisas que ela sempre falava, mas ele logo
acalmou a fera, como sempre conseguia, com aquele jeito todo descontraído
que tinha.
— Eu lembro que ela ficava muito puta quando ele fazia essas coisas. Teve
aquela vez que ele me levou pra procurar sei lá que planta em um pasto e a
gente teve que fugir de um touro! Eu lembro dele me carregando por cima do
ombro como se eu fosse, sei lá, um saco de cimento! — Luísa diz com uma
gargalhada que é compartilhada por Lara. — A mamãe ficou uns três dias
sem falar com ele.
— Falei.
— E?
— É que… — ela faz uma pausa para soltar um suspiro —, eu conheço ele,
Lu. No começo é sempre esse oba-oba, leva os filhos no parque, compra
presente, passa tempo com eles, se preocupa com a saúde e bem-estar. Tudo
digno do título de pai do ano. Mas logo ele se cansa das obrigações e larga os
dois com os avós.
— Você sabe que eu não gosto e nem confio nele, mas acho que você não
deveria se preocupar antes da hora.
— Não é questão de me preocupar, é só que, sei lá, hoje senti que cheguei
mais perto de entender o que é coparentalidade tendo que dividir as decisões
do grupo com a Betina do que tendo dois filhos com o Felipe. Tipo, eu sei
que não posso deixar ele responsável por nenhuma decisão importante, ele é
quase uma babá de luxo, só serve para ajudar com aquilo que eu mando… só
que uma babá teria mais capacidade e conhecimento.
— Quanto a isso, infelizmente, é tarde demais pra trocar o pai dos seus filhos.
Mas, sei lá, enquanto ele tá na fase do oba-oba, como você chamou, você
poderia aproveitar pra pensar um pouco em você, não acha?
— Como assim?
— Às vezes parece que você é só mãe, mais nada. E eu entendo que você
sinta a obrigação de tomar todas as decisões sozinhas e tals, mas, sei lá, você
não é só mãe! — Luísa diz, brincando com a tampinha da lata de Coca-Cola.
— E acho que você tá assim, meio perdida, porque aqui você tem que ser
outras coisas, mas no momento só sabe ser mãe.
Lara fica em silêncio por um momento, sua expressão mais séria que há
alguns minutos. Luísa mantém o tom gentil e continua:
— Acho que tô mesmo — Luísa concorda com uma risada, que Lara retribui,
embora meio contrariada.
CAPÍTULO 10
A rotina de Helena sempre foi bastante regrada: ela acorda às 5h, come uma
fruta, escova os dentes e sai para correr. Todos os dias. Sem exceção.
Inclusive no dia do meu velório.
Nos dias de tempo limpo, ela corre no parque perto da sua casa ou na avenida
beira-mar — isso quando ela está em Florianópolis, é claro —, já nos dias de
chuva, ela corre na esteira, na academia do seu prédio.
Às cinco da manhã seu celular desperta e ela levanta sem nem considerar
colocar no modo soneca. Nunca, jamais, ela coloca o alarme no modo
soneca. “Coisa de gente frouxa e preguiçosa” ela costuma dizer.
Eu honestamente não sei como minhas filhas continuam tão bonitas com essa
rotina de sono precária que as quatro mantém. Nenhuma delas sabe o que é
dormir mais de 6 horas por noite há muitos anos.
Ela sempre foi a mais fechada das quatro, mas o mais engraçado é que apesar
disso, eu sempre soube ler Helena com uma facilidade imensa. Talvez por ela
ser a mais parecida comigo.
Eu sei que ela está irritada comigo por ter feito esta cláusula, mas ao mesmo
tempo, sei que se sente perdida e impotente, e acima de tudo, se sente traída.
Sei que ela se sente assim porque não era incomum eu e ela criarmos planos e
estratégias desse tipo para nos favorecer em acordos comerciais. Como ela
sempre foi meu braço direito, sempre esteve a par de tudo. É a primeira vez
que ela está na outra ponta do plano.
Ela corre ao som de Sweet But Psycho da Ava Max, e assim que a música
chega ao refrão, ela aperta ainda mais o passo. Corre pela trilha, desviando
dos galhos e folhas; e toda vez que sente que as emoções começam a tomar
conta dos seus pensamentos, ela acelera ainda mais.
Está correndo a quase 9km/h quando chega ao fim da trilha pelo bosque em
direção ao caminho da sede. Helena desvia do último galho de árvore que
encobre sua visão e, antes que possa raciocinar, esbarra em uma pessoa. As
duas caem no chão, rolando uma sobre a outra.
— Olha você por onde corre! É 6h da manhã, não achei que teria trânsito!
— Acho que ralei o joelho. — Ela passa a mão, tirando algumas pedrinhas
grudadas na pele e percebendo que tem um pouco de sangue.
Helena é assim, ela nunca pergunta alguma coisa, apenas comanda. Vem.
Vai. Para. Começa. Diz. Cala a boca…
Apesar de ainda ser cedo, elas passam por Bartô correndo no gramado antes
de entrarem na sede.
Mas eu já falei para você, Mila é sensitiva e percebe tudo ao seu redor.
— Eu sonhei com ela essa noite — Mila continua, tomando o silêncio de
Helena como uma confirmação. — Às vezes, eu esqueço que ela morreu.
— Eu sei que você também tá sofrendo, Lena. Pode fingir o quanto quiser
que acha tudo “natural”, mas você e eu éramos as que mais convivíamos com
ela. A gente via ela todos os dias!
— Só acho que não tem necessidade de você fingir que é a única que tem que
passar por isso. Eu também sinto a falta dela, e a Lara e a Lu também sentem.
Helena desvia o olhar para a janela e se concentra para que as lágrimas não
corram, Mila se levanta com um meio sorriso.
— Eu vou lá no píer saudar o sol — diz com sua habitual fala cadenciada que
geralmente irrita Helena. — Mas lembra que somos em quatro.
Mila sai, levando o café aguado, e deixa uma Helena pensativa para trás.
***
— Você tá com a cara horrível — Helena diz para Lara na mesa do café da
manhã.
Enquanto Lara, Mila e Helena comem frutas e queijo frescal, Luísa come pão
de queijo e cachorro-quente.
— Eu tive insônia.
— Que cara?
— Hm?
Luísa pende a cabeça para o lado, sem muita certeza de ter entendido o
ocorrido; mas antes que ela possa perguntar qualquer coisa, uma comoção
vinda da parte de fora do refeitório chama a atenção delas.
— Desce logo daí, guria — Pati pede. Seu rosto não esconde o espanto com a
cena.
Quando minhas filhas olham para cima, veem Júlia e Júlio de pé no telhado a
mais de quatro metros do chão.
O telhado tem dois tipos diferentes de inclinação, na parte em que eles estão,
a inclinação é bastante sutil porque o telhado ali serve para criar a cobertura
da varanda.
É possível ver que Júlio está fazendo alguma coisa e ela está tentando
encobrir.
— Eu vou subir lá — Chiquinho diz; então se vira para Sofia, Pati e minha
filhas: — vou pegar uma escada, vocês cuidem pra esses dois malucos não
caírem.
Chiquinho sai correndo até o depósito na sede principal para encontrar uma
escada.
Pati leva as duas mãos ao coração em apreensão e Sofia rói uma das unhas.
Júlia é pega de surpresa com o tom grave de Helena e se vira para falar com
Júlio. Todas assistem Júlia sussurrar algo no ouvido do irmão.
— Desculpa, tia!
— Eu não sou tia de vocês — ela replica; mas eu posso sentir que também
está aliviada em vê-los no chão. — E nunca mais façam isso!
— A gente ia amarrar uma corda naquele negócio ali — Júlia aponta para
uma antena instalada no telhado — e o Júlio ia se amarrar nela para quando o
Pedro olhasse pela janela, o Ju estivesse pendurado de ponta cabeça como o
Homem-Aranha.
— Pai eterno! — Pati exclama e leva a mão ao peito.
— Seria mesmo!
Chiquinho solta uma bufada, e Júlio e Júlia usam seu melhor sorriso para
tentarem escapar da bronca.
Quando percebem que não dá resultado, mudam para uma cara de cachorro
que caiu da mudança. Dessa vez parece que dá certo, porque até Helena
desiste de repreendê-los e apenas revira os olhos.
Eles são muito parecidos, a pele negra destaca os dentes brancos e o sorriso
levado; ambos têm olhos castanho-escuros, quase pretos emoldurados por
cílios enormes. Eles até usam as mesmas tranças no cabelo, a diferença é que
as da Júlia são coloridas.
— Treinarem o quê?
Já que essa simpatia de pessoa não explica, deixa que eu explico: as crianças
e adolescentes não sabem que tipo de atividades encontrarão nas etapas da
gincana, por isso “treinar” significa apenas jogar o que quiserem. Entretanto,
os que já estiveram na colônia antes sabem que sempre tem futebol de sabão,
cabo de guerra, quiz, queimada, essas coisas…
— Parece divertido — Mila diz, animada mesmo sem saber direito o que é.
— Geralmente é — Michelle responde, sem esboçar muita animação. — Mas
é isso, só temos que garantir que nenhum deles se mate.
— Suave.
— Sou.
— Então?
Mila franze a testa, mas apenas por um segundo antes de sorrir para os
campistas, que já estavam se juntando para formar os times.
— Vou colocar uma música — Mila, que ficou com o grupo do futebol, diz,
conectando seu celular à caixa de som do campo.
Ela percebe que, como esperado, a internet não funciona ali e tem que apelar
para as músicas já baixadas nas suas playlists. Sem pensar muito no caso,
coloca o álbum Armandinho Ao Vivo.
— É, pode ser — Mila responde, sentindo-se meio perdida, sem saber o que
fazer, e se senta no mesmo banco que Michelle.
— MC o quê?
— Eu não faço nem ideia de quem sejam essas pessoas — Mila diz,
desconfiada de que Michelle possa ter inventado isso agora.
Michelle apenas solta uma risada com certo deboche e diz:
— Trinta?
— Vinte e nove!
***
Michelle continua com o humor digno de fazer Helena parecer uma Miss
Simpatia, e ele só piora depois de Luísa e Sofia passarem rindo em direção ao
parquinho.
— Olha, eu nem gosto de você — Mila diz —, mas, sei lá, você deve merecer
coisa melhor do que ficar aí se humilhando.
Sei não…
— Eu não tô me humilhando.
— Bom, você que sabe — Mila diz, simplesmente. — Mas tá na cara que a
Sofia tá a fim da minha irmã.
Espera! O quê?
***
O parquinho fica atrás do refeitório, passando uma pequena trilha. Ele é todo
construído de madeira e ferro — nada de plástico —, e tem todos os
brinquedos que as crianças gostam, incluindo o mais demoníaco deles: o
trepa-trepa. Responsável por mais dentes quebrados do que eu me orgulharia
em contar — inclusive um incisivo de leite da Luísa.
Em poucos minutos ele está cheio e as duas sobem para avaliar se está firme
e seguro.
Elas dão alguns pulinhos para testar a tensão e ver se não tem nenhum grande
vazamento de ar; testam também as laterais que servem como guarda corpo
para ter certeza de que nenhuma criança que se apoiar ali vai cair.
Assim que terminam, Luísa se abaixa e passa o dedo indicador no chão, então
o esfrega no polegar, sentindo o pó acumulado entre seus dedos, ela faz um
bico de nojo.
Sofia olha para ela, que está com uma mão na cintura e com a outra mostra os
dedos empoeirados, e sorri, entendendo o recado.
Esse sorriso que Luísa acaba de dar era o exato motivo das minhas
palpitações quando ela era criança.
E quando essas duas se juntavam, era sempre uma questão de tempo até
aparecer um joelho ou cotovelo ralado, vez ou outra um dente quebrado e
assim por diante. Não se engane com esses dois rostinhos lindos e doces, elas
eram duas pestes!
Naquela época, eu sempre falava que faria qualquer coisa para que a energia
dela fosse um tiquinho menos intensa. Se eu soubesse que sentiria tanta falta
de vê-la se divertindo depois da morte do Leo, jamais teria desejado isso.
A morte dele a afetou em muitos níveis, um deles foi o medo de ter o mesmo
fim. Luísa era a maior parceira de Leo para as atividades de aventura; Lara e
Helena jamais gostaram de estar no meio do mato, e Mila, apesar de gostar de
natureza, nunca gostou de atividades radicais. Mas Luísa gostava de tudo que
Leo gostava, e todas nós sabíamos que Luísa era o xodó dele. Após a sua
morte, ela simplesmente parou de fazer todas essas coisas de que gostava, por
medo de ter o mesmo fim.
Luísa caminha até a mangueira mais próxima, e Sofia vai atrás do sabão
líquido no depósito ali perto.
Luísa corre para chutar a bola, mas no primeiro passo já escorrega e desliza
de bunda pelo brinquedo.
— Funciona! — Sofia diz para Luísa e faz um sinal de joinha com a mão.
Luísa tenta ficar de pé mais uma vez… acredite, não é tão fácil como parece,
eu tentei uma vez. Quando Luísa finalmente solta as mãos do apoio lateral,
ela sente o impacto de um corpo deslizando contra suas pernas e cai de novo,
dessa vez de costas sobre a lona, bem do lado de Sofia que ri da cara dela.
— É que na nossa época não tinha isso — Sofia se explica com um sorriso
travesso.
— Quer jogar?
Desconfio que Sofia já esteja bem acostumada com esse brinquedo, porque
demonstra bem mais equilíbrio do que Luísa para andar pela lona. Enquanto
Luísa caminha igual ao Bambi sobre o gelo, Sofia está mais para o Tambor,
tirando onda com a sua habilidade.
— Acho que eu deveria fazer mais ioga com a Mila, tenho certeza de que ela
consegue se equilibrar em qualquer lugar! — Luísa resmunga.
Luísa que adora um desafio, caminha com mais firmeza na direção da bola,
decidida a provar que é capaz de ganhar de Sofia. Faltando apenas um passo
para alcançar, ela se prepara para o chute, mas na hora que vai acertar a bola,
seu pé de apoio escorrega e ela chuta o ar em uma cena patética.
Ela cai com tanta força que faz o brinquedo tremer e desequilibra Sofia
também, mas com o balanço do brinquedo, a bola rola para perto de Sofia e,
mesmo caída, ela chuta e, mais por sorte que por técnica, a bola entra no gol.
— Não apenas sou uma ótima perdedora, como já estou perdendo! — ela diz,
como um professor de filosofia diria uma frase de efeito. — Mas o jogo não
acabou ainda, gracinha.
— Você que sabe — Sofia revida e se levanta sem muito esforço. — Mas tá
um a zero.
— Esse aí é o meu lado, ué, você faz gol na outra trave — Sofia diz com
obviedade. — Nunca jogou bola, não?
Luísa demora alguns instantes para entender o que está acontecendo. Sofia
está em cima dela e seu rosto a apenas alguns centímetros do seu, e parece tão
confusa quanto Luísa.
Embora eu não consiga saber o que ela está pensando, eu consigo ver a
memória que ela relembrou:
Ao ver Luísa, Sofia sai correndo e pula em cima dela; as duas vão para o
chão em uma recriação bem mais inocente da situação em que estão agora.
— Meu pai disse que não sabia se você viria esse ano — Sofia responde
ainda abraçada à Luísa. — Tô feliz que você veio.
— Talvez agora tenha sido pênalti mesmo — a Sofia adulta diz finalmente,
com um sorriso provocador.
Luísa leva alguns segundos para se situar novamente no presente; seus olhos
ficam presos no âmbar dos olhos de Sofia e, por um momento, nenhuma das
duas consegue se mover. Enquanto um lado do cérebro de Luísa a manda a
sair dali, o outro a mantém absolutamente paralisada.
— A gente só tava, hm, testando, pra ter certeza de que é seguro. — Luísa
responde, tentando soar o mais convincente possível.
— E é?
— Claro.
— Não pulem muito, isso não é para a idade de vocês — Betina diz com seu
tradicional tom assertivo para Sofia.
Assim que Betina se vira, Sofia esboça uma careta de medo para Luísa. Pelo
jeito, Betina assusta todo mundo.
CAPÍTULO 12
Mila passa o dia com um incomum mau humor.
Não posso culpá-la, acho que se tivesse que passar o dia todo com essa
Michelle aí, também ficaria. Contudo, tenho a impressão de que seu
desânimo não é por causa dela.
Então desliga, sem nenhum adeus formal. Simplesmente diz que vai desligar
e desliga.
Confesso que sinto falta da época em que Helena tinha um celular de flip, era
sempre muito dramático ver ela desligando a ligação depois de uma conversa
mais acalorada. Às vezes a tecnologia nos tira bons momentos.
— Ah, vai pra merda, Mila! — Helena resmunga e se vira para sair.
É até engraçado Mila perguntar isso para Helena agora. Porque ela está com o
cabelo preso em um rabo de cavalo alto que a faz parecer uns 10 anos mais
jovem, entretanto, a aparência jovial não combina muito com ela. Helena
nasceu para ser adulta.
— Não, não, calma, não tô falando de você… quer dizer, tô!, mas, na
verdade, tô falando de mim — Mila se enrola nas palavras e tenta explicar da
melhor forma: — Hoje eu percebi que a mamãe morreu…
Por que Helena tem que ser sempre assim? Parece que foi criada por um
cavalo!, não por mim e pelo Leo.
— Não foi isso que eu disse. Quis dizer, percebi que a mamãe morreu, tipo…
ela tava velha? Ela morreu do coração! Gente nova não morre do coração.
— Pff, você tá com crise de idade por causa dos pirralhos do seu grupo?
Mila apenas encara Helena com cara de cachorro sem dono.
— Olha, Mila — Helena continua —, chega uma hora que não dá mais pra
viver como se você tivesse 17 anos.
— Hm — Mila balbucia.
— Se você quer saber, é muito melhor ser adulta do que ser adolescente! —
Helena argumenta num tom um tantinho arrogante, mas como eu disse, ela
nasceu para ser adulta. — Você quer mesmo se misturar com esse monte de
fedelho que não sabe nada de nada?
— Não, não é isso. Eu só quero, sei lá, curtir a vida — Mila responde meio
cabisbaixa.
— É que às vezes eu me sinto culpada em curtir — Mila diz, e noto seu tom
mais sério. Helena também nota.
— Por quê?
— Porque a mamãe não pode mais. Sinto que é hipocrisia usar o dinheiro,
que ela passou a vida ganhando, para curtir, quando ela mal tinha tempo de
aproveitar com ela mesma.
Oh, Mila!
Helena morde o interior da bochecha, como toda vez que tem que falar desse
assunto.
— A mamãe tinha tempo, Mila — ela diz, para surpresa minha e da Mila, de
maneira suave. — Quer dizer, não quando o papai morreu, e não por vários
anos… mas no final ela tinha, e ela vivia da maneira que ela queria, você
sabe disso.
Exato!
Exato de novo!
Mila apenas encara Helena por alguns segundos antes de perguntar com certo
cuidado:
— Tá, tá… mas seja breve — ela adverte e deixa Mila se aproximar.
Por um segundo, Helena relaxa e se deixa ser abraçada pela irmã mais nova.
— Tá, agora chega — Helena diz por fim, afastando-se e respirando fundo.
***
Depois do jantar, Luísa está encostada na árvore que Júlio e Júlia escalaram
mais cedo, enquanto fuma um cigarro.
— Você tem um pra mim? — Pepa pergunta, aproximando-se dela.
— Por mim!
— A Mila?
— Você acha que as outras duas falariam comigo? — ele pergunta com uma
risada.
— Por…?
— Sei lá, ontem ficou parecendo que eu tava dando em cima de você só
porque levei um toco da sua irmã.
— E não foi?
— Não, pô! Foi porque achei você gata! Só que a Mila também é gata.
— Vamos fazer assim — Luísa diz, ainda sorrindo. — Eu vou ser sua amiga,
porque eu fui com a sua cara, mas é isso!
— Bah, tá bom, melhor que nada, vai — ele diz e dá uma tragada no cigarro.
— Você também tá a fim de outro cara?
Luísa solta um risinho de deboche e nega com a cabeça. Pepa encara ela com
divertimento no olhar.
— Eu acho que você tá mentindo — ele diz e aponta para ela de forma
acusatória. — Você tá com cara de que tá a fim de alguém.
Como é que eu nunca notei que a minha filha tem zero interesse em rapazes?
Agora olhando aqui do outro lado parece tão óbvio! Será que era óbvio
quando eu estava viva também?
— Ei, Pepa — Buba, o outro salva-vidas, chama —, nós vamos jogar futebol,
tá afim? Ah, oi, Luísa, não tinha te visto — ele diz ao notar a presença dela,
que estava escondida atrás da árvore. — Quer vir também?
— Eu já tô indo — Pepa diz para Buba, que concorda com a cabeça e sai; em
seguida, Pepa se vira para Luísa: — até qualquer hora, amiga!
Assim que se vira para pegar o caminho principal em direção a sede, esbarra
em uma pessoa.
— Óbvio!
Mila está sentada igual a um Buda com as mãos em Gyan Mudra — acho que
é assim que fala, pelo menos foi assim que ela me ensinou — no meio do
saguão com um círculo de pedras e velas ao seu redor e com um pau de
incenso queimando a sua frente.
— O que ela tá fazendo? — Sofia pergunta para Luísa com uma cara
desconfiada.
— Hmm…
Tenho a impressão de que ela ainda não notou a presença de Sofia e das
irmãs no cômodo.
— Eu acho que ela não tava falando de você… — Luísa comenta, achando
toda a cena meio bizarra.
— Não, eu joguei toda a maconha que ela tinha no lago — Lara responde
antes de Luísa.
— Mila?
Ela parece bastante concentrada na sua meditação.
— AAAH! Que caralho… — Luísa grita, e todas elas dão um pulo com o
estouro.
Deve ser a fiação desse prédio que é velha mesmo. Eu não tenho nada a ver
com isso.
