Você está na página 1de 377

Copyright © 2023 G.B.

Baldassari

Todos os direitos reservados

De Repente, Namoradas é uma obra de ficção. Nomes,


personagens, lugares e incidentes são produtos da imaginação das
autoras ou são usados ficticiamente. Qualquer semelhança com
eventos reais, ou pessoas, vivas ou mortas, é mera coincidência.

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua


Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009.

Autoras: G.B. Baldassari

Capa: Amanda Santos

Diagramação: Bruna Baldassari

Revisão: Tânia Silva

ISBN: 978-65-00-63888-2

Disclaimer: De Repente, Namoradas é um spin-off de Só Por um


Verão, outro livro das autoras. Os acontecimentos de De Repente,
Namoradas são independentes e podem ser compreendidos sem a
leitura de Só Por um Verão, contudo, pode conter spoilers.
Playlist
A playlist de De Repente, Namoradas está disponível no Spotify,
para ter acesso, selecione o modo “buscar” no aplicativo, click no
ícone da câmera e faça o pareamento posicionando sobre os
códigos abaixo.

Caso leia por outros periféricos — celular, computador ou tablete


— basta clicar aqui
E, afinal de contas, o que é uma mentira?
É apenas a verdade mascarada.

(Lord Byron)
1.

Helena

— Helena…

— Não! — interrompo antes que Amanda, minha assistente, fale


qualquer coisa. — Depois.

— Mas, Helena… — Amanda tenta mais uma vez, erguendo o


dedo indicador, como um aluno querendo falar na aula, enquanto
corre atrás de mim.

— Depois — digo, jogando minha bolsa da Louis Vuitton na


direção dela. Ela tropeça antes de pegar no ar.

Caminho pelo corredor da Tennis&Co em direção à minha sala.


Amanda ainda me segue como um cachorrinho.

Não sei por que continuo contratando assistentes tão frouxas.


Tenho certeza de que se fosse importante ela já teria
desembuchado.

— É o Vitor…

Ela pausa no segundo que abro a porta da minha sala.

Há exatamente três coisas que eu detesto: comida vegana,


palestrante motivacional e…

— Vitor Pfuetzenreiter! — exclamo ao dar de cara com um


homem grisalho, com um topete tão meticulosamente desenhado
que deve ter exigido a expertise de um escultor, não de um
cabeleireiro. — O que diabos você tá fazendo na minha sala?
Viro para Amanda e lanço um olhar reprovador.

— Eu tentei avisar — ela se justifica.

Apenas reviro os olhos para a pamonhice dessa mulher.

Não é ele que eu detesto, mas a figura dele e o que ela


representa: um invejoso narcisista com complexo de perseguição
que acha que o mundo gira ao redor do seu umbigo e que a minha
empresa é um ataque pessoal à sua existência medíocre.

— Helena Lancellotti — Vitor diz com um sorriso falso.


Possivelmente o único que o excesso de botox o permite esboçar.

Eu vou demitir a Amanda!

— A que devo o desprazer da sua visita? — pergunto,


caminhando até a minha mesa.

A sala fica no vigésimo andar e a parede de vidro permite uma


visão panorâmica da Beira Mar Norte. É uma vista muito bonita
quando não está obstruída pela cara plastificada do Vitor.

Talvez você esteja se perguntando o que diabos eu estou fazendo


em uma empresa chamada Tennis&Co, sendo que passei minha vida
profissional toda trabalhando no Grupo Lancellotti, empresa da qual
sou a presidente e sócia majoritária.

A verdade é que já fazia algum tempo que tinha a intenção de


abrir um outro negócio.

Depois que nossa mãe morreu, Lara, minha irmã, foi trabalhar
comigo e acabou gostando, mais do que ela mesma imaginava, do
trabalho. Foi então que percebi que finalmente teria tempo para me
dedicar a um outro negócio em paralelo — eu nunca deixaria o
Grupo Lancellotti nas mãos da Lara. Eu não sou maluca!

Como disse, fazia algum tempo que trabalhava nesta ideia,


sempre gostei de tênis e sempre vi no nicho esportivo uma boa
oportunidade. E devo confessar que está sendo uma jornada
bastante prolífica e interessante, posso até dizer que estaria sendo
perfeita se, junto com ela, eu não tivesse conhecido Vitor
Pfuetzenreiter, o CEO da VP Sport, a nossa concorrente.

Bem, concorrente é bondade minha, ele é CEO da empresa rival


que quebrou depois que entramos no ramo. A culpa não é minha se
a qualidade dos produtos era tão duvidosa que a mera ideia de outra
empresa no mesmo segmento seja o suficiente para os fazer ir à
bancarrota.

Creio que ele ainda esteja tentando salvar a empresa, mas, na


minha opinião profissional, é só uma questão de tempo.

— Você roubou a nossa ideia, querida — Vitor diz, caminhando


até o bar e se servindo de uísque.

— Eu sinceramente não tenho a menor ideia do que você está


falando — digo, me recostando na cadeira de couro.

Mila, minha irmã vegana, tentou fazer eu me sentir culpada por


usar produtos de origem animal, mas Deus não teria feito a cadeira
de couro tão confortável se não fosse para ser usada.

— A linha PRIDE! — Vitor exclama.

— Eu vou precisar que você elabore melhor, querido.

— A linha com as bandeiras da comunidade LGBTQIAP+ que


íamos lançar mês que vem. Mês do orgulho? — ele fala como se
estivesse tentando me ajudar a lembrar de algo óbvio.

— Ah! Sim, sim. E o que que tem?

Acabamos de lançar uma linha completa de roupas e


equipamentos com diversas bandeiras estampadas. E devo
confessar que a equipe de marketing fez um bom trabalho, porque
tem vendido três vezes mais do que a linha tradicional.
— Vocês lançaram a nossa ideia antes de nós!

— Sua ideia? Vitor, você não inventou a homossexualidade…


quer dizer, julgando pela sua idade e trejeitos talvez tenha. — Ele
apenas revira os olhos. Continuo: — Mas isso não vem ao caso.
Essa ideia não foi sua, meu anjo. É a jogada de marketing mais
usada no século XXI.

— Você só está interessada no Pink Money.

— Nem ideia do que isso significa, mas se você está me


acusando, é mentira.

Sinto meu celular vibrar sobre a mesa e o pego para ver a


mensagem de Pati. Ela treina tênis com o Ju e Juju, meus filhos, nos
dias alternados em que vão para a Escola Guga.

— Você só se importa com o lucro, não com a causa, é isso que


significa — ele diz com certa prepotência e moralismo.

Essa é boa, vindo de um sujeito que lucra 500% em cima dos


produtos de baixa qualidade que vende.

— Você está me acusando de não me importar com a


comunidade LBGQTPIA+?

— LGBTQIAP+.

— Foi o que eu disse — revido, sem nem olhar para ele. Pati
deixou aqueles terroristas jogarem ela na piscina de roupa e tudo e
está perguntando se pode tomar banho na minha casa. Deus, como
essa mulher é molenga com esses dois, eles fazem gato e sapato
dela. Respondo que sim e volto minha atenção para Vitor. — E se
você estivesse tão interessado na “causa”, não lançaria no mesmo
mês em que absolutamente todas as empresas lançam apenas para
lucrar e passar imagem de modernas. Já teria lançado antes e não
estaria aqui choramingando no meu tapete persa.
— Eu sei que você está pagando alguém da minha companhia
para ter informações privilegiadas.

— Você tem uma autoestima realmente invejável, Vitor. Imagina,


acreditar que eu gastaria um centavo que seja investigando uma
empresa em falência.

— Isso não vai ficar assim, Helena! Se você quer jogar sujo, eu
também sei!

— Faça o que você quiser — digo, voltando ao meu celular que


tem mais uma mensagem da Pati, mandando um “valeu”. — Mas
faça fora da minha empresa.

Ele solta uma bufada antes de deixar o copo de uísque no bar e


sair pisando duro.

◆◆◆

Por conta do incidente com a piscina, a aula de tênis do Ju e da


Juju acaba sendo encurtada em quase uma hora. Se eu tivesse que
chutar, arriscaria que eles fizeram de propósito só para não precisar
treinar, mas seja qual for o motivo, decido ir para casa mais cedo.

Enquanto os papéis da adoção ficavam prontos, me mudei do


apartamento em que morava na Barra Norte para um condomínio de
casas em Jurerê para que os gêmeos tivessem mais espaço e
pudessem ficar mais tempo ao ar livre. Escolhi um que tivesse
bastante área verde, de lazer e esportiva. De certa forma, acho que
acabei procurando um lugar que remetesse um pouco ao Luneta, o
acampamento de férias da minha família no qual eu os conheci.

Logo nas primeiras semanas, matriculei eles na Escola Guga,


porque achei que seria importante praticarem algum esporte, e foi
uma grata surpresa perceber que a Júlia tinha muito talento natural.
Foi aí que decidi contratar um instrutor para treinar mais vezes na
semana.
Mas não se engane, eu não sou nenhuma megera. Eles sabem
que se não estão com vontade de praticar, basta me avisar e eu
cancelo com a Pati, não precisam jogar a coitada na água.

É claro que quando eu os adotei, já sabia que eram levados, por


assim dizer. Além disso, Pati torna qualquer pegadinha de muito fácil
execução. Nem posso culpá-los por não conseguirem se conter.

Pati é uma dessas pessoas que é feliz e bem-humorada o tempo


todo. Pessoalmente, acho um tanto quanto suspeito e entediante.
Ninguém com mais de 25 anos deveria ser assim alegre! Ela está
sempre sorrindo e irradiando uma energia juvenil um tanto
exagerada para o meu gosto. Mas meus filhos a adoram e insistiram
bastante para que fosse ela a treinadora, então não tive escolha. E
pelo menos eu sei que ela também gosta deles, que é o mais
importante.

— Eu não acredito que você deixou eles te jogarem na água —


falo assim que entro em casa e vejo ela com o Júlio e a Júlia na sala
de estar. Ela está com os cabelos molhados, jogando Mario Kart com
os dois. Está com um uniforme de tênis da Tennis&Co que, imagino,
tinha reserva no carro, já que sua roupa estava molhada.

O cabelo de Pati é daquele tom de loiro queimado de sol e seus


olhos são verdes, puxando para o oliva. O sorriso permanente faz
com que as covinhas da bochecha estejam sempre aparentes e
algumas marcas de expressão se formem no canto dos olhos. Eu
diria que ela pode ser considerada bonita, isso se o seu tipo são
mulheres que parecem ter nascido de um raio de sol e não de outro
ser humano.

Pati ergue os ombros de maneira culpada e franze o nariz que


está sempre meio queimado pelo sol e pela maresia.

Ao lado dela dois pares de olhos negros me encaram com a


expectativa de quem sabe que corre o risco de ficar de castigo.

— Explicações? — pergunto aos dois.


— Foi um acidente, tia — Júlio diz.

Essa palavra!

Essa palavra detestável que me persegue há um ano e meio.

Tudo bem Alícia e Lucas, os filhos da Lara, me chamarem de tia.


Eu sou tia deles! Mas toda vez que o Ju ou a Juju me chamam
assim, parte meu coração. Faz sete meses desde que a adoção foi
oficializada e eles ainda me chamam como me chamavam no
Luneta.

— É! — Júlia ajuda o irmão gêmeo. — A gente estava no


intervalo aí a tia Pati disse que quem chegasse aqui em casa por
último era a mulher do padre, então viemos pelos fundos, porque é
mais perto, mas o chão da piscina estava liso e a tia Pati caiu.

Tenho certeza de que ela caiu depois de uma mão a empurrar,


mas Pati sempre toma partido deles e nunca os acusa de nada,
então é inútil tentar pressioná-la atrás da verdade.

Ela mima os dois demais.

E depois eu que tenho que sair como vilã para “desmimá-los”.

— Sei — digo, caminhando até eles, dou um beijo na testa dos


dois e me sento ao lado da Júlia, passando meu braço pelo seu
ombro. — Quem está ganhando?

— Eu! — Júlio se apressa em dizer.

Eles recém completaram 11 anos, e cresceram um pouco nesse


tempo, apesar disso, ainda continuam pequenos e muito parecidos
um com o outro, a diferença é que Júlio decidiu raspar o cabelo e
Júlia refez as tranças coloridas que usava quando eu os conheci.

— Esse é meu menino! — digo, erguendo a mão para um high-


five. Ele me cumprimenta com um sorriso genuíno. — Eu vou pedir
comida do Orso, o que vocês querem?
— A tia Pati pode jantar com a gente? — Júlia pergunta, elevando
as sobrancelhas como um filhotinho.

Deus me livre!

Detesto visita na minha casa.

Ainda mais a Patrícia que fala pelos cotovelos. Hoje eu preciso de


paz para esquecer o encontro com aquele insuportável do Vitor, e
Júlia e Júlio precisam de um castigo para aprenderem a não jogar
pessoas na piscina.

— Tenho certeza de que ela deve ter compromisso — falo como


uma afirmação e sei que Pati entende o recado.

Vejo os três pares de olhos murcharem um pouco. Mas essas


caras de filhote abandonado não vão me afetar. Eu adotei dois filhos
apenas, além disso tenho certeza de que Pati deve ter que voltar
para o convívio com os outros Ursinhos Carinhosos na Nuvem Rosa
ou seja lá onde os Ursinhos Carinhosos moram.

— Hm, é! Eu tenho que ir mesmo — ela diz, se levantando.

Os dois pulam do sofá para abraçá-la.

Sei que ela tem um carinho especial por eles. Ela foi a sua
monitora por três anos seguidos no Luneta, esse ano incluso. Talvez
porque eu tenha ameaçado a Mila, minha irmã que toma conta do
lugar, se ela deixasse meus filhos com alguém pouco qualificado, ou
talvez porque Pati mesma tenha pedido.

Assim que eles se afastam, vejo ela ameaçar dar um passo na


minha direção.

Nem pensar, filha!

Já basta eu ter três irmãs, que descobriram recentemente que


adoram abraçar, e dois filhos. Não preciso de mais nenhum abraço.
Estendo a mão na sua direção, o que a faz parar no meio do
caminho.

— Hm, é, obrigada por deixar eu tomar banho aqui — ela diz,


meio acanhada, apertando minha mão.

— Tudo bem — digo, porque de fato não me importo, têm


banheiros suficientes nessa casa para ela não precisar usar o meu.
— Mas da próxima vez, tente ser mais forte que uma criança de onze
anos.

— Foi um acidente — os três falam em uníssono.

— Sei — repito e levo Pati até a porta.

Assim que ela atravessa a porta, a fecho e me viro para os meus


filhos.

— Eu sei que foram vocês!

— Desculpa, tia! — os dois falam, segurando as mãos na frente


do corpo e abaixando a cabeça.

— Sem videogame até sexta!

— Mas, tia…

— Dá próxima vez pensem nisso antes de jogar uma pessoa na


piscina.

— Tá bem! — falam juntos.

Apesar de serem levados, eles sabem reconhecer quando fazem


algo errado e aceitam os castigos sem reclamar muito. E acho que
dois dias sem videogame é castigo o suficiente. Foi só um caldo.
Uma vez, Lara me jogou no lago do Luneta e estou aqui, firme e
forte.

Só lamento não ter visto a cena.


◆◆◆

Depois do jantar e de um longo banho, encontro Júlio e Júlia


jogados no sofá da sala fazendo uma chamada de vídeo com o
Lucas e a Alícia, os filhos da Lara.

— Você também vai, né, Lili? — Júlia pergunta a Alícia, a


priminha de quatro anos.

— A mamãe disse que sim, mas não posso ir em todos os


brinquedos.

— Ir aonde? — pergunto, me sentando ao lado deles no sofá.

Apoio o braço no encosto do sofá e Júlio se aconchega em mim


com o celular na mão, Júlia se levanta do lado do irmão e se senta
no meu colo para poder ver a tela também. Abraço ela pelo tronco.

— Eles vão no parque aquático sábado, podemos ir também? —


Juju pergunta, animada.

— Lara! — grito no telefone, porque conheço minha irmã e sei


que ela não deixa os filhos com um celular na mão muito longe dela.

— Oi, Lena — o rosto dela aparece na chamada.

— É você que vai levar ou o Felipe?

Eu não quero Ju e Juju perto daquele imbecil, se o Lucas e a


Alícia têm a infelicidade de tê-lo como pai, o problema é dos dois,
não dos meus filhos.

— Eu! — ela confirma. — Liguei justamente para te convidar, mas


a Juju que atendeu, aí deixei eles falarem com a Lili e o Lucas.

— Sábado não posso — digo para ela. — Tenho aquele almoço


com o produtor dos comerciais.
— Ah! Eles podem vir comigo, se quiser.

— Quatro crianças e um adulto? — pergunto, desconfiada. Eu sei


que Lara é uma ótima mãe e cuidadora, mas também sei bem como
são meus filhos e que não são nada fáceis de controlar.

— Posso chamar a Mila, ela vai gostar.

— Isso! Vamos convidar a tia Mila — Júlia fica animada.

Juju tem um carinho especial por ela desde o dia do acidente no


Luneta em que Júlia passou a noite toda no colo da Mila.

— Tá, deixa eu ligar pra ela — Lara diz, clicando na tela.

— Pena que você não pode vir com a gente — Júlio comenta
com certo desapontamento para mim.

E é em momentos como esse que sei que apesar de eles ainda


não me chamarem de mãe, estão felizes com a nossa família.

Passo a mão na sua cabeça, fazendo um cafuné no cabelo


recém-raspado.

— No domingo podemos fazer alguma coisa só nós três, o que


vocês acham?

— Oba — ele e Júlia comemoram.

— Meus sobrinhos preferidos todos juntos — Mila aparece na tela


com um sorriso.

Ela está com a pele e os olhos brilhantes por conta da gravidez e


parece absolutamente plena. Mais plena que o normal. Algo que nem
julgava ser possível.

— Tia Mila! — as quatro crianças falam em uma cacofonia de


vozes estridentes.
— Tia, você quer ir no parque aquático com a gente? — Lucas é
o primeiro a pedir. — A tia Lena não pode e a mamãe precisa de
ajuda.

— É claro que eu quero! Quando?

— Sábado — Lara responde.

— Sábado temos um retiro aqui no Luneta, mas o Murilo e o


Chiquinho dão conta sozinhos, eles nem queriam que eu participasse
mesmo, por causa da gravidez.

— Perfeito, então! — Lara concorda. — Você pode vir sexta e


dormir aqui, se quiser! Podemos sair bem cedo no sábado.

— Isso!!! — Alícia comemora.

— Acho que você não tem mais a escolha de falar não — digo
para ela com certa ironia.

— Eu vou só se o Ju e a Juju forem também! — Mila responde.

Dois pares de olhos negros se viram para minha direção em


súplica.

Eu não gosto de dormir sem eles em casa, mas sei que é por
uma boa causa e que eles adoram brincar com os primos.

— Tudo bem pra você, Lara? — pergunto antes de confirmar.

— Claro, podemos fazer uma festa do pijama!

— Eba!!! — as crianças comemoram.

— Então tá bem! Sexta eu levo eles aí!

— A gente deveria ligar para a tia Lu também — Alícia diz de


repente.
— É — Juju concorda. — Ela é a única que tá faltando.

— Deve ser umas duas da manhã lá — Mila alerta.

— Elas sempre dormem super tarde, ela deve tá acordada ainda


— Lara acrescenta.

— Tá, eu vou chamar ela — digo, clicando no contato.

Esperamos apenas alguns segundos até o rosto da minha irmã


caçula aparecer na tela.

— Que isso, uma reunião de família? — Luísa pergunta um


pouco surpresa, mas tem um sorriso no rosto.

Tal qual fizeram com a Mila, as crianças fazem uma bagunça e a


enchem de perguntas.

Luísa está na Europa com Sofia, sua namorada, há sete meses


já. Mas creio que tenha mantido mais contato com ela nesses sete
meses do que nos onze anos anteriores inteiros.

— E como você tá, Lu — Mila pergunta.

— Acabamos de chegar em Frankfurt, faz umas quatro horas, tô


louca para sair e explorar a cidade amanhã.

— A Mila me disse que vocês tão pensando em adiantar um


pouco a volta? — pergunto.

— Sim, para o mês que vem! Queremos estar aí quando a Luna


nascer.

Mila abre um sorriso na tela. Eu sei que é importante para ela ter
a família toda reunida no dia do nascimento da filha. Já tentei
convencer ela inúmeras vezes de ter esse parto em um hospital
como uma pessoa normal, mas Mila é uma destrambelhada e quer
ter no meio do mato cercada da família.
Conversamos todas por mais alguns minutos, Sofia se junta a
conversa depois de um tempo.

Se há um ano e meio alguém me falasse que eu estaria fazendo


vídeoconferência com minhas irmãs e meus filhos pelo menos uma
vez por semana, eu teria rido e chamado a pessoa de maluca, mas
até que tem sido melhor do que imaginei que seria, além disso, é
bom para a Júlia e o Júlio se sentirem parte da família.

◆◆◆

Sexta-feira é sempre um dia corrido, porque, via de regra, tenho


reuniões tanto no Grupo Lancellotti como na Tennis&Co. Hoje não é
diferente. O horário do almoço é o único mais ou menos calmo,
quando pego meus filhos no colégio e almoçamos em algum
restaurante. Ainda assim, não param de entrar notificações no meu
celular.

