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Baldassari

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Só Por Um Verão é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e


incidentes são produtos da imaginação das autoras ou são usados
ficticiamente. Qualquer semelhança com eventos reais, ou pessoas, vivas ou
mortas, é mera coincidência.

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de


1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009.

Autoras: G.B. Baldassari

Capa: Luisa Fantinel

Diagramação: Bruna Baldassari

Revisão: Tânia Silva

ISBN: 978-65-00-55408-3
PLAYLIST
A playlist de "Só Por Um Verão" e também a playlist especial do “Luau Só
Por Um Verão" estão disponíveis no Spotify, para ter acesso, selecione o
modo "buscar" no aplicativo, click no ícone da câmera e faça o pareamento
posicionando sobre os códigos abaixo.

Só Por um Verão:

Luau SPUV:

Caso leia por outros periféricos — celular, computador ou tablete — basta


clicar aqui: Só Por um Verão e Luau SPUV
“Para sempre é composto de agoras”
Emily Dickinson
CAPÍTULO 1
O dia do meu velório é a primeira vez, em dois anos e meio, que vejo minhas
quatro filhas reunidas sob o mesmo teto. Elas, obviamente, não sabem que eu
posso vê-las… quer dizer, Mila sabe.

— Mamãe deve estar feliz em nos ver reunidas de novo, ainda que seja em
um momento tão triste — diz Mila, próxima ao meu caixão.

— Que mané feliz, Camila?! Mamãe está morta! — retruca Helena, a minha
filha mais velha, que não desviou os olhos do celular nem mesmo enquanto o
padre dizia algumas palavras mixurucas e decoradas em minha homenagem.

— Que bruta, guria! — Lara, a penúltima na escadinha etária, repreende. —


Dá pra ter um pouco mais de tato?

— O quê? Ela tá morta! O que você quer que eu faça? Finja que ela pode nos
ver?

Para ser justa, eu posso.

Helena sempre foi a mais parecida comigo: objetiva, decidida e sem tempo
para besteiras.

Infelizmente, não me escapa a ironia de que o ceticismo dela também é


herança minha. Eu mesma jamais acreditei neste tipo de coisa, se acreditasse,
provavelmente teria me portado um pouco melhor em alguns velórios em que
estive.

— Pode pelo menos não ser tão insensível com a Mila?!


Lara, apesar de ser dois anos mais nova do que Mila, sempre foi sua maior
defensora. Na escola, Mila era do tipo que atraía olhos curiosos e acumulava
comentários maldosos pela forma que se vestia e via o mundo.

Ela é aquilo o que os vivos chamam de pessoa excêntrica; que afirma sentir a
energia dos outros e a presença dos mortos, acredita em toda forma de cura
através da natureza e tem certeza de que a sua gata, Elvira, é a encarnação da
minha sogra.

Como já disse, Helena herdou seu ceticismo de mim, então, não me orgulho
em afirmar que sempre endossei o coro de que Mila era um tantinho quanto
aluada e tentei em um ou outro momento convencê-la a ser um pouco mais
racional. Acontece que agora, estando aqui do outro lado, por assim dizer,
percebo que ela é apenas sensitiva e que está certa a respeito de tudo.

Quer dizer, menos sobre Elvira ser minha sogra; essa, infelizmente, ainda está
aqui no plano espiritual, atormentando minha vida após a morte.

— Ela já tem 29 anos, Lara — Helena revida em um sussurro grave, como se


Mila não estivesse a meio metro de distância e pudesse ouvi-la. — Tá na hora
de começar agir de acordo com a idade dela.

— Pff! — Luísa bufa e revira os olhos, de saco cheio das discussões das
duas. — Eu vou procurar alguma coisa para beber. Que tipo de velório não
tem cerveja?

Luísa é a mais nova e sempre foi um espírito livre; gosta de viver


intensamente e tem uma energia magnética que atrai a maioria das pessoas.

Esse apreço pelos etílicos e falta de delicadeza social, ela herdou do meu
marido.

— Todo tipo, Lu, isso é um velório, não uma rave! — Lara repreende.

Luísa revira os olhos mais uma vez e se volta na direção da saída para
procurar uma cerveja ou coisa que valha, não sem antes levantar o dedo do
meio sobre os ombros para Lara e, de certa forma, para o meu caixão.
Isso ela também herdou do pai.

— Eu vou dar o fora daqui também — anuncia Helena vendo na saída de


Luísa a oportunidade perfeita.

— Eu tenho que pegar o Lucas e a Alícia na escolinha, daqui a pouco eu


volto — diz Lara já saindo, procurando a chave do carro na bolsa.

— Vocês vão voltar para o enterro? — Mila pergunta.

Uns resmungos que lembram vagamente uma afirmação escapam das bocas
de todas. Mila se vira para mim e pousa sua mão sobre a minha.

— Acho que somos só você e eu, mamãe!

Tudo bem, não tinha grandes esperanças de que minhas filhas causassem
alguma comoção no meu velório. Nunca fomos uma família muito unida …

Risca isso.

Deixe-me refazer essa frase: há anos não somos uma família muito unida!

Mas sei que grande parcela da culpa é minha e creio que mereça esse pouco
caso que fazem com o meu cadáver ali esquecido por todas menos Mila.

Contudo, estou confiante de que, com um último grande ato, eu possa pelo
menos restaurar a conexão entre elas.

Não, não; não pretendo ressuscitar dos mortos, nem assombrá-las como
fantasma, não é esse tipo de grande ato a que me refiro, e sim a um que
realizei ainda em vida e que em breve elas descobrirão.

Mas, por ora, estou satisfeita em tê-las reunido sob o mesmo teto por exatos
47 minutos e 39 segundos.

***

Talvez você esteja se perguntando quem sou eu, então, antes de prosseguir,
permita que eu me apresente: meu nome é Leonora Lancellotti e, como você
já deve ter percebido, eu morri.

Aconteceu há dois dias e, de acordo com a dra. Roberta Mendes, a médica


legista que examinou meu corpo, foi uma parada cardíaca. Ataque
fulminante, concluiu ela, embora eu mesma não saiba contar, uma vez que
não me lembro do acontecido.

Lembro-me apenas de desligar o celular depois de uma ligação


particularmente irritante e nada mais. Uma hora estava viva, na outra estava
morta.

Eu tinha apenas 58 anos.

Se você tem menos de 20, talvez pense que eu já havia vivido bastante, mas,
acredite, quando acordei naquela manhã, não esperava morrer logo depois do
almoço. Eu tinha uma reserva no Orso naquela mesma noite para fechar dois
negócios importantes, havia deixado uma caixa farta de e-mails pra responder
de tarde, ainda não tinha comprado o presente de aniversário do Lucas —
pensava em dar uma bicicleta da Patrulha Canina —, nem terminado as
sessões de peeling que já estavam pagas.

Eu tinha coisas para fazer antes de a morte inconvenientemente aparecer sem


agendar horário.

Entretanto, esta história não é sobre mim, nem sobre todas as coisas que teria
feito diferente se soubesse que Hécate me cercava.

Essa história é sobre minhas filhas.

E não se engane com a primeira impressão…

Helena chorou escondida no banheiro da empresa e fez três incursões à


minha antiga sala apenas para se sentar no sofá de couro branco no qual
sempre se sentava quando debatíamos alguma nova ação para a companhia.

Lara passou o dia de ontem inteiro com os filhos na casa da árvore que
mandei construir para eles no meu terreno, e cada um escreveu uma carta
para enterrarem com o meu caixão — bem, Alícia e Lucas desenharam.
Luísa, minha caçula, que foi a que mais sofreu com a morte do pai há quase
11 anos, agora se esforça para ser forte, mas já faz 52 horas que não dorme, e
todas as vezes em que cochilou, saltou minutos depois assustada. Eu sei que é
porque ela tem medo dos pesadelos que, na infância, a perseguiram por
meses após a morte do Leo. Ela passou as duas noites após a minha morte na
balada, usando mais químicos que uma mãe gostaria de ver a filha usar.
Nenhum deles causou o efeito desejado.

A doce e sincera Mila talvez seja a mais transparente, mas sei que mesmo ela
esconde parte de seu luto. Sei que, pela primeira vez em anos, questionou a
certeza que tem no universo e no destino. Sei que sentiu raiva da injustiça de
ela e as irmãs terem que presenciar mais um velório juntas. Sei também que
não consegue meditar há dois dias.

***

Como prometido, ou pelo menos insinuado, todas voltam para o enterro, que
acontece em um cemitério no bairro em que eu moro… bem, morava!

E que já está bem povoado de Lancellottis.

— Tia Lu! — Alícia grita, correndo em direção a Luísa assim que ela chega.

Luísa sorri, talvez pela primeira vez em alguns dias, e se abaixa para pegar a
sobrinha — que não vê há três meses — no colo. Lucas, que já tem 5 anos,
apenas corre para abraçá-la pela cintura. Luísa bagunça o cabelo espetado do
menino e o segura perto da cintura enquanto assistem seis homens carregar o
caixão com o meu corpo.

Nos últimos 11 anos assistimos a três enterros neste mesmo cemitério, sendo
o primeiro, e mais doloroso, o do Leo, meu marido e pai das meninas.

Lembro-me daquele dia com tanta clareza que poderia ter sido ontem: Luísa,
com apenas 10 anos e meio, abraçada a Lara, chorando com a liberdade que
só uma criança se permite, enquanto Lara com todo o seu jeito maternal
tentava consolar tanto a irmã quanto a si mesma. Helena sentada no gramado,
encostada em uma árvore olhando para aquilo sem acreditar realmente; e
Mila, que não soltou minha mão nem por um segundo, se mostrando mais
forte que qualquer uma de nós e tentando manter a união familiar, que, apesar
dos seus esforços, foi danificada para sempre.

Depois disso, mais dois membros da família se juntaram a Leo. Primeiro o


meu pai alguns meses depois, então a mãe de Leo há dois anos e meio.

E hoje, eu!

Apesar do grande aglomerado de pessoas abastadas que vieram prestar suas


homenagens, não teve nada de muito elegante. Aliás, penso que não exista
nada menos elegante do que a morte, principalmente uma morte súbita como
a minha, em que fui forçada a deixar todos na mão, tendo que se virar para
contornar o buraco da minha ausência. Não, a morte não tem nada de
elegante.

A morte é o apogeu da deselegância.

Mas, como dizia, não tem nada de muito elegante, apenas algumas pessoas
reunidas; algumas mais dramáticas vestidas de preto, óculos de sol e
sombrinha, apesar de ser fim de tarde e não estar chovendo. Helena é uma
delas, mas sei que os óculos são para esconder as olheiras.

A maioria traz o luto apenas em suas intenções e não em suas roupas, e para
mim é o suficiente.

Acredito que um enterro seja um daqueles raros tipos de eventos cujos


sentimentos que despertam são menos filtrados do que eventos cotidianos. O
que quero dizer é: a maioria das pessoas passa tanto tempo se preocupando
com o julgamento alheio que seus próprios sentimentos são postos em
segundo plano, mas o luto é um dos poucos sentimentos prioritários, aquele
que você se permite sentir independente do julgamento do outro.

E é assim, deixando as emoções fluírem, que as irmãs Lancellotti vão aos


poucos se aproximando.

Lara abraça o filho, que está ao lado de Luísa, e logo o abraço se estende até
a cintura da irmã. Mila se aproxima pelo outro lado para beijar a bochecha de
Alícia e passa o braço pelas costas de Luísa também. Vendo a cena, Helena
suspira e, fingindo não ser nada, dá dois passos à direita, grudando o braço ao
de Lara, que sem perguntar ou pedir permissão, entrelaça seus dedos.

E é assim, abraçadas, que assistem meu corpo descer à cova; Luísa, Mila e
Helena jogam flores. Lara e os filhos, as cartas que escreveram na casa da
árvore.

E dentro de poucos minutos, tudo está acabado para mim, e minhas filhas são
oficialmente órfãs.

Vou confessar uma coisa: é uma sensação etérea extracorpórea um tanto


quanto desagradável assistir a seu próprio enterro e estou aliviada de ter
acabado. Assim podemos voltar ao tema desta história que, como já disse,
não é sobre mim.

— Tia Lu, você quer dormir lá em casa? — Alícia pergunta ainda no colo de
Luísa, enquanto caminham pelo cemitério ao fim do enterro. — Eu tenho
uma barraca, você pode dormir comigo.

Luísa olha para Lara atrás de o que responder. Fazia meses que não se viam,
embora trocassem mensagens de vez em quando, e Luísa não sabe se é ou
não uma boa ideia. Lara apenas assente com a cabeça.

— Não sei, Lili. Você tem cara de que ronca! — Luísa diz com uma careta.

— Eu não ronco! — responde com a dignidade de uma menina de 3 anos que


nunca ouviu tamanho insulto.

Luísa estreita os olhos.

— Eu não ronco! — repete. — Eu juro!

— Nesse caso, tudo bem. Mas se você roncar eu vou te expulsar da barraca!

Alícia apenas sorri e abraça Luísa pelo pescoço. Luísa tem que engolir o nó
que sente na garganta com todas as emoções do dia. Ela não sabe se sente
inveja ou pena de Alícia ser tão pequena e incapaz de compreender toda a
situação.
Mas Alícia compreende a morte, Lara passou o dia anterior inteiro explicando
para ela e Lucas o que significa morrer. Ela sabe que não me verá mais. Mas
não é a morte que ela não entende, é a antecipação da saudade. Ela me viu há
três dias, ainda não está com saudade e não há motivo para ficar triste se, de
acordo com a mãe dela, eu estou em um lugar melhor.

De certa forma, a lógica infantil é muito mais coerente que a dos adultos; é o
adulto que sofre e anseia por coisas que ainda não aconteceram. A criança
apenas sente o momento enquanto os adultos gastam tempo e dinheiro com
terapia e cursos de meditação apenas para recuperar essa capacidade.

— Podíamos ir todas lá pra casa — Lara sugere um tanto apreensiva às irmãs.


— A gente pede algo para comer, toma um vinho…

Ela deixa a frase suspensa, como com frequência faz; uma mania que tem
desde criança. Creio que para não parecer incisiva demais como Helena, nem
carente demais como Mila. É uma forma de jogar a conclusão do pensamento
para o interlocutor.

Mila, que caminha segurando a mão de Lucas, topa na mesma hora. Ela é,
das quatro, a que mais sente falta da relação fraterna — ou pelo menos a que
demonstra mais — e a que mais, ao longo dos anos, se esforçou para juntá-
las.

As três olham para Helena, que faz questão de não responder nada no
primeiro momento, mas Lara conhece a irmã, sabe que se ela não quisesse
não pouparia negativas, então, o silêncio prolongado deve ser um “sim”.

Por fim, ela responde:

— Só se pedirmos comida do Orso, nada desses restaurantes veganos que a


Mila gosta.

***

— Tirem os sapatos — Lara diz, ao abrir a porta de sua casa e tirar seu
mocassim preto.
Mila, que é a única que frequenta a casa com certa assiduidade, já está com o
sapatinho preto de verniz nas mãos para colocá-lo de lado. Luísa chuta as
Doc Martens cada uma para um canto do hall. Helena revira os olhos para o
pedido e mantém seu Jimmy Choo nos pés.

— Vamos lá na cozinha, vou escolher um vinho — Lara convida enquanto


Lucas e Alícia correm para brincar no quarto, deixando as quatro sozinhas.

Acho que a maneira mais fácil de descrever Lara é a imaginando em uma


matéria de quatro páginas em uma revista de decoração e bem-estar da
família. Aquelas que você lê com um misto de inveja e desconfiança (porque
parece um tantinho quanto perfeito demais): casa linda, filhos mais lindos
ainda, senso de moda absolutamente impecável, marido… bom, esse não
aparece nessa matéria.

Caso você nunca tenha lido uma revista de decoração, pode imaginar a casa
dela como a personificação da sua pasta “decoração” do Pinterest. Isso se a
sua pasta de decoração for cheia de referências escandinavas.

A cozinha tem a marcenaria toda branca destacando o piso de madeira e a


decoração de palha e outras fibras naturais. Assim que entram nela, Luísa
pula sobre a ilha do café da manhã e, para o desespero de Lara, coloca os pés
descalços em cima do tampo de madeira maciça, sentando-se com as pernas
cruzadas em posição de meditação.

Helena e Mila se sentam nas banquetas de couro bege.

— Pinot Grigio ou Chardonnay? — Lara pergunta.

— Pinot Grigio — as três respondem em uníssono.

— Pinot Grigio! — Lara repete para si, pegando a garrafa na pequena adega.

Um silêncio incômodo paira sobre elas enquanto Lara abre a garrafa e serve
as taças.

— À mamãe — Lara oferece.

Luísa e Mila elevam as taças, mas Helena se remexe na cadeira.


— Geralmente se brinda a vida, sabiam? — diz no seu tom sarcástico, mas
sei que é só porque ela está se esforçando bastante pra não pensar em mim
hoje. — A mamãe tá…

— … morta, a gente sabe, Lena — Luísa corta antes que ela possa terminar a
frase. — Dá pra deixar de ser brucutu por um minuto e brindar em
homenagem a ela?

Helena revira os olhos, mas cede.

— À mamãe!

Todas levam a taça ao centro, brindando com o meu vinho preferido.

— Mas chega desse assunto — Helena pede. — Podemos falar de outra


coisa?

— Como, por exemplo, o cara cacheadinho que a Mila estava trocando o


telefone no velório! — Luísa dá uma cutucada com o pé no ombro da irmã.

— Mila! — Lara exclama. — Você arrumou um namorado no velório da


mamãe?

— Não, não — Mila, responde meio sem jeito. — Ele veio me dar os
pêsames, porque eu era a única filha presente…

— Eu estava presente! — Luísa intervém. — Só estava fumando lá fora!

— Eu era a única filha presente perto do corpo — corrige Mila. — Ele foi
super atencioso e a gente começou a conversar…

— …e trocar telefone! — Helena acrescenta de maneira sugestiva, elevando


a sobrancelha.

— Meu Deus! — exclama Lara de novo. — A mamãe estaria horrorizada.

Isso não é verdade!

Claro que não estou horrorizada, não sou nenhuma velha antiquada, e o moço
era mesmo muito atencioso e bonito.

— Ah, Lara, primeiro, pra fazer o papel da Lena, mamãe não tá mais aqui,
deixa ela em paz um minuto, por favor. Segundo, deixa de ser chata — Luísa
defende. — Conta mais, Mi.

— Ele é surfista, pratica ioga na praia, é super good vibes e é aquariano…


tipo, qual a chance de a gente ser do mesmo signo?

— Uma em doze — Luísa e Helena respondem ao mesmo tempo.

Lara serve uma tábua de frios, ou o que seria uma tábua de frios se estivesse
servido em uma tábua, mas ela apenas espalha os potes de cada coisa pela
bancada e coloca alguns queijos em pratos com facas de serra para cada uma
cortar um pedaço.

— Ele me convidou para sair no fim de semana — diz Mila com sua típica
fala cadenciada.

— Mila, sua piranha! — Luísa exclama, mas tem um sorriso no rosto.

— Olha, Mila, eu tô impressionada; mas se uma de nós fosse arrumar um


namorado em um enterro, esse alguém seria você — Helena diz.

— É só um encontro — Mila responde.

— Bom, você merece um pouco de alegria, Mila — Lara fala. — Todas nós,
na verdade.

Luísa aproxima sua taça à de Mila para um brinde informal e lança uma
piscada.

Mila e Luísa sempre foram as duas que tiveram a melhor relação entre as
quatro. Sempre respeitaram a personalidade uma da outra e nunca tentaram
forçar um estilo de vida diferente. E mesmo que se vejam pouco hoje em dia,
sempre conseguem agir naturalmente, como se o tempo não houvesse
passado.

***
— E cadê aquele imbecil do seu ex-marido? — Luísa pergunta, dando um
gole no vinho, já ao final do jantar.

Como exigido por Helena, pediram mesmo do Orso: um fettuccine de


palmito com pesto vegano para Mila, um carbonara para Luísa, um linguado
grelhado com batata souté para Lara e papardelle com tiras de mignon e
funghi para a Helena.

— Viajando a trabalho — responde Lara.

— Ele não podia adiar para ir ao enterro da ex-sogra e avó dos filhos dele? —
Helena pergunta.

Lara apenas dá de ombros.

— Ele ligou para as crianças, pelo menos? — Mila pergunta.

— Ele mandou um áudio.

Luísa revira os olhos.

Apesar de estarem separados desde pouco depois do nascimento da Alícia,


este ainda é um tema delicado para Lara, ao qual ela prefere simplesmente
ignorar e fingir que estão apenas dando um tempo.

— Bem que você fez em largar ele — Helena diz.

— Foi ele que terminou comigo.

— Então, ele te fez um favor.

— Sim, porque tudo que eu queria era ser mãe solteira! — revida com
sarcasmo.

— Você já era mãe solteira quando estava casada com ele, Lara — Helena
atiça mais.

Mila e Luísa apenas se entreolham.


Felipe sempre foi um tema de discórdia nesta família. Lara sempre o
defendeu, e as irmãs sempre o condenaram. Ele e Lara se conheceram no
ensino médio e para a surpresa de todos, se casaram aos 20 anos, logo depois,
ela engravidou de Lucas, mas nessa mesma época Felipe começou a viajar
muito a trabalho, deixando toda a criação de Lucas para Lara. Quando ela
engravidou de Alícia a bomba explodiu e desde então estão separados, mas
Lara se recusa a assinar o divórcio.

— O que você sabe sobre relacionamento, afinal? Tem 32 anos e nunca teve
um namorado por mais de três meses.

— Eu não preciso de um homem para ser feliz.

— Sim, só precisa trabalhar 18 horas por dia e fingir que sua vida pessoal não
existe!

— Pelo menos eu não precisei casar com o primeiro homem que vi pela
frente só pra fazer um filho porque tinha medo de ficar sozinha!

— Vai se foder!

— Mamãe?

Quatro pares de olhos castanhos viram para a pequena Alícia parada na porta
da cozinha.

Lara limpa a garganta e respira fundo, tentando transparecer calma.

— O que foi, meu amor?

— Eu tô com sono! A tia Lu vem dormir comigo?

— Vou! — Luísa vira a taça de vinho que tem na mão e salta da bancada
aproveitando a deixa para sair daquela atmosfera tensa. — Mas eu quero um
pijama igual o seu.

Alícia está com um pijama macacão do Stitch em que o capuz é o rosto do


personagem e que a deixa parecendo ainda menor.
— Você não cabe nele! — responde com obviedade.

— É porque eu sou muito alta, né? Sua mãe sempre tirou onda com a minha
cara por eu ser baixinha! — diz e se vira para Lara. — Eu sou mais alta que a
sua filha.

— Minha filha tem três anos, Lu.

— Isso não importa!

Lara sentiu-se agradecida por Luísa tentar amenizar o clima para Alícia não
perceber a tensão. Luísa sempre foi boa nisso, quando era criança, sempre
conseguia melhorar o ambiente depois de eu e o Leo brigarmos ou depois das
irmãs se engalfinharem.

— Tem pijamas no quarto de hóspedes — Lara diz à Luísa. — No banheiro


tem escova de dentes novas e toalhas.

— Vem, Lili, me ajuda a achar um pijama que combine com o seu.

As duas saem, e com elas a leveza que a Alícia trouxe.

— Vocês também podem ficar… — Lara diz, esforçando-se para soar


natural.

— Eu prefiro a minha cama — diz Helena. — Sem ofensa.

Lara dá de ombros, como quem diz “que seja”.

— Eu já vou indo. — Helena pega sua bolsa e sai sem nenhum adeus muito
formal.

Assim que escuta a porta da sala batendo, Mila vira para Lara e informa:

— Eu vou ficar.

Lara lança um meio sorriso para ela.

No quarto de hóspedes da irmã, Mila finalmente consegue meditar.


Luísa consegue dormir depois de ouvir mais histórias infantis do que
gostaria.

Sem nenhum dos filhos em sua cama, Lara fica sozinha com seu luto pela
primeira vez e, enfim, se permite chorar.

Helena se ajeita na sua confortável cama king size e abre a minha caixa de e-
mails cheia de mensagens que aguardam resposta.
CAPÍTULO 2
— Como é que é?

— O quê?

— Isso é uma piada?

— Você tá me zuando?

As quatro indagam em uma cacofonia de perguntas quando o advogado


termina de ler os termos do meu testamento.

— Não, não, calma aí — Helena diz, assumindo a frente. — Isso não pode
ser legal! Lara, isso é legal?

Helena olha para a irmã que estudou direito na faculdade, mas nunca
trabalhou na área. Lara dá de ombros, tão perdida quanto todas as outras.

— Sim, senhorita Lancellotti, totalmente legal — Armando Vasconcelos, o


advogado, afirma.

Os cinco estão na sala de reuniões da sede do Grupo Lancellotti, um grupo


empresarial que controla diversas empresas do segmento alimentício e da
qual eu era presidente.

Helena e Luísa estão sentadas lado a lado na grande mesa de reuniões. Helena
é, das quatro, a que mais se parece fisicamente com o pai, tem a pele mais
clara que as irmãs e o cabelo e olhos castanho claro. Ela está com a sua
melhor postura de empresária, do tipo que se recusa a ser passada para trás.

Luísa parece um espelho oposto dela; está praticamente jogada na cadeira;


veste uma camiseta estonada verde com vários cogumelos estampados, um
shorts jeans rasgado; e um dos converse branco de cano alto está sobre o
assento da cadeira de couro que ela está. Sua postura somada ao cabelo
repicado sobre os ombros, que ela clareou e pintou as pontas de rosa, fazem
ela parecer a filha rebelde de Helena em vez da sua irmã.

Ainda bem que já estou morta, porque Helena me mataria se me ouvisse falar
isso.

Mila e Lara estão de frente para as duas. Lara está com o seu lindo e
volumoso cabelo cacheado jogado para o lado com uma franja também
cacheada caindo sobre a testa. Ela tem uma beleza natural que lhe permite
vestir qualquer coisa e ficar bonita, por exemplo, agora veste um terno de
seda floral que faria qualquer pessoa parecer um sósia do Falcão, mas nela cai
lindamente.

Mila, ao seu lado, está num vestido indiano que passa uma imagem de
desapego material, mas que eu sei que custou mais que o terninho branco de
Helena. Mila sempre pareceu ter sido sequestrada de Woodstock por um
viajante do tempo que a trouxe para o presente, está sempre cheia de adereços
nas orelhas, pulsos e pescoço, seu cabelo comprido ondulado e castanho está
sempre iluminado por luzes e enfeitado com trancinhas.

Ela, assim como Luísa e Lara, puxou mais o meu lado da família com um
tom de pele oliva e olhos castanho-escuros; elas também têm os lábios mais
cheios e o sorriso maior que o de Helena, que tem traços mais finos.

— Você pode repetir, por gentileza? Porque acho que não entendi direito —
Lara pede a Armando.

Armando é o advogado da família há anos e, cá entre nós, tem a idade muito


mais apropriada do que eu para estar aqui do outro lado, mas, enfim, não faz
bem para a alma remoer essas coisas.

E minha alma é tudo que tenho agora.

— A cláusula diz que uma ou mais de vocês deverá se encarregar do


acampamento A Luneta e mantê-lo funcionando e na família; sendo
terminantemente proibida a venda sob a penalidade de a herança ser doada
para caridade.

— Isso é ridículo! — afirma Lara.

— Que merda, mamãe — Luísa solta uma risada nervosa e se remexe na


cadeira.

— E o que nos impede de ficar com o acampamento, receber a herança e


vendê-lo depois? — Helena pergunta, sempre pensando de maneira objetiva.

— As escrituras do terreno e da sede principal do acampamento estão


atreladas ao testamento, srta. Helena. Se em um período de cinco anos a
senhorita ou suas irmãs decidirem vendê-lo, a herança será confiscada com as
devidas correções de juros.

— Que merda, mamãe! — Helena exclama.

— Tudo bem, a gente escolhe uma de nós para ficar com o acampamento…
— Lara sugere.

— Fica você, então! — Helena diz.

— Eu não quero! — Lara rebate.

— Ninguém quer, Lara, essa é a questão! — Helena revida, irritando-se.

— E como a gente decide quem fica com essa merda? Tiramos no palito? —
Luísa pergunta com sarcasmo.

Helena está pronta para sugerir que ela, como a única das irmãs que já cuida
de um dos negócios da família, deveria estar isenta desta decisão, mas seu
pensamento é interrompido por Armando:

— Na verdade — diz ele —, sua mãe deixou isto por escrito também. No
parágrafo seguinte ela expressa: as quatro deverão trabalhar nele por um
verão inteiro e decidirem juntas quem ficará com o acampamento. Apenas
após este período e da decisão tomada, a herança será partilhada.
— Nem fodendo! — Luísa exclama.

— Quê? Ela quer que a gente passe o verão todo no meio do mato? —
Helena se exalta.

Só para esclarecer, “o verão todo” é na verdade apenas três semanas. Minhas


filhas que são muito dramáticas.

Mila coloca as mãos sobre o rosto tentando achar o lado positivo, mas nem
ela consegue entender o sentido disso. Lara olha para Armando esperando
que ele diga que é uma pegadinha.

— E quanto o senhor disse que era o valor da herança mesmo? — Mila


pergunta.

— Eu ainda não disse — esclarece ele. — Como expresso pela mãe de vocês,
o único bem que não está incluso nestas condições, são as ações do Grupo
Lancellotti, essa vocês herdam a parte dela, que era a sócia majoritária e,
somando a parte que você já tinha, Helena, você se torna a nova majoritária.
Contudo, todos os outros bens e investimentos estão atrelados ao testamento
e ao acampamento. Estamos falando de 15 milhões.

— 15 milhões de reais? — Mila pergunta, surpresa.

— 15 milhões de dólares.

Luísa deixa escapar um assobio, enquanto Lara se remexe na cadeira.

— E pra isso a gente precisa trabalhar no acampamento? — Mila pergunta de


maneira retórica.

Armando assente com a cabeça assim mesmo.

— Que merda, mamãe! — exclama ela.

Às vezes me pergunto de onde minhas filhas acham que vem a vida boa
delas. Mila passa mais tempo viajando, fazendo cursos de meditação e ioga
na Índia, Nepal e Califórnia do que trabalhando… se é que dá pra chamar de
trabalho essas imersões meditativas que ela organiza a cada três meses.
— As quatro passam o verão juntas trabalhando no acampamento, ou
nenhuma receberá a herança — repete ele.

— Então ninguém vai receber porra nenhuma, porque eu não volto para
aquele lugar! — Luísa diz e se levanta.

Helena, Lara e Mila a observam sair pela porta.

— A Luísa nunca vai aceitar voltar pra lá, vocês sabem disso — Helena diz
com uma risada nervosa, tentando disfarçar o medo de ver a herança
escorrendo por entre os dedos.

Lara apoia a cabeça na mão e suspira:

— Que merda, mamãe!

***

Acho que cabe aqui uma elucidação de o que diabos está acontecendo.

Permita-me explicar melhor. Meu pai, que foi escotista, fundou o


acampamento Luneta em 1977. A terra em que hoje está o acampamento
estava na nossa família há muitos anos e ele, que sempre gostou de crianças e
de acampamento, pensou que seria o melhor uso para o terreno.

Foi lá que eu e o Leo nos conhecemos, quando eu tinha 16 anos e ele 17.

O Leo também amava o lugar e por muitos anos ele que administrou
pessoalmente enquanto eu tomava conta do Grupo Lancellotti. Depois da sua
morte, como eu não tinha tempo para cuidar do acampamento, passei essa
função para o nosso sócio e melhor amigo do Leo, Chico Lima.

No ano em que engravidei de Helena, nós estávamos passando por um


momento difícil com o Grupo Lancellotti e, com a minha gravidez, eu
precisava da ajuda do Leo com as duas coisas. Nessa época, cogitamos
vender o Luneta já que não tínhamos como cuidar pessoalmente, nem
queríamos contratar um gerente que não fosse se dedicar como o lugar
merece.
A solução veio com o melhor amigo do Leo que se ofereceu para comprar
uma parte e assumir a gerência. Desde então, Chiquinho tem 30% da
sociedade e continua sendo o administrador do local. Até construiu uma casa
em um dos lotes que pertence a ele dentro do perímetro do acampamento.

Mas apesar de o Chiquinho ser excelente no que faz e manter o acampamento


em perfeito estado, ele é o sócio minoritário e, a não ser que ele comprasse a
parte delas, o que eu não tenho como controlar, o acampamento acabaria nas
mãos de pessoas desconhecidas e provavelmente na mão de investidores que
tentariam transformar o lugar em um resort ou explorar o turismo. Além do
mais, foi meu pai que construiu aquilo, e é importante para mim que continue
na família!

Outro ponto é que precisamos de sangue novo para tentar recuperar a glória
do lugar. Há muitos investimentos para fazer e, nos últimos anos, as
matrículas têm caído bastante. É preciso pensar em novas formas de atrair as
crianças e gerar movimento o ano todo.

Eu sei que isso pode soar meio antiquado, ainda mais eu sendo uma senhora
morta, mas a tecnologia tem sido a nossa maior concorrente. As crianças
querem passar mais tempo com seus videogames do que ao ar livre. E se o
acampamento continuar perdendo inscritos, terá que fechar depois de 45
anos.

Tudo que peço é que uma de minhas filhas se certifique de que esse trabalho
de anos não vai simplesmente desaparecer.

Agora me diga: tem motivo para todo esse escândalo?

***

Por uma semana inteira, as minhas filhas fingem que o testamento não existe.
Elas não se falam, nem falam sobre o tema com outras pessoas.

Mas eu não estou preocupada com isso, tomei algumas providências para
garantir que elas aceitem os termos…

— Lara, abre a porta!


Lara escuta a porta sendo esmurrada, seguida de vários clamores para ela se
apressar.

— Mila? — Lara indaga ao abrir a porta e dar de cara com a irmã. — Como
você conseguiu subir?

— O Cadu me deixou entrar.

— Que Cadu?

— O Cadu do 904 — responde, tirando a rasteirinha de couro vegano e


entrando.

— E quem diabos é o Cadu do 904?

— Ah, é um carinha que eu fiquei há um tempo. Conheci no elevador um dia


que tava te visitando — explicou, como se fosse óbvio.

Mila é do tipo que se apaixona com facilidade. Ela é uma dessas pessoas que
consegue ver nos outros suas melhores qualidades. Vive intensamente seus
amores e, na maioria das vezes, a relação é leve para os dois lados e acaba da
mesma maneira que começa, com naturalidade e um sentimento forte de
amizade.

Eu diria que, de todas, ela é a mais bem resolvida no campo amoroso, apesar
de nunca ter tido um namoro muito duradouro.

— E o que você tá fazendo aqui? — Lara pergunta vendo que Mila está
incomumente agitada.

— A mamãe tá brincando com a gente — ela acusa.

Ora, francamente, como se eu não tivesse mais nada para fazer da minha
morte.

Lara olha com um misto de desconfiança e preocupação e diz para ela se


sentar no sofá branco de camurça na sala. Lara se senta em uma elegante
cadeira costela de adão de frente para a irmã.
Mila explica:

— Eu estava na Gaia Cristais e vi uma mesa de centro dourada com o tampo


todo em quartzo rosa que, eu juro, Lara, eu consegui sentir minhas emoções
se equilibrando só de passar a mão nela.

Lara revira os olhos.

— Tá, e o que a mamãe tem a ver com isso?

Boa pergunta!

— Acontece que quando eu fui pagar, meu cartão foi recusado porque ele tá
bloqueado!

— Ué, e por que você não desbloqueia? Você não tem o aplicativo?

— Não, não… — Mila diz —, ele está bloqueado! Tipo, a mamãe bloqueou!

— Do que você tá falando, guria? Isso tem alguma coisa a ver com essas suas
viagens espirituais? Você sabe que eu não curto essas coisas!

— Não, não! É o testamento! Meu cartão tá bloqueado por causa daquele


termo do acampamento.

— Não entendi…

— Nós temos uma conta conjunta, eu e a mamãe. E agora meu cartão tá


bloqueado e não consigo mexer na conta. E eu não tenho dinheiro sem ser
aquele!

— Espera, você tinha uma conta conjunta com ela?

— Você não?

— Não!

— E quem paga por tudo isso, Lara? — Mila pergunta, estreitando os olhos,
sabendo muito bem que ser mãe em tempo integral, por mais nobre que seja,
não paga contas.

— Tem a pensão do Felipe… — ela diz reticente. — E eu recebo uma ajuda


de custo da mamãe — admite contrariada.

— Recebia! — Mila corrige.

— O que você quer dizer?

— Que a mamãe bloqueou nosso dinheiro, Lara! É isso que eu tô falando


desde que cheguei!

O celular de Mila começa a tocar.

— É a Lu, eu mandei mensagem pra ela antes de vir aqui. Calma aí — diz e
atende o telefone, colocando no viva-voz. — Oi, Lu.

— O meu também tá bloqueado! — Luísa fala.

— Eu não entendo. O que a mamãe queria com isso? — Lara pergunta.

— Lara?

— Eu tô na casa dela — Mila explica.

— Oi, Lu — Lara diz.

— Oi — Luísa responde —, então tá todo mundo sem dinheiro?

— Bom, a Helena deve ter… — Lara responde.

— Sem contar que agora ela é a sócia majoritária do Grupo Lancellotti — diz
Luísa.

— Mesmo assim, ela não vai querer abrir mão da herança, não — Lara fala.

— Eu vou ligar para ela — Mila diz.

As três ficam em silêncio alguns segundos enquanto Mila faz uma chamada
conferência para o celular da irmã mais velha.

— É melhor mais alguém ter morrido para você ficar me enchendo o saco
desse jeito, Camila. Eu já respondi sua mensagem: eu não sei como
desbloquear seu cartão!

— Oi, mana! — Luísa diz com certo sarcasmo.

— Luísa?

— A Mila e a Lara também estão aqui.

— Oi, Lena — Lara e Mila respondem quase que em uníssono.

— Alguém morreu?

— Para de falar de morte, guria — Luísa responde. — Temos que falar da


herança. Tá na cara que a mamãe armou pra que a gente não tivesse muita
escolha.

— E porque vocês acham que ela fez isso, afinal? — Lara pergunta.

— Pra nos juntar, é claro! — Mila responde.

— Isso não importa, eu não entendo quando ela fez isso? Quer dizer, ela
sabia que ia morrer? Que tipo de termo maluco é esse? — Helena pergunta,
perspicaz como sempre.

Essa é uma excelente pergunta e embora não possa responder a elas, posso
responder a você:

Há alguns meses eu tive um sonho bastante estranho em que essa ideia se


apresentou para mim e quando acordei senti que precisava fazer isso. Para ser
sincera, agora acho que foi a minha sogra que colocou essa ideia na minha
cabeça, como naquele filme com o Leonardo DiCaprio e o Elliot Page, que o
meu marido me obrigou a ver no cinema, como era mesmo o nome? Ah, não
importa. Ela inseriu a ideia e quando acordei senti que precisava refazer meu
testamento, e continuo achando que é uma ótima ideia.
— Nós deveríamos ir — Mila diz depois de alguns segundos de silêncio. —
O acampamento fica num lugar lindo, tem uma energia maravilhosa lá e a
gente só precisa passar um mês. A gente vai, se conecta com a natureza,
alinha os chakras e pega a herança!

Ah! A tríade dos ensinamentos hindu: conexão com a natureza, alinhamento


dos chakras e transferência bancária.

— E escolhe uma de nós para ficar com ele! — lembra Lara.

— Se ninguém quiser, a gente divide a responsabilidade — Mila completa —


É o Chiquinho que cuida de tudo lá, a gente nem precisaria fazer muita coisa.

— Eu não posso deixar meus filhos um mês sozinhos, Mila!

— Bom, não é como se essas crianças não tivessem pai, Lara — provoca
Helena.

— Eu não vou deixar eles um mês inteiro com o Felipe!

— Você pode visitar uma vez por semana — Mila tenta ajudar. — O Luneta
fica só a uma hora e meia daqui, além disso, você sabe que eles vão ficar
mais com os avós do que com o Felipe.

— E você já ouviu falar em facetime? — pergunta Helena, ainda em tom de


alfinetada.

Lara bufa, mas o pensamento da herança está flutuando na sua mente. Ela
sabe que o dinheiro também é dos seus filhos.

— A gente vai mesmo fingir que o papai não morreu lá? — Luísa pergunta,
irritada com o simples fato de elas estarem considerando.

— Lu, vai fazer 11 anos! — Lara diz em tom maternal.

— E daí?

— E daí que você precisa superar! — Helena diz. — O papai foi imprudente,
a culpa não é do lugar, foi um acidente! Poderia ter sido na nossa casa
mesmo.

— Mas não foi!

— Bom, a escolha é sua — Helena continua. — É a nossa herança, o dinheiro


que a mamãe e ele deixaram pra gente.

— Lu, a gente vai estar lá com você — Mila diz com gentileza.

— Você adorava aquele lugar quando era criança — Lara diz. — Talvez
esteja na hora de você encarar ele de novo!

As três escutam Luísa soltar um suspiro alto pelo telefone.

— Foda-se — ela diz depois de um tempo. — Quando a gente tem que ir?

Mila sorri para Lara e dá uma piscada.

— Em fevereiro — Lara responde.

— Quê? Mas estamos em novembro ainda, como eu vou pagar as minhas


contas?

Em vez de reclamar, elas deveriam agradecer eu não ter morrido em março!


CAPÍTULO 3
Os três meses passam com relativa velocidade.

Talvez seja apenas porque aqui no além, o tempo passe de forma diferente,
mas quando me dou conta já estamos em fevereiro.

Nada de muito relevante aconteceu nesse tempo. Apenas Mila e Lara que
tiveram que deixar o orgulho de lado e pedir dinheiro emprestado a Helena.

Algumas pessoas acham que Helena tem um coração de pedra e não se


sensibiliza com nada, mas quando Lara disse que o dinheiro era para que os
filhos tivessem um bom Natal, Helena emprestou… claro que cobrando os
devidos juros e correções.

Já Luísa, por outro lado, se virou nesses três meses tocando em bares e
eventos.

Confesso que quando ela me disse que queria estudar música em Barcelona,
eu tentei impedir e convencê-la a estudar alguma coisa de verdade; mas
admito que ela é muito boa e creio que ame o que faz. Pelo menos ela
consegue se sustentar sozinha, o que já é mais que metade das minhas filhas.

Mas, como dizia, os três meses nem custam tanto a passar e ao cabo desse
período, estão todas a caminho do acampamento para viver o verão de suas
vidas — ainda que elas não saibam disso.

O Luneta fica em uma reserva particular de vinte e cinco hectares de terra


que, como disse, está na minha família há anos. Boa parte é mata preservada,
por isso, o acampamento fica em uma chapada na parte mais alta do terreno e
corresponde a uma área de 8000m².
É um lugar muito bonito no qual a natureza fez todo o trabalho sozinha. Meu
pai, que sempre se preocupou com o meio-ambiente, tentou interferir o
mínimo possível, e todas as construções foram pensadas para integrar à
natureza.

A paisagem é mesmo de tirar o fôlego, cheia de paredões de pedra, nascentes


e mata preservada.

O lago é o coração do lugar. Quando você atravessa o portal de entrada, é a


primeira coisa que vê e, nele, os diversos brinquedos e barcos para as
atividades náuticas. A segunda coisa é a grande cabana de madeira roliça
usada como sede em frente ao lago.

É uma cabana enorme, construída no estilo americano, com troncos rústicos


encaixados, grandes janelas e claraboias de vidro. A entrada é imponente com
suas portas duplas, ampla área de varanda e escadaria larga.

Além da sede, há várias outras cabanas menores nas quais nossos pequenos
hóspedes dormem. São mais simples, mas seguem o mesmo estilo.

***

A cada minuto que passa, tenho mais certeza de que esse retiro forçado juntas
é mesmo muito necessário, porque tendo absolutamente zero consciência
ambiental, ou qualquer senso fraterno, minhas quatro filhas chegam em
quatro carros separados.

Assim que estacionam, Mila e Luísa que estão acostumadas com mochilões e
programas mais “roots”, como diria a Mila, pegam suas mochilas — e a caixa
com a Elvira — e levam até a sede do acampamento, enquanto Lara e Helena
tentam arrastar suas malas de rodinhas sobre lama e pedra.

— Não deveria ter alguém aqui? — Mila pergunta a Luísa ao entrarem na


sede deserta.

Luísa dá de ombros e solta a mochila sobre uma poltrona.

— Não é o Chiquinho que cuida disso aqui? — Luísa pergunta também.


— Ele deve ter saído — Mila diz, e ambas se entreolham sem saber o que
fazer.

Um grito seguido de uma sequência de xingamentos vindo do pátio chamam


a atenção delas e correm para a entrada da sede para ver o que está
acontecendo.

— Essa bosta de lama! — xinga Helena, com um salto agulha completamente


fincado na lama e a mala atolada.

Ao lado dela, Lara tem o mesmo problema de atolamento com as rodinhas da


sua mala de 32 quilos.

Trinta e dois!

Para um acampamento no qual terão que vestir uniformes todos os dias!

Que elas sejam pessoas urbanas, vá lá, eu entendo, mas que elas tenham se
esquecido completamente de como é o campo sendo que passaram a infância
toda vindo a este lugar, aí já é demais.

Se bem que, em defesa de Lara, ela ainda não sabe sobre os uniformes.

— Deixa que eu ajudo vocês! — Zeca, um dos funcionários, diz ao ver as


duas naquela situação ridícula.

Ele trabalha no acampamento há seis anos e, embora deva ter uns 40 e poucos
anos, é desprovido de qualquer jovialidade ou atrativo físico, para ser sincera;
se eu tivesse que descrevê-lo eu diria que ele parece o James Taylor pós-
calvície: nariz longo e pontudo e uma cabeça calva que ele tenta com bastante
afinco disfarçar, penteando para o lado o pouco cabelo que cresce nas
laterais.

Apesar de magricela e de aparência frágil, até que Zeca é bem forte e é o


principal faz-tudo do lugar. Ele carrega as duas malas, de Lara e Helena, cada
uma em uma mão até a sede.

— O Chiquinho teve que dar uma saidinha, mas ele deve voltar logo. Vocês
podem esperar por ele aqui… ou dar uma volta no terreno, é claro, vocês são
as donas, podem ir aonde quiserem.

— Obrigada — Lara oferece, tentando liberar Zeca da tarefa de boas-vindas.

O pobre homem, sem saber o que falar ou fazer para entreter as quatro,
apenas assente com a cabeça e sai.

Se eu fosse ele, também teria saído, Helena e Luísa estão com cara de que
talvez cometam um homicídio até o fim do dia.

Enquanto Lara pega o celular para tentar ligar para o Felipe — eu digo tentar,
porque o sinal aqui não é o que chamamos de excelente —, Luísa pega um
cigarro da mochila e o coloca atrás da orelha, mete o isqueiro no bolso do
shorts rasgado e sai.

Ela caminha até o bosque à direita da sede e se senta em uma das raízes de
uma figueira, acende o cigarro e encara o lago com tanta intensidade que é
capaz de fazer a água ferver a qualquer segundo. Sei que ela não entende os
meus motivos e que está zangada comigo por muitas razões, inclusive por
morrer.

Essa situação é difícil para todas elas, mas é especialmente difícil para Luísa;
e não me parece justo que ela ainda tão jovem não possa mais contar nem
comigo, nem com o pai.

Ela está distraída e não percebe quando uma outra moça se aproxima, e é só
quando ela coloca a botina sobre a raiz em que Luísa está sentada e apoia o
antebraço sobre o joelho que sua presença finalmente é notada.

— Oi! — a moça diz com um sorriso — Luísa, né?

Luísa olha para cima e estreita os olhos para focalizar melhor o rosto dela por
entre os raios de sol que penetram a copa da árvore.

Ela demora uns dois segundos, mas enfim reconhece…

— Sofia? Não fode?! — Luísa, com toda a falta de delicadeza social que
herdou do Leo, pergunta.
Sofia deixa escapar uma risadinha e Luísa dá mais uma tragada naquela
piteira do câncer.

Eu realmente espero que essa menina pare de fumar logo, a nossa família já
não tem uma expectativa de vida lá muito alta.

Luísa olha para ela sem esconder a surpresa; a Sofia criança era magricela e
virada em olhos, e não lembrava em nada a Sofia adulta.

— Você tá tão… alta! — Luísa conclui.

Tenho certeza de que era bonita a palavra que ela quis usar, mas Luísa nunca
foi muito boa com elogios.

Enfim, a filha do Chiquinho se transformou mesmo numa moça muito bonita;


ela tem a pele negra um pouco mais escura que a dele, lisa e radiante. Está
ainda mais linda desde a última vez que a vi há quase um ano, com cachos
perfeitos e volumosos com as pontas no mesmo tom de seus olhos cor de
âmbar.

— Nem tanto, acho que é a perspectiva — ela diz e se senta ao lado de Luísa,
tentando regular suas alturas. — Já você não mudou nada, continua com a
mesma cara de rebelde!

— E isso é bom? — Luísa pergunta desconfiada enquanto apaga a xepa do


cigarro na sola do tênis.

Ela sabe que não deve jogar a xepa no chão — pelo menos com isso ela se
preocupa — e ao mesmo tempo não sabe o que fazer, então fica, igual a um
cachorro procurando um lugar para fazer xixi, olhando ao redor tentando
descobrir o que fazer com o cigarro. Por fim, desiste e fica com ele na mão
mesmo.

— Acho que sim; pelo menos, me ajudou a te reconhecer! Se bem que eu


sabia que você e suas irmãs viriam!

— Ah ha! — exclama Luísa. — Eu por outro lado não sabia que você estaria
aqui! — diz e abre um sorriso.
Um sorriso!

Eu não pensei que fosse vê-la sorrir na primeira semana inteira. Luísa é um
tanto rancorosa e mal-humorada quando quer. Mas veja só, ela está sorrindo.

— Neste caso, eu te perdoo por quase não me reconhecer depois de passar


quatro verões comigo — Sofia responde.

— Colocando nesses termos, você faz eu me sentir uma cafajeste! — Luísa


diz e solta mais uma risada.

Impressionante!

Luísa limpa a garganta ao perceber o que falou e Sofia sente suas bochechas
esquentarem um pouco com o comentário.

— Na verdade, foi uma surpresa quando meu pai me contou que vocês
viriam.

— Foi uma surpresa pra gente também — ela devolve. Depois de ver a
expressão confusa de Sofia, acrescenta: — longa história. E você trabalha
aqui também? Ou só mora aqui com seu pai?

— As duas coisas… bem, mais ou menos. Eu trabalho e moro nos verões


quando estou de férias da faculdade. Faço de tudo um pouco.

— E o que você estuda?

— Letras. Mas vou para o último semestre.

— Legal! E o seu irmão, cadê?

— Tá estudando jornalismo em São Paulo. É quase certo que não volta mais.

— Entendo. Eu também não voltaria — diz, mais para si, ou para mim, do
que para Sofia.

— Você costumava gostar daqui — Sofia tenta, sem saber ao certo o porquê.
— Isso foi antes desse lugar se tornar meu refúgio oficial de luto.

Sofia inclina a cabeça para o lado, sem entender. Luísa acrescenta:

— É a segunda vez que me obrigam a vir para cá depois de uma morte.

Sofia logo entende… e eu também!

O Leo morreu em janeiro, faltando duas semanas para o começo da


temporada de férias. Na época eu estava arrasada, assim como minhas quatro
filhas, e não sabia como ajudá-las, mas sabia que Luísa adorava este lugar e
pensei que faria bem para ela passar as férias com seus amigos e tentar
esquecer, ainda que por alguns momentos, o que aconteceu. Nunca me
ocorreu que o fato de ele ter morrido aqui, apesar de ela não ter visto o corpo
no local, a afetaria tanto.

E cá está ela de novo… e de novo por insistência minha.

— Eu sinto muito — Sofia diz com gentileza.

— Obrigada — ela retribui com um sorriso meio triste, meio gentil.

— Acho que meu pai deve estar te esperando — Sofia diz, tentando mudar de
assunto.

— Um cara que parece o sr. Burns dos Simpsons disse que ele saiu.

Sofia solta uma risada alta.

— Deve ser o Zeca! Ele nem é tão velho, mas se parece mesmo com o sr.
Burns, coitado. Bom — ela diz, levantando-se —, eu te vejo daqui a pouco na
reunião, então.

— Espera, que reunião?

***

Uma hora mais tarde as irmãs estão reunidas na grande sala da recepção da
sede enquanto Chiquinho as recepciona com certa pompa e circunstância que
provavelmente serve apenas para adiar o desconforto que ele sente por ter de
comunicar a elas o teor do envelope que segura nas mãos.

Chiquinho tem 58 anos e um bom humor invejável, está sempre com um


largo sorriso estampado no rosto que deixa à mostra as covinhas na bochecha.
O apelido, que ganhou ainda criança, é mais pela personalidade gentil do que
pelo porte físico, já que ele mede mais de 1,80m e sempre foi bastante
atlético.

Ele e Leo eram inseparáveis na juventude e trabalharam por um tempo juntos


aqui no Luneta.

— Bom, meninas, vamos logo ao que interessa. Como vocês sabem, em dois
dias receberemos as crianças da temporada de verão e precisamos organizar
quem vai ficar responsável pelo quê. O resto dos monitores chegará amanhã,
por isso é importante que a gente já tenha tudo organizado.

— Como assim “o resto dos monitores”? — interrompeu Helena.

— O resto dos monitores, além de vocês quatro e da Sofia — ele aponta com
a cabeça na direção da filha, que está sentada em uma das banquetas do
balcão da recepção.

— Quê?! Eu não vou ser monitora, de onde você tirou essa ideia, Chiquinho?

— Desse envelope aqui, Helena. — Chiquinho passa a mão com cuidado no


objeto. — O Armando me disse que eu precisava seguir todas as orientações
que estavam no papel, do contrário vocês poderiam perder a posse disso aqui
tudo!

— Mas que diabos! — Helena xinga.

— Espera, mas o testamento diz que temos que trabalhar aqui, não que temos
que ser monitoras! — Lara contrapõe.

— Lara tem razão! — Helena diz em um ganido, perdendo ligeiramente a


compostura.

Helena tem uma ojeriza à criança que beira a patologia. Sinceramente, não sei
nem de onde vem, porque a única criança que ela teve que conviver depois de
adolescente foi a Luísa, que apesar de um pouco rebelde, nunca incomodou
Helena.

— Bom, é que não tem muito mais o que fazer aqui — Chiquinho diz,
encolhendo os ombros. — Eu faço o administrativo e a coordenação, fora
isso, há o trabalho de monitoria, consertos, cozinha e limpeza. E acho que
vocês não gostariam de ficar em nenhum dos três últimos.

Luísa solta uma bufada e deixa a cabeça cair para trás na poltrona em que
está sentada.

— Isso é loucura, minhas irmãs não sabem cuidar nem delas mesmas que dirá
de um monte de crianças — argumenta Lara.

— Ei! Você acha que só porque é mãe, é mais qualificada que a gente? —
Mila protesta.

— Acho!

— Eu concordo com a Lara — diz Luísa.

— Eu também — Helena conclui. — A gente não é qualificada para esse


trabalho.

— Não se preocupem, meninas. Tudo isso foi levado em conta, por isso
vocês vão trabalhar em pares com monitores mais experientes. Todos eles
têm treinamento de salvaguarda, primeiros-socorros, dinâmicas de grupo e
mediação de conflitos. E é claro, todos passaram por seleção e capacitação
para trabalhar com grandes grupos de crianças.

— Parece que pensaram em tudo — resmunga Luísa.

— O Luneta sempre se preocupou, em primeiro lugar, com a segurança e o


bem-estar das crianças. Implementamos vigilância 24 horas, uso obrigatório
de equipamentos de segurança para as atividades náuticas e de aventura, e
além disso, nosso ambulatório é muito bem-equipado com enfermeira
presente durante toda a temporada de férias. Me orgulho de dizer que nesses
anos todos, nunca houve um acidente.

— Houve um — Luísa corrige.

Chiquinho fita o olhar dela e vejo o brilho do seus olhos se tornar um pouco
mais opaco antes de assentir e endossar com certo pesar:

— Houve um.

As atividades no lago sempre foram o nosso maior diferencial e também


nossa maior preocupação, principalmente do Leo, por isso, fomos
melhorando as práticas de segurança. É uma grande ironia que justamente ele
tenha ignorado as regras.

Há onze anos, ele saltou em uma das áreas proibidas e bateu a cabeça em uma
pedra. Os bombeiros que recuperaram seu corpo disseram que ele deve ter
desmaiado com a batida e se afogado.

Essa era uma característica bastante difícil dele, apesar de se preocupar muito
com as crianças, sempre foi aventureiro demais e sempre teve o impulso de
quebrar as regras só para provar que conseguia. E sempre conseguiu… até o
dia que não conseguiu mais.

— E como funciona esse lance de duplas? — Mila pergunta depois de um


instante.

— Tem um monitor designado para cada faixa etária das crianças. Mas a
notícia boa é que vocês vão poder escolher com qual idade preferem
trabalhar.

— Nenhuma — Helena anuncia.

— Vamos começar por você, Helena — Chiquinho diz com um sorriso, e


Luísa engole uma risada. — Que tal os menores? De 7 a 9.

— Nem pensar!

— Está bem. Os mais velhos? De 14 a 17.


— Deus me livre! Eu odeio adolescentes!

— Vai ser de 10 a 13 então. — Chiquinho determina e pega sua prancheta


para anotar a informação.

— Que Deus me ajude — Helena se lamuria.