Apesar da Mila estar neste transe, eu não estou tentando contato nem nada…
Se bem que agora me surgiu a dúvida: será que Mila pode mesmo sentir
minha presença?
— Alguém faz essa doida parar com isso? — Lara diz, com vergonha de
admitir que está com medo.
Ah! Já sei.
— Quando a gente era bem novo. Foi antes de ela conhecer o Leo.
MEU DEUS!
— Como você sabe disso, Mila? — Luísa pergunta com a mesma cara de
espanto de todo mundo.
MEU DEUS!
— Tá, essa história tá sinistra demais pro meu gosto, podemos, sei lá, mudar
de assunto? — Lara pergunta.
— A gente era adolescente! — ele repete. — Depois fui eu que apresentei ela
pro pai de vocês!
— Você não precisa se justificar, Chiquinho — Luísa diz, mas tem a mesma
cara de estranheza de Helena.
— Boa ideia.
CAPÍTULO 13
Luísa está na mesma rede em que viu Sofia no telefone algumas noites antes,
enquanto Sofia está sentada no chão, sobre um tapete Kilim cheio de
almofadas que formam um ambiente agradável para leitura ou apenas relaxar,
como estão fazendo. O Paçoca dorme profundamente no seu colo e ela faz
cafuné nas orelhinhas peludas.
Luísa toca alguma coisa aleatória no violão, e as duas bebem uma cerveja
longneck com certa calma.
Se eu pudesse inferir, coisa que eu não deveria fazer porque estou aqui
apenas para narrar, não opinar, eu diria que ela está assim por conta da
situação do futebol de sabão mais cedo. Mas como eu disse, não estou aqui
para opinar, então, tire você as suas próprias conclusões.
Seja como for, quando Luísa fica nervosa, ela precisa fazer alguma coisa para
se acalmar, então, ela ocupa o silêncio e as mãos tocando uma dessas
melodias flamencas que ela tanto gosta.
Cá entre nós, acho que Luísa está tentando impressionar Sofia com essa
música, porque não precisa ser nenhum especialista para perceber que o nível
de dificuldade é alto e, ao mesmo tempo, não parece ser o tipo de música que
jovens gostem de escutar ou tocar quando se reúnem.
— Por quê?
Luísa balança a rede de leve com os pés, que ainda tocam o chão.
A mãe de Sofia morreu em um acidente de carro quando ela tinha apenas seis
anos. Elas subiam a serra, a caminho do Luneta, quando um caminhão de tora
desgovernado cortou a frente delas. Sofia também estava no carro, mas como
estava no assento de elevação e usava cinto de segurança, não se machucou.
Ana, no entanto, sofreu um trauma sério na cabeça e não resistiu.
Luísa assente com a cabeça. Acredito que no caso dela seja parecido. Eu e
minhas filhas contamos muitas histórias a Luísa sobre Leo depois da sua
morte, porque ela era a mais nova e a que conviveu por menos tempo com
ele.
Eu sei que ela se sente estranhamente à vontade para falar de mim e do Leo
com Sofia. “Estranhamente” porque ela nunca falou da morte do Leo com
ninguém, nem comigo, nem com as suas irmãs. E mesmo com a sua
psicóloga, eu sei que falava apenas de maneira superficial.
Mas ela sabe que Sofia entende e, mais do que isso, está disposta a ouvir,
então ela continua:
— Depois que meu pai morreu — Luísa fala —, eu fiquei com tanto medo de
me aproximar da minha mãe e das minhas irmãs, sei lá, parecia que quanto
mais tempo eu passasse com elas, maiores as chances de acontecer alguma
coisa. E quanto mais o tempo passava, com mais medo eu ficava, aí se tornou
um ciclo vicioso, sabe? Como naquela música da Alanis Morissette… Ironic?
Tipo, se eu voltasse a me aproximar delas, alguma coisa ia acontecer, como
aquelas matérias de casos de família “mãe e filha que não se falavam há anos
voltam a se falar e a mulher morre no dia seguinte”. Mas aí quando decidi ir
para Barcelona, parecia que era longe demais. Era como se eu tivesse que ter
o balanço exato entre perto e longe para garantir que nada aconteceria! E eu
sei que isso não faz o menor sentido.
Nós não tínhamos uma relação totalmente distante, eu ligava para ela pelo
menos uma vez por semana e ela me visitava quando eu insistia bastante.
Mas nunca saíamos juntas ou trocávamos mensagens engraçadas nem nada
desse tipo. Creio que ela e as irmãs também não; eu sei que Luísa mandava
mensagens com um pouco mais de frequência para Lara para saber dos
sobrinhos, mas ainda assim, eram mensagens breves.
Luísa tenta se recompor antes que Sofia ameace tentar consolá-la. Não tem
nada que Luísa odeie mais do que se sentir vulnerável na frente de alguém.
Sofia percebe que Luísa prefere ser deixada quieta, mas eu consigo sentir seu
instinto de querer confortá-la, porque eu também quero.
— O quê? Você acha que só porque eu tenho cabelo rosa não posso ler os
clássicos russos? — Luísa pergunta com um sorriso de provocação que não
combina com seus olhos ainda tristes.
— Mas eu não li mesmo — Luísa diz e solta uma risada um pouco mais
espontânea. — Li só um capítulo e essa é, tipo, a primeira frase do livro.
Assim que Sofia solta a longneck, vira para Luísa com certo divertimento no
olhar, disposta a mudar o tom da conversa:
— Agora confessa que você só foi pra Barcelona para realizar seu sonho de
Cheetah Girls 2!
Luísa leva um segundo para entender, mas logo solta uma gargalhada.
— Totalmente!
Luísa começa a dedilhar no violão uma melodia que, se eu tivesse que chutar,
diria que é do filme. Sofia abre um sorriso.
— Nossa, eu amava esse filme — Luísa diz. — Lembra que você fez o seu
pai comprar o DVD?
— Claro! A gente faz pipoca e abre uns refrigerantes… como nos velhos
tempos!
***
Vinte minutos depois, estão as duas jogadas no sofá com uma bacia de pipoca
e outra de doces no colo.
Luna e Paçoca estão deitados aos pés de Luísa, já Bartô, o vira-lata, está
refastelado em uma poltrona só para ele.
— Meu Deus, olha essas roupas! — Luísa diz, surpresa com o figurino das
personagens.
Ela lembra do dia em que ouviu parte da conversa dos dois e tenta não ceder
ao impulso de ler a mensagem, despendendo uma atenção maior do que a
necessária para compreender um filme do Disney Channel.
Depois de responder alguma coisa, Sofia joga o celular sobre o acento livre
do sofá e também volta sua atenção ao filme.
Luísa não sabe dizer se é a casa de Chiquinho que lhe traz boas memórias, se
a nostalgia do filme a levando para uma época mais tranquila ou se é o calor
que emana de Sofia aconchegada ao seu lado… provavelmente é o conjunto
das três coisas, mas, seja como for, ela sente uma calma que há muito não
sentia.
Sem desviar os olhos do filme, Luísa leva a mão à bacia de pipoca, mas em
vez de pipoca, ela encontra a mão de Sofia.
Luísa tira a mão com rapidez, como se tivesse levado um choque, e embora
tenha durado uma fração de segundos, foi o suficiente para sentir seu coração
acelerado.
— Não, não, pode pegar. — Luísa coloca a bacia mais perto de Sofia e volta
sua atenção mais uma vez para o filme, embora não saiba exatamente o que
está acontecendo na história.
— Essa Marisol é muito sonsa — Luísa diz, mais para preencher o silêncio
estranho do que por qualquer outro motivo.
No filme, Marisol tenta separar o grupo musical ao qual Chanel faz parte para
formar uma dupla com ela.
— Hm? Ah! Pra ser sincera, eu… eu não sei. Eu acho que nunca tive um
crush que me fizesse querer ter todo esse trabalho que ela tá tendo.
Sei!
Tudo bem minha filha ser lésbica — quer dizer, eu acho que é, ela ainda não
confirmou nada — mas ser assim frouxa, incapaz de formular uma fala
coerente para a menina que claramente ela gosta, aí já é demais.
Sofia deixa escapar um sorriso; pelo menos ela parece achar bonitinho o
desconforto de Luísa.
— Já!
Luísa fica presa naquele olhar pelo que parece uma eternidade, por fim desvia
para a bacia de pipoca. Sofia limpa a garganta e acrescenta:
Ela guarda suas pedras e cristais em uma estante, quase como um altar, em
seguida, troca a música de meditação que tocava baixo em uma caixa de som,
e coloca uma playlist aleatória de verão que tinha salva; Banana Pancakes do
Jack Johnson começa a tocar e ela volta sua atenção a recepção.
— Nós ainda podemos explorar 8% do terreno, mas mesmo assim não pode
ser qualquer 8% que a gente bem entender, precisamos de um alvará para
poder construir perto dos riachos.
— Uma sala de jogos coberta com vista para a cachoeira e o riacho. — Ele
pega a planta do projeto na gaveta e entrega para ela. — Mas tem uma
sequência de exigências que temos que seguir.
— Ah! Que massa — ela diz, olhando o projeto. — Posso ver esse relatório?
— Pode, claro.
É a primeira vez que uma das minhas filhas mostra o mínimo interesse no
acampamento. Eu considero isso um bom sinal.
— Pensar eu já pensei, mas sei que a sua mãe não tinha intenção de vender e
pra ser sincero eu não tenho todo o dinheiro; a parte dela, quer dizer, de vocês
é 70%. Quando comprei a minha parte, eu tinha dinheiro de uns terrenos que
meu pai tinha me deixado. E como sempre gostei desse lugar e sempre fui
muito amigo do Leo, parecia a coisa certa a se fazer.
— Eu acho que gostaria de ter um estilo de vida assim também — ela diz,
depois de uns minutos.
CAPÍTULO 14
Luísa acorda com um barulho estranho e em um lugar que ela não consegue
identificar.
A luz fraca que vem da janela é um indicativo de que o dia já está nascendo, e
Luísa leva alguns segundos se espreguiçando antes de procurar seu celular.
Ela o encontra no tapete próximo ao sofá com várias novas notificações, já
que na noite anterior Sofia passou a senha do Wi-Fi para ela. Luísa ignora
todas e foca no horário: 5h27. Ela não se recorda de que horas pegou no sono,
mas era bem cedo, provavelmente lá pelas 23h, já que o filme nem havia
acabado ainda.
Um Chiquinho onze anos mais jovem bate na porta do quarto antes de entrar
para desejar boa noite.
Assim que Chiquinho as deixa sozinhas, Luísa sente seu peito apertando e os
olhos marejando com a lembrança do pai.
— Quando eu era pequena — diz Sofia, que ainda é pequena —, minha mãe
lia uma história pra mim antes de dormir… você quer que eu leia uma
história pra você?
Luísa faz que sim com a cabeça e se ajeita na cama para dormir, e Sofia
pega um livro de fábulas e escolhe uma das histórias. Ela se senta ao lado de
Luísa e começa a ler de forma lenta, mas constante, como uma criança
costuma fazer.
— Você quer comer alguma coisa? Eu sempre faço uma boquinha antes do
café da manhã no refeitório, porque não aguento esperar até as 8h sem comer
nada.
— Vou considerar isso um começo — ele diz e enche uma caneca de café. —
Aqui! — Entrega para Luísa que agradece. — E vocês já conversaram sobre
quem vai assumir depois?
— Não sei, mas acho que pelo menos uma de vocês vai querer — Chiquinho
diz, encostando-se na pia.
Eles ficam perdidos nos próprios pensamentos por um tempo, até que
Chiquinho quebra o silêncio:
Ela olha novamente o horário no celular, 5h52 ainda; ela sabe que seria
estranho esperar por Sofia, então não resta muita escolha.
Ela se despede de Chiquinho e decide voltar logo para a sede, mas antes,
dobra o cobertor no qual dormiu e o empilha com a manta e o travesseiro,
depois deixa a nota em cima da mesa de centro da sala e sai.
***
Não posso deixar de notar que já faz dezoito horas desde o último cigarro de
Luísa e até agora ela nem ponderou sair pra fumar.
Pequenas vitórias!
Então, Lucas termina a ligação falando que está ansioso para o fim de semana
que passarão todos juntos — ele, Alícia, Lara e Felipe — num resort em
Governador Celso Ramos.
As bochechas de Lara coram quando ela sente três pares de olhos cravados
nela depois da ligação, mas decide ignorar. O que ela faz no fim de semana
não é da conta de suas irmãs, ela pensa.
A gincana é dividida em quatro equipes, cada uma tem sua cor e são
formadas por crianças de todas as idades, ou seja, cada equipe tem que ter
integrantes de cada um dos grupos etários. Entretanto, as crianças da faixa
etária de 7 a 9 anos, por exemplo, competem apenas entre si — e o mesmo
acontece com os outros dois grupos: de 10 a 13 e de 14 a 17.
***
Quando ele por fim termina de passar as regras e declara aberta a gincana, as
crianças gritam e comemoram.
Elas se agrupam por cor de camiseta e por idade e logo os pequenos grupos
marcham para diferentes pontos do acampamento.
Helena fica responsável pela equipe azul formada por Júlio, Júlia e Pedro, e,
apesar de não se importar com as crianças, ela se importa muito em vencer,
então, ela não perde tempo e começa logo a incutir o espírito competitivo no
jovem grupo.
Depois de perder a corrida de saco porque Pedro não conseguia ficar em pé
por mais de dois pulos, Helena decide tomar atitudes mais eficientes para
vencer a segunda prova:
— Entendi, tia. — Júlia assente com a cabeça como um bom soldado faria.
Ainda bem que Helena não tem filhos, imagina a educação que ela daria a
eles!?
Júlia é a última competidora a receber, mas assim que ela os pega, Helena
aponta para o quadro e grita:
— Ei, esse placar tá errado! — ela diz com o seu tom mais sério, aquele que
arrepia até o mais durão dos investidores do Grupo Lancellotti, então lança
uma piscada pra Júlia.
Júlia não perde tempo e executa o plano com perfeição. Ela coloca apenas
uma gota da supercola na colher então encaixa o ovo por cima antes que
seque.
Contudo, assim que é dada a largada, fica claro que o crime não compensa. A
cola não é suficiente para fixar o ovo na colher como imaginado pela dupla
de contraventoras e, assim que Júlia sai em disparada, despreocupada com o
equilíbrio, o ovo cai e quebra, desclassificando a equipe.
Não tem uma única nuvem no céu e faz bastante calor, então, tudo que a
maioria quer é se jogar no lago e aproveitar! No momento, no entanto, o lago
está vazio porque é hora do almoço e ele fica fechado até às 14h. Se não
houvesse essa regra, as crianças não sairiam da água nem mesmo para comer.
Luísa aproveita o raro momento de paz para fumar perto da água, sentada na
raiz da mesma figueira que se sentou no primeiro dia. Ela estreita um pouco
os olhos por causa do brilho da luz refletida sobre a água, e eu consigo sentir
seus pensamentos cada vez mais calmos, se fixando apenas na paisagem, na
ondulação do lago, nas pedrinhas das margens, na ave que plana solitária…
nem parece que há poucas horas esse era o lugar mais frenético do
acampamento.
Essa primeira semana foi melhor do que eu esperava, e acho que até já
consigo sentir a conexão entre elas começando a ser restaurada.
Mila faz um gesto com a mão de que aquele detalhe não é importante, e
pergunta:
— Eu era líbero, Camila! A Michelle é uma girafa! Essa desgraça deve ter
mais de 1,80!
— E daí?
— Por favor, Lu!!! — Mila suplica mais uma vez, fazendo sua melhor
carinha de cachorro sem dono.
— Tá, tá.
— A Sofia.
Eu não queria apostar contra as minhas filhas, mas acho que estão mesmo!
Baseado no quanto Sofia é competitiva e no fato dela ser dois centímetros
mais alta do que a Mila, acho que posso começar a pedir por uma intervenção
do lado de cá para o time Lancellotti.
***
Antes de irem para o jogo, Mila insiste em que passem na sede para colocar
um biquíni.
— Vou aproveitar para tentar salvar meu bronzeado — ela diz. — Não posso
passar o verão todo com marca de camiseta no braço!
Luísa resolve trocar o uniforme também, mas o biquíni que escolhe é todo
liso verde oliva, e, diferente de Mila, Luísa veste um shortinho de corrida por
cima, porque não se sente muito à vontade para ficar correndo e pulando
apenas de biquíni.
Treinando!
Mas confesso que nunca vi Mila tão determinada a provar alguma coisa como
agora; ela está com a confiança tão alta que talvez tenham mesmo alguma
chance.
Luísa sente certa dificuldade de desviar o olhar; não é culpa dela que Sofia
esteja tão bonita. Luísa sente as suas bochechas corarem quando Sofia a
flagra encarando e lança uma piscada.
— Tá, vamos começar isso logo. Dois sets de quinze pontos, se por um
milagre vocês conseguirem ganhar um dos dois, terá um tie-break de dez
pontos!
— Gracinha você — Luísa diz com sarcasmo, em troca ela recebe um olhar
atravessado de Michelle.
— Tá, vamos tirar no par ou ímpar para ver quem começa — Mila sugere.
— Eu prometo pegar leve com você — Sofia sussurra para Luísa enquanto
Mila e Michelle decidem quem começa; em seguida, ela lança um sorriso
travesso.
— É guerra, fia!
— Nesse caso, sem pegar leve! — Sofia sorri ainda mais e lança outra
piscada.
— Bom, então a bola é nossa — Mila diz, pegando a bola que estava sob o
braço de Michelle, apoiada em seu quadril. — Vem, Lu!
Mila e Luísa caminham até o lado da quadra virado para oeste e Michelle e
Sofia para o lado virado para leste.
— Você não devia estar cuidando para as crianças não se afogarem no lago?
— Fica e apita direito! — Luísa intervém antes que Michelle possa falar mais
alguma coisa.
Na queda, Luísa pisa em falso e cai sentada na areia, Mila xinga alguma coisa
e Pepa apita, apontando a mão para o lado de Sofia e Michelle da quadra,
indicando o ponto delas.
Michelle vibra com tamanha empolgação que você poderia acreditar que elas
ganharam o ouro olímpico. Em seguida, ela corre e pula para abraçar Sofia,
que não tem muita escolha senão segurar a moça. Ela dá uns tapinhas
camaradas nas costas de Michelle e a solta.
Mila estende a mão para Luísa cumprimentar, ela se levanta e bate com força
na mão da irmã, demonstrando que agora está 100% no jogo.
***
A arquibancada está lotada e tem pelo menos umas trinta crianças e uns dez
monitores assistindo à partida. Algumas crianças estão assistindo da grama
no outro lado do campo, e um grupo de adolescentes fez uma espécie de
piquenique com refrigerantes e pacotes de salgadinhos espalhados pelo
gramado.
Elas assistem à Sofia atacar uma bola com força em cima do bloqueio de
Mila; a bola resvala nos dedos dela e voa para perto da arquibancada.
Michelle já está comemorando o ponto quando Luísa sai correndo na direção
da bola e se joga, dando um carrinho e pegando a bola com o pé. Ela
consegue chutar para perto da rede, então, mesmo sendo uma bola de
segunda, Mila aproveita e salta para atacar. A bola bate no bloqueio de Sofia
e cai nos pés de Michelle, que não consegue fazer a cobertura a tempo.
O apito de Pepa dando ponto para Mila e Luísa é encoberto por uma gritaria
sem fim das pessoas comemorando a defesa de Luísa, que cá entre nós, foi
bem mais sorte do que habilidade, mas isso não importa.
— Boa! — Mila exclama para a irmã, que corre e pula na sua cintura.
Sofia aplaude o lance com um sorriso, e Michelle joga a bola com força no
chão antes de soltar uma bufada.
— Vamo, porra! — Luísa grita depois de soltar Mila e bater com força nas
suas duas mãos erguidas.
— Espera aí, vocês dois — ela diz, fazendo-os parar. — O que vocês estão
aprontando agora?
— Eu já disse que não sou tia de vocês — ela diz e espicha os olhos para o
dinheiro na mão dela. — E esse dinheiro aí?
Helena estende a mão, com sua expressão séria que não permite ser
contrariada. Júlia suspira e mostra para ela.
— Claro que posso — ela responde. — Eles viram uma oportunidade e estão
aproveitando, não tem nada de errado nisso. Eu acho que eles têm um
excelente faro para os negócios.
— Dá onde que você tem cem reais assim à mão? — Lara pergunta,
desconfiada.
— Pra quê?
— Pra subornar algum monitor a fazer o seu trabalho, né? — Lara diz em um
sussurro entredentes para que os gêmeos não escutem.
— Pai eterno!
Lara apenas leva as mãos aos olhos e Pati assiste tudo um pouco horrorizada.
Quando Helena termina de negociar com os dois, o placar já está 10x5 para
Michelle e Sofia.
— Você vai ter que torcer por uma virada e tanto — Lara diz depois de
Helena pagar o casal de gêmeos.
***
Assim que o valor final do prêmio cai nos ouvidos das crianças, o número de
apostas dobra para o segundo set. Helena repete a aposta inicial e o resultado,
elevando mais uma vez a premiação.
— A gente tem que sacar mais na Michelle — Luísa diz — ela recepciona
mal e acho que é mais fácil de bloquear também, porque sempre ataca na
diagonal curta.
Por que minhas filhas têm que ser assim competitivas? Cadê todos aqueles
ensinamentos zen que a Mila estudou?
Luísa concorda enquanto termina de virar uma garrafinha de água. Assim que
joga a garrafa no lixo, vira-se para Mila e diz:
— Bora empatar esse jogo! — Mila se levanta e estende as duas mãos para
Luísa bater.
Com o prêmio da aposta em valor recorde, o clima para o segundo set fica
ainda mais animado, com a torcida fervorosa torcendo pelas suas apostas.
Pelo jeito elas também discutiram estratégias no intervalo, porque Mila tem
muito mais dificuldade do que Luísa para recepcionar.