Já para Júlia e Júlio, as sextas-feiras são sempre mais tranquilas


porque têm a tarde de folga, com exceção do treino com a Pati às
17h. Para que eles não fiquem sozinhos a tarde toda, contratei uma
babá. Eles não gostam que eu a chame assim, mas é como você
chama a pessoa que cuida dos seus filhos quando você está
ocupada, não é?

Eles podem reclamar o quanto for, mas eu não vou deixá-los


sozinhos, ainda mais sabendo da predisposição que eles têm para
se meter em confusão.

Passo a tarde toda no Grupo Lancellotti com a Lara e nossos


advogados trancados na sala de reunião. Eu sei que parece chato e
tedioso, mas gosto dessa rotina e do meu trabalho. Quando
terminamos a reunião, já passa das cinco, e finalmente posso sair
para comer alguma coisa. Odeio ficar sem comer por muito tempo.

Aviso a Amanda, minha secretária na Tennis&Co, que não


voltarei hoje, mas que se precisar de mim, estarei no café da
esquina, o meu preferido da cidade. No meu celular, recebo uma
mensagem da Pati — estava demorando mesmo —, abro para ver
um vídeo da Juju sacando na diagonal com força e precisão, no
limite da linha.

Abro um sorriso e revejo o vídeo mais uma vez. Antes de eu


terminar de assistir, Pati manda mais uma mensagem:

Pati: Parece que temos uma mini Serena Williams


entre nós.

Ainda estou sorrindo quando termino de mandar uma sequência


de emojis batendo palmas.

— Helena Lancellotti!

A voz mais desagradável do mundo chega aos meus ouvidos e o


meu sorriso dá lugar a uma revirada de olhos.

Vitor Pfuetzenreiter… de novo!

— Por Deus, o que você tá fazendo aqui?

— Te procurando.

Já cheguei a me questionar se o Vitor não era fruto de uma


alucinação minha, um indício de esquizofrenia ou algo assim, porque
parece que ele vive apenas para me orbitar. Quando eu menos
espero, ele se materializa na minha frente, como o Bruce Willis
naquele filme que o menino vê gente morta.

— Como você sabia que eu estaria aqui?

— Amanda.

— Ela disse a você que eu estaria aqui?

— Na verdade, ela disse ao meu assistente.

Eu vou demitir a Amanda!


— E o que você quer, Vitor? — pergunto, tomando um gole do
meu café.

Ele se senta na cadeira em frente à minha, mesmo sem ser


convidado.

— Que você desista da linha PRIDE!

Solto uma risada.

— E por que eu faria isso?

— Porque eu tô pedindo.

— Ah, porque você não disse logo. Se você está pedindo… —


respondo com ironia.

— Helena, sejamos honestos, você não se importa a mínima com


inclusão, só está no negócio pelo dinheiro.

— Vitor, todo mundo está no “negócio” pelo dinheiro. O que você


acha que eu sou? A Madre Teresa?

— É a isso que eu me refiro. Eu me importo com a causa! — ele


enfatiza o “eu” como se fosse a última criatura benevolente do
mundo.

— Bom, não me admira nada que seu negócio esteja falindo,


Vitor, se você acha que lucrar e se importar com a causa são ações
excludentes. Mas, ainda assim, querido, tem gays suficientes no
mundo para comprar das duas empresas. O que realmente não tem,
é gente querendo gastar o preço que você cobra por uma camiseta
de malha vagabunda. Mas aí a culpa não é minha.

Pego o pettit four que acompanha meu café e levo a boca.

— Ser homofóbica é a sua maneira de mostrar que se importa


com a causa?
— Quando que eu fui homofóbica?

— Comigo! Inúmeras vezes!

— Cite uma.

— Em dezembro, no evento beneficente do Jurerê Club, que você


se recusou a fazer dupla comigo na gincana e falou barbaridades de
mim aos quatro cantos.

— Vitor, meu anjo, o fato de você ser insuportável não tem nada a
ver com você ser gay… E tudo que eu falei era verdade!

Vitor parece frustrado.

Não sei exatamente o que ele quer que eu “admita”, mas seja lá o
que for, jamais darei esse gostinho a ele.

Ele respira fundo antes de tentar outra abordagem:

— O que eu quero dizer é que eu faço parte da comunidade


LGBT e por isso, eu sou mais capacitado a coordenar esse tipo de
campanha.

— O que eu não entendo é porque nós dois não podemos ter as


linhas inclusivas — falo com sinceridade.

Imagino que essa seja a última tentativa dele de salvar sua


empresa, mas é ridículo acreditar que eu vou desistir da linha para
ajudá-lo.

— Porque é um assunto importante e deveria ser abordado por


alguém que pertence à comunidade!

Quanta baboseira, meu Deus.

Não sei mais o que fazer para esse homem me deixar em paz.
Resolvo apelar e tentar resolver no método mais rápido.
— E quem disse que eu não pertenço?

— Helena, por favor!

— O quê?

— Você? Parte da comunidade LGBT?

— Sim!

— Desde quando?

— Desde sempre, suponho.

Ele me olha desconfiado. Resisto em revirar os olhos e, só


porque já está na hora de eu voltar para casa, decido acabar com
esse assunto de uma vez. Então continuo:

— Você deveria se envergonhar de forçar uma mulher para fora


do armário, querido, mas sim, eu tenho uma namorada.

— Puff, duvido. Qual o nome dela?

— Patrícia — falo o primeiro nome que vem à minha cabeça sem


titubear. Penso que alguém que ele não conheça seja uma resposta
mais segura. — Ela é treinadora de tênis dos meus filhos.

Ele continua me olhando desconfiado. Mas, sinceramente, não


estou nem aí.

— Falando nisso — continuo —, eles estão me esperando.

Me levanto e caminho até o caixa. Mas antes me viro para ele e


digo:

— Só para encerrar esse assunto, Vitor, e eu só estou te falando


isso porque você não larga do meu pé, temos uma campanha para
distribuir uniformes e materiais de tênis da nossa linha inclusiva para
várias ONGs de apoio a jovens LGBTs no estado. Passar bem.
Essa parte é verdade. Inclusive, distribuímos materiais esportivos
para várias ONGs e abrigos de crianças, não apenas da linha
PRIDE. Vitor pode me acusar do que for, mas não de só me importar
com dinheiro.

◆◆◆

Já estou quase em casa quando meu celular começa a tocar.

— Luísa? — pergunto, porque não é comum ela me ligar assim


do nada.

— Helena, você tá maluca? — ela pergunta no outro lado da


linha.

— Depende. Não sei do que você está falando.

— Você falou que está namorando a Pati?

— O quê? Como você sabe?

— A VP Sports estava fazendo uma Live no Instagram deles de


uma conversa sua com o CEO. Acho que alguém gravou a Live e o
vídeo viralizou no Twitter.

— Aquele filho da puta estava me filmando escondido?

— Não ele — Luísa explica —, outra pessoa, mas sim, estavam


filmando vocês!

— Cretino, miserável!

Agora entendo o que ele estava fazendo. Estava tentando


arrancar uma declaração homofóbica e de que só estou interessada
no dinheiro para tentar desmoralizar minha marca e salvar a
campanha dele.

— Por que você falou aquilo, Helena?


— O que você queria que eu falasse, Luísa? Que não sou
homofóbica e até tenho uma irmã que é lésbica? Isso seria ridículo.

— Ora, que falasse a verdade!

— Ele estava tentando insinuar que eu não poderia manter a


minha campanha! Eu só tentei me defender, não era para se tornar
público. Ele que é um pervertido que estava gravando escondido.
Isso é crime!

— Bom, você vai ter que desmentir isso, Lena!

— Eu não vou desmentir nada, vou é meter um processo nesse


cretino!

— Nesse caso, melhor você falar com a Pati antes!

Pati?

O que tem a Pati?

Puta que pariu.

Por um segundo eu me esqueci dela.

— Preciso desligar!

— Boa sorte.

Assim que desligo o telefone, percebo que Luísa não exagerou


quando disse que o vídeo viralizou. Tenho notificações da Lara e da
Mila perguntando sobre o assunto. O da Mila falando que o
Chiquinho que contou para ela!

Estaciono o carro na garagem e respiro fundo antes de tirar o


cinto e caminhar até a quadra de tênis do condomínio.
Ju e Juju correm até mim assim que me avistam. Me inclino para
abraçar os dois e perguntar como foi o treino. Pati tem um sorriso no
rosto, isso significa que ela ainda não sabe ou está reagindo
surpreendentemente bem ao caso.

— Vão lá tomar banho, porque hoje vamos sair para jantar.


Depois vou deixar vocês na casa da tia Lara.

Os dois me beijam na bochecha, depois acenam para Pati e


saem correndo até nossa casa. Me viro para ela no exato momento
em que ela pega o seu celular na mão.

Talvez ela realmente não soubesse no primeiro momento, mas a


cada rolada que ela dá na tela, seu rosto esboça uma nova
expressão de surpresa, choque e confusão. Pelo jeito, muita gente já
comentou sobre o vídeo.

— Hm, Helena? — ela pergunta, elevando o rosto para mim, mas


sem tirar os olhos da tela. — Porque o Pepa me mandou uma
mensagem dizendo: “pegando a Lancellotti MILF, daora!” e uma
sequência de emojis de cunho sexual?

MILF?

Podia ser pior, eu imagino.

— Sobre isso…

— Você disse ao vivo que estamos namorando? — pergunta,


arregalada, depois de rolar por mais algumas mensagens.

Ela parece mais surpresa do que zangada.

Acho que consigo trabalhar com isso.

— Em minha defesa, eu não sabia que estava sendo gravada.

Ela apenas me encara de boca aberta. Sem saber o que falar, ou


talvez o que pensar.
Resolvo tomar a dianteira, já que atitude não parece ser uma
característica predominante nessa guria.

— Vamos fazer assim — digo. — Amanhã à tarde eu estarei


sozinha.… Não! Não para isso. Não é isso que eu estou falando! —
Reviro os olhos para a cara dela, porque primeiro, eca e segundo,
ela não faz meu tipo. — Amanhã você vem até aqui e eu explico
melhor o que aconteceu e a gente decide o que fazer, pode ser?

Pati continua sem saber o que falar. Apenas me encara meio


perdida.

Acho que dei pane na guria.

— Patrícia! — chamo sua atenção. — Você pode vir até aqui


amanhã?

— A gente precisa negar isso — ela fala, de repente.

— Amanhã a gente conversa — falo, mais firme.

— Mas…

— Se você abrir o bico para desmentir isso hoje, pode esquecer


esse emprego e pode esquecer o Luneta também.

Ela me olha arregalada e pisca algumas vezes.

Só o que me faltava agora, deixar o Vitor vencer porque a Patrícia


é uma frouxa.

— Nem um pio, entendido?

— Hm… uhum.

— Ótimo! Amanhã conversamos.

Ela pega suas coisas em piloto-automático e antes de sair se vira


para mim.
— Por que eu? — ela pergunta meio acanhada.

Dou de ombros, também não sei por que disse o nome dela.

— Foi o primeiro nome que veio na minha cabeça.

Ela apenas assente.

— Eu, hm…é, eu vou indo!

— Não esquece. Nem uma palavra até amanhã!

Ela assente novamente e passa por mim ainda catatônica.

Como eu odeio o Vitor Pfuetzenreiter!


2.
Pati

Helena me fuzila com aqueles olhos castanhos e as sobrancelhas


franzidas, e sei que não tenho escolha senão acatar o que quer que
ela peça. Pelo menos por ora. Ou eu aceito ou é capaz de ela invadir
meu apartamento e matar meu gato. Ou colocar sal nas minhas
plantas para que nada mais cresça por cem anos. Ou me asfixiar
com o travesseiro… enfim, acho que você entendeu a situação
delicada em que me encontro.

Meu celular não para de vibrar com uma enxurrada de


notificações e ligações.

Pelo que entendi das mensagens entrando, Helena falou em uma


Live que estamos namorando?!

Por que ela faria isso?

Por que comigo?

Por que ao vivo?

Meu celular vibra mais uma vez. É a minha avó!!!

Pelo jeito a notícia já vazou no portal de notícias do WhatsApp.


Impressionante como as fake news caem mesmo rápido na mão dos
idosos.

Seja como for, essa é uma ligação que definitivamente não quero
atender. Eu amo a minha vózinha, mas eu me lembro muito bem de
como ela reagiu quando soube que eu estava namorando a
Fernanda, minha ex. E tudo bem ter que passar horas tentando
explicar para uma senhora de setenta e tantos anos que não têm
nada de errado em amar quem você ama, mas me recuso a perder
esse tempo tentando justificar uma mentira!

Entro no carro e apoio minha cabeça no volante.

O que eu vou fazer?

Pepa me liga pela nona vez e decido atender, porque, a meu ver,
conversar com ele ou ficar criando conjecturas na minha cabeça dá
no mesmo. Na verdade, falar com ele é mais simples, uma vez que
ele produz menos pensamentos que uma pessoa normal.

— O que você quer, Pedro Paulo? — pergunto.

— Feia!!! Por que você não me falou? Mandou benzão, hein!

Estou pronta para negar quando me dou conta de que não posso.
Helena jurou o meu couro se eu desmentisse e, embora eu saiba
que essa atitude autoritária é mais pose do que qualquer outra coisa
e que no fundo ela é incapaz de fazer mal a uma mosca, nesse
momento, sinto que talvez seja melhor não arriscar.

— Hm, pois é! Não é nada sério é só… hm, um caso.

— Sempre achei que a Helena curtia uma mina.

Pepa adora um estereótipo.

Mas, para ser sincera, não sei de onde ele tirou essa ideia.
Helena é o epitome da mulher inalcançável. Na minha opinião, ela
não curte nada nem ninguém. Só ela mesma.

Embora eu não negue que seria de fato uma vitória descobrir que
ela se relaciona com mulheres.

O quê?

Eu não sou cega!


A mulher é realmente maravilhosa. Tem a personalidade de um
cacto, é verdade, mas é maravilhosa!

— Para você ver! — digo. — Mas, Pepa, não posso falar agora,
tô atrasada.

— Você vem na Bica hoje, né?

Bato a mão na testa.

Já tinha esquecido que iria encontrar meus amigos no A Bica da


Larica depois do treino com os gêmeos.

— Ah, não vai dar. Surgiu um imprevisto.

— Imprevisto! Sei! — ele diz, fazendo sons inadequados para


menores.

Respiro fundo e tento não ser rude com ele, porque é o mesmo
que ser rude com um filhote de capivara ou de lontra.

— Eu tenho que desligar. A gente se fala.

Não dou tempo de resposta antes de terminar a ligação. Por fim,


decido desligar meu celular, pelo menos até chegar em casa.

Moro no centro, então, de Jurerê até minha casa, tenho algum


tempo para pensar nisso tudo.

Como se a minha vida amorosa já não fosse uma piada pronta.

Mais essa agora.

Tenho 26 anos e a única namorada séria que tive fugiu com o


circo.

Literalmente.
Ela me trocou por uma acrobata que fazia o número do trapézio
em um circo chique que fez umas apresentações aqui na ilha dois
anos atrás. Pelo que vejo no Instagram da Fernanda, elas ainda
estão juntas.

Confesso que em momentos de fraqueza, torci para a acrobata


cair do trapézio e quebrar um braço ou uma perna, mas hoje em dia
já superei e espero que estejam bem e felizes.

Mas isso não quer dizer que a vida precise ficar me


surpreendendo ou querendo ser criativa no quesito amor!

Por que eu não posso simplesmente me apaixonar por uma


mulher gentil e que goste de mim?

Estaciono o carro e subo para o meu apartamento com todo o


material de tênis nas costas. Assim que abro a porta, vejo o Guga,
meu gato, deitado na soleira da janela, ele não esboça a menor
reação ao me ver. Esse gato antipático não lembra em nada o Guga
verdadeiro, a não ser pela cor do pelo, mas eu amo ele mesmo
assim.

Meu apartamento é bem espaçoso, pelo menos para uma pessoa


e, embora tenha apenas um quarto, a sala e cozinha são amplas e
arejadas por conta do pé direito alto, comum em prédios antigos
como esse.

Tomo um banho, faço uma vitamina com algumas frutas que


encontro na geladeira e me jogo no sofá para ver TV. Depois de
quinze minutos me rendo e resolvo, enfim, ligar meu celular para ver
o tal vídeo da Helena assumindo nosso “namoro”.

◆◆◆

Sábado, acordo cedo para correr na Beira Mar Norte.

Eu sempre gostei de esportes, por isso me formei em educação


física. Tenho energia demais e preciso gastar de alguma forma.
Quando era criança passava o dia todo subindo em árvores e
correndo com meus vizinhos pelo bairro todo.

Gosto de estar entre pessoas, cercada de amigos e


especialmente de crianças, tanto no Luneta quanto nos treinos.
Gosto delas porque não se importam em expressar o que sentem,
não têm vergonha de querer se divertir e fazer coisas que as deixem
felizes. A maioria dos adultos se recusa a fazer coisas bobas por
medo do que os outros vão pensar ou porque não veem nenhuma
utilidade. Mas a vida não precisa ser útil, precisa ser feliz.

Sinto um leve arrepio nos meus braços e pernas quando chego


na rua. Já estamos em maio e as manhãs são um pouco geladas,
mas logo meu corpo aquece e os arrepios dão lugar a uma fina
camada de suor. Eu adoro o cheiro da maresia pela manhã e o jeito
como o sol ilumina a água nessa época do ano.

Na maioria dos dias, escuto música enquanto corro, mas hoje,


por ser tão cedo e a avenida estar silenciosa, consigo ouvir o som da
água contra a margem e isso ajuda a acalmar meus pensamentos.
Então abandono os fones de vez e escuto apenas o som da
natureza, algo pouco comum de encontrar nessa parte da ilha.

O resto do dia passa de forma estranha. Fico sem saber ao certo


o que fazer ou o que falar, por isso, não falo com ninguém. Apenas
mando mensagem para os meus pais e para a minha avó avisando
que em breve ligarei para explicar tudo isso melhor. Mas fora eles,
acho melhor não falar com ninguém.

Sendo assim, passo o dia quieta em casa, o que se mostra mais


difícil do que imaginei. Quem diria que passar o dia sem internet —
porque não confio em mim mesma nesse momento —, esperando
para encontrar com a sua namorada de mentira pudesse ser tão
tedioso?

Quando o relógio finalmente marca 13h30, atravesso a porta do


meu apartamento. Diferente de ontem, não há trânsito e em quinze
minutos estou estacionando no luxuoso condomínio em que Helena
mora.

Me sinto nervosa antes de tocar a campainha e fico sem saber o


que fazer com as mãos.

Deveria ter colocado um short com bolsos.

— Você tá adiantada — Helena diz, ao abrir a porta.

Nem um “olá”, “que bom que você pôde vir”, ou “como você está”.

Tenho para mim que ela também está nervosa. Mas o seu jeito de
disfarçar é sendo ainda mais intransigente.

— Não tinha trânsito — explico, sem saber o que mais falar.

— Tudo bem. Entra!

Helena se vira para que eu a siga, e sinto que ignorei as letras


pequenas no convite em que informavam o dress code.

Ela está com uma calça social justa preta, uma camisa de seda
também preta e salto agulha que a deixa pelo menos cinco
centímetros mais alta do que eu. Já eu estou com um short de
corrida laranja, tênis e uma camiseta de malha com estampa do
circuito californiano de surf, em que trabalhei como staff de uma
surfista brasileira no ano passado.

É só a segunda vez que entro na casa, sendo que a primeira foi


na quarta-feira quando o Júlio me empurrou na piscina.

A casa de Helena é bonita, elegante e moderna, mas tem algo de


doméstico e aconchegante mesmo assim. Não é aquelas casas de
revista que parece que ninguém mora ali. Os quadros são bonitos e
passam uma vibe boa. Gosto desse tipo de decoração inspirada no
mar, meio mediterrânea.
Ela indica uma poltrona que tenho certeza de que deve ser
assinada por um designer famoso, e se senta no sofá na minha
frente. A princípio não fala nada, apenas me estuda por um tempo,
talvez esteja pensando a mesma coisa que eu: ninguém acreditaria
que estamos namorando!

— Hm — Remexo meus pés e mãos —, você dormiu bem?

Sinceramente não sei por que pergunto isso, mas ela parece
cansada e não sei mais o que falar. Percebo que ela se esforça para
não revirar os olhos, mas falha.

— Acho que talvez seja melhor irmos direto ao ponto — ela diz.

— Está bem…

Posso notar que ela está nervosa. Helena Lancellotti está


nervosa.

Não é todo dia que você vê uma coisa dessas.

Ela respira fundo.

— Quanto você quer para fingir que está namorando comigo?

— Como é que é?

— É só por alguns meses — ela afirma.

— Eu… eu…

— Depois disso eu termino com você.

— Você termina comigo?

— Ninguém acreditaria se fosse o contrário, Patrícia.

Isso pode até ser verdade, ainda assim, que grosseria!

Balanço a cabeça tentando ter clareza nos meus pensamentos.


— Espera aí! — falo. — A gente pode voltar pro começo? Você
pode me explicar o que tá acontecendo?

Helena solta um suspiro irritado. Mas explica mesmo assim:

— Bom, você já sabe, porque o mundo inteiro já sabe, que ontem


eu fui filmada insinuando que talvez estivesse em uma relação
amorosa com você…

— Insinuar é outra coisa, Helena. Você só faltou dar meu CPF


para aquele sujeito.