— Luísa, você é a próxima…

— A Luísa pode ficar comigo na recreação — Sofia corta o pai e se apressa


em propor.

Mila vira para Luísa com curiosidade e ergue uma sobrancelha. Luísa apenas
dá de ombros antes de concordar:

— Por mim!

— Vou ficar com os mais velhos — Mila diz antes de Chiquinho continuar.
— Me dou melhor com adolescentes.

— Lembra que eles são menor de idade — Helena alfineta.

Luísa revira os olhos.

— Que asquerosa que você é, guria — Lara diz.

— Eu não tenho problema nenhum em arrumar pessoas da minha idade,


Helena. Se você quiser, posso até te dar umas dicas! — Mila diz e lança uma
piscada.

É a vez de Helena revirar os olhos.

— Tá, eu fico com os menores então, de 7 a 9 anos — Lara diz.

— Bom, até que foi mais fácil do que eu pensei — responde Chiquinho com
um sorriso, anotando tudo na prancheta.
CAPÍTULO 4
Após o jantar, elas tentam se acomodar e se habituar com o que será seu novo
lar pelas próximas semanas.

Lara tenta mais uma vez ligar para Felipe e dessa vez consegue manter uma
chamada por mais de alguns segundos. Confesso que até eu já estava
tentando dar uma mãozinha para que esse sinal se mantivesse, mas como
ainda não cultivei um bom networking do lado de cá e ainda não conheço
quase ninguém, não pude ajudar muito.

Ainda assim, dessa vez dá certo e ela consegue falar com os filhos. Graças a
Deus, porque essa mulher já estava à beira de um ataque de nervos.

— Alô? Felipe??? Você tá me ouvindo?

— Tô, Lara, se acalma!

— Graças a Deus! Esse lugar tem um sinal de merda! Como estão as coisas
aí? Eles estão bem?

— Eles estão como estavam quando você deixou eles aqui há algumas horas
— Felipe responde com pouca paciência.

— Eles já jantaram? Você não deu besteira pra eles, né?

— Jantaram e, não, não dei besteira.

— E o que eles comeram?

— Um negócio que parece um nuggets de legumes, minha mãe que fez, pode
confiar…
— Uhum — ela resmungou. — Deixa eu falar com eles!

— Você tá com tanta pressa assim pra se livrar de mim? — ele pergunta com
algo que eu diria que lembra um flerte.

— Como se você gostasse de falar comigo — Lara revida, mas vejo as


bochechas dela corando de leve.

Cristo.

— Você sabe que eu sempre gosto de falar com você, Laranjinha.

Laranjinha? Credo!

— Foi por isso que você me largou?

— Nós terminamos — ele enfatiza o “nós” como se tivesse sido uma decisão
conjunta — porque estávamos infelizes, não porque não nos amávamos mais.

Minha filha, não cai nessa. Eu te criei melhor que isso.

Ela revira os olhos, mas parte dela fica um pouco balançada e ao mesmo
tempo confusa. Felipe sempre bateu na tecla do divórcio e era Lara que ainda
tentava uma reconciliação pelo bem dos filhos.

— Nós estávamos infelizes porque você vivia fora de casa e aí achou que a
melhor forma de resolver era sair de vez!

— Lara…

— Deixa eu falar com os meus filhos, Felipe.

Ele solta um suspiro e logo em seguida a voz de Lucas e Alícia preenchem o


silêncio.

— Mamãe!

— Oi, meus amores. Eu já tô morrendo de saudade!


Duas vozinhas agudas e animadas contam para ela cada mínimo detalhe do
que aconteceu desde que ela os deixou na casa de Felipe.

Ela, por sua vez, faz exatamente as mesmas perguntas que já fez para o Felipe
para ter certeza de que seus filhos comeram bem, já tomaram banho, já
escovaram os dentes e que estão com o pijama certo para a temperatura do
dia e etc.

Lara pode ser um pouco controladora, mas ela tem boas intenções.

***

Não satisfeita em decorar e “proteger” o próprio quarto, Mila começa a


espalhar seus cristais por todos os cantos da sede. Pendura uma mandala na
parede da área de recepção e acende três incensos diferentes pelos cômodos
da cabana.

Helena, que já terminou de desfazer as malas, guardar e organizar todos os


seus pertences de forma metódica e eficiente, caminha até a recepção para
tentar matar o tempo, já que a internet do seu celular e computador quase não
funcionam ali.

— Que catinga é essa?

Ela pergunta para Luísa que está largada no sofá dedilhando alguma coisa no
violão.

— São os incensos da Mila — responde. — Esse aí é de arruda.

Ela aponta com a cabeça para o incensário indiano com um incenso


queimando.

— Credo, parece que estão cremando um vegano — resmunga Helena,


franzindo o nariz com o aroma herbal e se senta no outro sofá.

— Você sempre foi assim mórbida?

Helena dá de ombros, mas a resposta é não.


Ela nem sempre foi mórbida assim, mas acredito que cada uma delas lida
com o luto à sua maneira.

— Ela disse que esse aí é pro mau olhado — Luísa continua.

— Que mau olhado? Esse lugar não tem olhado nenhum, nem bom nem mau.

Dessa vez Luísa dá de ombros e continua a tocar.

— E cadê ela? — Helena pergunta.

— Meditando lá no trapiche.

Helena revira os olhos e responde:

— Espero que ela não meta fogo na cabana espalhando essas porcarias e
saindo.

— Pelo menos a gente ia conseguir resgatar a herança sem precisar ficar com
esse lugar! — Luísa diz com um sorriso travesso.

Apesar de eu saber que é brincadeira, devo dizer que não achei muita graça.
Helena, entretanto, solta uma risada.

— Tá compondo? — pergunta, pegando uma das revistas da mesa de centro e


folheando sem prestar atenção.

Helena também sempre gostou de música e aprendeu piano com uma


facilidade imensa. Na verdade, todas gostam muito, e Leo as ensinou a tocar
flauta e violão, mas Luísa e Helena sempre tiveram mais talento musical.

— Quem dera. Faz um tempão que não consigo criar nada novo, desde que a
mamãe… enfim.

Helena lança um olhar para Luísa que continua os acordes sem desviar os
olhos de uma das fotografias penduradas na parede da sede.

— Bom — Helena diz depois de um tempo; ela larga a revista na mesa


central antes de se levantar —, eu só vim procurar uma mesa para usar de
escrivaninha no meu quarto — diz e caminha na direção da administração.

Não posso dizer que goste de ver esse tipo de interação entre as minhas
filhas; na verdade, detesto vê-las agindo como se fossem duas estranhas,
como se não tivesse sido Helena a ensinar as primeiras notas no piano para
Luísa.

Logo depois de Helena sair, Luísa larga o violão, sentindo-se entediada, e


resolve dar uma volta nos arredores. A noite está clara e ela logo avista Mila
sentada como um buda, no meio do píer, meditando.

Ela segue o caminho que contorna o lago, notando que, exceto por uma
melhoria ou outra, pouca coisa mudou ali. Caminha distraída pela passagem
de pedra, sem se preocupar com a direção, até que uma voz, não muito longe
dali, chama sua atenção.

Ela caminha mais um pouco e logo reconhece a casa do Chiquinho. Não


lembrava que eles moravam tão perto, mas a casa está igualzinha à de sua
memória, apenas as árvores ao redor estão mais altas e robustas; ela para
perto da charmosa cerca de madeira, e logo percebe que a voz que ouviu é de
Sofia. Ela está deitada preguiçosamente na rede falando ao telefone.

— Deixa de ser bobo, Edu.

Sua voz ecoa pelo ar e ela solta uma risada tão espontânea e contagiante que,
sem perceber, Luísa sorri também.

— É claro que eu vou, amor — Sofia continua.

Luísa percebe seu ato intrusivo e se põe a caminhar novamente; mas, apesar
de deixar a casa de Chiquinho para trás, não consegue deixar a filha dele:

“Será que o tal Edu é namorado dela? Pareceu ser.”

Por algum motivo, Luísa não imaginou que Sofia tivesse namorado; talvez
por se lembrar dela com 10 anos de idade ou talvez por ela mesma nunca ter
namorado sério.

Luísa é muito parecida com Mila nesse quesito. Nunca se envolve por mais
do que algumas semanas, mas diferente de Mila que aproveita intensamente
seus affairs, Luísa está sempre mais preocupada em terminar as relações do
que em vivê-las.

Quando Luísa se aproxima mais uma vez da sede, vê que Mila ainda está no
píer. Ela não está mais meditando, mas sentada à beira do lago com as pernas
balançando sobre a água. Luísa caminha até ela e se senta ao seu lado.

— Já tá entediada? — Mila pergunta, sabendo que Luísa é um espírito


inquieto, e também porque Mila sempre sabe o que as pessoas estão sentindo.

— Não sei se entediada ou de saco cheio…

— Esse é um ótimo lugar para fazer um detox, Lu. Aproveita para relaxar,
você tá com a aura muito carregada.

— Deve ser porque eu e a minha aura estamos aqui por obrigação!

— Não é porque você tá aqui obrigada que não possa tirar algum proveito —
Mila diz como se fosse algum guru do bem-estar ou coisa assim. — Só tô
falando que aqui tem uma energia ótima para relaxar um pouco, só isso.

— ARGH! EU ODEIO ESSE LUGAR!

As duas escutam Lara gritar ao caminhar em zigue-zague balançando o


celular no ar, tentando conseguir sinal para restabelecer a ligação que caiu.

Luísa vira para Mila com um sorriso irônico:

— O que você dizia?

Mila apenas solta um suspiro.


CAPÍTULO 5
O dia amanhece úmido, com orvalho cobrindo a grama e as folhas das
árvores, e uma leve neblina sobre o lago, um indicativo de que ele será
quente e ensolarado. Chiquinho caminha em direção ao píer com uma xícara
de café fumegante.

Uma das coisas que ele mais gosta sobre morar ali é justamente poder tomar
seu café todo dia olhando para o lago e sentindo a brisa da manhã.

Hoje, no entanto, assim que se aproxima do lago, vê que seu lugar favorito já
está ocupado por Mila, que está Saudando o Sol. Chiquinho dá mais uma
olhada no relógio de pulso só para ter certeza de que ele não perdeu a hora.

Não, são mesmo 5h50 da manhã.

Mila sempre saúda o sol antes mesmo dele aparecer.

Depois de um tempo você se acostuma.

Ela era a única que ainda morava comigo, e eu já estava acostumada a


acordar e ver ela no jardim ou no deck da piscina fazendo sua rotina de ioga e
meditação.

E, convenhamos, é melhor saudar o sol do que um cigarro… como é o caso


de Luísa, que está sentada na escadaria da sede com uma xícara de café preto
em uma mão e um cigarro na outra.

— Vocês todas madrugam assim todos os dias? — Chiquinho pergunta a


Luísa e se senta ao lado dela na escada.
— Não sou de dormir muito.

Isso é verdade, desde que os pesadelos começaram, depois da morte do Leo,


ela passou a ter uma relação conturbada com o sono.

Quando era criança, uns dois meses depois do acidente, ela começou a pedir
para que eu, Mila e Lara revezássemos para dormir com ela. Geralmente uma
de nós contava uma história ou lia um livro com ela e depois dormia na
mesma cama. Essa rotina durou vários meses, até que a sua psicóloga nos
explicou que seria importante para ela aprender a dormir sozinha e que nossa
presença era uma muleta no processo de luto da Luísa, então, aos poucos,
fomos diminuindo a frequência até que ela, por fim, voltou a dormir sozinha.

Sua rotina, no entanto, não mudou muito, ela adquiriu o hábito de ler um
livro sempre antes de dormir. Hábito esse que preserva até hoje. Mas apesar
de os pesadelos terem diminuído ao longo do tempo, ela passou a não gostar
de dormir.

Ela não tem nenhum problema neurológico e nem sofre de insônia ou coisa
assim, ela simplesmente não gosta de dormir desde então. Vai para o quarto
sempre o mais tarde que consegue e, se acorda no meio da noite, se levanta e
começa sua rotina.

— Aqui é melhor acordar cedo mesmo — Chiquinho diz.

— Para aproveitar mais o dia? — Luísa adiciona com um sorriso ao mesmo


tempo cínico e divertido.

Chiquinho solta uma risada, porque ele sabe que ela, assim como as irmãs,
está ali por obrigação.

— Se serve de consolo — ele diz com um meio sorriso mostrando apenas


uma de suas covinhas —, eu sinto muito que você tenha que estar aqui de
novo depois de uma perda.

Luísa fita ele com curiosidade. O fato de ele entender qual é o problema dela
com o lugar surpreende nós duas, mas Chiquinho sempre foi muito bom com
pessoas, certamente melhor do que eu. Luísa apenas assente com a cabeça e
toma um gole do café aguado que sai da máquina de café da recepção da
sede.

***

O dia, apesar de calmo, é cheio de ansiedade e antecipação.

Não para as minhas filhas, é claro, que nem sabem o que esperar desse verão,
mas para a equipe, que finalmente está completa, com todos os colaboradores
presentes.

No começo da tarde, logo após os últimos monitores chegarem, Chiquinho


reúne toda a equipe ao redor da área da fogueira, perto do lago.

Helena, Lara, Mila e Luísa se sentam uma ao lado da outra e assistem tudo
com certa desconfiança.

Acho que elas não esperavam ver tanta gente.

A verdade é que o acampamento cresceu bastante nos últimos anos e com


novas leis e regulamentos foi necessário contratar mais profissionais
qualificados. Contraditoriamente, quando terminamos todas as melhorias e
nos adequamos às normas, o fluxo de crianças começou a cair.

Mas para as minhas filhas deve ser mesmo uma surpresa ver quase trinta
pessoas reunidas para essa finalidade.

— Oi — Sofia diz e se senta ao lado de Luísa, que sorri para ela.

— Bom — Chiquinho diz e bate uma palma —, acho que, com exceção do
Zeca que tá arrumando um vazamento que encontramos no banheiro das
meninas, está todo mundo aqui.

— Quem é o Zeca? — Mila pergunta baixinho para as irmãs.

— É aquele que parece o Drauzio Varella que carregou nossas malas ontem
— Lara responde.

Luísa escuta Sofia tentar prender o riso.


— Eu diria que ele tá mais pra um Fernando Meligeni calvo — Helena opina.

— Eu não sei quem é esse — Lara sussurra de volta.

— Era um tenista — Mila responde.

— Como vocês sabem — Chiquinho continua, interrompendo o debate delas


—, amanhã chegarão as crianças. Esse verão temos 68 crianças que
dividiremos em seis grupos com dois monitores cada. Nos orgulhamos muito
de conseguirmos manter nossos programas sociais, e esse ano, dessas 68
crianças, 12 são de abrigos.

— Abrigo? — Luísa pergunta baixinho às irmãs. — Tipo, orfanato? Vocês


sabiam disso?

As três resmungam e negam com a cabeça.

Se elas tivessem mais interesse no acampamento da família, elas saberiam


que há cinco anos recebemos crianças de projetos sociais e lares de
acolhimento. Atualmente, temos parceria com dois lares diferentes, mas a
ideia é conseguir receber ainda mais crianças nas próximas temporadas. Mas,
para isso, o Luneta não pode fechar!

— Como neste verão temos a ilustre presença das irmãs Lancellotti —


Chiquinho continua com um gesto pomposo para as quatro —, elas ficarão
com três grupos, já que a Luísa ficará na recreação com a Sofia.

— Eu fico na recreação com a Sofia! — uma moça, que eu não me recordo o


nome, mas que conheci no verão passado e não gostei, exclama.

Sofia se remexe ao lado de Luísa, que olha curiosa para ela.

Boa parte dos monitores são universitários de classe média procurando um


emprego de verão ou tentando cumprir as horas extracurriculares que seus
cursos exigem. O caso dela não é diferente.

— Eu sei, Michelle, mas esse ano vamos mudar as duplas — Chiquinho


explica, e tenho a impressão de que ele também não gosta muito dela.
— Que palhaçada isso — Michelle resmunga baixo, mas não o suficiente
para minhas filhas não escutarem.

— Se você não tá gostando, pode pegar suas coisas e sair, meu anjo —
Helena diz sem descruzar nem os braços nem as pernas.

— Que energia mais tóxica — Mila resmunga sobre a moça.

Como Michelle não faz menção de se levantar, Chiquinho limpa a garganta e


continua:

— Como eu dizia, Helena, Lara e Mila ficarão responsáveis por um grupo


cada e farão dupla com outro monitor. Helena — ele anuncia —, você ficará
com a Pati!

Pati, ao ouvir seu nome, abre um largo sorriso e abana com entusiasmo para
Helena, que apenas força um sorriso. Dessa vez é Luísa que tenta, em vão,
conter um risinho. Sei que ela abriria mão da herança toda só para ver Helena
passando um mês inteiro com uma figura tão sorridente e alegre como Pati.

— A dupla da Mila é a Michelle — Chiquinho continua.

— Ih, pegou a Chernobyl — Luísa sussurra.

Mila também força um sorriso, o que é mais do que Michelle faz.

— Que Deus me ajude — Lara resmunga sabendo ser a próxima.

— E a Lara fará dupla com a Betina.

As quatro procuram Betina com os olhos. Betina apenas ergue a mão com
sobriedade para se identificar no meio das pessoas e sorri de maneira formal e
gentil para Lara.

Mila, Luísa e Helena ficam levemente decepcionadas com a reação da jovem,


mas Lara parece satisfeita em fazer dupla com uma pessoa madura.

Após a reunião, o resto do dia é dedicado aos preparativos finais e decoração


para esperar os jovens campistas.
***

É tradição no Luneta um luau de boas-vindas à equipe na noite anterior à


chegada das crianças.
E por volta das 19h, estão quase todos ao redor da fogueira, que agora está
acesa e crepitando sob o luar… na verdade, sob o sol, porque estamos no
horário de verão e ainda não escureceu, mas você entendeu o conceito, né?

Quase todos, porque minhas filhas estão todas na sede principal.

A maioria da equipe fica em um alojamento menor, mas quando meu pai


construiu o acampamento, ele fez a sede com alguns quartos para que a
família pudesse se instalar mais à vontade o ano todo. Esse foi o único
privilégio que concedi a elas nesse acordo, de que elas poderiam ficar na sede
em vez de no alojamento.

Helena está na recepção respondendo alguns e-mails, já que a internet só


funciona direito quando usada direto no cabo, e o único cabo é o que está na
mesa do Chiquinho.

Nesse momento ela está com um vinco na testa enquanto digita com força no
teclado:

“Eu preciso que você leia com atenção e me retorne com alguma solução o
mais rápido possível. Não tenho muito tempo para resolver isso.”

O endereço de e-mail é de um advogado que nunca ouvi falar e que


certamente nunca trabalhou para a nossa família.

Hm, suspeito.

Helena sempre foi obstinada, e eu sempre admirei isso nela. Mas ao mesmo
tempo que isso é a sua melhor qualidade, é também um grande peso. Ela
jamais admite uma derrota.

Nunca admitiu perder o pai em um acidente e agora não admite ter me


perdido sem aviso prévio.
Quando o Leo morreu, ela já tinha 21 anos e não morava mais conosco. Ela
estava acabando a faculdade e logo se enterrou nos negócios. Parte porque
era uma forma de não precisar lidar com a falta do Leo e parte porque eu
precisava, desesperadamente, de ajuda.

Do dia para a noite tive que lidar sozinha com quatro filhas e uma empresa
gigantesca. E se não fosse Helena assumir o papel de braço direito, não sei
como teria conseguido.

Mas ao mesmo tempo que sou grata a ela por isso, eu sei que ela se agarrou
tanto na sua carreira que minou qualquer outro campo da sua vida. Lara pode
ser apegada demais, mas Helena não se deixa apegar a nada… a não ser a
uma ideia fixa.

E por isso sei que ela não irá aceitar a cláusula do testamento sem lutar. Sei
que tentará, a qualquer custo, arrumar uma solução. Estou preparada para vê-
la tentar e talvez ganhar. Mas torço para que meu plano seja mais eficiente.

Ao seu lado, Lara, que depois de um dia e meio percebeu que poderia usar o
telefone analógico da sede para ligar para o Felipe, está falando com Alícia e
Lucas. Luísa está jogada no sofá com os pés sobre a mesa de centro tentando
resolver um cubo mágico.

Mila chega à recepção com uma saia floral esvoaçante até o pé, rasteirinha e
um top de crochê que mais parece um biquíni, além, é claro, dos seus
inúmeros acessórios.

— Vocês não se arrumaram ainda? — ela pergunta, vendo a cara de


curiosidade de Luísa.

Lara e Helena nem sequer notam sua presença.

— Se arrumar pra quê? — Luísa pergunta.

— Pro luau.

— Pff. — É tudo que Luísa oferece antes de voltar para o cubo mágico que
ela jamais vai conseguir resolver.
Mila olha para Helena, que responde sem ao menos desviar os olhos da tela
do computador.

— Nem pensar! Sou obrigada a trabalhar, não a gostar das pessoas.

— Lara?

— Só um minutinho, meu amor — ela diz para um dos filhos no outro lado
da linha, antes de se virar para Mila. — O quê?

— Você vai no luau?

— Você não tá vendo que eu tô no telefone com o Lucas?

Mila apenas solta um suspiro. Ela sabe que a ligação não vai durar muito
tempo, mas está na cara que Lara não vai mesmo assim.

— Por favor, Lu, não me deixa ir sozinha! — Mila implora à irmã mais nova.

— Ai, Mila, você viu como aquela gente é chata, meu.

— A Sofia parece legal — ela diz com um tom que não sei exatamente como
descrever, sugestivo, talvez?

— É, ela é.

— Então, nem todo mundo é chato, vamos!

Luísa solta um suspiro de rendição e tira os pés da mesa de centro.

— Tá, mas eu não vou trocar de roupa.


CAPÍTULO 6
Luísa está com um shorts jeans rasgado, uma camiseta de banda que eu
estaria mentindo se dissesse que conheço ou que consigo ler o nome. Por que
bandas de rock usam tipografias tão difíceis de decifrar?

Enfim… por cima da camiseta cropped de banda ela está com uma camisa de
sarja amarela mostarda que é três números maior que o tamanho dela, porque,
apesar de ser fevereiro, à noite aqui sempre tem uma brisa fresca.

O cabelo, que ela pintou de loiro com as pontas rosa logo depois da minha
morte, já começou a crescer, mostrando a raiz castanha, e agora está preso em
um pequeno rabo de cavalo rosa. Luísa não costuma usar tantos acessórios
como Mila, usa apenas um piercing no septo que eu já cansei de falar que é
joia de gado, não de gente, mas que ela adora.

Ela e Mila caminham na direção do luau, que é no mesmo lugar em que foi a
reunião mais cedo, mas dessa vez, é claro, a fogueira está acesa.

Assim que elas se aproximam, a música das caixas de som invade seus
ouvidos.

— Cristo, tá tocando Tribalistas — Luísa reclama.

— Você adora Tribalistas — Mila diz, lembrando que tocava bastante na


nossa casa quando a Luísa era criança e ela sempre cantava a plenos pulmões.

— Correção, eu adoro Marisa Monte, é diferente, e segundo… não em uma


festa, né?

— Ah, desculpa, eu não sabia que tinha trazido a Helena comigo, senhorita
“nada me agrada”! — Mila provoca.

Luísa revira os olhos com a comparação.

— Tá, tá… falo mais nada!

Mila esboça um sorriso e puxa Luísa pelo braço.

— Vem, Heleninha — Mila diz —, vamos pelo menos tentar aproveitar essas
férias forçadas.

A maior parte das pessoas é a mesma que trabalhou no ano anterior, tirando
alguns poucos novatos. O luau de boas-vindas serve para o exato propósito de
fazer os novatos se sentirem parte do grupo e de reunir aqueles que já se
conhecem.

— Fico feliz que vocês vieram, meninas — Chiquinho diz ao vê-las se


aproximando —, mesmo que só pela metade.

— A melhor metade — Mila diz com um sorriso presunçoso.

— Sabe como são aquelas duas — Luísa confirma caminhando até a caixa de
isopor atrás de uma cerveja.

— Fiquem à vontade, a casa é de vocês — ele diz com um sorriso. —


Literalmente.

Mila lança um sorriso para ele, que se vira e volta para o grupo de pessoas
com quem conversava.

— O que você quer, Mi? Tem cerveja, Keep Cooler e… — ela diz, olhando
os rótulos na caixa —, não, é isso mesmo. Cerveja e Keep Cooler. Ah! Tem
Coca também.

— Keep Cooler de uva.

— Eca! — Luísa exclama, franzindo a testa.

Ela entrega a garrafinha para Mila e pega uma cerveja longneck para si.
— Oh lá a filha do Chiquinho sofrendo com a Chernobyl — Mila diz, e Luísa
vira na direção que ela está olhando.

Sofia está sentada em um dos bancos de pedra ao redor da fogueira


conversando com a Michelle, ou melhor, escutando a Michelle, já que a
menina parece falar sem parar.

Ela brinca com o gargalo da longneck que está segurando enquanto olha para
a fogueira e balança a cabeça de vez em quando para algo que Michelle diz.

— Boa sorte com ela o verão todo — Luísa diz a Mila.

Mas assim que vira na direção da irmã, vê um rapaz loiro, daquele tipo de
cabelo loiro queimado de sol, se aproximando; e Luísa se lembra de ele ter
sido apresentado na reunião como um dos salva-vidas.

— Você é a Camila, né? — ele pergunta com um sorriso conquistador.

— Mila — ela corrige, retribuindo o sorriso.

Luísa revira os olhos, porque, apesar de não ver as irmãs com frequência,
conhece Mila o suficiente para saber que ela vai conversar com esse moço a
noite toda e deixar ela sozinha.

Luísa nunca foi tímida ou teve alguma dificuldade para socializar. Quando
ela era criança, principalmente, sempre chamava a atenção dos adultos com a
eloquência e charme com que conseguia manter uma conversa.

E, mesmo hoje, ela é capaz de encantar a maioria das pessoas com seu humor
leve e inteligência. Contraditoriamente, ao mesmo tempo em que ela pode te
envolver em seu campo gravitacional com facilidade, ela pode também
afastar a todos quando se sente mais introspectiva, o que é o caso desde que
chegou ao acampamento.

Ela não se sente à vontade para sair conversando com as pessoas com as
quais passará o próximo verão; e com exceção de suas irmãs, Chiquinho e
Sofia, ela ainda não falou com ninguém. E por ela, tudo bem continuar dessa
forma.
Sendo assim, ela bebe sua cerveja sozinha em uma cadeira de acampamento
que encontrou vaga perto da caixa de bebidas.

É bizarro que a filha que menos conviveu com o Leo seja a que tenha mais
trejeitos parecidos com os dele. Ela se senta com um cotovelo apoiado no
braço da cadeira e o queixo apoiado sobre os nós dos dedos, o outro braço
está caído para o lado com a longneck sendo segurada pelo gargalo,
exatamente como Leo fazia quando estava entediado ou irritado.

Apesar de não estar tão perto da fogueira, ela consegue sentir o calor que
emana das chamas.

Depois de umas duas músicas, as quais ela tinha algum comentário interno a
fazer, mas cantarolou mesmo assim, ela se levanta para pegar outra cerveja.

— Vai ficar aí sozinha a noite toda?

Ela vira em direção a voz e vê Sofia esperando para pegar outra bebida na
caixa térmica. Luísa esboça um sorriso.

Ela não deixa de notar como Sofia está diferente agora. Só a tinha visto com
roupa de trabalho: botina, short cáqui e camiseta amarela. Mas agora ela está
com uma rasteirinha, shorts jeans e uma blusa larga de fio caindo em um dos
ombros e deixando à mostra uma regata branca com renda nas alças.

— Ninguém veio falar comigo — diz e dá de ombros.

Ela abre uma longneck e oferece a Sofia, que aceita com um sorriso, em
seguida abre uma para ela mesma.

— Você também não foi falar com ninguém — Sofia rebate.

Hm, parece que alguém estava prestando atenção.

— Touché.

— A maioria das pessoas tem certo receio de falar com vocês… — Sofia diz
e se encosta na mesa de madeira que está sendo usada de apoio —, com você
e com as suas irmãs, eu digo.
— Ué, por quê?

— Eles acham que vocês são tipo as Kardashians do sul e que são metidas a
besta.

Luísa solta uma honesta gargalhada com a comparação.

— Bom, a Helena é mesmo! — ela concorda.

Sofia também ri. Apesar de nunca ter convivido muito com Helena, a fama da
minha filha a precede.

Um silêncio paira por alguns segundos entre elas e sei que nem Sofia quer se
afastar, nem Luísa quer voltar a ficar sozinha, mas elas não sabem como
continuar.

Por fim, Sofia limpa a garganta e pergunta:

— E como foi essa última noite para você? Conseguiu dormir bem ou os
sapos martelo te perseguiram?

Luísa pende a cabeça para o lado, confusa.

— Você não se lembra? — Sofia pergunta. — No último verão que você


veio, você não conseguia dormir por causa dos sapos que ficavam coaxando
alto do lado da nossa cabana.

Oh.

Provavelmente foi o que ela contou para Sofia na época, para não precisar
falar sobre o real motivo de não conseguir dormir.

Luísa franze a testa, como se uma memória estivesse sendo desbloqueada.

— Eu… eu, não lembro muito daquele verão, pra ser sincera — Luísa
confessa, encolhendo os ombros.

Mas sinto que ela está começando a se lembrar desse caso específico. Creio
que a presença de Sofia está desencadeando algumas memórias perdidas de
Luísa.

Luísa esqueceu boa parte do ano em que Leo morreu. Sei por que sempre que
conversava com ela sobre aquela época, notava que ela não se lembrava de
quase nada. Acredito que seja um mecanismo de defesa para evitar reviver
aquilo.

— Mas eu me lembro muitíssimo bem — Sofia diz. — Porque os sapos


incomodavam você e você me incomodava! Na última semana inteira você
me convenceu que a gente deveria dormir na minha casa em vez de no
alojamento, mas eu só tinha uma cama de solteiro, e menina, como você se
mexia, pelo amor de Deus.

Luísa sentiu suas bochechas esquentarem, e tenho a impressão de que ela não
se lembrava disso.

Mas faz sentido ela ter começado a pedir para que eu ou as irmãs
dormíssemos com ela depois que voltou do acampamento. Provavelmente,
percebeu que se sentia mais segura com outra pessoa próxima.

— Se eu tenho que sofrer, todo mundo vai sofrer comigo — ela diz, com
humor. — Mas nenhum sapo me incomodou dessa vez.

Sofia está prestes a responder alguma coisa quando sente algo na sua canela,
ela olha para baixo e dá de cara com um par de olhos negros e um miado.

— Own, quem é você? — ela pergunta de maneira retórica e se abaixa para


pegar o gato.

— É a vovó!

— Hm? — Sofia pende a cabeça em confusão enquanto faz cafuné na cabeça


felina.

— É a gata da Mila, Elvira, mas ela jura que a nossa vó tá reencarnada nessa
gata. E, sei lá, ela é meio sensitiva…

Sofia solta uma gargalhada e segura Elvira de frente para ela para encarar
novamente os olhos da gata.
— Prazer, vó da Luísa! — Elvira mia de maneira doce (isso por si só já
deveria provar para Luísa que essa certamente não é a minha sogra!) — Até
que ela é simpática!

Luísa também acaricia a cabeça da Elvira.

— É mesmo. E você ainda tem cachorros? Eu lembro que vocês tinham um


monte.

— Sim! Você deve lembrar da Luna, nossa labrador, ela tá com 14 anos já!
Mas temos um filhote de labrador também, o Paçoca, e um vira-lata que
resgatamos ano passado que meu pai batizou de Bartolomeu, mas a gente
chama de Bartô.

Luísa sempre adorou animais, mas desde que passou a morar sozinha nunca
teve nenhum. Acredito que ela tenha medo de não conseguir cuidar deles e
também não queira deixá-los sozinhos tantas horas em um apartamento.

— E cadê eles?

— Ah, por aí, daqui a pouco você topa com um deles — diz e solta Elvira,
que caminha até Mila e se enrosca na sua saia. — E você tá preparada pra
amanhã?

— Nem um pouco!

Luísa faz uma careta e dá um gole na cerveja.

— Não se preocupa, vai ser tranquilo, eu vou tá com você o tempo todo.

— Hm, obrigada por me escolher. Esse negócio de fazer dupla com


desconhecido não é muito a minha praia.

— Eu escolhi a mais nova, né? Porque precisa de energia para aguentar as


crianças na recreação.

— Vish, então lamento te informar que escolheu a irmã errada. A Helena que
é a atleta da família; se vir alguém correndo de madrugada por aí pode ter
certeza de que é ela.
— É? — Sofia pergunta com seriedade. — Será que ainda dá tempo de
trocar? Eu vou lá falar com o meu pai, pera aí.

— Não, não — Luísa a segura pelo pulso para impedi-la, e Sofia finalmente
abre o sorriso que estava segurando. — Eu tenho energia pra caralho, eu juro!

Luísa espelha o sorriso de Sofia.

Ela ainda segura o pulso de Sofia, e o toque traz consigo mais uma memória
resgatada daquele verão: as duas em uma atividade de arvorismo e Sofia
pegando na mão de Luísa para ela não ter medo.

Eu lembro que depois do acidente, Luísa passou a ter medo de fazer quase
todas as atividades que antes adorava fazer com o pai, inclusive subir em
árvores.

— Nesse caso, vou deixar você em período de experiência! — Sofia diz.

— Muito obrigada pela confiança, eu não vou te decepcionar — Luísa rebate.

— Sofia, eu estava esperando a minha bebida — Michelle diz, e Luísa e


Sofia dão um pulo, interrompendo o contato.

— Ah, eu me distraí — Sofia diz à Michelle, sentindo-se meio constrangida.


— Desculpa.

Michelle continua olhando para Sofia, como que esperando alguma coisa,
Sofia responde o olhar, estreitando os olhos, e Luísa apenas observa a
interação.

— A cerveja!? — Michelle repete, como se fosse óbvio.

— Ah! — Sofia exclama. — Sim, sim.

Ela então se afasta da mesa de apoio, liberando o acesso ao cooler em que as


bebidas estão. Michelle pega a bebida e abre com um silêncio estranho
pairando sobre as três.

— Então… — Michelle diz virando-se para Luísa — é a sua primeira vez


trabalhando aqui?

Luísa apenas assente com a cabeça e toma mais um gole de cerveja.

— Deve ser bom viver sem precisar trabalhar! — Michelle continua.

Luísa deixa escapar uma risada cínica e morde o lábio. Se tem uma coisa que
ela detesta é quando pessoas pressupõem saberem da vida dela.

Quando ela era adolescente, o Grupo Lancellotti se envolveu em um


escândalo, quando um dos diretores foi acusado de desviar o dinheiro dos
projetos sociais que apoiávamos na época.

Para mídia, não importava que ele havia sido demitido e processado, nem que
havia sido o único responsável e beneficiário do caixa dois. A única coisa que
importava era que havia sido dentro da nossa empresa e por isso o meu rosto
e o das minhas filhas ficaram aparecendo em jornais, revistas e blogs por
meses até se cansarem da história.

— Deve mesmo — Luísa responde. — Não saberia te dizer.

— Meu pai me contou que você toca em bares — Sofia intervém.

— Bares, eventos… luau com músicas melhores que esse — diz com um
sorriso para Sofia, ignorando Michelle.

— Foi meu pai que escolheu a playlist, não tenho nada com isso — ela se
defende elevando as mãos em rendição.

— Ah, mas tocar em bares não é trabalho — Michelle diz.

Eu juro que consigo sentir daqui os músculos do rosto da Luísa enrijecendo


com tanto esforço que ela está empregando para não revirar os olhos ou
esboçar qualquer reação de irritação.

— E você estuda o que, Michelle? — Luísa pergunta, ignorando o último


comentário.

— Educação física. Eu valido as horas em que trabalho aqui como horas


complementares para a minha graduação.

— Ah, mas mandar um monte de criança escolher entre jogar futebol ou vôlei
também não é trabalho! — Luísa diz e dá mais um gole na cerveja.

Sofia bebe também, mas tenho a impressão de que é para disfarçar o sorriso.

— Na verdade…

— E você, Sofia — Luísa corta Michelle —, o que pretende fazer depois da


formatura?

— Ah, eu adoraria tirar um ano sabático e viajar pela Europa, mas não sei.

— Você deveria ir!

— Eu também acho — Michelle concorda. — Lembra que ano passado


falamos de fazer essa viagem juntas?

Sofia concorda com a cabeça e sorri.

Para ser sincera eu não sei dizer se foi genuíno ou forçado, porque Sofia tem
sempre uma expressão doce e gentil, mas como acho difícil alguém querer
passar um ano todo com essa Michelle, vou chutar que foi forçado.

Talvez seja apenas meu instinto materno querendo defender a Luísa, mas essa
moça é intragável.

— Não sei, não queria deixar meu pai sozinho tanto tempo e acho que talvez
seja mais sensato arrumar logo um emprego.

— Seu pai é super jovem, Sofi.

Bom, nisso essa moça tem razão, Chiquinho não precisa de ninguém
cuidando dele.

— Eu entendo… — Luísa diz de forma reticente. — Quando fui pra


Barcelona, pensei a mesma coisa. Se você perguntasse para a minha mãe, ela
ia te falar que eu não via a hora de me livrar dela, mas não era verdade; eu
tinha receio de ficar longe muito tempo.

Oh.

Eu não sabia disso.

Nunca nem desconfiei que ela tivesse medo de ir; ela parecia tão obstinada
com a decisão de estudar fora. No fim das contas, nós nunca sabemos o que
se passa na cabeça das pessoas, mesmo essa pessoa sendo sua filha.

Ela não elabora mais do que isso, mas é o suficiente para que Sofia entenda.

Luísa continua:

— Eu fui mesmo assim e não me arrependo; na verdade, eu sei que teria me


arrependido se não tivesse ido.

Sofia esboça mais um sorriso, e Michelle acrescenta:

— Eu concordo! Vai ser incrível.


CAPÍTULO 7
Nenhuma das irmãs parece muito entusiasmada com a chegada das crianças.
Antes mesmo do café da manhã, Luísa já está fumando seu primeiro cigarro
do dia perto do lago quando vê Lara correndo na mesma direção que ela, com
Mila em seu encalço.

— Lara, me devolve isso; eu juro que vou me comportar!

— Eu não confio em você, Mila.

— Por que não?

— Porque eu te falei pra não trazer!

— Mas que diabos tá acontecendo? — intervém Luísa, colocando-se entre as


duas.

— Essa maluca quer jogar minha erva no lago! — reclama Mila.

— Eu que sou maluca?! Isso é um acampamento para crianças, guria!

— Ah, Lara — Luísa tenta ajudar —, também não é pra tanto, a Mila não vai
fumar com as crianças ou coisa assim… quer dizer, não, né? — Luísa
pergunta diretamente a Mila.

— Claro que não! — responde e faz uma pausa antes de acrescentar: — Se


bem que os adolescentes devem fumar até mais do que eu.

Ploc.

O saquinho de erva afunda no lago diante das três.


Mila se vira para Lara:

— Sua filha da puta!

Epa!

Alto lá! Eu não tenho nada a ver com isso.

— Esse tipo de negatividade não faz bem pra sua aura — Lara zomba.

Helena, que notou a comoção de dentro da sede, se aproxima curiosa com o


que está acontecendo.

— Vou falar pro Chiquinho cancelar com o resto das crianças, já que já
temos três aqui! — Helena dispara ao ver a cena: Luísa segurando Mila pela
cintura para não avançar em Lara ou talvez pular no lago atrás do pacote.

— Foi a Lara que começou!

— Foi você que trouxe drogas para um acampamento infantil!

— Ai, já chega vocês duas, que chatice! — Luísa intervém, soltando Mila.

As duas soltam uma bufada, que sou obrigada a concordar com Helena e
admitir que parece de duas crianças.

— Podemos entrar e tomar café agora? — Helena pergunta.

— Eu já vou, só vou terminar meu cigarro — responde Luísa.

— Credo, guria, nem tomou café da manhã ainda e já tá agarrada nessa


porcaria — Lara dispara. — Ainda bem que a mamãe não tá aqui pra ver isso.

— Cuidado, Lu, que a fiscal do Proerd aqui pode jogar seu cigarro no lago —
Mila revida, e Lara apenas rola os olhos.

— Mamãe não se importava — retruca Luísa, dando de ombros ao


comentário de Lara.
— Claro que ela se importava, que idiotice — diz Lara.

Exato! Claro que eu me importava!

— Ela falou várias vezes que se eu quisesse fumar o problema era meu.

— Isso é verdade, ela falava mesmo — Helena concorda.

Eu só estava usando psicologia reversa! Por que os filhos são assim? Quando
a gente fala “não faz”, eles fazem para contrariar, quando a gente fala “faz”,
eles também fazem, só pra poder dizer que a gente não se importa.

— Nunca pensei que eu usaria uma frase da mamãe mas: quando vocês forem
mães, vão entender — diz Lara com um suspiro.

— Deus me livre — responde Helena.

Luísa apaga o cigarro na sola da botina e as quatro caminham em direção ao


refeitório para tomar café da manhã.

A partir de hoje, elas terão que fazer todas as refeições no refeitório com o
resto do pessoal e não mais na sede, já que todos os cozinheiros estarão na
cozinha central.

Elas caminham juntas em uma mistura de tédio e antecipação ao primeiro dia


oficial de trabalho.

Assim em silêncio nem parece que vivem se engalfinhando.

Elas se sentam todas juntas numa mesa de quatro lugares.

— E como estava o luau ontem? — Lara pergunta como uma mãe pergunta
às filhas adolescentes.

— Tava ótimo — Luísa diz com sarcasmo. — A Mila arrumou um boy e me


deixou sozinha.

Helena abre um sorriso debochado antes de comer um pedaço de mamão.


— Mas você não ficou sozinha muito tempo… — Mila responde de forma
sugestiva.

Dois pares de olhos castanhos recaem sobre Luísa.

— Explique-se — Lara ordena, divertindo-se com as bochechas vermelhas de


Luísa.

— Sim, passei a noite ouvindo a simpatia da Michelle insinuar que não faço
nada da vida… divertida ela.

— Ah! Achei que ela tinha arrumado um homem também — Lara comenta
levemente decepcionada.

Luísa e Mila trocam um olhar de quem compartilha uma piada interna.

— Na verdade, você passou a noite conversando com a Sofia — Mila corrige.

— As duas eram que nem unha e carne quando eram crianças — Helena diz.
— Natural que voltem a ser amigas.

Luísa esboça um sorriso vencedor para Mila. Seja lá o que está acontecendo,
Luísa não está a fim de compartilhar com todo mundo.

Mila apenas rola os olhos como faz toda vez que sabe ser a única a
compreender uma situação; o que acontece com certa frequência.

A princípio você pode imaginar que Mila tem algum tipo de clarividência ou
coisa assim, mas creio que seja apenas interesse no próximo. Helena, Luísa e
Lara estão sempre tão focadas no próprio umbigo que não percebem nada que
acontece ao redor delas. Já Mila tem um interesse genuíno nas pessoas —
todas as pessoas — e por essa razão é bastante observadora. E às vezes ela
consegue enxergar melhor uma situação do que quem a está vivendo.

— Falando em reatar laços antigos — Helena diz com algo de sugestivo no


tom —, você e o Felipe conversando por telefone ontem pareciam bem
chegados! Nem parecia um casal se divorciando.

— Lara! — Mila exclama.


— Meu Deus, se preserve, mulher! — Luísa acrescenta, garfando um pedaço
de presunto e uma fatia de queijo frescal.

Lara revira os olhos e rebate:

— Eu estava perguntando sobre os meus filhos, Lena. Não tinha nada demais
na conversa.

— Sei — Helena diz apenas.

— Não tinha mesmo!

Helena apenas dá de ombros e toma um gole do café preto.

Elas passam o resto do café da manhã em relativo silêncio.

***

Pouco depois das dez, as bandeirolas, flâmulas e faixas de boas-vindas já


estão nos seus devidos lugares, assim como as equipes de salva-vidas, vigias
e demais colaboradores.

Os ônibus trazendo os pequenos campistas enfim começam a chegar e, com


eles, a confusão e euforia do primeiro dia.

É sempre um agito quando as crianças veteranas se reencontram, as novas


descobrem todas as possibilidades para o verão, e todas gritam, correm e se
divertem ao mesmo tempo.

Minhas filhas, no entanto, não demonstram a mesma disposição; na verdade,


qualquer um que olhe a cara delas nesse momento vai achar que elas estão
indo para execução na fogueira, tamanha animação.

Mas apesar das caras de velório, elas estão uma gracinha vestidas todas iguais
com o uniforme dos instrutores.

É bem verdade que Luísa teve que lembrar Lara e Helena três vezes de que
elas estavam ali pela herança até finalmente as convencer de se vestirem com
a bermuda cáqui e a camiseta amarela clara, mas valeu a pena.
Não as vejo assim, todas com o mesmo uniforme, desde que a Luísa começou
no primeiro ano e, por um breve período de tempo, as quatro estudaram na
mesma escola. Até os resmungos e as lamentações são os mesmos, é quase
como se o tempo não tivesse passado.

Agora as quatro estão uma ao lado da outra, paralisadas assistindo as crianças


correr de um lado para o outro.

— Bem-vindos a mais uma temporada de verão no acampamento A Luneta!


— Chiquinho grita no megafone, mesmo sabendo que ninguém está
prestando muita atenção.

Ele está mais que acostumado com isso e sabe melhor do que ninguém que é
perda de tempo tentar controlar o ímpeto das crianças nesses primeiros
minutos, quando tudo que querem fazer é conversar com os amigos ou
conhecer crianças novas.

Uma vez, quando as meninas eram crianças, Luísa acertou uma bola de vôlei
sem querer em um vespeiro lá na nossa casa e as vespas saíram ensandecidas
voando para todo lado, nós saímos correndo, é claro, para não sermos
picadas. Essas crianças aí me lembram aquelas vespas!

Não demora nem dez minutos para que surja o primeiro joelho ralado, mas
com a mesma velocidade com que a criança cai, um monitor já está ao seu
lado para levá-la à enfermaria para limpar o ferimento. Ao mesmo tempo, não
muito longe do acidente, outro monitor aparta a primeira briga entre os pré-
adolescentes, e outro consola uma menina chorando porque quer ir para casa.

Minhas filhas podem até não externalizar, mas sei que estão impressionadas
com a dinâmica do momento.

Todos parecem saber o que estão fazendo e prontos para qualquer coisa…
menos elas, é claro.

— Animadas para colocar a mão na massa? — Chiquinho pergunta a elas.

— Ô! — responde Helena.
Chiquinho apenas sorri; sei que ele está se divertindo com a situação.

— Luísa, como você vai ficar na recreação, pode se juntar a Sofia lá no píer
que ela vai te explicar todo o cronograma.

Luísa não perde tempo em dar o fora dali, sabe que teve mais sorte que as
irmãs em não precisar fazer dupla com uma desconhecida.

— Vocês três, vem comigo — Chiquinho diz e se põe a caminhar.

As três, sem muita saída, o seguem até o grupo de monitores que conversam
sob uma árvore.

Michelle solta um suspiro ao ver Mila.

— Eu devia ter tampado meu umbigo com um esparadrapo — ela sussurra


para Lara, que concorda balançando a cabeça.

Devia mesmo. Eu consigo sentir a energia ruim daqui!

Pati abre um sorriso e eleva a mão para um high-five com Helena; como a
retribuição nunca vem, Pati abaixa a mão sem jeito.

Acho que a Pati também deveria aderir à técnica do esparadrapo, porque


Helena de mau humor… não desejo a ninguém!

— Lara — Chiquinho a chama —, a Betina já está com as crianças, você


pode se juntar a ela lá. — Ele aponta para a mulher sentada em um círculo
com crianças.

Lara respira fundo e caminha até o grupo.

— Bem — Chiquinho diz ao resto —, pra essa manhã a única tarefa é ajudar
as crianças a encontrar suas respectivas cabanas e se certificar de que todas
estão alojadas e bem instaladas. Depois disso elas estão livres até o almoço.
As atividades começarão às treze horas em ponto.
CAPÍTULO 8
Sofia está no píer separando os coletes salva-vidas por tamanho para as
atividades da tarde.

O píer é em formato de T e cercado por um guarda-corpo em toda a extensão


da passarela, para garantir que nenhuma criança caia na parte mais rasa onde
há muitas pedras. Já a parte da frente é toda aberta, mas é sempre guardada
por um salva-vidas.

O sol já está alto e reflete no lago formando uma faixa prateada na água. O
cheiro de água doce misturado com o das folhas molhadas nas margens
preenche as narinas de Luísa quando ela se aproxima de Sofia.

— Você precisa de ajuda com isso?

Sofia se assusta ao ouvir a voz de Luísa, que apenas levanta as mãos em um


pedido de desculpas.

— Não, já tô terminando — Sofia responde. — E aí, pronta pra diversão?

Luísa solta um grunhido muito parecido com o que soltava quando eu a


obrigava a ir para a escola em dias de chuva; em seguida coloca uma goma de
mascar na boca. Ela sabe que não pode fumar durante o trabalho, então usa a
goma como um vício alternativo, por assim dizer.

Cárie é melhor que câncer, então, espero que continue assim.

— E aí? — o salva-vidas loiro que estava com Mila ontem pergunta assim
que chega ao píer. — Luísa, né?
— É — ela responde sem dar muita bola.

— Pepa — ele se apresenta e estende a mão para ela.

Luísa encara a mão dele por meio segundo antes de aceitar o cumprimento
com certa desconfiança.

Sofia apenas assiste a cena à distância e um vinco se forma em sua testa.

— E aí — ele repete —, sua irmã disse que você é a que mais curte uma
baladinha. Vai ter uma festa de música eletrônica sexta na cidade aqui do
lado, você se encarna em ir comigo?

“Se encarna”? Isso por acaso é um convite? Os jovens falam assim agora?

— Ir com você? — Luísa pergunta. — Você não tava dando em cima da


minha irmã ontem, não, guri?

Ele dá de ombros como se nada fosse e esclarece:

— Quando eu fui beijar ela, ela me deu um toco e disse que tá a fim de um
outro carinha aí.

Será que ele acha romântico ou galanteador falar que só tá convidando


porque levou um fora da irmã dela?

— A Mila disse isso? — Luísa pergunta, interessada na conversa pela


primeira vez. — E ela disse o nome dele?

— Não, e não perguntei, né? — ele responde, passando a mão no cabelo loiro
com um sorriso constrangido.

— Será que é o cara do velório? — Luísa pergunta para si mesma.

— Velório? — Sofia entra na conversa.

— É! — Luísa confirma. — O cara que ela conheceu no velório da minha


mãe!
— Sua irmã conheceu o namorado no velório? — Sofia indaga com certo
espanto.

— Pelo jeito os velórios da sua família são animados — Pepa diz com uma
risadinha.

Que deselegância, meu Deus. Que falta de tato e bom-senso.

— Fica quieto, Pedro Paulo — Sofia diz e revira os olhos para ele.

— Sim, velório é, tipo, um evento tradicional na minha família — Luísa


ironiza.

— Ih, foi mal, foi mal — ele diz, elevando as mãos. — Mas se você quiser ir
sexta, me dá um toque.

Luísa apenas assente por educação, e Sofia joga os coletes com um pouco
mais de força no guarda-corpo do deck.

— O que vamos fazer hoje à tarde? — Luísa pergunta depois de alguns


segundos estranhos de silêncio.

Sofia se encosta no corrimão do deck ao lado de Luísa.

— Banana Boat! — responde, animada.

— Então… andar de barco e derrubar crianças na água?

— Basicamente.

— Eu sabia que deveria ter um motivo sádico para você gostar da recreação.

Luísa empurra Sofia de leve com o ombro.

— Você me pegou, eu adoro ver as crianças caindo. — Sofia levanta os


ombros em rendição e Luísa solta uma risada. — Bom, mas tudo que a gente
precisa fazer é pilotar a lancha pelo lago e ajudar as crianças a voltar pra
Banana depois de cada queda.
— Moleza! — Luísa exclama.

— Sim — Sofia esconde um sorriso duvidoso. — Molezinha.

***

— Olha só — Michelle fala com tom de autoridade enquanto ela e Mila


caminham até o grupo de adolescentes as quais serão responsáveis —, a
melhor forma de iniciar esse verão é impondo respeito de cara. Nada de
querer ser amiga deles! Eles têm que nos ver como figuras de autoridade e
nos respeitar, não nos ver como “parça”, entendeu?

— Isso é um acampamento, amada, não um quartel general — Mila replica.

Michelle apenas rola os olhos e continua a caminhar a largos passos até o


grupo de adolescentes perto da área da fogueira.

— GRUPO F — grita usando as mãos como um megafone. — Reunidos


aqui, por favor.

Alguns jovens se espreguiçam de maneira estranha, como um gato faria,


indicando certa preguiça de… viver, me parece.

Um deles passa a mão no cabelo bagunçado, com uma cara tão animada
quanto a de um defunto, e fala:

— Pô, tia, não precisa gritar.

— Daora, colocaram duas gostosas de monitoras esse ano! — outro


adolescente anuncia ao ver Mila e Michelle.

— Ai, moleque, deixa de ser escroto! — uma jovem censura ao se aproximar


do grupo também.

— Escuta aqui, guri, nós não somos tuas tias — Mila responde ao primeiro e
se vira para o segundo — e você nos respeite se não quiser levar uns tabefes!

E pela segunda vez no mesmo dia eu vi a Mila perder as estribeiras.


Engraçado, nunca vi isso em vida, mas já vi duas vezes na morte.
— O que você acha sobre aquele lance de impor respeito agora? — Michelle
pergunta mais baixo para Mila.

Ela solta um suspiro.

***

Lara e Betina estão sentadas em círculo com doze crianças de 7 a 9 anos


enquanto Betina explica as regras do acampamento em um tom neutro e
assertivo.

— Nenhuma atividade será iniciada sem que todas as crianças estejam


presentes e em seus lugares, então, quanto mais tempo vocês demorarem para
organizar a fila, menos tempo terão para as atividades. A escolha é de vocês.

Lara assiste tudo com olhos arregalados, ela nunca viu alguém falar neste tom
com uma criança ou, neste caso, doze.

— Ahem — Lara limpa a garganta, chamando atenção de Betina, que vira-se


para ela —, você não acha que deveríamos fazer isso de maneira, não sei,
mais lúdica e divertida?

— Não — Betina responde apenas.

Lara abre e fecha a boca algumas vezes, tentando pensar em uma tréplica.

— Tá… — Lara fala reticente.

— Elas são crianças, mas não são incapazes de compreender as regras —


Betina diz. — Se eu falar de maneira lúdica, vão achar que tudo é
brincadeira. Mas as regras devem ser levadas a sério. Tem hora para brincar e
tem hora para se sentar e escutar; agora é hora de escutar.

Betina não dá nem tempo para Lara questionar mais alguma coisa e continua:

— O toque de recolher é às 20h em ponto.

Uma criança levanta a mão.


— Sim, Amanda — Betina fala.

— O que é toque de recolher?

— Significa que é a hora que vocês devem voltar para o alojamento —


Betina responde com um tom que talvez na cabeça dela possa soar gentil,
mas que é apenas seco e direto.

— Obrigada — Amanda responde.

— Todos entenderam agora?

A maioria das crianças afirma verbalmente enquanto outras afirmam com a


cabeça.

Lara assiste ao resto da “reunião” um pouco assustada com a postura da sua


comonitora.

***

— PENSA RÁPIDO!

Helena escuta o alerta, mas antes que possa reagir ou identificar de onde vem,
ela vê Pati se abaixando e, voando por cima de sua cabeça, um balão cheio de
água, que acerta Helena em cheio e encharca todo o seu uniforme.

À medida que o tecido da blusa vai absorvendo mais água, os olhos de


Helena se tornam mais pretos. Ela fecha o punho e expande as narinas.

Meu pai amado! É hoje que minha filha vai presa por infanticídio.

Helena vira para o pequeno franco-atirador de 10 anos, e eu juro para você


que consigo ver espuma saindo da sua boca.

Pobre criança.

— Você tá maluco, guri?

— Desculpa, tia, era para acertar o Pedro — o menino diz com um sorriso
levado, tentando apelar para o charme.

Mal sabe ele que isso não funciona com a Helena.

— Não me importa se era para acertar o Pedro ou a Madre Teresa! — Helena


fala pausadamente, sem desviar os olhos do pobre menino. — Pode pegar as
suas coisas…

— Toma mais cuidado da próxima vez, Ju! — Pati diz, cortando Helena, que
vira para ela como se tivesse sofrido a mais alta traição.

Talvez Helena cometa um Paticídio também.

— Pode deixar, tia Pati! — Júlio diz e sai correndo para perto de outras
crianças sem nem ousar olhar para Helena.

Esperto.

— Esse é o Júlio — Pati diz com um sorriso. — E aquela — Ela aponta para
outra menina parecida com ele — é a Júlia, irmã gêmea dele.

— Júlio e Júlia? — Helena pergunta com uma cara pouco impressionada. —


Sério? A mãe dessas crianças odeia elas ou quê?

— Eles são de uma das casas de abrigo que temos parceria — Pati conclui,
dando a Helena a chance de ligar sozinha os pontos.

— Hm. E porque ele é órfão, pode tacar água nas pessoas e sair ileso?

— Foi uma brincadeira, e ele não fez por mal.

— Sei — diz contrariada.

***

Definitivamente Banana Boat não é molezinha.