Como combinado, Mila saca em Michelle, que recepciona mal, mas Sofia
corre e consegue salvar a bola, levantando de manchete. Michelle salta e,
como esperado, ataca forte na diagonal curta e em cima de Luísa.
A bola cai com força no pé dela que não consegue sair da rota da bola a
tempo para ter ângulo para recepcionar.
— Essa filha da puta tá tentando me dar uma medalha! — Luísa reclama para
Mila enquanto Michelle e Sofia comemoram o ponto.
— Calma — Mila diz, mas sei que ela também notou que o ataque foi
proposital. — A gente vai levar esse set.
E ao que tudo indica é isso mesmo que vai acontecer. Mila e Luísa abriram
quatro pontos de vantagem logo no começo do set e conseguem administrar.
Luísa saca balanceado em Michelle, que tem que se deslocar para frente para
recepcionar. Por conta disso, Sofia tem dificuldade para levantar e coloca a
bola muito afastada da rede, e Michelle é obrigada a passar para o outro lado
de manchete.
Luísa recepciona, Mila levanta na entrada de rede, mas a bola fica muito
longa pra Luísa e ela apela para uma largadinha.
Sofia salta sem bloqueio porque nem Mila, nem Luísa conseguem chegar a
tempo na rede, ela ataca com força, e Luísa recepciona de manchete, caindo
de bunda no chão no processo, a bola espirra no braço dela e volta por cima
da rede. Michelle não desperdiça a oportunidade e devolve a bola de xeque
com força em cima de Luísa.
Como ela está sentada no chão, não consegue sair da frente a tempo e a bola
acerta seu rosto em cheio, fazendo-a cair de costas.
A torcida toda se manifesta. Alguns vaiando por notar que Michelle mirou
em Luísa de propósito, outros com caretas de dor pelo golpe.
Mila e Sofia correm para socorrer Luísa, que está com a mão no rosto; assim
que ela tira a mão, as duas veem que tem bastante sangue.
Quando Michelle nota que Luísa está sangrando, ela também se aproxima da
minha filha para se desculpar.
— Foi mal? — Mila vira para ela com um vinco na testa. — Você fez de
propósito.
Michelle responde alguma coisa, mas Luísa não presta atenção, porque Sofia
se ajoelha na frente dela para ver o machucado.
— Você precisa lavar isso! — ela diz e estende uma das mãos para Luísa se
levantar. — Vem! Eu vou com você!
— Acho que sim — ela diz, ainda com a mão no nariz, tentando estancar o
sangue.
Ela tira a mão para Lara “examinar” como faria com Alícia ou Lucas.
— Você vai ter que tirar esse piercing — ela diz. — Acho que a bola pegou
nele, por isso está cortado.
— Sim, eu vou levar ela na enfermaria — Sofia repete e pega a mão de Luísa.
— Vamos.
O tom frio da sua voz faz até Michelle tremer na base por uma fração de
segundos.
— Eu não quero jogar com ela — responde, apontando com a cabeça para
Michelle, como se ela não estivesse ali ouvindo. Michelle revira os olhos —
E eu acabei de fazer as unhas. — Ela mostra a mão com as unhas pintadas de
turquesa claro.
— Ah, ah! — Mila exclama, segurando Michelle pelo braço. — O jogo não
acabou, amada — ela repete as palavras de Michelle.
Assim que Pati se aproxima, Helena pergunta se ela sabe jogar e a moça
assente com a cabeça, talvez por puro medo de dizer não para Helena.
Para a alegria da plateia, o jogo recomeça e já no primeiro side-out Helena
lança uma bolada no peito de Michelle, que não consegue sair da rota da bola
a tempo.
***
Luísa para e tira o papel-toalha, ela eleva a cabeça para que Sofia possa ver o
ferimento. Sofia leva as duas mãos às bochechas de Luísa guiando seu rosto
um pouco mais para cima e se aproxima para checar.
— Eu acho que o sangue tá vindo todo do piercing mesmo, acho que cortou o
septo — ela diz, ainda perto do rosto de Luísa —, mas parece que é só isso.
Luísa mantém a posição, sem saber direito o que fazer, já que Sofia ainda está
com as duas mãos nas bochechas dela e Luísa não consegue evitar encarar os
olhos âmbar de Sofia.
— Mas você tá com a cara cheia de areia — Sofia diz com um meio sorriso.
O olhar de Luísa desce dos olhos para os lábios de Sofia e ela sente sua boca
seca.
— Acho que o time Lancellotti venceu — Luísa diz com um sorrisinho para
Sofia.
— Ah! Tudo bem! — Sofia retribui o sorriso. — Eu acho que já era previsto,
né, vide a cara que a Helena estava. Superprotetora ela, hein?
— Todas na verdade, mas a Helena chegou com uma cara de que queria
matar a Michelle… se bem que é compreensível.
Luísa fica surpresa com a ideia de que Helena esteja querendo se vingar por
ela.
— Mas é claro que era pra fugir da Helena! — ela responde com convicção,
mas o sorriso é a resposta que Luísa precisa. — Eu não tenho vergonha de
admitir que tenho medo dela.
— Mas… — Sofia diz e pega Luísa pelo pulso — por mais que eu fosse
adorar ver a Helena se vingando da Michelle, a gente tem que limpar esse
rostinho lindo. Vem.
***
— Tia, você ganhou o bolão — Júlio diz se aproximando dela, que está em
uma cadeira de praia sob um guarda-sol tomando água, durante o intervalo.
— Esse é o seu prêmio.
Helena encara o grande bolo de notas baixas e então olha de novo para o
menino que tem um sorriso contente por ter sido ela a vencedora.
***
Quando Luísa e Sofia chegam à sede, Luísa vai direto para o banheiro, e
Sofia, até o balcão da recepção pegar o kit de primeiros socorros.
Luísa observa o estrago no seu nariz pelo espelho do banheiro. Ela tira o
piercing e percebe que o impacto da bola na joia fez com que a pele rasgasse.
Primeiro ela lava o próprio piercing para tirar o sangue e o coloca na bancada
da pia, em seguida, lava bem o nariz. A essa altura o sangramento já parou e
resta apenas o ferimento, ela percebe que na verdade doeu mais do que de
fato machucou.
Depois do ritual completo, ela volta ao saguão da sede, onde Sofia já está
sentada sobre a mesa de centro de madeira com o kit do seu lado à espera
dela. Luísa abre um sorriso com a cena, ela sabe que não é para tanto, mas
Sofia sempre foi assim. Desde criança ela tem essa característica de ser
excessivamente protetora. Era assim com o João Vitor, o seu irmão mais
novo, e com Luísa também quando ela passava as férias ali.
— Bom, pelo menos minha mãe estaria feliz — Luísa diz, caminhando até
Sofia. — Ela odiava meu piercing!
Essa parte é verdade, sempre falava para ela tirar, mas também não precisava
ser com uma bolada na cara.
Luísa faz uma careta com o comentário enquanto Sofia se aproxima dela.
Luísa está sentada e Sofia de pé na sua frente, e minha filha até tenta, mas
não consegue evitar dar uma olhada de cima a baixo em Sofia, que ainda está
de biquíni.
— Eu só subi porque você falou que adorava goiaba, eu tava tentando pegar
uma pra você.
— Bom, aí a culpa não é minha que eles não passavam pesticida nas árvores
… e o que vale é a intenção! — Luísa se defende.
Eu lembro desse dia, Luísa tinha 8 anos nessa época, foi no segundo verão
dela no Luneta. Nesse ano, essas duas aprontaram mais do que eu teria tempo
para contar. Foi no mesmo ano que Luísa quebrou um dente no trepa-trepa.
Mila não perde tempo e logo estica uma canga sobre as tábuas e se deita de
bruços para bronzear a parte de trás do corpo. Luísa se senta na borda, e
como esse deck é mais baixo que o principal, é possível colocar os pés na
água, ela solta um gemido de prazer ao afundar os pés; Helena senta ao lado
dela e faz o mesmo. Lara também se senta ao lado de Helena, mas ao
contrário das outras duas, encolhe as pernas junto ao peito.
— Não sei que bicho te mordeu, Mila — diz Helena. — Eu nunca tinha te
visto tão competitiva antes.
— Tá brincando que você não sabe? — Mila diz por debaixo do chapéu de
palha que ela usa para proteger o rosto do sol.
— Espera, o quê? — Luísa se vira com tanta força que quase se desequilibra
e cai do píer. — Mas a Sofia tem namorado!
Mila franze a testa, como se aquela informação não fechasse com o seu
dossiê pessoal sobre o caso.
— Hm, quase…
— Bom, então melhor você checar as suas fontes, Lu, porque ou ela tá
solteira, ou o namorado dela tá prestes a ser corno.
Luísa sente suas bochechas corando com a conversa e evita olhar para Helena
e Lara, com medo do seu julgamento.
— Pra ele ser corno, a Sofia teria que de fato trair ele — Helena diz de
maneira objetiva. — Lu, ele está prestes a ser corno?
— Porque ao que tudo indica, a traição seria com você… — Lara intervém.
— Ih, fia — Mila diz —, mas isso aí é crush antigo, não nasceu há quatro
dias não!
— Eu só tô dizendo, que por mais inocente que fosse, você já tinha um crush
na Sofia quando era criança!
Luísa franze a testa, como se estivesse se dando conta disso agora mesmo.
— Sim — ela confirma —, eu sou lésbica. Pra ser sincera, eu achei que fosse
óbvio.
Das três, a que Luísa mais teme o julgamento é Lara, que sempre foi a mais
careta das quatro e sempre teve o modelo de vida mais “tradicional”, por
assim dizer.
E é nela que três pares de olhos cravam dessa vez. Lara percebe que as três
esperam uma reação.
— O que vocês estão me olhando? — ela pergunta. — Não fui eu que saí do
armário! — Ela se vira para Luísa. — Eu tenho que te dar parabéns? — ela
pergunta, verdadeiramente confusa.
— Eu posso até ser careta, Luísa, mas não escrota, nem homofóbica! Eu fico
feliz por você ter contado pra gente.
Todos nós fazemos muitos julgamentos baseados no estilo de vida uns dos
outros. Mas tudo que importa é que a Lara é uma boa pessoa! E boas pessoas
aceitam outras pessoas como elas são, simples assim.
E eu gostaria muito que Luísa tivesse entendido isso sobre mim também
enquanto eu estava viva e tivesse se sentido segura para me contar.
— Vocês seriam um casal tão fofinho — Mila diz sobre Luísa e Sofia.
— Pra isso a Luísa tem que ser mais rápida que aquela piranha da Michelle
— Helena diz.
— É verdade — Lara concorda. — Pela bolada que ela te deu, ela deve gostar
muito da Sofia.
— Nada, só espero que ela não pense que fui eu que pedi pra você perguntar
essas coisas — Luísa diz e se vira para Lara, louca para mudar de assunto. —
E que horas você vai?
— Às cinco em ponto. Não pretendo ficar aqui nem um minuto a mais do que
sou obrigada — Lara responde com um suspiro. — Essa foi a semana mais
longa da minha vida.
— É porque você é a mais parecida com o papai nesse sentido — Lara diz. —
A que mais gosta de natureza.
— Por falar em voltar, você vai mesmo pra esse “programa em família” com
o Felipe naquele resort que as crianças falaram? — Helena questiona.
— Claro que sim, os dois não falam de outra coisa, não quero frustrar os
planos deles.
— Você tá fazendo suposições — ela diz —, a verdade é que você nunca foi
com a cara do Felipe. Aliás, vocês.
— E outra, eu não fico fazendo suposições, porque tenho mais o que fazer
da minha vida. Só tô repassando o que a Mila me disse.
Lara vira rapidamente para Mila, que esconde o rosto por entre a aba do
chapéu.
— O que a Mila disse? — Lara pergunta para Helena, mas olhando fixamente
para Mila.
— Quê?
— Porque ela achou que você ia preferir não saber — Luísa intervém.
— Pelo amor de Deus, Lara — Helena diz. — Todo mundo sabe! Vê se cria
vergonha nessa cara e assina esse divórcio de uma vez e para de fazer papel
de otária!
— Helena, chega! — Luísa tenta intervir.
— Chega nada! Tá na hora dela ouvir essas coisas, todo mundo sabe que ela
era corna também, inclusive ela, agora fica aí fingindo que tá surpres…
TCHIBUM!
Lara se volta para Mila e lança um olhar que varia entre ferido e zangado:
— Valeu, Mila.
— Será que ela volta depois disso? — Mila pergunta para Luísa que apenas
encolhe os ombros também em dúvida.
Helena apenas lança um olhar fuzilante para Luísa e sai para tomar um
banho.
— Acho que também preciso dar um tempo desse lugar — Luísa diz,
pensando no seu próprio dilema. — Tá a fim de ir naquela festa com o Pepa,
hoje à noite?
— É.
***
Depois de checar alguns e-mails, Elvira se enrosca na sua perna, mas ela está
tão focada que nem se importa. Helena abre mais um e-mail daquele
advogado que eu não conheço e, em questão de segundos, está pegando o
telefone ao lado do computador de Chiquinho para ligar para ele.
Luísa, que sempre foi a mais rápida da família para se arrumar, já está pronta
para a festa e caminha até o saguão para esperar por Mila. Assim que ela pisa
ali, escuta Helena conversando com o tal advogado com certa irritação:
— Não sei, é possível que ela nem volte — ela fala e aguarda uns segundos
—, pois é, esse é mais um motivo. — Outro segundo de silêncio, então
Helena responde irritada: — e o que você está esperando? Resolve isso logo!
Vai adiantando os papéis e me liga quando tiver notícias.
— Tava faz um tempo já — Luísa diz, casual — E com quem você tava
falando com esse bom humor todo?
— Se ele resolver o meu problema pago até a lua de mel dele — Helena diz,
mais para si do que para Luísa. — E aonde você vai assim arrumada?
Luísa está usando um vestidinho preto com uma camisa xadrez amarrada na
cintura e um coturno que já viu dias melhores.
— Eu e a Mila vamos numa festa com o Pepa, numa cidade aqui perto. Quer
ir também?
— Deus me livre — Helena diz com horror. — Não esqueçam que só a Lara
tá dispensada, nós temos que trabalhar amanhã de manhã!
Para que a Lara pudesse ver os filhos nos fins de semana, ela organizou com
Armando que faria as horas de sábado ao longo da semana, então Lara tem
uma hora a menos de almoço que as irmãs durante a semana e não trabalha
sábado. Por mim, o importante é que estejam levando a sério.
— Bora! — Luísa diz, mas antes de sair, ela se vira de novo para Helena. —
Boa noite, Lena, e boa sorte aí com o seu problema!
Mas agora, no entanto, ela está estranhando a sensação. Eu sei que ela está
falando para si mesma que se sente assim porque está no Luneta e não no seu
luxuoso apartamento na Beira Mar Norte. Mas, como eu já disse, de todas,
Helena é que eu sempre consegui ler melhor e sei que está assim porque se
acostumou com a presença das irmãs nas suas noites.
Desde o primeiro dia, ela reclamou que a sede era muito cheia, muito
barulhenta, muito movimentada, e que era sadismo meu colocá-las para
dividir um único banheiro. Mas agora que está vazio e silencioso, ela sente
falta daquelas que preenchem, até demais na opinião dela, esse silêncio.
CAPÍTULO 17
Os primeiros raios de sol já iluminam o lago e boa parte dos monitores já está
acordado quando Luísa, Mila e Pepa chegam da tal festa. Mila nem precisa
ver que o píer em que geralmente saúda o sol já está cheio de crianças para se
arrepender do rolê, sua cabeça pesada e o embrulho constante no estômago já
fazem isso por ela.
A verdade é que Mila não é grande fã desse tipo de festa, ela gosta de luaus,
shows acústicos, barzinhos pé na areia, esse tipo de coisa. Essas festas cheias
de luzes e sintéticos não combinam com ela e não a deixam bem.
Quando Pepa pega o caminho oposto ao da sede, que leva ao alojamento dos
monitores, ele cruza com Sofia que está indo na direção do refeitório.
Helena, que está indo tomar café, encontra com todas ali no lado de fora, na
frente do refeitório.
— Lógico! — Luísa responde com uma animação que certamente não vem
de meios naturais.
— Você vai sair hoje de novo? — Sofia pergunta, com a expressão um pouco
mais séria que o normal. — Eu ia te convidar pra fazer uma trilha e acampar.
— Ah… — Luísa fica sem reação por alguns segundos. Seu cérebro tentando
recalcular rota, mas antes que ela consiga elaborar alguma resposta, Sofia se
apressa em completar:
— Mas tudo bem, a gente, hm, marca outro dia, sei lá — diz e depois segue
para o refeitório.
— Olha quem fala — Mila provoca, depois vira para Luísa. — Você vai
mesmo na festa hoje?
— O que você não tem mais é idade — Helena alfineta. — Tô indo tomar
café, vocês vêm?
***
O dia começa penoso para Mila… e pior ainda para Michelle que tem que
aguentar o mau humor e a letargia dela. Não que Michelle estaria de bom
humor se não fosse a Mila, porque desde que Sofia abandonou o jogo de
vôlei para ajudar Luísa, o humor dela foi de mal a pior.
Os adolescentes devem ter notado a energia ruim que elas estavam emanando
e foram espertos o suficiente para ficar na deles nesse sábado. Ou talvez seja
apenas porque ainda é cedo e eles também estão com sono.
Seja como for, pelo menos para os adolescentes, a manhã deve melhorar
logo, já que hoje a atividade de recreação deles é o Banana Boat.
Como Sofia é a única recreadora com carta para pilotar a lancha, e ela e Luísa
são uma dupla, Luísa se vê mais uma vez obrigada a encarar a Banana. Nessa
manhã, Pepa é o salva-vidas no píer central.
— Como vocês podem estar assim dispostos? — Mila pergunta para Luísa e
Pepa que estão prendendo a Banana Boat no encaixe da lancha.
Assim como Mila e Michelle, Sofia também não parece com o melhor dos
humores, está com um vinco na testa e respondendo apenas aquilo que é
perguntado. Claro que ela continua sendo gentil e educada, principalmente
com as crianças, mas parece incomodada.
— Vocês vêm comigo — Pepa diz aos adolescentes assim que todos chegam.
Ele os leva para uma tenda montada ao lado do píer com todos os materiais
náuticos, para escolherem os coletes de acordo com o tamanho.
Zeca passa pelo grupo com algumas tábuas para consertar o píer mais ao
norte que está com uma madeira quebrada, e Paçoca o segue entusiasmado.
— Só podemos levar quatro de cada vez por causa do peso — Sofia explica
para as duas monitoras no píer. — Então pelo menos uma de vocês tem que
ficar aqui com o resto do grupo, mas a outra pode ir com a gente na lancha, se
quiser.
— Deus me livre ir nessa lancha — Mila diz, fazendo uma careta e levando a
mão ao estômago. — Eu fico aqui.
— É claro que você vai! — Luísa resmunga, usando todo o autocontrole para
não revirar os olhos.
***
Apesar de ter menos trabalho, acredito que Luísa preferisse ter mais o que
fazer, pelo menos o tempo passaria mais rápido e ela não precisaria ficar
ouvindo Michelle, que está no assento ao lado de Sofia, enumerar todas as
coisas que as duas já fizeram juntas.
— Lembra no fim do ano passado — Michelle diz para Sofia —, que a gente
estava naquela festa e dois caras nos desafiaram para uma partida de sinuca?
— Acho que a garrafa está lá em casa ainda — Sofia diz, fazendo uma leve
curva à direita se encaminhando para o local do tombo do Banana Boat.
Do banco de trás, Luísa solta uma risada, e Michelle lança um olhar mortífero
para ela.
Sem avisar ninguém, Sofia faz a curva fechada para que a Banana vire e tanto
Luísa, quanto Michelle tem que se segurar às pressas para não caírem
também.
***
Creio que até Helena sente pena de Mila na hora do almoço e se abstém de
falar qualquer coisa. Ela parece que vai dormir sobre o prato de feijão, arroz e
falafel a qualquer momento.
Luísa, apesar de não demonstrar, também está cansada. Ela pode até fingir
que essa rotina de pouco sono que ela mantém não a afeta, mas tem horas que
a sua energia simplesmente acaba. E acreditem em mim, é algo que só piora
com a idade, quanto mais velha você fica, mais importante é uma boa noite
de sono.
Depois do almoço, Mila não faz nenhuma cerimônia e segue direto para seu
quarto, ansiosa por uma tarde de sono. Luísa por outro lado, odeia dormir de
dia, então fica vagando de um cômodo para outro na sede sem saber o que
fazer.
Ela está se sentindo culpada e arrependida por ter aceitado ir à festa de hoje
com Pepa. Racionalmente ela sabe que não tem motivo para se sentir dessa
forma, afinal ela não sabia que Sofia iria convidá-la para outra coisa, ainda
assim, sente seu coração pesado.
A ideia de fazer a tal trilha com Sofia ocupa sua mente até que o cansaço, por
fim, a atinge e ela pega no sono no sofá do saguão.
***
Ela caminha até próximo a cachoeira, então analisa o terreno que permeia o
riacho até o local em que ele desemboca no lago. Ela tira algumas fotos com
o celular do lago e das redondezas. Sua expressão é séria durante todo o
processo. Por fim, ela tira várias fotos de diversos ângulos da sede.
Gostaria de saber para que ela quer essas fotos, mas coisa boa não deve ser!
***
Luísa acorda algumas horas mais tarde, sentindo-se decidida. Ela toma um
banho, veste um shorts jeans e uma camiseta de estampa retrô e sai em busca
de Sofia.
O único problema é que ela não sabe onde Sofia está. Ela procura pelo
Luneta inteiro, começando pela casa dela, e já está quase aceitando que Sofia
foi sem ela quando a avista no mesmo píer em que Luísa estava com as irmãs
ontem, aquele em que Lara jogou Helena na água.