— Enfim — Ela faz um gesto com as mãos como se nada fosse


—, como eu disse ontem, foi um acidente. Eu não sabia que estava
sendo filmada, se soubesse, provavelmente, teria dito outro nome.
Mas eu não sabia e falei o seu. Agora é tarde para voltar atrás. Por
isso estou te perguntando, quanto você quer para fingir que estamos
namorando?

— Eu não quero nada, quero que você diga a verdade.

— Isso tá fora de questão.

— Por quê? — pergunto, sentindo minha voz um pouco mais


aguda.

— Porque senão estaria dando razão ao Vitor e isso afetaria


diretamente minha campanha e a minha empresa. Essa é a única
saída.

— A única saída?

— A não ser que você queira me ver indo a falência e tendo que
demitir você.

Golpe baixíssimo.

— Helena, isso é loucura!


— Quanto você quer, Pati?

— Eu já te disse, eu não quero nada, eu não sou uma prostituta


pra ser contratada!

— Eca, não é isso que eu tô sugerindo. A gente não precisaria


nem se encostar.

— Primeiro, ofensivo — revido e, surpreendentemente, ela eleva


os ombros em uma intenção de desculpas. — Segundo, como você
sabe que eu já não tenho uma namorada.

— Você tem?

— Não…

— Então…

— Mas eu tenho família, Helena — corto ela —, pai, mãe, avó,


pessoas que querem saber o que está acontecendo e para as quais
eu não posso ficar mentindo.

— Claro que pode! Todo mundo mente para os pais.

— E o Ju e a Juju?

A expressão da Helena muda de repente, ficando ao mesmo


tempo mais séria e preocupada.

— Vamos ter que mentir para eles também. Você sabe como eles
são, dariam com a língua nos dentes na primeira oportunidade.

— Eles nunca acreditariam nisso.

— É claro que acreditariam, eles adoram você, por que eles iriam
achar que eu teria algum sentimento diferente?

— Esse é seu jeito de falar que me adora? — pergunto, deixando


um sorriso prepotente escapar.
Ela revira mais uma vez os olhos.

— Seria só por alguns meses — ela explica. — Em junho tem o


MASP Gala em São Paulo, e somos uma das empresas
patrocinadoras. A gente só teria que fingir até ali. Depois disso, você
está livre, podemos até forjar sua morte se você quiser que eu não
me importo.

— E dizem que o romance está morto.

— O que você me diz?

Penso no assunto. Tirando minha família — que já é tarde demais


para fingir que nada disso aconteceu —, eu realmente não tenho
nada a perder. E eu gosto da Helena, ela é uma boa mãe para os
gêmeos, não me custaria nada ajudá-la por dois meses.

Ainda assim, me parece uma loucura e não acho que seja


possível controlar uma mentira dessas proporções.

— Não sei, Helena… — falo com sinceridade.

— Por favor.

— Desculpa, o que você disse? Acho que não ouvi direito.

Helena aperta os maxilares.

— Por favor, Pati, eu não posso deixar o Vitor levar a melhor.

— Qual é a desse sujeito, afinal?

— É um verme asqueroso que está tentando boicotar a minha


marca tentando me fazer passar por homofóbica.

— Você não é homofóbica — falo, sentindo certa necessidade de


defendê-la.
— É exatamente isso que estou tentando provar! — ela diz,
exasperada. — Olha, eu sei que esse não é o melhor jeito de provar
isso e que eu não deveria ter mentido, mas não posso voltar atrás
agora.

— Está bem — falo por fim. — A gente pode namorar ou pseudo-


namorar, sei lá.

Vejo o canto da sua boca se curvar alguns milímetros. Já é mais


do que costumo ver, então, acredito que esteja feliz.

— E quanto você quer para isso?

— Eu já disse que não quero nada, Helena. Considere um favor


para uma amiga.

— Nós não somos amigas.

— Você realmente tem muito jeito com as mulheres, viu. É uma


surpresa precisar contratar uma namorada.

Ela mais uma vez rola os olhos, mas vejo um sorriso escapando.

De repente, um silêncio constrangedor cai sobre nós. Acho que


nenhuma das duas sabe como continuar a conversa ou como agir.

— E, hm, quando você vai contar para os pequenos?

— O mais rápido possível. E é melhor fazermos juntas.

— Tem certeza?

— Sim. Você tem compromisso hoje?

— Hm, não, mas é que…

— Então, hoje.

Deus, que mulher mandona.


— Tá bem. — Aprendi que com a Helena, é melhor escolher com
cautela as batalhas que você quer lutar. — Mas vamos precisar de
regras.

— Como assim?

— Tipo, a gente tem que definir algumas coisas básicas como o


que vamos falar para as pessoas, há quanto tempo estamos juntas,
quem chamou quem para sair, onde foi o primeiro beijo…

— Ei, ei, ei. Calma aí.

— Nós precisamos de uma história! — concluo.

Helena me encara por algum tempo.

Ela está sentada com uma perna cruzada sobre a outra e um


cotovelo sobre o braço do sofá. Imagino que ela intimide as pessoas
com facilidade em uma reunião, mas eu não sou uma dessas
pessoas. Eu a conheci no Luneta e a vi com o Júlio e a Júlia para
saber que essa fachada indiferente é só para disfarçar o fato de que
ela é uma pessoa que se preocupa demais com tudo.

— Creio que você tenha razão — ela diz por fim, balançando o pé
de forma pouco paciente.

— Você não pensou nisso direito, né?

— É claro que não pensei. Aquele pervertido estava me filmando


escondido.

Ela realmente parece perdida e um pouco exasperada, e, pela


minha experiência, quando fica assim, fica também mais agressiva,
dessa forma, resolvo tentar acalmá-la.

— Está bem, podemos fazer isso agora se você quiser. Que


horas que os gêmeos voltam?

— No fim da tarde, só. Eles estão com a Lara.


— Ok, então pega um papel e uma caneta e vamos escrever
nossa história de amor.

Ela franze o nariz ao ouvir a palavra amor.

Pai amado!

Quem te feriu, Helena?

Nunca vi alguém tão avessa ao amor.

— Eu não sou uma neandertal — ela fala, pegando o celular. —


Faço no bloco de notas depois te mando por e-mail.

— Tá, tanto faz.

— Quando nos conhecemos é fácil — Helena diz, digitando no


celular. — No Luneta, ano passado. Você ficou interessada em mim
de cara…

— Fiquei?

Ela me encara com algo de desafiador no olhar. Essa mulher é


mesmo muito cheia de si.

— Deixa eu adivinhar — continuo —, eu passei o ano passado


inteiro correndo atrás de você para que me desse uma chance?

— É você que está falando.

— Por que a gente não diz que nós duas nos interessamos uma
pela outra ao mesmo tempo?

— Porque tem que ser realista, Pati.

— Se é pra ser realista, então podemos falar a verdade.

— Argh, tá! Nos interessamos uma pela outra esse ano quando
você veio treinar os gêmeos. Melhor assim?
— Muito!

— Isso significa que estamos saindo só há alguns meses —


Helena conclui.

— Que tal falar que estamos saindo há um mês e, porque ainda


era muito recente, não falamos para ninguém — Tento ajudar.

— Muito bem — Helena diz, soando impressionada.

Dá para acreditar? Ela ficou impressionada, como se não


esperasse nada vindo de mim. Me esforço para não me ofender,
porque, como disse, sei que ela tende a ser mais rude quando está
assustada.

Continuo a história:

— A gente se reencontrou esse ano e, em uma sexta, depois do


treino dos dois, você me convidou para tomar um drink…

— Por que eu que tenho que ter te convidado? — Helena


pergunta.

Dessa vez sou eu que reviro os olhos.

— Helena, eu já entendi que eu sou a última pessoa com quem


você se envolveria na face da terra — falo com certo rancor, afinal,
eu tenho amor-próprio. — Mas a não ser que você queira que as
pessoas pensem que eu tô te mantendo refém, é melhor você
demonstrar o mínimo interesse em mim!

— Tá, tá. Eu te convidei para um drink e começamos a conversar.

— Viu? Não é tão difícil. E estamos saindo desde esse dia.

— E como foi o primeiro beijo? — ela pergunta, olhos focados no


celular, como se estivesse em uma reunião com o presidente, não
escrevendo uma fanfic da nossa vida.
— Eu posso ter te beijado antes de ir embora nesse mesmo dia
do drink.

Ela eleva os olhos da tela e me encara com certo questionamento


no olhar. Depois de um tempo a expressão fica mais suave. Ou pelo
menos suave para os padrões da Helena, o que é na verdade bem
dura.

— Está bem.

— Eu sou a sua primeira namorada? — pergunto, um pouco pela


história e um pouco por curiosidade genuína.

— Creio que sim.

— Você “crê”?

— Sim, seria a primeira mulher, mas o que quero dizer é que não
sei se um mês se categoriza como “namorada”.

— Isso tem mais a ver com a intensidade do que com o tempo.

Ela dá de ombros, como se fosse besteira.

— Não saberia dizer, nunca tive uma relação séria antes.

— Nem com homens?

— Não gosto de pessoas se metendo na minha vida.

— Parece meio solitário.

— Eu tenho três irmãs e dois filhos.

— É um bom argumento — falo, embora esteja bem claro para


nós duas de que não é esse tipo de companhia a qual me refiro. —
Mas não posso dizer que sou uma expert no assunto também, eu só
tive um relacionamento sério.
— E por que acabou?

— Ela fugiu com o circo.

— Me diz que isso é uma figura de linguagem.

— Não, ela fugiu mesmo com o circo.

— E você quer que eu corra atrás de você?

— Você está correndo atrás de mim — respondo com um sorriso


vitorioso.

— Infelizmente, é verdade — diz, contrariada e volta a digitar algo


no celular.

— E eu posso contar para alguém? — pergunto.

— Não.

— É que não vai ser fácil convencer meus amigos.

— Por quê?

— Como por quê? Olha para você! — Aponto com as duas mãos
para ela. — E olha para mim!

— Você não deveria se diminuir tanto, Pati — ela diz de forma


condescendente, sem tirar os olhos do celular.

— Deus, como você é convencida. Eu não estou me diminuindo,


guria. Só estou falando que somos muito diferentes.

— Ah! — Ela tem a decência de parecer um pouco culpada…


bem pouco. — Bom, dizem que os opostos se atraem.

— Tá, tá, a gente dá um jeito — falo por fim, já que ela não vai
me deixar mesmo contar para alguém. — Tem mais alguma coisa
que você quer anotar aí?
— Não sei, o que mais temos que saber?

— Talvez a gente devesse se conhecer um pouco melhor? Tipo,


saber o básico uma da outra.

— Acho que ninguém vai nos interrogar tanto, mas você pode
fazer um resumo das coisas mais importantes e me mandar por e-
mail e eu faço o mesmo.

— Ou… podemos tomar um drink de verdade e conversar —


sugiro.

— Não seja ridícula.

Suspiro fundo, já me arrependendo do favor e de não ter cobrado


algo. Podia cobrar pelo menos os danos morais por toda a
humilhação que com certeza vai vir junto com esse namoro falso.

— Ok, neste caso eu vou pra casa.

Ela me olha confusa, como se esperasse que eu ficasse ali a


tarde toda.

— E a conversa com o Ju e a Juju?

— Depois eu volto. Me manda uma mensagem na hora que você


quiser conversar com eles.

Ela pondera um pouco.

— Acho que é melhor assim mesmo.

— Beleza, então — falo, me levantando. — Até depois.

— Até depois.
3.
Helena

Depois que Pati sai, fico sem saber o que fazer.

Confesso que foi melhor do que imaginei; ela quase não impôs
resistência e foi até bem razoável nas ponderações. Se bem que,
para ser sincera, eu nem esperava que fosse impor muita coisa, ela
é mesmo meio molenga. Como dizem, há males que vem para o
bem e talvez tenha sido uma sorte eu ter falado o nome dela para o
Vitor, pelo menos ela é alguém que eu consigo… eu não queria usar
a palavra controlar, mas, bem, é alguém que eu consigo controlar.

Já que tenho o resto da tarde só para mim, com meus filhos no


parque aquático, resolvo tomar um belo banho de banheira em paz.
Preparo o banho com alguns sais, encho uma taça de Merlot e
coloco uma playlist de Jazz para tocar. Penso em deixar meu celular
no quarto, mas acabo levando junto e aproveito para fazer uma
pesquisa.

Peço ao Flávio, da minha equipe de marketing, o login e senha do


Twitter da Tennis&Co, já que não tenho uma conta particular, para
ver o alcance que meu vídeo teve. Ele leva apenas alguns minutos
para me responder e é tempo suficiente para eu me acomodar na
banheira com a taça de vinho.

Não demoro muito para entender as funções básicas do aplicativo


e logo encontro o famigerado tweet com um fragmento da Live. É a
primeira vez que assisto, e noto que quem quer que estivesse
filmando, estava à minha esquerda, tentando disfarçar, fingindo que
estava usando o celular. O áudio não é muito bom, mas alguém
legendou as partes mais baixas.

As pessoas têm realmente muito tempo livre.


O vídeo teve um grande alcance com mais de cem mil curtidas e
vinte mil retweets, além de uma enxurrada de comentários.

Apesar de o meu primeiro instinto ser fechar o aplicativo, rolo


pelos comentários. Preciso saber a repercussão real que esse vídeo
teve e como eu posso reverter isso ao meu favor.

Mesmo com os números estratosféricos de retweets e curtidas,


fico surpresa com o interesse gerado na minha vida amorosa. Muitas
pessoas parecem animadas com a ideia de eu ter uma namorada.
Pessoas que nem me conhecem.

Leio alguns comentários:

esse Vitor mirou na acusação de homofobia e acertou no ícone


gay

E em embaixo desse comentário tem a seguinte resposta:

é sempre um feio tentando armar pra uma gostosa

Solto uma risada com esse. O que me conforta é saber que o tiro
de Vitor saiu pela culatra.

Bem feito para esse panaca!

Meu deus a irmã da Luísa Lancellotti também gosta de mulheres.


A família gaycellotti entregando tudo

Tinha esquecido que Luísa era famosa na internet. Ela tem uma
legião de seguidores tanto no Instagram como no Twitter e TikTok,
acho que ela posta vídeos tocando, cantando e, sei lá, vivendo. A
Lara já me mostrou alguns vídeos, mas nunca entendi direito o
propósito.

pô a helena nem segue a gata

Merda, acho que não sigo mesmo.


e ela tem dois filhos adotivos. linda!

Além desse, há vários outros tweets mencionando a adoção dos


meus filhos e algumas fotos deles tiradas do meu Instagram. Me
incomoda um pouco o interesse neles e faço uma nota mental de
tentar envolvê-los o mínimo possível nisso. Eles já passaram por
bastante coisa, não precisam de mais essa.

eu acho que é essa aqui, pq a mila, a luisa e a lara seguem ela.


só a helena que não

Abaixo do tweet tem o link para uma conta no Instagram com o


nome de usuário @patibrges.

O que é isso? O CSI lésbico? Eu só falei o nome dela! Como que


acharam a guria?

Não posso evitar pensar que a minha mãe estaria achando tudo
isso engraçadíssimo, ela adorava essas confusões com a mídia.
Teve uma vez que um jornal local anunciou que ela estava tendo um
caso com o Amado Batista, e ela levou mais de um mês para
desmentir. A cada nova fofoca, ela me ligava, se divertindo com as
teorias.

Leio mais alguns comentários:

as gatas tentando disfarçar o caso fingindo que não se conhecem

Pelo menos ninguém parece desconfiar que estamos mentindo. O


que é estranho, já que as teorias criadas são menos prováveis do
que a verdade. Mas quem sou eu para reclamar da minha sorte?

o perfil da tal da pati é fechado e no da helena não tem nada.


odeio gente low profile

Tomo um gole generoso do meu Merlot, tentando absorver todas


as informações. Admito que isso tomou proporções bem maiores do
que imaginei a princípio. Por fim, clico no link para o Instagram da
Pati, então, em seguir de volta. Melhor resolver pelo menos esse
problema. Não posso fingir que estou namorando uma pessoa que
não sigo no Instagram.

Ela aceita quase que imediatamente.

O perfil dela é bem pessoal, com fotos do dia a dia. Tem pouco
mais de dois mil seguidores e mais de trezentas fotos.

Ela tem um story e clico na foto do perfil para ver. Assim que
abre, vejo uma imagem dela no espelho, abraçando um gato laranja
como se fosse um bebê, com a bochecha sobre o topo da cabeça
dele. O gato parece desesperado para sair do abraço, tem os olhos
arregalados e as patas contra o peito dela.

Por cima da imagem está escrito:

“o guga adora um abraço #feliciafeelings”

Pati tem o sorriso de quem sabe que o gato está no mais


profundo sofrimento, mas que está se divertindo com o desespero
dele.

Continuo minha pesquisa pelo seu feed, que é cheio de fotos na


praia e em trilhas. Há também algumas nos treinos de tênis e,
embora não tenha nenhuma foto do Ju e da Juju, porque imagino
que ela não postaria fotos dos meus filhos sem autorização,
reconheço algumas aqui na quadra do condomínio.

Abro a última foto, que foi postada há dois dias, é uma foto da
Pati sentada na areia da Praia Mole no fim da tarde, o sol ilumina os
cabelos loiros e ela segura um coco com um canudo de inox. Ela
está sorrindo, seu nariz e olhos estão um pouco franzidos por causa
da claridade e noto os olhos dela um tom mais claro por causa do
sol. Percebo também o osso levemente protuberante do nariz e, de
alguma forma, ele agrega um certo charme.

Foco no sorriso. Ela tem dentes bonitos, porém não são perfeitos,
o que indica que provavelmente nunca usou aparelho. Ainda assim é
o tipo de sorriso que você espera de uma professora de jardim de
infância ou de uma princesa da Disney.

Rolo por mais algumas fotos. A maioria é ao ar livre e muitas


delas são com mais pessoas, reconheço o Pepa em algumas fotos e
outros monitores do Luneta. Tem até foto com a Mila e o Murilo, o
namorado dela.

Mila, Luísa e Lara comentaram nessa foto e, pelo jeito, era só eu


mesmo que não a seguia. Há comentários da Luísa e da Sofia em
quase todas as postagens e curtidas da Mila na maioria, e percebo
que elas mantêm bastante contato mesmo fora do Luneta.

Se eu quiser manter esse namoro falso, talvez seja melhor eu


curtir algumas fotos também. Especialmente porque agora sei que o
Twitter está cheio de aspirantes a detetives do amor alheio.

Curto uma foto dela jogando tênis, de mais ou menos um mês


atrás, quando supostamente começamos a namorar. Outra foto em
que ela está surfando. Pela foto, parece que ela surfa bem, quer
dizer, não poderia afirmar, porque não surfo, mas parece uma
manobra difícil.

Eu só tentei surfar uma vez, quando era adolescente, mas o


professor era um moleque que ficava dando em cima de mim e
acabei desistindo. A Mila continuou por mais algum tempo, mas ela
também não surfa mais hoje em dia.

Pondero por alguns segundos se deveria comentar em alguma


foto ou não. Decido que curtir é mais que suficiente, não quero
parecer desesperada. Por fim, curto a última foto, aquela na Praia
Mole.

Quando volto ao meu perfil, quase deixo meu celular cair na


banheira ao perceber que ganhei mais de vinte mil seguidores em
dois dias. Não tenho as notificações do Instagram ativadas porque,
via de regra, não ligo muito para isso, mas estaria mentindo se
falasse que não vi potencial na atenção gerada. Afinal, a matemática
é simples, quanto mais pessoas interessadas em mim, mais
possíveis clientes para Tennis&Co.

Pati: Olha pra você, uma perfeita namorada


curtindo minhas fotos

A notificação de mensagem do WhatsApp entra na parte superior


da minha tela.

Deus, me dê forças.

Abro a mensagem da Pati e respondo em seguida:

Helena: Seria suspeito eu não curtir nenhuma

Pati: fico feliz que você desistiu da ideia de


eu estar te forçando nesse relacionamento

Em seguida manda outra mensagem.

Pati: as relações toxicas não estão mais na


moda, agora as pessoas querem ver relacionamento
saudável ;)

Helena: Mais saudável seria se não tivesse tanta


gente tentando investigar

Pati: eu tenho mais de mil solicitações para me


seguir

Helena: vc não pretende aceitar, não é?

Pati: claro que não

Helena: tá, melhor assim

Envio e em seguida mando outra mensagem:

Helena: vc pode vir as 19h?


Pati: sim, meu xuxuzinho

Helena: não me chama assim

Pati: amor?

Helena: deus me livre

Pati: como é para eu te chamar então?

Helena: Helena

Pati: ui que séria, ta bom, até depois helena!


;*

Por fim, jogo meu celular sobre uma pilha de toalhas e resolvo
tentar relaxar de verdade no meu banho.

◆◆◆

Por volta das 18h, Lara e Mila chegam com as crianças.

Ju e Juju falam cinquenta palavras por segundo, tentando me


contar absolutamente tudo que aconteceu antes mesmo de me
abraçarem.

— Ei, ei — falo, rindo deles. — Calma aí, vocês vão ter tempo de
me contar tudo. Mas cadê o meu beijo?

Os dois sorriem e me beijam cada um em uma bochecha.

— Vocês se divertiram? — pergunto.