No segundo grupo, os braços de Luísa já estão em frangalhos. Ela não achou


que teria que resgatar tantas crianças. Já soltou até um “as crianças de hoje
em dia não se exercitam, não?” como se ela tivesse 50 anos e não 21.

O que acontece é que depois da terceira ou quarta queda, nem todos


conseguem voltar sozinhos para seus lugares. Tem criança sem fôlego, tem
aquelas com medo, tem as que só querem dar caldo e aprontar com as outras
e as que só não querem voltar pro brinquedo de jeito nenhum, então Luísa
precisa resgatar cada uma delas, puxando-as de volta para a Banana.

— Me dá a sua mão — Luísa diz para um dos meninos que não está
conseguindo voltar.

Ele segura firme na mão dela, mas antes que possa ajudá-lo a subir, ele a
puxa com força e ela cai na água.

Mesmo estando de colete, assim que ela emerge na água vejo seus olhos em
pânico. Ela se vira para o menino que a puxou e uma faísca de raiva cruza
seus olhos e, se esquecendo completamente de que está trabalhando e que
aquelas são só crianças, joga água na cara do menino.

— Vai se foder!

Acho que Sofia também percebe o estado de pânico dela, porque


imediatamente se debruça na lancha.

— Vem, eu te ajudo — Sofia oferece.

Luísa pega a sua mão, e Sofia nota que ela está trêmula e fria apesar do dia de
calor.

— Vitor, da próxima vez você vai se entender com o meu pai lá na diretoria
— Sofia diz, e o menino fica vermelho.

— Desculpa, tia — ele diz a Luísa que já está na lancha enxugando o rosto
com uma toalha.

Ela apenas gesticula algo como se dissesse “tá, tá, não me enche”.

Sofia termina de puxar o resto das crianças para o Banana Boat, enquanto
Luísa tenta recobrar a calma.
Por sorte, o resto da tarde passa sem mais nenhum incidente, mas, apesar
disso, ao fim, Luísa está morta de cansada.

— Meu Deus, acho que preciso mesmo largar o cigarro — ela diz, sentindo-
se sem ar.

— Não é uma má ideia — Sofia retruca, enquanto elas guardam os


equipamentos náuticos. — Mas fica tranquila, mais uns três dias e você já se
acostuma.

— Quê? Tem mais disso?

— Tem — ela diz, elevando os ombros em sinal de desculpa. — Mas tô


falando do trabalho de recreação de maneira geral. Amanhã as atividades são
em terra!

— Menos mal! — diz, guardando o último colete salva-vidas.

Ao lado da arara de coletes tem uma caixa térmica que Luísa abre com certa
voracidade.

— Mas apesar de você resmungar igual a uma velha, até que se saiu bem. —
Sofia lança uma piscada para ela.

Luísa sente suas bochechas corando de leve. Ela disfarça, abrindo uma
garrafinha de água e bebendo como se estivesse há dias no deserto.

— Ei, você tá a fim de dar uma volta de barco sem esses pestinhas dessa vez?
— Sofia oferece.

Luísa sorri para ela e joga a garrafinha agora vazia no lixo reciclável antes de
caminharem juntas até a lancha.

— A gente não consegue uma cerveja, não? — Luísa pergunta ao se sentar no


banco do passageiro.

— Infelizmente, só depois do toque de recolher.

Elas ficam em silêncio uns segundos apenas apreciando a vista; é um silêncio


confortável que é preenchido com o som do vento e do motor da lancha.

Luísa sente os cabelos ao vento enquanto Sofia conduz até o outro lado do
lago.

— É bonito aqui; eu nunca vim pra esse lado.

— É mesmo, gosto de vir no fim do dia porque, como você pode notar, é o
local mais silencioso do acampamento.

— Quem poderia imaginar que 68 crianças fariam tanto barulho?

Sofia apenas sorri e continua a conduzir a lancha pelo lago mais uma vez em
silêncio.

Depois de alguns minutos, ela se vira de novo para Luísa.

— Posso te perguntar uma coisa?

Minha filha franze a testa de leve com o pedido, mas cede:

— Manda.

— Você tem medo de água? Ou não sabe nadar?

Luísa a encara por um segundo, um pouco confusa com a pergunta; então se


lembra do incidente de mais cedo.

— Não, na verdade pratiquei natação por alguns anos — ela diz sem
esclarecer muito.

Sofia não sabe como continuar a pergunta sem parecer enxerida ou invasiva.
Mas ela se lembra de que Luísa adorava nadar no lago quando era criança, as
duas adoravam.

Luísa desvia o olhar para a margem que agora tem a vegetação bem mais
densa. Em uma das curvas do lago há uma pedra enorme que forma um píer
natural sobre o lago; Luísa sente um aperto na boca do estômago ao ver a
placa fincada ao lado da pedra.
Sofia nota os olhos vidrados de Luísa e vira para ver o que retém a atenção
dela.

Na placa que Luísa encara está escrito:

“Proibido saltar e nadar. Área de risco”

— Foi por isso que você ficou daquele jeito? — Sofia pergunta com
gentileza. Luísa apenas assente com a cabeça, sem desviar os olhos da placa.
Sofia continua: — Desculpa, não imaginei que você se sentiria dessa forma
aqui no lago.

— Pra ser sincera, eu também não.

— Nas próximas atividades náuticas, podemos trocar você com outro


recreador.

— Não, não — Luísa sacode a cabeça, voltando-se para Sofia. —Tá tudo
bem, eu acho que fui pega de surpresa àquela hora, mas não tem nada a ver
isso, já faz 11 anos.

— Tá tudo bem se não estiver tudo bem — Sofia diz com um meio sorriso
que forma uma covinha na sua bochecha.

Luísa força um sorriso de volta pra ela.

— Não se preocupa, Freud, se eu achar que posso atacar outra criança, eu


aviso! — diz com um sorriso malicioso.

Sofia ri e concorda com um “está bem”.

***

— Eu odeio esse lugar! — Helena diz ao se sentar à mesa para o jantar com
suas irmãs.

— Pelo menos você não está fazendo dupla com a Miss Trunchbull — Lara
rebate levando dois dedos às têmporas.
— Ela não parece tão ruim assim — Mila diz. — Pelo menos você não
precisa ficar ouvindo cantada de moleque cheirando a leite!

— Ugh — Lara faz uma careta.

— Pelo menos ninguém tacou um balão de água na sua cara — Helena


retruca.

— Balão? Pelo menos ninguém jogou você no lago!


CAPÍTULO 9
— Oi — Lara diz ao telefone —, tudo bem por aí?

— Eu estava mesmo esperando sua ligação — Felipe responde com algo de


divertido no tom. — Até apostei com a minha mãe que você ligaria às 20h
em ponto.

Lara balança a cabeça embora ele não possa ver.

— Espero que tenha apostado alguma coisa útil.

— Que ela teria que fazer aquela torta de banana que você adora.

De maneira involuntária, o canto da boca de Lara forma um sorriso com as


memórias da tal torta.

A mãe do Felipe é uma senhora um pouco mais velha do que eu e, apesar de


ela e o marido serem bastante abonados, ela sempre gostou de cozinhar e
confeitar e nunca admitiu ter uma cozinheira dentro de casa.

Eu tive que escutar algumas vezes dos meus netos que a outra avó deles
cozinhava melhor que eu. E eu não podia nem argumentar com eles, porque
eu detesto cozinhar e a mulher é realmente muito talentosa.

— Só não deixa o Lucas comer muito; ele sempre passa mal quando come
muito doce.

— Sim, senhora.

— E está tudo bem por aí? Como eles estão se portando?


— Tudo ótimo — Felipe responde. — Eles estão bem, hoje eu tive a tarde
mais tranquila, não tinha nenhuma reunião, daí levei eles no parque. Estão
mortos de cansados agora.

— A Alícia tá melhorzinha daquela dor de ouvido que ela teve ontem?

— Sim, ela disse que não sente mais nada, mas eu tô acompanhando. E você,
como tá aí?

Lara solta um suspiro profundo.

— Assim ruim? — Felipe pergunta rindo.

— Cansativo.

— Olha, eu sabia que a sua mãe era excêntrica, mas por uma dessas eu não
esperava, viu.

Como esse sujeito poderia esperar alguma coisa de mim, se mal convivia com
a nossa família?

— Eu também não — admite Lara. — Você acha que eu devo ficar aqui,
Lipe? Não me conformo em estar cuidando de crianças que não são as
minhas!

— Claro que deve, Lara. É o seu dinheiro… dinheiro da Alícia e do Lucas!

Lara não responde nada por alguns segundos e Felipe continua:

— Tenta aproveitar um pouco, usa esse tempo como um retiro, férias, sei lá.
E não se preocupa com os pequenos, eles estão bem comigo.

— É, pode ser.

— Você sabe que pode confiar em mim com os meus filhos, né? — Felipe
pergunta em um tom mais sério.

Não, não pode. E ela sabe disso.


— Sei — Lara responde. — Posso falar com eles agora?

— Eu vou chamar eles, espera aí.

— Ah, eu vou visitar na sexta, tá bem? — Lara avisa

— Claro — ele diz. — Lili, a mamãe quer falar com você.

E em questão de segundos, o semblante de Lara muda ao ouvir a vozinha


doce de Alícia.

***

Lara sente dificuldade para dormir.

Apesar de geralmente Lucas e Alícia passarem duas semanas de férias na


casa do pai, é a primeira vez que ela está a mais de uma hora de carro longe
deles.

Ano passado, Felipe quis levá-los para passar essas duas semanas em Cancun
e na Disney, mas Lara o proibiu de levar seus filhos para outro país sem ela.
Por fim, os quatro fizeram a viagem juntos.

Qualquer um que visse as fotos e legendas nas redes sociais dela poderia
pensar que eles haviam reatado, mas foi só pisar em solo brasileiro de novo,
que tudo voltou ao normal.

Agora, sem os filhos para distraí-la, ela simplesmente não sabe o que fazer
para que o tempo passe ou o sono venha.

Ela deveria estar exausta do dia cansativo e estressante que teve, mas, ao
contrário, está agitada demais para conseguir dormir.

Ela olha mais uma vez no relógio e vê que já passa de uma da manhã.

— Eu devia ter trazido um livro! — resmunga para si mesma.

Depois de mais alguns segundos olhando para o teto, decide se levantar e dar
uma volta para tentar espairecer ou ficar com sono.
Lara consegue caminhar tranquilamente pelo ambiente sem precisar acender
nenhuma luz; as enormes janelas e claraboias deixam a luz do luar penetrar o
ambiente. Isso, somado ao eterno cheiro de madeira que exala da construção,
dá à sede uma aura tranquila e agradável. Bom, é bem verdade que o ranger
frequente do piso e dos móveis causa certo incômodo e apreensão, mas só se
você tiver medo de fantasma ou coisa assim. O que não é o caso de nenhuma
das minhas filhas.

Ela continua sua jornada, passando por Elvira, que dorme tranquila em uma
das poltronas do saguão, até a varanda lateral. Assim que Lara pisa lá, vê uma
figura familiar deitada em um dos bancos de madeira ao ar livre logo ao lado
da escadaria.

— Você devia largar essa porcaria — Lara diz, apoiando-se no corrimão da


escada.

Luísa disfarça o susto que levou com um meio sorriso e dá mais uma tragada
no cigarro antes de se levantar do banco, para dar espaço à irmã.

Lara balança a cabeça, desce a escada e caminha até o banco.

— Estava olhando as estrelas?

Luísa confirma com a cabeça e dá mais uma tragada no cigarro antes de


apagá-lo e descartá-lo dentro de uma lata de Coca-Cola.

— O céu é bonito aqui, parece, sei lá, em 4K.

— É mesmo — Lara confirma.

As duas ficam em silêncio por um momento.

— Você lembra daquele último verão que a gente passou aqui com o papai?
— Lara pergunta.

Luísa apenas assente com a cabeça e Lara continua.

— Você lembra que ele levou a gente numa trilha noturna para ver o céu, e a
mamãe ficou possessa quando descobriu, porque você só tinha 9 anos?
Luísa franze a testa com a memória, tentando resgatá-la de um daqueles
compartimentos que ela trancou a sete chaves em seu cérebro, mas com um
pouco de esforço ela consegue vislumbrar uma lembrança brotando.

Lara continua:

— Ele dizia que apesar do céu ser mais limpo aqui, a luz da sede e dos postes
do lago interferiam, e que pra ver o céu bem estrelado de verdade, a gente
tinha que ir pra essa tal trilha aí.

— Ah, eu lembro disso — Luísa diz com um sorriso. — Eu insisti que só iria
se a Sofia pudesse ir também, aí foi ele e o Chiquinho guiando e nós três
seguindo, não foi isso? — Luísa pergunta e Lara confirma com a cabeça. —
Mas pra ser sincera, eu não lembro de como era o céu.

— É porque você e a Sofia dormiram assim que a gente chegou e se sentou


para observar. O papai e o Chiquinho tiveram que trazer vocês de volta no
colo. Mas também, a ideia deles… levar duas crianças para uma trilha às duas
da manhã.

Apesar do tom de crítica, Lara sorri com a memória.

— O papai era assim mesmo, gostava dessas aventuras doidas.

— Mas quando a mamãe descobriu no outro dia, ela ligou para ele super
brava por ele ter te levado junto, disse que era perigoso e que ele era
imprudente e coisa e tal, aquelas coisas que ela sempre falava, mas ele logo
acalmou a fera, como sempre conseguia, com aquele jeito todo descontraído
que tinha.

— Eu lembro que ela ficava muito puta quando ele fazia essas coisas. Teve
aquela vez que ele me levou pra procurar sei lá que planta em um pasto e a
gente teve que fugir de um touro! Eu lembro dele me carregando por cima do
ombro como se eu fosse, sei lá, um saco de cimento! — Luísa diz com uma
gargalhada que é compartilhada por Lara. — A mamãe ficou uns três dias
sem falar com ele.

Fiquei mesmo! Oras, onde já se viu uma coisa dessas?


— Pelo menos ele gostava de passar tempo com a gente — Lara diz.

Luísa vira para Lara, sentindo que a conversa mudou de rota


inesperadamente.

— Você falou com o Felipe hoje?

— Falei.

— E?

Lara dá de ombros antes de responder:

— Parece que ele tá fazendo tudo certo.

— Então, por que você tá assim?

— É que… — ela faz uma pausa para soltar um suspiro —, eu conheço ele,
Lu. No começo é sempre esse oba-oba, leva os filhos no parque, compra
presente, passa tempo com eles, se preocupa com a saúde e bem-estar. Tudo
digno do título de pai do ano. Mas logo ele se cansa das obrigações e larga os
dois com os avós.

— Você sabe que eu não gosto e nem confio nele, mas acho que você não
deveria se preocupar antes da hora.

— Não é questão de me preocupar, é só que, sei lá, hoje senti que cheguei
mais perto de entender o que é coparentalidade tendo que dividir as decisões
do grupo com a Betina do que tendo dois filhos com o Felipe. Tipo, eu sei
que não posso deixar ele responsável por nenhuma decisão importante, ele é
quase uma babá de luxo, só serve para ajudar com aquilo que eu mando… só
que uma babá teria mais capacidade e conhecimento.

— Quanto a isso, infelizmente, é tarde demais pra trocar o pai dos seus filhos.
Mas, sei lá, enquanto ele tá na fase do oba-oba, como você chamou, você
poderia aproveitar pra pensar um pouco em você, não acha?
— Como assim?

— Às vezes parece que você é só mãe, mais nada. E eu entendo que você
sinta a obrigação de tomar todas as decisões sozinhas e tals, mas, sei lá, você
não é só mãe! — Luísa diz, brincando com a tampinha da lata de Coca-Cola.
— E acho que você tá assim, meio perdida, porque aqui você tem que ser
outras coisas, mas no momento só sabe ser mãe.

— Que isso? Uma sessão de terapia? — Lara pergunta, tentando soar


descontraída. — Não tem nada de errado em priorizar ser mãe, Luísa. Meus
filhos são a coisa mais importante da minha vida.

— Mas não são a única!

Lara fica em silêncio por um momento, sua expressão mais séria que há
alguns minutos. Luísa mantém o tom gentil e continua:

— Só tô falando… você deveria aproveitar esse tempo pra se reconectar com


quem você é, sei lá.

Lara revira os olhos, mas desfaz o vinco na testa.

— Você tá andando muito com a Mila!

— Acho que tô mesmo — Luísa concorda com uma risada, que Lara retribui,
embora meio contrariada.
CAPÍTULO 10
A rotina de Helena sempre foi bastante regrada: ela acorda às 5h, come uma
fruta, escova os dentes e sai para correr. Todos os dias. Sem exceção.
Inclusive no dia do meu velório.

Nos dias de tempo limpo, ela corre no parque perto da sua casa ou na avenida
beira-mar — isso quando ela está em Florianópolis, é claro —, já nos dias de
chuva, ela corre na esteira, na academia do seu prédio.

Estando aqui no Luneta, sua rotina não é diferente.

Às cinco da manhã seu celular desperta e ela levanta sem nem considerar
colocar no modo soneca. Nunca, jamais, ela coloca o alarme no modo
soneca. “Coisa de gente frouxa e preguiçosa” ela costuma dizer.

Eu honestamente não sei como minhas filhas continuam tão bonitas com essa
rotina de sono precária que as quatro mantém. Nenhuma delas sabe o que é
dormir mais de 6 horas por noite há muitos anos.

A Mila sempre me disse que meditação tem um poder restaurador muito


melhor que o sono, então, no caso dela, imagino que as horas que ela passa
meditando devam compensar as poucas horas de sono.

Mas e as outras três?

Helena faz a primeira refeição — uma banana quase verde — encostada a


mesinha que fica ao lado do frigobar no próprio quarto. Em seguida, escova
os dentes, veste a legging, o top esportivo, o casaco corta-vento, prende o
cabelo e liga seus AirPods em uma velocidade que um ser humano normal é
incapaz a essa hora da manhã.
No primeiro dia, Helena fez o percurso por uma trilha atrás da sede que leva a
uma gruta e uma cachoeira com queda de 7m; hoje ela resolve variar o
percurso e correr contornando o lago.

Ela sempre foi a mais fechada das quatro, mas o mais engraçado é que apesar
disso, eu sempre soube ler Helena com uma facilidade imensa. Talvez por ela
ser a mais parecida comigo.

Eu sei que ela está irritada comigo por ter feito esta cláusula, mas ao mesmo
tempo, sei que se sente perdida e impotente, e acima de tudo, se sente traída.

Sei que ela se sente assim porque não era incomum eu e ela criarmos planos e
estratégias desse tipo para nos favorecer em acordos comerciais. Como ela
sempre foi meu braço direito, sempre esteve a par de tudo. É a primeira vez
que ela está na outra ponta do plano.

Ela corre ao som de Sweet But Psycho da Ava Max, e assim que a música
chega ao refrão, ela aperta ainda mais o passo. Corre pela trilha, desviando
dos galhos e folhas; e toda vez que sente que as emoções começam a tomar
conta dos seus pensamentos, ela acelera ainda mais.

Está correndo a quase 9km/h quando chega ao fim da trilha pelo bosque em
direção ao caminho da sede. Helena desvia do último galho de árvore que
encobre sua visão e, antes que possa raciocinar, esbarra em uma pessoa. As
duas caem no chão, rolando uma sobre a outra.

— Aaaai! — Mila exclama ao dar de joelhos no chão de pedregulhos.

— Mas que diabos!? — Helena resmunga de bunda no chão. — Olha por


onde anda, Camila!

— Olha você por onde corre! É 6h da manhã, não achei que teria trânsito!

Apesar da cara de poucos amigos, Helena se levanta e ajuda Mila a fazer o


mesmo.

— Você se machucou? — Helena pergunta.

— Acho que ralei o joelho. — Ela passa a mão, tirando algumas pedrinhas
grudadas na pele e percebendo que tem um pouco de sangue.

— Lá na mesa do Chiquinho eu vi um kit de primeiros socorros. Vem.

Helena é assim, ela nunca pergunta alguma coisa, apenas comanda. Vem.
Vai. Para. Começa. Diz. Cala a boca…

Ela e Mila caminham juntas até a sede em silêncio, limpando a poeira e


verificando se não há mais algum corte. Como Helena estava de legging e
casaco, não se arranhou.

Apesar de ainda ser cedo, elas passam por Bartô correndo no gramado antes
de entrarem na sede.

— Aqui, oh — Helena diz, entregando o kit de primeiros socorros para Mila


assim que chegam à mesa do Chiquinho.

Mila se senta na cadeira giratória de escritório, abre o kit e pega o


antisséptico em spray, algodão e um curativo; enquanto isso, Helena prepara
dois cafés na máquina da recepção.

— Você tá treinando para as Olimpíadas? — Mila pergunta, limpando o


joelho.

— Eu gosto de correr. — Helena dá de ombros e coloca um café sobre a


mesa em que Mila está.

— Obrigada — ela agradece e dá um gole no café. — Mas nessa velocidade


que você estava, só vai conseguir se contundir.

— Não exagera, Mila. — Helena revira os olhos.

— Você tava pensando nela?

A pergunta de Mila deixa Helena confusa por um momento. Primeiro porque


ela não entende, e então, porque não sabe como Mila pode, em nome de
Deus, ter visto seus pensamentos apenas pela sua expressão.

Mas eu já falei para você, Mila é sensitiva e percebe tudo ao seu redor.
— Eu sonhei com ela essa noite — Mila continua, tomando o silêncio de
Helena como uma confirmação. — Às vezes, eu esqueço que ela morreu.

Helena aperta o maxilar e desvia o olhar da irmã.

— As pessoas morrem, Mila, é a ordem natural das coisas.

— Eu sei que você também tá sofrendo, Lena. Pode fingir o quanto quiser
que acha tudo “natural”, mas você e eu éramos as que mais convivíamos com
ela. A gente via ela todos os dias!

Helena morde o interior da bochecha e sente seus olhos ardendo. Mila


termina de colocar o curativo e se recosta na cadeira para olhar para Helena.

— Só acho que não tem necessidade de você fingir que é a única que tem que
passar por isso. Eu também sinto a falta dela, e a Lara e a Lu também sentem.

Helena desvia o olhar para a janela e se concentra para que as lágrimas não
corram, Mila se levanta com um meio sorriso.

— Eu vou lá no píer saudar o sol — diz com sua habitual fala cadenciada que
geralmente irrita Helena. — Mas lembra que somos em quatro.

Mila sai, levando o café aguado, e deixa uma Helena pensativa para trás.

***

— Você tá com a cara horrível — Helena diz para Lara na mesa do café da
manhã.

O refeitório é um grande salão de madeira com teto em catedral suportado


por enormes vigas de madeira roliça. Dentro, lembra muito um restaurante
desses rústicos de comida mineira.

O buffet é sobre um fogão a lenha que é aceso apenas no almoço e na janta


para que a comida não esfrie. Há alguns anos, o Chiquinho sugeriu trocarmos
o fogão à lenha por réchauds modernos a base de água quente, mas confesso
que não aprovei a ideia por puro saudosismo e apego às memórias cultivadas
ali.
No salão há dois tipos de mesa, sendo quatro mesas compridas com bancos
de madeira, nas quais as crianças comem, e, na outra lateral, algumas mesas
de quatro lugares para os monitores e funcionários. Helena, Mila, Lara e
Luísa desjejuam próximas à janela.

Enquanto Lara, Mila e Helena comem frutas e queijo frescal, Luísa come pão
de queijo e cachorro-quente.

— Obrigada, você também está linda! — Lara revida o comentário de


Helena.

— Não, é sério… você tá com olheiras.

— Eu tive insônia.

— E você — Luísa se mete na conversa e pergunta a Helena —, por que tá


com essa cara?

— Que cara?

— Sei lá, mais azeda que o normal… sem ofensas!

Helena revira os olhos e come um cubo de melão.

— Porque ela tá se sentindo culpada por ter me atropelado — Mila diz.

— Hm?

— Helena estava treinando para derrotar o Usain Bolt hoje e me atropelou


quando eu estava indo meditar no píer.

Luísa pende a cabeça para o lado, sem muita certeza de ter entendido o
ocorrido; mas antes que ela possa perguntar qualquer coisa, uma comoção
vinda da parte de fora do refeitório chama a atenção delas.

Elas conseguem ouvir as vozes de Chiquinho e Pati gritando algumas


palavras desconexas e resolvem se levantar para tentar descobrir o que está
acontecendo… Se tem uma coisa que une minhas filhas é a fofoca!
Assim que passam pela porta do refeitório, dão de cara com Chiquinho, Sofia
e Pati olhando para o telhado com caras apavoradas.

— Desce logo daí, guria — Pati pede. Seu rosto não esconde o espanto com a
cena.

Quando minhas filhas olham para cima, veem Júlia e Júlio de pé no telhado a
mais de quatro metros do chão.

O telhado tem dois tipos diferentes de inclinação, na parte em que eles estão,
a inclinação é bastante sutil porque o telhado ali serve para criar a cobertura
da varanda.

— Meu Deus, como eles subiram lá? — Mila pergunta.

— Essas duas pestes! — Helena exclama para si mesma.

— Pela árvore da lateral, eu acho — Sofia responde Mila.

— Ju, Juju, vocês precisam descer, é muito perigoso ficar aí em cima —


Chiquinho diz.

— A gente só tá brincando — Júlia responde sem nem ao menos olhar para


eles.

É possível ver que Júlio está fazendo alguma coisa e ela está tentando
encobrir.

— Eu vou subir lá — Chiquinho diz; então se vira para Sofia, Pati e minha
filhas: — vou pegar uma escada, vocês cuidem pra esses dois malucos não
caírem.

Chiquinho sai correndo até o depósito na sede principal para encontrar uma
escada.

Pati leva as duas mãos ao coração em apreensão e Sofia rói uma das unhas.

— Escuta aqui — Helena fala firme, chamando atenção dos gêmeos —, se


vocês não descerem daí agora, eu vou mandar vocês de volta pro orfanato de
onde vocês vieram!

— HELENA! — Lara, Mila e Luísa a repreendem ao mesmo tempo.

— Quê? É melhor do que eles se matarem caindo ali de cima! — Helena


responde às irmãs.

Júlia é pega de surpresa com o tom grave de Helena e se vira para falar com
Júlio. Todas assistem Júlia sussurrar algo no ouvido do irmão.

Depois de alguns segundos de ponderação, eles tomam uma decisão, e Pati


corre até a lateral do prédio ao notar que ambos estão prestes a descer pela
mesma árvore pela qual subiram. Sofia também percebe o movimento das
crianças e faz o mesmo, subindo parte da árvore para ajudá-los e ter certeza
de que não irão cair.

Em questão de minutos, ambos estão novamente seguros no chão.

— O que vocês estavam pensando? Querem se matar caindo dali? — Pati


pergunta, passando a mão pelos braços deles de maneira ansiosa, como se
conferindo se todos os membros estão ali.

— A gente só queria dar um susto no Pedro — Júlio diz.

Os dois viram-se para Helena e falam em uníssono:

— Desculpa, tia!

— Eu não sou tia de vocês — ela replica; mas eu posso sentir que também
está aliviada em vê-los no chão. — E nunca mais façam isso!

— Que tipo de susto? — Mila pergunta.

— Que importa? — Lara alfineta ao lado.

— A gente ia amarrar uma corda naquele negócio ali — Júlia aponta para
uma antena instalada no telhado — e o Júlio ia se amarrar nela para quando o
Pedro olhasse pela janela, o Ju estivesse pendurado de ponta cabeça como o
Homem-Aranha.
— Pai eterno! — Pati exclama e leva a mão ao peito.

— Vocês estão loucos da cabeça? — Helena repreende. — Que ideia de


merda!

— Isso é muito, muito perigoso — Lara endossa.

— Mas até que seria engraçado — Luísa diz, pensando na cena.

— LUÍSA! — dessa vez Helena, Lara e Mila a repreendem.

É a vez de Luísa dar de ombros.

— Seria mesmo!

— Voltei… — Chiquinho diz esbaforido, carregando a escada de quatro


metros com o auxílio do Zeca.

Ele para, assim que dá de cara com o casal de gêmeos.

Chiquinho solta uma bufada, e Júlio e Júlia usam seu melhor sorriso para
tentarem escapar da bronca.

Quando percebem que não dá resultado, mudam para uma cara de cachorro
que caiu da mudança. Dessa vez parece que dá certo, porque até Helena
desiste de repreendê-los e apenas revira os olhos.

Os gêmeos quase sempre conseguem escapar dos castigos e repreensões mais


severas; deve ter algo a ver com a forma como eles estão sempre protegendo
um ao outro, o que é realmente bonito de ver.

Eles são muito parecidos, a pele negra destaca os dentes brancos e o sorriso
levado; ambos têm olhos castanho-escuros, quase pretos emoldurados por
cílios enormes. Eles até usam as mesmas tranças no cabelo, a diferença é que
as da Júlia são coloridas.

Esse é o terceiro ano deles conosco; o Chiquinho e o resto do pessoal já estão


acostumados com a dupla, sabem que eles aprontam todas, mas que são
crianças gentis e inteligentes.
CAPÍTULO 11
— Hoje vai ser mais tranquilo — Michelle diz para Mila, que aperta o passo
para tentar acompanhá-la. — Vamos ficar mais livres porque não tem
nenhuma programação oficial.

Elas e dois monitores do outro grupo de adolescentes caminham em direção


às quadras de areia. Na verdade, Michelle marcha até lá e Mila, os monitores
e todos os adolescentes a seguem.

— E o que a gente faz, daí? — Mila pergunta ao chegar mais perto.

— Nada! — ela responde simplesmente. Depois de um tempo, percebendo


que Mila ainda a encara de maneira interrogativa, ela bufa e explica: — toda
quinta tem uma minigincana entre grupos, por isso as quartas-feiras é meio
que livre para eles se organizarem e “treinarem”. — Ela faz aspas com as
mãos.

— Treinarem o quê?

— O que eles quiserem.

Ela responde de maneira vaga, deixando Mila ainda mais perdida.

Já que essa simpatia de pessoa não explica, deixa que eu explico: as crianças
e adolescentes não sabem que tipo de atividades encontrarão nas etapas da
gincana, por isso “treinar” significa apenas jogar o que quiserem. Entretanto,
os que já estiveram na colônia antes sabem que sempre tem futebol de sabão,
cabo de guerra, quiz, queimada, essas coisas…

— Parece divertido — Mila diz, animada mesmo sem saber direito o que é.
— Geralmente é — Michelle responde, sem esboçar muita animação. — Mas
é isso, só temos que garantir que nenhum deles se mate.

— Suave.

Assim que todos chegam ao campo de futebol de areia, Michelle se vira e


joga o cabelo de forma dramática sobre os ombros.

— Atenção! — ela grita para o grupo. — Como vocês sabem, amanhã é a


primeira fase da gincana anual do Luneta. Então, hoje vocês têm o dia para se
prepararem.

Os adolescentes, apesar da cara de tédio e sono, prestam atenção no que ela


fala. Michelle continua:

— Se quiserem, podem aproveitar o dia para criar um grito de guerra e


customizar os uniformes; fora isso, estão livres. Reservamos o campo de
futebol e a quadra de vôlei para essa manhã. Se quiserem algum material que
não está aqui, é só pedir para a Camila.

— Pra mim? — Mila pergunta.

— Ué, você não é monitora?

— Sou.

— Então?

Mila franze a testa, mas apenas por um segundo antes de sorrir para os
campistas, que já estavam se juntando para formar os times.

Em questão de minutos, um grupo formado por adolescentes das duas


equipes se organiza para jogar futebol e outro grupo decide customizar a
camiseta que será usada na gincana. O grupo que opta pela customização, se
junta e vai para a sala de artesanato acompanhados pelos outros dois
monitores.

— Vou colocar uma música — Mila, que ficou com o grupo do futebol, diz,
conectando seu celular à caixa de som do campo.
Ela percebe que, como esperado, a internet não funciona ali e tem que apelar
para as músicas já baixadas nas suas playlists. Sem pensar muito no caso,
coloca o álbum Armandinho Ao Vivo.

Assim que No Balanço da Rede começa a tocar, um dos adolescentes —


aquele que parece ter preguiça de viver — se vira para Mila e diz:

— Pô, a professora curte Armandinho, que daora!

— Professora? — Mila pergunta baixinho para Michelle.

— Você se acostuma — ela explica, sentando-se no banco de madeira. —


Eles nunca sabem como nos chamar. Mas “professora” é melhor que tia ou
gostosa, você não acha?

— É, pode ser — Mila responde, sentindo-se meio perdida, sem saber o que
fazer, e se senta no mesmo banco que Michelle.

Depois de alguns longos minutos em silêncio regado a tédio e desconforto


para Mila, um outro menino diz da beira do campo de futebol:

— Que música mais pau-mole essa, coloca um MC Floquinho aí.

— MC o quê?

— MC Floquinho — Michelle repete, entediada.

— Eu não sei quem é esse — Mila diz.

— Aquele que canta Rabuda — ela explica.

— Isso é o nome de uma música?

— É — Michelle confirma. — Tem também aquela com a Priscila Tequila e


a Luly Dias.

— Eu não faço nem ideia de quem sejam essas pessoas — Mila diz,
desconfiada de que Michelle possa ter inventado isso agora.
Michelle apenas solta uma risada com certo deboche e diz:

— Acho que não é da sua geração!

Mila se vira ofendida para ela.

— Quantos anos você acha que eu tenho, guria?

— Trinta?

— Eu não tenho trinta anos!

— Não? — ela pergunta, desconfiada. — Quantos então?

— Vinte e nove!

— Entendo. E quando você faz aniversário?

— Semana que vem…

***

A manhã passa de forma lenta e tediosa para Mila.

Por insistência dos adolescentes, Michelle coloca o tal MC Floquinho para


tocar, e Mila se dá conta de que nunca na vida escutou as músicas desse
sujeito.

Michelle continua com o humor digno de fazer Helena parecer uma Miss
Simpatia, e ele só piora depois de Luísa e Sofia passarem rindo em direção ao
parquinho.

— Vocês namoraram ou coisa assim? — Mila pergunta ao ver a cara com


que Michelle fuzilou Luísa.

— Quem? — pergunta, fazendo-se de desentendida.

— Você e o Zeca! — diz Mila com ironia. — Você e a Sofia, é claro.


— Não te interessa — Michelle responde, seca.

— Olha, eu nem gosto de você — Mila diz —, mas, sei lá, você deve merecer
coisa melhor do que ficar aí se humilhando.

Sei não…

— Eu não tô me humilhando.

— Bom, você que sabe — Mila diz, simplesmente. — Mas tá na cara que a
Sofia tá a fim da minha irmã.

Espera! O quê?

Que eu saiba minha filha é hétero!

Quer dizer, acho que é…

Ela nunca me apresentou os namorados, aliás, nunca nem teve namorados, só


“peguetinhos”, como diriam os jovens — ou pelo menos, eu acho que é como
diriam os jovens.

Será que eram peguetinhas?

Não acredito que me tornei uma velha ultrapassada incapaz de enxergar


coisas óbvias. E eu achando que morrer seria a coisa mais antiquada que
aconteceria comigo esse ano.

— E a tonta da sua irmã não faz nada — Michelle rosna.

— Mas isso é problema delas, amada, não seu!

Michelle se vira para Mila, mas desiste de responder.

***

Luísa está com Sofia na área do parquinho para organizar as atividades da


minigincana de amanhã. Como todas as crianças estão ocupadas fazendo
atividades esportivas, elas podem se dedicar à montagem dos brinquedos do
evento.

Neste momento, estão inflando a enorme estrutura colorida para o futebol de


sabão, que Zeca já deixou preparada para elas.

O parquinho fica atrás do refeitório, passando uma pequena trilha. Ele é todo
construído de madeira e ferro — nada de plástico —, e tem todos os
brinquedos que as crianças gostam, incluindo o mais demoníaco deles: o
trepa-trepa. Responsável por mais dentes quebrados do que eu me orgulharia
em contar — inclusive um incisivo de leite da Luísa.

Ao lado do parquinho, há um grande gramado que serve para propósitos


como o de agora, ou seja, atividades que exigem espaço para correr ou para
montar algum outro brinquedo.

É também o local preferido de Paçoca e Bartô para brincarem porque tem


muito espaço para correr, e é exatamente o que fazem agora. Eles brincam
enquanto Luísa e Sofia montam o brinquedo que mede dez metros de
comprimento e suporta até trezentos quilos.

Em poucos minutos ele está cheio e as duas sobem para avaliar se está firme
e seguro.

Elas dão alguns pulinhos para testar a tensão e ver se não tem nenhum grande
vazamento de ar; testam também as laterais que servem como guarda corpo
para ter certeza de que nenhuma criança que se apoiar ali vai cair.

Assim que terminam, Luísa se abaixa e passa o dedo indicador no chão, então
o esfrega no polegar, sentindo o pó acumulado entre seus dedos, ela faz um
bico de nojo.

— Isso está em condições insalubres! — ela diz com um sotaque estranho,


imitando o francês, talvez?, seja lá o que era para ser, não é muito bom.

Sofia olha para ela, que está com uma mão na cintura e com a outra mostra os
dedos empoeirados, e sorri, entendendo o recado.

— Nesse caso, acho que a única solução é a gente lavar!


Luísa abre um sorriso levado e as duas pulam do brinquedo.

Esse sorriso que Luísa acaba de dar era o exato motivo das minhas
palpitações quando ela era criança.

E quando essas duas se juntavam, era sempre uma questão de tempo até
aparecer um joelho ou cotovelo ralado, vez ou outra um dente quebrado e
assim por diante. Não se engane com esses dois rostinhos lindos e doces, elas
eram duas pestes!

Naquela época, eu sempre falava que faria qualquer coisa para que a energia
dela fosse um tiquinho menos intensa. Se eu soubesse que sentiria tanta falta
de vê-la se divertindo depois da morte do Leo, jamais teria desejado isso.

A morte dele a afetou em muitos níveis, um deles foi o medo de ter o mesmo
fim. Luísa era a maior parceira de Leo para as atividades de aventura; Lara e
Helena jamais gostaram de estar no meio do mato, e Mila, apesar de gostar de
natureza, nunca gostou de atividades radicais. Mas Luísa gostava de tudo que
Leo gostava, e todas nós sabíamos que Luísa era o xodó dele. Após a sua
morte, ela simplesmente parou de fazer todas essas coisas de que gostava, por
medo de ter o mesmo fim.

Luísa caminha até a mangueira mais próxima, e Sofia vai atrás do sabão
líquido no depósito ali perto.

A primeira coisa que fazem é de fato lavar o excesso de poeira acumulada


com a mangueira, porque estava mesmo bastante sujo, mas assim que
acabam, Sofia desce para guardar a mangueira e quando volta, joga sabão
líquido dentro do campinho, espirrando próximo do pé de Luísa, em seguida
arremessa a bola.

Luísa corre para chutar a bola, mas no primeiro passo já escorrega e desliza
de bunda pelo brinquedo.

— Funciona! — Sofia diz para Luísa e faz um sinal de joinha com a mão.
Luísa tenta ficar de pé mais uma vez… acredite, não é tão fácil como parece,
eu tentei uma vez. Quando Luísa finalmente solta as mãos do apoio lateral,
ela sente o impacto de um corpo deslizando contra suas pernas e cai de novo,
dessa vez de costas sobre a lona, bem do lado de Sofia que ri da cara dela.

— Tá tentando me matar? — Luísa pergunta. — A gente não tem mais dez


anos!

Apesar da repreensão, Luísa sorri para ela.

— É que na nossa época não tinha isso — Sofia se explica com um sorriso
travesso.

— Quer jogar?

— A gente já tá molhada mesmo… — Sofia responde, puxando a camiseta


grudada no seu corpo.

Os olhos de Luísa recaem sobre o tecido grudado no abdômen de Sofia, mas


dura apenas uma fração de segundo. Ela engole em seco antes de desviar o
olhar para as suas próprias roupas no mesmo estado.

Sofia estende a mão para que as duas se ajudem mutuamente a se levantarem.

Desconfio que Sofia já esteja bem acostumada com esse brinquedo, porque
demonstra bem mais equilíbrio do que Luísa para andar pela lona. Enquanto
Luísa caminha igual ao Bambi sobre o gelo, Sofia está mais para o Tambor,
tirando onda com a sua habilidade.

— Acho que eu deveria fazer mais ioga com a Mila, tenho certeza de que ela
consegue se equilibrar em qualquer lugar! — Luísa resmunga.

— Acho que você tá arrumando desculpa para quando perder! — Sofia


provoca.

Luísa que adora um desafio, caminha com mais firmeza na direção da bola,
decidida a provar que é capaz de ganhar de Sofia. Faltando apenas um passo
para alcançar, ela se prepara para o chute, mas na hora que vai acertar a bola,
seu pé de apoio escorrega e ela chuta o ar em uma cena patética.
Ela cai com tanta força que faz o brinquedo tremer e desequilibra Sofia
também, mas com o balanço do brinquedo, a bola rola para perto de Sofia e,
mesmo caída, ela chuta e, mais por sorte que por técnica, a bola entra no gol.

— GOOOOOOL! — Sofia grita, sentando-se no brinquedo e erguendo os


braços.

— Isso não vale, eu tô em desvantagem, tá na cara que você tem mais


experiência do que eu! — Luísa contesta.

— Pfff! Você é uma péssima perdedora.

— Não apenas sou uma ótima perdedora, como já estou perdendo! — ela diz,
como um professor de filosofia diria uma frase de efeito. — Mas o jogo não
acabou ainda, gracinha.

Sofia esboça um sorriso competitivo, e Luísa se levanta, usando a borda


como apoio.

— Você que sabe — Sofia revida e se levanta sem muito esforço. — Mas tá
um a zero.

Luísa ignora e caminha mais uma vez até a bola.

— A bola já tá no gol, o que eu faço?

— Esse aí é o meu lado, ué, você faz gol na outra trave — Sofia diz com
obviedade. — Nunca jogou bola, não?

— Quero saber se eu coloco a bola no meio ou começo daqui mesmo, sua


debochada! — Luísa diz, defendendo-se. — Além do mais, as regras desse
jogo são meio capengas, né? Tipo, você já entrou me dando um carrinho e
nem por isso foi pênalti!

— Começa daí mesmo! — Sofia diz e se põe em posição de defesa no meio


do campo.

Luísa consegue avançar e desviar da marcação de Sofia, conduzindo a bola


para lateral, ela se prepara para armar o chute, mas antes disso, Sofia se joga
na direção da bola com força, escorregando e derrubando Luísa junto.

Luísa demora alguns instantes para entender o que está acontecendo. Sofia
está em cima dela e seu rosto a apenas alguns centímetros do seu, e parece tão
confusa quanto Luísa.

E como um flash, Luísa tem mais um lampejo de memória recuperada.

Embora eu não consiga saber o que ela está pensando, eu consigo ver a
memória que ela relembrou:

É o primeiro dia do acampamento no ano em que Leo morreu, e Luísa chega


triste ao Luneta. A presença do lago à sua esquerda é como um lembrete
constante do que ela perdeu.

Ao ver Luísa, Sofia sai correndo e pula em cima dela; as duas vão para o
chão em uma recriação bem mais inocente da situação em que estão agora.

— O que você tá fazendo? — Luísa de 10 anos pergunta, deixando escapar


uma risada.

— Meu pai disse que não sabia se você viria esse ano — Sofia responde
ainda abraçada à Luísa. — Tô feliz que você veio.

— Talvez agora tenha sido pênalti mesmo — a Sofia adulta diz finalmente,
com um sorriso provocador.

Luísa leva alguns segundos para se situar novamente no presente; seus olhos
ficam presos no âmbar dos olhos de Sofia e, por um momento, nenhuma das
duas consegue se mover. Enquanto um lado do cérebro de Luísa a manda a
sair dali, o outro a mantém absolutamente paralisada.

Ela consegue sentir a respiração de Sofia se misturando com a sua e o peso


dela contra o seu corpo.

— O que vocês estão fazendo? — Lara pergunta, passando com as crianças


em direção ao parquinho.

Sofia e Luísa se apressam em levantar e recuperar a compostura, apesar de


estarem encharcadas e descabeladas. Embora esse não seja o maior motivo do
constrangimento de ambas.

— A gente só tava, hm, testando, pra ter certeza de que é seguro. — Luísa
responde, tentando soar o mais convincente possível.

— E é?

— Super! — Sofia é quem responde.

— Pras crianças de 7 a 9 também?

— Claro.

— Não pulem muito, isso não é para a idade de vocês — Betina diz com seu
tradicional tom assertivo para Sofia.

— Sim, senhora! — Sofia diz como um bom soldado.

Assim que Betina se vira, Sofia esboça uma careta de medo para Luísa. Pelo
jeito, Betina assusta todo mundo.
CAPÍTULO 12
Mila passa o dia com um incomum mau humor.

Não posso culpá-la, acho que se tivesse que passar o dia todo com essa
Michelle aí, também ficaria. Contudo, tenho a impressão de que seu
desânimo não é por causa dela.

Ao fim do dia, depois das atividades “oficiais” de monitoria serem


encerradas, Mila caminha pelo terreno meio sem rumo e perdida em
pensamentos. Ela avista Helena perto do portal de entrada do Luneta, um dos
poucos lugares em que o sinal de telefone funciona razoavelmente bem,
falando com alguém.

— E esse investidor é quente mesmo? — Helena pergunta, depois de alguns


segundos, continua: — Tá, e o contrato? Achou alguma brecha?… Eu não tô
nem aí. Esse é o seu trabalho! Se vira! — Helena percebe a presença de Mila
se aproximando. — Eu tenho que desligar.

Então desliga, sem nenhum adeus formal. Simplesmente diz que vai desligar
e desliga.

Confesso que sinto falta da época em que Helena tinha um celular de flip, era
sempre muito dramático ver ela desligando a ligação depois de uma conversa
mais acalorada. Às vezes a tecnologia nos tira bons momentos.

— Trabalhando? — Mila pergunta, mais por tédio do que por interesse.

— Alguém tem que trabalhar.

Helena enfia o celular no bolso do shorts cargo que ela odeia.


— Uhum… Lena, posso te perguntar uma coisa?

— Se eu falar que não, vai fazer diferença?

Mila ignora a pergunta e coloca as mãos no bolso, sentindo-se um pouco


desconfortável.

— Você já sentiu que tá ficando velha?

— Ah, vai pra merda, Mila! — Helena resmunga e se vira para sair.

É até engraçado Mila perguntar isso para Helena agora. Porque ela está com o
cabelo preso em um rabo de cavalo alto que a faz parecer uns 10 anos mais
jovem, entretanto, a aparência jovial não combina muito com ela. Helena
nasceu para ser adulta.

— Não, não, calma, não tô falando de você… quer dizer, tô!, mas, na
verdade, tô falando de mim — Mila se enrola nas palavras e tenta explicar da
melhor forma: — Hoje eu percebi que a mamãe morreu…

— Parabéns, demorou só 3 meses! — Helena a corta e se encosta em uma


árvore, de braços cruzados.

Mila revira os olhos.

Por que Helena tem que ser sempre assim? Parece que foi criada por um
cavalo!, não por mim e pelo Leo.

— Não foi isso que eu disse. Quis dizer, percebi que a mamãe morreu, tipo…
ela tava velha? Ela morreu do coração! Gente nova não morre do coração.

— É claro que morre, Camila.

— Mas não é frequente! — Mila contrapõe. — Minha mãe morreu do


coração, e eu não conheço mais as músicas dos jovens, nem as gírias… Eu tô
ficando velha?!

— Pff, você tá com crise de idade por causa dos pirralhos do seu grupo?
Mila apenas encara Helena com cara de cachorro sem dono.

— Olha, Mila — Helena continua —, chega uma hora que não dá mais pra
viver como se você tivesse 17 anos.

— Hm — Mila balbucia.

— Se você quer saber, é muito melhor ser adulta do que ser adolescente! —
Helena argumenta num tom um tantinho arrogante, mas como eu disse, ela
nasceu para ser adulta. — Você quer mesmo se misturar com esse monte de
fedelho que não sabe nada de nada?

— Não, não é isso. Eu só quero, sei lá, curtir a vida — Mila responde meio
cabisbaixa.

— Pois então curta, ué!

Helena daria uma excelente psicóloga. Imagina a cena:

“Tô com depressão.”

“Pois então deixe de estar!”

— É que às vezes eu me sinto culpada em curtir — Mila diz, e noto seu tom
mais sério. Helena também nota.

— Por quê?

— Porque a mamãe não pode mais. Sinto que é hipocrisia usar o dinheiro,
que ela passou a vida ganhando, para curtir, quando ela mal tinha tempo de
aproveitar com ela mesma.

Oh, Mila!

Helena morde o interior da bochecha, como toda vez que tem que falar desse
assunto.

— A mamãe tinha tempo, Mila — ela diz, para surpresa minha e da Mila, de
maneira suave. — Quer dizer, não quando o papai morreu, e não por vários
anos… mas no final ela tinha, e ela vivia da maneira que ela queria, você
sabe disso.

Mila apenas assente com a cabeça.

— E ela trabalhou para que a gente pudesse viver bem.

Exato!

— E ela não ia querer ver você assim!

Exato de novo!

Mila apenas encara Helena por alguns segundos antes de perguntar com certo
cuidado:

— Você vai me empurrar se eu te der um abraço?

Helena esboça uma careta.

— Tá, tá… mas seja breve — ela adverte e deixa Mila se aproximar.

— Brigada — Mila diz, abraçando a irmã.

Helena sente novamente um aperto no peito como o dessa manhã, e Mila,


sensitiva como sempre, aperta um pouco mais o abraço.

Por um segundo, Helena relaxa e se deixa ser abraçada pela irmã mais nova.

— Tá, agora chega — Helena diz por fim, afastando-se e respirando fundo.

Mila também se afasta e lança um sorriso para Helena antes de se dirigir ao


refeitório se sentindo um pouco melhor.

***

Depois do jantar, Luísa está encostada na árvore que Júlio e Júlia escalaram
mais cedo, enquanto fuma um cigarro.
— Você tem um pra mim? — Pepa pergunta, aproximando-se dela.

Luísa tira o maço com quatro cigarros e um isqueiro do bolso do casaco e


entrega pra ele.

— Você não tem cara de que fuma — ela diz.

Ele apenas sorri enquanto acende o cigarro. Luísa acrescenta:

— …quer dizer, que fuma algo que não seja natural.

— É o estereótipo do surfista e salva-vidas, eu acho — ele diz e devolve o


maço para ela.

— Pode ser. — Ela o guarda e dá mais uma tragada.

— Então, tá de pé a baladinha sexta?

— Por mim!

— Massa — ele responde. — Acho que a sua irmã vai também.

— A Mila?

— Você acha que as outras duas falariam comigo? — ele pergunta com uma
risada.

— É, não! — Luísa solta uma risada também.

Os dois ficam em silêncio por alguns segundos, apenas fumando. E, para


surpresa de Luísa, é um momento confortável o bastante para ela não precisar
preencher ou querer sair.

— Eu queria pedir desculpa… — Pepa fala depois de um tempo.

— Por…?

— Sei lá, ontem ficou parecendo que eu tava dando em cima de você só
porque levei um toco da sua irmã.
— E não foi?

— Não, pô! Foi porque achei você gata! Só que a Mila também é gata.

Luísa solta uma risada de descrença. Pelo menos ele é honesto.

— Vamos fazer assim — Luísa diz, ainda sorrindo. — Eu vou ser sua amiga,
porque eu fui com a sua cara, mas é isso!

— Bah, tá bom, melhor que nada, vai — ele diz e dá uma tragada no cigarro.
— Você também tá a fim de outro cara?

Luísa solta um risinho de deboche e nega com a cabeça. Pepa encara ela com
divertimento no olhar.

— Eu acho que você tá mentindo — ele diz e aponta para ela de forma
acusatória. — Você tá com cara de que tá a fim de alguém.

Como é que eu nunca notei que a minha filha tem zero interesse em rapazes?
Agora olhando aqui do outro lado parece tão óbvio! Será que era óbvio
quando eu estava viva também?

— Ei, Pepa — Buba, o outro salva-vidas, chama —, nós vamos jogar futebol,
tá afim? Ah, oi, Luísa, não tinha te visto — ele diz ao notar a presença dela,
que estava escondida atrás da árvore. — Quer vir também?

— Não jogo futebol, desculpa.

— Eu já tô indo — Pepa diz para Buba, que concorda com a cabeça e sai; em
seguida, Pepa se vira para Luísa: — até qualquer hora, amiga!

Luísa balança a cabeça enquanto ele caminha em direção ao campo de


futebol. Ela apaga o cigarro e se põe a caminhar pela passagem que permeia o
refeitório, sem mais nada para fazer pelo resto do dia.

Assim que se vira para pegar o caminho principal em direção a sede, esbarra
em uma pessoa.

— Eita, me desculpa! — Luísa diz, recuperando-se do choque.


Ela sente as duas mãos de Sofia segurando seu braço por instinto para se
equilibrar depois do impacto.

— Tudo bem, eu tava distraída — Sofia se desculpa também. — Era o Pepa


saindo? — Ela aponta com dedão no sentido em que ele e Buba caminharam.

— Ah, sim, ele queria um cigarro — Luísa explica.

— Não sabia que ele fumava… enfim, eu tava te procurando.

— Bom, acabou de achar!

— Queria saber se você tá a fim de ir lá em casa — ela pergunta e solta o


outro braço de Luísa. Parece um pouco insegura de repente, sem saber o que
fazer com as mãos. — Sei lá, tomar uma cerveja ou coisa assim.

— Claro! Posso levar meu violão?

— Óbvio!

As duas abrem um sorriso de orelha a orelha e caminham juntas em direção a


sede para pegar o violão de Luísa. Elas estão conversando tão distraídas
quando entram na sede, que levam um segundo inteiro para ver a Mila no
meio do saguão.

— Que diabos… — Luísa diz ao ver a cena.

Mila está sentada igual a um Buda com as mãos em Gyan Mudra — acho que
é assim que fala, pelo menos foi assim que ela me ensinou — no meio do
saguão com um círculo de pedras e velas ao seu redor e com um pau de
incenso queimando a sua frente.

— O que ela tá fazendo? — Sofia pergunta para Luísa com uma cara
desconfiada.

— Hmm…

Antes que Luísa consiga responder à pergunta, Lara e Helena também


atravessam a porta de entrada.
— O que que essa guria tá fazendo? — Lara pergunta para Luísa e Sofia.

— Foi isso que eu perguntei — Sofia diz.

Luísa dá de ombros as perguntas.

— Que isso, Camila? — Helena pergunta alto.

— Mamãe? — Mila me chama no meio da sua meditação.

Tenho a impressão de que ela ainda não notou a presença de Sofia e das
irmãs no cômodo.

— Quê? — Lara e Helena perguntam juntas.

— Ela disse mamãe? — Luísa pergunta.

— E eu lá tenho cara de mãe!? — Helena revida.

— Eu acho que ela não tava falando de você… — Luísa comenta, achando
toda a cena meio bizarra.

— Para com isso, guria… — Lara diz para Mila.

Mila ignora e continua concentrada.

Será que ela está sentindo a minha presença!?

— Por Deus, que guria maluca! — Helena exclama.

— Será que ela tá chapada? — Sofia pergunta baixinho para Luísa.

— Não, eu joguei toda a maconha que ela tinha no lago — Lara responde
antes de Luísa.

Sofia franze a testa, um pouco confusa com a situação toda.

Luísa se posiciona na frente de Mila, que está de olhos fechados.

— Mila?
Ela parece bastante concentrada na sua meditação.

— Será que ela tá dormindo? — Luísa pergunta às irmãs.

— Como é que ela tá dormindo se ela tá falando? — Helena pergunta.

— Sei lá, um monte de gente fala dormindo — Luísa justifica.

A luz da sede pisca, então há um estouro e uma das arandelas queima.

— AAAH! Que caralho… — Luísa grita, e todas elas dão um pulo com o
estouro.

Ih, isso não fui eu não, hein.

Deve ser a fiação desse prédio que é velha mesmo. Eu não tenho nada a ver
com isso.

Apesar da Mila estar neste transe, eu não estou tentando contato nem nada…
Se bem que agora me surgiu a dúvida: será que Mila pode mesmo sentir
minha presença?

— Alguém faz essa doida parar com isso? — Lara diz, com vergonha de
admitir que está com medo.

— Tá, já chega disso, Camila! — Helena diz e se abaixa também ao lado de


Luísa.

E se ela pode me sentir, talvez possa também me ouvir?

Bom, não custa tentar, né?

Deixa eu pensar em algo bom…

Ah! Já sei.

Essa ninguém sabe, mas eu beijei o Chiquinho no acampamento quando


tínhamos 15 anos, um ano antes de eu conhecer o Leo.
— Camila, acorda, desgraça! — Helena dá uma sacudida forte no braço dela.

Mila dá um pulo sentada.

— AAAAH! — ela solta um grito ao dar de cara com Helena e Luísa. — O


que você tá fazendo?

— Te acordando, sua louca! — Helena responde.

— O que tá acontecendo aqui? — Chiquinho pergunta ao ver a cena estranha


no meio do saguão.

— Você beijou a mamãe? — Mila pergunta, indignada ao ver ele.

— Quem te contou isso? — Chiquinho pergunta surpreso.

— Quê? — as irmãs perguntam em uníssono de novo.

— Espera, isso é verdade? — Sofia pergunta ao pai, com uma cara de


espanto.

— Quando a gente era bem novo. Foi antes de ela conhecer o Leo.

MEU DEUS!

— Como você sabe disso, Mila? — Luísa pergunta com a mesma cara de
espanto de todo mundo.

— Sei lá — ela diz, confusa e meio perdida com o que tá acontecendo. — Eu


estava meditando e acho que apaguei. Será que eu sonhei?