— Pensei que você fosse sair com o Pepa — Sofia responde assim que Luísa
se senta ao seu lado.
— É uma trilha pro lado norte, pra ver as estrelas. Hoje é lua nova e a
previsão é de tempo limpo, então vai estar perfeito.
Luísa sente um aperto no peito, o mesmo que sente toda vez que alguma
coisa a faz lembrar do Leo, mas ela segue em frente.
— Ah, a Lara tava falando disso esses dias. Ela me lembrou de que nós
fizemos essa trilha, eu, você, ela e os nossos pais, você lembra?
— Não muito, quer dizer, eu lembro de você me convencendo a ir, mas não
lembro de muita coisa.
— Bem… é!
Acredite se quiser, mas ver Luísa sorrindo assim em uma conversa sobre o
Leo é algo que cheguei a pensar que nunca aconteceria.
Mas o luto é mesmo algo complicado. Luísa evitou voltar para o Luneta a
todo custo por conta do acidente, e é irônico que, justamente aqui, ela esteja
conseguindo elaborar os sentimentos. E ela está conseguindo, parte porque
finalmente está falando sobre o assunto, e isso, sem dúvida, é mérito de Sofia,
e parte porque está enfrentando aquele que ela julgou ser o vilão desde o
começo.
— Hm, lá pelas 18h eu acho, é melhor fazer a trilha de dia, até porque a gente
precisa montar a barraca, então, melhor ter luz.
— Não esquece do repelente! — ela diz antes de virar à direita para cortar
caminho até a sua casa.
CAPÍTULO 18
Luísa está arrumando uma mochila com um par de pijamas e um kit de
higiene pessoal em seu quarto com a porta aberta, quando vê Mila passar pelo
corredor.
Mila dá uma olhada curiosa para a mochila que Luísa está montando.
— Onde você pensa que vai? — Mila pergunta com um sorriso sabido. —
Espera, você não tá pensando em fugir não, né? Já basta a gente não saber se
a Lara vai voltar.
— Não, não — Luísa responde. — Eu vou fazer aquela trilha com a Sofia.
— Hmmm.
— Tenho, tenho! — Mila rola os olhos para a impaciência da irmã e sai para
buscar.
Luísa nunca gostou de ninguém se metendo muito na sua vida. Na sua vida
amorosa então, Deus o livre!
Ela sabe que Mila acha que entende o que está acontecendo, mas ela não
entende. Luísa nem cogita essa possibilidade, ela sabe que nunca foi uma boa
namorada-barra-ficante — seja lá como os jovens chamam — e jamais
desperdiçaria a amizade recém-recuperada com Sofia para correr o risco de
ela detestar Luísa depois de algumas semanas juntas.
Espero que Sofia leve alguma comida de verdade e água, senão essa menina
vai passar fome.
O mais importante, entretanto, é que eu sei que o último maço de cigarro dela
acabou ontem na festa e ela esqueceu de comprar outro e até agora não
reclamou disso.
Sofia usa uma botina de trilha, calça cargo justa e uma camiseta básica
branca, já Luísa está com um coturno de couro — que definitivamente não é
de trilha —, calça jeans preta toda puída que desconfio que ela já comprou
nesse estado, e uma camiseta de banda com uma camisa xadrez por cima.
***
— Você já fez essa trilha muitas vezes? — Luísa pergunta, depois de estarem
caminhando por alguns minutos.
— Claro que sei — Sofia responde, rindo. — Mas é uma trilha um pouquinho
difícil, ainda mais a noite, eu fiz com meu pai e meu irmão umas duas vezes.
Mas sempre na lua cheia, e não é a mesma coisa. Quer dizer, pra fazer a trilha
é bom, mas não é a lua certa pra observação.
Sofia tem absoluta razão, essa observação tem que ser feita em uma noite
como a de hoje, de lua nova, sem nenhuma nuvem no céu e bem longe da
poluição. Assim, nem o brilho da lua, nem a precipitação atrapalham a visão
e é possível ver a via Láctea e quase o dobro de constelações que se veria na
cidade.
— É que, hm, no primeiro dia aqui eu tava caminhando pelo terreno e ouvi
você falando com esse Edu, eu não tava tentando escutar, nem nada, eu juro,
mas o som se propaga bastante por aqui, sei lá… — Luísa fala rápido e sem
respirar —, enfim, achei que ele era o seu namorado.
— Ah…
Luísa se vira para Sofia como um cachorro se vira para o dono ao ouvir a
palavra “passeio”. Acho que, por alguma razão, ela não acreditou muito na
teoria de Mila de que Sofia pudesse gostar de meninas também. Ela estuda a
expressão de Sofia e percebe que ela está apreensiva, então resolve consertar.
— Então com alguma namorada? … a trilha eu quero dizer. Tipo, você já fez
a trilha com alguma namorada — Luísa se embola toda na pergunta. — Se
você falar que trouxe a Michelle eu volto agora mesmo — Brinca, mas sei
que é o jeito dela de averiguar o que aconteceu entre as duas.
Sofia deixa escapar uma risadinha do comentário, apesar de não ser do seu
feitio ser maldosa como as minhas filhas.
— Acredite se quiser, ela não era assim ano passado! Quer dizer, ela sempre
teve, hm, personalidade forte, mas era bem mais de boas. Acho que é você
que desperta esse lado dela, hein.
Luísa se vira para ela, para escutar a história, sentindo certo alívio de o tempo
verbal ser no passado.
— Não sei direito, pra ser sincera, a gente se dava super bem, eu gostava
bastante dela e acho que ela de mim, mas, sei lá, nós éramos mais amigas do
que namoradas. Hoje em dia ela namora uma outra guria, e eu percebo a
diferença. Tipo, ela é muito apaixonada por essa mina. Ela não era assim
apaixonada por mim, nem eu por ela, na verdade.
— Sim, super. Ela é uma das minhas melhores amigas até hoje.
— Olha, não briga comigo, mas acho que a gente saiu um pouco da rota! —
Sofia informa, ainda olhando para bússola.
— Por favor, não me diz que a gente tá perdida — Luísa fala, sentindo certo
alívio com a mudança de assunto. — Eu assisti A Bruxa de Blair, eu sei o que
acontece nesse tipo de floresta.
***
Apesar do desvio, elas chegam na parte mais alta do morro, que é uma
campina de vegetação rasteira, ainda antes de escurecer. Mesmo assim elas
acendem suas lanternas para iluminar o terreno e poder montar a barraca. O
sol já se pôs há algum tempo e o lusco-fusco não as deixa enxergar grande
coisa.
Luísa entra na barraca para pegar seu ukulele enquanto Sofia acende a
fogueira, já que segundo ela, não precisa de ajuda para uma coisa tão simples.
E de fato não precisa mesmo, fica bastante claro que Sofia está acostumada a
acampar quando ela acende a fogueira em questão de minutos.
Assim que as chamas começam a crescer, o entorno se torna mais uma vez
visível e o calor da fogueira ajuda a aquecê-las já que a brisa da noite traz
consigo um ar mais frio. Agora, é possível enxergar o tronco das árvores mais
próximas, a rocha e o azul royal da barraca se destacando.
— Merlot e espetinho!
— Delícia.
Sofia também tira da mochila duas canecas de lata e um saca-rolha, ela passa
uma das canecas para Luísa.
— Não precisa — Sofia diz e pega a garrafa da mão de Luísa para abrir. —
Eu conheço a namorada dela, ela participou do acampamento uns dois anos.
— A Laura?
— Uhum.
— Mundo pequeno!
— Demais.
Sofia enfim abre a garrafa e serve as duas canecas, elas brindam sob as
estrelas que já começam a pipocar no céu.
— E o que você fez nos verões seguintes? — Sofia pergunta —Depois que
parou de vir pra cá, eu quero dizer.
Sem realmente se dar conta, Luísa coloca a caneca de lado e começa a tocar
os acordes de Here Comes the Sun dos Beatles. Mas sua atenção continua
toda em Sofia, que pergunta:
— E a sua mãe?
— Ela tava sempre trabalhando. Às vezes ela tirava uma folga e a gente fazia
alguma viagem curta, mas nunca todo mundo.
— Sério?
— Eu gostava da sua mãe. Ela sempre foi um amor comigo e com o Jovi.
— É verdade — Sofia diz, não parecendo surpresa. Acho que ela já tinha
feito essa conexão antes de Luísa.
Luísa solta uma risada, é a primeira vez que vê Sofia tropeçando nas palavras
e perdendo a pose tranquila.
— Bom, a gente tem que marcar pra sei lá, se encontrar por lá!
***
Quando o alarme de Sofia toca às 22h, elas já estão apagando a fogueira para
que não tenha nenhuma interferência, junto com a claridade da fogueira
esmaecendo, elas notam as luzes do Luneta sendo apagadas.
Luísa ilumina o próprio rosto, como se fosse contar uma história de terror.
— Eu não consigo — diz com uma voz rouca, tentando soar assustadora.
— Ha! Quem é que está com medo agora? — Luísa brinca, mas apaga em
seguida. — Puta que pariu! — exclama ao ver o céu sem nenhuma
interferência pela primeira vez.
— Eu entendo por que meu pai curtia tanto isso. É calmo ficar aqui, tipo,
uma sensação de paz.
— É mesmo.
A noite é de lua nova e o brilho das estrelas sozinho não é suficiente para que
elas possam ver uma à outra, apesar disso, Sofia vira a cabeça em direção a
Luísa.
— Sei lá, olha esse céu, o universo é tão grande, não é possível que a gente
não vá para lugar nenhum!
— Sem nenhuma prova que negue essa teoria — Sofia diz —, eu prefiro
acreditar que sim, que a gente vai pra algum lugar.
— Eu também!
Eu sinto que Sofia gostaria de falar mais alguma coisa, mas ela se contém, e
ambas apenas aproveitam o momento.
— Você lembra daquele verão que a gente ficou de castigo porque colocou
um sapo na cama da Duda Dedo-Duro? — Sofia pergunta de repente.
— Minha?
— É! Ela era obcecada por você e não gostava de mim, porque a gente tava
sempre juntas!
— A Duda Dedo-Duro mereceu muito aquele sapo… Calma aí, foi nessa vez
que seu pai baniu a gente da última rodada da gincana?
— Foi, porque a guria fez um escândalo quando achou o sapo. Mas a gente
passou o dia lá em casa maratonando todos os meus DVDs da Disney e
comendo mais pipoca do que a gente aguentava.
— Com certeza. Meu pai sempre foi meio molenga na hora de dar castigo. Eu
só ficava com medo quando ele ameaçava colocar a gente em cabanas
separadas.
— Então para de se preocupar. Não tem urso aqui — ela fala em tom de
piada. — Deve ser só um esquilo, sei lá.
— Quando eu era criança, eu fiz uma trilha com o meu pai lá em Floripa e
um esquilo pulou no meu cabelo. Ele não queria sair de jeito nenhum. Você
sabia que eles mordem?
É verdade isso, eu juro que não sei por que deixava o Leo levar a Luísa para
esses programas, era sempre um pior que o outro.
Ela sente a boca seca e uma dificuldade enorme de controlar o som da sua
respiração que de repente parece excessivamente alto e descompassado. Mas
passado o embaraço inicial, tudo se torna natural e confortável.
***
As duas ficam ali por muito, muito tempo apenas observando o céu e
conversando. Luísa não se lembra da última vez que manteve uma conversa
por tanto tempo com uma pessoa sem se entediar.
Por volta de uma da manhã, decidem que é hora de dormir. Quer dizer, Sofia
decide que é hora de dormir e Luísa não tem muita escolha senão ir também.
Ela não demora muito para entender que Luísa está tendo um pesadelo.
Sofia acende a lanterna do seu celular, que está mais à mão que a lanterna que
está pendurada no teto, e faz uma meia-luz menos agressiva aos olhos.
— Lu?
— Lu! — Sofia coloca a mão no rosto dela, para acordá-la. — Lu, acorda!
Ela parece assustada com o sonho e com a proximidade da amiga. Sofia nota
os olhos de Luísa confusos, tentando entender o que está acontecendo.
A respiração de Luísa ainda está pesada, mas ela parece mais desperta.
Luísa deita a cabeça mais uma vez no travesseiro, leva a mão aos olhos e
solta um grunhido. Não importa quantas vezes ela já tenha tido esses
pesadelos, ela nunca vai se acostumar com eles.
Ela nunca contou os pesadelos que tinha, nem quando era criança, a única
pessoa com quem eu sei que ela falou foi a psicóloga, que obviamente,
sempre guardou segredo.
— Era com a minha mãe — Luísa diz, depois de uns segundos. — Eu tive
esses pesadelos por bastante tempo depois que o meu pai morreu e, hm,
depois que a minha mãe morreu, eles voltaram.
Sofia está com a cabeça apoiada sobre o próprio braço e leva a mão até os
cabelos de Luísa.
— Eu sinto muito — Sofia diz em um sussurro, sem saber mais o que falar.
— Ela me ligou naquele dia — Luísa conta, pela primeira vez. — No dia que
ela morreu, ela me ligou naquela manhã, mas eu não atendi, eu estava
ensaiando e disse para mim mesma que ligava depois. Quando a Helena me
ligou mais tarde, eu sabia que não era boa notícia.
— Você não tinha como saber, Lu.
Dessa vez, Sofia não contém o impulso e, sem saber o que dizer, resolve agir:
Ficam assim por um bom tempo, até que Luísa finalmente para de chorar e
Sofia percebe que ela pegou mais uma vez no sono. Ela apaga a lanterna do
seu celular e o coloca de lado com cuidado para não perturbar Luísa que
ainda está em seu abraço.
***
Ela fica ali por algum tempo, quieta, apenas sentindo a presença e a
respiração suave de Sofia contra sua nuca, e desejando que o tempo parasse.
É um momento de paz, conforto e segurança. Algo que ela nunca sentiu com
a simples presença de outra pessoa antes, pelo menos não dessa forma.
Por um momento, Luísa cogita voltar a dormir, mesmo não sendo uma coisa
que ela costuma fazer, mas o pensamento é rapidamente interrompido quando
o celular de Sofia desperta e ambas dão um pulo.
— Que isso? É domingo, louca! — Luísa diz quando Sofia desliga o celular.
Ela tenta ser discreta na hora de tirar o braço debaixo da cabeça de Luísa, que
se apressa em ajudar levantando a cabeça para que o momento seja menos
esquisito.
— Não tem por que se desculpar, Lu. Você não tem culpa de nada, nem dos
pesadelos nem do que aconteceu.
Luísa sabe instintivamente que sim, que pode contar com Sofia. Assim como
Sofia pode contar com ela. E apesar de não terem se visto nos últimos onze
anos, existe uma sensação de familiaridade e confiança que nunca deixou de
estar ali.
Sofia nem precisaria ter falado, está no seu olhar. Luísa fica presa nesse
olhar, nesse rosto lindo e gentil; e se pergunta como tudo pode ser tão igual e
tão diferente ao mesmo tempo.
— Se a gente for agora ainda dá tempo de chegar pro café. Eu sei que você
gosta de tomar café da manhã com as suas irmãs.
— Gosto? — Luísa pergunta confusa enquanto se levanta sem pressa e
começa a enrolar seu saco de dormir.
— Se você visse a Lara jogando a Helena no lago na sexta, teria uma outra
opinião — Luísa comenta com um sorriso divertido.
— Ih, nessa treta aí quem correu risco de vida foi a Helena, eu nem sei se a
Lara volta pra cá, espero que sim. Mas essa é uma longa história — Luísa
diz. — E tudo bem se no café da manhã de hoje for só eu e você.
— Tudo bem, então — ela abre sua mochila e retira a jaqueta que usou ontem
à noite e que estava dobrada e guardada, bem diferente das coisas de Luísa
que estão espalhadas por toda a extensão do seu lado da barraca.
Não é tão cedo, mas só agora o sol está saindo por de trás das montanhas, e as
cores desse nascer do sol não é algo que se vê todos os dias. O dourado forma
uma linha brilhante e intensa contornando cada um dos morros no horizonte e
aos poucos se espalha também pela superfície do lago.
CAPÍTULO 19
No domingo à noite, Mila está sentada em uma poltrona no saguão da sede,
Luísa está jogada na poltrona ao lado com a cabeça pendendo levemente para
trás e as pernas sobre os braços da poltrona.
Cada uma das duas está em seu celular; Luísa apenas escuta música com
fones de ouvido já que nem o sinal da sua operadora, nem o do Wi-Fi
funcionam direito. Mila, por outro lado, está sentada de pernas cruzadas
como um buda, com Elvira no colo e digita alguma coisa animadamente.
— Não sei, o meu é a primeira vez que tá funcionando aqui dentro também,
melhor aproveitar — Mila responde sem tirar os olhos e os dedos da tela.
— Com quem você tá falando com essa cara boba aí? — Luísa pergunta,
cutucando a irmã com o pé.
— Com o Murilo.
— O surfista do velório?
Luísa vira o pescoço rápido na direção de Helena e percebe que ela não foi a
única a esquecer que o aniversário de Mila estava chegando.
— Desde que você não coloque ele pra trabalhar no seu lugar, tá tudo certo
— Luísa brinca.
— Vem cá — Helena chama a atenção das outras duas —, já não era pra Lara
ter voltado, não?
— Verdade. Ela sempre fala que odeia dirigir à noite — Luísa acrescenta.
— Mas não podia esperar a gente tá com a herança na mão, não? — Luísa
rebate.
— Ela é nossa irmã, Lu, ela é mais importante que a herança — Mila
pondera.
— Ah, porque você foi a primeira a se prontificar a contar — Luísa revida de
maneira sarcástica.
— Tá, tá, tem razão — Mila levanta as mãos assumindo sua culpa.
— Ela não seria tão burra de abrir mão da herança por causa do Felipe —
Helena considera.
— O contrato diz que ela pode sair às 17h de sexta, mas precisa voltar pro
acampamento no domingo à noite — Helena diz.
— Mas pelo jeito está remoendo essa coisa! — Helena diz. —Mas quer
saber? Eu não fiquei uma semana nessa merda à toa, se ela não aparecer eu
vou buscar ela pelos cabel…
— Lara, senta aí — Helena diz e aponta para uma poltrona; assim que Lara se
senta, Helena continua: — Eu tomei uma decisão.
Três pares de olhos encaram Helena, que adora fazer essas pausas, só para
ver a cara de ansiedade de todos esperando que ela continue. Clássica
manobra para demonstrar poder.
— Espera — Luísa diz — tipo, ficar com ele para a gente pegar a herança?
— Sim, não sei por que a surpresa — Helena diz, como se fosse a coisa mais
previsível do mundo. — Eu acho que é um bom investimento. Andei
observando essa semana e acredito que pode ser um negócio lucrativo. Acho
que o Chiquinho faz bem a parte burocrática e eu teria que vir aqui umas
poucas vezes.
Mila, Luísa e Lara a encaram como se ela tivesse dito que teve um contato
imediato de terceiro grau.
Nenhuma delas sabe o que falar e ficam esperando, como se alguma parte da
informação estivesse faltando. Por um lado, a motivação de Helena faz
sentido, por outro não faz sentido nenhum.
Creio que todas esperassem que o Luneta fosse sobrar para a Mila, inclusive
a Mila.
Ela se vira e sai, deixando as três em estado quase catatônico. Tudo que
conseguem fazer é compartilhar um olhar curioso.
***
Sabe aquela frase “pior que criança em dia de chuva?”, pois é, Helena não
consegue pensar em nada que seja pior que criança em dia de chuva.
Elas estão frenéticas e com mais energia do que em qualquer um dos outros
dias de sol, parece que decidiram que para compensar não estarem ao ar livre,
devem fazer todas as brincadeiras existentes no catálogo do Luneta. Deve
existir alguma explicação cósmica para esse fenômeno, mas seja ela qual for,
Helena está à beira de um ataque de nervos e não é nem meio-dia ainda.
Existe todo um protocolo para dias como esse: as crianças são levadas para o
ginásio que tem três quadras, sala de jogos completa, além de ser adjacente à
sala de artes e música. Ou seja, atividades não faltam.
— Não foi assim que Dante descreveu o inferno? — Helena pergunta para
Pati, que apenas assente com a cabeça. Se nem Pati está de bom humor hoje,
imagina a Helena.
Júlio e Júlia decidem tirar o dia para pregar peças em Pedro, o menino de 11
anos, que Helena não consegue entender por que é amigo do casal de gêmeos,
já que estão sempre tentando assustá-lo.
Pati se apressa para acompanhá-las, mas antes se vira para Helena, apenas
para checar:
Ela começa a catar os materiais com tanta pressa quanto um bicho preguiça
correndo uma maratona. Ela tenta acalmar o cérebro e acabar com o zunido
no seu ouvido devido a quantidade ensurdecedora de barulho produzido pela
chuva e pela gritaria.
— Você tá com a cara péssima! — Lara diz para a irmã quando se aproxima
para guardar o material que sua turma estava usando.
— Eita! Você não estava ontem mesmo falando que queria ficar com esse
lugar? — Lara fala com certo cinismo, porque sei que ela não acredita que
Helena contou a história toda.
— Quero mesmo, porque é um bom negócio. O que não quero são essas
crianças gritando.
— Eu vou ficar maluca até o fim desse verão — Helena diz. — Aqueles
gêmeos vão me enlouquecer, é sério!
— Hele…
— Não, é sério, eu não aguento mais! Não é à toa que ninguém quer aquelas
duas pestes!
Lara não precisa nem abrir a boca para que Helena entenda; basta ver a cara
com que ela olha na direção da porta. Helena se vira a tempo de dar de cara
com um par de olhos castanho-escuro cravados nela.
O olhar de Júlia diz tudo aquilo que ela e o irmão costumam esconder atrás
de seus sorrisos fáceis. É o olhar de quem conhece bem a crueldade do
mundo, mas que está resignado a conviver com ela.