— Sim! Foi incrível! Tinha um tobogã de dez metros e eu fui


dezenove vezes! — Júlio diz, ainda elétrico do passeio.

— Uau! E você não teve medo?


— Só um pouco na primeira vez.

— E você, Juju?

— Eu também fui, mas eu gostei mais que a tia Lara me ensinou


a pular de cabeça na piscina.

— Olha que legal. Você sabia que fui eu que ensinei ela?

— Ela falou! Mas ela disse que você foi menos paciente.

Escuto Mila e Lara soltarem uma risada.

— É possível — confirmo, feliz por Lara ter usado uma técnica


diferente da que usei com ela, que era basicamente a chamar de
covarde até que não aguentasse mais e pulasse na piscina.

Alícia e Lucas também me cumprimentam com um beijo e depois


os quatro correm para brincar no quintal.

— Eles se comportaram? — pergunto quando Lara me


cumprimenta com um abraço.

— Como uns anjinhos.

Por fim, beijo Mila no rosto e coloco a mão sobre a barriga dela.

— Meu Deus, você vai explodir a qualquer momento. Isso tá


normal, Camila?

Não entendo nada de gravidez, mas sei que ainda deveriam faltar
dois meses para essa criança nascer.

— O médico disse que ela já está quase com um quilo e meio.

— Jesus Cristo! Boa sorte.

Mila passa a mão sobre a barriga com um sorriso. Ela usa um


vestido floral no melhor estilo gestante e tem os cabelos adornados
pelas trancinhas habituais. Já Lara está com um elegante vestido
branco que usa como uma saída de praia.

Elas penduram as bolsas no hall de entrada e caminham até a


sala.

— O que você acha de pedirmos comida? — Lara diz.

— Ah, eu estou sonhando com o fettuccine de pupunha do Orso


— Mila endossa o pedido.

— Vocês não podem ficar pro jantar.

— Eu te falei que ela ia adorar a ideia, Mila — Lara fala com certo
sarcasmo.

— Lena, você precisa trabalhar mais a sua habilidade de anfitriã


— Mila acrescenta.

— Não, não é isso — falo. — É que vou receber visita.

— Você? — Lara pergunta.

— Visita? — Mila completa.

— Você não gosta de ninguém, Lena — Lara diz. — Tenho


minhas dúvidas se você ao menos gosta de nós!

Nesse momento, não.

Porque gostaria muito de não precisar ter essa conversa.

— Quem? — Mila pergunta, me encarando como se pudesse ler


meus pensamentos. Às vezes acho que ela transcendeu tanto
nessas meditações dela, que pode ter desenvolvido alguma
habilidade extrassensorial mesmo.

Por via das dúvidas, sempre tento policiar meus pensamentos


perto dela.
Limpo a garganta e me ajeito na cadeira antes de responder:

— A Pati.

— A Pati? — as duas perguntam ao mesmo tempo.

— Eu gaguejei por acaso?

— E quando você vai desmentir essa história de que você está


namorando com ela? — Lara pergunta.

Pondero o que responder, e decido que talvez seja minha chance


de testar o plano.

— Eu não tenho o que desmentir, nós estamos namorando.

Mila e Lara soltam uma gargalhada.

— Helena, se você falasse que assassinou a Pati e precisa de


ajuda para desovar o corpo, teria mais chance de eu acreditar —
Lara diz.

— Conta outra! — Mila retruca.

— Argh, tá, tá, não estamos namorando. Mas vamos fingir que
sim.

— É o quê? — Lara pergunta.

— Eu não posso desmentir agora — rebato. — O Vitor iria sair


ganhando, e ela já concordou em manter a farsa.

—Você ameaçou ela? — Mila pergunta.

— O quê? Claro que não — digo. — …Talvez um pouco.

— Tadinha da Pati — Mila comenta, balançando a cabeça. — Eu


gosto dela.

— Hoje ela vem aqui para contarmos para os gêmeos.


— Deus, Lena! — Lara bufa.

— Vocês vão mentir para eles? — Mila pergunta um tanto quanto


horrorizada.

— É a única solução.

— Eu tenho certeza de que em todo o reino das possibilidades


deve haver muitas outras soluções — Lara alfineta.

— Quem sabe vocês não se apaixonam — Mila diz, com um


sorriso.

Dessa vez, sou eu e Lara que soltamos uma gargalhada.

— O quê? — Mila pergunta. — Nunca se sabe!

— Às vezes se sabe, Mila — digo. — Essa é uma dessas vezes.

— Lena, essa é uma péssima, péssima ideia! Tipo, horrorosa


mesmo e tem tudo para dar errado — Lara diz. — Mas vocês são
adultas, vocês que sabem.

É da natureza da Lara apoiar as decisões das pessoas. Creio que


porque passou muito tempo sentindo que não poderia tomar uma,
mas seja como for, fico contente de ela não tentar me convencer do
contrário.

— É só até o MASP Gala. Depois a gente anuncia que terminou.

— A Pati topou mesmo passar por isso? — Lara pergunta.

— Topou, e nem foi tão difícil.

— Essa guria é molenga mesmo, viu.

— É o que eu sempre falo.


— Ela não é molenga — Mila defende. — Ela provavelmente só
quer ajudar a Lena.

— Porque a Lena deve tratar ela super bem.

— É claro que trato.

— Porque ela se importa com o Ju e a Juju e por consequência


com a Lena — Mila explica como se devesse ser óbvio para a gente.

É a primeira vez que paro para pensar que talvez ela tenha
aceitado por causa dos dois. De fato fiz certa chantagem ao falar que
minha marca poderia ir à falência, coisa que não é verdade. E que
isso afetaria a vida dos dois, mas não achei que isso fosse a motivar.

— Bom, seja como for, a partir de hoje, estamos namorando —


falo. — E é melhor vocês tratarem isso com seriedade se alguém
perguntar alguma coisa.

— Cristo — Lara resmunga. — Tá bem.

— Mas antes eu vou contar para a Lu — Mila diz, já pegando o


celular.

— Tá, mas só para a Luísa. Não vai dar com a língua nos dentes
para o Murilo ou para o Chiquinho. Porque aqueles dois não sabem
guardar um segredo nem se a vida deles depender disso.

— Isso é verdade — Lara concorda.

— Está bem — Mila diz. — Lara, agora você tem que deixar de
desculpas.

— Hum? — Lara pergunta.

— Até a Lena arrumou uma namorada…

— Uma namorada falsa — Lara corrige.


— Irrelevante — Mila revida. — Até a Lena passou na sua frente,
quando você vai parar de enrolar o neto do Armando?

— Eu não estou enrolando o Vicente.

— Ah, tá sim — respondo. — Ele já tentou te chamar pra sair pelo


menos umas três vezes.

— É só que eu não estou pronta para um relacionamento.

— Lara, um jantar não é um relacionamento, e eu sei que você


morre de vontade de sair com ele — Mila diz.

E ela tem razão. Lara vive arrumando desculpas para falar com
ele, liga para perguntar coisas que poderiam ser resolvidas por e-
mail ou mensagem. Sempre vai mais arrumada nos dias que sabe
que ele irá no Grupo Lancellotti e sempre se oferece para ir ao
fórum, na certa, achando que pode encontrar com ele.

E Vicente também, desde que começou a trabalhar no escritório


do Armando há pouco tempo, sempre que pode, é ele que vai até o
Grupo Lancellotti no lugar do avô e não esconde a cara de decepção
quando tem que falar comigo e não com a Lara.

— Como você é covarde, guria — digo.

— Não é covardia — ela contesta —, é só que, sei lá, eu gosto


dele. Não quero deixar de gostar porque conheci demais.

— Pode acontecer — Mila diz. — Mas também pode acontecer


de você gostar ainda mais, mas isso você só vai saber se der uma
chance.

— Você deveria investir em um podcast de relacionamentos —


digo para Mila. — Tipo aquelas conselheiras de rádio, que recebem
cartas e ligações de pessoas desesperadas.

— Como aquela de Sintonia do Amor — Lara diz, sorrindo.


— Eu adoro esse filme — Mila fala.

— Eu também — Lara concorda.

— Como vocês são melosas.

— Ah, Lena, nem vem, que eu me lembro muito bem de você


assistindo com a gente quando passava na TV — Lara provoca.

— Tá, e você vai dar uma chance pro coitado? — pergunto,


voltando ao assunto.

— Talvez.

◆◆◆

Depois que elas vão embora, peço para os gêmeos se


arrumarem porque vamos receber visita.

— Quem? — Júlio pergunta, desconfiado.

— Hm, a Pati.

— Por quê? — Júlia pergunta.

Mas que diabos, não era para eles ficarem felizes?

— Eu achei que vocês iriam gostar de ela vir jantar com a gente.
Vocês mesmos pediram na quarta-feira, lembra?

Os dois trocam um olhar desconfiado, depois viram para mim


com uma sobrancelha erguida. Nessas horas, eles ficam ainda mais
parecidos.

Eles têm o mesmo formato de sobrancelha, levemente caída,


dando a eles uma expressão serena que engana qualquer um que
não os conheça de verdade. O nariz também é igual, com uma
curvinha bem desenhada na parte de cima e mais achatado na base.
A boca é a única parte do rosto em que não se parecem. Júlia tem a
boca maior, com um sorriso lindo e doce que contrasta com a pele
negra e que é impossível não sorrir junto. Já Júlio tem lábios mais
cheios e dentes um pouco menores, com um sorriso típico de criança
levada, mas, assim como o da irmã, é contagiante.

— Mas se vocês não quiserem, eu cancelo — falo,


despretensiosamente.

— Não! — Júlio diz. — A gente quer!

— Tem certeza? — pergunto, séria.

— Sim! — Júlia exclama.

Psicologia reversa. Sempre funciona.

— Foi o que eu pensei. Agora, pro banho os dois — mando, e


correm cada um para o seu quarto. — E não é para demorar uma
hora, Ju!

— Pode deixar, tia!

Argh.

Essa palavra.

Por alguma razão, o clima fica tenso nos minutos que antecedem
as 19h. Ju e Juju parecem um pouco apreensivos e eu me sinto
impaciente.

Talvez eles estejam apreensivos justamente porque eu estou


impaciente. Mas seja como for, estamos os três em um silêncio
incomum há quase dez minutos.

Quando a campainha toca, pulamos todos do sofá, e eu caminho


até a porta para receber ela.
É exatamente por esse tipo de situação que eu não namoro. Se
um namoro de mentira já causa esse desconforto todo, imagina um
de verdade.

Pati trocou de roupa, tirou o short de corrida e a camiseta de surf


e colocou uma calça jeans larga de cintura alta, com uma cropped
regata amarela e uma sandália de tiras.

É a primeira vez que a vejo sem o uniforme de tênis ou do Luneta


ou sem roupa de corrida. Pelo menos assim ela parece uma adulta.
Não quero que pareça que estou namorando uma adolescente e
nem quero parecer velha ao lado dela.

— Eu trouxe vinho — ela diz, e, por algum motivo, soa meio


mecânico.

— Obrigada — respondo no mesmo tom.

Até que é um vinho decente, eu admito. Um Merlot chileno que já


bebi antes.

— Hm, posso entrar? — ela pergunta depois de alguns segundos.

— Sim — respondo, transferindo minha atenção do vinho para


ela. — Entra!

— E aí, pessoal — Ela sorri para os gêmeos e estende as duas


mãos para eles baterem. — Como foi o parque aquático?

— Foi muito legal — Júlia começa a falar, empolgada e, como


mágica, o clima volta a ficar normal.

Pelo menos para eles, porque eu fico me sentindo desconfortável


na minha própria casa.

Odeio me sentir assim.

Que Deus me ajude nesses dois meses!


Júlia puxa Pati para se sentar no sofá e eu me sento em uma
poltrona ao lado de Júlio. Os dois não param de falar nem por um
segundo, e aproveito esse tempo para tentar traçar um plano na
minha cabeça. Me levanto para abrir a garrafa de vinho que ela
trouxe, entrego uma taça a ela e copos de suco para os gêmeos.
Laranja para a Júlia e maracujá para o Júlio.

Vez ou outra no meio de alguma história dos meus filhos, vejo os


olhos de Pati em mim, me estudando, mas logo ela volta a sorrir e
encarar um deles, acrescentando alguma pergunta como “nossa!, e
daí o que aconteceu?” o que garante pelo menos mais dois minutos
de silêncio preenchido.

Penso que não teremos escolha senão parar de enrolar logo, mas
ainda não sei ao certo como abordar o tema.

— E por que você veio jantar com a gente? — Júlia pergunta na


lata.

— Que isso, menina, isso é jeito de tratar a visita? — pergunto,


mas meu tom é mais de desconforto do que de repreensão.

Ela dá de ombros.

Acho que não posso culpá-la, ela já me viu agindo dessa forma
vezes o suficiente para saber que eu não tenho moral para
repreendê-la.

— Eu vim… — Pati começa, e sinto um frio na barriga — porque


a mãe de vocês me convidou.

— Isso a gente sabe — Júlio diz. — Mas por quê?

Às vezes eu odeio o fato de os meus filhos serem inteligentes.

— Porque queríamos contar algo para vocês — falo por fim.

Os dois se ajeitam nos seus lugares e se inclinam para frente,


para prestar mais atenção.
Limpo a garganta.

Como eu me meti nessa situação?

Respiro fundo e anuncio:

— Bem, é que eu e a Pati queríamos que vocês soubessem


que…

— Que…? — ambos perguntam.

— Que eu e a Helena estamos namorando! — Pati toma a


dianteira e fala de uma vez.

Júlio e Júlia franzem a testa, olhos alternando entre mim e a Pati.

— Vocês estão namorando? — Júlio pergunta.

— Desde quando? — Júlia pergunta quase ao mesmo tempo.

— Há pouco tempo — digo. — Um mês. Esperamos para ter


certeza de que daria certo antes de contar para vocês.

— Eu achei que você não gostasse dela — Júlio diz.

Pati solta uma risada.

Eu não detesto ela, mas está longe de fazer parte do círculo de


pessoas que eu gosto… Que na verdade é composto apenas pelos
meus filhos e às vezes pelas minhas irmãs.

Às vezes.

Então, acho que ele tem razão.

— É só o jeito dela, Ju! — Pati diz.

— Isso é verdade — Júlia concorda.

— O que você quer dizer com isso, Juju? — pergunto.


— É só que você não demonstra muito quando gosta de alguém.

— Você acha que eu não demonstro que gosto de vocês? —


pergunto, sentindo uma nova preocupação surgindo.

Será que eles não se sentem amados o bastante?

— Não! Com a gente sim! — ela corrige, sorrindo. — Com as


outras pessoas.

Pati observa nós duas com uma expressão enigmática, mas ela
ainda tem o sorriso permanente, aquele que em nenhum momento
sai do seu rosto.

Que diabo, essa mulher parece uma hiena! O que tem de tão
bom assim acontecendo para ela sorrir tanto?

— Eu nunca vi vocês juntas — Júlio pergunta, ainda desconfiado.

E esse guri é detetive agora?

— Se você tivesse visto, a gente não precisaria contar, não é


mesmo? — Pati diz de forma astuta.

Ele fica confuso por um segundo, então balança a cabeça.

— Acho que sim.

— E o que vocês acham disso? — pergunto.

Eu sei que eles adoram a Luísa e a Sofia, e sabem que elas


namoram, mas, mesmo assim, sinto certa apreensão.

Não sei direito porque me sinto assim, sendo que nem é de


verdade, mas não quero ter nenhum conflito com eles.

— Eu acho legal, a gente pode jogar tênis mais vezes — Júlia diz,
animada.
— Eu não quero jogar tênis mais vezes! — Júlio refuga. — Mas
eu acho daora!

— Vocês que são daora — Pati diz e estende a mão para um high
five com cada um dos dois.

— Tem certeza de que não incomoda vocês? — pergunto,


querendo me certificar de que eles estejam bem.

— Não! Eu acho legal você namorar! — Júlia diz.

— Acha?

— A tia Luísa fica sempre mais feliz com a tia Sofi e a tia Mila
também fica mais feliz quando o tio Murilo tá junto.

— Você acha que eu preciso ser mais feliz?

Ela dá de ombros.

— É melhor ser feliz, né?

— Acho que sim — respondo, contrariada.

Eu não preciso estar em um relacionamento para ser feliz e


ninguém deveria depender de outra pessoa para isso. Certamente
não é essa mensagem que quero passar para eles, mas acho que é
mais prudente conversar sobre isso em outro momento. Por ora, fico
aliviada de eles estarem bem com o namoro.

— E o que vamos jantar? — Pati pergunta.

— Vamos pedir do Orso — respondo.

Por um minuto, esqueci que ainda temos o jantar inteiro pela


frente.

— Hm, eu adoro o papardelle com tiras de mignon e funghi deles!


— Pati diz.
— A tia Helena também! — Júlio responde empolgado.

— É porque é o melhor.

— Eca! — Júlia exclama — Tem fungo.

— Funghi não é fungo, é cogumelo seco — Pati corrige.

— É nojento igual.

— Pensando bem, não é um prato pra criança mesmo. O que


vocês pedem?

— Bolonhesa! — os dois falam juntos.

— Acho que já podemos pedir, não é? — pergunto.

Quanto antes esse martírio acabar, melhor!


4.
Pati

Admito que esse jantar está saindo melhor do que esperava.

Os gêmeos parecem acreditar que estamos mesmo namorando


ou, se não acreditam, pelo menos, não deixam transparecer.

Já terminamos de comer e estamos mais uma vez na sala de


estar. Não sei qual o tempo apropriado para uma namorada falsa
ficar na casa da outra, mas imagino que Helena vai me dar algum
tipo de sinal na hora que eu tiver que ir embora.

Ela até que está bem tranquila. Mas isso, eu imaginei que iria
acontecer. Helena pode até ser gentil como um javali com dor de
dente a maior parte do tempo, mas com os gêmeos por perto, ela
sempre mantém um tom mais doce.

Mesmo assim, ela está estranhamente quieta hoje e penso que


não deve fazer a menor ideia de como agir. Ou talvez, nada que
cruze seus pensamentos soaria como uma mulher que deveria estar
apaixonada, ou pelo menos, interessada em mim.

Mas o bom de ter duas crianças de onze anos é que você não
precisa se preocupar com falta de assunto, porque esses dois não
param de falar nem por um segundo.

Sei que o clima estaria bem constrangedor sem eles, mas se a


Helena quer manter essa farsa por dois meses inteiros, ela vai ter
que aprender a relaxar um pouco e aprender a conviver comigo.
Caso contrário ninguém vai acreditar que ela não está nesse namoro
forçada.

Tomo um gole de vinho e tento puxar algum assunto que sei que
ela vai interagir também.
— O Aberto Floripinha tá chegando — falo com um sorriso para a
Juju. — Animada?

O Aberto Floripinha é um torneio sub15 de tênis que acontece


todo ano aqui. Ele é dividido em vários níveis e é legal para crianças
que têm o desejo de participar de um torneio um pouco mais
competitivo, mas também para aquelas que só querem sentir como
é.

Pergunto apenas para Júlia, porque Júlio não quis se inscrever.


Eu sei que ele não gosta tanto assim de tênis e pratica apenas para
agradar a Helena.

— Sim! — ela responde.

— Você vai adorar jogar contra novos adversários — Helena


comenta com um sorriso, o primeiro que vejo hoje.

— A Juju vai ganhar, eu tenho certeza! — Júlio diz, animado.

Ele pode até não gostar tanto de jogar, mas é um ótimo torcedor
da irmã. Ele torce tanto por ela que quando jogam em dupla, ele joga
muito melhor do que solo, só para não ser o culpado de ela não
ganhar.

— Vamos treinar pra isso — falo. — Mas uma competição tem só


um vencedor, o que não significa que quem não ganhou não seja
bom também!

Eles fazem uma careta, mas concordam mesmo assim.

Eu não quero ser a responsável por uma criança de onze anos


frustrada porque não ganhou uma competição. Até porque a mãe da
criança em questão pode ser bem intimidadora.

— Ah — Helena diz. — Eu queria te perguntar se você tem algum


outro aluno que vá participar e que poderíamos patrocinar? Claro
que nenhum na categoria da Juju!
— Tenho uns dois que acho que tem chances de avançar
bastante, posso te mandar os contatos dos pais deles.

— Ótimo — ela diz no seu tom profissional.

— Será que a VP Sports vai patrocinar alguém? — pergunto.

— É provável — ela diz, dando de ombros.

Eu não conheço esse Vitor sei-lá-o-quê, mas sei o bastante para


entender que a Helena odeia ele, então, decido mudar de assunto.

— E quando a gente vai marcar de ir surfar com o Pepa?

Dessa vez, pergunto diretamente para o Júlio. Nem preciso me


virar para Helena para saber que ela está me fuzilando nesse
momento.

Mas eu sei que Júlio está doido para surfar, então, já que ela está
me obrigando a fazer parte dessa farsa toda, posso pelo menos
ajudar o Ju.

— Quando a tia Helena deixar — ele diz, olhando para ela igual o
gato de botas do Shrek, então, de novo para mim. — Agora que
vocês tão namorando você podia convencer ela, né?

— Não faz nem cinco minutos que você tá sabendo e já quer tirar
vantagem? — Helena pergunta.

Júlio encolhe os ombros, mas não parece arrependido.

Faz sete meses que eles estão com ela e já tem os mesmos
trejeitos e a mesma habilidade de sair por cima em uma conversa.