MEU DEUS!

— Tá, essa história tá sinistra demais pro meu gosto, podemos, sei lá, mudar
de assunto? — Lara pergunta.

— Sim! — todos, incluindo Chiquinho, respondem.

— Mila, nunca mais faça isso! — Lara continua.


Mila ergue as mãos em desculpa.

— Você beijou a mamãe? — Helena pergunta para o Chiquinho de novo com


certa indignação.

— A gente era adolescente! — ele repete. — Depois fui eu que apresentei ela
pro pai de vocês!

— Você não precisa se justificar, Chiquinho — Luísa diz, mas tem a mesma
cara de estranheza de Helena.

Pensar em mim e Chiquinho nos beijando é igual pensar em dois irmãos se


beijando. É mesmo muito estranho, não julgo a cara das minhas filhas.

— Isso tudo é muita informação para minha cabeça — Sofia comenta.

— Eu só vou pegar o violão e a gente dá o fora daqui — Luísa diz.

— Boa ideia.
CAPÍTULO 13
Luísa está na mesma rede em que viu Sofia no telefone algumas noites antes,
enquanto Sofia está sentada no chão, sobre um tapete Kilim cheio de
almofadas que formam um ambiente agradável para leitura ou apenas relaxar,
como estão fazendo. O Paçoca dorme profundamente no seu colo e ela faz
cafuné nas orelhinhas peludas.

Luísa toca alguma coisa aleatória no violão, e as duas bebem uma cerveja
longneck com certa calma.

Embora ela não consiga entender o motivo, Luísa se sente ligeiramente


embaraçada em estar ali. Na maior parte do tempo, ela se sente bastante
confortável perto de Sofia, mas, por alguma razão, esse convite em particular
a deixou um pouco tímida.

Se eu pudesse inferir, coisa que eu não deveria fazer porque estou aqui
apenas para narrar, não opinar, eu diria que ela está assim por conta da
situação do futebol de sabão mais cedo. Mas como eu disse, não estou aqui
para opinar, então, tire você as suas próprias conclusões.

Seja como for, quando Luísa fica nervosa, ela precisa fazer alguma coisa para
se acalmar, então, ela ocupa o silêncio e as mãos tocando uma dessas
melodias flamencas que ela tanto gosta.

Cá entre nós, acho que Luísa está tentando impressionar Sofia com essa
música, porque não precisa ser nenhum especialista para perceber que o nível
de dificuldade é alto e, ao mesmo tempo, não parece ser o tipo de música que
jovens gostem de escutar ou tocar quando se reúnem.

Sofia, diferente de Luísa, parece bem mais à vontade na presença da minha


filha, e apenas assiste à apresentação com um sorriso no rosto.

— E por que Barcelona? — Sofia pergunta depois que Luísa termina a


canção.

— Eu sempre gostei de música espanhola. — Luísa dá de ombros. — Mas,


pra ser sincera, eu quase desisti de ir.

— Por quê?

Luísa balança a rede de leve com os pés, que ainda tocam o chão.

— Como eu te disse no luau aquele dia, eu tinha medo de acontecer alguma


coisa e eu estar longe, sei lá.

— Eu entendo — Sofia fala. — Eu não tava nem saindo do estado, mas


também fiquei com o coração na mão de deixar meu pai e o meu irmão
quando fui pra faculdade. Foi a primeira vez que fiquei longe deles depois
que a minha mãe morreu.

A mãe de Sofia morreu em um acidente de carro quando ela tinha apenas seis
anos. Elas subiam a serra, a caminho do Luneta, quando um caminhão de tora
desgovernado cortou a frente delas. Sofia também estava no carro, mas como
estava no assento de elevação e usava cinto de segurança, não se machucou.
Ana, no entanto, sofreu um trauma sério na cabeça e não resistiu.

— Você lembra dela? — Luísa pergunta.

— Um pouco — ela responde, encolhendo os ombros. — Mas acho que boa


parte eu meio que inventei, tipo, baseado nas coisas que meu pai conta.

Luísa assente com a cabeça. Acredito que no caso dela seja parecido. Eu e
minhas filhas contamos muitas histórias a Luísa sobre Leo depois da sua
morte, porque ela era a mais nova e a que conviveu por menos tempo com
ele.

— Eu tenho medo de me esquecer — Luísa diz depois de uns instantes de


silêncio.
— Eu também tenho.

Luísa encara Sofia com solidariedade.

Eu sei que ela se sente estranhamente à vontade para falar de mim e do Leo
com Sofia. “Estranhamente” porque ela nunca falou da morte do Leo com
ninguém, nem comigo, nem com as suas irmãs. E mesmo com a sua
psicóloga, eu sei que falava apenas de maneira superficial.

Mas ela sabe que Sofia entende e, mais do que isso, está disposta a ouvir,
então ela continua:

— Depois que meu pai morreu — Luísa fala —, eu fiquei com tanto medo de
me aproximar da minha mãe e das minhas irmãs, sei lá, parecia que quanto
mais tempo eu passasse com elas, maiores as chances de acontecer alguma
coisa. E quanto mais o tempo passava, com mais medo eu ficava, aí se tornou
um ciclo vicioso, sabe? Como naquela música da Alanis Morissette… Ironic?
Tipo, se eu voltasse a me aproximar delas, alguma coisa ia acontecer, como
aquelas matérias de casos de família “mãe e filha que não se falavam há anos
voltam a se falar e a mulher morre no dia seguinte”. Mas aí quando decidi ir
para Barcelona, parecia que era longe demais. Era como se eu tivesse que ter
o balanço exato entre perto e longe para garantir que nada aconteceria! E eu
sei que isso não faz o menor sentido.

— Na verdade faz — Sofia diz com gentileza, ainda afagando o dorso do


Paçoca —, você estava tentando encontrar algum tipo de controle sobre uma
situação que é impossível controlar. Acho que todo mundo que passa por algo
assim tenta, cada um à sua maneira.

— Só que agora minha mãe também morreu e eu sinto que desperdicei o


tempo que podia ter tido com ela.

Os olhos de Luísa estão marejados e eu sinto como se uma flecha


atravessasse meu coração. Eu sabia que todas as minhas filhas estavam
sofrendo e que cada uma expressava de forma diferente, mas saber que Luísa
tinha medo de se aproximar de todas nós deixa meu coração em migalhas.

Nós não tínhamos uma relação totalmente distante, eu ligava para ela pelo
menos uma vez por semana e ela me visitava quando eu insistia bastante.
Mas nunca saíamos juntas ou trocávamos mensagens engraçadas nem nada
desse tipo. Creio que ela e as irmãs também não; eu sei que Luísa mandava
mensagens com um pouco mais de frequência para Lara para saber dos
sobrinhos, mas ainda assim, eram mensagens breves.

Luísa tenta se recompor antes que Sofia ameace tentar consolá-la. Não tem
nada que Luísa odeie mais do que se sentir vulnerável na frente de alguém.

Sofia percebe que Luísa prefere ser deixada quieta, mas eu consigo sentir seu
instinto de querer confortá-la, porque eu também quero.

— Acho que eu fiz o contrário de você — Sofia diz, como se estivesse


tomando consciência disso agora mesmo. — Acho que fiquei com tanto
medo de perder eles que não queria ficar longe de jeito nenhum. Meu pai teve
que me obrigar a sair de casa!

— Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua


maneira — Luísa recita.

— Anna Karenina — Sofia diz. — Você leu Tolstói?

— O quê? Você acha que só porque eu tenho cabelo rosa não posso ler os
clássicos russos? — Luísa pergunta com um sorriso de provocação que não
combina com seus olhos ainda tristes.

— Foi mal! — Sofia retribui o sorriso.

— Mas eu não li mesmo — Luísa diz e solta uma risada um pouco mais
espontânea. — Li só um capítulo e essa é, tipo, a primeira frase do livro.

Apesar do riso das duas preencher o ambiente por um momento, logo um


silêncio paira sobre elas. Ambas tomam um gole de suas cervejas já quentes.

Assim que Sofia solta a longneck, vira para Luísa com certo divertimento no
olhar, disposta a mudar o tom da conversa:

— Agora confessa que você só foi pra Barcelona para realizar seu sonho de
Cheetah Girls 2!
Luísa leva um segundo para entender, mas logo solta uma gargalhada.

— Totalmente!

— Eu perdi a conta de quantas vezes a gente assistiu isso! — Sofia confessa.

Luísa começa a dedilhar no violão uma melodia que, se eu tivesse que chutar,
diria que é do filme. Sofia abre um sorriso.

— Nossa, eu amava esse filme — Luísa diz. — Lembra que você fez o seu
pai comprar o DVD?

— Fiz mesmo, quantos filmes da Disney você lembra de ter três


protagonistas negras? Quer dizer, acho que uma delas era latina na verdade
— Sofia franze a testa, tentando buscar na memória —, mas, enfim, três
protagonistas não-brancas!

— Amigas Cheetahs, friends for life… — Luísa canta um trecho. — Como


era mesmo o resto?

Sofia dá de ombros sem lembrar, mas anuncia:

— Eu acho que o DVD deve tá guardado ali na sala.

— Vamos assistir então!

— Tem certeza? — Sofia pergunta, sem saber se a proposta é séria mesmo.

— Claro! A gente faz pipoca e abre uns refrigerantes… como nos velhos
tempos!

***

Vinte minutos depois, estão as duas jogadas no sofá com uma bacia de pipoca
e outra de doces no colo.

Luna e Paçoca estão deitados aos pés de Luísa, já Bartô, o vira-lata, está
refastelado em uma poltrona só para ele.
— Meu Deus, olha essas roupas! — Luísa diz, surpresa com o figurino das
personagens.

— A gente se vestia assim? — Sofia pergunta, com uma careta.

— Pior que a Lara se vestia exatamente igual essa Chanel aí.

Um toque de celular anunciando uma nova mensagem chama atenção das


duas.

— Não deixa minhas irmãs descobrirem que o sinal de internet é melhor na


sua casa, senão elas não vão mais sair daqui.

Sofia dá uma risada e pega o celular para ver a mensagem de WhatsApp e,


por mais que Luísa tente dar privacidade, ela não consegue evitar ver o nome
de Edu seguido de um coração rosa no visor.

Ela lembra do dia em que ouviu parte da conversa dos dois e tenta não ceder
ao impulso de ler a mensagem, despendendo uma atenção maior do que a
necessária para compreender um filme do Disney Channel.

Depois de responder alguma coisa, Sofia joga o celular sobre o acento livre
do sofá e também volta sua atenção ao filme.

— E esses nomes? — Sofia pergunta indignada depois de duas cenas. —


Chanel? Galleria? Aquanetta?

— Espero que ninguém tenha sido batizado em homenagem a elas, na moral


— Luísa diz e dá uma mãozada na pipoca. — Se bem que Aquanetta seria um
bom nome pra uma sereia.

— E já não tem um filme de sereia que se chama Aquanetta?

— Não, esse é Aquamarine — Luísa responde, antes de encher a boca de


pipoca.

— Aquanetta é certamente a irmã perdida da Aquamarine.

Elas voltam ao filme e assistem em silêncio por um tempo, não porque o


filme seja bom, já que ambas concordam que era muito mais divertido
quando tinham oito anos, mas porque se sentem confortáveis assim, uma na
presença da outra, dividindo uma bacia de pipoca, com apenas a luz da TV
iluminando a sala.

Apesar de estarem em um sofá com três lugares, Sofia está praticamente no


meio dele e Luísa se espreme um pouco para não invadir muito o espaço
pessoal dela, mas é inevitável que seus ombros e joelhos se toquem. Depois
de um tempo, quando percebe que Sofia não se importa com isso, ela desiste
de tentar evitar, e finalmente relaxa. Sofia esboça um sorriso ao sentir o corpo
de Luísa relaxando ao seu lado.

Luísa não sabe dizer se é a casa de Chiquinho que lhe traz boas memórias, se
a nostalgia do filme a levando para uma época mais tranquila ou se é o calor
que emana de Sofia aconchegada ao seu lado… provavelmente é o conjunto
das três coisas, mas, seja como for, ela sente uma calma que há muito não
sentia.

Sem desviar os olhos do filme, Luísa leva a mão à bacia de pipoca, mas em
vez de pipoca, ela encontra a mão de Sofia.

Luísa tira a mão com rapidez, como se tivesse levado um choque, e embora
tenha durado uma fração de segundos, foi o suficiente para sentir seu coração
acelerado.

— Hm, pode pegar — Sofia oferece, tirando a mão.

— Não, não, pode pegar. — Luísa coloca a bacia mais perto de Sofia e volta
sua atenção mais uma vez para o filme, embora não saiba exatamente o que
está acontecendo na história.

Sofia sorri um pouco constrangida, mas aceita a pipoca.

— Essa Marisol é muito sonsa — Luísa diz, mais para preencher o silêncio
estranho do que por qualquer outro motivo.

— Eu acho que ela tem um crush na Chanel! — Sofia opina.


— Se tem, essa certamente não é a melhor maneira de demonstrar — Luísa
diz com uma risada.

No filme, Marisol tenta separar o grupo musical ao qual Chanel faz parte para
formar uma dupla com ela.

— E qual é a melhor maneira? — Sofia pergunta em um tom que eu


descreveria como provocador.

Luísa sente suas bochechas esquentando e se remexe um pouco no sofá.

— Hm? Ah! Pra ser sincera, eu… eu não sei. Eu acho que nunca tive um
crush que me fizesse querer ter todo esse trabalho que ela tá tendo.

Sei!

Tudo bem minha filha ser lésbica — quer dizer, eu acho que é, ela ainda não
confirmou nada — mas ser assim frouxa, incapaz de formular uma fala
coerente para a menina que claramente ela gosta, aí já é demais.

Sofia deixa escapar um sorriso; pelo menos ela parece achar bonitinho o
desconforto de Luísa.

— Nunca? — Sofia pergunta em um quase sussurro.

— É, hmm… acho que não — responde, sem muita certeza. — E, hum, e


você?

Sofia sustenta o olhar de Luísa antes de responder, sem titubear:

— Já!

Luísa fica presa naquele olhar pelo que parece uma eternidade, por fim desvia
para a bacia de pipoca. Sofia limpa a garganta e acrescenta:

— Mas eu nunca destruí uma girl band!

Luísa dá uma risada, sentindo-se relaxar de novo, e elas voltam ao filme.


***

Depois da cena perturbadora da Mila em transe se comunicando com os


mortos, ela decide desmontar o círculo ritualístico para não correr mais
riscos.

Para ser sincera, eu acho que também prefiro assim.

Ela guarda suas pedras e cristais em uma estante, quase como um altar, em
seguida, troca a música de meditação que tocava baixo em uma caixa de som,
e coloca uma playlist aleatória de verão que tinha salva; Banana Pancakes do
Jack Johnson começa a tocar e ela volta sua atenção a recepção.

Chiquinho está sentado em sua cadeira, concentrado em alguns papéis.

— Você precisa de ajuda aí? — Mila pergunta, debruçando-se sobre o balcão


da recepção.

— Eu só tô lendo um relatório que recebi da prefeitura — ele explica, sem


tirar os olhos do papel.

— Relatório do quê? — pergunta, interessada.

— Nós ainda podemos explorar 8% do terreno, mas mesmo assim não pode
ser qualquer 8% que a gente bem entender, precisamos de um alvará para
poder construir perto dos riachos.

— Entendi, e o que estamos querendo construir?

— Uma sala de jogos coberta com vista para a cachoeira e o riacho. — Ele
pega a planta do projeto na gaveta e entrega para ela. — Mas tem uma
sequência de exigências que temos que seguir.

— Ah! Que massa — ela diz, olhando o projeto. — Posso ver esse relatório?

— Pode, claro.

Mila caminha para dentro do balcão e se senta em frente a mesa dele.


Chiquinho explica algumas partes que ela não entende e conta mais detalhes
sobre o projeto.

É a primeira vez que uma das minhas filhas mostra o mínimo interesse no
acampamento. Eu considero isso um bom sinal.

— Posso te perguntar uma coisa, Chiquinho? — Mila pergunta depois de


alguns minutos conversando sobre a sala de jogos. — Você nunca pensou em
comprar a parte da mamãe?

Chiquinho se recosta na cadeira de escritório e gira de um lado para o outro.

— Pensar eu já pensei, mas sei que a sua mãe não tinha intenção de vender e
pra ser sincero eu não tenho todo o dinheiro; a parte dela, quer dizer, de vocês
é 70%. Quando comprei a minha parte, eu tinha dinheiro de uns terrenos que
meu pai tinha me deixado. E como sempre gostei desse lugar e sempre fui
muito amigo do Leo, parecia a coisa certa a se fazer.

— E você nunca pensou em vender a sua parte?

— Na verdade, não, eu gosto daqui, gosto do meu trabalho. Me permite ter


uma vida tranquila e estável.

— Eu acho que gostaria de ter um estilo de vida assim também — ela diz,
depois de uns minutos.
CAPÍTULO 14
Luísa acorda com um barulho estranho e em um lugar que ela não consegue
identificar.

Depois de alguns segundos de confusão, finalmente começa a se situar e


percebe que está dormindo no sofá da casa de Sofia e Chiquinho. Tem um
travesseiro que não estava ali na noite anterior embaixo de sua cabeça e um
cobertor cobrindo seu corpo. Luna, Paçoca e Bartô não estão mais ali. Nem
Sofia!

A luz fraca que vem da janela é um indicativo de que o dia já está nascendo, e
Luísa leva alguns segundos se espreguiçando antes de procurar seu celular.
Ela o encontra no tapete próximo ao sofá com várias novas notificações, já
que na noite anterior Sofia passou a senha do Wi-Fi para ela. Luísa ignora
todas e foca no horário: 5h27. Ela não se recorda de que horas pegou no sono,
mas era bem cedo, provavelmente lá pelas 23h, já que o filme nem havia
acabado ainda.

Ela afunda o rosto no travesseiro mais uma vez e o cheiro perfumado de


lavanda, que deve ser do amaciante de roupas, invade suas narinas,
transportando-a para mais uma memória.

Estão no quarto de Sofia, na última semana do acampamento, depois de


Luísa convencer a amiga de que deveria dormir ali e não no alojamento, que
é muito barulhento.

Um Chiquinho onze anos mais jovem bate na porta do quarto antes de entrar
para desejar boa noite.

— Se vocês precisarem de alguma coisa, é só me chamar, tá bom?


As duas balançam a cabeça de forma afirmativa, e ele planta um beijo na
testa de Sofia, então, na de Luísa da mesma forma que Leo fazia.

Assim que Chiquinho as deixa sozinhas, Luísa sente seu peito apertando e os
olhos marejando com a lembrança do pai.

Sofia apesar de ter apenas 9 anos, é capaz de perceber o que aflige a


amiguinha.

— Quando eu era pequena — diz Sofia, que ainda é pequena —, minha mãe
lia uma história pra mim antes de dormir… você quer que eu leia uma
história pra você?

Luísa faz que sim com a cabeça e se ajeita na cama para dormir, e Sofia
pega um livro de fábulas e escolhe uma das histórias. Ela se senta ao lado de
Luísa e começa a ler de forma lenta, mas constante, como uma criança
costuma fazer.

Novamente Luísa escuta o barulho que a acordou e se levanta para checar.


Ela caminha na direção do som até a cozinha e encontra Chiquinho
preparando café em uma cafeteira, enquanto pica um mamão.

— Ah, bom dia, Luísa! — ele diz com um sorriso. — Eu te acordei?

— Bom dia — ela responde, sentindo-se um pouco tímida. — Não, eu


geralmente acordo cedo, aliás, nem lembro a última vez que dormi tantas
horas seguidas!

— E você dormiu bem? O sofá é confortável, mas não é uma cama.

— Dormi bem, sim, obrigada — ela responde com educação.

— Você quer comer alguma coisa? Eu sempre faço uma boquinha antes do
café da manhã no refeitório, porque não aguento esperar até as 8h sem comer
nada.

— Hm, não obrigada… mas eu aceito um café!

— Já tá saindo… E aí? Tá sendo tão ruim quanto você imaginou?


— Olha — ela diz, com um vislumbre de sorriso —, até que eu esperava
coisa pior.

Ele retribui com um sorriso.

— Vou considerar isso um começo — ele diz e enche uma caneca de café. —
Aqui! — Entrega para Luísa que agradece. — E vocês já conversaram sobre
quem vai assumir depois?

— Na verdade, não — ela responde e dá um gole, deixando o calor do café


aquecer o seu corpo. — Tenho medo de ninguém querer.

— Não sei, mas acho que pelo menos uma de vocês vai querer — Chiquinho
diz, encostando-se na pia.

Luísa estuda a expressão enigmática dele por alguns segundos.

— Você tá sabendo de algo que eu não sei, Francisco? — ela pergunta em


um falso tom acusatório.

Ele levanta as mãos em rendição e se justifica:

— Não, só tenho esperança de que uma de vocês vai querer.

— Sei! — ela responde parecendo pouco convencida.

— Eu não quero que a parte de vocês seja vendida para um desconhecido.

— Eu também não! — ela responde, surpreendendo os dois.

Eles ficam perdidos nos próprios pensamentos por um tempo, até que
Chiquinho quebra o silêncio:

— Não quer mesmo um mamãozinho?

— Não, muito obrigada, Chiquinho — ela agradece com um sorriso. — Hm,


que horas a Sofia costuma acordar? — Luísa pergunta, tentando parecer
casual.
— Lá pelas 7h, eu acho.

Ela olha novamente o horário no celular, 5h52 ainda; ela sabe que seria
estranho esperar por Sofia, então não resta muita escolha.

— Você tem um papel e uma caneta para me emprestar?

— Claro! — Chiquinho abre uma gaveta no armário e tira um bloquinho e


uma caneta Bic. — Aqui.

Ela agradece e, em seguida, começa a escrever uma nota.

“Obrigada pela noite e pelo filme ;) e desculpa ter dormido e te deixado


sozinha. Prometo te recompensar! Bjos, Lu.”

Ela se despede de Chiquinho e decide voltar logo para a sede, mas antes,
dobra o cobertor no qual dormiu e o empilha com a manta e o travesseiro,
depois deixa a nota em cima da mesa de centro da sala e sai.

Luísa caminha perdida em pensamentos e não percebe quando os olhos de


Michelle, que está sentada num dos bancos da varanda lendo um livro,
cravam nela. O caminho por onde ela passa não deixa dúvidas de que Luísa
está vindo da casa de Sofia. Michelle apenas fecha o livro com força e volta
para dentro do alojamento.

***

Não posso deixar de notar que já faz dezoito horas desde o último cigarro de
Luísa e até agora ela nem ponderou sair pra fumar.

Pequenas vitórias!

Depois do longo banho, que é encerrado com a Lara esmurrando a porta e


mandando ela se apressar — exatamente como nos velhos tempos, quando as
duas dividiam um banheiro de suíte americana —, Luísa volta para o quarto e
abre bem as janelas para que o ar fresco e a luz preencham todo o espaço.

Então, depois de dias, ela finalmente desfaz a mala e se preocupa em deixar o


espaço habitável. Como eu disse: pequenas vitórias!
Luísa e as irmãs desenvolveram uma espécie de rotina nessa semana em que
estiveram aqui: elas sempre se encontram na recepção da sede antes de irem
juntas tomar café da manhã no refeitório. É bem verdade que o motivo é mais
para não precisar socializar com as outras pessoas do que por vontade de
estarem na companhia uma da outra, mas, mesmo assim, me alegra vê-las
juntas.

Nesta manhã, quando Helena finalmente chega ao saguão, dá de cara com


Lara, Luísa e Mila, na frente do computador de Chiquinho, fazendo uma
chamada por Zoom com Alícia e Lucas. Apesar de não demonstrar grande
entusiasmo, ela se junta às irmãs para escutar o que quer que Alícia esteja
contando que a está deixando tão animada.

Então, Lucas termina a ligação falando que está ansioso para o fim de semana
que passarão todos juntos — ele, Alícia, Lara e Felipe — num resort em
Governador Celso Ramos.

As bochechas de Lara coram quando ela sente três pares de olhos cravados
nela depois da ligação, mas decide ignorar. O que ela faz no fim de semana
não é da conta de suas irmãs, ela pensa.

Entretanto, ainda é quinta-feira e, antes de Lara partir pra seu programa em


família, tem muito trabalho pela frente com a minigincana.

No café da manhã, já é possível notar uma atmosfera diferente. As crianças


estão empolgadas com a competição e com a abertura do placar, que só será
encerrado na quinta-feira da última semana.

Algumas crianças contam animadamente os feitos heroicos que tiveram nos


outros anos, enquanto outras já começam a se reunir e traçar planos para
garantir que fiquem na mesma equipe — o que, na maioria deles, consiste em
pedidos com súplica no olhar para que os monitores as deixem juntas e,
dependendo do monitor, até funciona.

A gincana é dividida em quatro equipes, cada uma tem sua cor e são
formadas por crianças de todas as idades, ou seja, cada equipe tem que ter
integrantes de cada um dos grupos etários. Entretanto, as crianças da faixa
etária de 7 a 9 anos, por exemplo, competem apenas entre si — e o mesmo
acontece com os outros dois grupos: de 10 a 13 e de 14 a 17.

Apesar disso, a pontuação é única. Todas as atividades vão sendo somadas e


os pontos, adicionados ao grupo vencedor. Ao final do último dia de gincana,
na última semana, o vencedor é revelado e recebe o troféu, além do prêmio
em guloseimas e passaportes para um parque aquático.

Antes mesmo de dar o horário do fim do café da manhã, o refeitório já está


completamente vazio, e as crianças estão quase todas reunidas com seus
monitores e os recreadores.

***

Chiquinho está no que a gente chama de ninho do gavião, que é na verdade


um cesto de gávea a dois metros do chão, no mastro da bandeira do Luneta,
anunciando as regras da gincana no inseparável megafone.

É nítido que ele se diverte muito em vestir o personagem do chefe do


acampamento e nessas ocasiões ele até usa seu chapéu de escoteiro. No resto
do tempo, usa apenas um boné bege.

Quando ele por fim termina de passar as regras e declara aberta a gincana, as
crianças gritam e comemoram.

Elas se agrupam por cor de camiseta e por idade e logo os pequenos grupos
marcham para diferentes pontos do acampamento.

O grupo de Lara e Betina é o primeiro na disputa do futebol de sabão e elas


estão dividindo as equipes para que a disputa fique bem equilibrada.

Já no grupo do meio, das crianças de 10 a 14 anos, a escolha dos times é um


pouquinho diferente e eles mesmo podem se organizar, já que Pati não sabe
dizer não para a maioria deles e Helena simplesmente não se importa.

Helena fica responsável pela equipe azul formada por Júlio, Júlia e Pedro, e,
apesar de não se importar com as crianças, ela se importa muito em vencer,
então, ela não perde tempo e começa logo a incutir o espírito competitivo no
jovem grupo.
Depois de perder a corrida de saco porque Pedro não conseguia ficar em pé
por mais de dois pulos, Helena decide tomar atitudes mais eficientes para
vencer a segunda prova:

— Achou? — Helena pergunta a Júlia assim que ela se aproxima.

A menina abre um sorriso levado e, discretamente, mostra o tubo de


supercola atrás das costas enquanto os recreadores responsáveis por esta
prova terminam de marcar os resultados.

— Bom — Helena sussurra, olhando para frente, como se estivesse falando


sozinha. — Quando ela te entregar a colher, eu vou distrair ela, e você coloca
uma gota na colher antes de colocar o ovo. Mas só uma gota, ok? É só pra ter
mais atrito. Lembra que o ovo tem que sair da colher depois, senão a gente é
eliminada.

— Entendi, tia. — Júlia assente com a cabeça como um bom soldado faria.

Eu não acredito que a minha filha está ensinando crianças de 10 anos a


roubar na gincana! Quem criou essa guria? Porque eu nunca ensinei uma
coisa dessas para ela!

Ainda bem que Helena não tem filhos, imagina a educação que ela daria a
eles!?

— Se prepara — ela dá dois tapinhas nas costas de Júlia como forma de


incentivo, assim que a recreadora começa a entregar os ovos crus e as
colheres para as crianças.

Júlia é a última competidora a receber, mas assim que ela os pega, Helena
aponta para o quadro e grita:

— Ei, esse placar tá errado! — ela diz com o seu tom mais sério, aquele que
arrepia até o mais durão dos investidores do Grupo Lancellotti, então lança
uma piscada pra Júlia.

A atenção de todos os recreadores vai para a lousa verde com o placar


anotado com giz colorido e, embora eles tenham certeza de que o placar está
certo, o tom de Helena é suficiente para fazê-los recontar tudo.

Júlia não perde tempo e executa o plano com perfeição. Ela coloca apenas
uma gota da supercola na colher então encaixa o ovo por cima antes que
seque.

Helena esboça um sorriso depois de a menina confirmar com um joinha que


está tudo correndo como esperado.

Contudo, assim que é dada a largada, fica claro que o crime não compensa. A
cola não é suficiente para fixar o ovo na colher como imaginado pela dupla
de contraventoras e, assim que Júlia sai em disparada, despreocupada com o
equilíbrio, o ovo cai e quebra, desclassificando a equipe.

— Merda! — Helena resmunga.


CAPÍTULO 15
É bastante comum que nas sextas-feiras as crianças tenham o dia mais livre,
sem nenhuma atividade programada. Quando tem sol, a maioria prefere
brincar no lago, liberando os monitores, já que os guarda-vidas estão lá para
cuidar delas.

Hoje não é diferente.

Não tem uma única nuvem no céu e faz bastante calor, então, tudo que a
maioria quer é se jogar no lago e aproveitar! No momento, no entanto, o lago
está vazio porque é hora do almoço e ele fica fechado até às 14h. Se não
houvesse essa regra, as crianças não sairiam da água nem mesmo para comer.

Luísa aproveita o raro momento de paz para fumar perto da água, sentada na
raiz da mesma figueira que se sentou no primeiro dia. Ela estreita um pouco
os olhos por causa do brilho da luz refletida sobre a água, e eu consigo sentir
seus pensamentos cada vez mais calmos, se fixando apenas na paisagem, na
ondulação do lago, nas pedrinhas das margens, na ave que plana solitária…
nem parece que há poucas horas esse era o lugar mais frenético do
acampamento.

Essa primeira semana foi melhor do que eu esperava, e acho que até já
consigo sentir a conexão entre elas começando a ser restaurada.

Quem sabe o meu plano não tenha mesmo chance de sucesso!?

Falando em reconexão entre elas, Mila caminha até Luísa…

— Lu — Mila chama ao encontrá-la perto do lago —, vem comigo. Você vai


ser a minha dupla.
— Dupla no quê, maluca? — Luísa pergunta apagando o cigarro, mas sem se
mover um único centímetro.

— Vôlei de praia. A Michelle me desafiou e eu quero provar pra ela que eu


não tô velha!

— Que mané velha, guria?

Mila faz um gesto com a mão de que aquele detalhe não é importante, e
pergunta:

— Você vem ou não?

Luísa apenas esboça uma careta de má vontade.

— Vamos, Lu! — Mila junta as mãos na frente do peito em súplica. — Você


jogava vôlei na escola!

— Eu era líbero, Camila! A Michelle é uma girafa! Essa desgraça deve ter
mais de 1,80!

Isso não é verdade. A Michelle, de acordo com as minhas informações aqui,


não tem 1,80. Tem 1,78.

A Luísa, minha tampinha, tem 1,59 e Mila 1,64.

— E daí?

— E daí que a gente vai levar uma surra!

— Por favor, Lu!!! — Mila suplica mais uma vez, fazendo sua melhor
carinha de cachorro sem dono.

Luísa força uma cara de desespero, antes de aceitar.

— Tá, tá.

Eu disse que a conexão delas está sendo restaurada.


— Quem é a dupla dela? — Luísa pergunta.

— A Sofia.

— Pff… Tamo fodida!

— Por quê? — Mila pergunta enquanto caminham juntas.

— Você vai ver!

Eu não queria apostar contra as minhas filhas, mas acho que estão mesmo!
Baseado no quanto Sofia é competitiva e no fato dela ser dois centímetros
mais alta do que a Mila, acho que posso começar a pedir por uma intervenção
do lado de cá para o time Lancellotti.

***

Antes de irem para o jogo, Mila insiste em que passem na sede para colocar
um biquíni.

— Vou aproveitar para tentar salvar meu bronzeado — ela diz. — Não posso
passar o verão todo com marca de camiseta no braço!

Ela veste um biquíni azul floral, que combina com a tornozeleira de


conchinhas que ela usa e com suas unhas pintadas de turquesa.

Luísa resolve trocar o uniforme também, mas o biquíni que escolhe é todo
liso verde oliva, e, diferente de Mila, Luísa veste um shortinho de corrida por
cima, porque não se sente muito à vontade para ficar correndo e pulando
apenas de biquíni.

Às 14h pontualmente, Luísa e Mila chegam à quadra de areia. Michelle e


Sofia já estão lá, treinando.

Treinando!

Pobre Mila e Luísa.

Mas confesso que nunca vi Mila tão determinada a provar alguma coisa como
agora; ela está com a confiança tão alta que talvez tenham mesmo alguma
chance.

Os olhos de Luísa imediatamente cravam em Sofia, que veste um biquíni


branco que realça ainda mais seu tom escuro de pele. Ela, assim como Luísa,
também optou pelo shortinho, mas no caso dela é um shorts jeans rasgado.

Luísa sente certa dificuldade de desviar o olhar; não é culpa dela que Sofia
esteja tão bonita. Luísa sente as suas bochechas corarem quando Sofia a
flagra encarando e lança uma piscada.

Michelle observa a interação e chama a atenção de todas, com o seu já


familiar tom autoritário:

— Tá, vamos começar isso logo. Dois sets de quinze pontos, se por um
milagre vocês conseguirem ganhar um dos dois, terá um tie-break de dez
pontos!

— Gracinha você — Luísa diz com sarcasmo, em troca ela recebe um olhar
atravessado de Michelle.

— Tá, vamos tirar no par ou ímpar para ver quem começa — Mila sugere.

— Ímpar — Michelle diz.

— Eu prometo pegar leve com você — Sofia sussurra para Luísa enquanto
Mila e Michelle decidem quem começa; em seguida, ela lança um sorriso
travesso.

Luísa balança a cabeça com um sorriso e anuncia:

— É guerra, fia!

— Nesse caso, sem pegar leve! — Sofia sorri ainda mais e lança outra
piscada.

Mais uma vez as bochechas de Luísa coram.

Essa menina tá entregue!


Espero que ela tome alguma atitude logo.

— Ganhei! — Michelle diz com mais empolgação do que pede o momento.


— Sofi, você prefere começar com a bola ou escolher o lado da quadra.

— Lado da quadra — ela responde. — Esse sol vai atrapalhar elas.

— Bom, então a bola é nossa — Mila diz, pegando a bola que estava sob o
braço de Michelle, apoiada em seu quadril. — Vem, Lu!

Mila e Luísa caminham até o lado da quadra virado para oeste e Michelle e
Sofia para o lado virado para leste.

— Vocês estão precisando de um árbitro aí? — Pepa pergunta, segurando o


apito que todos os salva-vidas usam pendurado no pescoço.

— Não! — Michelle responde sem nem olhar para ele.

— Claro — Mila responde ao mesmo tempo, com um sorriso.

Michelle revira os olhos para Mila e então se volta para Pepa:

— Você não devia estar cuidando para as crianças não se afogarem no lago?

— É meu horário de folga, o Buba tá lá agora — ele diz e coça a cabeça. —


Hm, fico ou vou?

— Fica e apita direito! — Luísa intervém antes que Michelle possa falar mais
alguma coisa.

Quando elas olham para o lado percebem algumas pessoas se sentando na


pequena arquibancada de madeira de três degraus para assistir ao jogo. Pelo
jeito, está todo mundo querendo ver Mila e Luísa tomarem uma surra.

Pepa se senta na cadeira do árbitro, Michelle e Sofia se posicionam no seu


lado da quadra.

Mila vai para o saque.


Pelo menos todos esses anos praticando ioga a deixaram bem forte e ela
consegue um bom saque em cima da Sofia, que recepciona sem grandes
dificuldades. Michelle levanta perto da rede e Luísa caminha para trás para
fazer a cobertura; Sofia pega impulso para atacar e Mila salta na rede para
tentar bloquear.

A bola amortece no bloqueio e Luísa se joga na areia para dar cobertura e


consegue jogar a bola na mão de Mila. Luísa se ergue rapidamente enquanto
Mila levanta a bola, Luísa salta o mais alto que consegue e ataca. Mas a bola
volta direto na sua cabeça depois de rebater no bloqueio de Sofia.

Na queda, Luísa pisa em falso e cai sentada na areia, Mila xinga alguma coisa
e Pepa apita, apontando a mão para o lado de Sofia e Michelle da quadra,
indicando o ponto delas.

— É guerra — Sofia repete as palavras de Luísa e abre um sorriso divertido.

Michelle vibra com tamanha empolgação que você poderia acreditar que elas
ganharam o ouro olímpico. Em seguida, ela corre e pula para abraçar Sofia,
que não tem muita escolha senão segurar a moça. Ela dá uns tapinhas
camaradas nas costas de Michelle e a solta.

Luísa assiste à comemoração exagerada ainda do chão. Seu maxilar se contrai


e sinto o sangue dela esquentando com o risinho irônico de Michelle.

Mila estende a mão para Luísa cumprimentar, ela se levanta e bate com força
na mão da irmã, demonstrando que agora está 100% no jogo.

Tenho a impressão de que Sofia é a única se divertindo nessa história, porque


Mila, Michelle e Luísa parecem determinadas a fazerem o jogo de suas vidas.

Só espero que ninguém se machuque.

***

O jogo já está acontecendo há um bom tempo quando Lara e Helena


percebem o movimento na quadra e se juntam para assistir.

— Me diz que as minhas irmãs estão ganhando — Helena pergunta à Pati,


que está assistindo empolgada ao jogo.

A arquibancada está lotada e tem pelo menos umas trinta crianças e uns dez
monitores assistindo à partida. Algumas crianças estão assistindo da grama
no outro lado do campo, e um grupo de adolescentes fez uma espécie de
piquenique com refrigerantes e pacotes de salgadinhos espalhados pelo
gramado.

— Na verdade estão perdendo de 8 a 3 — Pati explica. — A Mila fez um


ponto de segunda, a Luísa um de largadinha e a Michelle errou um saque.

— Elas estão aquecendo! — Lara diz. Eu já consigo sentir o espírito torcedor


dela se acendendo. — A gente jogava bastante na praia quando éramos mais
novas.

Elas assistem à Sofia atacar uma bola com força em cima do bloqueio de
Mila; a bola resvala nos dedos dela e voa para perto da arquibancada.
Michelle já está comemorando o ponto quando Luísa sai correndo na direção
da bola e se joga, dando um carrinho e pegando a bola com o pé. Ela
consegue chutar para perto da rede, então, mesmo sendo uma bola de
segunda, Mila aproveita e salta para atacar. A bola bate no bloqueio de Sofia
e cai nos pés de Michelle, que não consegue fazer a cobertura a tempo.

O apito de Pepa dando ponto para Mila e Luísa é encoberto por uma gritaria
sem fim das pessoas comemorando a defesa de Luísa, que cá entre nós, foi
bem mais sorte do que habilidade, mas isso não importa.

— Boa! — Mila exclama para a irmã, que corre e pula na sua cintura.

Helena e Lara gritam para elas da arquibancada.

Sofia aplaude o lance com um sorriso, e Michelle joga a bola com força no
chão antes de soltar uma bufada.

— Vamo, porra! — Luísa grita depois de soltar Mila e bater com força nas
suas duas mãos erguidas.

Enquanto Luísa se prepara para sacar, Helena vê Júlio e Júlia caminhando


pela frente da arquibancada, Júlia conta umas notas de dinheiro atrás do
irmão com um sorriso travesso. Assim que eles passam na frente dela, Helena
segura Júlio pelo braço.

— Espera aí, vocês dois — ela diz, fazendo-os parar. — O que vocês estão
aprontando agora?

— Nada, tia! — Júlia se apressa em dizer.

— Eu já disse que não sou tia de vocês — ela diz e espicha os olhos para o
dinheiro na mão dela. — E esse dinheiro aí?

— Que dinheiro? — Júlia pergunta, escondendo as mãos atrás do corpo.

Helena estende a mão, com sua expressão séria que não permite ser
contrariada. Júlia suspira e mostra para ela.

— Estamos organizando uma aposta, só isso.

— Que aposta? — Lara pergunta.

— Do jogo, quem acertar o resultado ou chegar mais perto ganha.

— Como é? — Pati pergunta indignada.

— E quanto é a aposta? — Helena pergunta.

— Quanto você quiser — Júlio responde. — A maioria aposta, tipo, cinco


reais.

— E o que vocês ganham com isso? — Helena pergunta.

— A gente cobra metade do valor como taxa da organização — ele explica de


forma tão articulada que por um segundo Helena esquece que ele tem 10
anos.

— Como é? — Pati repete.

— Isso é jogo de azar — Lara fala, indignada.


— Eu aposto cem reais nas minhas irmãs!

Os olhos de Júlia e Júlio se arregalam.

— HELENA! — Lara repreende.

— Eu não vou apostar contra elas, Lara.

— Não é isso. Você não pode incentivar essas coisas.

— Claro que posso — ela responde. — Eles viram uma oportunidade e estão
aproveitando, não tem nada de errado nisso. Eu acho que eles têm um
excelente faro para os negócios.

— Obrigada, Tia — Júlia diz com um sorriso.

— Dá onde que você tem cem reais assim à mão? — Lara pergunta,
desconfiada.

— Eu guardei algumas notas na capinha do meu celular no primeiro dia aqui


— ela explica.

— Pra quê?

— Não sei, para alguma eventualidade.

— Pra subornar algum monitor a fazer o seu trabalho, né? — Lara diz em um
sussurro entredentes para que os gêmeos não escutem.

No entanto, Pati escuta e suspira:

— Pai eterno!

— Se fosse preciso… — Helena dá de ombros.

Lara apenas leva as mãos aos olhos e Pati assiste tudo um pouco horrorizada.

— Como funciona? — Helena pergunta aos dois. — A aposta é por set ou


pro jogo todo?
— Por set — Júlio explica.

— Tá, eu aposto em 15 a 12 pra Luísa e pra Camila.

Quando Helena termina de negociar com os dois, o placar já está 10x5 para
Michelle e Sofia.

— Você vai ter que torcer por uma virada e tanto — Lara diz depois de
Helena pagar o casal de gêmeos.

— Fiz pra incentivar os negócios deles. — Ela dá de ombros. — Essas duas


aí não têm chance nenhuma nesse set.

***

Como previsto, Sofia e Michelle fecham o primeiro set em 15x9. Um dos


adolescentes do grupo da Michelle e da Mila ganha o bolão e leva R$82,00
graças a aposta generosa de Helena, e os organizadores embolsam os mesmos
R$82,00.

Assim que o valor final do prêmio cai nos ouvidos das crianças, o número de
apostas dobra para o segundo set. Helena repete a aposta inicial e o resultado,
elevando mais uma vez a premiação.

No intervalo, Luísa e Mila se sentam para descansar e tomar uma água.

— A gente tem que sacar mais na Michelle — Luísa diz — ela recepciona
mal e acho que é mais fácil de bloquear também, porque sempre ataca na
diagonal curta.

Mila assente enquanto vira uma garrafinha de água, e eu consigo ver as


faíscas nos olhos das duas.

Por que minhas filhas têm que ser assim competitivas? Cadê todos aqueles
ensinamentos zen que a Mila estudou?

— A Sofia varia muito mais no ataque — Luísa continua —, e as bolas que


ela tenta explorar o bloqueio são quase impossíveis de recuperar. Talvez você
possa tentar tirar a mão se notar que ela vai explorar.
— Mas você pegou uma ali que parecia a Fabizinha, hein — Mila elogia, e
Luísa não contém o sorriso orgulhoso. — As largadinhas por cima do
bloqueio da Sofia também estão caindo, ela não consegue recuperar, e a
Michelle geralmente não consegue chegar a tempo porque ela se posiciona
muito no fundo.

Luísa concorda enquanto termina de virar uma garrafinha de água. Assim que
joga a garrafa no lixo, vira-se para Mila e diz:

— É uma questão de honra agora!

— Bora empatar esse jogo! — Mila se levanta e estende as duas mãos para
Luísa bater.

Com o prêmio da aposta em valor recorde, o clima para o segundo set fica
ainda mais animado, com a torcida fervorosa torcendo pelas suas apostas.

A energia da arquibancada é sentida na quadra, e Sofia começa sacando


viagem com força em cima da Mila.

Pelo jeito elas também discutiram estratégias no intervalo, porque Mila tem
muito mais dificuldade do que Luísa para recepcionar.

Apesar de a bola espirrar na recepção, Luísa consegue levantar na saída de


rede e Mila ataca na paralela, tentando fugir do bloqueio já montado da
Michelle, e consegue colocar a bola na quina, totalmente impossível para
Sofia chegar.

Pepa apita e dá o ponto para Luísa e Mila, que saem na frente.

— Isso! — Mila grita e bate com força na mão de Luísa.

Como combinado, Mila saca em Michelle, que recepciona mal, mas Sofia
corre e consegue salvar a bola, levantando de manchete. Michelle salta e,
como esperado, ataca forte na diagonal curta e em cima de Luísa.

A bola cai com força no pé dela que não consegue sair da rota da bola a
tempo para ter ângulo para recepcionar.
— Essa filha da puta tá tentando me dar uma medalha! — Luísa reclama para
Mila enquanto Michelle e Sofia comemoram o ponto.

— Calma — Mila diz, mas sei que ela também notou que o ataque foi
proposital. — A gente vai levar esse set.

Ao passo que o set avança, praticamente todo mundo do acampamento está


assistindo e gritando na torcida.

Sofia, como é muito popular entre as crianças, principalmente os veteranos,


tem a torcida de muitos, além é claro, de quase toda a staff e do seu pai. Mas,
apesar disso, a maioria está torcendo para Mila e Luísa levarem o jogo para o
tie-break.

E ao que tudo indica é isso mesmo que vai acontecer. Mila e Luísa abriram
quatro pontos de vantagem logo no começo do set e conseguem administrar.

O jogo está 11x7 e é a vez de Luísa sacar.

Luísa saca balanceado em Michelle, que tem que se deslocar para frente para
recepcionar. Por conta disso, Sofia tem dificuldade para levantar e coloca a
bola muito afastada da rede, e Michelle é obrigada a passar para o outro lado
de manchete.

Luísa recepciona, Mila levanta na entrada de rede, mas a bola fica muito
longa pra Luísa e ela apela para uma largadinha.

Sofia, que conseguiu prever o movimento, desiste do bloqueio e vira o corpo


para poder pegar a bola, ela passa para Michelle que aproveita que a bola
vem alta e levanta perfeitamente para Sofia atacar.

Sofia salta sem bloqueio porque nem Mila, nem Luísa conseguem chegar a
tempo na rede, ela ataca com força, e Luísa recepciona de manchete, caindo
de bunda no chão no processo, a bola espirra no braço dela e volta por cima
da rede. Michelle não desperdiça a oportunidade e devolve a bola de xeque
com força em cima de Luísa.

Como ela está sentada no chão, não consegue sair da frente a tempo e a bola
acerta seu rosto em cheio, fazendo-a cair de costas.

A torcida toda se manifesta. Alguns vaiando por notar que Michelle mirou
em Luísa de propósito, outros com caretas de dor pelo golpe.

Mila e Sofia correm para socorrer Luísa, que está com a mão no rosto; assim
que ela tira a mão, as duas veem que tem bastante sangue.

Quando Michelle nota que Luísa está sangrando, ela também se aproxima da
minha filha para se desculpar.

— Foi mal, hein.

— Foi mal? — Mila vira para ela com um vinco na testa. — Você fez de
propósito.

— Deixa ela, Mi — Luísa diz.

Michelle responde alguma coisa, mas Luísa não presta atenção, porque Sofia
se ajoelha na frente dela para ver o machucado.

— Você precisa lavar isso! — ela diz e estende uma das mãos para Luísa se
levantar. — Vem! Eu vou com você!

— Eu tô fora do jogo — Luísa informa, apesar de ser óbvio.

— Mas o jogo não acabou ainda! — Michelle protesta.

Mila apenas revira os olhos.

— Eu te levo na enfermaria — Sofia diz, ignorando Michelle.

Em questão de alguns segundos, Helena e Lara estão na quadra também.

— Tá tudo bem, Lu? — Lara pergunta, preocupada.

— Acho que sim — ela diz, ainda com a mão no nariz, tentando estancar o
sangue.
Ela tira a mão para Lara “examinar” como faria com Alícia ou Lucas.

— Você vai ter que tirar esse piercing — ela diz. — Acho que a bola pegou
nele, por isso está cortado.

— Sim, eu vou levar ela na enfermaria — Sofia repete e pega a mão de Luísa.
— Vamos.

— E o jogo? — Michelle pergunta.

Sofia dá de ombros à pergunta.

— Tivesse pensado nisso antes de acertar minha irmã — Lara diz.

— Eu substituo a Luísa — Helena se oferece.

O tom frio da sua voz faz até Michelle tremer na base por uma fração de
segundos.

— Mas a Sofia também saiu — Mila diz.

— Lara, você substitui ela — Helena determina.

— Eu não quero jogar com ela — responde, apontando com a cabeça para
Michelle, como se ela não estivesse ali ouvindo. Michelle revira os olhos —
E eu acabei de fazer as unhas. — Ela mostra a mão com as unhas pintadas de
turquesa claro.

— Patrícia — Helena grita para Pati —, vem cá.

— Sem a Sofia nem adianta continuar — Michelle argumenta, já largando a


bola.

— Ah, ah! — Mila exclama, segurando Michelle pelo braço. — O jogo não
acabou, amada — ela repete as palavras de Michelle.

Assim que Pati se aproxima, Helena pergunta se ela sabe jogar e a moça
assente com a cabeça, talvez por puro medo de dizer não para Helena.
Para a alegria da plateia, o jogo recomeça e já no primeiro side-out Helena
lança uma bolada no peito de Michelle, que não consegue sair da rota da bola
a tempo.

— Porra é essa!? — ela reclama.

— Foi sem querer! — Helena diz sem muita convicção.

O jogo segue tenso: 12x8.

***

Sofia leva Luísa até o lado de fora do cercado da quadra, onde há um


banheiro, ela entra para pegar algumas folhas de papel-toalha para Luísa
estancar o sangue.

Luísa agradece e leva o papel ao nariz, limpando um pouco seu rosto.

— A gente não precisa ir até a enfermaria — Luísa diz. — Tem um kit de


primeiros socorros lá na sede. Não foi nada demais, eu só preciso limpar isso.

— Deixa eu dar uma olhada? — Sofia pergunta, levando as duas mãos em


direção ao rosto de Luísa, parando no meio do caminho, como se esperando
permissão.

Luísa para e tira o papel-toalha, ela eleva a cabeça para que Sofia possa ver o
ferimento. Sofia leva as duas mãos às bochechas de Luísa guiando seu rosto
um pouco mais para cima e se aproxima para checar.

— Eu acho que o sangue tá vindo todo do piercing mesmo, acho que cortou o
septo — ela diz, ainda perto do rosto de Luísa —, mas parece que é só isso.

Luísa mantém a posição, sem saber direito o que fazer, já que Sofia ainda está
com as duas mãos nas bochechas dela e Luísa não consegue evitar encarar os
olhos âmbar de Sofia.

— Mas você tá com a cara cheia de areia — Sofia diz com um meio sorriso.

Ela eleva o olhar do ferimento para os olhos de Luísa também.


— Uhum. — É tudo que Luísa consegue elaborar.

O olhar de Luísa desce dos olhos para os lábios de Sofia e ela sente sua boca
seca.

Uma comemoração ensurdecedora surpreende as duas, e Sofia recolhe as


mãos, sentindo-se meio sem jeito de repente.

Elas olham para quadra a tempo de ver Mila e Helena se cumprimentando


com força e confiança.

— Acho que o time Lancellotti venceu — Luísa diz com um sorrisinho para
Sofia.

— Ah! Tudo bem! — Sofia retribui o sorriso. — Eu acho que já era previsto,
né, vide a cara que a Helena estava. Superprotetora ela, hein?

— A Helena? — Luísa pergunta, franzindo a testa.

— Todas na verdade, mas a Helena chegou com uma cara de que queria
matar a Michelle… se bem que é compreensível.

Luísa fica surpresa com a ideia de que Helena esteja querendo se vingar por
ela.

— Eu que não queria tá do outro lado da rede agora! — Sofia continua.

— Ah! É por isso que você tá me ajudando? — Luísa pergunta com um


sorriso de divertimento. — Pra não enfrentar a Helena? E eu aqui achando
que era por mim.

— Mas é claro que era pra fugir da Helena! — ela responde com convicção,
mas o sorriso é a resposta que Luísa precisa. — Eu não tenho vergonha de
admitir que tenho medo dela.

— Bom, eu também tenho, pra ser sincera — Luísa confessa.

— Mas… — Sofia diz e pega Luísa pelo pulso — por mais que eu fosse
adorar ver a Helena se vingando da Michelle, a gente tem que limpar esse
rostinho lindo. Vem.

***

O set fecha em 15x12 com a última bola sendo um bloqueio da Helena em


cima da Michelle com direito a encarada prolongada.

Durante o intervalo a torcida fica alvoroçada e já começa a preparar suas


apostas para o último set. Apesar de ter tido mais apostas no segundo set, o
único palpite vencedor foi o de Helena, que havia repetido o mesmo resultado
do primeiro.

— Tia, você ganhou o bolão — Júlio diz se aproximando dela, que está em
uma cadeira de praia sob um guarda-sol tomando água, durante o intervalo.
— Esse é o seu prêmio.

Helena encara o grande bolo de notas baixas e então olha de novo para o
menino que tem um sorriso contente por ter sido ela a vencedora.

— Eu sou jogadora agora — ela diz, sem demonstrar muita emoção. — Eu


não posso receber o prêmio, não seria ético.

— Hm — Júlia parece confusa ao lado do irmão —, mas aí o que a gente faz


nesse caso?

Helena dá de ombros e responde:

— Nesse caso, o dinheiro fica para a organização, eu imagino.

Dois pares de olhos castanho-escuro se arregalam na frente dela e as crianças


ficam sem reação por um momento. Ela nota e resolve facilitar a vida deles:

— Tá, eu preciso me preparar para o tie-break agora — ela diz, despachando


eles com as mãos.

***

Quando Luísa e Sofia chegam à sede, Luísa vai direto para o banheiro, e
Sofia, até o balcão da recepção pegar o kit de primeiros socorros.
Luísa observa o estrago no seu nariz pelo espelho do banheiro. Ela tira o
piercing e percebe que o impacto da bola na joia fez com que a pele rasgasse.
Primeiro ela lava o próprio piercing para tirar o sangue e o coloca na bancada
da pia, em seguida, lava bem o nariz. A essa altura o sangramento já parou e
resta apenas o ferimento, ela percebe que na verdade doeu mais do que de
fato machucou.

Depois do ritual completo, ela volta ao saguão da sede, onde Sofia já está
sentada sobre a mesa de centro de madeira com o kit do seu lado à espera
dela. Luísa abre um sorriso com a cena, ela sabe que não é para tanto, mas
Sofia sempre foi assim. Desde criança ela tem essa característica de ser
excessivamente protetora. Era assim com o João Vitor, o seu irmão mais
novo, e com Luísa também quando ela passava as férias ali.

— Bom, pelo menos minha mãe estaria feliz — Luísa diz, caminhando até
Sofia. — Ela odiava meu piercing!

Essa parte é verdade, sempre falava para ela tirar, mas também não precisava
ser com uma bolada na cara.

— Eu gosto — Sofia responde e gesticula para Luísa se sentar no sofá a sua


frente.

— Hm — Luísa, senta-se de maneira obediente mas argumenta: — não tem


nada ali, já limpei.

— Mas é bom passar um antisséptico — ela diz, pegando um vidro de


Merthiolate e um cotonete —, aquela areia não é muito limpa não.

Luísa faz uma careta com o comentário enquanto Sofia se aproxima dela.
Luísa está sentada e Sofia de pé na sua frente, e minha filha até tenta, mas
não consegue evitar dar uma olhada de cima a baixo em Sofia, que ainda está
de biquíni.

Sofia parece não notar já que está concentrada molhando o cotonete no


remédio. Luísa engole em seco, recosta a cabeça no encosto do sofá e fecha
os olhos se preparando para a ardência, que nunca vem. Em vez disso, sente
apenas uma sensação geladinha na parte que cortou.
— Você lembra daquela vez que você caiu da árvore e ralou os dois joelhos?
— Sofia pergunta, concentrada na ação que desempenha. Luísa sente a
respiração de Sofia próxima da sua. — Você não queria ir na enfermaria
porque senão seu pai ia descobrir que você tinha subido na goiabeira. Eu tive
que fazer os curativos pra você!

— Eu só subi porque você falou que adorava goiaba, eu tava tentando pegar
uma pra você.

— E você conseguiu, pegou umas cinco antes de cair. Estavam todas


bichadas! — Sofia solta uma risada com a memória.

— Bom, aí a culpa não é minha que eles não passavam pesticida nas árvores
… e o que vale é a intenção! — Luísa se defende.

Eu lembro desse dia, Luísa tinha 8 anos nessa época, foi no segundo verão
dela no Luneta. Nesse ano, essas duas aprontaram mais do que eu teria tempo
para contar. Foi no mesmo ano que Luísa quebrou um dente no trepa-trepa.