Helena abre a boca para tentar se justificar, mas antes que ela consiga, Júlia
se vira e sai correndo.
— Qual é o seu problema? — Lara pergunta e joga uma bola dentro do cesto
em que são guardadas.
— Eu sei que não é a mesma situação, mas quando meu pai morreu você não
devia nem ser nascida ainda, e a minha mãe morreu há quatro meses.
— A gente não tem pai — ela diz —, quer dizer, acho que todo mundo tem
pai, mas a gente não sabe quem é. E a minha mãe morreu quando a gente
nasceu; mas mesmo assim eu sinto saudade.
— Eu sei que ninguém quer a gente — Júlia diz, tentando dar de ombros, mas
sem conseguir esconder a tristeza.
— Quem é o Evandro?
— Um menino que mora com a gente no abrigo, ele já tem 17 anos. E disse
que quando fizer 18 ele não vai poder ficar mais lá, por isso ele tem que
juntar dinheiro.
— Bom, talvez nem sempre seja assim — Helena diz, embora nem ela
mesma acredite muito nas suas palavras.
A menina apenas lança um olhar e um meio sorriso que Helena entende como
um “eu te perdoo” e se levanta para brincar com o irmão.
CAPÍTULO 20
— Ei, Lara — Luísa chama, e corre até a irmã —, espera aí.
— Será que dá tempo? — Luísa, que nunca organizou uma festa na vida,
pergunta.
— Você pode usar a internet lá de casa se quiser — Sofia, que está ao lado de
Luísa, oferece.
— Perfeito!
— Eu vou falar com a Lena também — Luísa avisa. — Mas acho que deveria
ser surpresa!
— Ah! Boa ideia…
Lara ama planejar uma festa e já fica toda animada com ideia.
O resto do dia passa com Lara, Luísa e Helena tentando decidir o que fazer
para Mila. Helena insiste que pelo menos um dos bolos tem que ser “normal”,
enquanto Lara e Luísa concordam que tudo deveria ser vegano e que Helena
não vai morrer se comer comida vegana um dia na vida dela.
Por fim, a maioria vence e elas se decidem pelo cardápio 100% vegano,
afinal, Mila deveria poder comer tudo que é servido no seu aniversário.
— E quem que vai distrair ela? — Lara pergunta, no fim do dia, para Helena
e Luísa.
Mila está tomando banho e elas aproveitam para conversar sobre os últimos
detalhes.
— O guri do velório — Helena diz. — Ele não vai estar aqui no dia?
— Pra isso a gente teria que falar com ele — Luísa diz, pensativa.
Ela vai até o quarto de Mila e volta dois minutos depois com o celular da
irmã em mãos.
Luísa digita 1602 e o menu de aplicativos aparece com uma foto do sol
nascendo na praia de fundo.
— Eu não quero te apressar, mas acho que ela desligou o chuveiro — Helena
comenta, não ouvindo mais o barulho da água.
Ela tem o bom senso de não ler a conversa antes de abrir o contato dele para
copiar o número. Assim que termina, sai correndo para devolver o telefone
antes de Mila sair do banho. Ela o coloca no mesmo lugar em que o
encontrou, na cômoda ao lado da cama, mas antes que ela consiga sair do
quarto, Mila entra enrolada na toalha.
— Eu, hm… — Ela olha ao redor tentando achar alguma desculpa —, eu, eu
tava procurando um baseado!
— Concordo.
Por incrível que pareça, Luísa está há dois dias inteiros sem fumar e ainda
não reclamou.
— Né?
— Uhum.
Esse ano, no entanto, tudo está diferente. Além de ter que trabalhar o dia
todo, hoje ela está comemorando trinta anos!
Todo mundo que já fez trinta sabe que é uma sensação no mínimo estranha;
um dia você é jovem e no dia seguinte você tem trinta. Eu com trinta anos já
tinha três filhas e mesmo assim levei um choque.
E a verdade é que aos trinta, a maioria das pessoas alcança algum dos
objetivos que traçou, talvez tenha filhos, ou talvez tenha viajado muito, talvez
tenha conseguido aquele emprego, talvez tenha comprado uma casa e
atingido uma estabilidade financeira, ou ainda alguma combinação de quase
todos esses. Mas o último item — saber qual o propósito da sua vida — esse
é só para os mais sortudos.
Eu não sabia! E creio que a Mila também não saiba ainda. E acho que por
isso ela demonstra menos empolgação esse ano. Não porque se sente velha —
porque, sejamos francos, trinta anos ainda é muito, muito jovem —, mas
porque se sente perdida.
Ainda assim, ela se levanta no horário de sempre e vai fazer sua rotina de
ioga, como todos os outros dias. Ela não encontra ninguém, nem Helena
saindo para correr, nem Luísa no saguão ensaiando com o violão, nem Lara
com insônia vagando pela sede.
Mas não importa com que humor ela esteja, sempre que faz a sequência de
saudação ao sol pela manhã, ela se sente em paz.
Puxa, até eu já havia me esquecido disso! Mas nós convidamos ele e a Ana,
sua esposa, para serem os padrinhos da Mila. E nós éramos os padrinhos do
João Vitor, irmão da Sofia.
Não existe crise de idade quando você está abrindo um presente que não
esperava receber.
***
No café da manhã, Luísa, Lara e Helena a parabenizam, mas não demonstram
muito interesse no seu aniversário.
Mila nunca deixa transparecer quando está triste ou decepcionada, ela é uma
dessas pessoas irritantemente otimistas que sempre vê o melhor lado de cada
situação; mas sei que ela esperava alguma coisa de suas irmãs. É a primeira
vez em anos que estão juntas por tanto tempo, e Mila não acha possível que
elas também não sintam a conexão sendo restabelecida.
É raro, mas, às vezes, Mila sente que ela é a única que se importa com a sua
família.
Eu diria até que ela gosta do trabalho. Gosta de estar ao ar livre, gosta de
estar cercada de crianças se divertindo, gosta de saber que está fazendo algo
por outras pessoas. Gosta de tudo ali, da mesma forma que Leo gostava.
***
Murilo chega logo após o jantar — que no Luneta é servido às 18h — e Mila
corre até ele.
Eu não me recordo de ter visto ela tão alegre assim com um namorado antes.
Como já disse outras vezes, ela sempre foi de se apaixonar facilmente, mas,
ao mesmo tempo, sempre se desinteressava rápido demais deles. Mas esse
menino aí tem algo diferente.
Eu fico feliz em vê-la assim, sei que ela gosta da parceria de ter uma pessoa
com quem dividir as histórias no fim do dia, de compartilhar lugares, festas e
viagens.
Alguns pensam que Lara é a minha filha mais apegada e carente, mas na
verdade é a Mila. Ela precisa de pessoas por perto, sejam as irmãs, amigas ou
um namorado. Não me entenda mal, ela sabe viver muito bem sozinha, mas
ela é uma pessoa que gosta de outras pessoas, e faz bem para ela tê-las por
perto. E mais que isso, faz bem para os outros estarem perto de Mila.
Ele entrega um pacote de presente com um laço para ela, e só pela logomarca
do pacote, eu já sei que ela vai gostar. É da loja de roupas preferida dela.
Mila abre o pacote e, enrolado em papel seda, há um vestido verde floral até
o pé, com alça fina e decote em V. Ela não precisa nem provar para abrir um
sorriso de felicidade.
— É lindo!
— Achei que essa cor combinava com você — ele diz e se levanta para dar
um beijo nela.
Ela volta do quarto alguns minutos depois; o vestido tem o caimento perfeito
e combina com seus muitos colares e acessórios de prata.
— Era o que a mamãe sempre dizia — Lara fala para Luísa quando ela
questiona se não é muita coisa.
— Espero que esse Murilo se lembre do que tem que fazer — Helena
comenta —, não quero ter que ficar esperando esses dois “matar a saudade”.
— Ai, credo, Helena! — Luísa diz, passando a alça do seu violão pela
cabeça.
— Eles estão vindo — Lara anuncia e aponta para Mila, que já viu a
movimentação.
Luísa começa a tocar Parabéns Pra Você no violão e todo mundo começa a
cantar junto.
Como acontece sempre que tem muitas pessoas cantando, o grupo desafina e
atrasa o tempo da música, mas Mila não se importa com isso. Ela apenas abre
um enorme sorriso e demonstra certo alívio de saber que suas irmãs se
importam.
— Alguém tinha que te distrair enquanto a gente montava tudo, né? — Luísa
explica.
O sorriso no rosto dos dois me faz crer que, no fundo, são os detalhes que
separam um relacionamento baseado em diversão de um baseado em
sentimento.
Não estou aqui para dizer que um é melhor que o outro; creio que os dois tem
seu valor. Mas o que quero dizer é que o tipo de sentimento que um gesto
simples desperta é o que demonstra essa diferença. Afinal, ele não fez nada
demais, foi Luísa que foi falar com ele, mas, ainda assim, o coração de Mila
acelera levemente em saber que ele fez parte da surpresa.
Onde eu estava? Ah, sim, sim… Depois de cortarem o bolo, a maioria das
crianças se sentam ao redor da fogueira para comer enquanto outras pegam
alguns instrumentos musicais que estão dentro de cestos.
— Essa é pra você, Mila, porque eu sei que você gosta e também porque não
pode faltar em um luau — Luísa diz antes de começar a tocar Anunciação do
Alceu Valença.
***
Aos poucos, os instrumentos dos cestos vão sendo escolhidos por aqueles que
sabem tocar, e alguns até por quem não sabe. Mas ninguém se importa muito,
o que vale é participar.
Ao lado de Helena, Júlia se diverte com uma flauta e Júlio com um triângulo.
Júlia sorri ainda mais animada para ela e continua a tocar. Helena solta um
suspiro, mas no fundo acha graça da cena.
— Pff, claro que sabe, foi você que me ensinou! — Luísa a contradiz. —
Pega logo e me acompanha nessa porque eu sei que você conhece.
Helena revira os olhos, mas estica o braço para pegar o pandeiro mesmo
assim.
Ela bufa ao se sentar, despertando risos dos gêmeos que gostaram de ver
Helena sendo mandada para variar um pouco.
— Pega minha gaita aqui no meu bolso? — Ela aponta com os olhos para o
bolso da frente do short.
Sofia hesita só uma fração de segundo antes de resgatar a gaita vermelha que
era do Leo.
Mila se junta à Luísa no vocal, e Murilo pede o violão de Chiquinho, que não
sabe tocar essa, e ajuda Luísa na melodia.
Assim que acaba o refrão, Luísa pega a gaita da mão de Sofia e toca o trecho
que é originalmente tocado no violino.
Eu sempre soube que seria Mila a estreitar o laço fraterno entre elas.
Mais uma rodada de aplausos ecoa assim que Luísa e Mila terminam a
música. As duas agradecem e levantam para se cumprimentar com um high
five.
— De preferência uma que não fale sobre “um fino em cima da mesa” —
Lara diz com um olhar de quem tá dando uma ordem aos filhos.
Tenho que confessar que Luísa é muito boa em embalar um luau, sem contar
que ela parece mais relaxada assim atrás de um violão.
Quando o refrão acaba, Sofia oferece o marshmallow para Luísa que apenas
abre a boca.
— Calma que você tá suja. — Sofia tenta limpar o açúcar do canto da boca
dela.
Luísa percebe que passou da entrada do vocal e tenta cantar de boca cheia
mesmo, mas não dá certo e as crianças caem todas na gargalhada. Murilo
ajuda Luísa, cantando no lugar dela.
Eles fazem uma pausa para uma rodada de marshmallows, e Luísa se levanta
para comer também. Animar uma festa com quase setenta crianças dá fome.
— Esse negócio é bom? — ela pergunta, apontando para uma coxinha vegana
de jaca.
— Hm, melhor provar tudo então — Luísa diz, colocando cinco salgadinhos
diferentes no pratinho.
— Sei lá, assim apaixonada, a cara que ela tava olhando pra ele tocando
Analua parecia que tinha dois coraçõezinhos no lugar dos olhos.
Luísa tem razão, Mila sempre foi muito carinhosa com os namorados, mas
raramente demonstrava uma admiração mais profunda por algum ato
romântico.
— Ora, ora, ora — ela diz, pegando mais um salgadinho. — Parece que
temos uma romântica entre nós!
— Eu não acho!
Luísa estuda Sofia uns segundos; na verdade, ela não se surpreende por Sofia
gostar desse tipo de gesto, é a cara dela! Ela sempre foi afetuosa e nunca teve
problemas em expressar isso. Faz todo sentido que ela goste.
— Tá — Lara diz alto, chamando a atenção de todos —, acho que agora tá na
hora de um dueto LuMila!
Ela encara a irmã, tentando pensar em uma música para elas cantarem juntas.
Sofia também volta à roda, sentando-se novamente onde estava antes, ficando
agora de frente para Luísa.
— Pensando bem, eu acho que sem ler eu também não sei — Luísa confirma,
parando de tocar.
— Que porra é essa, Luísa? — Helena, que estava pronta para acompanhar
no pandeiro, pergunta, estranhando o tom.
— É a versão da ANAVITORIA.
— Sobe o tom que eu não consigo cantar assim grave… e acelera isso porque
é o meu aniversário, não um enterro — Mila diz.
— Tá, tá. — Luísa sobe o tom para Si menor e dedilha o riff da versão do
Nando Reis antes de voltar ao início.
— Eu faço o Nando e você a parte da Cássia! — Mila diz para Luísa, que
assente novamente.
Para essa música, Chiquinho recupera seu violão com Murilo. Lara
acompanha no ukulele, Helena no pandeiro e Sofia pega o chocalho
abandonado de Helena.
Mila respira fundo antes de começar com o seu timbre de voz mais agudo:
Luísa entra com sua voz um pouco mais grave, que tem um toque aveludado
muito agradável de se ouvir:
Luísa se sente confusa quando seu olhar cruza com o de Sofia a sua frente, a
conversa que acabaram de ter ainda paira em sua mente.
Será que era um recado? Será que era apenas um comentário? Será que era
um pedido?
Luísa não sabe responder essas perguntas, mas não consegue tirar os olhos de
Sofia. Nem Sofia, de Luísa.
Luísa sente seu coração acelerar com o sorriso que se forma nos lábios de
Sofia com essa estrofe e, por alguns segundos, é como se nada mais existisse.
Como se as respostas para as perguntas que Luísa se fazia, de repente, fossem
todas respondidas.
Elas ficam presas no olhar uma da outra e não percebem Helena balançando a
cabeça descrente de que elas ainda não estão juntas, Lara e Mila trocando
uma risadinha da cara de apaixonadas das duas que é óbvia para todos. E não
percebem Michelle fuzilando Luísa com o olhar. Elas não percebem nada
disso, apenas a presença uma da outra.
Luísa volta à realidade com Mila lhe dando uma cotovelada nas costelas
quando ela perde a entrada da última estrofe.
CAPÍTULO 23
— Teve aquele ano que a Helena prendeu aquela guria… como era o nome
dela? — Mila pergunta.
Mila conta rindo, mas a tal menina ficou traumatizada depois daquilo.
— O que ela fez, tia? — Júlia pergunta, lembrando aos adultos que ouvidos
infantis também escutam.
— Nada — Lara responde a Júlia —, e não se deve fazer isso com ninguém.
— Ah, por favor — Helena corta —, a guria inventou pra todo mundo que a
Mila tomava remédio controlado e que era esquizofrênica.
— Aí eu prendi ela mesmo, que era pra aprender a parar de falar merda.
— E isso é ruim?
Luísa, Mila e Lara olham com certa descrença para Helena por ter a
consciência de não incutir preconceitos em Júlia.
— E mesmo que fosse verdade, você não conta isso para os outros sem a
autorização da pessoa, muito menos para que eles riam ou fiquem com medo.
Helena dá de ombros.
— Eu disse que ela tava com dor de barriga e não iria participar e todo
mundo acreditou.
— Lembra que naquela época a mamãe sempre vinha pro luau de despedida?
— Mila pergunta.
Quando o Leo era coordenador do Luneta, ele passava o verão todo aqui e eu
ficava cuidando da empresa. No resto do tempo ele ficava comigo na empresa
e vinha para cá apenas uma vez por mês. Entretanto, eu sempre frequentava
os luaus de encerramento.
Apesar de eles morarem aqui, Ana era enfermeira, então os horários dela nem
sempre permitiam que ela participasse conosco.
— Eu acho que a última vez que esteve todo mundo foi no ano do acidente
dela — Sofia fala. — Eu lembro daquele dia.
— Eu também — Luísa comenta, buscando na memória. Ela tinha apenas 6
anos na época.
— Não eram cafona — Luísa pondera —, mas não eram músicas de luau.
— Isso é verdade — Lara concorda com Luísa. — Ela seeeeeempre pedia pra
gente tocar João e Maria.
Luísa encara Mila por alguns segundos, como se tentasse lembrar de algo.
Ela pega seu violão mais uma vez e dedilha algumas notas, tentando buscar
na memória a melodia que sempre tocava na nossa casa quando elas eram
crianças.
— Eu não sei a letra toda — Luísa diz às irmãs antes de chegar na entrada do
vocal.
Mila pede o chocalho que está ao lado de Sofia emprestado para acompanhar
as irmãs na melodia.
Eu me sinto ali.
É verdade, elas nunca tocavam essa música, mas essa única vez é a única que
eu quero ter na memória!
CAPÍTULO 24
Depois de mais algumas músicas, eles decidem colocar uma playlist, e Luísa
guarda o violão. Assim que fecha o case, Mila pula em cima dela e lhe dá um
beijo na bochecha.
— Você é uma fofinha — Mila diz, ainda com um braço sobre o ombro da
irmã. — Eu sei que a ideia foi sua!
Luísa solta uma risada da cara dela, mas, dessa vez, sei que Mila não está se
importando com a idade. Ela larga Luísa e se junta mais uma vez ao Murilo,
que está conversando com Pati e Pepa, e Luísa se junta a Sofia na mesa dos
salgadinhos.
Helena está sentada em um dos bancos que cercam a fogueira, tentando
ensinar Parabéns Pra Você na flauta para Júlia, e Lara pega um Keep Cooler
de morango e se senta ao lado de Helena para assistir a cena.
Ela é obrigada a admitir que Helena até que está sendo bem paciente,
principalmente porque Júlia está demorando para conseguir reproduzir as
notas.
— São dois Sol no começo — ela diz para Júlia —, é Sol, Sol, Lá, Sol. Você
tá fazendo Sol, Lá, Sol.
Mais uma vez ela apenas responde através da flauta, mas dessa vez ela
assopra com mais força do que o necessário e emite um som agudo que
machuca os ouvidos de Lara.
— Vem — Helena diz e puxa a irmã pelo braço para pegar uma bebida.
Lara espera Helena abrir uma cerveja longneck e despejar todo o líquido em
um copo plástico. Helena jamais toma nada no gargalo, a não ser se for o seu
squeeze.
— Não sei, não tem nada pra contar, foi mais ou menos como eu esperava.
— Vocês brigaram?
— Como assim?
— Ah, ele estava todo querido, amoroso, gentil com os filhos. Eu estava feliz
que ele estava se esforçando.
Lara continua:
— Ele me convidou para jantar no sábado à noite, mas eu disse que não
queria deixar as crianças, porque, né?, eu já não vi eles a semana toda, nem
faria sentido não ficar com eles.
— Lógico.
— Mas então ele sugeriu chamar uma babá do hotel e sair depois que as
crianças já estivessem dormindo…
Helena escuta tudo com atenção. Tem algo no tom de Lara que a faz não
querer provocar, mas simplesmente escutar.
— Estava tudo indo bem, até que eu resolvi perguntar sobre aquilo que a
Mila viu.
— E ele?
— Ele ficou puto — ela diz e solta um suspiro cansado. — Primeiro chamou
a Mila de mentirosa, depois disse que não tem nada demais, porque não
somos mais casados.
— Nesse ponto ele tem razão, Lara — Helena diz, mas não tem veneno, nem
malícia na sua fala, apenas um fato. — Vocês não são mais casados!
— Então — Lara diz —, aí eu disse que se era assim a gente deveria assinar o
divórcio de uma vez, já que era o que ele queria.
— Foi aí que ele surtou de vez. Perguntou se eu não amava mais ele, disse
que a nossa família é a coisa mais importante e sei lá o que. Não entendi
nada, parecia que eu estava em uma montanha-russa. Ele era quem mais
queria esse divórcio, agora que eu concordei ele não quer mais.
— O quê?
— Ele quer a sua parte da herança! Por isso não quer assinar o divórcio
agora. Vocês têm união universal de bens, se você receber a herança antes do
divórcio ele tem direito a metade! Ele quer o seu dinheiro.
— No fim do ano, quando você me pediu dinheiro, achei estranho você não
ter, aí pedi pro Armando investigar.
— Resolve logo a sua vida, Lara! Você quer ficar nesse rolo aí por quanto
tempo ainda? Eu sei que você acha que é bom para a Alícia e pro Lucas vocês
voltarem, mas não é! As crianças sabem quando o ambiente em que estão não
é bom.
— E outra, você sabe que eu não gosto dele, mas o Felipe tem razão, não tem
nada demais em ele ficar com outras mulheres se vocês não estão mais
juntos. Inclusive, você deveria fazer o mesmo!
Lara eleva o olhar para a irmã e suas bochechas coram de leve antes de
admitir com certa vergonha:
— Eu nunca, hm, estive com outro homem que não fosse o Felipe.
Para sua surpresa, Helena não faz nenhum comentário maldoso ou cínico.
— Bom, o salva-vidas gostosão ali — Helena aponta para Buba — não para
de olhar pra você, então talvez seja sua oportunidade de descobrir como é.
Lara olha para onde Helena está apontando e vê Buba olhando para ela com
um sorriso insinuante.