— Podia ir todo mundo — Júlia sugere empolgada.

— Sozinhos com aquele desmiolado é que vocês não vão —


Helena diz e sei que ela está se controlando para não me xingar na
frente deles.
— Eu também iria! — observo.

Eu não deixaria o Ju sozinho com o Pepa, porque apesar de ele


ser salva-vidas, é mesmo meio desmiolado e se acontecesse algo
com o Ju, a Helena iria me matar, me ressuscitar e me matar de
novo de forma mais lenta.

— Você também é desmio… — Ela pausa no meio da frase,


lembrando que deveria confiar na própria namorada, ou pelo menos,
fingir que confia. — Você não precisa ter esse trabalho todo, eu vou
também.

Tento não levar pro lado pessoal, sei que as mães, de modo
geral, morrem de medo de deixar os filhos surfar, então, acho que é
compreensível. Mas ela deveria se lembrar de que eu cuido dos
filhos dela há vários anos no Luneta e ambos estão aí firmes, fortes e
sarcásticos… igual a ela!

Um pouquinho de fé em mim não faria mal.

— OBA! — Júlia comemora e vira pro irmão pra um high five. —


E a gente pode convidar o Lucas e a Lili?

Helena franze as sobrancelhas, deixando transparecer seus


pensamentos e má vontade.

Essa é exatamente a mesma cara que ela fazia no Luneta antes


de qualquer atividade. Fazia tempo que não via e confesso que me
deu até certa nostalgia daquele verão.

Apesar de ter sido difícil no começo, foi divertido ter a Helena


como parceira de monitoria naquele ano. Ela podia até fingir que
não, mas sei que se preocupava com as crianças, além de ser
engraçada, não propositalmente, é claro.

Helena solta um suspiro. Na verdade, é uma bufada.

— Tá, eu vou ver com a Lara.


Os gêmeos comemoram mais uma vez com uma série de apertos
de mão coreografados e bem-ensaiados enquanto eu observo os
três juntos e fico mais uma vez surpresa como esses dois
conseguem colocar Helena Lancellotti fácil no bolso.

Eles merecem um prêmio.

— Mas a tia Pati vai também, né? — Júlio pergunta.

— Claro! — respondo, antes que Helena diga que não aguenta


mais olhar para minha cara e estrague nosso disfarce. — O Pepa é
um péssimo professor, eu ensino vocês!

— Daora! — eles comemoram.

— A gente deveria fazer uma selfie! — Helena diz, meio que do


nada, talvez para que a gente mude logo de assunto.

Acho que ela tem medo mesmo desses dois na água. Confesso
que acho fofo a preocupação, mas é bem tranquilo, vamos em uma
praia mais calma e vamos começar com uma prancha de bodyboard.

Os gêmeos se levantam e correm para se posicionar para a


selfie, cada um de um lado dela, e nessa hora eu realmente não faço
ideia do que devo fazer.

— Vem, Pati — Juju diz, fazendo um gesto com a mão para que
eu me levante também.

Atendo o pedido e por sorte as crianças nem notam meu


constrangimento. Logo me puxam e me abraçam, colocando todos
nós bem juntos, então abrem seus melhores sorrisos quando
finalmente nos vemos na tela do celular da Helena.

Helena também abre um sorriso.

Um sorriso.
Juro que não imaginei que ela levaria esse fingimento tão a sério.
Não a ponto de ser vista sorrindo ao meu lado! Imagino que deve
estar lhe custando bastante, mas vou te falar, até que o sorriso
combina com ela.

— Ficou boa! — ela diz. — Vou fazer um story.

Depois da sobremesa que é servida na sala de estar — porque é


na verdade só alguns picolés para os dois e um expresso para nós
— e de mais todo o tempo que achei que seria adequado enrolar,
sinto que Helena começa a dar sinais de que eu estou liberada,
então me levanto do sofá e começo meu discurso de que preciso
acordar cedo no dia seguinte.

— Você vai embora? — Júlio me pergunta com estranheza.

— Hm, sim?

— Eu achei que você ia dormir aqui. — Júlia completa.

— Eu também — Júlio diz.

Tenho que me esforçar para que minha expressão não denote


surpresa, mas tá aí um pensamento que não me ocorreu. Apesar de
controlar meus olhos e queixo, sei que não consigo controlar o rubor
nas minhas bochechas.

— Ainda tá cedo pra essas coisas — Helena intervém e eu noto


que ela está corando também.

— Pois é. Então é isso. Vou indo — digo e me despeço dos dois


com um beijo na testa, como sempre faço.

— Eu vou te acompanhar até o carro — Helena fala e tenho pra


mim que foi o jeito que ela encontrou de não precisar se despedir na
frente deles.

Nós, sem sombra de dúvidas, não pensamos nisso direito!


— Acho que foi razoavelmente bem — ela diz depois de fechar a
porta.

Caminhamos lado a lado até o meu carro, a alguns metros da


casa dela.

— Foi melhor do que eu esperava — admito. — Você achou que


eles engoliram?

— Acho que sim. O Júlio ficou mais desconfiado no começo, mas


que motivo ele teria pra achar que estamos fingindo?

— Eu acho que eles meio que curtiram a ideia — falo, com um


sorriso vitorioso.

— Até demais para o meu gosto! — Helena revida contrariada e


não consigo evitar sorrir ainda mais da cara dela.

Mas o que eu posso fazer se é tão fácil irritar ela? E se ela irritada
é tão charmosa?

— Nos falamos na segunda. — Helena diz assim que chego ao


carro, se referindo ao dia que treino com os gêmeos.

— Hm, tá bem… até segunda então.

Fico sem saber o que fazer, meu instinto diz que eu deveria
abraçá-la, ou sei lá, me despedir com um beijo no rosto, como
adultos civilizados. Mas assim que faço a mínima menção de me
aproximar, Helena estende a mão, quase me acertando o estômago,
e não tenho escolha, senão estender a mão também.

Levo uns vinte minutos para chegar em casa e assim que me


jogo no sofá, pego meu celular e percebo uma notificação no
Instagram. E só agora, vendo a foto que a Helena postou nos stories
é que minha ficha começa a cair. Ela me marcou e colocou um
coração do lado do meu nome.

Meu Deus.
Estou namorando a Helena Lancellotti!

◆◆◆

— Cadê a senhora Borges? — Pepa grita assim que me vê com a


prancha sob o braço, caminhando até ele e mais dois amigos.

— É — Jana, minha amiga, endossa —, cadê a namorada?

— Tá com os filhos, eu imagino, nós não somos casadas — falo,


sentindo certa necessidade de me defender. Como se o fato de eu
estar sem ela fosse fazer nosso disfarce esmorecer de alguma
forma.

Afinal de contas, são seis da manhã de domingo, mesmo que


estivéssemos namorando de verdade, duvido que ela viria surfar
comigo a essa hora.

— E aí, Pati — Xandão, o terceiro dos meus amigos e namorado


da Jana, me cumprimenta com um beijo no rosto. — Tá baita
famosa, né?

— Verdade — Pepa concorda. — Até a minha mãe viu e me


mandou no WhatsApp.

Enterro minha prancha na areia e me sento à mesa com eles.

A Bica da Larica é geralmente o nosso ponto de encontro,


sempre pegamos uma das mesas na areia quando viemos à Mole
para surfar. Mesmo às seis da manhã, quando ainda está fechado.

Mas tudo bem usar as mesas, porque o bar é do Xandão.

— Até a minha vó viu — comento.

— Pati, não me leva a mal — Jana começa —, mas como que


você conseguiu?
— O quê?

— Namorar com uma mulher daquela.

— É — Xandão concorda. — Tipo, você é baita massa e gata,


mas a mulher é, sei lá, gostosa, milionária e, que eu saiba, esnobe!

— A Pati tem seu charme — Pepa me defende. — E sabe domar


a Helena.

— Sei?

— Ué, não sabe?

— Sei!

— Então.

Sinceramente, não faço nem ideia do que ele está falando, mas
julgo mais sábio não contrariar ou negar.

— E quando você ia contar pra gente? — Jana pergunta.

— Hm, a Helena queria manter segredo — falo, dando de


ombros. — Ela é bem reservada e tals.

— Bom, faz sentido, ela até que é bem conhecida.

— Exatamente!

— Há quanto tempo vocês tão se pegando? — Xandão pergunta.

— Ah, há um mês só, não é nada sério.

— Uhum — Pepa resmunga, com certo sarcasmo.

— O que você quer dizer com “uhum”, Pedro Paulo?

— Nada, só que eu sei que você tem um crush nela desde o


Luneta.
— Isso não é verdade.

— Pff, claro que é!

— Que massa — Jana, que é a mais romântica e brisada, por


assim dizer, do grupo, diz. — O amor sempre encontra um meio.

Reviro os olhos para o comentário, mas sinto minhas bochechas


esquentando.

— Vocês vieram aqui pra pegar onda ou pra falar da minha vida?

— Os dois — Xandão comenta, rindo.

— Bom, eu vim pra pegar onda — Levanto e pego minha


prancha.

Assim que entro na água, já começo a sentir minha mente


relaxando e silenciando. Não existe lugar mais mágico do que o mar.

Me deito na prancha e remo para depois da rebentação, deixando


o barulho e a agitação da cidade para trás. Viro a prancha e espero
pela onda certa.

Assim que vejo ela se formando, começo a nadar e quando ela


me alcança, subo de pé na prancha e, de repente, na minha mente
existe só o mar e a onda.
5.
Helena

Eu acordo todos os dias às cinco da manhã para correr.

Antes dos gêmeos, costumava correr no calçadão, mas desde


que eles chegaram, para não os deixar sozinhos, comprei uma
esteira e agora corro em casa mesmo. Entretanto, domingo é o meu
dia de folga e sempre me permito dormir mais.

Por “mais”, quero dizer até as 7h, ou até Júlia e Júlio invadirem
meu quarto. Quando escuto o toc toc na porta, me viro para o
relógio. 6h49.

— Entra! — falo, ainda me espreguiçando.

Duas cabeças aparecem no vão da porta com olhares inocentes.


Faço um “entre” com a cabeça para eles se juntarem a mim, e os
dois saem correndo antes de pular na minha cama king size.

— Você disse que a gente ia fazer alguma coisa hoje! — Júlio diz,
se aconchegando por cima da coberta.

Eu me sento na cama e Júlia se deita com a cabeça na minha


perna olhando para o teto.

— Eu disse?

— Disse! — Júlia reafirma.

Eu sei que disse, só estou brincando com eles.

— E vocês sabem o que querem fazer? — pergunto, passando a


mão nos cabelos da Juju.

— Ir no zoológico — Júlio diz.


— É?

Não gosto de zoológicos e nem de programas na natureza. Mas


se eles querem…

— Uhum!

— Bom, não contem pra tia Mila então.

— Por quê? — Juju pergunta.

— Porque ela vai falar que é uma prisão de animais e que eles
deveriam estar soltos.

— E deveriam? — Júlio pergunta.

— Talvez — digo, dando de ombros. — Não sei qual a condição


deles de viver sozinhos, nem como eles são tratados lá.

— A gente pode ir e descobrir — Júlio diz com um sorriso astuto.

— Muito esperto.

— E…? — Juju pergunta, esperançosa.

— Tá, tá — digo. — Vão se arrumar que vamos sair pra tomar


café da manhã antes.

Os dois abrem um sorriso e pulam da cama, correndo cada um


para o seu quarto.

Apesar de não gostar de zoológico, gosto de passar o dia com


eles e gosto de proporcionar atividades e passeios que sei que eles
não tiveram a chance no passado.

Essa era uma das partes que mais tinha medo enquanto rolava
os papéis da adoção, de que eu não seria uma boa pessoa para dar
a eles esse tipo de experiência. Eu não sou como meu pai, que
adorava levar eu e minhas irmãs para cima e para baixo e inventava
mil atividades para nos entreter.

Quando eles finalmente vieram morar comigo, prometi a mim


mesma que me esforçaria para que eles tivessem esse tipo de
experiência, mas, para minha própria surpresa, nem precisei me
esforçar. A verdade é que gosto de fazer essas coisas com eles.

Mesmo agora no zoológico, com esse cheiro de bicho e de caca


de bicho, os dois são divertidos o bastante para eu não me importar
com o cheiro e a sujeira. O sorriso deles é o que importa.

Mas não nego que enquanto os dois passam quase vinte minutos
discutindo em qual dos restaurantes temáticos querem almoçar, eu
entendi a minha mãe e o ato desesperado dela em juntar eu e
minhas irmãs com aquela cláusula da herança. É realmente
enlouquecedor ter que aguentar irmãos discutindo, num looping
eterno com os mesmos argumentos.

Por fim, tomo a decisão por eles e escolho uma terceira opção.
Ambos acatam e acham divertido.

Domingos como esse é algo que nunca pensei que teria, mas tem
sido uma grata surpresa.

◆◆◆

— Nem pensar, isso tá fora de questão.

— Helena, as pessoas querem vocês duas! — Flávio diz. — Você


viu os números do vídeo?

É segunda-feira de tarde e estou na Tennis&Co em uma reunião


com a equipe de marketing.

— É claro que vi, mas eu não sou modelo… nem a Pati.

Eu acho.
— Isso não tem importância, um bom fotógrafo vai conseguir
deixar vocês à vontade na frente das câmeras. Vocês são o casal do
momento, nada mais justo do que vocês serem a cara da campanha.

Pondero um pouco.

Em uma coisa Flávio tem razão, Pati e eu somos mesmo o casal


do momento. Meu story com ela sábado teve quase meio milhão de
visualizações e tantas reações que nem dei conta de acompanhar. E
só ontem ganhei mais cinquenta mil seguidores.

— Ainda assim, não quero transformar a minha vida em um


reality show, Flávio, e muito menos perder o respeito como
presidente da marca.

— Helena, uma sessão de fotos está longe de ser um reality


show, embora, aqui pensando, fosse uma ótima ideia também — ele
diz, olhando para o além como se essa ideia escabrosa tivesse
mesmo passado pela sua cabeça. — Enfim, mas não é o caso. E
você não vai deixar de ser presidente por ser a cara da marca. O
Steve Jobs…

— Tá, tá! — falo, cortando logo o pensamento dele. Detesto


quando começam com os “case” do Steve Jobs. — Eu vou pensar.

— Pensa com carinho — ele pede. — Você mesma disse que as


vendas da linha dispararam depois do vídeo.

— Isso é verdade.

— Então, vamos usar isso a nosso favor. Você é um Ícone Queer,


Helena, aceita!

Cristo!

Onde eu fui me enfiar?

Como não respondo, ele continua:


— Desde quando você é de desperdiçar oportunidades de
sucesso? — Flávio pergunta naquele tom passivo-agressivo de
quem tem um match-point.

Maldito.

— Eu vou falar com a Pati.

— Vai ser um sucesso, confia em mim.

— Espero.

Assim que saio da reunião, Amanda já avança sobre mim como


um cachorro carente que ficou oito horas em casa sozinho.

Nunca entendi os cachorros, você deixa eles sozinhos e quando


volta eles ficam felizes em te ver em vez de te castigar pelo
abandono. Gatos são animais muito mais coerentes e com ações
mais plausíveis. Os cães se humilham demais.

— Helena — Amanda diz, correndo atrás de mim enquanto


caminho até o elevador. — Três portais de notícias já ligaram
querendo uma entrevista com você.

— Quais?

— Floripa Diário, G2 e Correio Catarinense. Ah! E a Atlântida


quer uma entrevista no Pretinho Básico.

— Confirma com os portais. Ignora a Atlântida.

— Eu adoro o programa — ela fala, desapontada.

— Não me surpreende.

Ela limpa a garganta, se recompondo. O elevador chega e pego


minha bolsa que está na mão dela.

— Mais alguma coisa?


— Hm… é…

— Eu não tenho o dia todo.

Eu vou demitir a Amanda!

— Hm, não, é isso.

— Se precisar de mim, só por celular hoje — falo e entro no


elevador.

Mando uma mensagem para Pati, pedindo para ela me esperar


depois do treino.

Assim que ligo o carro, meu celular começa a tocar e atendo no


painel de bordo.

— Que é, Lara?

— E esse bom humor todo? — ela pergunta do outro lado da


linha.

— Nada, só que vou ter que ser modelo.

— Como é?

— Meu marqueteiro acha que eu e a Pati deveríamos ser a cara


da campanha.

— E você vai fazer?

— Vou — respondo contrariada.

— Com a Pati?

— Ora com quem mais, Lara? Com o Armando é que não é!

— Credo! Tô vendo que o mau humor do fim de semana ainda


não passou!
— Que mau humor?

— Como que mau humor? Você me mandou quatro áudios no


WhatsApp falando mal da coitada da Pati no sábado à noite.

— Ah, isso. É só que não estava preparada para aquele jantar.


Mas já passou. Tô disposta a fazer isso dar certo.

— Boa sorte — ela diz.

— Tá, mas você ligou para quê?

— Quero saber se você vai vir ao Grupo Lancellotti ainda hoje?

— Não, por quê?

— Porque o Sérgio, aquele cara que eu te falei, o da empresa de


embutidos, está vindo aqui.

— Você consegue resolver?

— Acho que sim.

— Tá, qualquer coisa me liga.

— Está bem.

Acabo chegando quinze minutos mais cedo em casa e consigo


assistir ao final do treino. Ju e Juju estão jogando um contra o outro,
mas é só um jogo recreativo, e Júlia está pegando leve com o irmão.

Pati me vê e vem ao meu encontro, se sentando no banco ao


meu lado. Ela parece curiosa.

— Não me diga que você já vai terminar comigo? — ela pergunta


com humor.

— Por que eu faria isso?

— Ora, você disse “precisamos conversar”.


— Porque precisamos.

— Todo mundo sabe que “precisamos conversar” é um código


universal para “vamos terminar”!

— Que seja, nós não vamos terminar ainda, e quando formos,


não vai precisar ser pessoalmente.

— É impressionante como você faz eu me sentir cada dia mais


amada, meu bem — ela dispara, mas ainda tem humor no tom.

— Bom, talvez a proposta que eu tenho, faça você se sentir


melhor.

Ela estreita as sobrancelhas e inclina a cabeça para o lado.

— Manda.

— Flávio, meu marqueteiro, quer nós duas protagonizando a


campanha da linha inclusiva LGBT.

— Protagonizando? Tipo, aparecendo em fotos e vídeos? — ela


pergunta com os olhos verdes arregalados.

— Eu não pensei em vídeo, mas talvez.

— Helena, eu não sou modelo!

— Eu também não.

— Então, por que tem que ser a gente?

— Porque as pessoas querem ver a gente, Pati! Elas acham que


somos um casal bonitinho ou sei lá.

E em questão de segundos, os olhos arregalados dão lugar ao


sorriso tradicional que faz seus olhos se fecharem um pouco. Nunca
vi uma pessoa sorrir tanto.
Espero não ter me envolvido com uma psicopata.

— Bom, isso somos mesmo!

— Você não está fugindo de ninguém, né? — pergunto por


precaução.

— Hm… não?

— Isso foi uma pergunta?

— Não estou fugindo de ninguém, não entendi o porquê da


pergunta.

— Se você não está fugindo de ninguém, pode aparecer na


minha campanha. O cachê é excelente.

— Deus, se eu soubesse que namorar com você teria tantos


compromissos, teria repensado minha resposta.

— Agora é tarde.

— E quando vai ser essa sessão?

— O Flávio quer fazer as fotos o mais rápido possível, então,


provavelmente essa semana ainda.

— Tá, vou te passar minha agenda de treinos. Pelo menos,


marca em algum horário que eu estou livre.

— Está bem — concordo.

Gosto de gente que leva o próprio trabalho a sério, então acato o


pedido. Até porque a minha agenda é mais maleável que a dela.

Logo Ju e Juju terminam a partida e se juntam a nós.

— Você viu aquele ace? — a Juju pergunta.


— Vi! — respondo, levantando a mão para ela bater. — Você tá
sacando demais.

— Tá excelente, Juju — Pati diz para ela. — Na próxima aula


vamos treinar um pouco mais o saque aberto.

Júlia balança a cabeça efusivamente. Ela é bastante competitiva,


e sempre presta atenção em tudo que a Pati diz. Talvez se torne
mesmo uma atleta profissional algum dia, mas por ora, não quero
pressioná-la a decidir nada, então deixo ela se divertir.

— A tia Pati vai jantar com a gente? — Júlio pergunta, enquanto


guarda a raquete na bolsa.

Olho para Pati, sem saber a resposta, mas ela é rápida em


responder.

— Hoje não posso, Ju, tenho mais um treino agora!

Não sei dizer se ela está falando a verdade, ou tentando me dar


espaço, mas fico agradecida mesmo assim.

— Que pena — ele responde.

— Na próxima, eu fico, inclusive, já tô atrasada — ela diz,


pegando suas coisas. — Tenho que ir.

Pati dá um beijo na testa de cada um dos dois, depois se vira


para mim e, antes que eu possa fazer qualquer coisa, ela me dá um
beijo na bochecha.

Ela tem os lábios macios e o gloss que está usando gruda na


minha pele, deixando-a meio melada. Sinto minhas bochechas
quentes e fico sem saber como reagir.