Sofia sorri para Luísa e concorda:

— Sim, o que vale é a intenção. — Ela termina o que estava fazendo e se


afasta do rosto de Luísa. — Pronto, tá linda de novo!

— Obrigada — Luísa retribui o sorriso, já sentindo falta da proximidade de


Sofia.

— Vamos voltar e ver se teve mesmo uma revanche Lancellotti? — Sofia


pergunta, estendendo a mão para Luísa se levantar.
CAPÍTULO 16
Depois do vôlei, que Mila e Helena ganharam de 10x7 no tie-break, as quatro
irmãs decidem tomar sol no píer flutuante que fica mais ao sul e costuma ser
o mais vazio, já que os brinquedos aquáticos ficam espalhados ao redor do
deck central — o maior dos quatro espalhados pelo lago.

Mila não perde tempo e logo estica uma canga sobre as tábuas e se deita de
bruços para bronzear a parte de trás do corpo. Luísa se senta na borda, e
como esse deck é mais baixo que o principal, é possível colocar os pés na
água, ela solta um gemido de prazer ao afundar os pés; Helena senta ao lado
dela e faz o mesmo. Lara também se senta ao lado de Helena, mas ao
contrário das outras duas, encolhe as pernas junto ao peito.

— Não sei que bicho te mordeu, Mila — diz Helena. — Eu nunca tinha te
visto tão competitiva antes.

— O nome do bicho é Michelle, que guria insuportável, sério — Mila se


queixa.

— Insuportável é elogio. Ela tá me perseguindo desde o primeiro dia, vocês


tão vendo, né? — Luísa diz apontando para o próprio nariz. — Só queria
saber o porquê.

— Tá brincando que você não sabe? — Mila diz por debaixo do chapéu de
palha que ela usa para proteger o rosto do sol.

— Por quê? — Lara e Helena perguntam juntas enquanto Luísa apenas


espera a explicação.

— Porque tá na cara que a Sofia tá a fim da Lu, e a Michelle já admitiu que é


a fim da Sofia.

— Ah, isso explica essa bolada — Helena comenta.

Lara apenas olha com curiosidade para Luísa.

— Espera, o quê? — Luísa se vira com tanta força que quase se desequilibra
e cai do píer. — Mas a Sofia tem namorado!

Mila franze a testa, como se aquela informação não fechasse com o seu
dossiê pessoal sobre o caso.

— Você tem certeza? — Mila pergunta.

— Hm, quase…

— Bom, então melhor você checar as suas fontes, Lu, porque ou ela tá
solteira, ou o namorado dela tá prestes a ser corno.

Luísa sente suas bochechas corando com a conversa e evita olhar para Helena
e Lara, com medo do seu julgamento.

— Pra ele ser corno, a Sofia teria que de fato trair ele — Helena diz de
maneira objetiva. — Lu, ele está prestes a ser corno?

— O quê? Como eu vou saber!?

— Porque ao que tudo indica, a traição seria com você… — Lara intervém.

— Não! Calma aí! — Luísa diz, sentindo-se confusa de repente. — Do que


vocês estão falando? Nós somos amigas, nos reencontramos há, tipo, quatro
dias!

— Ih, fia — Mila diz —, mas isso aí é crush antigo, não nasceu há quatro
dias não!

Mais uma vez, Luísa sente suas bochechas corando.

— Ah — Lara intervém —, mas elas eram crianças, Mila.


— E daí? — Mila diz. — Você era apaixonada pelo neto do Armando quando
tinha uns 9 anos, lembra?

— Meu Deus, é verdade — Lara confirma com um sorriso, deixando a


memória preencher o seu pensamento.

— Inclusive, ele tá um gato hoje em dia — Helena intervém.

— Tá mesmo! — Mila confirma.

— Eu só tô dizendo, que por mais inocente que fosse, você já tinha um crush
na Sofia quando era criança!

Luísa franze a testa, como se estivesse se dando conta disso agora mesmo.

— Mas espera aí — Lara diz. — Lu, você é…

Três pares de olhos cravam em Luísa, cada um com uma expectativa


diferente. Luísa revira os olhos, sabe que uma hora vai ter que falar sobre o
tema, então é melhor acabar com isso de uma vez:

— Sim — ela confirma —, eu sou lésbica. Pra ser sincera, eu achei que fosse
óbvio.

— Pra ser sincera, meio que era — Helena confirma.

Das três, a que Luísa mais teme o julgamento é Lara, que sempre foi a mais
careta das quatro e sempre teve o modelo de vida mais “tradicional”, por
assim dizer.

E é nela que três pares de olhos cravam dessa vez. Lara percebe que as três
esperam uma reação.

— O que vocês estão me olhando? — ela pergunta. — Não fui eu que saí do
armário! — Ela se vira para Luísa. — Eu tenho que te dar parabéns? — ela
pergunta, verdadeiramente confusa.

Luísa solta uma risada.


— Não! Só quero saber se você tá de boas.

— E por que não estaria?

— Sei lá, você é meio careta às vezes.

— Eu posso até ser careta, Luísa, mas não escrota, nem homofóbica! Eu fico
feliz por você ter contado pra gente.

Luísa e Mila abrem um sorriso com a resposta de Lara, enquanto Helena


parece um pouquinho impressionada demais, como se estivesse esperando o
pior da irmã.

Todos nós fazemos muitos julgamentos baseados no estilo de vida uns dos
outros. Mas tudo que importa é que a Lara é uma boa pessoa! E boas pessoas
aceitam outras pessoas como elas são, simples assim.

E eu gostaria muito que Luísa tivesse entendido isso sobre mim também
enquanto eu estava viva e tivesse se sentido segura para me contar.

— Vocês seriam um casal tão fofinho — Mila diz sobre Luísa e Sofia.

— Pra isso a Luísa tem que ser mais rápida que aquela piranha da Michelle
— Helena diz.

— É verdade — Lara concorda. — Pela bolada que ela te deu, ela deve gostar
muito da Sofia.

— Até eu estaria a fim da Sofia se gostasse de mulher — Mila diz e recebe


um olhar fulminante de Luísa. — Quê? Ela ficou gata!

Helena e Lara concordam com a cabeça, e Luísa solta um suspiro exasperado;


ela não precisa da opinião das irmãs sobre sua vida amorosa.

— Tá, mas espera aí — Luísa diz, virando-se pra Mila. — A Michelle te


falou que é a fim da Sofia?

— Falou, porque eu perguntei! Não é como se ela fizesse questão de


esconder né, eu percebi no primeiro dia.
— Será que elas já ficaram? — Luísa pergunta, sentindo certo incômodo de
repente.

— Acho que não, a Michelle meio que desconversou nessa parte.

— Você perguntou isso também?! — Luísa pergunta, espantada.

— Como se você não conhecesse a Mila — retruca Helena.

— Que que tem? — Mila se defende.

— Nada, só espero que ela não pense que fui eu que pedi pra você perguntar
essas coisas — Luísa diz e se vira para Lara, louca para mudar de assunto. —
E que horas você vai?

— Às cinco em ponto. Não pretendo ficar aqui nem um minuto a mais do que
sou obrigada — Lara responde com um suspiro. — Essa foi a semana mais
longa da minha vida.

— Da minha também, juro — Luísa concorda e é seguida por Helena.

— Nem foi tão ruim assim — Mila ameniza.

— É porque você é a mais parecida com o papai nesse sentido — Lara diz. —
A que mais gosta de natureza.

Luísa concorda com a cabeça.

— Mas não vejo a hora de voltar pros meus pequenos.

— Por falar em voltar, você vai mesmo pra esse “programa em família” com
o Felipe naquele resort que as crianças falaram? — Helena questiona.

— Claro que sim, os dois não falam de outra coisa, não quero frustrar os
planos deles.

— Sei — Helena rebate, com sarcasmo.

— O que você quer dizer? — Lara pergunta, já se colocando em modo


defensivo.

— Nada, só que enquanto você fica aí planejando encontros em família, o


Felipe tá lá aproveitando bem a solteirice.

— Você tá fazendo suposições — ela diz —, a verdade é que você nunca foi
com a cara do Felipe. Aliás, vocês.

— Porque será, né? — Helena rebate.

Luísa e Mila se entreolham, pressentindo a tempestade chegar. Mila vira para


Helena e sacode a cabeça de maneira negativa, tentando inibir ela de
continuar. Mas Helena não dá bola e segue:

— E outra, eu não fico fazendo suposições, porque tenho mais o que fazer
da minha vida. Só tô repassando o que a Mila me disse.

Lara vira rapidamente para Mila, que esconde o rosto por entre a aba do
chapéu.

— O que a Mila disse? — Lara pergunta para Helena, mas olhando fixamente
para Mila.

— Que viu ele em uma festa esses dias com outra!

— Quê?

— Puta que pariu — Mila fala baixinho.

— Por que você não me contou, Camila?

— Porque ela achou que você ia preferir não saber — Luísa intervém.

— Você também sabia? — Lara pergunta para Luísa, que se arrepende no


mesmo segundo de ter se metido.

— Pelo amor de Deus, Lara — Helena diz. — Todo mundo sabe! Vê se cria
vergonha nessa cara e assina esse divórcio de uma vez e para de fazer papel
de otária!
— Helena, chega! — Luísa tenta intervir.

— Chega nada! Tá na hora dela ouvir essas coisas, todo mundo sabe que ela
era corna também, inclusive ela, agora fica aí fingindo que tá surpres…

TCHIBUM!

Mila e Luísa assistem arregaladas a Helena caindo na água depois de Lara


empurrá-la com toda sua força.

Lara se volta para Mila e lança um olhar que varia entre ferido e zangado:

— Valeu, Mila.

De dentro da água, Helena acompanha Lara se afastar, batendo pé.

— Será que ela volta depois disso? — Mila pergunta para Luísa que apenas
encolhe os ombros também em dúvida.

Luísa ajuda Helena a sair da água.

— Você mereceu — Luísa diz.

Helena apenas lança um olhar fuzilante para Luísa e sai para tomar um
banho.

— Acho que também preciso dar um tempo desse lugar — Luísa diz,
pensando no seu próprio dilema. — Tá a fim de ir naquela festa com o Pepa,
hoje à noite?

— É música eletrônica, né? — Mila torce um pouco o nariz.

— É.

— Não sei, Lu. Não é muito a minha praia.

— Deixa de ser velha, Mila. Vamos, vai ser legal.

Sem querer, Luísa toca em um tema sensível.


— Tá, tá, vamos!

***

O humor de Helena continua péssimo o resto do dia, depois de um longo


banho para tirar qualquer resquício de água do lago do cabelo, ela se senta na
mesa de Chiquinho com o seu computador para ocupar a mente com o que
mais gosta: trabalho.

Depois de checar alguns e-mails, Elvira se enrosca na sua perna, mas ela está
tão focada que nem se importa. Helena abre mais um e-mail daquele
advogado que eu não conheço e, em questão de segundos, está pegando o
telefone ao lado do computador de Chiquinho para ligar para ele.

Luísa, que sempre foi a mais rápida da família para se arrumar, já está pronta
para a festa e caminha até o saguão para esperar por Mila. Assim que ela pisa
ali, escuta Helena conversando com o tal advogado com certa irritação:

— Não sei, é possível que ela nem volte — ela fala e aguarda uns segundos
—, pois é, esse é mais um motivo. — Outro segundo de silêncio, então
Helena responde irritada: — e o que você está esperando? Resolve isso logo!
Vai adiantando os papéis e me liga quando tiver notícias.

No momento que ela coloca o telefone no gancho, Luísa se debruça sobre o


balcão da recepção e Helena dá um pulo.

— Não sabia que você tava aí.

— Tava faz um tempo já — Luísa diz, casual — E com quem você tava
falando com esse bom humor todo?

— Com o advogado da empresa — ela responde de forma curta, sem dar


brecha para mais perguntas.

— Essa hora? Você paga hora-extra pra essa gente?

— Se ele resolver o meu problema pago até a lua de mel dele — Helena diz,
mais para si do que para Luísa. — E aonde você vai assim arrumada?
Luísa está usando um vestidinho preto com uma camisa xadrez amarrada na
cintura e um coturno que já viu dias melhores.

— Eu e a Mila vamos numa festa com o Pepa, numa cidade aqui perto. Quer
ir também?

— Deus me livre — Helena diz com horror. — Não esqueçam que só a Lara
tá dispensada, nós temos que trabalhar amanhã de manhã!

Para que a Lara pudesse ver os filhos nos fins de semana, ela organizou com
Armando que faria as horas de sábado ao longo da semana, então Lara tem
uma hora a menos de almoço que as irmãs durante a semana e não trabalha
sábado. Por mim, o importante é que estejam levando a sério.

— Sim, senhora! — Mila aparece e bate continência na frente da irmã. —


Vamos? — Ela se vira para Luísa.

— Bora! — Luísa diz, mas antes de sair, ela se vira de novo para Helena. —
Boa noite, Lena, e boa sorte aí com o seu problema!

Mila apenas manda um beijo para irmã antes de seguir Luísa.

E em questão de segundos, Helena está completamente sozinha na sede em


uma sexta-feira à noite… Quer dizer, tem a Elvira, que ainda está nos seus
pés. Mas uma sensação estranha toma conta dela. Ela está mais do que
acostumada a passar as noites sozinha e, muitas das vezes que esteve
acompanhada, desejava estar sozinha.

Mas agora, no entanto, ela está estranhando a sensação. Eu sei que ela está
falando para si mesma que se sente assim porque está no Luneta e não no seu
luxuoso apartamento na Beira Mar Norte. Mas, como eu já disse, de todas,
Helena é que eu sempre consegui ler melhor e sei que está assim porque se
acostumou com a presença das irmãs nas suas noites.

Se acostumou com a “catinga” dos incensos da Mila, com Luísa cantarolando


ou dedilhando no violão, com Lara falando com os filhos enquanto Helena
checa os e-mails, se acostumou com a voz dos sobrinhos nas chamadas de
Zoom. Se acostumou até com Elvira sempre se enrolando nas suas pernas e
soltando pelo por toda a parte.

Desde o primeiro dia, ela reclamou que a sede era muito cheia, muito
barulhenta, muito movimentada, e que era sadismo meu colocá-las para
dividir um único banheiro. Mas agora que está vazio e silencioso, ela sente
falta daquelas que preenchem, até demais na opinião dela, esse silêncio.
CAPÍTULO 17
Os primeiros raios de sol já iluminam o lago e boa parte dos monitores já está
acordado quando Luísa, Mila e Pepa chegam da tal festa. Mila nem precisa
ver que o píer em que geralmente saúda o sol já está cheio de crianças para se
arrepender do rolê, sua cabeça pesada e o embrulho constante no estômago já
fazem isso por ela.

Já é 7h35 quando Pepa estaciona em uma vaga próxima ao refeitório e ele e


Luísa pulam do carro com certa animação, como se ainda sob efeito do que
quer que eles tenham tomado, enquanto Mila sai quase se arrastando.

A verdade é que Mila não é grande fã desse tipo de festa, ela gosta de luaus,
shows acústicos, barzinhos pé na areia, esse tipo de coisa. Essas festas cheias
de luzes e sintéticos não combinam com ela e não a deixam bem.

Quando Pepa pega o caminho oposto ao da sede, que leva ao alojamento dos
monitores, ele cruza com Sofia que está indo na direção do refeitório.

Antes de sumir de vista ele se vira novamente para elas e pergunta:

— E hoje à noite, tá de pé, né? Querem que eu arrume nome na lista?

Helena, que está indo tomar café, encontra com todas ali no lado de fora, na
frente do refeitório.

— Lógico! — Luísa responde com uma animação que certamente não vem
de meios naturais.

— Eu tô fora! — Mila se apressa em dizer.


Pepa ri da expressão dela antes de se virar para ir ao alojamento.

— Você vai sair hoje de novo? — Sofia pergunta, com a expressão um pouco
mais séria que o normal. — Eu ia te convidar pra fazer uma trilha e acampar.

— Ah… — Luísa fica sem reação por alguns segundos. Seu cérebro tentando
recalcular rota, mas antes que ela consiga elaborar alguma resposta, Sofia se
apressa em completar:

— Mas tudo bem, a gente, hm, marca outro dia, sei lá — diz e depois segue
para o refeitório.

— Você vai morrer sozinha! — Helena opina.

— Olha quem fala — Mila provoca, depois vira para Luísa. — Você vai
mesmo na festa hoje?

— Não sei — Luísa responde, um pouco desnorteada. — Você não vai


mesmo?

— Não! Não tenho mais saúde pra isso.

— O que você não tem mais é idade — Helena alfineta. — Tô indo tomar
café, vocês vêm?

— Comer? Agora? Deus me livre — Mila resmunga, sentindo o estômago


revirando.

— A gente só vai tomar um banho e trocar de roupa — Luísa responde, e as


duas pegam o caminho para a sede.

— Tá bom, tentem não se atrasar — Helena diz, sentindo-se contrariada de


ter que tomar café da manhã sozinha. — E, Mila, vê se toma alguma coisa
pra curar essa ressaca.

***

O dia começa penoso para Mila… e pior ainda para Michelle que tem que
aguentar o mau humor e a letargia dela. Não que Michelle estaria de bom
humor se não fosse a Mila, porque desde que Sofia abandonou o jogo de
vôlei para ajudar Luísa, o humor dela foi de mal a pior.

Os adolescentes devem ter notado a energia ruim que elas estavam emanando
e foram espertos o suficiente para ficar na deles nesse sábado. Ou talvez seja
apenas porque ainda é cedo e eles também estão com sono.

Seja como for, pelo menos para os adolescentes, a manhã deve melhorar
logo, já que hoje a atividade de recreação deles é o Banana Boat.

Como Sofia é a única recreadora com carta para pilotar a lancha, e ela e Luísa
são uma dupla, Luísa se vê mais uma vez obrigada a encarar a Banana. Nessa
manhã, Pepa é o salva-vidas no píer central.

— Como vocês podem estar assim dispostos? — Mila pergunta para Luísa e
Pepa que estão prendendo a Banana Boat no encaixe da lancha.

Luísa dá de ombros, mas responde:

— Acho que tô mais acostumada, só isso.

— É — Pepa concorda. — E a gente tem a tarde toda para dormir hoje.

No sábado de tarde, os únicos que trabalham são os seguranças, o enfermeiro


de plantão, e alguns salva-vidas. Pepa, entretanto, como faz o turno completo
durante a semana, folga sábado à tarde e domingo.

Assim como Mila e Michelle, Sofia também não parece com o melhor dos
humores, está com um vinco na testa e respondendo apenas aquilo que é
perguntado. Claro que ela continua sendo gentil e educada, principalmente
com as crianças, mas parece incomodada.

— Vocês vêm comigo — Pepa diz aos adolescentes assim que todos chegam.

Ele os leva para uma tenda montada ao lado do píer com todos os materiais
náuticos, para escolherem os coletes de acordo com o tamanho.

Zeca passa pelo grupo com algumas tábuas para consertar o píer mais ao
norte que está com uma madeira quebrada, e Paçoca o segue entusiasmado.
— Só podemos levar quatro de cada vez por causa do peso — Sofia explica
para as duas monitoras no píer. — Então pelo menos uma de vocês tem que
ficar aqui com o resto do grupo, mas a outra pode ir com a gente na lancha, se
quiser.

— Deus me livre ir nessa lancha — Mila diz, fazendo uma careta e levando a
mão ao estômago. — Eu fico aqui.

— Eu vou na lancha — Michelle diz com um sorriso cínico para Luísa.

— É claro que você vai! — Luísa resmunga, usando todo o autocontrole para
não revirar os olhos.

***

Como a maioria dos adolescentes são fortes o bastante para conseguirem


voltar sozinhos para a Banana, Luísa tem bem menos trabalho do que no
primeiro dia.

Ela está sentada no banco de trás da lancha, próxima ao engate da Banana


Boat. No momento, há apenas três adolescentes, já que o grupo é formado
por número ímpar. Entretanto, os três valem por 10 crianças, porque ficam
falando besteira e provocando uns aos outros o tempo todo; tanto Luísa
quanto Sofia e Michelle já desistiram de tentar controlá-los e apenas deixam
que se divirtam, contanto que não se machuquem, está tudo bem.

Apesar de ter menos trabalho, acredito que Luísa preferisse ter mais o que
fazer, pelo menos o tempo passaria mais rápido e ela não precisaria ficar
ouvindo Michelle, que está no assento ao lado de Sofia, enumerar todas as
coisas que as duas já fizeram juntas.

— Lembra no fim do ano passado — Michelle diz para Sofia —, que a gente
estava naquela festa e dois caras nos desafiaram para uma partida de sinuca?

Sofia apenas concorda com a cabeça.

Ela e Michelle estudam na mesma universidade e, desde que se conheceram


aqui no Luneta no verão passado, Michelle esteve tentando estreitar os laços
com Sofia.

— Deixa eu adivinhar — Luísa diz, recostando-se no banco —, vocês


estavam perdendo, aí você acertou o adversário “sem querer” com o taco. —
Luísa faz aspas com a mão.

Michelle apenas olha com desdém para Luísa e devolve:

— Nós ganhamos, e eles nos pagaram uma garrafa de Gin.

— Acho que a garrafa está lá em casa ainda — Sofia diz, fazendo uma leve
curva à direita se encaminhando para o local do tombo do Banana Boat.

Apesar do lago ser grande e profundo, por questões de segurança há lugares


demarcados para fazer as manobras em que as crianças são derrubadas.

— Então vamos beber qualquer hora — Michelle diz.

— Eu não sou muito fã de Gin — Sofia responde em tom neutro —, mas


você pode ficar com a garrafa se quiser.

Do banco de trás, Luísa solta uma risada, e Michelle lança um olhar mortífero
para ela.

Sem avisar ninguém, Sofia faz a curva fechada para que a Banana vire e tanto
Luísa, quanto Michelle tem que se segurar às pressas para não caírem
também.

***

Creio que até Helena sente pena de Mila na hora do almoço e se abstém de
falar qualquer coisa. Ela parece que vai dormir sobre o prato de feijão, arroz e
falafel a qualquer momento.

Luísa, apesar de não demonstrar, também está cansada. Ela pode até fingir
que essa rotina de pouco sono que ela mantém não a afeta, mas tem horas que
a sua energia simplesmente acaba. E acreditem em mim, é algo que só piora
com a idade, quanto mais velha você fica, mais importante é uma boa noite
de sono.
Depois do almoço, Mila não faz nenhuma cerimônia e segue direto para seu
quarto, ansiosa por uma tarde de sono. Luísa por outro lado, odeia dormir de
dia, então fica vagando de um cômodo para outro na sede sem saber o que
fazer.

Ela está se sentindo culpada e arrependida por ter aceitado ir à festa de hoje
com Pepa. Racionalmente ela sabe que não tem motivo para se sentir dessa
forma, afinal ela não sabia que Sofia iria convidá-la para outra coisa, ainda
assim, sente seu coração pesado.

A ideia de fazer a tal trilha com Sofia ocupa sua mente até que o cansaço, por
fim, a atinge e ela pega no sono no sofá do saguão.

***

Helena passa a tarde vagando pelo terreno do Luneta… Bem, talvez


“vagando” não seja exatamente a palavra. Acho que “estudando” combine
mais.

Ela caminha até próximo a cachoeira, então analisa o terreno que permeia o
riacho até o local em que ele desemboca no lago. Ela tira algumas fotos com
o celular do lago e das redondezas. Sua expressão é séria durante todo o
processo. Por fim, ela tira várias fotos de diversos ângulos da sede.

Gostaria de saber para que ela quer essas fotos, mas coisa boa não deve ser!

***

Luísa acorda algumas horas mais tarde, sentindo-se decidida. Ela toma um
banho, veste um shorts jeans e uma camiseta de estampa retrô e sai em busca
de Sofia.

O único problema é que ela não sabe onde Sofia está. Ela procura pelo
Luneta inteiro, começando pela casa dela, e já está quase aceitando que Sofia
foi sem ela quando a avista no mesmo píer em que Luísa estava com as irmãs
ontem, aquele em que Lara jogou Helena na água.

— Aquele acampamento tá de pé ainda?


Apesar de não perceber Luísa chegando, Sofia não se assusta. Ela apenas vira
a cabeça para acompanhar com os olhos Luísa se aproximando.

— Pensei que você fosse sair com o Pepa — Sofia responde assim que Luísa
se senta ao seu lado.

— Eu mudei de ideia — Luísa diz, tentando soar casual. — E aí, qual é a


trilha?

Sofia abre um sorriso para ela e explica:

— É uma trilha pro lado norte, pra ver as estrelas. Hoje é lua nova e a
previsão é de tempo limpo, então vai estar perfeito.

Luísa sente um aperto no peito, o mesmo que sente toda vez que alguma
coisa a faz lembrar do Leo, mas ela segue em frente.

— Ah, a Lara tava falando disso esses dias. Ela me lembrou de que nós
fizemos essa trilha, eu, você, ela e os nossos pais, você lembra?

— Não muito, quer dizer, eu lembro de você me convencendo a ir, mas não
lembro de muita coisa.

— A Lara disse que nós duas dormimos antes de ver as estrelas.

— Não é exatamente um programa pra criança — Sofia diz com uma


risadinha —, era de noite e é uma trilha meio longa. Seu pai era muito doido!

— O seu também, então!

— Bem… é!

As duas dão uma risada.

Acredite se quiser, mas ver Luísa sorrindo assim em uma conversa sobre o
Leo é algo que cheguei a pensar que nunca aconteceria.

Mas o luto é mesmo algo complicado. Luísa evitou voltar para o Luneta a
todo custo por conta do acidente, e é irônico que, justamente aqui, ela esteja
conseguindo elaborar os sentimentos. E ela está conseguindo, parte porque
finalmente está falando sobre o assunto, e isso, sem dúvida, é mérito de Sofia,
e parte porque está enfrentando aquele que ela julgou ser o vilão desde o
começo.

— E que horas você pretende sair? — Luísa pergunta.

— Hm, lá pelas 18h eu acho, é melhor fazer a trilha de dia, até porque a gente
precisa montar a barraca, então, melhor ter luz.

— Fechou — Luísa diz e olha no relógio de pulso, que marca 16h43. —


Então eu vou arrumar minha mochila.

— Eu também! — Sofia diz, levantando-se também.

— Você não fez ainda?

— Não, eu não ia fazer essa trilha sozinha, né?

— Ah… — Luísa se sente culpada e lisonjeada ao mesmo tempo, mas tenta


disfarçar o embaraço. — Então, a gente se encontra lá na sede perto das seis?

Sofia faz que sim com a cabeça.

— Não esquece do repelente! — ela diz antes de virar à direita para cortar
caminho até a sua casa.
CAPÍTULO 18
Luísa está arrumando uma mochila com um par de pijamas e um kit de
higiene pessoal em seu quarto com a porta aberta, quando vê Mila passar pelo
corredor.

— Mi, espera! — Luísa grita, e Mila dá um passo para trás, voltando ao


campo de visão de Luísa. — Você tem repelente?

Mila dá uma olhada curiosa para a mochila que Luísa está montando.

— Onde você pensa que vai? — Mila pergunta com um sorriso sabido. —
Espera, você não tá pensando em fugir não, né? Já basta a gente não saber se
a Lara vai voltar.

— Não, não — Luísa responde. — Eu vou fazer aquela trilha com a Sofia.

— Hmmm.

— Você tem o repelente ou não?

— Tenho, tenho! — Mila rola os olhos para a impaciência da irmã e sai para
buscar.

Luísa nunca gostou de ninguém se metendo muito na sua vida. Na sua vida
amorosa então, Deus o livre!

Ela sabe que Mila acha que entende o que está acontecendo, mas ela não
entende. Luísa nem cogita essa possibilidade, ela sabe que nunca foi uma boa
namorada-barra-ficante — seja lá como os jovens chamam — e jamais
desperdiçaria a amizade recém-recuperada com Sofia para correr o risco de
ela detestar Luísa depois de algumas semanas juntas.

Munida dos itens básicos e do repelente de Mila, Luísa completa a mochila


com todos os salgadinhos e chocolates que consegue da máquina de vendas
no saguão da sede.

Espero que Sofia leve alguma comida de verdade e água, senão essa menina
vai passar fome.

O mais importante, entretanto, é que eu sei que o último maço de cigarro dela
acabou ontem na festa e ela esqueceu de comprar outro e até agora não
reclamou disso.

— Pronta? — Sofia pergunta, entrando no saguão.

— Quase! — Luísa responde, tentando enfiar um último pacote de


salgadinho na mochila.

Sofia usa uma botina de trilha, calça cargo justa e uma camiseta básica
branca, já Luísa está com um coturno de couro — que definitivamente não é
de trilha —, calça jeans preta toda puída que desconfio que ela já comprou
nesse estado, e uma camiseta de banda com uma camisa xadrez por cima.

— Podemos ir — Luísa diz com um sorriso animado depois de fechar a


mochila. — Ah, pera! — Luísa sai correndo até o quarto e volta segundos
depois com o case do ukulele. — Agora sim!

— Bora então — Sofia diz.

— Divirtam-se — Mila grita, metendo a cara no vão do corredor.

Luísa revira os olhos, mas Sofia agradece com um sorriso sincero.

***

— Você já fez essa trilha muitas vezes? — Luísa pergunta, depois de estarem
caminhando por alguns minutos.

— Na verdade, não muitas, não.


— Ér, mas você sabe chegar lá, né?

— Claro que sei — Sofia responde, rindo. — Mas é uma trilha um pouquinho
difícil, ainda mais a noite, eu fiz com meu pai e meu irmão umas duas vezes.
Mas sempre na lua cheia, e não é a mesma coisa. Quer dizer, pra fazer a trilha
é bom, mas não é a lua certa pra observação.

Sofia tem absoluta razão, essa observação tem que ser feita em uma noite
como a de hoje, de lua nova, sem nenhuma nuvem no céu e bem longe da
poluição. Assim, nem o brilho da lua, nem a precipitação atrapalham a visão
e é possível ver a via Láctea e quase o dobro de constelações que se veria na
cidade.

— E, hm, com o Edu?

— Hã? — Sofia se vira para Luísa, verdadeiramente confusa.

Luísa franze a testa e coça a cabeça, desconfortável com a própria pergunta,


mas agora que começou, melhor ir até o final.

— É que, hm, no primeiro dia aqui eu tava caminhando pelo terreno e ouvi
você falando com esse Edu, eu não tava tentando escutar, nem nada, eu juro,
mas o som se propaga bastante por aqui, sei lá… — Luísa fala rápido e sem
respirar —, enfim, achei que ele era o seu namorado.

— Quê? — Sofia pergunta, surpresa. — Você tá doida? O Edu é meu amigo,


meu melhor amigo, ele estuda comigo!

— Ah…

— E ele é, tipo, super gay!

— Ahhh… — Luísa exclama, finalmente ligando os pontos.

— E eu também — Sofia acrescenta, com certa timidez.

Luísa se vira para Sofia como um cachorro se vira para o dono ao ouvir a
palavra “passeio”. Acho que, por alguma razão, ela não acreditou muito na
teoria de Mila de que Sofia pudesse gostar de meninas também. Ela estuda a
expressão de Sofia e percebe que ela está apreensiva, então resolve consertar.

— Então com alguma namorada? … a trilha eu quero dizer. Tipo, você já fez
a trilha com alguma namorada — Luísa se embola toda na pergunta. — Se
você falar que trouxe a Michelle eu volto agora mesmo — Brinca, mas sei
que é o jeito dela de averiguar o que aconteceu entre as duas.

Sofia franze o nariz com a insinuação.

— Eu nunca fiquei com a Michelle!

— Por quê? — pergunta, tirando um galho de árvore do caminho. — Uma


pessoa tão agradável!

Sofia deixa escapar uma risadinha do comentário, apesar de não ser do seu
feitio ser maldosa como as minhas filhas.

Sim, as quatro puxaram isso de mim e, não, não me orgulho disso.

— Acredite se quiser, ela não era assim ano passado! Quer dizer, ela sempre
teve, hm, personalidade forte, mas era bem mais de boas. Acho que é você
que desperta esse lado dela, hein.

— Ah, que honra! — Luísa brinca.

— Na verdade, eu só tive uma namorada mais séria — Sofia conta.

Luísa se vira para ela, para escutar a história, sentindo certo alívio de o tempo
verbal ser no passado.

Espero que em algum momento os sentimentos dessa menina fiquem menos


conflitantes, porque eu já estou ficando tonta com esse impasse entre “não
quero estragar a amizade” vs. “não quero mais ninguém namorando com ela”.

— A gente namorou por um ano mais ou menos — Sofia continua.

— E por que vocês terminaram?

— Não sei direito, pra ser sincera, a gente se dava super bem, eu gostava
bastante dela e acho que ela de mim, mas, sei lá, nós éramos mais amigas do
que namoradas. Hoje em dia ela namora uma outra guria, e eu percebo a
diferença. Tipo, ela é muito apaixonada por essa mina. Ela não era assim
apaixonada por mim, nem eu por ela, na verdade.

— E vocês ainda são amigas?

— Sim, super. Ela é uma das minhas melhores amigas até hoje.

— Que bom que não estragou a amizade — Luísa comenta.

— Às vezes, a amizade vale muito mais — Sofia diz, checando a bússola.

— Às vezes vale… — Luísa concorda, sentindo um aperto na boca do


estômago.

— Olha, não briga comigo, mas acho que a gente saiu um pouco da rota! —
Sofia informa, ainda olhando para bússola.

— Por favor, não me diz que a gente tá perdida — Luísa fala, sentindo certo
alívio com a mudança de assunto. — Eu assisti A Bruxa de Blair, eu sei o que
acontece nesse tipo de floresta.

Sofia solta uma risada e coloca a bússola novamente no bolso.

— Não se preocupa, nós só vamos ter que andar um pouco mais.

***

Apesar do desvio, elas chegam na parte mais alta do morro, que é uma
campina de vegetação rasteira, ainda antes de escurecer. Mesmo assim elas
acendem suas lanternas para iluminar o terreno e poder montar a barraca. O
sol já se pôs há algum tempo e o lusco-fusco não as deixa enxergar grande
coisa.

Existem alguns vestígios de outros acampamentos nessa mesma área, como o


chão perfeitamente plano bem em frente a uma grande rocha, um local
estratégico protegido do vento, ideal para uma barraca. Há também um
círculo de pedras que só pode servir para o propósito de acender fogo.
Luísa termina de montar a barraca enquanto Sofia vai atrás de gravetos e
galhos para montar uma fogueira. Elas terminam o trabalho quase juntas,
Luísa arruma os sacos de dormir e em seguida estende uma manta sobre a
relva bem em frente à fogueira para que possam se sentar.

Em menos de trinta minutos está tudo pronto. A vista do lago alguns


quilômetros abaixo já sumiu, e agora a única coisa que se pode distinguir são
os contornos das montanhas no horizonte aos poucos se mesclando a um céu
azul noturno.

Luísa entra na barraca para pegar seu ukulele enquanto Sofia acende a
fogueira, já que segundo ela, não precisa de ajuda para uma coisa tão simples.

E de fato não precisa mesmo, fica bastante claro que Sofia está acostumada a
acampar quando ela acende a fogueira em questão de minutos.

Assim que as chamas começam a crescer, o entorno se torna mais uma vez
visível e o calor da fogueira ajuda a aquecê-las já que a brisa da noite traz
consigo um ar mais frio. Agora, é possível enxergar o tronco das árvores mais
próximas, a rocha e o azul royal da barraca se destacando.

Luísa afina o ukulele, enquanto observa Sofia se movendo ao redor do fogo,


ela alimenta as chamas com galhos mais grossos e em seguida tira uma
garrafa de vinho tinto e um pote com legumes da mochila.

— Hm, o que você tem aí? — Luísa pergunta.

— Merlot e espetinho!

— Delícia.

Sofia também tira da mochila duas canecas de lata e um saca-rolha, ela passa
uma das canecas para Luísa.

— Você quer que eu abra? — Luísa pergunta, largando o ukulele e pegando a


garrafa que Sofia deixou de lado. O rótulo diz “Vinícola Corbelli, desde
1952”. — Ah, eu conheço a dona da vinícola.

— Não precisa — Sofia diz e pega a garrafa da mão de Luísa para abrir. —
Eu conheço a namorada dela, ela participou do acampamento uns dois anos.

— A Laura?

— Uhum.

— Mundo pequeno!

— Demais.

Sofia enfim abre a garrafa e serve as duas canecas, elas brindam sob as
estrelas que já começam a pipocar no céu.

— E o que você fez nos verões seguintes? — Sofia pergunta —Depois que
parou de vir pra cá, eu quero dizer.

Luísa perde um tempo pensando na resposta. É estranho, ela não sabe ao


certo o que fez nas semanas que normalmente estaria no Luneta.
Simplesmente apagou o acampamento da sua mente desde aquele ano.

Ela dá um gole no vinho e responde:

— As coisas mudaram meio rápido naquela época. Tipo, do nada, minhas


irmãs eram todas adultas e eu era a única criança. Mas a Mila sempre me
levava pra praia com ela, diferente da Lara e da Helena que tinham vergonha
de levar a irmãzinha para qualquer lugar. — Ela dá uma risada. Mas é
verdade, Lara e Helena foram adolescentes bem chatinhas.

Sem realmente se dar conta, Luísa coloca a caneca de lado e começa a tocar
os acordes de Here Comes the Sun dos Beatles. Mas sua atenção continua
toda em Sofia, que pergunta:

— E a sua mãe?

— Ela tava sempre trabalhando. Às vezes ela tirava uma folga e a gente fazia
alguma viagem curta, mas nunca todo mundo.

— Engraçado, eu lembro de vocês todas tão unidas!


— A gente era mesmo, mas as coisas mudaram depois que o meu pai morreu.
Como eu disse, minha mãe só trabalhava, e eu sei que não era culpa dela, que
ela realmente ficou sobrecarregada, mesmo tendo a ajuda da Helena. Mas sei
lá, as coisas simplesmente mudaram depois disso. As minhas últimas
lembranças de nós todas reunidas são aqui no Luneta ainda. Fora os velórios,
é claro — ela diz com certo sarcasmo.

— Falando em velório — Sofia diz e Luísa sente um desconforto. — Eu fui


no da sua mãe, eu e o meu pai. Mas você não estava lá naquela hora. Estava
só a Mila.

— Sério?

Em momento nenhum passou pela cabeça de Luísa de que ela e Sofia


poderiam ter se visto em qualquer lugar fora do Luneta, nem mesmo no meu
velório.

— Eu gostava da sua mãe. Ela sempre foi um amor comigo e com o Jovi.

Luísa esboça um sorriso melancólico e assente com a cabeça. Ambas tomam


mais um gole de vinho.

— Sabe o que eu me dei conta agora? — Luísa pergunta. — De que a gente


mora na mesma cidade!

Sofia se mudou para Florianópolis quando começou a estudar na


Universidade Federal.

— É verdade — Sofia diz, não parecendo surpresa. Acho que ela já tinha
feito essa conexão antes de Luísa.

— Eu nem acredito que a gente mora na mesma cidade e nunca se esbarrou.

— Será que não?

— Eu me lembraria de ter te visto — Luísa diz com convicção.

Sofia abre um sorriso encabulado, mas continua:


— O que eu quis dizer é, será que a gente nunca esteve no mesmo lugar, ao
mesmo tempo? Você nunca tocou num dos bares da Federal?

— Você tá insinuando que teria esquecido de mim se tivesse me visto tocar?


— Luísa pergunta com uma falsa carranca.

— O quê?! Não! Não é isso! Eu lembraria de você. Só que talvez eu não


tivesse te visto, sei lá. Ah… deixa pra lá.

Luísa solta uma risada, é a primeira vez que vê Sofia tropeçando nas palavras
e perdendo a pose tranquila.

— Eu tô brincando! Eu só toquei no centro e em algumas praias. Mas, de


qualquer forma, só faz alguns meses que eu voltei.

Sofia relaxa novamente.

— Bom, a gente tem que marcar pra sei lá, se encontrar por lá!

— Claro! — Luísa concorda com veemência.

— Falando nisso, esse ukulele aí é só figuração?

— Não, senhora! O que você quer ouvir?

— Você sabe tocar alguma da Corinne Bailey Rae?

Luísa abre um sorriso e começa a tocar Put Your Records On.

***

Quando o alarme de Sofia toca às 22h, elas já estão apagando a fogueira para
que não tenha nenhuma interferência, junto com a claridade da fogueira
esmaecendo, elas notam as luzes do Luneta sendo apagadas.

Apesar de estarem alguns quilômetros ao norte da área construída, toda luz


artificial atrapalha a observação. Mas depois das 22h apenas as luzes dos
postos dos seguranças ficam acesas, melhorando bastante a visibilidade.
Apesar das duas lanternas ainda acesas, Luísa já consegue perceber que
aquele é o céu mais estrelado que ela já viu. Sofia se deita na manta e apaga
sua lanterna, Luísa faz o mesmo, mas mantém a lanterna acesa.

— Tá com medo? — Sofia brinca. — Esquece A Bruxa de Blair, Luísa.

Luísa ilumina o próprio rosto, como se fosse contar uma história de terror.

— Eu não consigo — diz com uma voz rouca, tentando soar assustadora.

— Apaga isso logo!

— Ha! Quem é que está com medo agora? — Luísa brinca, mas apaga em
seguida. — Puta que pariu! — exclama ao ver o céu sem nenhuma
interferência pela primeira vez.

— O tempo tá perfeito hoje — Sofia comenta. — Eu nunca vi assim.

— Eu nunca vi um céu assim em lugar nenhum — Luísa diz.

Depois de alguns minutos apenas observando em silêncio, Luísa continua:

— Eu entendo por que meu pai curtia tanto isso. É calmo ficar aqui, tipo,
uma sensação de paz.

— É mesmo.

— Você acredita em vida após a morte? — Luísa pergunta, de repente.

A noite é de lua nova e o brilho das estrelas sozinho não é suficiente para que
elas possam ver uma à outra, apesar disso, Sofia vira a cabeça em direção a
Luísa.

— Não sei — ela diz em um quase sussurro. — Talvez.

— Sei lá, olha esse céu, o universo é tão grande, não é possível que a gente
não vá para lugar nenhum!

Luísa também se vira na direção de Sofia, mesmo que a escuridão só permita


que elas vejam parte da silhueta, elas podem sentir o calor e a respiração uma
da outra.

— Sem nenhuma prova que negue essa teoria — Sofia diz —, eu prefiro
acreditar que sim, que a gente vai pra algum lugar.

— Eu tô feliz de ter vindo.

— Eu também!

Eu sinto que Sofia gostaria de falar mais alguma coisa, mas ela se contém, e
ambas apenas aproveitam o momento.

— Você lembra daquele verão que a gente ficou de castigo porque colocou
um sapo na cama da Duda Dedo-Duro? — Sofia pergunta de repente.

— Claro que eu lembro! — Luísa confirma. — Aquela garota te odiava, acho


que só porque o seu pai era o chefe do acampamento.

— E porque ela queria ser sua amiga a qualquer custo.

— Minha?

— É! Ela era obcecada por você e não gostava de mim, porque a gente tava
sempre juntas!

— Eu não sabia disso!

— Meu Deus, Luísa, você é muito lenta!

— Tô começando a achar que eu sou mesmo — ela diz, coçando a cabeça.


Afinal, é a segunda vez em dois dias que insinuam isso. — Mas não foi por
isso que eu coloquei o sapo, foi?

— Não! — Sofia diz, já se acostumando em ter que lembrar Luísa dos


detalhes menores do último verão que passaram no Luneta. — Foi porque
aquela X9 contou para os monitores que a gente tinha doces e chocolates
escondidos no alojamento.
— Ah! É verdade! Ela entregou todo o contrabando pra Ana Catarina, aquela
mulher era pior que a Betina.

— Era mesmo, meu Deus, eu morria de medo dela.

— A Duda Dedo-Duro mereceu muito aquele sapo… Calma aí, foi nessa vez
que seu pai baniu a gente da última rodada da gincana?

— Foi, porque a guria fez um escândalo quando achou o sapo. Mas a gente
passou o dia lá em casa maratonando todos os meus DVDs da Disney e
comendo mais pipoca do que a gente aguentava.

— Muito melhor que a gincana.

— Com certeza. Meu pai sempre foi meio molenga na hora de dar castigo. Eu
só ficava com medo quando ele ameaçava colocar a gente em cabanas
separadas.

Luísa apenas sorri com as lembranças e uma sensação de conforto preenche


seu coração. Ela percebe que aquele verão foi muito diferente do que ela
achava que tinha sido. Pelas histórias que Sofia conta e pelas partes que ela
conseguiu recuperar, ela se dá conta de que apesar de estar triste naqueles
dias, ainda assim ela e Sofia se divertiram bastante naquele ano.

— Você ouviu isso? — Luísa pergunta, num pinote.

— Luísa, é uma floresta, o que você espera?

— Mas parecia perto!

— Deixa de ser medrosa, menina — Sofia diz com uma risada.

— Epa! Medrosa não!

— Então para de se preocupar. Não tem urso aqui — ela fala em tom de
piada. — Deve ser só um esquilo, sei lá.

— Bom, eu não gosto de esquilo.


— O que tem pra não gostar num esquilo, tadinho?

— Quando eu era criança, eu fiz uma trilha com o meu pai lá em Floripa e
um esquilo pulou no meu cabelo. Ele não queria sair de jeito nenhum. Você
sabia que eles mordem?

É verdade isso, eu juro que não sei por que deixava o Leo levar a Luísa para
esses programas, era sempre um pior que o outro.

Sofia ri alto do caso, mas se compadece de Luísa e procura a sua mão no


escuro, quando encontra, segura na sua e acaricia o dorso com o dedão.

— Se um esquilo te atacar, eu bato nele com a lanterna, tá bom?

— Hm… Uhum. — É tudo que Luísa consegue formular diante do contato


inesperado.

Ela sente a boca seca e uma dificuldade enorme de controlar o som da sua
respiração que de repente parece excessivamente alto e descompassado. Mas
passado o embaraço inicial, tudo se torna natural e confortável.

***

As duas ficam ali por muito, muito tempo apenas observando o céu e
conversando. Luísa não se lembra da última vez que manteve uma conversa
por tanto tempo com uma pessoa sem se entediar.

Por volta de uma da manhã, decidem que é hora de dormir. Quer dizer, Sofia
decide que é hora de dormir e Luísa não tem muita escolha senão ir também.

Sofia se solidariza com Luísa e ambas escovam os dentes juntas com a


lanterna iluminando os arredores. Para ser sincera, não sei se Luísa tem mais
medo de ficar sozinha com os bichos ou com os seus pensamentos, mas Sofia
não a questiona, apenas a acompanha enquanto fazem a rotina de higiene do
lado de fora da barraca.

O ambiente é totalmente escuro e, apesar de alguns ruídos da floresta, até que


é bem silencioso, então nenhuma das duas demora muito para pegar no sono.
Por algumas horas tudo é calmo e silencioso, mas às 3h42, Sofia acorda com
um empurrão e com Luísa resmungando alguma coisa.

Ela não demora muito para entender que Luísa está tendo um pesadelo.

Sofia acende a lanterna do seu celular, que está mais à mão que a lanterna que
está pendurada no teto, e faz uma meia-luz menos agressiva aos olhos.

— Lu?

Luísa não escuta e continua presa ao sonho.

— Lu! — Sofia coloca a mão no rosto dela, para acordá-la. — Lu, acorda!

Luísa continua se remexendo e Sofia percebe uma camada de suor na sua


testa.

— LUÍSA! — ela chama com mais energia.

Luísa finalmente acorda em um salto.

Ela parece assustada com o sonho e com a proximidade da amiga. Sofia nota
os olhos de Luísa confusos, tentando entender o que está acontecendo.

— Calma, você teve um pesadelo — Sofia esclarece, colocando mais uma


vez a mão no rosto dela. — Já passou. Calma.

A respiração de Luísa ainda está pesada, mas ela parece mais desperta.

— Já passou — Sofia repete e move a mão do rosto para o peito de Luísa,


sentindo o batimento acelerado.

Luísa deita a cabeça mais uma vez no travesseiro, leva a mão aos olhos e
solta um grunhido. Não importa quantas vezes ela já tenha tido esses
pesadelos, ela nunca vai se acostumar com eles.

— Você, hm, quer contar sobre o que tava sonhando?

Sofia parece um pouco apreensiva e seu tom é incerto. Tenho a impressão de


que ela não tem certeza de como ajudar e tem medo de parecer intrometida.
Luísa sacode a cabeça de forma negativa.

Ela nunca contou os pesadelos que tinha, nem quando era criança, a única
pessoa com quem eu sei que ela falou foi a psicóloga, que obviamente,
sempre guardou segredo.

Depois de um tempo, quando a respiração de Luísa começa a acalmar, Sofia


tira a mão de seu peito, dando mais espaço.

— Era com a Bruxa de Blair, né? — Sofia pergunta, esboçando um sorriso,


esforçando-se para deixar o clima mais leve.

Luísa solta uma risada verdadeira e se vira para Sofia.

— Era com a minha mãe — Luísa diz, depois de uns segundos. — Eu tive
esses pesadelos por bastante tempo depois que o meu pai morreu e, hm,
depois que a minha mãe morreu, eles voltaram.

Sofia está com a cabeça apoiada sobre o próprio braço e leva a mão até os
cabelos de Luísa.

— A maioria é com eles morrendo e eu assistindo sem fazer nada. Nesse, a


minha mãe se afogava no lago e me ligava, e, no sonho, era como se eu
pudesse, sei lá, salvar ela se eu atendesse a ligação, mas eu não atendia,
ficava olhando ela se afogando e o celular chamando.

Sofia continua o cafuné nos cabelos de Luísa.

Eu gostaria que ela desse um abraço na minha filha. Na verdade, eu gostaria


de dar um abraço nela, mas já que eu não posso, gostaria que Sofia desse.
Mas nós duas sabemos que Luísa é um pouco arredia nesse aspecto e é
melhor não pressionar.

— Eu sinto muito — Sofia diz em um sussurro, sem saber mais o que falar.

— Ela me ligou naquele dia — Luísa conta, pela primeira vez. — No dia que
ela morreu, ela me ligou naquela manhã, mas eu não atendi, eu estava
ensaiando e disse para mim mesma que ligava depois. Quando a Helena me
ligou mais tarde, eu sabia que não era boa notícia.
— Você não tinha como saber, Lu.

Luísa sacode a cabeça em negativa.; ela sente a garganta se fechar e os olhos


começando a marejar.

— Ela morreu achando que eu não queria falar com ela.

Pela primeira vez, nesses três meses, Luísa deixa os sentimentos


transbordarem e as lágrimas escorrem de seus olhos.

Dessa vez, Sofia não contém o impulso e, sem saber o que dizer, resolve agir:

— Vem cá — diz, puxando Luísa para um abraço.

Luísa enterra a cabeça sob o queixo de Sofia e, apesar de estarem em dois


sacos de dormir separados, Sofia abraça Luísa com os dois braços e a traz
para o mais próximo que consegue.

Ficam assim por um bom tempo, até que Luísa finalmente para de chorar e
Sofia percebe que ela pegou mais uma vez no sono. Ela apaga a lanterna do
seu celular e o coloca de lado com cuidado para não perturbar Luísa que
ainda está em seu abraço.

***

Luísa acorda se sentindo um pouco confusa e leva alguns segundos para


lembrar onde está. Ela percebe que há um peso diferente sobre a sua cintura e
nota o braço de Sofia a abraçando por trás.

Ela se lembra do pesadelo e de como Sofia tentou acalmá-la e percebe que


deve ter se virado no meio da noite; Sofia está completamente encaixada nela
e a segura com certa força, como se estivesse tentando evitar que ela fuja.

Ela fica ali por algum tempo, quieta, apenas sentindo a presença e a
respiração suave de Sofia contra sua nuca, e desejando que o tempo parasse.

É um momento de paz, conforto e segurança. Algo que ela nunca sentiu com
a simples presença de outra pessoa antes, pelo menos não dessa forma.
Por um momento, Luísa cogita voltar a dormir, mesmo não sendo uma coisa
que ela costuma fazer, mas o pensamento é rapidamente interrompido quando
o celular de Sofia desperta e ambas dão um pulo.

— Que isso? É domingo, louca! — Luísa diz quando Sofia desliga o celular.

— Eu esqueci de desativar! — Sofia se desculpa e depois se espreguiça.

Ela tenta ser discreta na hora de tirar o braço debaixo da cabeça de Luísa, que
se apressa em ajudar levantando a cabeça para que o momento seja menos
esquisito.

— Você, hm — Sofia gagueja —, você conseguiu dormir bem?

— Consegui — Luísa responde, virando-se para ela. — Desculpa pela cena.

— Não tem por que se desculpar, Lu. Você não tem culpa de nada, nem dos
pesadelos nem do que aconteceu.

Luísa assente com a cabeça.

— Obrigada por, hm… me acalmar e escutar.

— Sempre que você precisar.

Luísa sabe instintivamente que sim, que pode contar com Sofia. Assim como
Sofia pode contar com ela. E apesar de não terem se visto nos últimos onze
anos, existe uma sensação de familiaridade e confiança que nunca deixou de
estar ali.

Sofia nem precisaria ter falado, está no seu olhar. Luísa fica presa nesse
olhar, nesse rosto lindo e gentil; e se pergunta como tudo pode ser tão igual e
tão diferente ao mesmo tempo.

Sofia sorri e traz Luísa para o presente:

— Se a gente for agora ainda dá tempo de chegar pro café. Eu sei que você
gosta de tomar café da manhã com as suas irmãs.
— Gosto? — Luísa pergunta confusa enquanto se levanta sem pressa e
começa a enrolar seu saco de dormir.

— É o que parece, vocês estão sempre juntas. — Sofia faz o mesmo.

— Se você visse a Lara jogando a Helena no lago na sexta, teria uma outra
opinião — Luísa comenta com um sorriso divertido.

— A Lara fez isso? E sobreviveu?

— Ih, nessa treta aí quem correu risco de vida foi a Helena, eu nem sei se a
Lara volta pra cá, espero que sim. Mas essa é uma longa história — Luísa
diz. — E tudo bem se no café da manhã de hoje for só eu e você.

Sofia não esconde a surpresa, mas logo abre um enorme sorriso.

— Tudo bem, então — ela abre sua mochila e retira a jaqueta que usou ontem
à noite e que estava dobrada e guardada, bem diferente das coisas de Luísa
que estão espalhadas por toda a extensão do seu lado da barraca.

Sofia abre o zíper pra sair da barraca e dá de cara com a vista.

— Uau! Vem ver isso, Luísa.

Não é tão cedo, mas só agora o sol está saindo por de trás das montanhas, e as
cores desse nascer do sol não é algo que se vê todos os dias. O dourado forma
uma linha brilhante e intensa contornando cada um dos morros no horizonte e
aos poucos se espalha também pela superfície do lago.
CAPÍTULO 19
No domingo à noite, Mila está sentada em uma poltrona no saguão da sede,
Luísa está jogada na poltrona ao lado com a cabeça pendendo levemente para
trás e as pernas sobre os braços da poltrona.

Cada uma das duas está em seu celular; Luísa apenas escuta música com
fones de ouvido já que nem o sinal da sua operadora, nem o do Wi-Fi
funcionam direito. Mila, por outro lado, está sentada de pernas cruzadas
como um buda, com Elvira no colo e digita alguma coisa animadamente.

Luísa nota a concentração de Mila digitando e tira um dos fones:

— Que sacanagem! Por que só o meu sinal não funciona?

— Não sei, o meu é a primeira vez que tá funcionando aqui dentro também,
melhor aproveitar — Mila responde sem tirar os olhos e os dedos da tela.

— Com quem você tá falando com essa cara boba aí? — Luísa pergunta,
cutucando a irmã com o pé.

— Com o Murilo.

— O surfista do velório?

— Sim — responde sem prestar muita atenção em Luísa.

— Pelo jeito, o Pepa não tem chance mesmo.

— Ao contrário do que vocês pensam, eu tenho critérios — Mila retruca com


sua calma habitual e sua fala cadenciada. — E o Pepa é muito novinho.
— E não tem nada na cabeça — completa Helena do outro lado do balcão,
fechando o seu notebook e participando pela primeira vez da conversa.

Ela caminha e se senta no sofá, de frente para as irmãs.

— O Murilo tá perguntando se pode vir me ver no meu aniversário na quinta.


O que vocês acham, é permitido?

Luísa vira o pescoço rápido na direção de Helena e percebe que ela não foi a
única a esquecer que o aniversário de Mila estava chegando.

— Permitido é — Helena diz, sem demonstrar que havia esquecido a data. —


Não tem nenhuma cláusula que proíbe a gente de receber visitas.

— Desde que você não coloque ele pra trabalhar no seu lugar, tá tudo certo
— Luísa brinca.

— Vem cá — Helena chama a atenção das outras duas —, já não era pra Lara
ter voltado, não?

— Verdade. Ela sempre fala que odeia dirigir à noite — Luísa acrescenta.

— Já passa das dez — Helena informa um tanto quanto inquieta depois de


consultar seu relógio de pulso.

— Será que ela decidiu não voltar mais? — Mila considera.

As três se olham e apesar de Helena não demonstrar, todas se sentem


culpadas pela situação.

— Alguém tinha que contar pra ela — Helena responde de maneira


defensiva, antes mesmo de Mila e Luísa falarem alguma coisa.

— Mas não podia esperar a gente tá com a herança na mão, não? — Luísa
rebate.

— Ela é nossa irmã, Lu, ela é mais importante que a herança — Mila
pondera.
— Ah, porque você foi a primeira a se prontificar a contar — Luísa revida de
maneira sarcástica.