Buba é um pouco mais velho que Pepa, deve estar na casa dos 25 anos, tem
cabelo escuro bem curto e é alto, atlético e bronzeado. Sem nenhuma dúvida,
a aparência de um salva-vidas digno de aparecer em SOS Malibu. Lara tem
que admitir que ele é realmente muito bonito; mas apesar disso…
— Bom, você que sabe. Eu vou lá antes que a Júlia deixe alguém surdo com
aquele barulho horrível que ela tá produzindo — Helena diz e deixa a irmã
sozinha. — Júlio! — ela grita para o menino no meio do caminho. — Larga
isso, guri, antes que você fure o bucho do Pedro!
***
Mila e Murilo estão conversando com Pepa e Pati, que também são surfistas e
frequentam as mesmas praias que eles. Depois de descobrirem vários
conhecidos em comum, Murilo pergunta sobre o acampamento,
impressionado com o número de pessoas que trabalham ali.
— Deve ser legal trabalhar aqui, tipo, eu já fui salva-vidas de piscina de clube
uma vez, mas era bem chato.
— Ah, é muito legal sim — Pati diz —, por isso a maioria volta no ano
seguinte.
— Pô, eu não sabia que a Mila tinha namorado quando dei em cima dela —
Pepa se justifica —, foi mal, mano!
Murilo apenas solta uma risada do jeito inocente do menino.
Mila abre um sorriso para ele; entretanto, apesar de estar ali com o grupo, sua
atenção está em Helena e Lara e no tópico que esteve ocupando seus
pensamentos a semana toda. Assim que ela nota a Helena caminhando
sozinha de volta para onde estava, decide ir até lá.
— Mu, eu já volto — ela diz e dá um beijo nele, saindo sem explicar muito.
Mila caminha até o outro lado da fogueira. Por alguma razão, ela se sente um
pouco ansiosa.
— Espera, você quer ficar com o Luneta? Tipo, com a nossa parte?
— Hm, não, não, eu não sei administrar nada, nem a minha própria vida
direito — Mila fala, destacando o rótulo do Keep Cooler de uva que está em
suas mãos. — Mas eu gosto daqui, queria poder voltar nos próximos anos.
— Eu não sei o que te falar, Mila — Helena diz em seu tom formal, aquele
que reserva aos clientes e parceiros de negócio. — Como eu falei domingo,
eu não sei ainda como vai funcionar, mas eu não pretendo me envolver
profundamente. Pretendo apenas administrar para que tudo continue em
funcionamento e a gente não perca a herança.
— Entendi — Mila diz —, mas eu acho que tem muita coisa que dá pra fazer
aqui! Dá pra organizar uns retiros de meditação, fazer fins de semana de
integração entre funcionários de grandes empresas, tour guiado para ver as
estrelas naquele lugar que a Luísa e a Sofia foram, dá até para alugar pra
casamento, olha esse lugar, quem não iria querer se casar aqui?
— Não sei, Lena, mas quanto mais tempo a gente passa aqui, mas eu entendo
o apego deles, do papai e da mamãe, eu digo.
— Esse lugar é tão seu quanto meu — Helena fala antes de Mila sair —, você
pode, hm, trabalhar aqui.
Ela então perde algum tempo observando suas irmãs. Mila parece realmente
apaixonada e feliz com Murilo, e ele, por sua vez, parece ser um cara
atencioso e gentil; Lara conversa com certa desinibição com Buba, que
claramente está dando em cima dela. Helena sorri para a cena, afinal, todas
nós sabemos que Lara merece uma aventura na vida. Já Luísa e Sofia estão
presas em seu próprio universo, completamente alheias ao que acontece ao
redor.
Nesse momento, eu sei que Helena se sente como eu me senti por muito
tempo, embora ela, assim como eu, não saiba expressar da melhor forma, seu
maior desejo é ver a sua família feliz. Helena espelha os sorrisos genuínos
estampados no rosto das suas três irmãs, satisfeita em vê-las assim.
***
Pepa vai até a caixa de gelo pegar uma cerveja e coloca o braço sobre os
ombros de Luísa para lhe dar um beijo no rosto.
Luísa, apesar de um pouco sem jeito sorri de volta pra ele. Sofia, ao lado
dela, não esboça nenhuma reação.
— Nós também poderíamos ser bonitinhos juntos — ele diz, soltando Luísa e
colocando o braço sobre os ombros de Michelle.
— Deus me livre — ela retruca, tira o braço dele de seus ombros e sai.
— Eu tentei — ele diz para Luísa e Sofia, depois se vira e volta para o grupo
em que estava também.
Apesar de Luísa soltar uma risada da situação, Sofia parece não achar tanta
graça.
— Como se ele tivesse alguma chance — Luísa diz. — Ela tá caidinha por
você.
— Ela sabe disso, e sabe que eu trato ela como amiga, se ela interpreta
errado, infelizmente, eu não tenho o que fazer.
Luísa assente com a cabeça. Ela sabe que Sofia é gentil com todo mundo e
também sabe que as pessoas costumam confundir gestos de gentileza com
outra coisa. Ela também percebe que Sofia parece um pouco de saco cheio
dessa situação, como se não soubesse mais o que fazer.
Percebendo que o clima ficou estranho de repente, Luísa resolve tentar fazê-
lo voltar ao normal:
— Claro — ela diz, com seu habitual tom gentil, mas sem o sorriso que
geralmente o acompanha.
— Como é?
— Ah, eles vêm aqui para beijar na boca, porque tem muitas árvores para se
esconderem.
— Claro que tinha, é que a última vez que você veio, você só tinha 11 anos.
— Perdeu mesmo!
— Só uma vez, mas não foi exatamente como eu imaginei… nem com quem
eu imaginei.
— Eu também já imaginei.
— Você — Sofia diz. Luísa é pega de surpresa e se vira para ela a tempo de
ver aqueles olhos âmbar a encararem com uma mistura de vulnerabilidade e
confiança. — Eu esperei todos os verões depois daquele ano. Em todos, eu
fiquei na expectativa de que talvez você fosse voltar!
Luísa para a centímetros de distância da boca de Sofia, mas desta vez ela não
vacila e, sem esperar por um sinal ou consentimento, fica na ponta dos pés e a
beija.
Luísa sente tudo girando ao seu redor, e se pergunta se bebeu demais. Mas
foram só duas cervejas, ela sabe que não está bêbada, só sente como se
estivesse. Bêbada e fora de controle.
Sofia enterra os dedos nos seus cabelos e Luísa a puxa para ainda mais perto
grudando seu corpo ao dela; o som que escapa da boca de Sofia é a única
coisa que Luísa quer escutar pelo resto da vida…
— LUÍSA?!
— LUÍSA?! — Júlio grita mais uma vez, antes de encontrá-las. Luísa ainda
segura Sofia pela cintura, e Sofia tem a respiração acelerada. Infelizmente os
sinais do que de fato estava acontecendo, são óbvios para qualquer um, até
para uma criança. Júlio para esbaforido perto delas. — Ah, você tá aí!
— O que foi, guri, alguém morreu? — ela pergunta, tentando dissipar o clima
estranho do flagrante, soltando Sofia e enfiando as mãos no bolso.
— Desculpa, tia! — ele diz meio sem fôlego e meio sem jeito. — A Mila me
mandou te chamar pra tirar uma foto.
— Tá zoando? — ela resmunga para si, e depois olha para Sofia sem graça.
O âmbar dos olhos de Sofia está quase que completamente preenchido com o
preto de sua pupila. Luísa nota confusão neles, mas também esperança. Ela
morde o lábio e solta um suspiro, sabendo que não cairia bem beijá-la mais
uma vez na frente de Júlio.
Luísa caminha, sentindo-se meio tonta de repente. Júlio apenas lança uns
olhares de lado para ela, curioso com a situação. Luísa apesar de irritada por
ter sido interrompida, não consegue não sorrir para o jeito do menino.
Sofia pega a trilha do lago, ainda meio atordoada com o beijo e a interrupção
abrupta. Ela resolve dar uma volta e tomar um ar antes de voltar para a festa.
Sofia solta um suspiro quando percebe que foi avistada e não pode mais
fugir, mas tenta ter paciência.
— Até que sim, a Mila nem é tão chata no fim das contas.
— Michelle… — Sofia diz, tentando cortá-la antes que ela comece com o
mesmo assunto de novo.
— Por que você nunca entende?! — Sofia perde a paciência pela primeira
vez neste verão. — Eu não quero nada com você!
— Não, eu tô assim por causa de você! — Sofia eleva o tom, de saco cheio
de ser colocada nessa situação. — Mas mesmo que tivesse algo a ver com a
Luísa, você não teria nada com isso!
— Você fica aí caindo na lábia dela, mas todo mundo sabe que ela tá ficando
com o Pepa!
— O quê?
O QUÊ?
Fumando, infelizmente!
— Você tá inventando!
— Pode perguntar pra qualquer um, pra Pati, pro Buba, até pra Betina! —
Michelle blefa.
Sofia apenas revira os olhos e sai, sem disposição para continuar a conversa.
Essa história não faz o menor sentido. Tenho certeza de que Sofia não vai
cair no papo dessa víbora!
Mas que timing mais miserável esse. Não posso nem ficar com raiva do Pepa,
tadinho, não tem culpa de nada, só de ser meio bobo.
Sofia sente seus olhos respondendo à raiva e a humilhação que está sentindo
e muda a rota acelerando ainda mais o passo em direção de casa.
Depois da sessão de fotos, que foi quase um álbum completo, Luísa procura
por Sofia por um bom tempo, mas para sua surpresa percebe que Sofia
provavelmente já foi pra casa.
CAPÍTULO 25
Há uma leve neblina cobrindo o lago pela manhã quando Chiquinho caminha
com o seu café fumegante. No píer, ele avista duas figuras saudando o sol em
vez de uma. Murilo e Mila fazem ioga juntos antes de ele partir.
Como neste verão inteiro o seu precioso píer esteve ocupado quase todos os
dias por Mila, ele se habituou a tomar o café no banco de madeira em frente à
sede, então ele caminha até lá com uma tranquilidade que só pode ser sentida
com a brisa da manhã.
— Mas que diabos?! — ele exclama, ao ver Luísa dormindo no banco em que
pretendia se sentar.
Chiquinho não é burro, ele sabe que a filha dele chegou de mau humor em
casa ontem, e sabe também que ela estava de muitíssimo bom humor até
certo ponto do luau.
Eu sei que, assim como eu, ele também torce para que elas se resolvam logo e
está disposto a tentar ajudá-las; mas, sem saber realmente o que está
acontecendo, ele está de mãos atadas.
Confesso que para mim seria um alívio vê-las juntas, não apenas porque
Sofia é uma menina maravilhosa, mas também, porque na minha falta e do
Leo, eu ficaria tranquila em saber que Luísa teria o Chiquinho por perto.
Ele solta um suspiro ao ver a figura deplorável da minha filha dormindo ali,
mas resolve não a acordar.
Eu conheço a Luísa, na certa, ela acordou no meio da noite e veio aqui pra
fora como fez em algumas noites anteriores, e acabou pegando no sono.
Chiquinho decide tomar o seu café na sede já que seus dois pontos preferidos
estão ocupados, e já aproveita que está ali, para responder alguns e-mails que
deixou sem resposta ontem.
***
Pela primeira vez, ela se sente verdadeiramente perdida quanto ao que fazer.
Não está acostumada com isso. Ela sempre sabe o que fazer. E sempre faz!
Ela corre em direção a sede, passando por Mila e Murilo no píer. Quando
saiu para correr ainda era noite e a pouca iluminação noturna não permitiu
que ela reparasse nas coisas a sua volta, porém, voltando para sede, ela dá de
cara com…
Helena percebe que Luísa está dormindo e tem cara de que está ali há um
bom tempo. Ela balança a cabeça em reprovação antes de sacudir o ombro da
irmã.
— Acorda, Luísa!
Ela se mexe um pouco no banco, mas ainda não acorda. Helena suspira e
sacode a irmã com mais força.
Luísa não sabe exatamente por que se sente culpada. Enquanto beijava Sofia
não se sentia culpada de forma alguma, aliás, sentia-se melhor do que em
quase toda sua vida. Mas o fato de Sofia ter sumido, a fez repensar sua ação.
Será que ela entendeu tudo errado e Sofia não queria que ela a beijasse?
Luísa fica tensa com o tom de Chiquinho. Será que ele sabe o que aconteceu?
Será que ele vai tirar satisfações por Luísa ter beijado a filha dele à força?
Será que foi um beijo à força? Parecia consensual! Mas ela certamente não
ficou esperando o consentimento antes de se atirar em Sofia! Meu Deus, será
que ela passou da conta com Sofia???
— Pode.
— Hm, é, hm…Não! — O que você fala pro pai da menina que você beijou e
não sabe se ela gostou??? — Ela te disse alguma coisa?
— É, não, não, mas é que ela chegou em casa de mau humor, parecia
chateada — ele fala, tentando não soar muito preocupado. — E você, é, você
dormiu no banco da praça, eu pensei que vocês pudessem ter brigado.
— Foi o que pareceu, não sei. — Ele sabe sim, ele conhece bem a filha. —
Achei que vocês pudessem ter brigado, eu, é, me desculpa ter me metido.
Luísa assente com a cabeça para as palavras dele; seus olhos começam a
arder e ela se concentra para não marejarem. Ela tenta desfazer o nó na
garganta com o café aguado da máquina.
O bom humor deles é o suficiente para deixar o clima na recepção mais leve.
— E aí? O que você achou daqui, Murilo? — Chiquinho pergunta, com certo
orgulho.
***
Antes das 7h30 Luísa e Helena já estão no saguão esperando as irmãs para o
café da manhã e Chiquinho ainda está ali trabalhando. Ontem, por causa do
luau, ele acabou saindo cedo da sede e deixou muita coisa por fazer.
Mila e Murilo estão se despedindo há uns cinco minutos já, quando ele
finalmente se vira para as irmãs de Mila para se despedir de verdade delas.
Helena deseja uma boa viagem, sem se levantar da poltrona na qual está com
uma revista.
Luísa caminha até ele para um abraço:
Ambas olham com curiosidade para ele, porque não é do feitio de Chiquinho
xingar, muito menos na frente delas.
— Olha, não é a primeira vez que as luzes aqui ficam estranhas — Helena
comenta.
— Pelo jeito é a primeira coisa que você vai ter que resolver — Luísa
comenta com Helena.
— Você vai ficar com o Luneta? — Chiquinho pergunta para Helena com um
sorriso.
— Ah! Ela não te contou a novidade? — Luísa diz com certa animação pela
alegria de Chiquinho.
Antes que Helena possa falar alguma coisa, Buba passa pelo saguão, saindo
do quarto de Lara em direção à saída do prédio.
— Você sabia?!
— Mais ou menos — Helena dá de ombros. — Mas não sabia que ele tinha
dormido aqui!
***
No café da manhã Luísa percebe que Sofia está evitando o olhar dela e
começa a sentir todo o peso do arrependimento do que fez ontem. A sua parte
mais otimista pensou que talvez Sofia estivesse chateada por algum outro
motivo que não tivesse nada a ver com Luísa, mas agora, com Sofia se
recusando a olhá-la, a parte otimista começa a ser esmagada pela realidade.
Do lado de fora do refeitório, ela encontra Pepa, que já terminou sua refeição
e está na mesma árvore em que fumaram juntos algumas vezes.
Ele logo percebe que ela não está com o melhor humor e imagina que talvez
esteja de ressaca.
Luísa apenas sinaliza para um cigarro e ele entrega a carteira com o isqueiro
para ela. Desde o dia em que foi a festa com ele, Luísa está sem comprar
cigarro, desde então, ela fumou umas duas vezes com ele depois do jantar,
mas ainda assim, é uma diminuição significativa no consumo desde que
chegou aqui. Eu considero um progresso e tanto.
— Na moral, não sabia que você tocava tão bem assim. A gente sempre faz
um luau lá na Mole, se um dia você quiser se juntar vai ser daora.
Tenho até medo de imaginar um estabelecimento com esse nome. Mas Luísa
até abre um sorriso ao perguntar:
— Jura?
Os dois caminham juntos no sentido do píer já que Luísa e Sofia irão ficar
nas atividades náuticas hoje de novo. Ela aproveita o caminho para terminar o
cigarro antes de as crianças chegarem.
— Eu tava tocando no ano novo lá — Luísa diz, sobre um show que teve na
Praia Mole na festa de réveillon.
— Eu não quero que você se ofenda, porque eu gosto de você e tals, mas
você nunca teria tido uma chance! — ela rebate, mas tem um sorriso.
Ela realmente simpatiza com Pepa, e devo confessar que eu também. Ele é
um bom menino.
— Bah, que coice! — ele fala, com o braço ainda no ombro dela. — Mas eu
já notei que eu não faço seu tipo.
Luísa balança a cabeça e sorri, mas assim que seus olhos se conectam com os
de Sofia, o sorriso morre nos seus lábios.
Desculpem o meu vocabulário, mas que filha duma puta essa Michelle!
Luísa não estava bêbada, e tem certeza de que Sofia também não estava. E
sim, significou muita coisa para Luísa!
— Mas…
Lara ainda está sob o impacto da culpa e da ressaca moral que ainda não a
deixam aproveitar o sentimento de liberdade que essa pequena aventura
proporcionou.
Como ela passa o dia todo no píer com as crianças, é inevitável não cruzar
com Buba. Toda vez que ele vê Lara, abre um sorriso sabido, como se os dois
tivessem uma piada interna que ela não tem certeza de que conhece. Ele
parece perfeitamente feliz com o que aconteceu, e Lara se questiona por que
diabos não pode se sentir da mesma forma.
Ela sabe que eles não vão começar um relacionamento ou algo assim, e é
justamente por isso que não sabe como agir. Eles serão amigos? Amigos com
benefícios? Conhecidos com benefícios? Voltarão a ser quase
desconhecidos? Quais são as regras? Lara não sabe viver sem regras!
Já Luísa e Sofia parecem ter uma rixa da qual Luísa não foi avisada.
E não foi mesmo!
O mau humor mútuo delas funciona como uma força de repulsão em que uma
repele a outra, e quanto mais elas se afastam, mais estranhas ficam.
Sinceramente, acho que você irá concordar comigo, mas me parece exaustivo
ser jovem e estar apaixonada… ainda mais quando uma aspirante a vilã da
Malhação resolve aparecer para atrapalhar tudo.
Sem nenhuma ajuda celestial, creio que essas duas terão que se resolver
sozinhas.
Lara se vira para o brinquedo, pronta pra dizer que, sim, Luísa deve estar
vendo coisas, quando…
COM UM SORRISO!
— Eu falei que tinha coragem — Helena diz para os dois. — Agora é a vez
de vocês!
— Esse foi o melhor salto até agora — Pati diz, estendendo a mão para
Helena subir de novo no píer. — E aí? — Ela se vira para o casal de gêmeos
que ainda estão no travesseiro inflável. — Criaram coragem?
Pati abre um enorme sorriso como o de uma criança que estava louca para
brincar mas tinha vergonha de pedir.
— Depois eu pulo para catapultar você — Helena diz, ajudando ela a fechar o
colete —, porque as crianças são muito leves.
— Prontos?
Assim que o corpo de Pati afunda no travesseiro, a ponta com Júlio e Júlia
infla, jogando os dois alguns metros no ar, antes de caírem na água fresca do
lago. O colete que vestem faz com que voltem rapidamente para a superfície
com sorrisos que mal cabem nos rostos.
Helena sorri para eles, satisfeita de eles terem superado o medo e conseguido
se divertir.
***
Antes do jantar, Helena caminha até o único local em que o sinal de telefone
pega com razoável estabilidade no perímetro do acampamento.
Ela tenta fazer a mesma ligação três vezes seguidas, quando pela terceira vez
chama até cair, ela se irrita e tenta um segundo número.
A voz no outro lado da linha não tem nem tempo de falar alguma coisa, antes
de Helena começar o ataque:
— Aqui é Helena Lancellotti, cadê o seu chefe? … tá, e por que ele não
atende o telefone? — Helena franze a testa enquanto escuta a explicação. —
E quanto tempo vai durar essa viagem romântica? … à tarde só? Tá, diz para
ele me ligar SEM FALTA segunda-feira de tarde!
Helena caminha até a sede para se trocar antes do jantar e encontra com Lara
de malas feitas, pronta para visitar os filhos e dessa vez ela ficará com eles na
sua casa, sem Felipe. O que é ótimo, porque ela realmente precisa de um
tempo para organizar as ideias.
CAPÍTULO 27
O sábado amanhece chuvoso e meio melancólico com uma energia estranha
pairando sobre o Luneta. Eu não sei explicar, mas é aquele típico marasmo
que precede uma tempestade.
Como a previsão é de chuva pelos próximos dois dias, a equipe que trabalha
nos fins de semana decide fazer sessões de filmes para entreter as crianças.
— Por que você tá com essa cara? — Mila pergunta, sentando-se no sofá em
frente a ela.
— Que cara?
— Não foi um pé na bunda propriamente dito, foi mais uma mão no ombro
seguida de um convite para manter o status quo.
— Isso não faz o menor sentido — Mila diz. — A Sofia — ela enfatiza o
nome — disse que não quer nada com você?
— Disse!
— Primeiro — Mila diz —, eu não sou vidente! Mesmo assim, foi mal!
— Tudo bem, a culpa não é sua de ela não querer nada comigo.
— Mas pelo que você falou, ela não disse que não queria nada com você.
— Que parte do “não significou nada” você acha que eu posso ter
interpretado errado?
— A parte que ela não sabe que você quer algo mais, sua cabeçuda!
— Hã?
— Você beijou ela e depois vocês mal se falaram, ela não sabe o que você
quer de verdade, ela deve ter passado a noite pensando que você não queria
nada! Ela cortou você antes de levar um fora!
— Ela tem o direito de não querer nada comigo, Camila! — Luísa se irrita
um pouco, às vezes o otimismo de Mila é irritante mesmo, principalmente
quando ele te enche de uma esperança que pode ser falsa.