— Depois eu te ligo, amorzinho — ela diz, com um sorriso talvez


um pouco sádico para o meu gosto.
Ju e Juju seguram o riso, mas me olham com uma cara
engraçada, enquanto Pati caminha até o estacionamento.
6.
Pati

Eu não menti quando disse que estava atrasada para o próximo


treino, mas ter beijado a Helena me deixou levemente atordoada e
perco a entrada para a rua que preciso chegar. Respiro fundo e tento
me concentrar no trajeto.

Por sorte, ainda chego a tempo e a correria do treino me faz


esquecer do meu namoro de mentira por algumas horas.

Um namoro falso causa bem mais emoções do que julguei a


princípio. Enquanto num namoro real você tem que lidar apenas com
euforia e paixão; um falso traz consigo uma avalanche de angústia,
preocupação, embaraço e situações constrangedoras. Mas Deus
sabe que não estou acostumada a lidar com tantos sentimentos de
uma só vez!

Quando chego em casa, lembro de mandar minha agenda para


Helena para podermos marcar a tal sessão de fotos. Não demora
muito para que ela me responda.

Helena: Vou combinar com o Flávio para quinta a


tarde, pode ser?

Pati: Tá.

Pati: Tem alguma coisa que eu preciso fazer?


Tipo, sei lá, cortar o cabelo, aplicar alongamento
de cílios, colocar botox?

Posso ter exagerado um pouco na parte do botox, mas a verdade


é que estou mesmo um pouco apreensiva com essas fotos.

Helena: Não
É tudo que ela responde.

Pati: Hm, tá, suave

Helena: Você não precisa mudar nada, tá bom como


está

Ela manda depois de alguns segundos.

Acho que esse é provavelmente o único elogio que recebi da


Helena desde que a conheci.

Pati: Obrigada :$

Em seguida mando:

Pati: Você também está bem como está! ;)

Helena: Eu sei!

Solto uma risada, porque essa é a resposta mais Helena que ela
poderia dar.

Pati: Nos vemos quinta então?

Helena: Quarta. Você ainda treina os meus


filhos, não se esqueça.

Pati: Só enquanto minha carreira de modelo não decola! ;P

Ela me manda um emoji revirando os olhos, e abro mais um


sorriso.

É divertido conversar com ela.

Helena: Até quarta, Patrícia

Eu sabia que a conversa não duraria muito tempo. Não é do feitio


dela ficar de papo, ainda mais por mensagem, mesmo assim fico
levemente decepcionada.

Pati: Até quarta, amorzinho

Helena: Eu já te pedi para não me chamar assim

Pati: Desculpa, amorzinho

Mais um emoji revirando os olhos.

◆◆◆

Helena: Confirmado amanhã as 15h

Ela me manda mensagem na quarta-feira de tarde.

Pati: Tô nervosa

Respondo, com sinceridade.

Helena: Eu também estou um pouco, mas o Flávio


me jurou que o fotógrafo é bom

Pati: Eu to nervosa pelas fotos de casal, eu


quero dizer

Helena: Ah

Helena: É que nem atuar, não tem erro

Pati: Eu sou péssima atriz, Helena, e se notarem


que estamos fingindo

Helena: Você ta indo bem até agora

Pati: Tô?

Helena: Tá, acho que ninguém suspeita de nada


Pati: Tá

Respondo apenas, porque não sei mais o que falar. Mas espero
que ela esteja certa.

Helena: Vai ficar tudo bem, Pati, relaxa!

Pati: Tá

Helena: Eu vou tá lá também

Por alguma razão, esse último comentário fez um sorriso surgir


no meu rosto.

Pati: Tá, vamos vender essa linha!

Helena: É assim que se fala!

— Com quem você tá falando? — Júlio me pergunta assim que


ele e Júlia chegam à quadra.

Geralmente eles passam a tarde de quarta em casa com uma


babá e, dependendo da hora que Helena chega, a babá fica durante
todo o treino.

Eu não tenho certeza, mas acho que eles têm também um


instrutor de música nas quartas-feiras… Ou será que é nas
segundas? Não tenho certeza. Mas sei que Ju está aprendendo
bateria e Juju flauta.

— Hm, com a mãe de vocês.

Júlia abre um sorriso de quem acha que sabe o que está


acontecendo.

— Viu, eu te falei que era sério! — ela diz ao irmão.

— O que era sério? — pergunto.


— O namoro de vocês!

— Como é?

— A tia Helena estava com a mesma cara ontem — Júlio diz.

— Estava?

— Uhum — Júlia responde. — Ela tentou disfarçar quando a


gente viu, mas ela estava sorrindo, eu nunca vi ela sorrindo sem ser
pra gente.

Sinto minhas bochechas corarem com a revelação. Mas ao


mesmo tempo, de alguma forma, me sinto invadindo a privacidade
dela. Não somos namoradas e, de acordo com ela, nem somos
amigas, mas não posso evitar sentir uma sensação engraçada no
estômago com essa informação.

Ontem à noite, nós nos falamos um pouco sobre as fotos e sobre


alguns comentários que ela tem recebido no Instagram, mas foram
apenas algumas mensagens. Ela sempre dá um jeito de cortar a
conversa logo.

— Ahem — limpo a garganta, tentando recuperar minha


compostura. — E quando vocês vão parar de chamar ela de “tia
Helena”?

Os dois me olham um pouco surpresos e encolhem os ombros.

— Vocês sabem que ela gostaria que vocês chamassem ela de


mãe, não é?

— É? — os dois me perguntam, parecendo genuinamente em


dúvida.

— Ué, é claro!

Eles continuam me olhando, sem saber o que falar.


— Não é possível que vocês não saibam disso — digo aos dois.

— A gente sabe… — Júlia diz, sem parecer muito segura. — É só


que…

Ela pausa, e Júlio desvia o olhar do meu antes de continuar:

— A gente não sabe quanto tempo vai durar.

— Vocês têm medo de que ela desista de vocês? — pergunto,


surpresa.

Novamente eles encolhem os ombros e desviam o olhar para o


chão.

— Pode acontecer — Júlia diz.

— Como vocês são bobinhos — falo, me abaixando para ficar na


altura deles. — Ela é doida por vocês.

— E se ela cansar da gente? — Juju pergunta.

— Vocês deveriam falar sobre isso com ela, porque ela merece
saber como vocês se sentem, mas eu posso garantir pra vocês que
ela não vai se cansar!

— Você acha?

— Tenho certeza.

Os dois esboçam sorrisos tímidos, e espero que eles conversem


mesmo com Helena. Eu sei que ela sofre toda vez que eles a
chamam de “tia”, afinal não é preciso ser psicóloga ou vidente para
notar seu rosto se enrijecendo. E, ao mesmo tempo, sei que eles a
amam e já a veem como mãe.

Talvez só precisem de um empurrãozinho.


— Bora treinar? — falo por fim e os dois apenas balançam as
cabeças de forma efusiva, provavelmente felizes por mudarmos de
assunto.

O treino deles é quase sempre tranquilo, isso quando Júlio não


me joga na piscina para reduzir o tempo pela metade, e geralmente
nem vejo a hora passar. Hoje não é diferente.

Faltando uns dez minutos para acabar, os dois estão jogando um


contra o outro, Helena chega para assistir. Nos dias em que a babá
vai embora mais cedo, ela chega ao fim do treino para que os dois
não fiquem sozinhos.

Mas hoje, diferente dos outros dias, sinto minhas bochechas


esquentarem ao ver ela.

Por que aqueles dois tinham que me contar que viram a Helena
sorrir com as mensagens?

Assim que a vê, Júlia retarda o saque para abanar para ela, que
sorri e abana de volta, ela caminha até mim no banco ao lado da
quadra. Os gêmeos continuam olhando para a gente e sinto que
Helena também percebe.

O que é isso agora? Fiscal de relacionamento?

Como eles esperam até ela chegar ao meu lado, acho que
Helena sente que não tem escolha, então planta um beijo na minha
bochecha, e posso sentir o cheiro do perfume dela. É um cheiro meio
cítrico, meio floral intenso, mas elegante. Exatamente o cheiro que
você espera sentir de uma mulher como a Helena. Em seguida, ela
se senta ao meu lado.

Meu rosto fica ainda mais quente, se é que isso é possível.

Os dois trocam olhares e riem de nós antes de voltarem a jogar.

Helena e eu ficamos em silêncio durante o resto do treino, sinto


que ela também está desconfortável com os olhares atentos em cima
de nós o tempo todo.

Acho que não foi bem isso que ela imaginou quando decidiu fingir
esse namoro, mas cá estamos.

Depois de alguns minutos de um silêncio estranho, resolvo puxar


assunto:

— Estava pensando em falar com a Juju, se você concordar é


claro, de fazer umas aulas extras, para preparar para o Aberto
Floripinha. Ela já me deu umas duas ou três cantadas de que
gostaria de treinar mais vezes.

— Você não acha que é muito? — ela pergunta, franzindo de leve


as sobrancelhas perfeitamente desenhadas. — Não quero que ela se
machuque treinando demais.

— Podemos fazer uns treinos mais leves, é melhor do que ela


inventar de treinar sozinha.

— Tá, vou falar com ela — Helena diz. — Deus, como essa
menina é competitiva!

— Olha quem fala!

— O quê?

— Eu lembro de você jogando vôlei no Luneta! Além de me


colocar pra jogar com a insuportável da Michelle, deixou meu braço
todo roxo de tão forte que estava batendo na bola.

— Ah, mas naquele caso, ela tinha atacado a minha irmã.

— Ela! Não eu.

— Você foi dano colateral. Mas meu alvo era a Michelle.

— Da próxima vez, prefiro ficar no seu time.


— Vou pensar no seu caso.

— Eu também lembro de você tentando roubar na gincana —


comento, depois de alguns segundos observando os gêmeos jogar.

— Essa eu não tenho desculpa, é só que odeio perder mesmo.

Solto uma risada e vejo o canto do seu lábio se curvar em um


sorriso, sem tirar os olhos do jogo.

Após o treino, os gêmeos me convidam mais uma vez para jantar.


Não sei o que a Helena pretende fazer em relação a isso, mas não
creio que ela vá querer fazer desses jantares “em família” um hábito,
especialmente porque logo vamos terminar.

Mas para minha surpresa ela responde:

— Amanhã ela vai jantar com a gente.

Vou?

— Vamos fazer um ensaio para a Tennis&Co — ela continua. —


Depois podemos sair para jantar, nós quatro.

Podemos?

Helena não parece particularmente feliz ou empolgada com o


jantar, mas também não está com cara de que aceitaria alguma
recusa, então apenas sorrio e balanço a cabeça.

— Ensaio de quê? — Júlio pergunta.

— Ensaio de fotos, tipo uma sessão de fotos.

— Aaaaah — os dois falam juntos.

— A gente pode ver? — Júlia emenda.

— A sessão não, mas vocês vão ver as fotos depois.


— Legal!

— Hm, eu tenho que ir! — digo, meio sem saber o que fazer.

— Eu te acompanho até o carro — Helena diz, em um tom tão


calmo que penso que talvez esteja atuando.

— Hm, ok…

Me despeço dos dois e caminho ao lado de Helena até meu


carro.

O condomínio em que moram é enorme, cheio de mansões e


área verde. Eu sempre estaciono em uma das vagas perto das
quadras, que, apesar de ser perto da casa dela, fica no lado oposto.
Então vamos eu e Helena para um lado e Júlio e Júlia para o outro.

— Não precisa se preocupar amanhã — ela diz ao chegarmos no


estacionamento.

— Eu… eu não tô preocupada — tento disfarçar.

— Eu consigo ouvir as engrenagens do seu cérebro trabalhando


daqui, Patrícia!

— Tá, hm, tá bom, é só que eu nunca tirei fotos em estúdio, só


isso.

— Nós que vamos escolher as fotos da campanha.

— Nós?

— É — ela afirma. — Eu ameacei demitir o Flávio se ele usasse


alguma foto sem a nossa aprovação.

Solto uma risada e ela esboça algo semelhante a um sorriso.

Típico Helena.
— Isso me deixa mais tranquila, não nego.

— E eu tenho a impressão de que você vai se sair bem.

— Por quê? — pergunto.

Ela dá de ombros, mas responde mesmo assim.

— Você tem uma cara comercial.

— Hm, obrigada?

— Quero dizer que você tem um sorriso e rosto carismático, as


pessoas costumam comprar coisas de gente assim.

— Isso é um elogio?

— É um comentário — ela diz. — Para ser sincera, tô mais


preocupada comigo.

Apesar da fala, ela não tem um tom depreciativo ou pessimista,


parece mais que está preocupada com a parte prática da coisa.

— Você tá brincando? Você também tem a cara baita comercial!

Estou dando um tiro no escuro aqui e presumindo que “comercial”


nesse contexto seja um eufemismo para “bonita”.

É sempre difícil saber se Helena está te elogiando ou criticando.

— Veremos.

Fico brincando com a maçaneta por alguns segundos, então


Helena diz:

— Esteja lá uma meia hora antes amanhã.

— Tá bem — digo. — Até amanhã.

— Até amanhã.
◆◆◆

A sessão é em um estúdio no centro e, assim que chego, me


levam a um camarim com vários uniformes da Tennis&Co
pendurados em araras. Antes que eu possa pensar ou perguntar
qualquer coisa, uma maquiadora pula na minha jugular e me coloca
em uma cadeira enquanto um cabeleireiro faz alguma coisa dolorida
no meu cabelo. Depois de meia hora, eles terminam e me mandam
vestir o primeiro uniforme.

É um modelo todo branco, composto por saia, regata, meias e


munhequeira. A regata tem uma bandeirinha lésbica logo abaixo da
logo da Tennis&Co no lado esquerdo do peito. Pelo menos eles me
deixaram escolher a bandeira que me representava melhor. Porque
essa foi, literalmente, a única escolha que me deram.

Eu já estava começando a relaxar quando uma guria de uns vinte


e poucos anos me chama, dizendo que vamos começar.

Minhas mãos estão úmidas e meu coração levemente acelerado.

Eu gosto de tirar fotos. De verdade. Meu Instagram é cheio de


fotos minhas, mas um ensaio com a minha pseudo-namorada é algo
diferente.

Fico sem saber como me portar. Não sei se me encosto em uma


coluna, se me sento, onde coloco as mãos, não sei se posso mexer
no meu cabelo ou passar a mão no rosto. Então fico, desconfortável,
esperando o próximo comando.

— Relaxa, Pati — escuto a voz da Helena, pela primeira vez no


dia.

Me viro na direção dela e a vejo vestida em um uniforme parecido


com o meu, mas em vez de regata, ela usa uma polo com a bandeira
bissexual. O que eu acho que faz sentido, mesmo sendo falso.
Ela está com o cabelo preso em um rabo de cavalo alto e usa
uma viseira, noto também uma correntinha de ouro com um pingente
de raquete que eu nunca tinha visto antes.

Ela está… diferente.

Mais jovem.

Me lembra um pouco a Helena que conheci no Luneta, que era


obrigada a usar o uniforme do acampamento, só que agora numa
versão esportiva elegante. O estilo CEO combina muito com ela, é
verdade, e faz ela parecer a dona de qualquer lugar que esteja. Mas
o estilo esportivo a deixou gatíssima.

A saia que eu visto é bem tradicional, com pregas que dão fluidez
e liberdade de movimento. É o modelo que prefiro usar para jogar
mesmo. Já a que a Helena usa é um modelo reto e moderno, as
laterais arredondadas deixam as pernas bem à mostra e é a cara
dela.

— Tô tentando — respondo para a Helena.

— Pati, certo? — O fotógrafo se aproxima segurando uma


câmera, que tem cara de custar uma nota, em uma das mãos
enquanto estende a outra para mim. — Eu sou o Bento.

— Prazer — digo, apertando a mão dele.

— Não precisa ficar nervosa, vai ser mais fácil do que você
imagina.

— Vai dar tudo certo — Helena concorda com ele, e coloca a mão
sobre o meu ombro.

Balanço a cabeça em resposta aos dois, e a mão de Helena


começa a esquentar sobre meu ombro e sinto meu corpo tenso,
ainda sem saber o que fazer.

Mas respiro fundo e me sinto um pouco mais relaxada.


Bem pouco.

Bento nos guia até o fundo branco no qual vamos ser


fotografadas. A sessão começa e eu nem percebo, porque assim que
ele me dá uma bolinha, me distraio batendo no chão com a raquete,
quando me dou conta, Bento já está me fotografando.

Me viro para ele, como se ele tivesse me traído. Ele inclina a


cabeça para o lado e pergunta:

— Você consegue sacar?

Fico na dúvida se é um pedido ou uma pergunta sobre a minha


capacidade de sacar, mas não falo nada e apenas faço o movimento
de saque.

— Ótimo — Bento diz.

Olho para ele e vejo Helena ao seu lado, olhando uma das fotos
no visor da câmera. É difícil ler a expressão dela, mas acho que está
satisfeita.

Tenho impressão de que essas fotos eram apenas para eu


relaxar. Então, Bento coloca uma mão no ombro da Helena e diz:

— Vamos fazer uma com vocês duas.

Ela para na minha frente. Subo meu olhar para o seu e, mais uma
vez, fico sem saber o que fazer.

— Vamos começar com algumas fotos mais esportivas — ele


comenta, e eu respiro aliviada. — Quero que vocês virem de costas
uma para outra. Pati, posicione a sua raquete sobre o ombro direito,
isso, assim mesmo. Helena, deixe a raquete caída ao lado do corpo,
isso. Perfeito assim — ele diz, colocando a câmera em frente aos
olhos. — Ótimo. Agora olhem pra mim. Sérias e concentradas,
imaginem que estão prestes a começar um jogo importante.
Tenho certeza de que a Helena está dominando esse olhar
vencedor melhor do que eu, mas até acho que estou indo bem.

— Vocês estão ótimas.

A gente faz mais algumas variações nesse modo “oponentes”,


algumas de frente uma para a outra, algumas lado a lado.

É um tal de: “levanta a cabeça. Abaixa o queixo. Não se mexam.


Mais para a esquerda. Empina a bunda. Mãos para o lado. Mãos
para baixo. Mãos na cintura. Não, não assim. Isso. Virem-se.
Desvirem-se. Está perfeito. Podemos fazer melhor. Vocês são
ótimas. Eu sou ótimo! Segurem esse olhar mais um pouco…”

Já estou até zonza com tanta informação e comando.

— Beleza — Bento anuncia. — Vamos ao que interessa de


verdade aqui.

Sinto Helena se endireitar ao meu lado e noto que ela também


está um pouco tensa.

— Vou precisar da Helena sem a viseira agora — Bento diz, e em


questão de milésimos de segundos, uma pessoa já está em cima
dela, tirando a viseira e arrumando seu cabelo. — João, pegue a
banqueta branca pra mim, por favor.

E, novamente em segundos, a banqueta está ao nosso lado.

Bento nos analisa por algum tempo, não sei o que ele está
fazendo, mas chego a pensar que notou que não somos namoradas
de verdade.

— Helena — ele chama. — Você é mais alta e tem mais


presença, você se senta na banqueta. Pode deixar a raquete com o
João. Pati — ele me chama dessa vez —, se posicione no meio das
pernas da Helena.

Eita.
Helena troca um olhar comigo e sei que é uma bronca.

“Faz isso direito ou vai dar merda!”

Então, me posiciono.

— Helena, apoie o cotovelo no ombro da Pati — ele diz e ela


obedece. Como a banqueta é alta, ela consegue apoiar com
facilidade, mesmo eu estando de pé. — Isso! Olhem para a câmera
as duas.

Me esforço para não dar nenhuma bola fora, mas a proximidade


da Helena deixa minha mente embaralhada. E sinto meu coração
disparado. Espero não ter um piripaque aqui no meio da sessão.

— Helena, puxe a Pati pela cintura — ele comanda e, sem


nenhum outro aviso prévio, Helena coloca as duas mãos no meu
quadril e me puxa para perto dela.

Engulo em seco quando paro a centímetros do seu rosto.

— Perfeito! — Bento grita. E escuto os cliques da câmera. —


Acho que dá pra descer mais essa mão. O que é isso? Baile da
oitava série? — ele provoca e vejo a expressão da Helena a trair
pela primeira vez.

Certamente, Bento imagina que o jeito mais fácil de nos deixar à


vontade é apelando para nossa intimidade e é muito possível que
desse certo se tivéssemos intimidade uma com a outra, mas não é o
caso.

Ainda assim, Helena obedece e sinto as mãos dela descendo do


meu quadril para a minha bunda.

Cristo!

Como eu fui me meter nessa situação.

Engulo em seco, mais uma vez.


— Pati, relaxa! — Bento diz.

Eu vou meter a mão na sua bunda e ver se você vai ficar


relaxado, Bento!

— Relaxa — Helena diz em um tom que a essa altura já não sei


dizer se é gentil ou uma ameaça.

Ao notar minha confusão, ela continua:

— Você tá indo bem, respira.

Respiro fundo.

— Viu, não é tão difícil — ela diz, ainda com as mãos firmes na
minha bunda.

Pela primeira vez, solto uma risada da situação e vejo Helena


sorrir também.

Escuto mais cliques.

— Preciso mais desse olhar — Bento comanda.

— Que olhar? — pergunto baixo para Helena, mas ele escuta.

— Olhar de desejo! — ele responde.

— Eu não consigo na frente de tanta gente — falo, tentando


disfarçar o real motivo.

— Tenta fingir que vocês estão sozinhas.

Isso não ajuda muito!