— Tá, tá, tem razão — Mila levanta as mãos assumindo sua culpa.

— Ela não seria tão burra de abrir mão da herança por causa do Felipe —
Helena considera.

— Talvez ela simplesmente tenha decidido voltar amanhã cedo. — Mila


ameniza.

— O contrato diz que ela pode sair às 17h de sexta, mas precisa voltar pro
acampamento no domingo à noite — Helena diz.

— Mas que diabo — Luísa resmunga —, desde quando a Lara é assim


rancorosa? Esse é o papel da Helena!

— Vai se catar, Luísa — Helena retruca.

— A Lu tem razão, a Lara não é de ficar remoendo as coisas, não.

— Mas pelo jeito está remoendo essa coisa! — Helena diz. —Mas quer
saber? Eu não fiquei uma semana nessa merda à toa, se ela não aparecer eu
vou buscar ela pelos cabel…

— Que drama, guria! — Lara interrompe a irmã, entrando na sala. — Eu já tô


aqui.

As outras três olham para ela com expectativa e um silêncio se instala.

— Eu tô morta, preciso tomar um banho e dormir…

—Nã, nã, nã — Helena interrompe —, espera aí porque eu tenho um anúncio


para fazer!

— Você tá grávida? — Luísa pergunta, endireitando-se na cadeira.

— O quê? Tá louca, Luísa!? Deus me livre. Não, não é isso.


— Então o que é? — Mila pergunta, interessada e levemente preocupada ao
mesmo tempo.

— Lara, senta aí — Helena diz e aponta para uma poltrona; assim que Lara se
senta, Helena continua: — Eu tomei uma decisão.

Três pares de olhos encaram Helena, que adora fazer essas pausas, só para
ver a cara de ansiedade de todos esperando que ela continue. Clássica
manobra para demonstrar poder.

— Eu vou ficar com o acampamento!

— Como é? — Mila pergunta, sentindo um misto estranho de sensações.

— Espera — Luísa diz — tipo, ficar com ele para a gente pegar a herança?

— Você quer ficar com o acampamento? — Lara pergunta, desconfiada.

— Sim, não sei por que a surpresa — Helena diz, como se fosse a coisa mais
previsível do mundo. — Eu acho que é um bom investimento. Andei
observando essa semana e acredito que pode ser um negócio lucrativo. Acho
que o Chiquinho faz bem a parte burocrática e eu teria que vir aqui umas
poucas vezes.

Mila, Luísa e Lara a encaram como se ela tivesse dito que teve um contato
imediato de terceiro grau.

Nenhuma delas sabe o que falar e ficam esperando, como se alguma parte da
informação estivesse faltando. Por um lado, a motivação de Helena faz
sentido, por outro não faz sentido nenhum.

Creio que todas esperassem que o Luneta fosse sobrar para a Mila, inclusive
a Mila.

— Bom — Helena diz e se levanta para ir dormir —, era isso! A gente só


precisa completar esse mês e resgatar nossa herança! Boa noite.

Ela se vira e sai, deixando as três em estado quase catatônico. Tudo que
conseguem fazer é compartilhar um olhar curioso.
***

A segunda-feira amanhece chuvosa no Luneta, e com a chuva vem o tédio.

Sabe aquela frase “pior que criança em dia de chuva?”, pois é, Helena não
consegue pensar em nada que seja pior que criança em dia de chuva.

Elas estão frenéticas e com mais energia do que em qualquer um dos outros
dias de sol, parece que decidiram que para compensar não estarem ao ar livre,
devem fazer todas as brincadeiras existentes no catálogo do Luneta. Deve
existir alguma explicação cósmica para esse fenômeno, mas seja ela qual for,
Helena está à beira de um ataque de nervos e não é nem meio-dia ainda.

Existe todo um protocolo para dias como esse: as crianças são levadas para o
ginásio que tem três quadras, sala de jogos completa, além de ser adjacente à
sala de artes e música. Ou seja, atividades não faltam.

Mas não importa quantas atividades estejam disponíveis, as crianças estão


impacientes, querendo ir para o lago e para o parque.

O grupo de Pati e Helena está em uma das quadras jogando queimada, e


Helena já está até desejando levar uma bolada para ter uma desculpa para ir à
enfermaria ficar em silêncio por alguns minutos. Só quem já esteve preso em
um ginásio de esporte com teto de Eternit sendo atacado por chuva e quase
setenta crianças gritando do lado de dentro, sabe o que é desespero.

— Não foi assim que Dante descreveu o inferno? — Helena pergunta para
Pati, que apenas assente com a cabeça. Se nem Pati está de bom humor hoje,
imagina a Helena.

Júlio e Júlia decidem tirar o dia para pregar peças em Pedro, o menino de 11
anos, que Helena não consegue entender por que é amigo do casal de gêmeos,
já que estão sempre tentando assustá-lo.

Helena já está a ponto de abrir mão da herança e ir embora, quando a chuva


finalmente passa e um lindo sol ilumina o Luneta.

É quase impossível para os monitores controlarem a velocidade com que as


crianças correm para fora do ginásio em direção ao ar livre.

Pati se apressa para acompanhá-las, mas antes se vira para Helena, apenas
para checar:

— Você prefere levá-los lá pra fora ou guardar o material aqui?

— Material, com certeza!

Ela começa a catar os materiais com tanta pressa quanto um bicho preguiça
correndo uma maratona. Ela tenta acalmar o cérebro e acabar com o zunido
no seu ouvido devido a quantidade ensurdecedora de barulho produzido pela
chuva e pela gritaria.

— Você tá com a cara péssima! — Lara diz para a irmã quando se aproxima
para guardar o material que sua turma estava usando.

— Não enche, Lara.

— Eita! Você não estava ontem mesmo falando que queria ficar com esse
lugar? — Lara fala com certo cinismo, porque sei que ela não acredita que
Helena contou a história toda.

— Quero mesmo, porque é um bom negócio. O que não quero são essas
crianças gritando.

— Bom, são crianças, Lena, as crianças fazem barulho, faz parte.

— Eu vou ficar maluca até o fim desse verão — Helena diz. — Aqueles
gêmeos vão me enlouquecer, é sério!

— Hele…

Lara tenta falar, mas Helena continua:

— Não, é sério, eu não aguento mais! Não é à toa que ninguém quer aquelas
duas pestes!

Lara não precisa nem abrir a boca para que Helena entenda; basta ver a cara
com que ela olha na direção da porta. Helena se vira a tempo de dar de cara
com um par de olhos castanho-escuro cravados nela.

O olhar de Júlia diz tudo aquilo que ela e o irmão costumam esconder atrás
de seus sorrisos fáceis. É o olhar de quem conhece bem a crueldade do
mundo, mas que está resignado a conviver com ela.

Helena abre a boca para tentar se justificar, mas antes que ela consiga, Júlia
se vira e sai correndo.

— Merda! — Helena suspira e leva a mão aos olhos.

— Qual é o seu problema? — Lara pergunta e joga uma bola dentro do cesto
em que são guardadas.

Helena solta mais um suspiro e se vira para ir atrás de Júlia.

Ela encontra a menina sentada na escadaria do alojamento das crianças e


Helena se senta ao lado dela. Elas ficam em silêncio por algum tempo. Júlia
esperando e Helena pensando no que falar.

— Eu também sou órfã, sabia? — Helena diz finalmente.

A menina olha para ela, mas não diz nada.

— Eu sei que não é a mesma situação, mas quando meu pai morreu você não
devia nem ser nascida ainda, e a minha mãe morreu há quatro meses.

— Você sente falta deles? — Júlia pergunta.

Helena assente com a cabeça antes de falar:

— Todos os dias! E você?

— A gente não tem pai — ela diz —, quer dizer, acho que todo mundo tem
pai, mas a gente não sabe quem é. E a minha mãe morreu quando a gente
nasceu; mas mesmo assim eu sinto saudade.

Helena não fala nada, apenas espera que a menina continue:


— A tia do conselho contou que a nossa vó não podia ficar com a gente, por
isso a gente tá no abrigo.

— E ela visita vocês?

Júlia sacode a cabeça de forma negativa.

— Desculpa ter falado aquilo — Helena diz com sinceridade.

— Eu sei que ninguém quer a gente — Júlia diz, tentando dar de ombros, mas
sem conseguir esconder a tristeza.

— Isso não é verdade — Helena tenta consertar.

— O Evandro disse que as pessoas só querem adotar se for bebê e se for


branco!

— Quem é o Evandro?

— Um menino que mora com a gente no abrigo, ele já tem 17 anos. E disse
que quando fizer 18 ele não vai poder ficar mais lá, por isso ele tem que
juntar dinheiro.

No primeiro ano do projeto, eu visitei os dois abrigos com os quais formamos


esta parceria, e uma das questões que tanto as psicólogas quanto as
assistentes sociais me contaram é que um dos grandes medos e preocupações
de crianças e adolescente que esgotam todas as possibilidades de retorno para
a família e que não são adotadas ou acolhidas por uma família temporária é
justamente a passagem para a vida adulta, uma vez que quando chegam a
maioridade ficam desamparados pelo estado.

Embora existam alguns programas de apoio e de educação profissionalizante,


a maioria dos jovens se veem em uma situação de abandono bastante séria
após deixarem o abrigo.

— É por isso que vocês estavam organizando o bolão no vôlei?

— É melhor se prevenir, né?


Helena apenas assente com a cabeça, sem saber como responder àquilo. Ela
nunca parou para pensar na situação dos dois, e ficou incentivando as
brincadeiras deles sem ao menos se dar conta do real motivo.

Eu sei que na hora Helena achou engraçadinho, principalmente porque ambos


fazem parecer divertido para os outros, mas não tem nada de engraçado em
eles, com 10 anos, precisarem ou acharem que precisam juntar dinheiro para
o futuro.

— Bom, talvez nem sempre seja assim — Helena diz, embora nem ela
mesma acredite muito nas suas palavras.

— Ah, você tá aí — Júlio diz ao avistar a irmã. — Vem logo, a gente só tá te


esperando pra começar!

A menina apenas lança um olhar e um meio sorriso que Helena entende como
um “eu te perdoo” e se levanta para brincar com o irmão.
CAPÍTULO 20
— Ei, Lara — Luísa chama, e corre até a irmã —, espera aí.

É terça-feira de manhã e Lara está passando com o grupo de crianças em


direção às quadras de areia quando Luísa avista ela. Lara se vira para esperar
a irmã, apesar do olhar reprovador de Betina.

— Quinta é aniversário da Mi — Luísa diz. — A gente deveria organizar


uma festa pra ela.

— Meu Deus, é verdade, eu quase esqueci.

Não sei não se foi “quase”.

— Eu tava pensando — Luísa continua —, a gente podia fazer alguma coisa


aqui mesmo.

— Podíamos encomendar uns salgadinhos veganos pra ela, e um bolo, claro!

— Será que dá tempo? — Luísa, que nunca organizou uma festa na vida,
pergunta.

— Claro que dá. Pode deixar comigo, Lu.

— Você pode usar a internet lá de casa se quiser — Sofia, que está ao lado de
Luísa, oferece.

— Perfeito!

— Eu vou falar com a Lena também — Luísa avisa. — Mas acho que deveria
ser surpresa!
— Ah! Boa ideia…

Lara ama planejar uma festa e já fica toda animada com ideia.

O resto do dia passa com Lara, Luísa e Helena tentando decidir o que fazer
para Mila. Helena insiste que pelo menos um dos bolos tem que ser “normal”,
enquanto Lara e Luísa concordam que tudo deveria ser vegano e que Helena
não vai morrer se comer comida vegana um dia na vida dela.

Por fim, a maioria vence e elas se decidem pelo cardápio 100% vegano,
afinal, Mila deveria poder comer tudo que é servido no seu aniversário.

— E quem que vai distrair ela? — Lara pergunta, no fim do dia, para Helena
e Luísa.

Mila está tomando banho e elas aproveitam para conversar sobre os últimos
detalhes.

— O guri do velório — Helena diz. — Ele não vai estar aqui no dia?

— Pra isso a gente teria que falar com ele — Luísa diz, pensativa.

— Você sabe o nome dele? A gente pode procurar no Instagram da Mila.

— Eu tenho uma ideia melhor — Luísa diz e se levanta.

Ela vai até o quarto de Mila e volta dois minutos depois com o celular da
irmã em mãos.

— Qual a senha? — ela pergunta, sentando-se ao lado de Lara.

— Como eu vou saber?

— Você é a que mais convive com ela, ué?

— Sim, mas eu não sei a senha do celular dela.

— Tenta 1, 2, 3, 4 — Helena sugere da poltrona em frente.


Luísa tenta e a tela treme, anunciando que a senha está errada.

— Tenta o aniversário dela — Lara diz.

Luísa digita 1602 e o menu de aplicativos aparece com uma foto do sol
nascendo na praia de fundo.

— Eu sabia que você saberia!

— Eu não quero te apressar, mas acho que ela desligou o chuveiro — Helena
comenta, não ouvindo mais o barulho da água.

Luísa acelera em tentar achar o número de Murilo, primeiro, ela tenta na


agenda de contatos, mas Mila é uma pessoa bem mais sociável do que ela
imaginou e só de “Murilos” tem uns quatro, fora todos os apelidos que são
impossíveis de saber qual o nome real da pessoa. Luísa decide apelar e entra
no WhatsApp para achar a conversa com ele.

Já de cara a primeira conversa do aplicativo é com um contato salvo como


“Mumu” e pela foto, Luísa o reconhece, pois se lembra dele no meu velório.

— Mumu? Pelo amor…

Ela tem o bom senso de não ler a conversa antes de abrir o contato dele para
copiar o número. Assim que termina, sai correndo para devolver o telefone
antes de Mila sair do banho. Ela o coloca no mesmo lugar em que o
encontrou, na cômoda ao lado da cama, mas antes que ela consiga sair do
quarto, Mila entra enrolada na toalha.

— O que você tá fazendo aqui? — pergunta desconfiada.

— Eu, hm… — Ela olha ao redor tentando achar alguma desculpa —, eu, eu
tava procurando um baseado!

Mila estreita os olhos.

— Mas você não fuma.

— É que o meu cigarro acabou, já estou apelando pra qualquer coisa.


— Hm, você devia diminuir o cigarro, tá ficando muito dependente — Mila
diz e caminha até o armário.

— Concordo.

Por incrível que pareça, Luísa está há dois dias inteiros sem fumar e ainda
não reclamou.

— Mas eu não tenho, a Lara jogou tudo que eu tinha no lago.

— Bruxa controladora! — Luísa diz sobre Lara.

— Né?

— Uhum.

Luísa fica ali parada sem saber o que fazer.

— Mais alguma coisa, Lu?

— Hm, não, não, desculpa… vou deixar você se vestir.


CAPÍTULO 21
Mila adora seu aniversário, adora dedicar o dia todo para ela mesma, fazer
coisas que a deixam feliz, sair à noite para comemorar, todas essas coisas.

Esse ano, no entanto, tudo está diferente. Além de ter que trabalhar o dia
todo, hoje ela está comemorando trinta anos!

Todo mundo que já fez trinta sabe que é uma sensação no mínimo estranha;
um dia você é jovem e no dia seguinte você tem trinta. Eu com trinta anos já
tinha três filhas e mesmo assim levei um choque.

Quando se é adolescente ou está no começo da vida adulta, creio que a


maioria das pessoas pense que aos trinta tudo estará resolvido, você terá
aquele emprego dos sonhos, uma vida financeira estável, estará casada (se
este for um dos seus objetivos), talvez já tenha filhos, provavelmente já terá
viajado muito, mas principalmente, você tem certeza de que saberá o
propósito da sua vida.

E a verdade é que aos trinta, a maioria das pessoas alcança algum dos
objetivos que traçou, talvez tenha filhos, ou talvez tenha viajado muito, talvez
tenha conseguido aquele emprego, talvez tenha comprado uma casa e
atingido uma estabilidade financeira, ou ainda alguma combinação de quase
todos esses. Mas o último item — saber qual o propósito da sua vida — esse
é só para os mais sortudos.

Eu não sabia! E creio que a Mila também não saiba ainda. E acho que por
isso ela demonstra menos empolgação esse ano. Não porque se sente velha —
porque, sejamos francos, trinta anos ainda é muito, muito jovem —, mas
porque se sente perdida.
Ainda assim, ela se levanta no horário de sempre e vai fazer sua rotina de
ioga, como todos os outros dias. Ela não encontra ninguém, nem Helena
saindo para correr, nem Luísa no saguão ensaiando com o violão, nem Lara
com insônia vagando pela sede.

Mas não importa com que humor ela esteja, sempre que faz a sequência de
saudação ao sol pela manhã, ela se sente em paz.

— Feliz aniversário — Chiquinho diz, aproximando-se do píer enquanto ela


enrola seu tapetinho de ioga após a prática.

Mila abre um sorriso quando vê que ele tem um presente na mão.

— Como você sabia? — ela pergunta depois de aceitar o presente com um


abraço.

— Bom, até onde eu sei, eu ainda sou o seu padrinho.

Puxa, até eu já havia me esquecido disso! Mas nós convidamos ele e a Ana,
sua esposa, para serem os padrinhos da Mila. E nós éramos os padrinhos do
João Vitor, irmão da Sofia.

Ao longo dos anos, com as meninas se distanciando do Luneta, a convivência


com o Chiquinho foi diminuindo a tal ponto de eu me esquecer desse detalhe.

— Ah, meu Deus, é verdade! Eu já tinha esquecido.

Mila sorri ao desembrulhar o presente.

Não existe crise de idade quando você está abrindo um presente que não
esperava receber.

Quando ela abre a caixa encontra uma pequena escultura decorativa de um


elefante indiano.

— Obrigada, Chiquinho! Eu adorei.

***
No café da manhã, Luísa, Lara e Helena a parabenizam, mas não demonstram
muito interesse no seu aniversário.

Mila nunca deixa transparecer quando está triste ou decepcionada, ela é uma
dessas pessoas irritantemente otimistas que sempre vê o melhor lado de cada
situação; mas sei que ela esperava alguma coisa de suas irmãs. É a primeira
vez em anos que estão juntas por tanto tempo, e Mila não acha possível que
elas também não sintam a conexão sendo restabelecida.

É raro, mas, às vezes, Mila sente que ela é a única que se importa com a sua
família.

Pelo menos dessa vez, o trabalho e a chatice da Michelle vieram a calhar,


porque ela logo se esquece do descaso das irmãs e foca nos afazeres do dia.

Nessa uma semana e meia em que trabalhou no Luneta, ela se acostumou


com a rotina, se acostumou com os adolescentes, e creio que até com
Michelle.

Eu diria até que ela gosta do trabalho. Gosta de estar ao ar livre, gosta de
estar cercada de crianças se divertindo, gosta de saber que está fazendo algo
por outras pessoas. Gosta de tudo ali, da mesma forma que Leo gostava.

***

Murilo chega logo após o jantar — que no Luneta é servido às 18h — e Mila
corre até ele.

Eu não me recordo de ter visto ela tão alegre assim com um namorado antes.

Como já disse outras vezes, ela sempre foi de se apaixonar facilmente, mas,
ao mesmo tempo, sempre se desinteressava rápido demais deles. Mas esse
menino aí tem algo diferente.

Eu fico feliz em vê-la assim, sei que ela gosta da parceria de ter uma pessoa
com quem dividir as histórias no fim do dia, de compartilhar lugares, festas e
viagens.

Alguns pensam que Lara é a minha filha mais apegada e carente, mas na
verdade é a Mila. Ela precisa de pessoas por perto, sejam as irmãs, amigas ou
um namorado. Não me entenda mal, ela sabe viver muito bem sozinha, mas
ela é uma pessoa que gosta de outras pessoas, e faz bem para ela tê-las por
perto. E mais que isso, faz bem para os outros estarem perto de Mila.

Murilo tem a pele e o cabelo queimado do sol. O tom do seu cabelo é


parecido com o dela, castanho claro, mas com as pontas queimadas pelo sol e
sal. Ele é alto e tem o porte físico de um rapaz que se exercita bastante na
praia, e um sorriso largo e iluminado.

— E aí, gata! — ele diz, antes de ela abraçá-lo. — Feliz aniversário!

Ele entrega um pacote de presente com um laço para ela, e só pela logomarca
do pacote, eu já sei que ela vai gostar. É da loja de roupas preferida dela.

Eles caminham de mãos dadas até a sede.

Mila abre o pacote e, enrolado em papel seda, há um vestido verde floral até
o pé, com alça fina e decote em V. Ela não precisa nem provar para abrir um
sorriso de felicidade.

— É lindo!

— Achei que essa cor combinava com você — ele diz e se levanta para dar
um beijo nela.

— Eu vou vestir, calma aí.

Ela volta do quarto alguns minutos depois; o vestido tem o caimento perfeito
e combina com seus muitos colares e acessórios de prata.

— Ficou linda! — Murilo diz com um brilho no olhar que transborda


sinceridade e recebe um sorriso largo em resposta.

— Eu queria te apresentar as minhas irmãs, mas elas sumiram!

— Bom, daqui a pouco elas devem aparecer — Murilo diz, com


tranquilidade. — Você podia me mostrar aquela cachoeira que você falou que
tem aqui enquanto isso.
CAPÍTULO 22
Lara termina de organizar os salgadinhos intercalados com os bolos sobre a
enorme mesa de piquenique improvisada perto da área da fogueira. Elas
resolveram encomendar quatro bolos grandes porque são muitas crianças e,
mesmo servindo depois do jantar, é sempre melhor sobrar do que faltar
comida.

— Era o que a mamãe sempre dizia — Lara fala para Luísa quando ela
questiona se não é muita coisa.

Zeca e Chiquinho carregam as caixas térmicas com refrigerante, sucos, água,


cervejas e Keep Coolers, enquanto Sofia e Pepa buscam os instrumentos
musicais guardados na sala de música. Até Michelle se dispôs a ajudar com
uma coisa ou outra.

Quem diria, acho que ela também se apegou a Mila.

— Tá na hora — Luísa diz, olhando no relógio de pulso.

— Espero que esse Murilo se lembre do que tem que fazer — Helena
comenta —, não quero ter que ficar esperando esses dois “matar a saudade”.

— Ai, credo, Helena! — Luísa diz, passando a alça do seu violão pela
cabeça.

— Eles estão vindo — Lara anuncia e aponta para Mila, que já viu a
movimentação.

Luísa começa a tocar Parabéns Pra Você no violão e todo mundo começa a
cantar junto.
Como acontece sempre que tem muitas pessoas cantando, o grupo desafina e
atrasa o tempo da música, mas Mila não se importa com isso. Ela apenas abre
um enorme sorriso e demonstra certo alívio de saber que suas irmãs se
importam.

Lara é a primeira a abraçar Mila e desejar todas as coisas que normalmente se


deseja à aniversariante. Luísa e Helena são as próximas. E Mila aproveita
para apresentar Murilo a elas.

— A Luísa eu conheço do WhatsApp — ele diz com um sorriso. — Foi ela


que me falou da festa surpresa.

— Prazer te conhecer pessoalmente — ela o cumprimenta com um beijo no


rosto.

— Você sabia? — Mila pergunta a ele.

— Alguém tinha que te distrair enquanto a gente montava tudo, né? — Luísa
explica.

O sorriso no rosto dos dois me faz crer que, no fundo, são os detalhes que
separam um relacionamento baseado em diversão de um baseado em
sentimento.

Não estou aqui para dizer que um é melhor que o outro; creio que os dois tem
seu valor. Mas o que quero dizer é que o tipo de sentimento que um gesto
simples desperta é o que demonstra essa diferença. Afinal, ele não fez nada
demais, foi Luísa que foi falar com ele, mas, ainda assim, o coração de Mila
acelera levemente em saber que ele fez parte da surpresa.

Às vezes ficamos tentando entender o que faz um namorado ou namorada ser


melhor do que outro, e talvez a verdade seja que na maioria dos casos não
existe um grande motivo, mas uma sequência de minúsculos motivos
causados por minúsculas sensações diferentes que fogem totalmente à lógica.

Uma pessoa te entregando flores pode parecer o gesto mais romântico do


mundo ao passo que outra fazendo a mesma coisa pode ser muito cafona. A
diferença está nas sensações causadas, não necessariamente no gesto.
Eu acho que fugi um pouco do tema.

Onde eu estava? Ah, sim, sim… Depois de cortarem o bolo, a maioria das
crianças se sentam ao redor da fogueira para comer enquanto outras pegam
alguns instrumentos musicais que estão dentro de cestos.

Luísa é quem toma a frente e comanda a trilha sonora:

— Essa é pra você, Mila, porque eu sei que você gosta e também porque não
pode faltar em um luau — Luísa diz antes de começar a tocar Anunciação do
Alceu Valença.

Chiquinho pega o violão para acompanhar, e Lara pega o ukulele de Luísa


para tocar também.

A própria Mila se anima e pega o bongô. Helena pega um chocalho, só para


não dizer que não está participando.

— Tu vens, tu vens — quase todos cantam —, eu já escuto os teus sinais…

***

Aos poucos, os instrumentos dos cestos vão sendo escolhidos por aqueles que
sabem tocar, e alguns até por quem não sabe. Mas ninguém se importa muito,
o que vale é participar.

Ao lado de Helena, Júlia se diverte com uma flauta e Júlio com um triângulo.

— Depois eu te ensino a tocar algumas notas — Helena sussurra para Júlia,


que está assoprando a flauta animadamente sem conseguir produzir uma
única nota melódica, na tentativa de fazer a menina parar.

Júlia sorri ainda mais animada para ela e continua a tocar. Helena solta um
suspiro, mas no fundo acha graça da cena.

— E agora? — Luísa pergunta à Mila. — Algum pedido?

— Hm, não sei — Mila pensa um pouco.


— Ah, já sei! Lena, pega o pandeiro ali — Luísa diz, apontando para um
pandeiro meia-lua dentro do cesto.

— Eu não sei tocar isso — Helena responde, tentando se esquivar.

— Pff, claro que sabe, foi você que me ensinou! — Luísa a contradiz. —
Pega logo e me acompanha nessa porque eu sei que você conhece.

Helena revira os olhos, mas estica o braço para pegar o pandeiro mesmo
assim.

Ela bufa ao se sentar, despertando risos dos gêmeos que gostaram de ver
Helena sendo mandada para variar um pouco.

Assim que Luísa começa a tocar a introdução de Vagabundo Confesso do


Dazaranha, Helena bufa mais uma vez. Mas Luísa tem razão, ela conhece a
música e como sabe que a Mila adora, acompanha Luísa.

Antes de começar a cantar, Luísa pede para Sofia ao seu lado:

— Pega minha gaita aqui no meu bolso? — Ela aponta com os olhos para o
bolso da frente do short.

Sofia hesita só uma fração de segundo antes de resgatar a gaita vermelha que
era do Leo.

— Sou vagabundo eu confesso — Luísa canta para Mila — da turma de 71…

Mila se junta à Luísa no vocal, e Murilo pede o violão de Chiquinho, que não
sabe tocar essa, e ajuda Luísa na melodia.

…Já rodei o mundo

E nunca pude encontrar

Lugar melhor prum vagabundo

Que um rio à beira-mar


Odoiá, odofiaba

Salve minha mãe Iemanjá

Das crianças, só uns poucos adolescentes conhecem, e apesar da timidez


inicial, ajudam no coro.

Assim que acaba o refrão, Luísa pega a gaita da mão de Sofia e toca o trecho
que é originalmente tocado no violino.

— Orra, que baita! — um dos adolescentes exclama ao ouvir o solo de gaita.

As crianças sorriem e aplaudem, Murilo continua no violão e Mila no bongô.

Todos participam do momento, alguns cantando, alguns tocando, alguns


comendo e alguns aplaudindo; e Mila, finalmente, volta a sentir a alegria
habitual de um aniversário seu. E mais que isso, a alegria de ter sua família
reunida.

Eu sempre soube que seria Mila a estreitar o laço fraterno entre elas.

Mais uma rodada de aplausos ecoa assim que Luísa e Mila terminam a
música. As duas agradecem e levantam para se cumprimentar com um high
five.

Pati aparece na roda com vários sacos de marshmallow e gravetos. As


crianças se aglomeram ao redor dela, como se cinco quilos de marshmallow
pudessem acabar em segundos.

— Canta uma que a gente sabe! — Júlia pede, fincando um marshmallow no


graveto.

— De preferência uma que não fale sobre “um fino em cima da mesa” —
Lara diz com um olhar de quem tá dando uma ordem aos filhos.

— Cê que manda! — Luísa responde à Júlia e já emenda outro sucesso local,


dessa vez, ela toca O Sol do Vitor Kley, e todas as crianças cantam junto.

Luísa e Murilo tocam no violão e o resto acompanha apenas cantando. Sofia


pega um graveto e espeta um marshmallow enquanto Luísa toca animada.

Tenho que confessar que Luísa é muito boa em embalar um luau, sem contar
que ela parece mais relaxada assim atrás de um violão.

Quando o refrão acaba, Sofia oferece o marshmallow para Luísa que apenas
abre a boca.

— Hmf, quente! — Luísa diz, tentando mastigar a lava de açúcar.

— Calma que você tá suja. — Sofia tenta limpar o açúcar do canto da boca
dela.

Mila apenas sacode a cabeça com um sorriso vendo a cena.

— A música, Luísa! — ela provoca.

Luísa percebe que passou da entrada do vocal e tenta cantar de boca cheia
mesmo, mas não dá certo e as crianças caem todas na gargalhada. Murilo
ajuda Luísa, cantando no lugar dela.

— Desculpa — Sofia diz com certa timidez.

Luísa consegue por fim engolir o marshmallow e continua cantando com


Murilo, mas sorri para Sofia.

Sofia se levanta depois da música para pegar uma cerveja.

Ao fundo, Murilo começa a tocar Analua do Armandinho porque sabe que a


Mila gosta, e Luísa não perde tempo em ajudar no instrumental, mas ela tem
a impressão — correta — de que isso é uma serenata, então deixa ele cantar
sozinho.

Lara e Helena também acompanham a “serenata” do menino no pandeiro e no


ukulele, e as irmãs são obrigadas a concordar que ele até que arranha bem no
violão e tem tudo a ver com a Mila, que por sua vez não tira o sorriso do
rosto nem por um segundo.

Eles fazem uma pausa para uma rodada de marshmallows, e Luísa se levanta
para comer também. Animar uma festa com quase setenta crianças dá fome.

— Esse negócio é bom? — ela pergunta, apontando para uma coxinha vegana
de jaca.

— É — Sofia responde —, mas a de brócolis é melhor.

— Hm, melhor provar tudo então — Luísa diz, colocando cinco salgadinhos
diferentes no pratinho.

Em seguida, abre uma cerveja.

— Eu juro que nunca vi a Mila assim.

— Assim como? — Sofia pergunta, servindo-se de um pão de queijo vegano.

— Sei lá, assim apaixonada, a cara que ela tava olhando pra ele tocando
Analua parecia que tinha dois coraçõezinhos no lugar dos olhos.

Luísa tem razão, Mila sempre foi muito carinhosa com os namorados, mas
raramente demonstrava uma admiração mais profunda por algum ato
romântico.

— Ah, mas ele fez uma serenata pra ela!

Luísa olha para Sofia com um sorriso de divertimento.

— Ora, ora, ora — ela diz, pegando mais um salgadinho. — Parece que
temos uma romântica entre nós!

— O quê? Tem alguma coisa errada em gostar de serenata?

— Sei lá, meio brega, né?

— Eu não acho!

Luísa estuda Sofia uns segundos; na verdade, ela não se surpreende por Sofia
gostar desse tipo de gesto, é a cara dela! Ela sempre foi afetuosa e nunca teve
problemas em expressar isso. Faz todo sentido que ela goste.
— Tá — Lara diz alto, chamando a atenção de todos —, acho que agora tá na
hora de um dueto LuMila!

Luísa, que está de costas, apenas se vira na direção da voz.

— Verdade — Helena concorda. — Vocês duas sempre cantavam juntas.

— O que você acha, Lu? — Mila pergunta.

Luísa concorda com a cabeça e empurra o salgadinho com um gole de


cerveja. Ela pega seu violão e, dessa vez, se senta ao lado de Mila.

Ela encara a irmã, tentando pensar em uma música para elas cantarem juntas.

— Ah! Já sei — Luísa diz e começa a tocar a introdução de Pra Você


Guardei o Amor.

Sofia também volta à roda, sentando-se novamente onde estava antes, ficando
agora de frente para Luísa.

— Ah, não — Mila diz para Luísa.

— Eu adoro essa música — diz sem parar de tocar.

— Eu não sei a letra — Mila argumenta.

— Nem o Nando Reis deve saber isso de cor! — Lara diz.

— Pensando bem, eu acho que sem ler eu também não sei — Luísa confirma,
parando de tocar.

— Toca Relicário — Lara sugere, colocando um marshmallow no espeto.

— Boa! — Mila concorda, balançando a cabeça empolgada.

Luísa assente e começa a tocar a música no violão em Dó.

— Que porra é essa, Luísa? — Helena, que estava pronta para acompanhar
no pandeiro, pergunta, estranhando o tom.
— É a versão da ANAVITORIA.

— Que mané ANAVITORIA, toca a versão do Nando! — Helena manda.

— Mas a delas é muito melhor — Luísa argumenta.

— Eu também acho — Sofia concorda, e recebe um sorriso de Luísa.

— Pff, jovens! — reclama Helena.

— Sobe o tom que eu não consigo cantar assim grave… e acelera isso porque
é o meu aniversário, não um enterro — Mila diz.

— Tá, tá. — Luísa sobe o tom para Si menor e dedilha o riff da versão do
Nando Reis antes de voltar ao início.

— Eu faço o Nando e você a parte da Cássia! — Mila diz para Luísa, que
assente novamente.

Para essa música, Chiquinho recupera seu violão com Murilo. Lara
acompanha no ukulele, Helena no pandeiro e Sofia pega o chocalho
abandonado de Helena.

Mila respira fundo antes de começar com o seu timbre de voz mais agudo:

É uma índia com colar

A tarde linda que não quer se pôr

Dançam as ilhas sobre o mar

Sua cartilha tem o A de que cor?

Luísa entra com sua voz um pouco mais grave, que tem um toque aveludado
muito agradável de se ouvir:

O que está acontecendo?


O mundo está ao contrário e ninguém reparou

O que está acontecendo?

Eu estava em paz quando você chegou

Luísa se sente confusa quando seu olhar cruza com o de Sofia a sua frente, a
conversa que acabaram de ter ainda paira em sua mente.

Será que era um recado? Será que era apenas um comentário? Será que era
um pedido?

Luísa não sabe responder essas perguntas, mas não consegue tirar os olhos de
Sofia. Nem Sofia, de Luísa.

Mila termina a quinta estrofe e Luísa canta:

Por que está amanhecendo?

Peço o contrário, ver o sol se pôr oh uô uô uô

Por que está amanhecendo?

Se não vou beijar seus lábios quando você se for

Luísa sente seu coração acelerar com o sorriso que se forma nos lábios de
Sofia com essa estrofe e, por alguns segundos, é como se nada mais existisse.
Como se as respostas para as perguntas que Luísa se fazia, de repente, fossem
todas respondidas.

Elas ficam presas no olhar uma da outra e não percebem Helena balançando a
cabeça descrente de que elas ainda não estão juntas, Lara e Mila trocando
uma risadinha da cara de apaixonadas das duas que é óbvia para todos. E não
percebem Michelle fuzilando Luísa com o olhar. Elas não percebem nada
disso, apenas a presença uma da outra.

Luísa volta à realidade com Mila lhe dando uma cotovelada nas costelas
quando ela perde a entrada da última estrofe.
CAPÍTULO 23
— Teve aquele ano que a Helena prendeu aquela guria… como era o nome
dela? — Mila pergunta.

— Fernanda, eu acho — Lara ajuda.

— Isso! Teve aquele ano que a Helena prendeu a Fernanda no banheiro lá do


píer norte e a coitada ficou lá até as 22h quando o segurança foi fazer a ronda
e ouviu ela gritando!

Mila conta rindo, mas a tal menina ficou traumatizada depois daquilo.

— Ah, ela mereceu!

— O que ela fez, tia? — Júlia pergunta, lembrando aos adultos que ouvidos
infantis também escutam.

No momento, ao redor do fogo, estão apenas as minhas quatro filhas, Murilo,


Chiquinho, Sofia e algumas crianças brincando com os instrumentos. O resto
do pessoal está espalhado pelo bosque ou ao redor da mesa de salgadinhos.

Algumas crianças brincam com o Bartô e o Paçoca, algumas jogam futebol e


os adolescentes fazem um “segundo luau” perto do lago.

— Nada — Lara responde a Júlia —, e não se deve fazer isso com ninguém.

Luísa e Sofia, que ainda eram muito pequenas para frequentar o


acampamento naquela época, apenas escutam a história, que não conheciam,
enquanto bebem suas cervejas.

— Ah, por favor — Helena corta —, a guria inventou pra todo mundo que a
Mila tomava remédio controlado e que era esquizofrênica.

— Quê? — Luísa pergunta, indignada.

— Espera! — Lara, que sempre foi a primeira a defender Mila de bullying,


exclama. — Ela falou isso?

— Falou! — Mila confirma.

— Aí eu prendi ela mesmo, que era pra aprender a parar de falar merda.

— Que babaca — Lara responde.

— O que é esquizofrênica? — Julia pergunta.

Lara se prepara para responder, mas Helena é mais rápida.

— É uma pessoa que vê as coisas um pouco diferente da maioria, às vezes


escuta coisas diferentes também.

— E isso é ruim?

— É ruim quando atrapalha a vida da pessoa, porque as coisas que ela vê e


escuta não são reais. Mas aí quando acontece isso a pessoa pode ser tratada,
igual quando você se machuca ou fica doente. Só que naquele caso, ela falou
como se fosse uma coisa horrível, para as pessoas rirem da cara da Mila,
entendeu?

— Acho que sim.

Luísa, Mila e Lara olham com certa descrença para Helena por ter a
consciência de não incutir preconceitos em Júlia.

Lara aproveita e acrescenta:

— E mesmo que fosse verdade, você não conta isso para os outros sem a
autorização da pessoa, muito menos para que eles riam ou fiquem com medo.

Júlia apenas balança a cabeça acompanhando o raciocínio.


— E todo mundo deveria me agradecer, isso sim, porque aquele dia tinha
luau — Helena continua. — Naquela época o luau de despedida era na quinta
depois do encerramento da gincana, lembra? Eu prendi ela no fim da gincana,
ela passou o luau todo presa, foi uma maravilha, porque a guria era uma
desgraça de desafinada e sempre queria cantar.

— E ninguém sentiu falta dela, não? — Sofia pergunta.

Helena dá de ombros.

— Eu disse que ela tava com dor de barriga e não iria participar e todo
mundo acreditou.

— A Helena era a chefe da quadrilha — Chiquinho explica. — O que ela


falava era lei.

— Lembra que naquela época a mamãe sempre vinha pro luau de despedida?
— Mila pergunta.

Quando o Leo era coordenador do Luneta, ele passava o verão todo aqui e eu
ficava cuidando da empresa. No resto do tempo ele ficava comigo na empresa
e vinha para cá apenas uma vez por mês. Entretanto, eu sempre frequentava
os luaus de encerramento.

— Eu vinha junto — Luísa diz.

— É verdade — Helena confirma. — Mas foram poucas vezes que estávamos


todos nós, né?

— Era difícil juntar todo mundo — Chiquinho comenta.

— A Ana e a mamãe principalmente — Helena acrescenta.

Apesar de eles morarem aqui, Ana era enfermeira, então os horários dela nem
sempre permitiam que ela participasse conosco.

— Eu acho que a última vez que esteve todo mundo foi no ano do acidente
dela — Sofia fala. — Eu lembro daquele dia.
— Eu também — Luísa comenta, buscando na memória. Ela tinha apenas 6
anos na época.

— A mãe de vocês ficava pedindo um monte de músicas e vocês nunca


queriam tocar nenhuma — Sofia conta, rindo.

— Ah, a mamãe adorava pedir música cafona — Mila concorda.

— Não eram cafona — Luísa pondera —, mas não eram músicas de luau.

— Isso é verdade — Lara concorda com Luísa. — Ela seeeeeempre pedia pra
gente tocar João e Maria.

— E a gente nunca tocava — Mila diz, e seu sorriso esmorece um pouco.

Luísa encara Mila por alguns segundos, como se tentasse lembrar de algo.
Ela pega seu violão mais uma vez e dedilha algumas notas, tentando buscar
na memória a melodia que sempre tocava na nossa casa quando elas eram
crianças.

Mas, apesar do esforço, ela não consegue se lembrar.

— Droga! — exclama depois de errar pela terceira vez.

— Juju — Helena se vira para Júlia —, me empresta essa flauta?

A menina entrega para ela com curiosidade no olhar.

— Começa de novo, Lu — Helena pede.

Luísa obedece, e Helena apenas limpa um pouco a flauta na blusa antes de


começar a tocar, ajudando Luísa a se lembrar da melodia. Ela expressa um
sorriso de lado e sente a música voltando. Júlia sorri ao ver que Helena sabe
mesmo tocar flauta.

— Eu não sei a letra toda — Luísa diz às irmãs antes de chegar na entrada do
vocal.

— Agora eu era o herói… — Lara começa a cantar, e Mila abre um sorriso,


porque Lara tem uma voz linda, mas raramente se arrisca.

— … e o meu cavalo só falava inglês — Chiquinho se junta à Lara para


fazerem um dueto.

Mila pede o chocalho que está ao lado de Sofia emprestado para acompanhar
as irmãs na melodia.

Agora eu era o rei

Era o bedel e era também juiz

E pela minha lei

A gente era obrigado a ser feliz

Pelo tempo da música, apesar de Chiquinho estar cantando junto, é como se


apenas as quatro estivessem ali, ou melhor, é como se nós cinco estivéssemos
ali!

Eu me sinto ali.

Sinto a voz doce da Lara ressoando dentro de mim, como se eu estivesse


presente. Sinto também a sensação incomum de paz dentro de Luísa, mas
também a de gratidão de Mila por enfim estar ali com as irmãs depois de
passar tanto tempo tentando reuni-las. Sinto a flauta da Helena desafinar
levemente quando a sua respiração fica mais difícil e seus olhos marejados.

— Pois você sumiu no mundo sem me avisar e agora eu era um louco a


perguntar o que é que a vida vai fazer de mim?

Quando terminam, as quatro se olham e compartilham um momento de


mútua compreensão.

É verdade, elas nunca tocavam essa música, mas essa única vez é a única que
eu quero ter na memória!
CAPÍTULO 24
Depois de mais algumas músicas, eles decidem colocar uma playlist, e Luísa
guarda o violão. Assim que fecha o case, Mila pula em cima dela e lhe dá um
beijo na bochecha.

— Que isso, guria — Luísa pergunta, fingindo limpar a bochecha.

— Você é uma fofinha — Mila diz, ainda com um braço sobre o ombro da
irmã. — Eu sei que a ideia foi sua!

— Como você sabe?

— Ah, se fosse ideia da Helena o inferno já teria congelado, e a Lara adora


organizar uma festa, mas ela é muito pragmática para pensar em uma festa
surpresa.

Eu disse que a Mila é muito observadora.

— Bom, mas a gente organizou juntas — Luísa explica.

— Eu sei, obrigada! Eu adorei.

— De nada. Não é todo dia que se faz trinta.

— Eita, tinha que lembrar, né?

Luísa solta uma risada da cara dela, mas, dessa vez, sei que Mila não está se
importando com a idade. Ela larga Luísa e se junta mais uma vez ao Murilo,
que está conversando com Pati e Pepa, e Luísa se junta a Sofia na mesa dos
salgadinhos.
Helena está sentada em um dos bancos que cercam a fogueira, tentando
ensinar Parabéns Pra Você na flauta para Júlia, e Lara pega um Keep Cooler
de morango e se senta ao lado de Helena para assistir a cena.

Ela é obrigada a admitir que Helena até que está sendo bem paciente,
principalmente porque Júlia está demorando para conseguir reproduzir as
notas.

— São dois Sol no começo — ela diz para Júlia —, é Sol, Sol, Lá, Sol. Você
tá fazendo Sol, Lá, Sol.

Júlia tenta de novo e dessa vez repete da maneira correta.

— Tá melhorando! Tenta de novo esse começo, depois a gente coloca as


outras notas — ela diz para Júlia e então se vira para a irmã. — E como foi o
fim de semana?

— Hm, foi tranquilo…

— Então por que você voltou com aquela cara?

— Helena — Lara chama atenção da irmã, apontando com a cabeça para


Júlia. Sentindo-se desconfortável em falar desse tema na frente de uma
criança.

— A Juju sabe guardar segredo. Não é?

Júlia apenas assente com a cabeça e emite um Sol grave na flauta.

— Não é isso — Lara explica —, é só que é um assunto privado.

— Júlia — Helena se vira para a menina —, vai treinando aí que eu já volto,


tá bem?

Mais uma vez ela apenas responde através da flauta, mas dessa vez ela
assopra com mais força do que o necessário e emite um som agudo que
machuca os ouvidos de Lara.

— Vem — Helena diz e puxa a irmã pelo braço para pegar uma bebida.
Lara espera Helena abrir uma cerveja longneck e despejar todo o líquido em
um copo plástico. Helena jamais toma nada no gargalo, a não ser se for o seu
squeeze.

— Agora me conta — Helena pede.

— Não sei, não tem nada pra contar, foi mais ou menos como eu esperava.

— Vocês brigaram?

— Acho que dá pra dizer que eu briguei com ele.

— Como assim?

— Ah, ele estava todo querido, amoroso, gentil com os filhos. Eu estava feliz
que ele estava se esforçando.

— Isso não é nada além da obrigação dele — Helena alfineta.

E, surpreendendo tanto eu quanto Helena, Lara não revira os olhos ou o


defende. Apenas solta um suspiro que está mais para um “eu sei” do que um
“vai começar”.

Lara continua:

— Ele me convidou para jantar no sábado à noite, mas eu disse que não
queria deixar as crianças, porque, né?, eu já não vi eles a semana toda, nem
faria sentido não ficar com eles.

— Lógico.

— Mas então ele sugeriu chamar uma babá do hotel e sair depois que as
crianças já estivessem dormindo…

Helena escuta tudo com atenção. Tem algo no tom de Lara que a faz não
querer provocar, mas simplesmente escutar.

— Bom — Lara continua —, por fim, eu concordei, porque ele insistiu


bastante.
— E como foi o jantar?

— Estava tudo indo bem, até que eu resolvi perguntar sobre aquilo que a
Mila viu.

— E ele?

— Ele ficou puto — ela diz e solta um suspiro cansado. — Primeiro chamou
a Mila de mentirosa, depois disse que não tem nada demais, porque não
somos mais casados.

— Nesse ponto ele tem razão, Lara — Helena diz, mas não tem veneno, nem
malícia na sua fala, apenas um fato. — Vocês não são mais casados!

— Então — Lara diz —, aí eu disse que se era assim a gente deveria assinar o
divórcio de uma vez, já que era o que ele queria.

Já não era sem tempo.

— Já não era sem tempo.

— Foi aí que ele surtou de vez. Perguntou se eu não amava mais ele, disse
que a nossa família é a coisa mais importante e sei lá o que. Não entendi
nada, parecia que eu estava em uma montanha-russa. Ele era quem mais
queria esse divórcio, agora que eu concordei ele não quer mais.

— Ele quer a sua parte da herança — Helena fala simplesmente e dá um gole


na cerveja.

— O quê?

Helena encara Lara com algo de sério no olhar e repete:

— Ele quer a sua parte da herança! Por isso não quer assinar o divórcio
agora. Vocês têm união universal de bens, se você receber a herança antes do
divórcio ele tem direito a metade! Ele quer o seu dinheiro.

Lara arregala os olhos, surpresa com a teoria de Helena.


— A melhor coisa que você pode fazer é assinar esse divórcio logo —
Helena diz e faz uma pausa, pensando em como continuar. Lara apenas
encara a irmã, entendendo que vem mais coisa. Helena respira fundo antes de
continuar: — Eu mandei o Armando investigar ele, e eu sei que ele sonega
pelo menos metade dos rendimentos para pagar uma pensão bem menor do
que deveria.

— O quê? Quando você fez isso?

— No fim do ano, quando você me pediu dinheiro, achei estranho você não
ter, aí pedi pro Armando investigar.

— Esse filho da puta!

— Resolve logo a sua vida, Lara! Você quer ficar nesse rolo aí por quanto
tempo ainda? Eu sei que você acha que é bom para a Alícia e pro Lucas vocês
voltarem, mas não é! As crianças sabem quando o ambiente em que estão não
é bom.

Lara foca o olhar na garrafa em suas mãos e brinca com o gargalo.

— Você tem razão.

— E outra, você sabe que eu não gosto dele, mas o Felipe tem razão, não tem
nada demais em ele ficar com outras mulheres se vocês não estão mais
juntos. Inclusive, você deveria fazer o mesmo!

Lara eleva o olhar para a irmã e suas bochechas coram de leve antes de
admitir com certa vergonha:

— Eu nunca, hm, estive com outro homem que não fosse o Felipe.

Para sua surpresa, Helena não faz nenhum comentário maldoso ou cínico.

— Bom, o salva-vidas gostosão ali — Helena aponta para Buba — não para
de olhar pra você, então talvez seja sua oportunidade de descobrir como é.

Lara olha para onde Helena está apontando e vê Buba olhando para ela com
um sorriso insinuante.
Buba é um pouco mais velho que Pepa, deve estar na casa dos 25 anos, tem
cabelo escuro bem curto e é alto, atlético e bronzeado. Sem nenhuma dúvida,
a aparência de um salva-vidas digno de aparecer em SOS Malibu. Lara tem
que admitir que ele é realmente muito bonito; mas apesar disso…

— Eu não tô aqui pra isso — ela diz para a irmã.

— Bom, você que sabe. Eu vou lá antes que a Júlia deixe alguém surdo com
aquele barulho horrível que ela tá produzindo — Helena diz e deixa a irmã
sozinha. — Júlio! — ela grita para o menino no meio do caminho. — Larga
isso, guri, antes que você fure o bucho do Pedro!

Lara vira a tempo de ver Júlio e Pedro brincando de espadachim com os


gravetos dos marshmallows, ela sorri com a reação de Helena.

— Desculpa, tia — Júlio diz depois de parar a brincadeira.

***

Mila e Murilo estão conversando com Pepa e Pati, que também são surfistas e
frequentam as mesmas praias que eles. Depois de descobrirem vários
conhecidos em comum, Murilo pergunta sobre o acampamento,
impressionado com o número de pessoas que trabalham ali.

— Deve ser legal trabalhar aqui, tipo, eu já fui salva-vidas de piscina de clube
uma vez, mas era bem chato.

— Ah, é muito legal sim — Pati diz —, por isso a maioria volta no ano
seguinte.

— É, mas é daora quando entra gente nova também! — Pepa comenta.

— Principalmente mulher, né? — Pati provoca ele, que dá de ombros com


um sorriso levado. — É que se você é mulher, o primeiro rito de passagem é
levar uma cantada do Pepa — ela explica e dá um tapinha nas costas do
colega.

— Pô, eu não sabia que a Mila tinha namorado quando dei em cima dela —
Pepa se justifica —, foi mal, mano!
Murilo apenas solta uma risada do jeito inocente do menino.

— Tá sussi, cara, eu confio na Mila!

Mila abre um sorriso para ele; entretanto, apesar de estar ali com o grupo, sua
atenção está em Helena e Lara e no tópico que esteve ocupando seus
pensamentos a semana toda. Assim que ela nota a Helena caminhando
sozinha de volta para onde estava, decide ir até lá.

— Mu, eu já volto — ela diz e dá um beijo nele, saindo sem explicar muito.

Mila caminha até o outro lado da fogueira. Por alguma razão, ela se sente um
pouco ansiosa.

— Hm, Lena — ela diz, aproximando-se da irmã —, posso te fazer uma


pergunta?

Helena a encara desconfiada por alguns segundos, toma um gole da cerveja


do copo plástico e abre um sorriso de lado:

— Você vai perguntar se eu me sinto velha de novo?

Mila deixa escapar uma risada também.

— Não, não… Eu queria perguntar sobre os seus planos pro Luneta.

Helena é pega de surpresa com a pergunta e se empertiga levemente, como se


estivesse se preparando para um conflito.

— Por que você quer saber?

— Hm, porque eu, é… eu pensei em talvez continuar trabalhando aqui


também.

— Espera, você quer ficar com o Luneta? Tipo, com a nossa parte?

— Hm, não, não, eu não sei administrar nada, nem a minha própria vida
direito — Mila fala, destacando o rótulo do Keep Cooler de uva que está em
suas mãos. — Mas eu gosto daqui, queria poder voltar nos próximos anos.
— Eu não sei o que te falar, Mila — Helena diz em seu tom formal, aquele
que reserva aos clientes e parceiros de negócio. — Como eu falei domingo,
eu não sei ainda como vai funcionar, mas eu não pretendo me envolver
profundamente. Pretendo apenas administrar para que tudo continue em
funcionamento e a gente não perca a herança.

— Entendi — Mila diz —, mas eu acho que tem muita coisa que dá pra fazer
aqui! Dá pra organizar uns retiros de meditação, fazer fins de semana de
integração entre funcionários de grandes empresas, tour guiado para ver as
estrelas naquele lugar que a Luísa e a Sofia foram, dá até para alugar pra
casamento, olha esse lugar, quem não iria querer se casar aqui?

Helena estreita os olhos.

— Você tem certeza de que não sabe administrar, mesmo?

— Não sei, Lena, mas quanto mais tempo a gente passa aqui, mas eu entendo
o apego deles, do papai e da mamãe, eu digo.

Helena apenas encara Mila de maneira pensativa, como se seu cérebro


estivesse recalculando a rota.

— Bom, mas eu vou voltar lá — Mila diz, meio sem jeito.

— Esse lugar é tão seu quanto meu — Helena fala antes de Mila sair —, você
pode, hm, trabalhar aqui.

Mila abre um sorriso otimista que pesa na consciência de Helena.

Helena perde um tempo observando ao seu redor; as pessoas parecem felizes,


as crianças estão brincando, alguns adolescentes namorando, adultos rindo,
outros conversando, alguns jogando bola com as crianças.

Júlio e Júlia se divertem com as outras crianças, e Helena pensa na situação


deles e das outras dez crianças de abrigo que estão ali. Ela nunca se deu ao
trabalho de ir a um abrigo, conhecer a situação cotidiana dessas crianças, mas
algo lhe diz que não é como no Luneta.

Ela então perde algum tempo observando suas irmãs. Mila parece realmente
apaixonada e feliz com Murilo, e ele, por sua vez, parece ser um cara
atencioso e gentil; Lara conversa com certa desinibição com Buba, que
claramente está dando em cima dela. Helena sorri para a cena, afinal, todas
nós sabemos que Lara merece uma aventura na vida. Já Luísa e Sofia estão
presas em seu próprio universo, completamente alheias ao que acontece ao
redor.

Nesse momento, eu sei que Helena se sente como eu me senti por muito
tempo, embora ela, assim como eu, não saiba expressar da melhor forma, seu
maior desejo é ver a sua família feliz. Helena espelha os sorrisos genuínos
estampados no rosto das suas três irmãs, satisfeita em vê-las assim.

***

Pepa vai até a caixa de gelo pegar uma cerveja e coloca o braço sobre os
ombros de Luísa para lhe dar um beijo no rosto.

— Se não é a minha artista preferida — ele diz, com um sorriso.

Luísa, apesar de um pouco sem jeito sorri de volta pra ele. Sofia, ao lado
dela, não esboça nenhuma reação.

— Vocês ficam muito bonitinhos juntos — Michelle diz, ao parar ao lado


deles para pegar uma bebida também. Ela tem um tom de insinuação que faz
Luísa revirar os olhos. Pepa apenas ergue as duas sobrancelhas de forma
sugestiva.

— Nós também poderíamos ser bonitinhos juntos — ele diz, soltando Luísa e
colocando o braço sobre os ombros de Michelle.

— Deus me livre — ela retruca, tira o braço dele de seus ombros e sai.

— Eu tentei — ele diz para Luísa e Sofia, depois se vira e volta para o grupo
em que estava também.

Apesar de Luísa soltar uma risada da situação, Sofia parece não achar tanta
graça.

— Como se ele tivesse alguma chance — Luísa diz. — Ela tá caidinha por
você.

— Ela é só minha amiga.

— Talvez você tenha que lembrar ela disso.

— Ela sabe disso, e sabe que eu trato ela como amiga, se ela interpreta
errado, infelizmente, eu não tenho o que fazer.

Luísa assente com a cabeça. Ela sabe que Sofia é gentil com todo mundo e
também sabe que as pessoas costumam confundir gestos de gentileza com
outra coisa. Ela também percebe que Sofia parece um pouco de saco cheio
dessa situação, como se não soubesse mais o que fazer.

Percebendo que o clima ficou estranho de repente, Luísa resolve tentar fazê-
lo voltar ao normal:

— Você quer, hm, dar uma volta?

— Claro — ela diz, com seu habitual tom gentil, mas sem o sorriso que
geralmente o acompanha.

Elas caminham em direção ao bosque de pinheiros, onde há algumas trilhas


que, por ocasião do luau, estão todas iluminadas com tochas artificiais. A
caminhada é silenciosa e Luísa não sabe identificar se é um silêncio
confortável ou não. Um barulho de galho quebrando chama atenção das duas.

— Será que é um bicho? — Luísa pergunta, com certo receio.