— Direito ela tem, mas ninguém fica olhando com aquela cara de cachorro
que viu um osso pra alguém que não quer beijar!
— Você acha?
— E se eu levar um fora?
— Você prefere que ela fique pensando que você não gostou de beijar ela do
que correr o risco de tomar um toco?
— Não!!!
Luísa apenas coloca um moletom com capuz para não se molhar com a garoa
e caminha até a casa de Sofia. Bate três vezes na porta antes de Chiquinho
abrir, não porque ele demora, mas porque ela está impaciente.
Chiquinho estuda Luísa por meio segundo antes de responder com certo
pesar:
Ela se vira e sai antes que ele consiga falar qualquer coisa. Não tem quase
ninguém ao ar livre, apenas alguns seguranças nas guaritas e um ou outro
monitor caminhando de um prédio para outro com uma sombrinha.
Sob a chuva fina ela caminha lentamente até o píer sul, chegando lá, ela tira o
tênis e coloca os pés na água.
A chuva caindo no lago a distrai e por alguns instantes ela se concentra nas
pequenas ondas que se formam.
Eu sei que seu pensamento não está apenas em Sofia, mas em tudo que
aconteceu desde que ela esteve aqui pela última vez há 11 anos, e também
nas decisões que tomou. Ela pensa em todas as coisas que fez ou deixou de
fazer por medo, medo de me perder, de perder as irmãs, de se machucar, de
sofrer…
Não há nada que se possa fazer; sofrer faz parte do processo. Faz parte da
vida; assim como perder também faz. Luísa sabe disso agora. E se perder,
sofrer ou se magoar é inevitável, é melhor arriscar e fazer aquilo que você
tem vontade, não se privar da vida para diminuir a dor, porque junto com a
dor, você também diminui as alegrias!
Ali sentada, olhando para o lago que ela pensou que jamais conseguiria
encarar de novo, ela decide que não importa o que aconteça, ela vai atrás do
que quer!
Luísa decide falar com Sofia na segunda-feira, até lá, ela pode pensar em
tudo que quer dizer.
***
Mila e Luísa, como esperado, estão levando uma surra da Helena, que jamais
admitiria perder em nada que envolve controle financeiro.
— O problema não é meu que você não sabe administrar o seu dinheiro —
Helena revida. — Mil e duzentos reais.
— Já chega vocês duas! As duas vão perder mesmo, que diferença vai fazer?!
Mila e Luísa estão sentadas no chão de pernas cruzadas e Helena está sentada
em um pufe, estão todas em volta da mesa de centro de madeira maciça em
que está o tabuleiro.
Lara continua:
— Ah! Finalmente!
CAPÍTULO 28
Por uma providência divina, que não teve nada a ver comigo, a segunda-feira
amanhece ensolarada; o que significa que ninguém precisará aguentar as
crianças com a febre da cabine.
Luísa acorda cheia de propósito e com o mesmo ímpeto de sábado quando foi
até a casa de Sofia. Ela não sabe se vai conseguir conversar com ela no
horário de trabalho, porque certamente não é uma conversa para ser escutada
pelas crianças. Mas o simples fato de ter decidido ter essa conversa, já é o
suficiente para deixá-la em uma montanha-russa de emoções.
Ela está confiante, mas está apavorada. Está segura, mas nunca se sentiu tão
nervosa. Está preparada para qualquer resposta de Sofia, mas sente que pode
morrer se levar um fora.
Tanto Mila quanto Sofia falaram que Luísa era lenta para perceber as coisas,
talvez seja mesmo, porque quando ela achou que estava vendo com clareza,
descobriu que era uma miragem. O problema é que, dentro dela, Luísa não
acha que era uma miragem, ela não acha que pode ter errado tanto ao
interpretar os sinais, e por isso o seu lado racional não consegue compreender
a reação de Sofia. Por outro lado, seu lado emocional está de coração partido!
Mas se tem uma coisa que Luísa aprendeu neste verão é que, às vezes, você
tem que deixar o racional guiar seus passos para curar o emocional
fragilizado. E é isso que ela vai fazer!
***
Lara sente uma paz de espírito tão grande que não sabe nem explicar. Desde
que tomou a decisão do divórcio, sente como se tivesse tirado uma tonelada
das suas costas.
Ela ainda não tem advogado, nem sabe ao certo como deve proceder, mas no
momento, nada disso importa.
— Como é que fecha essa porra? — Luísa pergunta, irritada tentando fechar
o capacete há quase cinco minutos.
— Calma, deixa que eu te ajudo — Sofia diz, soltando uma risada, talvez a
primeira do dia.
Sofia se vira para Luísa para ajudá-la, mas antes de se aproximar ela já
identifica o erro…
— Ah, é que tá faltando uma peça — Sofia diz e pega outro capacete junto ao
equipamento de segurança.
Luísa tira o capacete que lhe causou o estresse e Sofia se aproxima, ela
coloca o outro na cabeça de Luísa e fecha o engate sob o queixo. Luísa sente
sua respiração pausar por um segundo com as mãos ligeiramente trêmulas de
Sofia encostando de leve na sua pele. Os olhos de Sofia estão tão focados no
engate, que Luísa pensa que ele pode entrar em chamas a qualquer momento.
Sofia eleva o olhar do engate para os olhos de Luísa, e sei que ela fica
confusa por um segundo.
— Eu, hm… eu fui até a sua casa sábado e seu pai me contou — ela fala,
quase em um sussurro, mas Sofia está tão próxima que não precisa falar mais
alto que isso.
— Uhum.
— Eu queria fa…
— Hm, sim, quase tudo pronto — Sofia diz, girando ao redor do próprio
corpo, tentando procurar alguma coisa. — Ah — ela exclama, pegando um
mosquetão que estava no chão —, achei.
***
— Helena, me empresta o seu computador?
— Pra quê?
Elas estão todas na mesa do refeitório almoçando, como todos os outros dias,
sentam-se todas juntas, na mesma mesa próxima à janela.
Lara tentou a manhã toda mandar esse e-mail do seu celular, mas a internet é
mesmo precária aqui, só funciona realmente via cabo, e como o computador
do Chiquinho queimou, o único que ela pode usar é o de Helena.
— Qual a senha?
Luísa e Mila, viram para Helena para ouvir também, curiosas de repente.
As palavras fluem com naturalidade dos seus dedos enquanto redige o e-mail
mais importante da sua vida adulta. Por anos, Lara pensou que assinar o
divórcio seria aceitar a derrota e admitir o fracasso, mas agora ela percebe
que a vida não é uma competição e que a felicidade dela e dos filhos não está
atrelada a nenhum prêmio de esposa-barra-mãe do ano.
Para uma pessoa como Lara, que acredita que tudo na vida tem regras e
padrões a serem seguidos, é difícil enxergar a beleza do inesperado e do
improvável. Mas estou muito orgulhosa de ela estar disposta a tentar, pelo
bem dela e dos seus filhos. Às vezes, é no inesperado que você encontra o
padrão que tanto procura.
Lara sabe que não deveria abrir os e-mails da irmã, mas ela fica curiosa,
afinal de contas, o Luneta é de interesse de todas… Além do mais, depois é
só marcar como não lido.
A primeira coisa que nota é que aquele é apenas mais um de uma sequência
bastante longa. Lara faz uma leitura dinâmica por todos, até finalmente
chegar ao último que acabou de receber.
Helena, Luísa e Mila entram na sede para escovar os dentes antes do turno da
tarde.
— Sua filha da puta! — Lara repete assim que vê a irmã.
Lara sai da parte de trás do balcão da recepção para ficar de frente para as
irmãs no saguão.
— Que loophole?
— Que tal começar com por que diabos você fez isso pelas nossas costas? —
Lara indaga.
— O que importa se eu fiz pelas costas ou pela frente? — Helena diz, com a
testa franzida. — Eu fiz por todas nós, para podermos pegar a nossa herança.
— Não, mas calma aí — Luísa se mete no meio das duas. — Alguém pode
me explicar que caralho tá acontecendo?
— Ah, agora vão fingir que amam este lugar, como se não tivessem aqui só
pelo dinheiro também!
— Estar aqui pela herança não significa que eu não queira cumprir a última
vontade da mamãe! — Luísa diz, alterando-se também.
— Ah, vocês estão aqui — Pati diz ao entrar na sede. — Estava todo mundo
procurando vocês.
Todas se viram confusas para Pati, como se tivessem esquecido de onde
estavam e por quê.
Ela se vira mais uma vez para Helena com um olhar de reprovação, então sai.
Mila e Luísa também a seguem.
***
Infelizmente, elas têm que se aturar mesmo assim, porque o grupo de Helena
passa a tarde no arvorismo com Luísa e Sofia.
Sofia e Pati estão na plataforma base, na qual as crianças partem. Júlia deve
passar por uma pequena ponte pênsil de madeira até a outra base na qual
Luísa e Helena estão esperando. Durante todo o caminho ela está presa por
cabos e está completamente vestida com os equipamentos de segurança, mas
os cinco metros de altura do chão e o balanço da ponte a fazem tremer
levemente mesmo assim.
— Vai devagar e não olha pro chão — Helena diz, ao lado de Luísa.
— Vai pra merda, Luísa — Helena revida e se vira para Julia. — Falta pouco,
Juju!
Assim que a menina pisa na base, tanto Luísa quanto Helena forçam um
sorriso e a recebem com um high-five.
— Boa! — Luísa diz para Júlia, então se vira para Sofia e grita: — Quem é o
próximo?
— O Pedro!
— Que Deus ajude esse menino — Helena diz baixinho. — Mais
desequilibrado que uma galinha bêbada! — Júlia solta uma gargalhada com a
comparação. Helena se vira para Pedro e bate as mãos: — CONCENTRA,
PEPÊ!
Ela pode até ter convivido pouco com a irmã nos últimos anos, mas conhece
Helena muitíssimo bem para saber que ela detesta crianças e que jamais se
daria ao trabalho de fingir interesse. E é exatamente por isso que esta reação
lhe deixa confusa.
Helena aproveita que estão todos entretidos e tenta mais uma vez fazer aquela
ligação para o tal advogado. Ela caminha até o único ponto em que o sinal
funciona, que é perto da porteira de entrada do Luneta à esquerda da sede
descendo um pouco a colina.
***
Luísa e Sofia ficam para trás para arrumar os materiais e levá-los de volta ao
depósito.
Ela, embora não saiba o porquê, sabe que Sofia está zangada, mas, para ser
sincera, Luísa também sente seu sangue ferver com a informação de que
Michelle passou o fim de semana com Sofia.
— Não!
— Claro que não — Luísa revida com sarcasmo — Não é como se a gente
tivesse se beijado ou coisa assim!
— E daí, Luísa? — Sofia tenta soar indiferente, mas tanto eu quanto Luísa
conseguimos notar a sua voz falhando.
— Como “e daí”, Sofia? Você tá doida? Uma hora fica aí parecendo que quer
alguma coisa comigo, no minuto seguinte tá toda de chamego com a
Michelle. Eu não consigo acompanhar esse jogo duplo!
— Jogo duplo, eu? E você que está ficando com o Pepa e fica aí tentando me
seduzir!?
— Eu ficando com o Pepa? Você tá usando crack, guria? De onde você tirou
uma maluquice dessas?
A reação de Luísa deixa Sofia desestabilizada por um segundo.
— Não está?
— Claro que não! Você tá doida??? Primeiro que eu sou lésbica — ela fala,
franzindo a sobrancelha, como se fosse óbvio —, mas mesmo que eu fosse bi
ou pan não ia fazer a menor diferença, porque eu só quero ficar com você!
Sofia sente o ar faltando de seus pulmões, mas antes que consiga tomar uma
atitude…
— FOGO!
Quanto mais elas se aproximam do barulho, mais o pânico geral pode ser
sentido.
Elas freiam a corrida ao lado de Mila que, assim como elas, acabou de se
deparar com a cena:
A sede do Luneta sendo consumida por chamas de até três metros. O fogo sai
pelas janelas e claraboias que tiveram o vidro estourado devido ao calor. Ao
que parece o fogo já está queimando há um tempo.
— Não sei!
— O que…
A fala de Sofia tira as quatro do torpor que estavam, e Lara logo entra no
modo resolutivo.
Apesar do comando resumido, Pepa entende e sai correndo até o outro prédio
para pegar dois extintores.
Sofia mete a mão no bolso e tira um molho de chaves; ela o joga na direção
de Pati, que o pega no ar e sai correndo até a casa deles.
Luísa e Sofia correm para ajudar com as crianças menores que estão
paralisadas e chorando.
Tudo é um caos.
As chamas parecem cada vez mais altas. Uma sequência de gritos e choro é
desencadeada quando mais uma janela explode e o fogo começa a sair por
ela. Pelo que é possível observar, a parte da frente da sede está praticamente
toda comprometida e o fogo se alastra de forma mais lenta para a parte de
trás.
— Cadê o Júlio? — Helena pergunta ao ver o grupo dela reunido com Betina.
— Ele disse que viu um gato lá dentro — Pedro diz com uma expressão de
puro pânico no rosto.
Júlia olha para ele com olhos arregalados, estava tão hipnotizada pela cena
assustadora a sua frente que não notou quando o irmão saiu de perto dela.
Helena reconhece o olhar de terror da menina.
Pedro começa a chorar porque não sabe ao certo, mas está apavorado. Helena
coloca a mão no ombro dele para acalmá-lo, em seguida toma uma decisão e
sai correndo na direção da entrada da sede.
Ela corre atrás, mas Sofia a segura pelo braço, para impedi-la. Assim que
Luísa se desvencilha dela, a varanda inteira do prédio despenca, trancando a
passagem.
Helena ouve a varanda cair e se vira para ver que a saída está completamente
bloqueada. A fumaça faz seus olhos lacrimejarem e ela sente sua garganta
fechando. O calor é absurdo e ela não perde tempo em tentar encontrar Júlio.
— Tia Helena! — a voz dele é fraca mas é o suficiente para Helena saber que
ele está acordado.
Ela caminha até ele com dificuldade, com a fumaça deixando cada vez mais
difícil sua respiração. Ela tropeça em um escombro e cai em cima das
chamas, mas se levanta rapidamente e bate com a mão para apagar o fogo do
tecido do uniforme.
Por fim, ela chega ao menino, que já começa a perder a consciência de tanto
inalar a fumaça.
Helena pega ele e Elvira no colo, e estuda a melhor saída. Ela percebe que a
porta do quarto de Mila é a que está menos bloqueada e pensa que se
conseguir entrar lá, poderá sair pela janela.
Tudo fica mais difícil com uma criança no colo, mas Helena consegue
desviar dos escombros e chega ao quarto de Mila. Felizmente, o cômodo
ainda não está muito consumido pelo fogo e ela consegue chegar à janela
com certa facilidade.
— Pega a Elvira — Helena diz, dando a gata para Luísa pela janela.
Ela pega Elvira e a coloca com cuidado no chão do lado de fora. Então se vira
mais uma vez para a janela para poder pegar Júlio.
Mila e Lara chegam até elas. Lara, que não sabia que Helena havia entrado,
leva a mão à boca.
Com cuidado, Helena tenta passar o menino pela janela, mas ele é pesado e a
janela é alta.
Helena encara Luísa por um segundo e assente com a cabeça antes de soltar
Júlio. Luísa segura o menino com firmeza em seus braços.
— Você vem comigo — ela diz, com Júlia nos braços. — Ele precisa de
espaço!
Sofia também chega até elas e pega Elvira que está no chão, e pela letargia
também foi afetada pela fumaça.
Sofia assente. Ela entrega Elvira para Lara e corre para ligar para a
emergência mais uma vez.
Lara segura Elvira com uma mão e com o outro braço ampara Helena, que
não para de tossir.
Elas caminham até a praça perto do lago onde o calor é menor. Luísa carrega
Júlio, Mila carrega Júlia, e Lara ampara Helena e Elvira.
Ela aparece em questão de minutos com duas garrafas e um pote de água para
Elvira.
Helena está com os braços e parte da perna queimados, Júlio ainda está
desmaiado nos braços de Luísa.
— Ele vai ficar bem, minha linda — Mila diz a Júlia que está chorando no
seu colo. Júlia abraça Mila com força pelo pescoço, que tenta acalmar a
menina acariciando suas costas.
— Eles estão vindo — Sofia informa, assim que se aproxima. — Eu falei que
tinha gente ferida.
Luísa tenta limpar o rosto de Júlio que está cheio de fuligem com a mão
úmida de água. Então, ela coloca a mão sobre o peito dele para sacudi-lo com
cuidado, para tentar acordá-lo.
Lara segura a mão de Helena, que observa nervosa a cena. Quando Júlio
começa a tossir, Lara nota Helena soltar um suspiro de alívio.
Ela dá água aos poucos para o menino, então o deita com cuidado no banco e
se agacha ao seu lado, que não para de tossir.
Luísa começa a roer as unhas, ansiosa, e Sofia pega a mão dela e entrelaça
seus dedos, para mostrar que está ali. Luísa aperta com certa força.
Começa a chover mais uma vez no Luneta, uma chuva forte e constante.
Quero pensar que foram mesmo os meus pedidos aqui que se realizaram.
A força das hélices faz a fuligem da sede se espalhar para todo lado e nem
mesmo a chuva é capaz de conter as cinzas.
Enquanto os paramédicos ajudam Helena e Júlio e os acomodam no
helicóptero, Júlia diz que não vai deixar o irmão de jeito nenhum! O
sentimento é compreendido com facilidade por Mila, Lara e Luísa, que
também insistem em ir.
Com ajuda da chuva e dos bombeiros que não tardaram tanto a chegar, em
pouco mais de uma hora o fogo finalmente é extinto e sobra apenas as ruínas
do que um dia foi a sede do Luneta.
CAPÍTULO 30
Por insistência de Lara, o helicóptero está levando-os para o hospital
particular no qual a médica de confiança da família trabalha.
Luísa entrega o celular para Lara e volta a roer a unha. Eu sei que ela daria
qualquer coisa por um cigarro agora.
— Qual a senha?
— O aniversário do papai!
— Tá, eu vou ligar pro Felipe — Lara explica —, ele tem o número da dra.
Inês.
Apesar do clima de tensão e nervosismo, Lara solta uma risada, que é imitada
por todas, até mesmo por Helena que está com a máscara de oxigênio no
rosto.
A ligação é breve, já que o celular de Luísa tem apenas 2% de bateria, mas
Felipe garante que irá avisar a médica de que eles estão indo para a
emergência.
— Luísa, eu preciso do seu celular — Lara pede, tão logo ela se aproxima. —
Nenhum dos dois tem documentos, preciso ligar para o abrigo e pedir uma
cópia dos documentos do Júlio. E acho que o Armando consegue os da
Helena.
Luísa checa o seu celular e vê que já está com 35% de bateria, ela desconecta
e entrega para Lara, que entra no modo “mãe resolvendo problemas”.
— O Júlio vai ficar bem? — Júlia pergunta para Lara, cheia de ansiedade no
olhar.
— Claro que vai, meu amor! — Lara diz se agachando na frente dela e
pegando uma das mãos da menina. Ela ainda tem os olhos vermelhos de
chorar, mas parece mais calma. — Ele só inalou muita fumaça, mas ele vai
ficar bem, não se preocupa.
— E a tia Helena?
— Também! Os dois vão ficar bem — ela responde, quando Júlia assente
com a cabeça, Lara vira para Luísa. — Eu posso usar seu celular para acessar
a minha conta no banco?
— Pra pagar as despesas. A Helena tem o plano que cobre quase tudo, mas o
Júlio não deve ter.
— Paga com a minha conta — Luísa diz. — Meu cartão tá no Apple Pay.
— Tem certeza?
Todas elas ainda estão com o uniforme do acampamento: blusa amarela clara
e bermuda cáqui; além de sujas e descabeladas. Por conta disso, volta e meia
recebem algum olhar curioso ou julgador dos visitantes que perambulam pelo
elegante hospital.
Júlia está mais uma vez no colo de Mila, Luísa está sentada ao lado delas
balançando os pés com certa impaciência e Lara ainda está mexendo no
celular.
— Tentando alugar um carro pra gente poder voltar… Você tem a CNH
digital, né?
— Tenho.
— Beleza, então.
— A dra. Inês tá vindo — Mila diz, levantando-se.
— O Júlio está bem, mas vai ficar no oxigênio esta noite por precaução. A
Helena também está bem no que diz respeito à parte respiratória, mas ela
sofreu algumas queimaduras nos braços e na perna direita.
A dra. Inês assente com a cabeça e sai. Lara solta um suspiro aliviado e
abraça Luísa, que enterra o rosto no ombro da irmã. Mila volta a se sentar e
puxa Júlia para o seu colo e um abraço.
***
— Ju!
Júlia corre até Júlio e pega sua mão, ele abre um sorriso que confirma que
está mesmo bem.
Lara e Luísa vão até Helena, mas não a abraçam devido às queimaduras.
Cada uma pega uma das mãos. Luísa lhe dá um beijo na bochecha.
Mila caminha até Júlio e se senta do outro lado da cama, o lado que não está
ocupado por Júlia.
— Obrigada por salvar a Elvira — ela diz, pegando a mão dele. — Mas
nunca mais faz uma coisa dessas, pelo amor de Deus.
— Ela tava presa lá dentro, eu vi ela tentando sair pela janela — ele explica
—, mas a janela tava fechada.
Mila pensa na sua gata e torce para que alguém no acampamento esteja
cuidando dela.
— Obrigada, você foi muito corajoso! — Mila diz, então repete: — Mas
nunca mais faça isso!
Depois de se certificar de que ele está bem, Júlia solta a mão do irmão e vai
até Helena.
A cama-leito é muito alta, mas, mesmo assim, ela escala a grade lateral para
abraçar Helena. Lara se prepara para dizer que não pode, ou que vai
machucá-la, mas Helena faz um sinal com a mão para não falar nada.