— Tá — respondo, sem ter a menor ideia de como fazer isso.

— Olha pra mim — Helena comanda.


Ela tem um tom grave e direto, e obedeço sem titubear. Quando
meu olhar alcança o dela, por um segundo, me esqueço
completamente das pessoas ao nosso redor e me sinto capturada
por esse par de olhos castanhos.

O ar me falta quando eles descem para os meus lábios. Engulo


em seco e vejo o canto da boca de Helena se curvar em um sorriso
malicioso. Sinto eletricidade entre nós.

— Vocês são perfeitas — Bento grita, olhando algumas fotos no


visor. — Preciso que vocês troquem pelo uniforme azul agora.

Helena me solta tão rápido que tenho que dar um passo para trás
para não me desequilibrar. Limpo a garganta e me viro em direção
ao camarim para trocar o uniforme.

— Ei — Helena me para, antes que eu possa seguir com o meu


objetivo. — Tá tudo bem?

— Uhum.

— Você está indo bem — ela reafirma mais uma vez.

— Hm, você também.

Até bem demais!

— Obrigada — ela diz e sorri.

Dessa vez, não é malicioso, é um sorriso sincero. E volto a me


acalmar.

O resto do ensaio passa rápido e Helena não precisa mais me


pegar pela bunda. Ainda assim, fazemos muitas fotos apoiadas uma
na outra, abraçadas e de mãos dadas.

Bento é realmente um bom fotógrafo e, antes de nos darmos


conta, ele já está encerrando.
Eu não sei ao certo como vai ser os próximos dois meses, mas
acho que nada pode ser mais constrangedor do que isso.

Certo?
7.
Helena

Até que foi divertido.

Apesar de a Pati estar nervosa, ela se saiu bem e acho que as


fotos ficaram boas. Bento nos mostrou algumas ainda no visor da
câmera, sem nenhuma edição, e estou otimista de que irão servir
bem para a campanha.

Como prometi ontem para os meus filhos, vamos sair para jantar
com a Pati esta noite. Então aproveito enquanto dirijo para casa e
peço para Elisa, a babá, mandar Ju e Juju tomar banho e se vestir.

Para ser sincera, não tenho certeza do que estou fazendo ou se


estou agindo da forma correta em relação a eles. Não que eu vá
admitir isso em voz alta, mas não calculei direito o impacto que essa
mentira teria nos meus filhos, e agora não sei qual a melhor maneira
de lidar com a situação.

Eu sabia que eles adoravam a Pati e logo imaginei que não


teriam nenhum problema com o namoro, mas acontece que eles
parecem gostar um pouquinho demais da ideia, e me preocupa a
reação deles quando eu e a Pati terminarmos.

E, ao mesmo tempo que penso que o melhor é deixá-los o mais


afastados disso possível, ela é a treinadora dos dois e os vê três
vezes por semana. Dessa forma, talvez o melhor seja tentar fazer
esse relacionamento parecer o mais natural possível, e foi por isso
que a convidei para jantar com a gente.

Combino com a Pati de nos encontrarmos na minha casa para


irmos juntas ao restaurante. Por volta das seis e meia, ela chega e
vamos todos no meu carro.
Uma surpresa para mim nessa história toda, é que ela parece
mais desconfortável do que eu com o nosso namoro falso.
Sinceramente achei que ela fosse tirar de letra. Ela está sempre
sorrindo e parece sempre à vontade em qualquer situação, pensei
que a mesma coisa iria acontecer agora. Mas a maneira como ela se
remexe no banco do passageiro ao meu lado é a prova de que a
pobre guria não sabe como agir.

Por outro lado, pensei que eu acharia mais difícil ter que aguentá-
la, mas ela é uma pessoa fácil de lidar e mostrou que é confiável e
que sabe guardar um segredo.

Em alguns momentos, acho até divertido.

A pedido dos meus filhos, estamos indo a uma hamburgueria no


centro da cidade que os dois adoram.

Se eu soubesse que eles iriam se apegar tanto à primeira


hamburgueria que eu os levei, teria escolhido um lugar mais
confortável e com música mais baixa. Mas deixei a Luísa me
convencer a trazê-los aqui porque de acordo com ela “é o melhor
hamburguer da cidade”, e agora eu estou fadada a frequentar esse
lugar cheio de universitários com bafo de cerveja e cadeiras
desconfortáveis.

Como a hamburgueria não tem estacionamento, tenho que deixar


o carro a algumas quadras, e vamos caminhando pelo centro. É uma
região histórica e bem movimentada, então não me importo de ter
que andar um pouco.

Júlio e Júlia caminham na nossa frente conversando


animadamente um com o outro, e Pati caminha em silêncio, olhando
as vitrines pelas quais passamos. Sinto que ela ainda está um pouco
tensa, talvez pela sessão de fotos de mais cedo ou talvez porque ela
se sente mal em mentir para os gêmeos.

Eu também me sinto, mas é melhor do que tentar explicar essa


patuscada na qual me enfiei.
Um burburinho no outro lado da rua chama minha atenção e me
viro para olhar o que está acontecendo. Me deparo com um grupo de
pessoas conversando e apontando para nós, algumas surpresas,
outras com celulares apontados na nossa direção.

Me dou conta de que nos reconheceram do vídeo no Twitter.

Tudo que não preciso no momento é mais um vídeo meu


viralizado sem eu ter controle da narrativa, dessa forma, resolvo
tomar as rédeas da situação e deslizo minha mão na de Pati.

Apesar de pega de surpresa, ela permite que eu entrelace nossos


dedos. Me aproximo dela e sussurro que estamos sendo filmadas em
seu ouvido.

O cabelo dela cheira a alguma mistura cítrica, que não sei


identificar, e maresia, como se tivesse acabado de sair do mar. É
curioso, já que sei que ela não esteve na praia hoje, mas agradável.

Pati assente e sei que ela tem que se esforçar para não virar a
cabeça e olhar para as pessoas que nos observam.

— Todas as vezes que me imaginei como uma celebridade local,


era por ter ganhado algum torneio, não por estar namorando uma
Lancellotti — ela diz com humor.

— E você se imaginou muitas vezes como uma celebridade


local? — pergunto.

Ela encolhe os ombros e tenta segurar o sorriso.

— Talvez.

— Olha só, você realizou o seu sonho com o bônus de ser uma
celebridade nacional.

— Obrigada por me ajudar a alcançar meus objetivos — ela


brinca.
Sorrio para ela e continuo segurando sua mão. Ela tem as mãos
macias e geladas e segura a minha com um pouco mais de força do
que é preciso. Talvez seja sua maneira de tentar controlar a
ansiedade, mas como fui eu que a meti nessa situação, não me
importo que aperte.

Chegamos ao restaurante de mãos dadas e sei, pela maneira que


a recepcionista nos olha, que ela também viu o vídeo.

Pelo jeito, todos na cidade viram esse vídeo.

Ela sorri e nos indica uma mesa na janela com vista para uma
praça, que é geralmente a mesa que ficamos quando viemos aqui.

Os gêmeos estão falando sobre o projeto deles para feira de


ciências e Pati está respondendo alguém no celular.

— Desculpa — ela diz, largando o aparelho na mesa — vocês já


sabem o que vão pedir?

— Ju e Juju vão pedir o de sempre porque eles se recusam a


provar coisas novas — falo com um misto de bronca e piada. — Mas
não recomendo, porque é só uma montanha de queijo com carne.

— Por que eu vou trocar se eu sei que gosto desse? — Júlia


pergunta, elevando as sobrancelhas de forma dramática.

— Para saber se gosta dos outros também.

— Eu não sou tão curiosa — ela diz e arranca uma risada da Pati.

— Tá bom, espertinha — digo para ela, e me viro para Pati. — Eu


geralmente peço o de cogumelos e cebola caramelizada — falo,
mostrando pra ela no cardápio —, agora, se você quiser uma coisa
mais natural, a Mila diz que o vegano deles é muito bom, mas eu não
confio nela, então não garanto nada.

— Você sabe que eu não sou vegana.


— Mas é atleta. Vocês atletas não cuidam da alimentação?

— Não! — Júlia exclama, ligeira.

— Vish, Juju — Pati diz, fazendo uma careta —, lamento informar


que se você quiser seguir carreira, vai ter que cuidar sim!

— É?

— Uhum — Pati exagera uma cara de pesar —, mas por ora você
pode comer quanto queijo quiser.

— Quanto quiser não! — interrompo. — Tem que comer salada e


verduras também.

— Ah — Júlia resmunga.

Júlio está entretido com a TV do restaurante que está passando


cenas de um campeonato de skate que não sei onde é.

— Mas voltando ao assunto — Pati diz —, eu não sou atleta.

Noto um certo tom de ressentimento no seu comentário. Mas é


muito breve, logo volta a sua natural expressão alegre.

— Vai pedir o quê, então?

— Esse de queijo brie e geleia de pimenta.

— Esse é bom também.

O visor do celular da Pati se acende com mais uma notificação de


mensagem e ela se apressa em ler e responder enquanto o garçom
vem à nossa mesa pegar os pedidos.

Como esperado, as crianças pedem o de sempre e acabo


fazendo o pedido para Pati, já que ela parece concentrada com a
mensagem que está escrevendo.
— Vocês não vão acreditar no que a gente vai fazer pra feira de
ciências da escola — Júlio diz depois que o garçom sai.

— Não vão explodir nada não, né? — pergunto.

— Não — Júlia diz rindo, mas admito que a minha preocupação


era real. A gente nunca sabe com esses dois. — Vamos criar uma
erupção vulcânica.

— Com lava e fumaça e tudo mais. Vai ser irado! — Júlio explica.

Um vulcão de papel machê é um experimento divertido mesmo.

— Se precisarem de alguma ajuda, podem contar comigo — Pati


diz, largando mais uma vez o celular na mesa.

Olho para ela procurando algum vestígio de que ela apenas falou
por falar, mas percebo que ofereceu de forma genuína. Na verdade,
ela sempre se oferece para ajudá-los e realmente tem muito jeito
com crianças, e essa é uma característica dela que sou muito grata.

Creio que seria uma boa mãe.

— E vocês contaram pra mãe de vocês o que aconteceu no


condomínio?

Os dois se olham de forma cúmplice e imediatamente sei que é


algo que não querem que eu saiba. Mas o tom sério da Pati me faz
ter certeza de que é algo que eu deveria saber.

— Deixa pra lá, tia — Júlio diz para Pati. — A gente não liga.

— O que aconteceu? — Pergunto para os dois.

Os dois me encaram sem falar nada, então me viro para Pati,


atrás de uma explicação.

— Eles estavam chateados porque rolou uma festinha de


aniversário no condomínio e eles foram as únicas crianças que não
foram convidadas.

— Festinha de quem?

— Do Enzo.

— E por que vocês iriam querer ir na festa daquele maurici…

Admito que levo alguns segundos a mais do que deveria para


entender o motivo.

Mas quando me dou conta, sinto meu sangue fervendo.

Quando eu adotei os dois, não pensei muito no fato de eles


serem negros e eu ser branca, mas logo percebi que deveria ter
pensado. Desde então tenho lido e estudado o máximo que consigo
sobre racismo e a história das pessoas negras no Brasil e no mundo,
para poder ajudar e guiar eles.

Ainda assim, eu sou uma mulher branca que nasceu em uma


família bem “respeitada” por aqui, nunca passei por esse tipo de
situação e não sei direito como lidar. Mas sei que não posso
simplesmente dar uma surra na família do Enzo, embora essa seja a
minha vontade.

— Por que vocês não me contaram?

— Porque a gente não queria que você se aborrecesse. A gente


tá acostumado — Júlia diz.

— A gente nem queria mesmo ir nessa festa de playboy, mó


chatice. — Júlio dá de ombros.

— A família do Enzo não gosta de gente preta — Júlia confirma.

— Eu não tô nem aí para o que eles gostam ou deixam de gostar


— digo, irritada. — Racismo não é questão de gosto! E não são
vocês que tem que se adaptar aos racistas. São eles que têm que
aprender a ser gente!
Os dois assentem com a cabeça.

Está tudo errado nessa situação e fico irritada comigo mesma por
não saber direito como agir.

Júlio e Júlia entendem o racismo muito melhor do que eu. E eu


falar que é errado não muda o fato de que os dois estão sofrendo
com isso.

Eu sou a mãe deles!

Eu deveria ter a capacidade de ajudá-los, mas nunca passei por


isso.

— Eu vou falar com a mãe do Enzo.

— Não! — os dois falam juntos. — Só vai piorar!

— E o que vocês querem que eu faça? — pergunto de forma


genuína.

— Nada!

Respiro fundo, sabendo que tenho que tomar uma atitude


independente de eu estar segura ou não.

— Eu sei que vocês não querem ser vistos como um problema


pro pessoal do condomínio, nem que eu chame a atenção da família
do Enzo para esse evento — digo, encarando os dois. — Mas o
problema não está em vocês! Está neles! E eles tem que saber
disso. A gente não pode fazer vista grossa para essas coisas,
mesmo que pareça ser mais fácil.

Os dois assentem com a cabeça.

— Vocês não são um problema — repito, porque não sei se eles


acreditaram na primeira vez.
O problema são aqueles preconceituosos que se acham os donos
do mundo.

— A Helena tem razão — Pati diz. — A gente não pode deixar


passar. Toda vez que ficamos em silêncio, eles acham que estão
certos.

— Não se preocupem, eu não vou fazer nada que vá


envergonhar vocês — falo. — Só prometam que não vão mais me
esconder nada.

— Tá bom, tia.

— A gente promete.

Nosso pedido chega e logo o clima fica leve novamente. Os dois


continuam a contar sobre a feira de ciências e Pati volta as suas
mensagens de texto, com o hamburguer em uma mão e celular na
outra digitando com certo vigor.

— Você tá me traindo, Patrícia? — pergunto, porque a essa altura


já está me incomodando.

Ela leva um susto, mas depois relaxa quando vê que não estou
sendo séria.

Embora tenha me ocorrido que não conversamos sobre isso


quando “fechamos nosso acordo”. Talvez ela esteja mesmo
conversando com alguém de forma romântica e isso não seria da
minha conta.

— Não precisa ter ciúmes, amorzinho — Pati diz, sorrindo. Pelo


jeito, não vai desistir do apelido. — Ela até é charmosa, mas você é
mais bonita.

— Ah, é?

— Além do mais, ela tem 70 anos.


— A Meryl Streep também.

— Ainda assim, não faz meu tipo — ela diz, e dá mais uma
mordida no hamburguer. — Mas é a minha avó.

— Bom, não quero atrapalhar — digo. — Manda um oi para ela.

— Eu vou mandar é um tchau, porque não aguento mais — Pati


diz baixo apenas para mim. — Ela não sai do meu pé por estar
namorando uma mulher com filhos.

— Pelo menos, ela vai ficar feliz daqui a dois meses — falo no
ouvido dela, para que os gêmeos não escutem, embora os dois
estejam entretidos com a TV, que ainda passa o campeonato de
skate.

—Vai mesmo, porque se não for pra me ver com um homem, ela
prefere me ver sozinha.

— Sinto muito — falo de forma sincera.

— Credo! — Pati exclama.

— O quê?

— Helena Lancellotti com pena de você é, tipo, atestado de que


sua vida está uma merda mesmo!

Solto uma risada.

— Eu não estou com pena de você — afirmo, embora estivesse


um pouco.

— Tem certeza? Porque eu prefiro você me recriminando do que


com pena.

— Por que eu ia ter pena de uma molenga que nem você?

— Bem melhor assim! Obrigada!


— De nada.

Diferente do nosso primeiro jantar com a Pati, dessa vez não


houve desconforto. Tanto Pati quanto meus filhos pareciam mais à
vontade com a ideia, e creio que eu também estava mais relaxada.

Voltamos caminhando até o carro e, mais uma vez, entrelaço


nossos dedos. Pati parece não se importar muito e eu prefiro ser
cuidadosa com os olhares e câmeras alheias. Afinal, é a minha
marca que está em jogo.

Quando chegamos a minha casa, Ju e Juju correm para dentro


porque disse que eles poderiam jogar um pouco de videogame antes
de dormir, e levo Pati até o seu carro.

— Obrigada por fazer eles me contarem sobre o caso da festa de


aniversário — falo.

— Eu disse para eles te contarem, mas achei que não iriam


mesmo. Eles não gostam de te deixar preocupada.

— Eu sei. Amanhã vou falar com a Lucélia, a mãe do Enzo… Eu


odeio aquela mulher.

— Eu só passei por ela umas duas vezes aqui dentro e já odeio


também.

— Uma entojada. Mas, enfim, queria agradecer por ter me


contado.

— De nada.

Fico sem saber ao certo o que falar e percebo que Pati também.

— A gente se vê — ela diz, depois de alguns segundos. — Eu


vou indo.

— Até.
Pati entra no carro e fico com a sensação de que deveria ter me
despedido de alguma outra forma. Mas, ao mesmo tempo, não tem
ninguém nos olhando, então não há necessidade.
8.
Pati

Entro em casa toda suada. Guga, como sempre, ignora minha


presença e vou direto para a cozinha atrás de uma banana antes do
banho.

Ainda são 6h30 da manhã e já fiz minha corrida matinal. O dia


hoje está mais abafado e a previsão é de que esquente ainda mais
até o fim da semana. Provavelmente será o último calor da
temporada antes do inverno, e faço uma nota mental de falar com a
Helena sobre aquelas aulas de surf para os gêmeos.

Já estou quase no banheiro quando escuto meu celular tocar.


Solto um suspiro, porque só uma pessoa costuma me ligar tão
cedo…

— Oi, mãe.

— A sua avó tá me deixando louca, eu não aguento mais!

— Nem me fala — digo, me jogando no sofá, já que está na cara


que isso vai demorar. — Ela me atormentou a noite inteira ontem
depois que descobriu que a Helena tem dois filhos. Como é que ela
fica sabendo dessas coisas tão rápido?

— Ela tá viciada em rede social! Tá pior que o seu irmão com o


videogame.

— Pai amado! Preferia quando estava viciada em jogar cartas


com as amigas. Pelo menos a única prejudicada era a poupança
dela.

— Eu também — minha mãe concorda. — Uma pena que


expulsaram ela depois de acusar as velhas de serem trapaceiras.
— Pois é. Mas acho que eram mesmo trapaceiras.

— Eram sim. Aquelas velhas são uma mais safada que a outra!

— Pensando bem, foi melhor a vovó ter saído daquele grupo.

— Filha, eu sei que a sua avó é exagerada, mas ela não tá


completamente errada.

Estava mesmo demorando.

Eu sabia que ela não tinha ligado só para se queixar da minha


avó.

— Lá vem…

— Você acha mesmo uma boa ideia se envolver com uma moça
com tanta bagagem?

Se tem uma certeza que eu tenho nessa vida é que, se essa


fosse uma relação real, eu jamais contaria para a minha família. A
menos, é claro, que eu estivesse prestes a me casar… Ainda assim
iria pensar bem.

Mas além de ser falso, esse é um namoro público!

Por que em nome de Deus eu me meti nisso?

— Mãe, olha, a gente só tá namorando, não significa que eu vá


me casar com ela. Pra que discutir isso agora?

— Então você não pensa em ter um futuro com ela? — minha


mãe pergunta quase como um detetive para um suspeito.

— Ah, mãe, sei lá, não pensei tão longe.

— E por que outro motivo você tá namorando essa mulher? Não


é pelo dinheiro dela, não, né? Eu te criei melhor que isso!
— Quê?! Claro que não!

— Olha, Patrícia, eu tô achando essa história muito estranha, e


alguma coisa me diz que você não deveria se meter com essa gente.

— Quer parar de falar como se a Helena praticasse tráfico


humano?

— Tá, tá. É só que eu sou sua mãe, eu me preocupo.

— O que, em nome de Deus, pode te preocupar tanto nesse


namoro?

Eu sei exatamente o que a preocupa nessa relação: o gênero da


Helena. Mas prefiro me fazer de desentendida.

— Primeiro que ela é mais velha…

— Ela é seis anos mais velha que eu, mãe, não sessenta!

— Além disso, ela tem uma penca de filhos que nem são dela!

— Eu vou fingir que a senhora não disse isso, pra gente não
brigar logo cedo.

Impressionante como a minha família tem o dom de me deixar


irritada.

— Só tô falando, a gente não tem como saber a índole dessas


crianças, Pati!

— É claro que tem! São crianças maravilhosas e, quer saber, eu


preciso desligar. Já estou atrasada!

— Tá bom, não precisa ficar tão defensiva, pelo jeito esse


namoro é sério mesmo.

— Sim, é bem sério! Tchau, mãe!


Desligo antes que ela possa falar qualquer coisa.

Esfrego as mãos no meu rosto pensando no que eu falei. Além de


ter que aguentar minha mãe sendo a pessoa mais retrógrada e
preconceituosa do mundo por dois meses, depois vou ter que ouvir
meses e meses de “eu te avisei” quando eu e Helena terminarmos.

Que inferno!

Antes de ir para o banho, tento esquecer essa conversa e mando


uma mensagem para a Helena, convidando ela e as crianças para ir
à praia domingo.

◆◆◆

Quando saio do banho, meu celular se acende em cima da cama


e vejo que tem três notificações da Helena.

Helena: A previsão é de calor mesmo, melhor


aproveitar que deve ser o último dessa temporada.