— Continua medrosa, eu vejo — Sofia diz, finalmente abrindo aquele sorriso


que Luísa adora. — Não, deve ser só os adolescentes, essa aqui é tipo, a rota
da pegação.

— Como é?

— Ah, eles vêm aqui para beijar na boca, porque tem muitas árvores para se
esconderem.

— Eita, na minha época tinha isso não.


Elas chegam em uma encruzilhada e pegam o caminho à esquerda, que vai na
direção do lago.

— Claro que tinha, é que a última vez que você veio, você só tinha 11 anos.

— Pelo jeito eu perdi os melhores anos — Luísa diz em tom de brincadeira.

— Perdeu mesmo!

— E você… você usou muito essa “rota”?

Elas já começam a ouvir a rebentação suave da água na margem ao se


aproximarem do lago. A umidade causada por ele deixa o clima fresco e
agradável.

— Só uma vez, mas não foi exatamente como eu imaginei… nem com quem
eu imaginei.

Luísa assente com a cabeça, começando a desacelerar o passo perto da


margem.

— Isso é a adolescência, né? Espinhas e beijos ruins.

— Acho que sim — Sofia concorda, com uma risadinha.

Elas param a caminhada sob um dos muitos pinheiros canadenses que


permeiam o lago. Apesar de a lua ser apenas um fino sorriso no céu, a
iluminação do luau e dos postes de luz do Luneta ajudam a iluminar o lago,
fazendo desta uma vista maravilhosa e, do ponto em que elas estão um ótimo
observatório.

— Desde que eu cheguei — Luísa diz, colocando as mãos nos bolsos do


shorts —, eu tenho imaginado como as coisas teriam sido se eu não tivesse
parado de vir pra cá.

— Eu também já imaginei.

Sofia se encosta no pinheiro e se vira para Luísa.


— Você era a minha melhor amiga… e a gente provavelmente não teria se
afastado.

— Eu fiquei esperando, sabia?

— O quê? — Luísa pergunta, confusa.

— Você — Sofia diz. Luísa é pega de surpresa e se vira para ela a tempo de
ver aqueles olhos âmbar a encararem com uma mistura de vulnerabilidade e
confiança. — Eu esperei todos os verões depois daquele ano. Em todos, eu
fiquei na expectativa de que talvez você fosse voltar!

O cérebro de Luísa não consegue organizar nem um único pensamento


coerente e, quando ela se dá conta, suas mãos já estão no quadril de Sofia e
ela a pressiona contra o tronco do pinheiro.

Luísa para a centímetros de distância da boca de Sofia, mas desta vez ela não
vacila e, sem esperar por um sinal ou consentimento, fica na ponta dos pés e a
beija.

A coragem de Luísa é recompensada quando Sofia coloca as duas mãos no


seu pescoço, trazendo-a para mais perto e retribuindo o beijo. Luísa não
perde tempo e explora a boca de Sofia, abandonando de vez qualquer ideia de
resistência e dando vazão à vontade que sentiu muitas vezes ao longo das
últimas duas semanas.

As mãos trêmulas não impedem Luísa de deslizá-las do shorts jeans de Sofia,


para a cintura, por baixo da blusa de fio que ela veste, então para suas costas.
A pele dela é ainda mais macia do que Luísa imaginava e o calor desse
contato incendeia seu corpo e pensamentos.

Luísa sente tudo girando ao seu redor, e se pergunta se bebeu demais. Mas
foram só duas cervejas, ela sabe que não está bêbada, só sente como se
estivesse. Bêbada e fora de controle.

Sofia enterra os dedos nos seus cabelos e Luísa a puxa para ainda mais perto
grudando seu corpo ao dela; o som que escapa da boca de Sofia é a única
coisa que Luísa quer escutar pelo resto da vida…
— LUÍSA?!

Uma voz infantil impossível de ignorar grita seu nome.

Luísa e Sofia dão um pulo, afastando-se apenas alguns centímetros uma da


outra, e trocam um olhar confuso. Elas escutam os passos de alguém
correndo.

— LUÍSA?! — Júlio grita mais uma vez, antes de encontrá-las. Luísa ainda
segura Sofia pela cintura, e Sofia tem a respiração acelerada. Infelizmente os
sinais do que de fato estava acontecendo, são óbvios para qualquer um, até
para uma criança. Júlio para esbaforido perto delas. — Ah, você tá aí!

— O que foi, guri, alguém morreu? — ela pergunta, tentando dissipar o clima
estranho do flagrante, soltando Sofia e enfiando as mãos no bolso.

— Desculpa, tia! — ele diz meio sem fôlego e meio sem jeito. — A Mila me
mandou te chamar pra tirar uma foto.

— Tá zoando? — ela resmunga para si, e depois olha para Sofia sem graça.

O âmbar dos olhos de Sofia está quase que completamente preenchido com o
preto de sua pupila. Luísa nota confusão neles, mas também esperança. Ela
morde o lábio e solta um suspiro, sabendo que não cairia bem beijá-la mais
uma vez na frente de Júlio.

— Depois a gente, hm, continua a conversa — Luísa diz e é presenteada com


um sorriso sincero de Sofia. — Vem! Vamos tirar essa bendita foto, Ju!

Luísa caminha, sentindo-se meio tonta de repente. Júlio apenas lança uns
olhares de lado para ela, curioso com a situação. Luísa apesar de irritada por
ter sido interrompida, não consegue não sorrir para o jeito do menino.

— Ah, aí tá ela! — Mila diz ao ver a irmã. — Só falta você!

Luísa tenta disfarçar a contrariedade que está sentindo, afinal é aniversário de


Mila e ela não tinha como saber o que Luísa estava fazendo.

Sofia pega a trilha do lago, ainda meio atordoada com o beijo e a interrupção
abrupta. Ela resolve dar uma volta e tomar um ar antes de voltar para a festa.

Está andando distraída, ainda perdida em pensamentos, quando encontra


Michelle perto do píer central.

— Sofi — Michelle chama ao avistá-la sozinha.

Sofia solta um suspiro quando percebe que foi avistada e não pode mais
fugir, mas tenta ter paciência.

— Eu, é, eu estava dando uma volta…

— É mesmo um milagre te ver sozinha — ela diz. — Quer sentar?

— Hm, pode ser.

As duas se sentam em um dos bancos de madeira de frente para o lago.

— A gente quase não conversou nesse verão — Michelle diz.

— Pois é, tá meio corrido esse ano, com menos recreadores e tals.

— Mas a gente tá aqui agora.

— E você tá gostando de trabalhar com os adolescentes? — Sofia pergunta,


tentando manter uma conversa amena.

— Até que sim, a Mila nem é tão chata no fim das contas.

— Ela parece bem legal mesmo.

— Melhor que a irmã dela, com certeza.

Sofia apenas revira os olhos, sem paciência para as picuinhas da Michelle


com a Luísa.

— Tá, tá, desculpa — Michelle oferece. — É só que eu detesto como ela tá


sempre grudada em você.
Ela brinca com uma ponta do cabelo de Sofia, fazendo rolinhos com os
dedos.

— Michelle… — Sofia diz, tentando cortá-la antes que ela comece com o
mesmo assunto de novo.

— E porque eu acho que você merece mais — ela fala e se aproxima de


Sofia, deslocando a mão que estava no cabelo para o seu pescoço. Quando ela
está prestes a beijá-la, Sofia percebe o movimento e se esquiva.

— O que você tá fazendo? — Sofia pergunta espantada, colocando a mão no


ombro de Michelle para impedir o avanço.

— O que parece? — Michelle tem um sorriso no canto da boca.

Sofia se levanta do banco, para acabar de vez com a situação.

— Por que você nunca entende?! — Sofia perde a paciência pela primeira
vez neste verão. — Eu não quero nada com você!

— Você tá assim por causa da Luísa?

— O quê? Não! Tô assim porque você parece não entender nunca!

— Eu sei que você tá assim por causa dela!

— Não, eu tô assim por causa de você! — Sofia eleva o tom, de saco cheio
de ser colocada nessa situação. — Mas mesmo que tivesse algo a ver com a
Luísa, você não teria nada com isso!

— Você fica aí caindo na lábia dela, mas todo mundo sabe que ela tá ficando
com o Pepa!

— O quê?

O QUÊ?

— Ah! Vai dizer que você não sabia?!


— Você tá doida?

— O que você acha que eles ficam fazendo atrás do refeitório?

Fumando, infelizmente!

— Não sei e não é da minha conta!

— Mas eu te digo, eles estão ficando desde aquela festa na sexta.

— Você tá inventando!

— Pode perguntar pra qualquer um, pra Pati, pro Buba, até pra Betina! —
Michelle blefa.

Sofia apenas revira os olhos e sai, sem disposição para continuar a conversa.

Essa história não faz o menor sentido. Tenho certeza de que Sofia não vai
cair no papo dessa víbora!

No caminho, Sofia assiste de camarote a cena de Mila e Luísa tirando uma


foto juntas; as duas tem um largo sorriso no rosto. Em seguida, Mila chama
Murilo para aparecer na foto e ele abraça Mila por trás, descansando o queixo
no ombro dela. Pepa vê a cena e corre para fazer o mesmo com Luísa. Ela
rola os olhos, mas deixa Mila tirar a foto assim mesmo.

Mas que timing mais miserável esse. Não posso nem ficar com raiva do Pepa,
tadinho, não tem culpa de nada, só de ser meio bobo.

Sofia sente seus olhos respondendo à raiva e a humilhação que está sentindo
e muda a rota acelerando ainda mais o passo em direção de casa.

Depois da sessão de fotos, que foi quase um álbum completo, Luísa procura
por Sofia por um bom tempo, mas para sua surpresa percebe que Sofia
provavelmente já foi pra casa.
CAPÍTULO 25
Há uma leve neblina cobrindo o lago pela manhã quando Chiquinho caminha
com o seu café fumegante. No píer, ele avista duas figuras saudando o sol em
vez de uma. Murilo e Mila fazem ioga juntos antes de ele partir.

Como neste verão inteiro o seu precioso píer esteve ocupado quase todos os
dias por Mila, ele se habituou a tomar o café no banco de madeira em frente à
sede, então ele caminha até lá com uma tranquilidade que só pode ser sentida
com a brisa da manhã.

— Mas que diabos?! — ele exclama, ao ver Luísa dormindo no banco em que
pretendia se sentar.

Chiquinho não é burro, ele sabe que a filha dele chegou de mau humor em
casa ontem, e sabe também que ela estava de muitíssimo bom humor até
certo ponto do luau.

Eu sei que, assim como eu, ele também torce para que elas se resolvam logo e
está disposto a tentar ajudá-las; mas, sem saber realmente o que está
acontecendo, ele está de mãos atadas.

Confesso que para mim seria um alívio vê-las juntas, não apenas porque
Sofia é uma menina maravilhosa, mas também, porque na minha falta e do
Leo, eu ficaria tranquila em saber que Luísa teria o Chiquinho por perto.

Ele solta um suspiro ao ver a figura deplorável da minha filha dormindo ali,
mas resolve não a acordar.

Eu conheço a Luísa, na certa, ela acordou no meio da noite e veio aqui pra
fora como fez em algumas noites anteriores, e acabou pegando no sono.
Chiquinho decide tomar o seu café na sede já que seus dois pontos preferidos
estão ocupados, e já aproveita que está ali, para responder alguns e-mails que
deixou sem resposta ontem.

***

Helena corre perdida em pensamentos. No seu AirPod toca Don’t Stop Me


Now do Queen, e quanto mais ela tenta se concentrar na voz inigualável de
Freddie Mercury, mais altos seus pensamentos gritam de volta. Ela não
consegue ignorar a conversa com Mila, nem a epifania que teve no luau.

Pela primeira vez, ela se sente verdadeiramente perdida quanto ao que fazer.
Não está acostumada com isso. Ela sempre sabe o que fazer. E sempre faz!

Mas agora não sabe mais se a decisão que tomou é a correta.

Ela corre em direção a sede, passando por Mila e Murilo no píer. Quando
saiu para correr ainda era noite e a pouca iluminação noturna não permitiu
que ela reparasse nas coisas a sua volta, porém, voltando para sede, ela dá de
cara com…

— Luísa? Mas que diabos!?

Helena percebe que Luísa está dormindo e tem cara de que está ali há um
bom tempo. Ela balança a cabeça em reprovação antes de sacudir o ombro da
irmã.

— Acorda, Luísa!

Ela se mexe um pouco no banco, mas ainda não acorda. Helena suspira e
sacode a irmã com mais força.

— Acorda logo, guria!

Luísa finalmente quica no banco assustada ao ver Helena ali.

— Que porra você tá fazendo aqui fora?

— Hã? — Luísa ainda parece perdida.


— O que você tá fazendo dormindo aqui fora? — Helena repete, mais
devagar dessa vez.

— Ah, acho que peguei no sono.

— Isso eu tô vendo. Por que você não dormiu na sua cama?

Luísa se levanta e se espreguiça, sentindo os efeitos de dormir em um banco


de madeira no seu pescoço e coluna.

— Ai sei lá, Helena — responde sem paciência —, não me enche.

— Humf — Helena solta uma bufada. — É melhor a gente entrar.

Luísa ainda está bocejando quando escuta Helena cumprimentar o Chiquinho,


que está no seu computador.

— Bom dia, meninas!

A presença de Chiquinho, lembra Luísa da filha dele, e um sentimento de


culpa toma conta dela. Ela o cumprimenta também e vai direto à máquina de
café do saguão preparar uma xícara. Helena vai tomar um banho antes que
uma das irmãs se aproprie do banheiro.

Luísa não sabe exatamente por que se sente culpada. Enquanto beijava Sofia
não se sentia culpada de forma alguma, aliás, sentia-se melhor do que em
quase toda sua vida. Mas o fato de Sofia ter sumido, a fez repensar sua ação.

Será que ela foi invasiva?

Será que ela entendeu tudo errado e Sofia não queria que ela a beijasse?

Ontem mesmo Sofia falou que se Michelle interpreta as coisas erradas, a


culpa não é de Sofia! Será que Luísa também interpretou errado? Sofia já
falou que às vezes a amizade é mais importante! Talvez a amizade delas fosse
mais importante!

— Ahem. — Chiquinho limpa a garganta, chamando a atenção de Luísa que


está absolutamente perdida nas suas divagações. — Estava muito legal o luau
ontem — ele diz, tentando puxar assunto.

— Ah, estava mesmo. A Mila merece.

— Merece, sim — ele concorda com um sorriso. — Hm, Luísa, posso te


perguntar uma coisa?

Luísa fica tensa com o tom de Chiquinho. Será que ele sabe o que aconteceu?
Será que ele vai tirar satisfações por Luísa ter beijado a filha dele à força?
Será que foi um beijo à força? Parecia consensual! Mas ela certamente não
ficou esperando o consentimento antes de se atirar em Sofia! Meu Deus, será
que ela passou da conta com Sofia???

— Pode.

— Aconteceu alguma coisa entre você e a Sofia ontem?

— Hm, é, hm…Não! — O que você fala pro pai da menina que você beijou e
não sabe se ela gostou??? — Ela te disse alguma coisa?

Chiquinho esboça um meio sorriso com a cara confusa de Luísa e, por um


segundo, Luísa tem um vislumbre de esperança.

— É, não, não, mas é que ela chegou em casa de mau humor, parecia
chateada — ele fala, tentando não soar muito preocupado. — E você, é, você
dormiu no banco da praça, eu pensei que vocês pudessem ter brigado.

— Ela estava chateada? — Luísa pergunta, sentindo seu coração se


estilhaçando.

Chiquinho estuda Luísa por um segundo e não demora nada para se


arrepender de ter se metido. Pela cara de mágoa dela, ele tem a impressão de
que seja lá o que está acontecendo, teria sido melhor ficar quieto.

— Foi o que pareceu, não sei. — Ele sabe sim, ele conhece bem a filha. —
Achei que vocês pudessem ter brigado, eu, é, me desculpa ter me metido.

— Não, não. Tá tudo bem. Mas não brigamos não…


— Hm, que bom — Chiquinho diz e faz uma pausa. Ele percebe que Luísa o
encara com certo desamparo, uma mistura de mágoa e esperança ao mesmo
tempo. Ele esboça um sorriso singelo para ela e acrescenta: — Seja lá o que
aconteceu, eu espero ver vocês sorrindo juntas de novo. E, Lu, espero que
você saiba que ficaria muito feliz em ter você nas nossas vidas.

Luísa assente com a cabeça para as palavras dele; seus olhos começam a
arder e ela se concentra para não marejarem. Ela tenta desfazer o nó na
garganta com o café aguado da máquina.

— Bom dia! — Mila cumprimenta os dois, com um sorriso radiante.

Pelo menos uma das minhas filhas está feliz.

— Bom dia — Murilo também diz ao seu lado.

O bom humor deles é o suficiente para deixar o clima na recepção mais leve.

— E aí? O que você achou daqui, Murilo? — Chiquinho pergunta, com certo
orgulho.

— Pô, o lugar é maravilhoso, tem uma energia daora aqui.

Enquanto Chiquinho e Murilo conversam, Luísa aproveita para ir para o


quarto, decidida e entrar na fila do banho antes da Mila, porque ela tem a
sensação de que os dois vão tomar banho juntos e só Deus sabe quanto tempo
isso pode levar.

***

Antes das 7h30 Luísa e Helena já estão no saguão esperando as irmãs para o
café da manhã e Chiquinho ainda está ali trabalhando. Ontem, por causa do
luau, ele acabou saindo cedo da sede e deixou muita coisa por fazer.

Mila e Murilo estão se despedindo há uns cinco minutos já, quando ele
finalmente se vira para as irmãs de Mila para se despedir de verdade delas.

Helena deseja uma boa viagem, sem se levantar da poltrona na qual está com
uma revista.
Luísa caminha até ele para um abraço:

— Boa viagem, cunha!

Chiquinho se despede com um aperto de mão, e Mila o leva até o


estacionamento.

— Cadê a Lara? — Luísa pergunta.

— Deve tá dormindo ainda — Helena comenta.

— Ela vai se atrasar desse jeito.

Enquanto as duas ponderam o que aconteceu com Lara, as luzes do saguão


piscam duas vezes e elas escutam um chiado, então um estalo.

— Puta merda — Chiquinho xinga.

Ambas olham com curiosidade para ele, porque não é do feitio de Chiquinho
xingar, muito menos na frente delas.

— Meu computador queimou — ele explica.

— Olha, não é a primeira vez que as luzes aqui ficam estranhas — Helena
comenta.

— A fiação desse prédio tá toda comprometida — Chiquinho conta — nós


íamos arrumar em novembro, mas como a mãe de vocês faleceu, e eu
precisaria da assinatura dela e da aprovação do orçamento, tivemos que
colocar em standby até uma de vocês assumir.

— Que barulho foi esse? — Mila pergunta, entrando no saguão.

— Um curto-circuito, eu acho — Chiquinho responde.

— Pelo jeito é a primeira coisa que você vai ter que resolver — Luísa
comenta com Helena.

— Você vai ficar com o Luneta? — Chiquinho pergunta para Helena com um
sorriso.

— Ah! Ela não te contou a novidade? — Luísa diz com certa animação pela
alegria de Chiquinho.

Helena se remexe, desconfortável com a conversa.

— Não — ele diz —, eu fico muito feliz!

Antes que Helena possa falar alguma coisa, Buba passa pelo saguão, saindo
do quarto de Lara em direção à saída do prédio.

— Hm, bom dia, eu, é, eu vou indo!

Quatro pares de olhos apenas acompanham em silêncio ele saindo.

Mila leva a mão à boca, escondendo um sorriso.

Luísa deixa o queixo cair.

Helena esboça um sorriso de quem talvez já soubesse.

Chiquinho parece apenas desconfortável em estar ali.

— Eu vou lá em casa pegar o telefone de um técnico — Chiquinho diz antes


de sair mais rápido do que um fugitivo. Ele certamente não pretende estar ali
quando Lara aparecer.

Assim que ele sai, Mila vira para Helena:

— Você sabia?!

— Mais ou menos — Helena dá de ombros. — Mas não sabia que ele tinha
dormido aqui!

— Gente… — É tudo que Luísa consegue elaborar.

Depois de alguns minutos, Lara aparece:


— Se alguém falar alguma coisa eu vou embora e todo mundo fica sem
herança — ela diz às irmãs, sentindo a maior ressaca moral da sua vida.

Elas, no entanto, não conseguem segurar o riso, divertindo-se com a situação.

***

No café da manhã Luísa percebe que Sofia está evitando o olhar dela e
começa a sentir todo o peso do arrependimento do que fez ontem. A sua parte
mais otimista pensou que talvez Sofia estivesse chateada por algum outro
motivo que não tivesse nada a ver com Luísa, mas agora, com Sofia se
recusando a olhá-la, a parte otimista começa a ser esmagada pela realidade.

— Eu preciso de um cigarro — Luísa diz e se levanta sem dar chance às


irmãs de falarem alguma coisa.

Do lado de fora do refeitório, ela encontra Pepa, que já terminou sua refeição
e está na mesma árvore em que fumaram juntos algumas vezes.

— Ei, Lulu! — Pepa diz sorridente.

Ele logo percebe que ela não está com o melhor humor e imagina que talvez
esteja de ressaca.

Luísa apenas sinaliza para um cigarro e ele entrega a carteira com o isqueiro
para ela. Desde o dia em que foi a festa com ele, Luísa está sem comprar
cigarro, desde então, ela fumou umas duas vezes com ele depois do jantar,
mas ainda assim, é uma diminuição significativa no consumo desde que
chegou aqui. Eu considero um progresso e tanto.

— Você mandou benzão ontem.

— Valeu — ela diz, acendendo o cigarro.

— Na moral, não sabia que você tocava tão bem assim. A gente sempre faz
um luau lá na Mole, se um dia você quiser se juntar vai ser daora.

— Eu já toquei em alguns bares lá. — Luísa devolve o isqueiro para ele.


— Sério? Qual?

— Ah, já toquei no Bareco, no Bagaceiro’s Bar, no A Bica da Larica…

— Pô, o Bica é dum brother meu!

Tenho até medo de imaginar um estabelecimento com esse nome. Mas Luísa
até abre um sorriso ao perguntar:

— Você é amigo do Xandão?

— Sim, a gente pega onda juntos.

— Ele e a namorada são muito gente boa!

— Ah, a Jana é minha prima!

— Jura?

— Sim, eu que apresentei os dois. Pô, quando você for tocar lá me dá um


toque!

— Claro! — ela diz e dá mais uma tragada no cigarro.

Pelo menos, por alguns segundos, o humor de Luísa parece melhorar.

— Acho que tá na nossa hora — ele diz, olhando o relógio de mergulhador


que tem no pulso.

Os dois caminham juntos no sentido do píer já que Luísa e Sofia irão ficar
nas atividades náuticas hoje de novo. Ela aproveita o caminho para terminar o
cigarro antes de as crianças chegarem.

— Eu tava tocando no ano novo lá — Luísa diz, sobre um show que teve na
Praia Mole na festa de réveillon.

— Tá zoando? Eu tava lá!

— Então a gente tava na mesma festa.


Luísa apaga o cigarro que ainda estava pela metade quando chegam ao píer.
Ela joga a xepa no lixo.

— Pô, tô aqui pensando que se a gente tivesse conversado em dezembro,


talvez eu tivesse tido uma chance — ele diz em tom de brincadeira e coloca
um braço sobre o ombro dela.

— Eu não quero que você se ofenda, porque eu gosto de você e tals, mas
você nunca teria tido uma chance! — ela rebate, mas tem um sorriso.

Ela realmente simpatiza com Pepa, e devo confessar que eu também. Ele é
um bom menino.

— Bah, que coice! — ele fala, com o braço ainda no ombro dela. — Mas eu
já notei que eu não faço seu tipo.

Ele levanta a sobrancelha de forma sugestiva e depois aponta com os olhos


para a Sofia vindo na direção deles.

Luísa revira os olhos para ele.

— Tu é muito besta, moleque.

Os dois estão rindo quando Sofia chega no píer.

— Você não deveria estar trabalhando, Pedro Paulo?

O tom sério e a cara de poucos amigos faz Pepa se apressar:

— Tô indo — ele bate continência e dá um beijo na bochecha da Luísa antes


de sair.

Luísa balança a cabeça e sorri, mas assim que seus olhos se conectam com os
de Sofia, o sorriso morre nos seus lábios.

— Eu acho que a gente deveria conversar — Luísa diz, já sentindo certo


embrulho no estômago.

— Não, tudo bem — Sofia se apressa, desviando o olhar de Luísa —, a gente


tava bêbada, foi só um beijo, não significou nada!

Sofia diz num fôlego só, sem tempo de Luísa reagir.

Desculpem o meu vocabulário, mas que filha duma puta essa Michelle!

Luísa não estava bêbada, e tem certeza de que Sofia também não estava. E
sim, significou muita coisa para Luísa!

E para Sofia também! Eu sei que sim!

— Mas…

— A gente precisa encher o travesseiro da catapulta! — ela diz, caminhando


na direção do brinquedo e deixando Luísa para trás.
CAPÍTULO 26
O travesseiro ao qual Sofia se referia é uma boia enorme que é inflada sobre
o lago, uma criança se deita na ponta da boia e outra sobe no andaime
instalado no píer como um trampolim e pula na boia, fazendo a criança que
está na ponta voar sobre o lago e cair na água.

Devido ao trabalho que dá para montar e o cuidado que precisa existir


durante toda a atividade, a boia só é enchida uma vez por temporada. Então,
neste dia, praticamente todo mundo fica envolvido nesta única atividade.

Apesar de um dia relativamente tranquilo, ele é bastante cheio em termos de


trabalho, com pouca folga para os monitores. Mas Luísa e Lara ficam bem
satisfeitas de terem a mente ocupada o dia todo.

Lara ainda está sob o impacto da culpa e da ressaca moral que ainda não a
deixam aproveitar o sentimento de liberdade que essa pequena aventura
proporcionou.

Como ela passa o dia todo no píer com as crianças, é inevitável não cruzar
com Buba. Toda vez que ele vê Lara, abre um sorriso sabido, como se os dois
tivessem uma piada interna que ela não tem certeza de que conhece. Ele
parece perfeitamente feliz com o que aconteceu, e Lara se questiona por que
diabos não pode se sentir da mesma forma.

Ela sabe que eles não vão começar um relacionamento ou algo assim, e é
justamente por isso que não sabe como agir. Eles serão amigos? Amigos com
benefícios? Conhecidos com benefícios? Voltarão a ser quase
desconhecidos? Quais são as regras? Lara não sabe viver sem regras!

Já Luísa e Sofia parecem ter uma rixa da qual Luísa não foi avisada.
E não foi mesmo!

O mau humor mútuo delas funciona como uma força de repulsão em que uma
repele a outra, e quanto mais elas se afastam, mais estranhas ficam.

Sinceramente, acho que você irá concordar comigo, mas me parece exaustivo
ser jovem e estar apaixonada… ainda mais quando uma aspirante a vilã da
Malhação resolve aparecer para atrapalhar tudo.

Se ao menos eu conseguisse me conectar com a Mila mais uma vez para


contar o que aconteceu! Mas acho que até ela se assustou naquele dia, porque
desde então, manteve suas meditações bem breves.

Sem nenhuma ajuda celestial, creio que essas duas terão que se resolver
sozinhas.

Falando em Mila, o bom humor contagiante dela, fez com que os


adolescentes e Michelle tivessem um dia de pura diversão e paz. Acredito que
o bom humor dos adolescentes talvez venha mais da tal da rota da pegação do
que de Mila, mas ainda assim, o bom humor dela é mesmo contagiante.

Por fim, Helena está… Onde está Helena?

— Ei, Lara — Luísa cutuca a irmã com o cotovelo —, eu tô vendo coisas ou


é mesmo a Helena subindo na catapulta?

Lara se vira para o brinquedo, pronta pra dizer que, sim, Luísa deve estar
vendo coisas, quando…

— Não pode ser!

Ah, lá está ela!

Espera, o que ela está fazendo na catapulta?

— O que não pode ser? — Mila pergunta, juntando-se a elas.

— A Helena! — Luísa diz, apontando para o brinquedo.


— Não pode ser! — Mila repete.

As três assistem quando Júlio e Júlia pulam juntos do trampolim para o


brinquedo, fazendo Helena voar alguns metros antes de aterrissar na água.
Uma sequência de gritos de comemoração é ouvida entre o grupo dela,
inclusive de Pati.

— Não pode ser! — Luísa diz também.

Os gêmeos gritam e aplaudem quando Helena emerge da água com um


sorriso.

COM UM SORRISO!

— Eu falei que tinha coragem — Helena diz para os dois. — Agora é a vez
de vocês!

— Esse foi o melhor salto até agora — Pati diz, estendendo a mão para
Helena subir de novo no píer. — E aí? — Ela se vira para o casal de gêmeos
que ainda estão no travesseiro inflável. — Criaram coragem?

— Tá — Júlio diz, do brinquedo, mas sem se mexer nem um centímetro.

Júlia também parece um pouco receosa, mas engatinha para a ponta do


brinquedo, na parte que será catapultada.

Os dois, apesar de serem extremamente levados, estão com medo do


brinquedo por causa da queda. Então eles prometeram que se Helena fosse,
eles também iriam.

— Como vocês têm coragem de subir no telhado e não tem de ir nesse


brinquedo?

— É diferente! — Júlio dá de ombros.

— Bom, mas promessa é dívida! — Helena diz.

Júlio suspira e também vai engatinhando até a ponta.


— Eu acho que você deveria pular — Helena diz a Pati.

— Eu tô trabalhando — ela responde, tentando parecer profissional.

— Eu também tô — Helena argumenta e abre os braços para mostrar a água


escorrendo. — Além do mais, eu sou a sua chefe! — ela conclui e tira o
próprio colete para dar a Pati, que deve pesar mais ou menos o mesmo que
ela.

Pati abre um enorme sorriso como o de uma criança que estava louca para
brincar mas tinha vergonha de pedir.

— Depois eu pulo para catapultar você — Helena diz, ajudando ela a fechar o
colete —, porque as crianças são muito leves.

Pati sobe no trampolim e grita para os gêmeos:

— Prontos?

Os dois não respondem, mas fecham os olhos, esperando o momento que


serão jogados no ar.

Assim que o corpo de Pati afunda no travesseiro, a ponta com Júlio e Júlia
infla, jogando os dois alguns metros no ar, antes de caírem na água fresca do
lago. O colete que vestem faz com que voltem rapidamente para a superfície
com sorrisos que mal cabem nos rostos.

— EU QUERO IR DE NOVO! — eles gritam em uníssono.

Helena sorri para eles, satisfeita de eles terem superado o medo e conseguido
se divertir.

***

Antes do jantar, Helena caminha até o único local em que o sinal de telefone
pega com razoável estabilidade no perímetro do acampamento.

Ela tenta fazer a mesma ligação três vezes seguidas, quando pela terceira vez
chama até cair, ela se irrita e tenta um segundo número.
A voz no outro lado da linha não tem nem tempo de falar alguma coisa, antes
de Helena começar o ataque:

— Aqui é Helena Lancellotti, cadê o seu chefe? … tá, e por que ele não
atende o telefone? — Helena franze a testa enquanto escuta a explicação. —
E quanto tempo vai durar essa viagem romântica? … à tarde só? Tá, diz para
ele me ligar SEM FALTA segunda-feira de tarde!

Helena caminha até a sede para se trocar antes do jantar e encontra com Lara
de malas feitas, pronta para visitar os filhos e dessa vez ela ficará com eles na
sua casa, sem Felipe. O que é ótimo, porque ela realmente precisa de um
tempo para organizar as ideias.
CAPÍTULO 27
O sábado amanhece chuvoso e meio melancólico com uma energia estranha
pairando sobre o Luneta. Eu não sei explicar, mas é aquele típico marasmo
que precede uma tempestade.

Por conta da chuva, as crianças passam a manhã nas atividades cobertas, e


nenhum dos monitores ou recreadores tem muito tempo para pensar já que a
todo segundo uma criança está pedindo alguma coisa.

Como a previsão é de chuva pelos próximos dois dias, a equipe que trabalha
nos fins de semana decide fazer sessões de filmes para entreter as crianças.

Apesar disso, não há muito entretenimento para minhas filhas no período da


tarde, que não sabem o que fazer para passar o tempo. Luísa está jogada na
poltrona, olhando para o teto em catedral.

— Por que você tá com essa cara? — Mila pergunta, sentando-se no sofá em
frente a ela.

— Que cara?

— Cara de quem levou um pé na bunda!

Luísa revira os olhos e não responde mais nada.

— Espera, você levou um pé na bunda? — Mila pergunta, intrigada.

— Não foi um pé na bunda propriamente dito, foi mais uma mão no ombro
seguida de um convite para manter o status quo.

— Espera, a gente tá falando da Sofia?


Luísa apenas gesticula com as mãos como quem diz “e de quem mais seria?”.

— Isso não faz o menor sentido — Mila diz. — A Sofia — ela enfatiza o
nome — disse que não quer nada com você?

— Disse!

Mila franze o espaço entre as sobrancelhas.

— Calma, me conta isso aí direito!

Luísa conta em detalhes o que aconteceu no luau, inclusive a parte de que


Mila foi a responsável pela separação abrupta delas, e depois a conversa —
ou falta dela — na manhã seguinte.

— Primeiro — Mila diz —, eu não sou vidente! Mesmo assim, foi mal!

— Tudo bem, a culpa não é sua de ela não querer nada comigo.

— Mas pelo que você falou, ela não disse que não queria nada com você.

— Que parte do “não significou nada” você acha que eu posso ter
interpretado errado?

— A parte que ela não sabe que você quer algo mais, sua cabeçuda!

— Hã?

— Você beijou ela e depois vocês mal se falaram, ela não sabe o que você
quer de verdade, ela deve ter passado a noite pensando que você não queria
nada! Ela cortou você antes de levar um fora!

— Isso não faz muito sentido.

— Talvez, mas menos sentido que isso é ela te dar um fora!

— Ela tem o direito de não querer nada comigo, Camila! — Luísa se irrita
um pouco, às vezes o otimismo de Mila é irritante mesmo, principalmente
quando ele te enche de uma esperança que pode ser falsa.
— Direito ela tem, mas ninguém fica olhando com aquela cara de cachorro
que viu um osso pra alguém que não quer beijar!

— Você acha?

— Claro! — Mila diz, como uma coach motivacional. — E você não


desmentiu quando ela falou que não significou nada, o que fez ela pensar que
sim, ela tinha razão o tempo todo, não significou nada. Mas na verdade
significou para ela e por isso ela tá contrariada.

— E o que eu faço agora?

— Você vai lá e deixa claro o que o beijo foi pra valer!

— E se eu levar um fora?

— Você prefere que ela fique pensando que você não gostou de beijar ela do
que correr o risco de tomar um toco?

— Não!!!

— Então deixa de ser bundona.

— Tá, eu vou lá agora! — ela diz, levantando-se cheia de determinação.

Luísa apenas coloca um moletom com capuz para não se molhar com a garoa
e caminha até a casa de Sofia. Bate três vezes na porta antes de Chiquinho
abrir, não porque ele demora, mas porque ela está impaciente.

— Oi, Luísa — ele cumprimenta com um sorriso. — Quer entrar?

— Oi, não, não precisa, hm, é… a Sofia tá aí?

Chiquinho estuda Luísa por meio segundo antes de responder com certo
pesar:

— Ela acabou de sair. Hoje é aniversário de um amigo dela de Floripa!

— E quando ela volta? — Luísa pergunta mesmo já sabendo a resposta.


— Amanhã só — ele diz com um meio sorriso. — Ela vai ficar por lá essa
noite.

Um balde de água fria cai sobre Luísa.

— Hm, tudo bem… Obrigada, Chiquinho.

Ela se vira e sai antes que ele consiga falar qualquer coisa. Não tem quase
ninguém ao ar livre, apenas alguns seguranças nas guaritas e um ou outro
monitor caminhando de um prédio para outro com uma sombrinha.

Sob a chuva fina ela caminha lentamente até o píer sul, chegando lá, ela tira o
tênis e coloca os pés na água.

A chuva caindo no lago a distrai e por alguns instantes ela se concentra nas
pequenas ondas que se formam.

Eu sei que seu pensamento não está apenas em Sofia, mas em tudo que
aconteceu desde que ela esteve aqui pela última vez há 11 anos, e também
nas decisões que tomou. Ela pensa em todas as coisas que fez ou deixou de
fazer por medo, medo de me perder, de perder as irmãs, de se machucar, de
sofrer…

Não há nada que se possa fazer; sofrer faz parte do processo. Faz parte da
vida; assim como perder também faz. Luísa sabe disso agora. E se perder,
sofrer ou se magoar é inevitável, é melhor arriscar e fazer aquilo que você
tem vontade, não se privar da vida para diminuir a dor, porque junto com a
dor, você também diminui as alegrias!

Ali sentada, olhando para o lago que ela pensou que jamais conseguiria
encarar de novo, ela decide que não importa o que aconteça, ela vai atrás do
que quer!

Luísa decide falar com Sofia na segunda-feira, até lá, ela pode pensar em
tudo que quer dizer.

***

Apesar de arrastado, o domingo é tranquilo para as irmãs Lancellotti.


Mila encontra uma caixa antiga de Banco Imobiliário e ela, Luísa e Helena
passam a tarde jogando no saguão da sede.

Mila e Luísa, como esperado, estão levando uma surra da Helena, que jamais
admitiria perder em nada que envolve controle financeiro.

— Eu sou sua irmã, Lena, me dá um desconto nesse aluguel aí! — Luísa


suplica, quando cai em mais um hotel de Helena.

— Eu também sou irmã — Mila diz — e ela não me deu desconto!

— Ah, você caiu no Leblon — Luísa justifica. — Eu caí no Jardim Paulista, é


baita caro o hotel ali.

— O problema não é meu que você não sabe administrar o seu dinheiro —
Helena revida. — Mil e duzentos reais.

Luísa suspira e começa a contar o pouco dinheiro que tem.

— Tomara que os fantasmas do Natal venham te assombrar, sua avarenta! —


diz e de forma dramática joga o dinheiro para Helena, que abre um sorriso
vitorioso. Depois Luísa se vira para Mila. — Eu vou me lembrar disso,
Camila!

— O que você queria que eu fizesse? — Mila pergunta, encolhendo os


ombros.

— Ora, que me apoiasse!

— Eu não tenho culpa de você ter falido!

— Já chega vocês duas! As duas vão perder mesmo, que diferença vai fazer?!

— Você não perdoa nem a família? — Lara pergunta, entrando no saguão,


voltando da visita aos filhos.

— Não! — Luísa diz. — É uma muquirana.

— Como foi a viagem? — Mila pergunta.


— Foi ótima — Lara responde, e se senta no sofá atrás de Mila.

Mila e Luísa estão sentadas no chão de pernas cruzadas e Helena está sentada
em um pufe, estão todas em volta da mesa de centro de madeira maciça em
que está o tabuleiro.

Lara continua:

— Eu tomei uma decisão.

As três se viram para ela com curiosidade.

— Eu vou assinar o divórcio!

— Glória! — Luísa diz.

— Já não era sem tempo — Helena concorda.

— Ah! Finalmente!
CAPÍTULO 28
Por uma providência divina, que não teve nada a ver comigo, a segunda-feira
amanhece ensolarada; o que significa que ninguém precisará aguentar as
crianças com a febre da cabine.

Luísa acorda cheia de propósito e com o mesmo ímpeto de sábado quando foi
até a casa de Sofia. Ela não sabe se vai conseguir conversar com ela no
horário de trabalho, porque certamente não é uma conversa para ser escutada
pelas crianças. Mas o simples fato de ter decidido ter essa conversa, já é o
suficiente para deixá-la em uma montanha-russa de emoções.

Ela está confiante, mas está apavorada. Está segura, mas nunca se sentiu tão
nervosa. Está preparada para qualquer resposta de Sofia, mas sente que pode
morrer se levar um fora.

Tanto Mila quanto Sofia falaram que Luísa era lenta para perceber as coisas,
talvez seja mesmo, porque quando ela achou que estava vendo com clareza,
descobriu que era uma miragem. O problema é que, dentro dela, Luísa não
acha que era uma miragem, ela não acha que pode ter errado tanto ao
interpretar os sinais, e por isso o seu lado racional não consegue compreender
a reação de Sofia. Por outro lado, seu lado emocional está de coração partido!

Mas se tem uma coisa que Luísa aprendeu neste verão é que, às vezes, você
tem que deixar o racional guiar seus passos para curar o emocional
fragilizado. E é isso que ela vai fazer!

Ela e Sofia estão carregando os equipamentos de segurança para o arvorismo


até o local da atividade. Sofia não está no seu melhor humor, mas também
não parece tão irritada como estava sexta-feira. Talvez seja um bom sinal.
— Sofi — a voz metálica e insuportável de Michelle anuncia sua presença
—, eu acho que esqueci minha jaqueta jeans lá no seu apê ontem, guarda pra
mim, tá? — ela fala e lança uma piscada para Sofia.

De repente, a montanha-russa entra em queda livre.

***

Lara sente uma paz de espírito tão grande que não sabe nem explicar. Desde
que tomou a decisão do divórcio, sente como se tivesse tirado uma tonelada
das suas costas.

Ela ainda não tem advogado, nem sabe ao certo como deve proceder, mas no
momento, nada disso importa.

— Crianças! — Betina chama da mesma forma que um general diria


“soldados!”. — Aqui por favor!

Lara apenas sorri, depois de duas semanas ela já se acostumou. Betina é


mesmo autoritária, mas pelo menos é uma boa monitora.

Elas estão na entrada do bosque, preparando-se para a atividade do dia.

— Na atividade de hoje, é de extrema importância que vocês prestem atenção


em todas as orientações, está bem? — Betina continua.

Da entrada do bosque, Lara pode ver Luísa e Sofia colocando os


equipamentos de segurança.

— Como é que fecha essa porra? — Luísa pergunta, irritada tentando fechar
o capacete há quase cinco minutos.

— Calma, deixa que eu te ajudo — Sofia diz, soltando uma risada, talvez a
primeira do dia.

Sofia se vira para Luísa para ajudá-la, mas antes de se aproximar ela já
identifica o erro…

— Ah, é que tá faltando uma peça — Sofia diz e pega outro capacete junto ao
equipamento de segurança.

Luísa tira o capacete que lhe causou o estresse e Sofia se aproxima, ela
coloca o outro na cabeça de Luísa e fecha o engate sob o queixo. Luísa sente
sua respiração pausar por um segundo com as mãos ligeiramente trêmulas de
Sofia encostando de leve na sua pele. Os olhos de Sofia estão tão focados no
engate, que Luísa pensa que ele pode entrar em chamas a qualquer momento.

— Hm, como foi o aniversário? — Luísa pergunta.

Sofia eleva o olhar do engate para os olhos de Luísa, e sei que ela fica
confusa por um segundo.

— Como você sabe que eu estava em um aniversário?

— Eu, hm… eu fui até a sua casa sábado e seu pai me contou — ela fala,
quase em um sussurro, mas Sofia está tão próxima que não precisa falar mais
alto que isso.

— Você foi até a minha casa?

— Uhum.

— E o que você queria?

— Eu queria fa…

— Tudo pronto, meninas? — Betina pergunta no seu tom formal, enquanto


marcha com as crianças e Lara atrás dela.

Sofia e Luísa se assustam, e Lara ergue os ombros e estreita os lábios, como


um pedido de desculpas para a irmã.

— Hm, sim, quase tudo pronto — Sofia diz, girando ao redor do próprio
corpo, tentando procurar alguma coisa. — Ah — ela exclama, pegando um
mosquetão que estava no chão —, achei.

***
— Helena, me empresta o seu computador?

— Pra quê?

— Quero mandar um e-mail pro Armando pedindo uma indicação de um


bom advogado de direito de família.

Elas estão todas na mesa do refeitório almoçando, como todos os outros dias,
sentam-se todas juntas, na mesma mesa próxima à janela.

Lara tentou a manhã toda mandar esse e-mail do seu celular, mas a internet é
mesmo precária aqui, só funciona realmente via cabo, e como o computador
do Chiquinho queimou, o único que ela pode usar é o de Helena.

— Tá, pode usar, está lá no meu quarto.

— Qual a senha?

Luísa e Mila, viram para Helena para ouvir também, curiosas de repente.

— lilica97 — ela diz contrariada.

As irmãs caem na gargalhada.

Lilica era o nome da nossa Golden Retriever quando as meninas eram


crianças, ela morreu faz uns doze anos já. Por razões óbvias, todas
imaginavam que Helena teria uma senha numérica aleatória que não
significaria nada.

— Oh —Luísa diz com um beicinho —, que amorzinho.

— Não enche, Luísa! — Helena revida.

— Ah, a Lilica era tão linda — Mila diz, lembrando-se dela.

Todas concordam, até Helena.

— Eu vou lá — Lara anuncia, levantando-se da mesa.


Lara não demora nada para encontrar o MacAir de Helena na mesa de apoio
que ela levou para o seu quarto na primeira noite. O computador está ligado à
tomada, quando Lara desliga percebe que a base dele está quente.

Ela o leva até a mesa de Chiquinho e o liga à internet.

As palavras fluem com naturalidade dos seus dedos enquanto redige o e-mail
mais importante da sua vida adulta. Por anos, Lara pensou que assinar o
divórcio seria aceitar a derrota e admitir o fracasso, mas agora ela percebe
que a vida não é uma competição e que a felicidade dela e dos filhos não está
atrelada a nenhum prêmio de esposa-barra-mãe do ano.

Para uma pessoa como Lara, que acredita que tudo na vida tem regras e
padrões a serem seguidos, é difícil enxergar a beleza do inesperado e do
improvável. Mas estou muito orgulhosa de ela estar disposta a tentar, pelo
bem dela e dos seus filhos. Às vezes, é no inesperado que você encontra o
padrão que tanto procura.

No momento em que clica em “enviar”, um sorriso se forma no seu rosto e


uma sensação que varia entre paz de espírito e pressa toma conta dela. Ela
está quase fechando o notebook, quando uma notificação de e-mail para
Helena chama sua atenção. Na verdade, é o título do e-mail que chama sua
atenção: “Resort Luneta”.

Lara sabe que não deveria abrir os e-mails da irmã, mas ela fica curiosa,
afinal de contas, o Luneta é de interesse de todas… Além do mais, depois é
só marcar como não lido.

Ela pondera alguns segundos então clica na notificação.

A primeira coisa que nota é que aquele é apenas mais um de uma sequência
bastante longa. Lara faz uma leitura dinâmica por todos, até finalmente
chegar ao último que acabou de receber.

— Essa filha da puta!

Helena, Luísa e Mila entram na sede para escovar os dentes antes do turno da
tarde.
— Sua filha da puta! — Lara repete assim que vê a irmã.

— Que que deu? — Luísa pergunta, confusa.

— A Helena! — Lara diz, não esclarecendo nada.

Lara sai da parte de trás do balcão da recepção para ficar de frente para as
irmãs no saguão.

— O que que tem a Helena? — Mila pergunta.

Pelo olhar de Helena, ela já sabe do que Lara está falando.

— Ela quer transformar o Luneta em um resort.

— Como é? — Mila parece confusa.

— Mas e o testamento? — Luísa pergunta.

— Ela achou um “loophole” — Lara diz em inglês, com certo sarcasmo,


imitando o termo que Helena usou no e-mail.

— Que loophole?

— Anda, Helena conta para elas!

— O que você quer que eu diga? — Helena se irrita.

— Que tal começar com por que diabos você fez isso pelas nossas costas? —
Lara indaga.

— O que importa se eu fiz pelas costas ou pela frente? — Helena diz, com a
testa franzida. — Eu fiz por todas nós, para podermos pegar a nossa herança.

— Não, mas calma aí — Luísa se mete no meio das duas. — Alguém pode
me explicar que caralho tá acontecendo?

— Eu encontrei uma brecha no testamento para nós podermos nos livrar


desse acampamento sem perder a herança!
— O quê? — Mila pergunta, sentindo-se ansiosa de repente.

— Como? — Luísa pergunta.

— O testamento tá atrelado apenas à sede e ao terreno, não ao CNPJ. Se


mantermos as duas escrituras no nosso nome, sem destruir a sede, eles não
poderão confiscar nosso dinheiro, independente do que a gente construa aqui.

— Acabar com o acampamento e fazer o quê? — Mila pergunta.

— Um resort — Helena explica.

— Mas a mamãe queria que ficássemos com o acampamento — Mila fala


com tanta inocência que tenho vontade de abraçá-la.

— A mamãe tá morta, Mila! — Helena exclama, sentindo seu sangue ferver.


— Morta! De que importa o que ela queria?

— Vai se foder, Helena — Luísa revida.

— Pra mim importa! — Lara diz.

— Ah, agora vão fingir que amam este lugar, como se não tivessem aqui só
pelo dinheiro também!

— Estar aqui pela herança não significa que eu não queira cumprir a última
vontade da mamãe! — Luísa diz, alterando-se também.

— Vocês são um bando de mal-agradecidas, isso sim — Helena rebate. — Eu


fiz isso por todas nós. Ninguém queria essa merda!

— EU QUERIA! — Mila grita, surpreendendo todas e ao mesmo tempo não


surpreendendo ninguém.

O silêncio paira sobre elas por alguns segundos.

— Ah, vocês estão aqui — Pati diz ao entrar na sede. — Estava todo mundo
procurando vocês.
Todas se viram confusas para Pati, como se tivessem esquecido de onde
estavam e por quê.

— A gente já tá indo — Lara avisa.

Ela se vira mais uma vez para Helena com um olhar de reprovação, então sai.
Mila e Luísa também a seguem.

***

O clima tenso entre as irmãs é sentido o resto da tarde.

Infelizmente, elas têm que se aturar mesmo assim, porque o grupo de Helena
passa a tarde no arvorismo com Luísa e Sofia.

— Juju — Sofia diz para Júlia —, você é a próxima.

Sofia e Pati estão na plataforma base, na qual as crianças partem. Júlia deve
passar por uma pequena ponte pênsil de madeira até a outra base na qual
Luísa e Helena estão esperando. Durante todo o caminho ela está presa por
cabos e está completamente vestida com os equipamentos de segurança, mas
os cinco metros de altura do chão e o balanço da ponte a fazem tremer
levemente mesmo assim.

— Vai devagar e não olha pro chão — Helena diz, ao lado de Luísa.

— Pff, como se você se importasse com as crianças — Luísa retruca


baixinho, apenas para Helena ouvir.

— Vai pra merda, Luísa — Helena revida e se vira para Julia. — Falta pouco,
Juju!

Assim que a menina pisa na base, tanto Luísa quanto Helena forçam um
sorriso e a recebem com um high-five.

— Boa! — Luísa diz para Júlia, então se vira para Sofia e grita: — Quem é o
próximo?

— O Pedro!
— Que Deus ajude esse menino — Helena diz baixinho. — Mais
desequilibrado que uma galinha bêbada! — Júlia solta uma gargalhada com a
comparação. Helena se vira para Pedro e bate as mãos: — CONCENTRA,
PEPÊ!

Luísa estuda Helena com certo interesse.

Ela pode até ter convivido pouco com a irmã nos últimos anos, mas conhece
Helena muitíssimo bem para saber que ela detesta crianças e que jamais se
daria ao trabalho de fingir interesse. E é exatamente por isso que esta reação
lhe deixa confusa.

E por que fingir interesse se ela pretende acabar com o acampamento?

O arvorismo leva quase a tarde toda e, ao fim do último obstáculo, já é quase


hora do jantar. Pati e Helena levam os jovens aventureiros, que ainda estão
frenéticos com a atividade, para esperar pela janta — o que, para a maioria,
significa apenas brincar no parque até o refeitório abrir.

Helena aproveita que estão todos entretidos e tenta mais uma vez fazer aquela
ligação para o tal advogado. Ela caminha até o único ponto em que o sinal
funciona, que é perto da porteira de entrada do Luneta à esquerda da sede
descendo um pouco a colina.

Dessa vez, a ligação é atendida no segundo toque:

— Alô? Cláudio? — Helena indaga com impaciência. — Finalmente! Eu tô


tentando falar com você desde sexta…

***

Luísa e Sofia ficam para trás para arrumar os materiais e levá-los de volta ao
depósito.

Arvorismo é uma atividade muito divertida, mas deixa os recreadores


exaustos, tanto pelo barulho das crianças gritando umas com as outras para
incentivá-las quando tem medo, mas também por ser uma atividade um
pouco mais arriscada. Apesar de ter todos os equipamentos de segurança
frequentemente testados, os recreadores passam a atividade toda em alerta
máximo, para que nada errado aconteça. E esse estado de alerta é exaustivo.

Por conta disso, Luísa e Sofia fazem o trabalho de guardar o material em


silêncio… Ok, ok, não é só por isso! É, principalmente, porque Sofia
continua estranha com Luísa e evitando seu olhar.

Ela, embora não saiba o porquê, sabe que Sofia está zangada, mas, para ser
sincera, Luísa também sente seu sangue ferver com a informação de que
Michelle passou o fim de semana com Sofia.

— Você ficou com a Michelle? — Luísa pergunta em um tom bem mais


hostil do que pretendia.

Sofia revira os olhos, mas responde mesmo assim:

— Não!

— Ela dormiu na sua casa?

— Não, ela só passou lá porque fomos com um carro só para a festa —


responde sem paciência. — Mas quer saber? Mesmo que eu tivesse ficado
com ela, você não teria nada a ver com isso.

— Claro que não — Luísa revida com sarcasmo — Não é como se a gente
tivesse se beijado ou coisa assim!

— E daí, Luísa? — Sofia tenta soar indiferente, mas tanto eu quanto Luísa
conseguimos notar a sua voz falhando.

— Como “e daí”, Sofia? Você tá doida? Uma hora fica aí parecendo que quer
alguma coisa comigo, no minuto seguinte tá toda de chamego com a
Michelle. Eu não consigo acompanhar esse jogo duplo!

— Jogo duplo, eu? E você que está ficando com o Pepa e fica aí tentando me
seduzir!?

— Eu ficando com o Pepa? Você tá usando crack, guria? De onde você tirou
uma maluquice dessas?
A reação de Luísa deixa Sofia desestabilizada por um segundo.

— Não está?

— Claro que não! Você tá doida??? Primeiro que eu sou lésbica — ela fala,
franzindo a sobrancelha, como se fosse óbvio —, mas mesmo que eu fosse bi
ou pan não ia fazer a menor diferença, porque eu só quero ficar com você!

Sofia sente o ar faltando de seus pulmões, mas antes que consiga tomar uma
atitude…

— FOGO!

Elas escutam alguém gritar.


CAPÍTULO 29
— AJUDA! FOGO!!!

A expressão de surpresa pelas palavras de Luísa dá lugar a um sentimento de


terror e elas saem correndo na direção da voz.

Quanto mais elas se aproximam do barulho, mais o pânico geral pode ser
sentido.

Elas freiam a corrida ao lado de Mila que, assim como elas, acabou de se
deparar com a cena:

A sede do Luneta sendo consumida por chamas de até três metros. O fogo sai
pelas janelas e claraboias que tiveram o vidro estourado devido ao calor. Ao
que parece o fogo já está queimando há um tempo.

— Luísa! — Lara grita e corre até elas. — O qu…

— Não sei!

Helena escuta o barulho e caminha na direção da sede, já que de onde estava


não conseguia ver o prédio. Ela larga o celular e sai correndo na direção das
irmãs assim que vê as chamas.

— O que…

— Ninguém sabe! — Lara responde.

As quatro assistem às chamas, uma ao lado da outra, completamente em


choque, pelo que parece minutos. Mas na verdade, dura apenas a fração de
um segundo. Porque Sofia se apressa em tomar uma atitude:
— A gente precisa afastar as crianças!

A fala de Sofia tira as quatro do torpor que estavam, e Lara logo entra no
modo resolutivo.

— TODO MUNDO SE AFASTA — ela grita e caminha na direção das


crianças, que assistem horrorizadas às chamas, para retirá-las de perto do
local de risco.

— Michelle — Mila grita assim que a avista. — Vê se tem gente nos


alojamentos e refeitório, a gente precisa fazer a contagem e ver se estão todos
aqui!

Michelle assente com a cabeça e sai correndo.

— Pepa! — Sofia grita. — Os extintores!

Apesar do comando resumido, Pepa entende e sai correndo até o outro prédio
para pegar dois extintores.

Chiquinho e Zeca estão com duas mangueiras penduradas no corpo para


instalar nas torneiras ao redor da sede e, assim, tentar conter o fogo.

Betina e Lara tomam a frente na organização das crianças, as levando para o


mais longe possível das chamas.

— Pati — Sofia grita. — Corre lá em casa e liga para os bombeiros!

Sofia mete a mão no bolso e tira um molho de chaves; ela o joga na direção
de Pati, que o pega no ar e sai correndo até a casa deles.

Luísa e Sofia correm para ajudar com as crianças menores que estão
paralisadas e chorando.

Tudo é um caos.

As chamas parecem cada vez mais altas. Uma sequência de gritos e choro é
desencadeada quando mais uma janela explode e o fogo começa a sair por
ela. Pelo que é possível observar, a parte da frente da sede está praticamente
toda comprometida e o fogo se alastra de forma mais lenta para a parte de
trás.

Enquanto Chiquinho e Zeca tentam controlar o fogo com mangueiras, Buba e


Pepa estão com os extintores, e os demais jogam baldes de água que pegam
no lago para ajudar.

— Cadê o Júlio? — Helena pergunta ao ver o grupo dela reunido com Betina.

— Ele disse que viu um gato lá dentro — Pedro diz com uma expressão de
puro pânico no rosto.