Júlia toma cuidado para não encostar nas partes queimadas, mas abraça
Helena pelo pescoço, que leva a mão não queimada até as costas da menina,
para confortá-la. Lara, Luísa, Mila e Júlio apenas assistem a cena. Júlia não
diz nada, mas todos sabem que esse abraço é um agradecimento pelo que
Helena fez.
Agora que sabe que tanto a irmã quanto Júlio estão bem, a fome, que era
inexistente mais cedo, aparece com força total.
— Bom, vamos todo mundo de uma vez — Helena diz com certa rabugice,
mas tem um sorriso.
Falando em comida…
As três irmãs a encaram por um tempo, sem saber o que falar. Com a
confusão, todas já haviam esquecido o caso.
Helena continua:
— Por que você não disse nada hoje mais cedo? — Luísa pergunta.
— A gente sabe!
— Helena — Lara diz em um suspiro, como uma mãe exausta com os filhos.
— Tarde demais — Luísa diz, mas não tem malícia nem acusação em seu
tom. — A gente já acabou com ele.
— A gente não sabe em que estado a sede está, Lu — Mila, com seu
otimismo habitual, intervém.
— Não! A Mila tem razão — Helena fala, e as três olham para ela como se
tivesse sido abduzida por um extraterrestre e trocada por um avatar. — A
gente não sabe o estado que está.
***
Por volta das 20h, elas decidem ir à casa de Lara, que é a única que tem
fechadura biométrica, já que todas saíram sem nenhum pertence. Júlia reluta
um pouco em se separar do irmão, mas por fim aceita ir com elas.
Luísa chama um Uber e já faz um pedido no Orso para o jantar. Elas tomam
um banho e dormem algumas horas antes de voltar para o hospital.
CAPÍTULO 31
Depois da visita da médica na manhã seguinte, Helena e Júlio ganham alta.
Lara e Mila levam os gêmeos até o alojamento para que descansem mais um
pouco já que a noite anterior foi tumultuada, e Luísa e Helena param, lado a
lado, em frente às ruínas da sede.
Luísa procura a mão da irmã e entrelaça seus dedos, mas nenhuma das duas
fala nada. Sei que pensam naquela conversa em que brincaram que se a sede
queimasse elas poderiam receber a herança sem cumprir a condição do
testamento.
Lara e Mila retornam e se juntam a elas, Lara pega a mão de Luísa e Mila
passa um braço pelos ombros de Helena.
— Ainda bem que a mamãe não tá aqui pra ver isso — Helena comenta.
Elas não olham para Mila, mas escutam o que ela tem para dizer.
Normalmente o otimismo dela em um momento de desastre é bastante
irritante. Porém, dessa vez, elas sentem que precisam das palavras
encorajadoras da Mila.
Ela continua:
— Não é o prédio que faz esse lugar. Não somos nós, não é o lago, nem as
atividades. São as pessoas e as experiências que elas têm aqui!
Lara assente com a cabeça, confiante de que sim, elas podem mesmo
recuperar o Luneta.
— Mila — Lara diz —, eu acho que você deveria assumir depois que a gente
reconstruir.
Acho que no fundo, não é surpresa para ninguém que o Luneta fique mesmo
para Mila, ela é a cara desse lugar. Ela tem o amor pela natureza que meu pai
tinha, e o eterno otimismo e desejo de proporcionar bons momentos a todos
que a cercam que o Leo tinha.
Ela ainda está distraída pensando em tudo que pode ser feito para melhorar
ainda mais o Luneta quando sente algo na sua perna. Ela olha para baixo a
tempo de ver dois pares de olhos negros a encarando.
A gata mia de maneira suave, aparentando saúde. Mila a segura nos braços e
faz um cafuné atrás das orelhinhas felinas, sentindo-se aliviada de Elvira estar
bem.
***
Luísa corre até a casa de Chiquinho e Sofia enquanto a chuva começa a cair
mais uma vez.
Todo seu corpo está meio trêmulo, um pouco pelo frio inesperado para
fevereiro, mas principalmente pela ansiedade. Apesar disso, eu sinto que ela
está confiante.
— Luísa? — Sofia pergunta surpresa ao abrir a porta. — Qua… quando você
chegou?
— Agora há pouco.
— Meu Deus, você tá toda molhada — Sofia diz, notando o estado dela. —
Entra lo…
Ela não tem tempo de terminar a frase, porque Luísa encurta o espaço entre
elas e a beija.
Sofia não demora nem um segundo para entender o que está acontecendo e
retribuir, levando as mãos aos cabelos molhados de Luísa.
Quando ela interrompe o beijo, alguns segundos depois, é apenas para tentar
explicar com palavras aquilo que ela já explicou com gestos:
— Eu não sei se tá acontecendo alguma coisa entre você e a Michelle, ou, sei
lá, você e outra pessoa, mas eu tô apaixonada por você desde… desde os sete
anos, eu acho — Luísa fala tudo como uma metralhadora. — E tudo bem se
você quiser ir devagar e tals, eu posso te levar pra jantar, não sei, mas…
Dessa vez é Sofia quem a faz ficar quieta, retomando o beijo. Luísa consegue
sentir Sofia sorrindo contra seus lábios. Ela fica na ponta dos pés para tentar
diminuir a diferença de altura, e Sofia baixa as mãos do seu rosto para a
cintura, trazendo-a para mais perto.
— Não tem mais ninguém, sua tonta — Sofia fala entre beijos breves —
Nunca teve!
— Acabamos de chegar.
— Sim, estão sim. A Helena tá com algumas queimaduras, mas todas leves.
— Que bom! — ele diz com um sorriso. — E vocês — Ele aponta com o
dedo para as duas — se entenderam finalmente?
— E o que você queria, pai? — Sofia pergunta e pega a mão de Luísa para
levá-la para dentro de casa.
Sofia se senta no sofá e puxa Luísa para fazer o mesmo. Luísa reluta por estar
molhada, mas Sofia a puxa de novo e Luísa cai sentada ao seu lado.
Nem preciso continuar acompanhando para saber quem vai mandar nessa
relação!
Chiquinho se junta a elas, se sentando na poltrona em frente.
— A culpa não foi de vocês, Luísa — Chiquinho diz com gentileza. — Foi
um curto-circuito. Os bombeiros identificaram o foco inicial; foi um dos
interruptores do saguão, aquele que ficava plugada a luminária ao lado da
poltrona.
— Falando nisso — Sofia diz para Luísa. — Você precisa tirar essa roupa
molhada. Vem!
Assim que Sofia fecha a porta do seu quarto, Luísa não tem nem tempo para
pensar antes de sentir os lábios de Sofia mais uma vez.
Eu ia falar que elas parecem duas adolescentes, mas creio que sejam mesmo.
Tenho a impressão de que a adolescência dura mais tempo nos dias de hoje.
A Mila, por exemplo, foi adolescente até os 29! Mas fico feliz por elas. Essa
é mesmo uma das melhores fases da vida e merece ser aproveitada.
— Porque você tá toda molhada, sua besta. Deveria tomar um banho pra não
ficar doente.
Luísa ainda está com o mesmo uniforme de ontem. Apesar de terem dormido
na casa da Lara, nem ela, nem Mila quiseram pegar uma roupa emprestada.
Elas apenas lavaram os uniformes e o vestiram de novo nessa manhã.
— Claro! — Sofia confirma. — Eu vou pegar uma roupa seca pra você.
Sofia nota o olhar esperançoso no rosto dela, e não demora muito para
entender do que a pergunta realmente se trata.
Aquele violão era o xodó dela, ele era do Leo, e ela se apossou dele depois da
sua morte. Luísa sente o nó na garganta se formando. Sofia leva a mão ao
queixo de Luísa e ergue sua cabeça.
— Eu sinto muito!
Luísa apenas a encara com os olhos marejados. Sofia puxa ela para um
abraço e Luísa enterra seu rosto sob o queixo de Sofia. Foram muitos
acontecimentos nas últimas 24 horas e Luísa ainda não conseguiu processar
tudo, mas ali, contra o peito de Sofia, parece o melhor lugar para fazer isso.
Sofia ampara Luísa de um jeito que Luísa nunca havia permitido a ninguém
antes, e esse simples ato de vulnerabilidade e confiança pode parecer pouco,
mas é um grande salto para Luísa.
— Eu andei lá pelos escombros essa manhã e achei isso — ela diz, mostrando
a gaita vermelha de Leo.
***
A chuva finalmente dá uma trégua no começo da tarde e o sol toma seu posto
soberano no céu.
Mila caminha até o píer que, ao longo dessas semanas, se tornou seu local
preferido. Ela vê a figura do Chiquinho de pé, observando o lago com certa
melancolia.
— Acho que a gente pode dividir daqui pra frente, o que você me diz?
O lago está calmo agora. Como não tem vento, não é possível ouvir a
rebentação suave a qual Mila já se acostumou durante suas sessões de ioga.
— Você sabe que apesar do seguro, esse incêndio vai trazer muitas despesas,
né? — ele diz com certo desânimo. — O Luneta não tem caixa para cobrir
todos os gastos.
— Eu sei — ela responde com lucidez. — Mas nós vamos reconstruir a sede,
e esse lugar vai voltar aos seus dias de glória! Eu não tenho mais nada para
fazer com a minha parte da herança mesmo.
***
Helena caminha até o alojamento das crianças e bate de leve na porta antes de
abri-la com cuidado.
Júlia está terminando de arrumar a sua mochila e Júlio está sentado na cama
da irmã ainda mantendo repouso.
Ela entra e se senta na cama ao lado da que Júlio está. Esse alojamento é
apenas das meninas, mas as outras três companheiras de quarto de Júlia
aproveitam o resto do tempo que tem no acampamento para brincar lá fora.
Júlio divide o alojamento com Pedro e mais dois meninos, que também estão
aproveitando os últimos minutos.
— Qual delas?
— A Lara!
— Ela é legal — Júlia diz. — As três são.
Júlia checa todas as gavetas mais uma vez, e Júlio balança a cabeça em
descrença.
Helena pega a mochila de Júlio e coloca sobre seu ombro não ferido.
Agora que a chuva passou, o ar está úmido e gelado, apesar de ser o auge do
verão e ter sol. Helena estende uma mão para Júlio se levantar e, assim que
atravessam a porta do quarto de Júlia, estende a outra mão para ela.
Lara, Mila, Luísa, Sofia e Chiquinho também estão ali se despedindo das
crianças com as quais se divertiram nesse verão prematuramente encerrado.
— Eu não sou tia de vocês — ela diz, mais por hábito do que qualquer outro
motivo, mas dessa vez a frase trava na sua garganta.
Helena tem que se esforçar para manter a postura, mas sente seus olhos
umedecendo também.
— Bom, a gente ainda tem que comer aquele hambúrguer — Helena lembra.
— Claro que não! Promessa é dívida — ela repete a mesma frase que disse a
eles no dia da catapulta.
Júlio tira do pulso uma pulseirinha feita por ele mesmo com elástico e
missangas coloridas.
— Isso é pra você — Ele pega a mão de Helena e coloca a peça colorida no
seu pulso. — Por ter me salvado.
— Obrigada!
— Logo a gente come aquele hambúrguer, ok? — Helena diz e puxa os dois
para um abraço.
***
Sofia está sentada no píer central, encostada no guarda-corpo com Luísa
sentada entre as suas pernas. Ela abraça Luísa pela cintura e apoia o seu
queixo no ombro da minha filha.
— Quem diria que 68 crianças seriam tão barulhentas — Sofia diz com um
sorriso.
Luísa que está com as mãos entrelaçadas às de Sofia, as puxa ainda mais,
fazendo-a apertar o abraço. Sofia planta um beijo na bochecha de Luísa.
— Vamos parar com essa baixaria aí — Helena diz batendo as mãos para as
duas, que levam um susto.
Helena dá uma risada da cara delas. Atrás dela, vem Lara e Mila carregando
uma caixa térmica.
— Por que sempre tem alguém para atrapalhar o nosso beijo?! — Sofia
pergunta em tom de queixa, mas tem um sorriso no rosto.
— Agora você sabe por que eu ficava longe da minha! — Luísa diz para
Sofia.
— Deixa de ser chorona, pelo menos você arrumou uma namorada! — Lara
argumenta. — Eu só consegui um divórcio!
— Tem lugar pra mais um aí? — Chiquinho aparece no píer também e Mila
entrega uma cerveja para ele, depois ela se senta ao lado de Lara e Helena.
Todas as irmãs olham para ela com cara de quem está prendendo o riso, e
Luísa arregala os olhos ao se dar conta do que disse. Ela se vira com rapidez
para Sofia:
Luísa abre um sorriso bobo, daqueles que te fazem suspirar de tanta fofura,
mas dura apenas um segundo…
— Acho que a gente deveria comemorar as coisas boas — Mila diz. — Por
exemplo, a nossa sociedade! — ela diz para Chiquinho, que ergue a longneck
para ela.
— E o meu divórcio!
— Eu o quê?
— Espero que sim — ela diz de forma enigmática. — Eu tô com planos para
o futuro, mas não quero falar ainda. Quero esperar dar certo!
— Ao futuro!
A nova sede fica exatamente no mesmo lugar que a antiga e mantém a vista
privilegiada para o lago, assim como o bangalô que Mila construiu para
morar.
Apesar de mais recuado, a posição mais alta no terreno garante uma vista do
lago e das montanhas preservadas que cercam o Luneta.
E sei que se eu ainda estou aqui hoje, é porque é um dia especial, um dia
importante para os Lancellottis. Não é aniversário, nem casamento de
ninguém, mas hoje será a primeira vez, desde o verão, que todos estarão aqui,
e eu não perderia isso por nada.
Mila está há três dias correndo de um lado para o outro para que tudo fique
pronto a tempo, e para que as irmãs vejam a nova sede em toda a sua glória.
Murilo chegou na sexta-feira para ajudar a instalar a nova iluminação do
jardim. Luísa e Sofia chegaram no sábado, também para ajudar com os
últimos detalhes e com os preparativos do almoço de domingo.
— Mi, é essa a toalha que vai na mesa? — Luísa pergunta à irmã, segurando
uma toalha de linho cru.
— Tá.
Assim que Helena estaciona e a porta do carro é aberta, Luísa e Mila abrem
um sorriso.
Mila e Luísa correm até os gêmeos para abraçá-los antes mesmo de eles
conseguirem descer do carro.
Esse almoço também serve como boas-vindas para os mais novos membros
da família Lancellotti: Júlio e Júlia.
Ela repete os abraços apertados, cheios de beijos nas bochechas nos dois
também.
Quem diria que Luísa se tornaria a tia que aperta as bochechas e diz “meu
Deus, como você cresceu” toda vez que vê os sobrinhos?!
— Ela disse que ensinou — Lara diz. — Não que ensinou bem!
Luísa cai mais uma vez na gargalhada. Mas tenho que concordar que uma
criança de 10 anos ensinando uma de 4 a tocar flauta doce é algo realmente
enlouquecedor.
— Espera — Helena se vira para ele. — Tá mesmo? Por que você não me
disse?
Por mais que eu tenha tramado toda essa situação, nunca imaginei, nem por
um segundo, que terminaria com a Helena adotando duas crianças.
As irmãs param em frente à nova sede, no mesmo lugar em que, sete meses
antes, decidiram reconstruí-la.
Sofia leva as crianças até o parque, já que os gêmeos passaram a viagem toda
falando disso, e Lucas e Alícia estão desesperados para conhecer.
Espero que o trepa-trepa não faça uma nova vítima hoje.
— Vocês têm que ver lá dentro! — Mila diz, tomando a dianteira e puxando
Helena pelo braço.
Por dentro, a sede está bastante diferente da original. Mila optou por um
espaço mais aberto e iluminado, mas, assim como meu pai, ela também
manteve os quartos para a família. Há um para cada irmã e mais alguns para
os sobrinhos ou alguma visita.
— Eu sei que vocês preferem ficar lá no Chiquinho — ela diz para Luísa. —
Mas quando vocês quiserem ficar sozinhas, esse é de vocês!
Mila fez Luísa esperar as irmãs estarem todas aqui para verem a sede juntas.
O que eu posso dizer? Minha filha é uma sentimental!
— Qual?
— Respondi na sexta — ela comenta. — Só que vamos ter que marcar uma
reunião com ele na semana que vem mesmo assim — ela solta um suspiro. —
Eu não sei se vou dar conta disso tudo!
E sei que ela está adorando os novos desafios, mas, mais do que isso, sei que
ela se sente bem em estar fazendo algo pela família. Pelos filhos, pelas irmãs
e também por mim.
— Vem ver os quartos das crianças! — Luísa chama as duas, que estão no
corredor.
Luísa, que por tanto tempo desejou apenas paz de espírito, hoje consegue
enfim dormir em paz e por quase oito horas seguidas. Às vezes ainda tem um
ou outro pesadelo comigo ou com Leo, mas quando acontece ela conta para
Sofia, que sempre escuta com atenção e a acalma.
Faz dois meses também que fumou o último cigarro e está firme na resolução
de parar de fumar e adquirir um estilo de vida mais saudável. Você tinha que
ver a cara de felicidade da Mila quando Luísa pediu algumas dicas de ioga e
meditação, parecia que era uma manhã de Natal! As dicas da Mila e a terapia
tem sido maravilhosas para ela, além, é claro, de ela estar apaixonada!
Tudo funciona melhor quando se está apaixonada!
Assim que terminam de ver todos os cômodos, elas caminham juntas até o
bangalô da Mila. Ele é pequeno, mas é a cara dela! Com espaço para meditar
— o que deixou o Chiquinho muito feliz, já que ele voltou a ter o píer só para
ele pelas manhãs — e com ampla vista para o lago.
O clima não poderia estar mais perfeito para um almoço ao ar livre. E, apesar
da falta de experiência das quatro em organizar um almoço em família, elas
conseguem servir todos os pratos — que Mila pediu de um restaurante — e
deixar a mesa bonita e convidativa.
Como acontece sempre que muitas pessoas estão ao redor da mesma mesa, as
conversas se fecham em grupos menores e aquele burburinho típico de
almoço de família toma conta.
— É porque a sua parte é só uma mala com três mudas de roupa e uma
escova de dentes — Sofia revida.
— Eu não sei como você consegue viver assim! — Sofia diz para a
namorada.
— Eu quero propor um brinde! — Lara diz, batendo com uma faca na taça
em sua mão.
Talvez seja hora de perdoar a minha sogra por sempre ter ficado no meu pé,
querendo me ensinar a educar as minhas filhas, e dar o braço a torcer e
admitir que, se foi ela mesmo que me deu essa ideia, foi uma excelente ideia.
— Mila, isso é água? — Luísa pergunta ao ver que a taça na qual a irmã está
bebendo não tem espumante.
— O quê?
— É sério?
Helena, Luísa e Lara avançam sobre a irmã para abraçá-la. E uma sequência
de gritos e aplausos pode ser ouvida.
Agora sei que, mesmo que Júlio e Júlia não tenham convivido comigo, e que
eu não irei segurar o filho de Mila no colo, ainda assim eles vão saber quem
foi a Vovó Leonora, assim como saberão quem foi o Vovô Leo! E para mim
isso basta. Porque o amor não se resume a pegar no colo e trocar abraços.
Amor é um legado!
Mas, como eu disse, nada disso era sobre mim, era sobre minhas filhas, então
agora que meu trabalho está cumprido, é hora de ir, porque o Leo está me
esperando.
E as irmãs Lancellotti viveram felizes para sem… Não, calma, acho que isso
tá fora de moda! Como se termina uma história moderna? Com alguma
citação, talvez?
Ninguém pode prever o futuro, e talvez o “felizes para sempre” não exista.
Afinal, a vida é feita de surpresas, às vezes boas, às vezes nem tanto. Sei que
elas não serão sempre felizes como neste momento, mas sei que mais
momentos como esse virão e que em todos eles, elas terão uma à outra. E,
para mim, isso é suficiente.
Fim.
AS AUTORAS
Escrever em dupla não foi algo que Bruna e Gisele planejaram, mas apenas
mais uma das coisas que o casal de autoras descobriu gostar de fazer juntas.
Elas se conheceram em 2012, mas o casamento — entre elas e entre suas
escritas — só aconteceu em 2018. Muito do que escrevem tem inspiração na
rotina e em seu próprio relacionamento, principalmente nas situações de
humor cotidiano.
Amélia é uma jovem chef de cozinha que busca sucesso dentro da alta
gastronomia. Depois de uma entrevista de emprego desastrosa, ela vê sua
coleção de fracassos aumentando. As coisas não saíram nem um pouco como
ela planejou quando se mudou para Buenos Aires para perseguir seu sonho, e
agora ela está desiludida.
Assim como na carreira, as coisas também não vão bem no quesito amor, e
ela sente que precisa, desesperadamente, de uma volta por cima. Decidida a
dar uma chance ao destino, ela deixa um bilhete com seu endereço de e-mail
dentro do seu livro preferido e o vende no sebo. Se tudo der certo, ele vai
trazer a garota dos seus sonhos. Simples assim. Exceto que, para Amélia,
nada acontece de forma simples ou sem muita confusão.
Uma Pitada de Sorte é uma comédia romântica que tem como pano de fundo
o charme de um inverno em Buenos Aires e a nostalgia do ano de 2007. Uma
história com protagonismo feminino, amizades reais e uma mãozinha do
destino.
Em 1952, na era de ouro da aviação, quando voar era apenas para os mais
ricos, ser aeromoça era uma profissão dos sonhos. Então, quando a chance de
trabalhar para a Northern Star Airlines caiu no colo de Jane Smith, ela não
pensou duas vezes!
Jane sabia que sua vida estava prestes a mudar drasticamente, mas o que ela
não esperava, era que, ao aceitar se passar por outra pessoa, ela iria descobrir
algo muito importante sobre si mesma.
Ao tentar esconder seus segredos, as duas se veem cada vez mais enroladas
em suas próprias mentiras, e as confusões vão tomando proporções cada vez
maiores neste encantador romance épico.