Júlia olha para ele com olhos arregalados, estava tão hipnotizada pela cena
assustadora a sua frente que não notou quando o irmão saiu de perto dela.
Helena reconhece o olhar de terror da menina.

— Ele entrou na sede? — Helena pergunta.

Pedro começa a chorar porque não sabe ao certo, mas está apavorado. Helena
coloca a mão no ombro dele para acalmá-lo, em seguida toma uma decisão e
sai correndo na direção da entrada da sede.

— HELENA! — Luísa grita ao ver a irmã entrando no prédio em chamas.

Ela corre atrás, mas Sofia a segura pelo braço, para impedi-la. Assim que
Luísa se desvencilha dela, a varanda inteira do prédio despenca, trancando a
passagem.

Luísa leva a mão à boca, em pânico.

Helena ouve a varanda cair e se vira para ver que a saída está completamente
bloqueada. A fumaça faz seus olhos lacrimejarem e ela sente sua garganta
fechando. O calor é absurdo e ela não perde tempo em tentar encontrar Júlio.

— JÚLIO? — ela grita. — VOCÊ TÁ AQUI?

Dentro, a sede está praticamente impenetrável. O calor e a fumaça começam


fazer Helena ficar tonta, mas ela segue mesmo assim.
— JÚLIO?

Apesar dos obstáculos de partes que despencaram e das labaredas, ela


consegue chegar ao corredor, que está um pouco menos consumido por
chamas do que o saguão. A fumaça preta bloqueia parte da sua visão, mas
ainda assim ela consegue ver Júlio encolhido no meio do corredor com a
Elvira no colo. Ao lado deles, um caibro de sustentação está caído e em
chamas.

— JU! — ela grita e dessa vez ele a escuta.

— Tia Helena! — a voz dele é fraca mas é o suficiente para Helena saber que
ele está acordado.

Ela caminha até ele com dificuldade, com a fumaça deixando cada vez mais
difícil sua respiração. Ela tropeça em um escombro e cai em cima das
chamas, mas se levanta rapidamente e bate com a mão para apagar o fogo do
tecido do uniforme.

Por fim, ela chega ao menino, que já começa a perder a consciência de tanto
inalar a fumaça.

— Tia Helena! — ele exclama de maneira fraca antes de perder os sentidos.

Helena pega ele e Elvira no colo, e estuda a melhor saída. Ela percebe que a
porta do quarto de Mila é a que está menos bloqueada e pensa que se
conseguir entrar lá, poderá sair pela janela.

Tudo fica mais difícil com uma criança no colo, mas Helena consegue
desviar dos escombros e chega ao quarto de Mila. Felizmente, o cômodo
ainda não está muito consumido pelo fogo e ela consegue chegar à janela
com certa facilidade.

Do lado de fora, Luísa nota a movimentação na janela lateral e sai correndo.

— LENA! — ela grita. — MILA, LARA CORRE AQUI!

Mila e Lara também correm na direção deles.


— Lena! — Luísa exclama ao ver a irmã do lado de dentro.

— Pega a Elvira — Helena diz, dando a gata para Luísa pela janela.

Ela pega Elvira e a coloca com cuidado no chão do lado de fora. Então se vira
mais uma vez para a janela para poder pegar Júlio.

— Me passa ele — Luísa pede.

Mila e Lara chegam até elas. Lara, que não sabia que Helena havia entrado,
leva a mão à boca.

Com cuidado, Helena tenta passar o menino pela janela, mas ele é pesado e a
janela é alta.

— Pode confiar em mim — Luísa diz. — Pode soltar.

Helena encara Luísa por um segundo e assente com a cabeça antes de soltar
Júlio. Luísa segura o menino com firmeza em seus braços.

Helena pula a janela e Lara se apressa em ampará-la para não cair.

— Lena, meu Deus!

— JÚLIO — Júlia grita e sai correndo na direção deles.

Mila se vira a tempo de interceptar a menina e pegá-la no colo.

— Você vem comigo — ela diz, com Júlia nos braços. — Ele precisa de
espaço!

Sofia também chega até elas e pega Elvira que está no chão, e pela letargia
também foi afetada pela fumaça.

— A gente precisa ligar para o socorro — Lara diz.

— A Pati acabou de ligar — Sofia responde.

— Precisa de um helicóptero — Lara acrescenta. — Eles precisam ir para o


hospital.

A serra que leva ao Luneta é de estrada de chão e a viagem até o hospital


mais perto leva pelo menos uma hora.

Sofia assente. Ela entrega Elvira para Lara e corre para ligar para a
emergência mais uma vez.

Lara segura Elvira com uma mão e com o outro braço ampara Helena, que
não para de tossir.

No outro lado, Zeca, Chiquinho, Buba e Pepa continuam tentando controlar


as chamas.

— A gente precisa tirar vocês de perto da fumaça — Mila diz.

Elas caminham até a praça perto do lago onde o calor é menor. Luísa carrega
Júlio, Mila carrega Júlia, e Lara ampara Helena e Elvira.

— ÁGUA — Lara pede. — Eles precisam de água.

— Eu vou pegar — Betina, sempre eficiente, diz.

Ela aparece em questão de minutos com duas garrafas e um pote de água para
Elvira.

— As crianças estão seguras e já fizemos a contagem duas vezes. Tirando


Júlio e Júlia, estão todos conosco — ela diz acalmando as irmãs.

— Obrigada — Lara agradece.

Helena está com os braços e parte da perna queimados, Júlio ainda está
desmaiado nos braços de Luísa.

— Ele vai ficar bem, minha linda — Mila diz a Júlia que está chorando no
seu colo. Júlia abraça Mila com força pelo pescoço, que tenta acalmar a
menina acariciando suas costas.

— Eles estão vindo — Sofia informa, assim que se aproxima. — Eu falei que
tinha gente ferida.

— Obrigada, Sofia — Mila agradece.

Luísa tenta limpar o rosto de Júlio que está cheio de fuligem com a mão
úmida de água. Então, ela coloca a mão sobre o peito dele para sacudi-lo com
cuidado, para tentar acordá-lo.

Lara segura a mão de Helena, que observa nervosa a cena. Quando Júlio
começa a tossir, Lara nota Helena soltar um suspiro de alívio.

— Água! — Luísa pede.

Ela dá água aos poucos para o menino, então o deita com cuidado no banco e
se agacha ao seu lado, que não para de tossir.

— Cadê a enfermeira? — Lara pergunta.

— Eu vou procurar! — Sofia diz e, mais uma vez, sai correndo.

Em meio ao caos, Caroline, a enfermeira de plantão, que estava ajudando


com as crianças, não havia notado os dois feridos. Assim que Sofia a chama,
ela faz os primeiros socorros e fica com eles até o helicóptero chegar.

Luísa começa a roer as unhas, ansiosa, e Sofia pega a mão dela e entrelaça
seus dedos, para mostrar que está ali. Luísa aperta com certa força.

Começa a chover mais uma vez no Luneta, uma chuva forte e constante.

— Foi a mamãe que mandou! — Mila diz ao sentir os pingos.

Quero pensar que foram mesmo os meus pedidos aqui que se realizaram.

O barulho do helicóptero se aproximando chama atenção de todos. Betina e


Pati levam as crianças para a varanda do refeitório para se abrigar da chuva,
enquanto o helicóptero pousa no campo ao lado do lago.

A força das hélices faz a fuligem da sede se espalhar para todo lado e nem
mesmo a chuva é capaz de conter as cinzas.
Enquanto os paramédicos ajudam Helena e Júlio e os acomodam no
helicóptero, Júlia diz que não vai deixar o irmão de jeito nenhum! O
sentimento é compreendido com facilidade por Mila, Lara e Luísa, que
também insistem em ir.

Luísa olha com dúvida para Sofia e suas mãos entrelaçadas.

— Vai! A gente resolve o resto aqui! — Sofia diz, a tranquilizando.

Luísa assente, e Sofia planta um beijo reconfortante na sua bochecha.

Com ajuda da chuva e dos bombeiros que não tardaram tanto a chegar, em
pouco mais de uma hora o fogo finalmente é extinto e sobra apenas as ruínas
do que um dia foi a sede do Luneta.
CAPÍTULO 30
Por insistência de Lara, o helicóptero está levando-os para o hospital
particular no qual a médica de confiança da família trabalha.

— Alguém tem celular? — Lara pergunta, todos ainda estão dentro do


helicóptero. — O meu ficou na sede.

— O meu também — Mila responde, com Júlia no colo.

— Eu tenho — Luísa diz, metendo a mão no bolso à procura do aparelho. —


Mas tem pouca bateria.

Luísa entrega o celular para Lara e volta a roer a unha. Eu sei que ela daria
qualquer coisa por um cigarro agora.

— Qual a senha?

— Ah, sim… 1705!

— O aniversário do papai!

— Uhum. — Luísa consegue esboçar um sorriso apesar de tudo.

— Tá, eu vou ligar pro Felipe — Lara explica —, ele tem o número da dra.
Inês.

— O número dele tá salvo como “Cú-nha” … Cú, hífen, nha!

Apesar do clima de tensão e nervosismo, Lara solta uma risada, que é imitada
por todas, até mesmo por Helena que está com a máscara de oxigênio no
rosto.
A ligação é breve, já que o celular de Luísa tem apenas 2% de bateria, mas
Felipe garante que irá avisar a médica de que eles estão indo para a
emergência.

Em questão de minutos, o helicóptero pousa no telhado do hospital e a equipe


médica já está preparada.

Enquanto Helena e Júlio são levados para fazer os exames e os outros


procedimentos, Lara cuida da parte burocrática dando entrada nos dois. E
Luísa tenta encontrar alguém com um carregador de celular para emprestar.

Assim que consegue o carregador, ela e Mila levam Júlia à lanchonete do


hospital para que a menina coma alguma coisa, já que por conta do incêndio
ninguém jantou. Júlia reluta um pouco, alegando não ter fome, mas elas, por
fim, a convencem.

— A Lara tá demorando — Mila diz.

— Ela dev… Ah, ali tá ela.

— Luísa, eu preciso do seu celular — Lara pede, tão logo ela se aproxima. —
Nenhum dos dois tem documentos, preciso ligar para o abrigo e pedir uma
cópia dos documentos do Júlio. E acho que o Armando consegue os da
Helena.

Luísa checa o seu celular e vê que já está com 35% de bateria, ela desconecta
e entrega para Lara, que entra no modo “mãe resolvendo problemas”.

— O Júlio vai ficar bem? — Júlia pergunta para Lara, cheia de ansiedade no
olhar.

— Claro que vai, meu amor! — Lara diz se agachando na frente dela e
pegando uma das mãos da menina. Ela ainda tem os olhos vermelhos de
chorar, mas parece mais calma. — Ele só inalou muita fumaça, mas ele vai
ficar bem, não se preocupa.

— E a tia Helena?

— Também! Os dois vão ficar bem — ela responde, quando Júlia assente
com a cabeça, Lara vira para Luísa. — Eu posso usar seu celular para acessar
a minha conta no banco?

— Claro — Luísa responde. — Pra quê?

— Pra pagar as despesas. A Helena tem o plano que cobre quase tudo, mas o
Júlio não deve ter.

— Paga com a minha conta — Luísa diz. — Meu cartão tá no Apple Pay.

— Tem certeza?

— Claro que sim.

— Tá, eu vou fazer as ligações!

Ela se vira, já discando o número de Armando.

Da lanchonete, as três seguem para a recepção para encontrar Lara e esperar


por notícias, mas as horas passam devagar enquanto esperam.

Todas elas ainda estão com o uniforme do acampamento: blusa amarela clara
e bermuda cáqui; além de sujas e descabeladas. Por conta disso, volta e meia
recebem algum olhar curioso ou julgador dos visitantes que perambulam pelo
elegante hospital.

Júlia está mais uma vez no colo de Mila, Luísa está sentada ao lado delas
balançando os pés com certa impaciência e Lara ainda está mexendo no
celular.

— O que você tá fazendo? — Luísa pergunta a Lara.

— Tentando alugar um carro pra gente poder voltar… Você tem a CNH
digital, né?

— Tenho.

— Beleza, então.
— A dra. Inês tá vindo — Mila diz, levantando-se.

— Boa noite — ela cumprimenta de forma educada e dá um sorriso


encorajador para Júlia.

— Como eles estão? — Lara pergunta.

— Felizmente nenhum dos dois teve queimaduras traqueais e não precisaram


ser entubados.

— Graças a Deus — Mila suspira aliviada.

— O Júlio está bem, mas vai ficar no oxigênio esta noite por precaução. A
Helena também está bem no que diz respeito à parte respiratória, mas ela
sofreu algumas queimaduras nos braços e na perna direita.

— Muito grave? — Luísa pergunta.

— Todas de primeiro grau — ela responde, com um tom calmo e firme. —


Os dois estão bem, estáveis e provavelmente poderão receber alta amanhã
cedo.

— E a gente pode ver eles? — Luísa pergunta.

— Podem. Eu só vou verificar se Helena já está no quarto.

— Você pode deixá-los no mesmo quarto, doutora? — Mila pergunta.

— O Júlio está na pediatria, mas posso tentar realocá-lo.

— Por favor — Lara pede.

A dra. Inês assente com a cabeça e sai. Lara solta um suspiro aliviado e
abraça Luísa, que enterra o rosto no ombro da irmã. Mila volta a se sentar e
puxa Júlia para o seu colo e um abraço.

***

Todas as quatro sentem um profundo alívio quando entram no quarto e dão


de cara com os dois acordados e aparentemente bem, apenas com o oxigênio
no nariz.

— Ju!

Júlia corre até Júlio e pega sua mão, ele abre um sorriso que confirma que
está mesmo bem.

Lara e Luísa vão até Helena, mas não a abraçam devido às queimaduras.
Cada uma pega uma das mãos. Luísa lhe dá um beijo na bochecha.

Mila caminha até Júlio e se senta do outro lado da cama, o lado que não está
ocupado por Júlia.

— Obrigada por salvar a Elvira — ela diz, pegando a mão dele. — Mas
nunca mais faz uma coisa dessas, pelo amor de Deus.

— Ela tava presa lá dentro, eu vi ela tentando sair pela janela — ele explica
—, mas a janela tava fechada.

Mila pensa na sua gata e torce para que alguém no acampamento esteja
cuidando dela.

— Obrigada, você foi muito corajoso! — Mila diz, então repete: — Mas
nunca mais faça isso!

— Sim, senhora — ele diz num tom exageradamente obediente.

Mila sacode a cabeça, mas sorri para ele.

Depois de se certificar de que ele está bem, Júlia solta a mão do irmão e vai
até Helena.

A cama-leito é muito alta, mas, mesmo assim, ela escala a grade lateral para
abraçar Helena. Lara se prepara para dizer que não pode, ou que vai
machucá-la, mas Helena faz um sinal com a mão para não falar nada.

Júlia toma cuidado para não encostar nas partes queimadas, mas abraça
Helena pelo pescoço, que leva a mão não queimada até as costas da menina,
para confortá-la. Lara, Luísa, Mila e Júlio apenas assistem a cena. Júlia não
diz nada, mas todos sabem que esse abraço é um agradecimento pelo que
Helena fez.

Depois de todos os beijos, abraços e do sentimento de alívio geral, todas se


acomodam nas cadeiras e sofás ao redor das camas.

— Vocês já jantaram? — Lara pergunta.

Os dois balançam a cabeça em negação.

— Será que eu consigo pedir um filé mignon? — Helena brinca.

— Eu quero um hamburger — Júlio diz animado.

— Eu também quero! — Luísa concorda.

Agora que sabe que tanto a irmã quanto Júlio estão bem, a fome, que era
inexistente mais cedo, aparece com força total.

— Quando a gente sair daqui, a gente vai comer um hamburger — Helena


promete para Júlio.

— Eu também quero ir — Luísa diz.

— E eu também — Júlia endossa o coro.

— Bom, vamos todo mundo de uma vez — Helena diz com certa rabugice,
mas tem um sorriso.

— Eu sou vegana — Mila lembra, levantando a mão.

— Aí você pede um hambúrguer de alfafa ou seja lá do que as coisas que


você come são feitas.

Júlia e Júlio acham graça do comentário, mas Mila corrige:

— Pode ser um de beterraba ou grão-de-bico.


— Um desse então — Helena diz.

Falando em comida…

— O jantar! — uma enfermeira anuncia, entrando no quarto com os pratos


dos dois pacientes.

— É mignon? — Helena pergunta.

— Infelizmente, não tínhamos no cardápio hoje — a enfermeira brinca.

Helena analisa o prato de purê de batata, ervilhas, legumes e carne ensopada.

— Não é nenhum prato digno de estrela Michelin, mas dá pro gasto.

— O meu tá bom — Júlio diz, já com a boca cheia.

Parece que ele também estava com fome.

— Se precisarem de alguma coisa é só chamar por essa campainha — a


enfermeira explica, apontando para os dois interruptores em cima da cama de
cada um deles.

— Pode deixar, muito obrigada — Helena diz, então começa a comer.

Enquanto os dois comem, um silêncio confortável toma conta do quarto.


Luísa tem que admitir que está com tanta fome que até a comida de hospital
da Helena está lhe parecendo apetitosa.

— Ahem — Helena limpa a garganta, tentando chamar a atenção das irmãs.


— Eu… eu falei com o advogado.

— Que advogado? — Mila pergunta.

— O do loophole — Helena imita o tom de Lara desta manhã. — Eu cancelei


o negócio.

As três irmãs a encaram por um tempo, sem saber o que falar. Com a
confusão, todas já haviam esquecido o caso.
Helena continua:

— Na verdade, eu já tinha desistido na sexta-feira, mas não consegui falar


com ele até essa tarde.

— Por que você não disse nada hoje mais cedo? — Luísa pergunta.

— Sei lá, vocês começaram a me acusar, eu fiquei irritada.

— Você preferiu discutir com a gente a admitir que tinha desistido do


negócio? — Mila pergunta com um sorriso incrédulo.

— Vocês sabem como eu sou!

Luísa solta uma risada.

— A gente sabe!

— Helena — Lara diz em um suspiro, como uma mãe exausta com os filhos.

— Mas eu não quero acabar com o acampamento — Helena continua.

— Tarde demais — Luísa diz, mas não tem malícia nem acusação em seu
tom. — A gente já acabou com ele.

— A gente não sabe em que estado a sede está, Lu — Mila, com seu
otimismo habitual, intervém.

— De pé é que não está, Mi.

— Não! A Mila tem razão — Helena fala, e as três olham para ela como se
tivesse sido abduzida por um extraterrestre e trocada por um avatar. — A
gente não sabe o estado que está.

— Tem razão — Lara concorda. — Só vamos saber quando voltarmos para


lá.

***
Por volta das 20h, elas decidem ir à casa de Lara, que é a única que tem
fechadura biométrica, já que todas saíram sem nenhum pertence. Júlia reluta
um pouco em se separar do irmão, mas por fim aceita ir com elas.

Luísa chama um Uber e já faz um pedido no Orso para o jantar. Elas tomam
um banho e dormem algumas horas antes de voltar para o hospital.
CAPÍTULO 31
Depois da visita da médica na manhã seguinte, Helena e Júlio ganham alta.

Lara e Mila ficam com eles enquanto a documentação é processada, e Luísa


pega um Uber até a locadora para retirar a minivan que Lara alugou para
voltarem ao Luneta.

A viagem de volta é silenciosa e carregada de um clima de paz. Luísa é quem


vai dirigindo, Lara está no passageiro. Mila no banco de trás com Júlio
dormindo no seu ombro, e Helena na última fileira com Júlia dormindo com a
cabeça no seu colo.

Já são quase 10 horas da manhã quando Luísa estaciona o carro ao lado do


que sobrou da sede. O dia amanheceu chuvoso mas um fio de fumaça ainda
teima em subir dos escombros do que um dia foi a sede do Luneta.

Lara e Mila levam os gêmeos até o alojamento para que descansem mais um
pouco já que a noite anterior foi tumultuada, e Luísa e Helena param, lado a
lado, em frente às ruínas da sede.

Luísa procura a mão da irmã e entrelaça seus dedos, mas nenhuma das duas
fala nada. Sei que pensam naquela conversa em que brincaram que se a sede
queimasse elas poderiam receber a herança sem cumprir a condição do
testamento.

Lara e Mila retornam e se juntam a elas, Lara pega a mão de Luísa e Mila
passa um braço pelos ombros de Helena.

— Em um único verão a gente conseguiu destruir um legado de 45 anos! —


Lara diz.
— Em duas semanas — Luísa corrige.

— Ainda bem que a mamãe não tá aqui pra ver isso — Helena comenta.

— A gente destruiu a sede, tá bom, é verdade, mas não destruímos o legado!


O Luneta continua aqui — Mila argumenta.

Elas não olham para Mila, mas escutam o que ela tem para dizer.
Normalmente o otimismo dela em um momento de desastre é bastante
irritante. Porém, dessa vez, elas sentem que precisam das palavras
encorajadoras da Mila.

Ela continua:

— Não é o prédio que faz esse lugar. Não somos nós, não é o lago, nem as
atividades. São as pessoas e as experiências que elas têm aqui!

— A Mila tem razão — Luísa concorda.

— E o prédio a gente pode reconstruir… — Helena considera.

— Eu concordo! — Luísa diz.

— Eu também — Mila acrescenta.

Lara assente com a cabeça, confiante de que sim, elas podem mesmo
recuperar o Luneta.

— Mila — Lara diz —, eu acho que você deveria assumir depois que a gente
reconstruir.

— Eu concordo — Helena diz.

— Eu também — Luísa endossa.

Mila sorri e deita a cabeça no ombro de Helena.

Acho que no fundo, não é surpresa para ninguém que o Luneta fique mesmo
para Mila, ela é a cara desse lugar. Ela tem o amor pela natureza que meu pai
tinha, e o eterno otimismo e desejo de proporcionar bons momentos a todos
que a cercam que o Leo tinha.

Ela ainda está distraída pensando em tudo que pode ser feito para melhorar
ainda mais o Luneta quando sente algo na sua perna. Ela olha para baixo a
tempo de ver dois pares de olhos negros a encarando.

— Meu amor! — Mila exclama e se abaixa para pegar Elvira no colo. —


Você está bem!

A gata mia de maneira suave, aparentando saúde. Mila a segura nos braços e
faz um cafuné atrás das orelhinhas felinas, sentindo-se aliviada de Elvira estar
bem.

— Então está tudo resolvido? — Helena pergunta.

— Ainda não! — Luísa diz. — Eu tenho outra coisa pra resolver.

As três irmãs sorriem para ela.

— Vai lá, Romeu. — Lara dá um tapinha na bunda dela, como que a


apressando.

***

Luísa corre até a casa de Chiquinho e Sofia enquanto a chuva começa a cair
mais uma vez.

O céu parece refletir o clima melancólico que paira no Luneta desde o


incidente, porque além da chuva, chega também uma brisa gelada.

Quando Luísa para em frente a porta, está completamente encharcada. Ela se


posiciona em cima do capacho para não molhar a varanda toda, mesmo que
Paçoca já tenha feito esse trabalho, e bate na porta três vezes.

Todo seu corpo está meio trêmulo, um pouco pelo frio inesperado para
fevereiro, mas principalmente pela ansiedade. Apesar disso, eu sinto que ela
está confiante.
— Luísa? — Sofia pergunta surpresa ao abrir a porta. — Qua… quando você
chegou?

— Agora há pouco.

— Meu Deus, você tá toda molhada — Sofia diz, notando o estado dela. —
Entra lo…

Ela não tem tempo de terminar a frase, porque Luísa encurta o espaço entre
elas e a beija.

Sofia não demora nem um segundo para entender o que está acontecendo e
retribuir, levando as mãos aos cabelos molhados de Luísa.

Não é um beijo afoito como o do dia do luau, é um beijo cheio de intenção e


sentimento. Luísa segura o rosto de Sofia e acaricia suas bochechas com o
polegar.

Quando ela interrompe o beijo, alguns segundos depois, é apenas para tentar
explicar com palavras aquilo que ela já explicou com gestos:

— Eu não sei se tá acontecendo alguma coisa entre você e a Michelle, ou, sei
lá, você e outra pessoa, mas eu tô apaixonada por você desde… desde os sete
anos, eu acho — Luísa fala tudo como uma metralhadora. — E tudo bem se
você quiser ir devagar e tals, eu posso te levar pra jantar, não sei, mas…

Dessa vez é Sofia quem a faz ficar quieta, retomando o beijo. Luísa consegue
sentir Sofia sorrindo contra seus lábios. Ela fica na ponta dos pés para tentar
diminuir a diferença de altura, e Sofia baixa as mãos do seu rosto para a
cintura, trazendo-a para mais perto.

Ainda a segurando, Sofia afasta o rosto ligeiramente.

— Não tem mais ninguém, sua tonta — Sofia fala entre beijos breves —
Nunca teve!

Luísa abre um sorriso tão largo que mal cabe no rosto.

— Sofia, você já ligou para… Opa! Me desculpa!


As duas se separam a tempo de ver um Chiquinho sem saber o que fazer. Ele
pondera voltar para onde estava, mas elas já o viram, então fica ali, sentindo-
se embaraçado por ter interrompido.

— Oi, Luísa — ele diz por fim. — Vocês voltaram!

— Acabamos de chegar.

Sofia solta Luísa, mas não se afasta dela.

— Eles estão bem?

— Sim, estão sim. A Helena tá com algumas queimaduras, mas todas leves.

— Que bom! — ele diz com um sorriso. — E vocês — Ele aponta com o
dedo para as duas — se entenderam finalmente?

— Eu espero… — Luísa diz.

— Sim! — Sofia afirma, ao mesmo tempo.

Luísa abre um sorriso ao ver a expressão de Sofia.

— Bom! Eu fico feliz.

— E o que você queria, pai? — Sofia pergunta e pega a mão de Luísa para
levá-la para dentro de casa.

— Ah, sim, sim… saber se você já ligou para o Fausto?

— Sim — ela confirma. — Só falta o motorista do São Miguel.

— Motorista? — Luísa pergunta.

Sofia se senta no sofá e puxa Luísa para fazer o mesmo. Luísa reluta por estar
molhada, mas Sofia a puxa de novo e Luísa cai sentada ao seu lado.

Nem preciso continuar acompanhando para saber quem vai mandar nessa
relação!
Chiquinho se junta a elas, se sentando na poltrona em frente.

— Estamos ligando para todos os pais e também para as instituições e os


motoristas dos ônibus que fazem o transporte das crianças — Chiquinho
explica. — Vamos ter que mandá-las embora mais cedo esse ano.

— Eu sinto muito, Chiquinho! — Luísa diz, sentindo todo o peso daquilo.

— A culpa não foi de vocês, Luísa — Chiquinho diz com gentileza. — Foi
um curto-circuito. Os bombeiros identificaram o foco inicial; foi um dos
interruptores do saguão, aquele que ficava plugada a luminária ao lado da
poltrona.

— Ainda assim, o Luneta estava sob o nosso cuidado!

— Estava sob o meu também.

— O importante é que estão todos bem — Sofia apazigua.

Luísa balança a cabeça em concordância e leva a mão de Sofia até seus


lábios.

— Falando nisso — Sofia diz para Luísa. — Você precisa tirar essa roupa
molhada. Vem!

— Eu vou ligar para o São Miguel — Chiquinho diz para a filha.

Assim que Sofia fecha a porta do seu quarto, Luísa não tem nem tempo para
pensar antes de sentir os lábios de Sofia mais uma vez.

Eu ia falar que elas parecem duas adolescentes, mas creio que sejam mesmo.
Tenho a impressão de que a adolescência dura mais tempo nos dias de hoje.
A Mila, por exemplo, foi adolescente até os 29! Mas fico feliz por elas. Essa
é mesmo uma das melhores fases da vida e merece ser aproveitada.

Depois de muitos beijos e risadinhas, Sofia se lembra do porquê trouxe Luísa


para o quarto.

— Você deveria tomar um banho!


— Você tá insinuando que eu tô fedendo?

Sofia solta uma risada.

— Porque você tá toda molhada, sua besta. Deveria tomar um banho pra não
ficar doente.

Luísa ainda está com o mesmo uniforme de ontem. Apesar de terem dormido
na casa da Lara, nem ela, nem Mila quiseram pegar uma roupa emprestada.
Elas apenas lavaram os uniformes e o vestiram de novo nessa manhã.

— Hm, tomar banho aqui?

— Claro! — Sofia confirma. — Eu vou pegar uma roupa seca pra você.

— Falando nisso — Luísa pergunta, ainda segurando Sofia pela cintura. —


Alguma coisa minha se salvou?

Sofia nota o olhar esperançoso no rosto dela, e não demora muito para
entender do que a pergunta realmente se trata.

A expressão de pesar de Sofia, já responde à pergunta de Luísa antes mesmo


de ela verbalizar:

— O violão estava no saguão, não sobrou nada dali. Os bombeiros


recuperaram algumas coisas do quarto da Mila, mas o resto…

Luísa assente de maneira cabisbaixa.

Aquele violão era o xodó dela, ele era do Leo, e ela se apossou dele depois da
sua morte. Luísa sente o nó na garganta se formando. Sofia leva a mão ao
queixo de Luísa e ergue sua cabeça.

— Eu sinto muito!

Luísa apenas a encara com os olhos marejados. Sofia puxa ela para um
abraço e Luísa enterra seu rosto sob o queixo de Sofia. Foram muitos
acontecimentos nas últimas 24 horas e Luísa ainda não conseguiu processar
tudo, mas ali, contra o peito de Sofia, parece o melhor lugar para fazer isso.
Sofia ampara Luísa de um jeito que Luísa nunca havia permitido a ninguém
antes, e esse simples ato de vulnerabilidade e confiança pode parecer pouco,
mas é um grande salto para Luísa.

— Mas eu achei uma coisa — Sofia diz depois de um tempo.

— Hm? — Luísa pergunta, afastando-se apenas para poder enxergá-la.

Sofia abre um sorriso encorajador e caminha até a cômoda do seu quarto.

— Eu andei lá pelos escombros essa manhã e achei isso — ela diz, mostrando
a gaita vermelha de Leo.

Um sorriso ilumina o rosto de Luísa.

***

A chuva finalmente dá uma trégua no começo da tarde e o sol toma seu posto
soberano no céu.

Mila caminha até o píer que, ao longo dessas semanas, se tornou seu local
preferido. Ela vê a figura do Chiquinho de pé, observando o lago com certa
melancolia.

— Você tá no meu lugar — Mila diz.

Chiquinho se vira e copia o sorriso gentil dela, mostrando as duas covinhas.

— Era o meu lugar antes de você chegar!

— Acho que a gente pode dividir daqui pra frente, o que você me diz?

Mila para ao lado dele.

O lago está calmo agora. Como não tem vento, não é possível ouvir a
rebentação suave a qual Mila já se acostumou durante suas sessões de ioga.

— Daqui pra frente? — ele pergunta.


— Eu vou ficar com a parte da mamãe! — ela conta. — Quer dizer, a Lu, a
Lara e a Lena concordaram em ter uma fatia simbólica também, pra manter
entre todas nós, mas eu vou ficar com a parte majoritária.

— Você sabe que apesar do seguro, esse incêndio vai trazer muitas despesas,
né? — ele diz com certo desânimo. — O Luneta não tem caixa para cobrir
todos os gastos.

— Eu sei — ela responde com lucidez. — Mas nós vamos reconstruir a sede,
e esse lugar vai voltar aos seus dias de glória! Eu não tenho mais nada para
fazer com a minha parte da herança mesmo.

***

Helena caminha até o alojamento das crianças e bate de leve na porta antes de
abri-la com cuidado.

Júlia está terminando de arrumar a sua mochila e Júlio está sentado na cama
da irmã ainda mantendo repouso.

— O ônibus está chegando — Helena anuncia.

Ela entra e se senta na cama ao lado da que Júlio está. Esse alojamento é
apenas das meninas, mas as outras três companheiras de quarto de Júlia
aproveitam o resto do tempo que tem no acampamento para brincar lá fora.
Júlio divide o alojamento com Pedro e mais dois meninos, que também estão
aproveitando os últimos minutos.

— Eu já tô terminando — Júlia diz.

— Ela já olhou todas as gavetas cinco vezes — o irmão acusa.

— É pra ter certeza que eu não esqueci nada!

— Minha irmã é igualzinha — Helena diz para o Júlio.

— Qual delas?

— A Lara!
— Ela é legal — Júlia diz. — As três são.

— São mesmo — Helena concorda.

Júlia checa todas as gavetas mais uma vez, e Júlio balança a cabeça em
descrença.

— Tô pronta! — ela anuncia, colocando a mochila nas costas.

Helena pega a mochila de Júlio e coloca sobre seu ombro não ferido.

— Vamos? — ela pergunta.

Agora que a chuva passou, o ar está úmido e gelado, apesar de ser o auge do
verão e ter sol. Helena estende uma mão para Júlio se levantar e, assim que
atravessam a porta do quarto de Júlia, estende a outra mão para ela.

Os ônibus que vieram buscar as crianças já estão todos ali, e o caos da


despedida é inversamente proporcional ao da chegada.

As crianças estão agitadas, mas a energia é melancólica dessa vez. Algumas


choram, outras se abraçam, a maioria faz juras de manter contato ao longo do
ano e promessas de voltar no próximo verão.

Lara, Mila, Luísa, Sofia e Chiquinho também estão ali se despedindo das
crianças com as quais se divertiram nesse verão prematuramente encerrado.

Helena se agacha ao lado do ônibus dos gêmeos e os dois se viram de frente


para ela.

— Vê se vocês se comportam! — Helena diz. — Nada de escalar telhado ou


querer bancar o super-herói, tá bem?

— Pode deixar, tia!

— Eu não sou tia de vocês — ela diz, mais por hábito do que qualquer outro
motivo, mas dessa vez a frase trava na sua garganta.

— Eu vou sentir saudade — Júlia diz, e seus olhinhos emoldurados pelos


longos cílios marejam um pouco.

Helena tem que se esforçar para manter a postura, mas sente seus olhos
umedecendo também.

— Bom, a gente ainda tem que comer aquele hambúrguer — Helena lembra.

— Eu achei que você tinha esquecido — Júlio diz.

— Claro que não! Promessa é dívida — ela repete a mesma frase que disse a
eles no dia da catapulta.

Júlio tira do pulso uma pulseirinha feita por ele mesmo com elástico e
missangas coloridas.

— Isso é pra você — Ele pega a mão de Helena e coloca a peça colorida no
seu pulso. — Por ter me salvado.

Helena estuda a pulseirinha que não combina em nada com a pulseira


delicada de ouro que está ali junto, mas que ao mesmo tempo, não poderia
combinar melhor.

— Obrigada!

— Ju, Juju — Pati diz, parecendo culpada por interromper. — O pessoal do


ônibus tá só esperando por vocês.

— Logo a gente come aquele hambúrguer, ok? — Helena diz e puxa os dois
para um abraço.

Na sequência, os dois abraçam e são abraçados por todos os outros adultos.


Então, depois de algumas lágrimas, o ônibus deles finalmente parte.

Luísa é a primeira a abraçar Helena, que desiste de tentar segurar o choro e


deixa as lágrimas escorrerem. Lara e Mila chegam segundos depois para um
abraço coletivo.

***
Sofia está sentada no píer central, encostada no guarda-corpo com Luísa
sentada entre as suas pernas. Ela abraça Luísa pela cintura e apoia o seu
queixo no ombro da minha filha.

Elas estão ali, apenas sentindo a brisa do fim da tarde e aproveitando as


últimas horas das duas no Luneta. Sofia está com um dos pés pendurado no
píer balançando sobre água.

— Que silêncio — Luísa comenta.

Depois que as crianças foram embora, os monitores e funcionários também


começaram a partir.

— Quem diria que 68 crianças seriam tão barulhentas — Sofia diz com um
sorriso.

Luísa que está com as mãos entrelaçadas às de Sofia, as puxa ainda mais,
fazendo-a apertar o abraço. Sofia planta um beijo na bochecha de Luísa.

— E agora? — Luísa pergunta.

— Eu acho que me lembro de você falar que me levaria para jantar.

— Então, assim que a gente chegar em Floripa, eu vou te levar no Orso.

— Uau! Você deve tá mesmo muito interessada — Sofia brinca. — Pra


querer me levar no melhor restaurante da cidade.

— Você nem imagina — Luísa responde com um sorriso e vira o pescoço


para capturar os lábios de Sofia.

Apesar do ângulo complicado, elas fazem dar certo. É um beijo carinhoso,


mas ao mesmo tempo cheio de expectativa.

— Vamos parar com essa baixaria aí — Helena diz batendo as mãos para as
duas, que levam um susto.

Helena dá uma risada da cara delas. Atrás dela, vem Lara e Mila carregando
uma caixa térmica.
— Por que sempre tem alguém para atrapalhar o nosso beijo?! — Sofia
pergunta em tom de queixa, mas tem um sorriso no rosto.

— A família é pra isso mesmo! — Lara diz, sentando-se na outra ponta, de


frente para as duas.

— Agora você sabe por que eu ficava longe da minha! — Luísa diz para
Sofia.

— Deixa de ser chorona, pelo menos você arrumou uma namorada! — Lara
argumenta. — Eu só consegui um divórcio!

— Inclusive não comemoramos isso ainda! — Mila comenta, abrindo a caixa


térmica e distribuindo uma cerveja para cada uma. Para Helena, ela entrega
também um copo plástico.

— Tem lugar pra mais um aí? — Chiquinho aparece no píer também e Mila
entrega uma cerveja para ele, depois ela se senta ao lado de Lara e Helena.

— Claro! Senta aí, sogrinho — Luísa diz.

Todas as irmãs olham para ela com cara de quem está prendendo o riso, e
Luísa arregala os olhos ao se dar conta do que disse. Ela se vira com rapidez
para Sofia:

— Espera, eu posso chamar o seu pai assim?

Como quem pergunta “estamos namorando?”

Sofia solta uma risada e confirma:

— Pode, linda. — Em seguida, planta um beijinho na ponta do nariz dela.

Luísa abre um sorriso bobo, daqueles que te fazem suspirar de tanta fofura,
mas dura apenas um segundo…

— Espera — Luísa diz, então se vira para Chiquinho. — Eu posso te chamar


assim?
Como quem pergunta “é respeitoso?”

— Claro que pode, norinha — Chiquinho responde. Ele dá um beijo na testa


da filha, e então outro no topo da cabeça de Luísa. — Eu tô feliz por vocês!

— Acho que a gente deveria comemorar as coisas boas — Mila diz. — Por
exemplo, a nossa sociedade! — ela diz para Chiquinho, que ergue a longneck
para ela.

— E o meu divórcio!

— E essas duas aí — Helena diz, apontando para Luísa e Sofia.

— E você, Lena? — Mila pergunta.

— Eu o quê?

— Alguma coisa para comemorar?

— Espero que sim — ela diz de forma enigmática. — Eu tô com planos para
o futuro, mas não quero falar ainda. Quero esperar dar certo!

— Ao futuro, então — Luísa diz e eleva a longneck.

— Ao futuro!

Todos brindam em frente ao lago, que reflete em tons de vermelho e laranja o


pôr do sol.
EPÍLOGO
É uma linda manhã de domingo, e apesar de ser só o início de setembro, o
clima de primavera já pode ser sentido através das cores, dos cheiros e da
grande quantidade de vida acontecendo ao redor do lago.

O lago sempre foi o coração do acampamento, tudo aqui acontece ao redor


dele. Então, foi junto a ele que Mila e Chiquinho decidiram construir um
pergolado com uma grande mesa de banquete para esta celebração e para
celebrações futuras.

A nova sede fica exatamente no mesmo lugar que a antiga e mantém a vista
privilegiada para o lago, assim como o bangalô que Mila construiu para
morar.

Apesar de mais recuado, a posição mais alta no terreno garante uma vista do
lago e das montanhas preservadas que cercam o Luneta.

Pouco mais de seis meses se passaram desde o incêndio e, como já disse em


outras ocasiões, o tempo passa de forma muito diferente do lado de cá. É
como se ele acelerasse e atrasasse de acordo com a importância de cada
acontecimento.

E sei que se eu ainda estou aqui hoje, é porque é um dia especial, um dia
importante para os Lancellottis. Não é aniversário, nem casamento de
ninguém, mas hoje será a primeira vez, desde o verão, que todos estarão aqui,
e eu não perderia isso por nada.

Mila está há três dias correndo de um lado para o outro para que tudo fique
pronto a tempo, e para que as irmãs vejam a nova sede em toda a sua glória.
Murilo chegou na sexta-feira para ajudar a instalar a nova iluminação do
jardim. Luísa e Sofia chegaram no sábado, também para ajudar com os
últimos detalhes e com os preparativos do almoço de domingo.

Não é exatamente uma festa de inauguração, é mais uma reunião para


celebrar os últimos acontecimentos, que não foram poucos.

— Mi, é essa a toalha que vai na mesa? — Luísa pergunta à irmã, segurando
uma toalha de linho cru.

— Isso — Mila confirma. — Depois coloca os sousplat. — Ela aponta para


uma caixa. — Eu vou buscar o resto da louça.

— Tá.

— Acho que elas chegaram — Sofia anuncia.

Mila e Luísa olham na direção da minivan que atravessa o portal do Luneta.

— Ai, eu tô ansiosa! — Luísa diz.

— Eu também — Mila concorda.

— A gente viu eles semana passada, linda — Sofia lembra.

— Eu sei, mas esse é, tipo, o primeiro encontro de família!

Assim que Helena estaciona e a porta do carro é aberta, Luísa e Mila abrem
um sorriso.

— AAAH! — Luísa grita. — Meus sobrinhos novos!!!

Mila e Luísa correm até os gêmeos para abraçá-los antes mesmo de eles
conseguirem descer do carro.

Esse almoço também serve como boas-vindas para os mais novos membros
da família Lancellotti: Júlio e Júlia.

Os dois cresceram um pouco nesses meses, mas continuam com as mesmas


carinhas levadas que tinham no verão. Eles têm um sorriso de orelha a orelha
que pode ser visto em Helena também, embora ela tente disfarçar. Mas a
verdade é que, desde que o processo de adoção foi finalmente concluído, há
pouco mais de duas semanas, o sorriso virou uma marca frequente no rosto
dela.

Sofia cumprimenta Lara e Helena com um beijo e um abraço.

Depois de quase esmagar os gêmeos, Luísa se vira para Alícia e Lucas.

— E os meus sobrinhos velhos!

Ela repete os abraços apertados, cheios de beijos nas bochechas nos dois
também.

Quem diria que Luísa se tornaria a tia que aperta as bochechas e diz “meu
Deus, como você cresceu” toda vez que vê os sobrinhos?!

— Esse lugar continua lamacento como sempre — Helena comenta,


percebendo que o salto do seu sapato já está sujo.

Mila pula no pescoço da irmã e lhe dá um beijo na bochecha.

— Eu tava com saudade de você, Lena!

— É, tá, tá — Helena diz, desvencilhando-se da irmã.

— Tia Lu — Alícia diz enquanto caminham pelo gramado. — A Juju me


ensinou a tocar flauta!

— Ah é??? E vocês vão tocar pra gente?

— NÃO! — Lara e Helena exclamam juntas.

Mila, Luísa e Sofia caem na gargalhada.

— Ela disse que ensinou — Lara diz. — Não que ensinou bem!

— Bom, elas precisam praticar, né?


— Ai, não, tia! Eu não aguento mais — Júlio se lamuria. — Tô até com dor
de ouvido!

Luísa cai mais uma vez na gargalhada. Mas tenho que concordar que uma
criança de 10 anos ensinando uma de 4 a tocar flauta doce é algo realmente
enlouquecedor.

— Espera — Helena se vira para ele. — Tá mesmo? Por que você não me
disse?

Helena já está agachada tentando examinar o ouvido do menino quando ele


responde:

— Hm… não de verdade.

— É uma figura de linguagem, sua maluca. Teu filho tá bem — Luísa


comenta, dando um tapinha no ombro dela.

O sorriso no rosto de Júlio e de Helena quando eles escutam a palavra “filho”


é de aquecer o coração e algo que pensei que nunca veria vindo de Helena.

Por mais que eu tenha tramado toda essa situação, nunca imaginei, nem por
um segundo, que terminaria com a Helena adotando duas crianças.

Eu tinha grandes expectativas, é verdade, achava que o verão desencadearia


mudanças nas vidas delas, mas isso superou qualquer coisa.

Helena também tem se dedicado a ajudar jovens de abrigo que chegam à


maioridade, criando um programa de empregos dentro do Grupo Lancellotti,
entre outras iniciativas. Eu sempre soube que ela era uma boa pessoa; ela
sempre teve esse espírito superprotetor, só precisava resgatar essa chama
dentro de si.

As irmãs param em frente à nova sede, no mesmo lugar em que, sete meses
antes, decidiram reconstruí-la.

Sofia leva as crianças até o parque, já que os gêmeos passaram a viagem toda
falando disso, e Lucas e Alícia estão desesperados para conhecer.
Espero que o trepa-trepa não faça uma nova vítima hoje.

— Ficou demais, Mila. — Lara diz para a irmã, reconhecendo o grande


esforço que ela empregou nesse projeto.

— Ficou mesmo — Luísa concorda.

— É engraçado que é idêntico ao original mas ao mesmo tempo mais bonito


— Helena comenta. — Acho que o vovô ficaria feliz.

— E a mamãe também — Luísa completa.

— Sim, a mamãe também — Mila concorda.

Elas têm razão.

Eu estou feliz. E também orgulhosa!

— Vocês têm que ver lá dentro! — Mila diz, tomando a dianteira e puxando
Helena pelo braço.

Elvira, entretanto, é quem entra primeiro na grande cabana.

Por dentro, a sede está bastante diferente da original. Mila optou por um
espaço mais aberto e iluminado, mas, assim como meu pai, ela também
manteve os quartos para a família. Há um para cada irmã e mais alguns para
os sobrinhos ou alguma visita.

— Eu sei que vocês preferem ficar lá no Chiquinho — ela diz para Luísa. —
Mas quando vocês quiserem ficar sozinhas, esse é de vocês!

— Ficou lindo, Mila — Luísa diz enquanto Mila mostra os detalhes.

Mila fez Luísa esperar as irmãs estarem todas aqui para verem a sede juntas.
O que eu posso dizer? Minha filha é uma sentimental!

— Ah! Outra coisa, a gente finalmente conseguiu colocar uma internet


decente aqui!
— Aleluia! — Lara comemora.

— Lara — Helena diz, lembrando-se de algo importante, enquanto elas


caminham pelo corredor. — Você respondeu àquele advogado?

— Qual?

— Aquele da exportadora, para liberar a papelada da alfândega.

— Respondi na sexta — ela comenta. — Só que vamos ter que marcar uma
reunião com ele na semana que vem mesmo assim — ela solta um suspiro. —
Eu não sei se vou dar conta disso tudo!

— Claro que vai, você tá se saindo bem.

Depois do divórcio, Lara passou a pensar mais em si e no seu futuro, então,


quando Helena — que precisava de alguém de confiança — a convidou para
trabalhar com ela, Lara hesitou apenas alguns minutos antes de aceitar.

E sei que ela está adorando os novos desafios, mas, mais do que isso, sei que
ela se sente bem em estar fazendo algo pela família. Pelos filhos, pelas irmãs
e também por mim.

— Obrigada! — Lara diz, mais tranquila.

— Vem ver os quartos das crianças! — Luísa chama as duas, que estão no
corredor.

Luísa, que por tanto tempo desejou apenas paz de espírito, hoje consegue
enfim dormir em paz e por quase oito horas seguidas. Às vezes ainda tem um
ou outro pesadelo comigo ou com Leo, mas quando acontece ela conta para
Sofia, que sempre escuta com atenção e a acalma.

Faz dois meses também que fumou o último cigarro e está firme na resolução
de parar de fumar e adquirir um estilo de vida mais saudável. Você tinha que
ver a cara de felicidade da Mila quando Luísa pediu algumas dicas de ioga e
meditação, parecia que era uma manhã de Natal! As dicas da Mila e a terapia
tem sido maravilhosas para ela, além, é claro, de ela estar apaixonada!
Tudo funciona melhor quando se está apaixonada!

Assim que terminam de ver todos os cômodos, elas caminham juntas até o
bangalô da Mila. Ele é pequeno, mas é a cara dela! Com espaço para meditar
— o que deixou o Chiquinho muito feliz, já que ele voltou a ter o píer só para
ele pelas manhãs — e com ampla vista para o lago.

— Ah! — Lara exclama, chamando a atenção de todas. — Eu cruzei com o


neto do Armando esses dias no fórum, vocês têm razão, ele tá um gato.

— Hmmmm… — Luísa provoca.

— E você pegou o telefone dele? — Mila pergunta.

— Claro que não!

— Quem é a lerda agora? — Luísa brinca.

— Deixa de ser bundona, Lara — Helena diz.

— Mas ele pegou o meu.

Um sorrisinho malicioso se forma no rosto de Lara, e as irmãs soltam uma


risada.

O clima não poderia estar mais perfeito para um almoço ao ar livre. E, apesar
da falta de experiência das quatro em organizar um almoço em família, elas
conseguem servir todos os pratos — que Mila pediu de um restaurante — e
deixar a mesa bonita e convidativa.

Como acontece sempre que muitas pessoas estão ao redor da mesma mesa, as
conversas se fecham em grupos menores e aquele burburinho típico de
almoço de família toma conta.

— E já está tudo pronto para a viagem? — Murilo pergunta a Luísa e Sofia.

— Da minha parte tá — Luísa diz, com tom de provocação.

— É porque a sua parte é só uma mala com três mudas de roupa e uma
escova de dentes — Sofia revida.

— Ué? E o que mais eu preciso?

— Não sei, tudo?! A gente vai ficar dez meses!

— Tudo que a gente precisar, a gente compra lá, amor!

— Eu não sei como você consegue viver assim! — Sofia diz para a
namorada.

— Tem funcionado nos últimos 22 anos!

Sofia revira os olhos, mas o sorriso não esconde a felicidade.

— Muito daora essa viagem de vocês — Murilo comenta. — Vão começar


por Barcelona mesmo?

— Sim! Depois, Paris! — Sofia conta animada.

— Com certeza vocês vão aproveitar muito!

— E a Mila disse que vocês tão pensando em morar juntos? — Luísa


pergunta.

— Sim — ele responde com um sorriso largo. — Só tô resolvendo alguns


negócios ainda, depois vou vir de vez pra cá. Agora com esses grupos
imersivos que estamos organizando, estamos precisando de mais instrutores,
então, vou ficar aqui em tempo integral.

Um tintilar chama atenção deles.

— Eu quero propor um brinde! — Lara diz, batendo com uma faca na taça
em sua mão.

Assim que escuta a palavra “brinde”, Murilo se apressa em encher as taças de


espumante para os adultos, e Mila enche taças de água e refrigerante para as
crianças.
Todos voltam a sua atenção para Lara.

— A todas as coisas boas que aconteceram — Lara começa. — Esse último


ano foi de muitas mudanças para nós todas, nem todas boas! Começou com a
morte da mamãe e com a gente descobrindo que nosso dinheiro estava
atrelado a este lugar. Mas, ao longo desse tempo, eu percebi que não era
apenas o dinheiro que estava preso aqui. A Lu se apaixonou aqui no Luneta.
A Mila se apaixonou pelo Luneta. Helena encontrou os filhos. E eu encontrei
a mim mesma. E creio que nós quatro nos reencontramos! Não sei se a
mamãe planejou para que as coisas acontecessem assim ou se foi pura sorte
do destino. Mas, seja como for, espero que, onde quer que ela esteja, ela se
sinta feliz e orgulhosa de nós, porque eu me sinto orgulhosa de nós! Então,
esse brinde é para ela, mas também para nós e para os meus sobrinhos novos.
Bem-vindos à família, lindos.

— À família! — Helena diz com um sorriso.

— À família! — Todos brindam, levando as taças ao centro.

Quando eu pedi a Armando para inserir aquela cláusula no testamento, eu


realmente não sabia o que aconteceria. A verdade é que foi uma última
cartada, uma última tentativa desesperada de reunir a minha família. Mais de
uma vez, pensei em ligar para ele e desfazer, mas todas as vezes eu pensava:
“e se der certo?”

E não é que deu?

Talvez seja hora de perdoar a minha sogra por sempre ter ficado no meu pé,
querendo me ensinar a educar as minhas filhas, e dar o braço a torcer e
admitir que, se foi ela mesmo que me deu essa ideia, foi uma excelente ideia.

— Mila, isso é água? — Luísa pergunta ao ver que a taça na qual a irmã está
bebendo não tem espumante.

— Uhum! — ela confirma. — Eu não posso mais beber… pelos próximos


nove meses!

— O quê?
— É sério?

— Ah, meu Deus!!!!

Helena, Luísa e Lara avançam sobre a irmã para abraçá-la. E uma sequência
de gritos e aplausos pode ser ouvida.

— Eu não acredito que vou ser tia de novo!!! — Luísa comemora.

E eu vou ser avó de novo!!!

Agora sei que, mesmo que Júlio e Júlia não tenham convivido comigo, e que
eu não irei segurar o filho de Mila no colo, ainda assim eles vão saber quem
foi a Vovó Leonora, assim como saberão quem foi o Vovô Leo! E para mim
isso basta. Porque o amor não se resume a pegar no colo e trocar abraços.
Amor é um legado!

Legado esse que acredito ter deixado para elas.

Mas, como eu disse, nada disso era sobre mim, era sobre minhas filhas, então
agora que meu trabalho está cumprido, é hora de ir, porque o Leo está me
esperando.

Mas creio que antes eu deva encerrar essa história, né?

Bom, lá vai, então:

E as irmãs Lancellotti viveram felizes para sem… Não, calma, acho que isso
tá fora de moda! Como se termina uma história moderna? Com alguma
citação, talvez?

Ah! Acho que já sei!

Ninguém pode prever o futuro, e talvez o “felizes para sempre” não exista.
Afinal, a vida é feita de surpresas, às vezes boas, às vezes nem tanto. Sei que
elas não serão sempre felizes como neste momento, mas sei que mais
momentos como esse virão e que em todos eles, elas terão uma à outra. E,
para mim, isso é suficiente.
Fim.
AS AUTORAS
Escrever em dupla não foi algo que Bruna e Gisele planejaram, mas apenas
mais uma das coisas que o casal de autoras descobriu gostar de fazer juntas.
Elas se conheceram em 2012, mas o casamento — entre elas e entre suas
escritas — só aconteceu em 2018. Muito do que escrevem tem inspiração na
rotina e em seu próprio relacionamento, principalmente nas situações de
humor cotidiano.

Bruna é formada em psicologia, gastronomia e tradução; Gisele é designer de


formação mas trabalha com produção de conteúdo. Quando não estão
escrevendo, estão falando sobre histórias e, enquanto fazem isso, gostam de
cozinhar e beber vinho — menos no calor de fevereiro. Também gostam de
planejar viagens ao redor do mundo (que provavelmente precisariam de duas
vidas inteiras para serem feitas). Concordam que a coisa que menos gostam
de escrever é sobre elas mesmas.

Nas suas histórias, o mundo é um lugar mais tolerante, a protagonista quase


sempre é atrapalhada e sempre termina com outra mocinha.
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E se um livro te indicasse uma pessoa?

Amélia é uma jovem chef de cozinha que busca sucesso dentro da alta
gastronomia. Depois de uma entrevista de emprego desastrosa, ela vê sua
coleção de fracassos aumentando. As coisas não saíram nem um pouco como
ela planejou quando se mudou para Buenos Aires para perseguir seu sonho, e
agora ela está desiludida.

Assim como na carreira, as coisas também não vão bem no quesito amor, e
ela sente que precisa, desesperadamente, de uma volta por cima. Decidida a
dar uma chance ao destino, ela deixa um bilhete com seu endereço de e-mail
dentro do seu livro preferido e o vende no sebo. Se tudo der certo, ele vai
trazer a garota dos seus sonhos. Simples assim. Exceto que, para Amélia,
nada acontece de forma simples ou sem muita confusão.
Uma Pitada de Sorte é uma comédia romântica que tem como pano de fundo
o charme de um inverno em Buenos Aires e a nostalgia do ano de 2007. Uma
história com protagonismo feminino, amizades reais e uma mãozinha do
destino.
Em 1952, na era de ouro da aviação, quando voar era apenas para os mais
ricos, ser aeromoça era uma profissão dos sonhos. Então, quando a chance de
trabalhar para a Northern Star Airlines caiu no colo de Jane Smith, ela não
pensou duas vezes!

Seria realmente um sonho se tornando realidade se não fosse por um


pequeno, quase insignificante detalhe: o emprego não era exatamente dela.
Ela iria assumir a identidade de sua melhor amiga, Claire Davis.

Jane sabia que sua vida estava prestes a mudar drasticamente, mas o que ela
não esperava, era que, ao aceitar se passar por outra pessoa, ela iria descobrir
algo muito importante sobre si mesma.

Quando uma nova comissária chegou a sua equipe, Charlotte Thompson


soube imediatamente que havia algo intrigante a respeito da garota, e não
demorou muito para que sua vida tranquila e organizada começasse a virar de
cabeça para baixo.

Ao tentar esconder seus segredos, as duas se veem cada vez mais enroladas
em suas próprias mentiras, e as confusões vão tomando proporções cada vez
maiores neste encantador romance épico.

Prepare-se para viajar no tempo a bordo de voos luxuosos, com destino às


mais fascinantes rotas, e acompanhada de personagens apaixonantes. Mas
não esqueça de apertar o cinto, pois haverá turbulências!

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