Fico feliz de saber que vamos surfar no domingo, sei que Júlio
está louco para aprender. Ele já manda super bem no skate, então
acho que vai se sair bem na prancha também.

Leio a mensagem seguinte:

Helena: Encontrei com a Lucélia agora de manhã.

Helena: Que filha duma puta!!!

Não perco tempo antes de enviar uma mensagem, perguntando o


que ela falou.

Menos de um minuto se passa e vejo o nome da Helena se


iluminar no meu telefone. Acho que é a primeira vez na vida que ela
me liga.
— O que ela disse? — pergunto sem nem cumprimentar.

— Aquela vaca velha disse que convidou apenas os amigos mais


próximos do Enzo. Então pontuei que os “mais próximos” eram todas
as crianças menos os meus filhos. Aí ela disse que o Ju e a Juju não
eram uma boa influência para o Enzo e que os meus valores não
eram condizentes com os deles. A vagabunda além de racista é
homofóbica!

Eu nunca vi Helena tão furiosa antes. Mas ela tem todo o direito
de estar.

— Surpresa seria se não fosse — digo, me sentindo irritada com


essa mulher e com a minha mãe por endossar esse tipo de
pensamento. — E o que você pretende fazer?

— Ainda não sei — ela diz. — Não tenho como provar que ela
não os convidou por racismo. Mas vou levar essa pauta para próxima
reunião de condomínio.

— E o que você vai falar para os pequenos?

— Que a vizinha é uma arrombada!

Apesar da tensão, solto uma risada. Helena é a mulher elegante


e fina mais desbocada que eu conheço, mas eu gosto dessa
peculiaridade sua.

— E de verdade?

— Que eu falei com ela e que não tenho como controlar a reação
dela e da família, mas que o importante é não deixar isso passar. E
que se continuar, vamos tomar atitudes legais.

— Você tá certa.

— Calma aí que a Júlia acordou — ela diz distraída. — Bom dia


— Escuto Helena falar com a filha depois escuto um beijo estralado
—, eu já vou lá tomar café com você, só tô falando com a Pati. —
Escuto a Júlia falar alguma coisa, então Helena volta para mim. — A
Juju te mandou um beijo.

— Outro pra ela!

— Então, que horas você quer ir domingo? — Helena pergunta.

— Acho que lá pelas nove, mais cedo vai estar muito frio para as
crianças.

— Está bem, e em que praia você pensou em ir?

— Na praia do Forte, que não tem onda grande, é mais seguro


para eles começarem.

— Tá! Eu preciso comprar algum equipamento?

— Eles têm pranchinha de bodyboard?

— Os gêmeos não, mas os da Lara tem. Vou comprar duas


pranchas então.

— Massa. Eu vou levar a minha prancha de longboard porque


acho que o Ju vai conseguir surfar nela.

— Vê se cuida dos meus filhos e sobrinhos, hein! — ela ameaça,


mas não consigo evitar sorrir.

— Pode deixar, amorzinho.

— Já disse para você não me chamar assim.

— Desculpa, dessa vez escapou sem querer mesmo.

— Era só o que me faltava.

— Eu te encontro aí domingo?

— Sim, vem pro café da manhã.


— Hm, que doméstico! Tá bom.

— Por favor, não faça eu me arrepender do convite.

— Não, não! Nos vemos domingo. Beijos!

— Até — ela diz e desliga.

◆◆◆

Chego no condomínio bem cedo no domingo para tomar café da


manhã com a Helena e os gêmeos. Como as crianças estão
ansiosas para ir logo, o café é breve e cheio de expectativa e
comentários sobre os planos para o dia. Não demora muito para Lara
deixar Lucas e Alícia também.

Imagino que esse dia será uma loucura. Mas tem algo de familiar
em eu e a Helena com uma penca de crianças. A diferença é que,
dessa vez, a Helena parece estar com mais boa vontade do que
quando éramos monitoras no Luneta.

Vamos em dois carros. Eu levo as pranchas no rack de teto do


meu, e Helena leva as crianças.

Assim que estacionamos, os quatro saem correndo para a areia,


como se nunca tivessem ido à praia antes. Helena não perde tempo
em sair ditando as regras e advertências atrás deles.

Fico sozinha para soltar as pranchas e já aproveito para mandar


um áudio para o Pepa, avisando que já chegamos e passando nossa
localização.

— Já tô aqui, feia — uma voz ecoa atrás de mim, na hora que


coloco meu celular no bolso. — Deixa que eu te ajudo.

Me viro a tempo de ver meu amigo, só de calção de banho e todo


molhado. Pelo jeito ele chegou cedo e já deu um mergulho.
— E aí, feio!? — Cumprimento o Pepa com um beijo no rosto.

Eu conheço o Pepa há uns seis anos já e, embora ele seja três


anos mais novo que eu, ficamos amigos logo que nos conhecemos.

Ele é de Penha, aqui em Santa Catarina, e quando se mudou


para cá, chamava todo mundo de “feio” e “feia”, que é uma gíria
comum lá. O negócio pegou e a gente se chama assim até hoje.

Ele pega a long e eu a outra prancha, e caminhamos até onde


Helena já está com as crianças. Ela escolheu um restaurante com
cadeiras e guarda-sóis na areia, dessa forma não precisamos levar
nada além das pranchas.

Assim que Ju e Juju veem Pepa, abrem sorrisos enormes e


correm para abraçá-lo.

— E aí, bro? — Pepa fala para Ju, cumprimentando com um


aperto de mão coreografado. — Oi, princesa — ele diz para Juju, e
repete o mesmo cumprimento. — Quem são esses dois aí?

— São nossos primos, o Lucas e a Lili. — Júlia explica para o


Pepa toda sorridente. Ela adora o Pepa. Na verdade, os dois
adoram. Deve ser porque o Pepa tem a mesma idade espiritual
deles.

— São os filhos da Lara — eu esclareço.

— E vocês vão surfar também? — eles fazem um gesto


afirmativo com a cabeça ainda meio tímidos, mas logo abrem um
sorriso quando Pepa solta um efusivo “daora” e estende a mão
aberta para eles baterem.

— Daqui a uns minutos a gente já vai começar, valeu? — Pepa


diz para as crianças que assentem com a cabeça.

— Podemos jogar frescobol enquanto isso — Lucas fala para os


gêmeos.
— Partiu —Júlio se apressa em dizer, pegando as raquetes.

Apesar de ser ótima no tênis, Júlia não mostra muita empolgação


com o frescobol. Ela pega Alícia pela mão e pergunta se ela quer
fazer um castelo de areia, e as duas se sentam alguns metros da
gente, onde a areia já está molhada, e começam a cavar.

Pepa logo se aproxima de Helena, e a cumprimenta com um beijo


no rosto, que ela não tem tempo hábil de desviar. Solto uma risada
da cara que ela faz.

— Pô, daora você e a Pati!

— Obrigada? — Helena responde, passando a mão na bochecha


para enxugar o rastro de água salgada que o beijo dele deixou.

— Eu sabia que isso ia acontecer mais cedo ou mais tarde — ele


diz.

— Como é que é? — pergunto.

— Ah, feia, você vivia falando dela lá no Luneta.

— Ah é? — Helena pergunta para Pepa, mas tem os olhos bem


fixos em mim, o sorriso vitorioso não me ajuda em nada e sinto
minhas bochechas ardendo de tão vermelha que devo estar.

— Sim! — ele responde. — Era mó chato, na real. Aquele dia do


trampolim ela passou a noite toda falando de você!

— Tá já chega! — falo, me metendo na frente dele. — Olha lá, a


Mila e o Murilo!

Pode até ser que eu tinha um crush na Helena no Luneta, mas já


foi. No passado! Isso já faz um ano e meio e eu já superei!

Mila e Murilo caminham até nós. Helena avisou sua irmã ontem
que passaríamos o dia na praia e a convidou para vir também. Para
ser sincera, acho que só convidou para que ajudasse com as
crianças e para que se acontecesse algo com a Lili ou o Lucas, a
Lara não pudesse culpar só ela.

Mila está com uma barriga tão grande que espero que essa
criança não nasça aqui. Murilo já parece o pai mais babão do mundo
antes mesmo de Luna nascer. Ambos têm um sorriso permanente e
exalam uma felicidade que pode ser sentida a quilômetros.

Eu não sou uma pessoa muito mística, apesar de realmente


achar que o mar cura quase qualquer coisa, mas a Mila tem algo…
aura, vibe, energia, sei lá, que é, tipo, perceptível para qualquer um.
Tenho certeza de que até a Helena, a rainha do ceticismo, consegue
perceber.

A Luísa tem razão, essa guria é meio bruxa mesmo.

Depois de todos os cumprimentos, que não são poucos, nós


finalmente nos instalamos. Murilo e Pepa estão atrás de mim falando
do campeonato de surf que estava rolando no Peru. Mila está
refastelada na espreguiçadeira, pegando sol na barriga. As crianças
estão brincando na nossa frente e eu estou terminando de passar
filtro solar no meu rosto, porque esqueci de passar antes de sair.

Helena tira o vestido de linho branco que está usando como saída
de praia, e sinto o mundo em câmera lenta por um momento. Ela
está com um biquíni com estampa de folhagens e, não sei o que eu
estava esperando, um maiô elegante talvez. Mas ela está
absurdamente gata nesse biquíni. Sinto minha boca seca de repente.

— Pra quem tava mó tempão na seca, você ganhou um baita


banquete, hein? — A voz do Pepa vem como um sussurro no meu
ouvido.

— Que isso, Pedro Paulo?

Mas que diabos, ele não estava falando com o Murilo?

— Com todo respeito, claro.


Escuto Murilo soltar uma risada. Sei que o Pepa já fez esse tipo
de comentário sobre a Mila para ele também.

Confesso que tenho medo do dia que o Pepa falar algo assim
para alguma mulher com um namorado mais ciumento. Nesse dia,
sei que vou ter que levar ele para o hospital.

— Você tá com filtro solar no rosto, Pati — Helena diz para mim,
quase com tom de reprovação, me tirando do devaneio com o Pepa
hospitalizado.

— Ah — volto rapidamente a realidade e começo a esfregar meu


rosto, tentando espalhar bem.

— Cristo! — Helena bufa. — Vem aqui.

Ela não pede, ela manda! E é melhor eu obedecer.

Sinto os olhos da Mila em mim e não sei se ela sabe que estamos
fingindo ou não. Mas me sinto desconfortável quando ela sorri com a
cena. Como eu disse, ela é meio bruxa, então nunca se sabe o que
está captando.

Me sento na beirada da cadeira de Helena e ela leva a mão ao


meu rosto. Apesar do óculos de sol que usa, consigo perceber a
expressão séria e concentrada com que espalha o creme. O toque é
pesado, mas a mão é macia e quente. E não consigo pensar em
mais nada. Quer dizer, penso no que Pepa acabou de me falar: que
estou na seca há um tempão!

É verdade que já faz mais de um ano que não saio com ninguém.
Mas estou de boas com isso! De verdade! Também estou de boas
com esse namoro falso, mesmo não tendo nem a mais ínfima
fagulha de romance real na minha vida.

Eu consigo aguentar tranquilamente essa intimidade falsa com


uma mulher bonita, cheirosa, interessante, divertida, inteligente e…

Isso não é bom!


Que inferno, Pedro Paulo! Por que você colocou esse
pensamento na minha mente? Eu estava tão feliz na ignorância!

Olho para ele, como se pudesse ler minha mente e entender a


tempestade que criou no meu cérebro. Ele apenas sorri para mim
com uma sobrancelha levantada que sei que significa um “daora,
feia”.

Talvez seja hoje o dia que eu vá levar Pepa para o hospital!

Helena coloca uma mecha do meu cabelo atrás da orelha antes


de anunciar:

— Pronto.

— Hm, valeu.

Ela não esboça grandes reações, mas acho que posso ter visto
um sorriso amigável em algum lugar. Fico ali, sentada na cadeira
dela, sem saber o que fazer agora. Por sorte, Pepa chama as
crianças para dar as instruções básicas de surf.

Elas ficam uma ao lado da outra, com as pranchas de bodyboard,


e eu e Pepa mostramos os movimentos básicos. Pepa fala um pouco
sobre o surf e mostra como remar e ficar de pé na prancha. Apesar
disso, as crianças sabem que por hoje vão apenas pegar jacaré, até
estarem bem confiantes e seguras com a prancha.

Até Lili está interessada e se empenha para seguir todas as


instruções do Pepa em sua pranchinha em miniatura, uma fofura.

Helena acompanha a aula da cadeira, embaixo do guarda-sol e,


antes de liberarmos as crianças para a água, ela insiste que passem
mais uma camada de filtro solar.

Pepa acompanha os três mais velhos, ensinando-os a remar para


além da rebentação, eu faço o mesmo com a Lili, mas a gente fica na
parte rasa. A Alícia é a coisa mais fofa que já vi e, apesar de ser filha
da Lara, é a cara da Mila, até o cabelo é igual, mas o da Lili é
naturalmente iluminado.

Depois de um tempo, Helena se junta a mim. Acho que por pura


aflição de largar os filhos e os sobrinhos na água.

— Se você quiser ajudar o Pepa, eu fico aqui treinando com a Lili


— ela diz, olhando para a sobrinha que já aprendeu a pegar jacaré.

Helena parece feliz em ajudar, então eu concordo.

Antes de sair ela segura o meu pulso:

— Obrigada. Eu confio mais em você do que no Pepa.

— Como você não confia nada no Pepa, não sei se chega a ser
um elogio, mas obrigada mesmo assim! — brinco, e ela abre um
sorriso.

Ainda é uma surpresa toda vez que ela sorri para algo que eu
falo.

Já que estou livre para ajudar com os maiores, resolvo pegar a


prancha de long e voltar para a água.

— Ju! — grito para ele. — Deixa essa prancha aí com o Pepa e


vem cá.

Subimos os dois na long, ele sentado na ponta e eu deitada


remando para mais fundo.

— Seguinte, quando eu falar, você tenta se levantar, tá bom?

Ele assente com a cabeça, animado.

— Mas só quando eu falar.

— Pode deixar!
— Agora, deita aí!

Ele faz como eu mando e logo vejo uma onda se formando.


Começo a remar e, assim que ela nos atinge, me levanto primeiro,
tentando manter a prancha estável.

— Agora!

Ele faz o movimento certinho como o Pepa ensinou e consegue


se equilibrar com certa facilidade.

— Daora! — grito para ele, que está concentrado demais para


responder qualquer coisa.

Chegamos até a praia sem cair e paramos quase ao lado da


Helena.

Ela estende a mão para ele dar um high five e depois o puxa e dá
um beijo na bochecha. Ao mesmo tempo que é estranho ver a
Helena tão amorosa e casual, é absolutamente natural vê-los nessa
situação.

— Podemos ir de novo? — ele pergunta e concordo.

Como recompensa, recebo mais um sorriso da Helena.

Vou ficar mal-acostumada desse jeito.


9.
Helena

Perto do meio-dia, o mar começa a ficar um pouco mais agitado e


os estômagos também, e decidimos almoçar nesse restaurante em
que estamos mesmo.

Pedimos um peixe grelhado com muita batata frita para as


crianças. Mila e Murilo comem alguma coisa vegana que
honestamente não tenho ideia do que seja, mas até que parece
apetitoso.

Odeio admitir que já estou cansada e desejando a minha


banheira. Mas as crianças não estão com cara de que irão ceder à
minha fadiga e aceitar ir para casa mais cedo. E como sei que é o
último fim de semana quente da temporada, me esforço para que
eles aproveitem bastante.

Depois do almoço, com exceção de Pepa e Murilo, que


aproveitam o mar mais agitado para surfar de verdade, todos se
dedicam a atividades mais leves. Lili e Juju decidem brincar na água,
na parte mais rasa e próximas de nós, e Lucas e Júlio voltam a jogar
frescobol.

— Nem acredito que a Lara finalmente deu uma chance pro boy
— Mila diz, espalhada na cadeira, sob o guarda-sol.

— Nem acredito que ela largou os filhos para fazer isso — rebato.

— Como assim largou? — Pati pergunta, ofendida. — Eu sou


uma monitora credenciada!

— Eu também — Mila diz.

— Você nem se levantou dessa cadeira, Camila! — digo.


— Você acha que é fácil se levantar com essa barriga?

— Imagino que não. — Pati olha com empatia para Mila.

— Só tô falando, a Lara é toda neurótica — explico. — Até pra


deixar os filhos com o Felipe, tem um monte de regras.

— Bom, nesse caso é compreensível — Mila pondera.

— Tem razão. Eu não deixaria os meus filhos com ele também.

— Tão ruim assim? — Pati pergunta.

— O problema é o descaso — Mila explica.

— Sei. Mas é uma coisa boa ela deixar os filhos com a gente, não
é?

— É sim — Mila concorda. — Ela precisa aprender a desapegar


um pouco, mas já tá bem mais de boas.

— Mais ou menos, né? — falo. — Porque ela marcou esse


encontro de dia porque é covarde demais para sair para jantar com o
cara.

Mila concorda com um “é verdade”, depois se vira para mim e


Pati.

— E vocês?

— O que tem a gente? — Pati pergunta e sinto a voz dela tensa.

— Como está o namoro?

— Hm, está ó… ótimo — Pati gagueja.

— Para de atormentar a pobre guria — falo para a minha irmã e


me viro para a Pati. — Ela sabe.

— Sabe? Como?
Escuto Mila soltar uma risada.

— Por que eu conheço a Lena há 31 anos.

Acho que esse foi o jeito mais educado que a Mila encontrou de
falar que sabe que eu jamais namoraria com a Pati.

Mas, sinceramente, até acredito que a Pati seria uma boa


namorada. O problema não é ela, são todas as pessoas.

Eu não namoro. Simples assim.

— Hm, faz sentido.

— Falando nisso, deveríamos fazer um story — digo, lembrando


que o nosso namoro é de interesse público.

Pego meu celular e me junto à Pati para uma selfie.

Vejo pela câmera que ela está um pouco tensa ainda. Ela sempre
fica quando o tema do nosso namoro vem à tona. Creio que não seja
muito fã da vida pública.

— Que isso — Mila diz. — Nem a Elvira iria acreditar que vocês
estão namorando.

— Se ela é mesmo a encarnação da vovó como você diz, não só


não acreditaria, como reprovaria, porque aquela velha era
preconceituosa, meu Deus — comento.

— E é por isso que ela voltou como um gato!

Olho para Pati e vejo ela rindo e sacudindo a cabeça. Pelo menos
as maluquices da minha irmã a ajudaram a relaxar um pouco.

Apesar disso, sei que Mila tem razão — sobre a foto, não sobre a
Elvira ser a nossa avó —, preciso vender essa relação se quiser que
a campanha faça sucesso. Então, me viro e planto um beijo na
bochecha da Pati antes de disparar a câmera.
O rosto dela tem gosto de sal por causa da água, mas a pele é
macia. Confiro a foto na tela do celular e vejo que ela estava
sorrindo, aquele sorriso que me lembra a Miss Honey de Matilda.

Marco ela e coloco um emoji de coração antes de subir.

Aproveito e subo também uma foto que tirei dela saindo do mar
com a prancha sob o braço. Novamente, marco o seu nome de
usuário e, como não tenho tempo para tentar ser original ou criativa,
coloco um emoji de sereia e outro de surfista ao lado do nome.

Pati pega o seu celular e percebo que está um pouco corada.

— Você tá levando essa história a sério mesmo — ela comenta,


vendo os stories.

— Ninguém vai acreditar se eu não me empenhar, você mesma


disse.

— É pra eu repostar?

— Sim.

Enquanto ela está entretida com o próprio celular, escuto um


grito, seguido de choro. Quando vejo que é a Alícia, saio correndo.
Pati vem logo no meu encalço.

A Lara vai arrancar meu couro!

Lili tem os olhos arregalados e algumas lágrimas escorrem deles,


o cabelo é uma confusão e tem tanta areia nela que até parece um
camarãozinho à milanesa com seu maiô laranja. Pelo que parece,
ela levou um caldo e foi arrastada pela rebentação.

— O que eu falei sobre ficar na parte rasa? — digo para Júlia,


que estava com ela.

— Desculpa — ela diz com uma cara culpada.


Trago Júlia para perto de mim para que ela saiba que não estou
zangada. Pati pega Lili no colo e a leva até a cadeira, eu e Juju a
seguimos.

— O que aconteceu, minha linda? — Mila pergunta assim que


nos juntamos a ela.

— A água me empurrou.

Pati pega uma garrafa de água e limpa o rostinho dela que está
cheio de areia.

— Vamos sentar com a tia Pati e tomar uma água de coco — Pati
diz e faz um gesto para o garçom.

Ela se senta e coloca Alícia no seu colo, que ainda parece


sentida, então Pati dá um beijo na bochecha dela e faz algumas
cócegas. Logo Alícia começa a sorrir.

— Ela tá com os joelhos esfolados, a Lara vai me matar —


comento.

— Só tá um pouco avermelhado, logo some.

— Nem doeu! — Lili concorda com Pati enquanto passa as


mãozinhas nos joelhos.

Pati sorri para ela e dá mais um beijo na bochecha redonda da


Alícia. Ela leva mesmo muito jeito com criança.

Júlia está sentada comigo na esteira de praia e também já está


sorrindo de novo.

— Viu? Ela já é uma surfista agora — Pati diz.

— Não, não quero mais ser surfista! Quero jogar tênis que nem a
Juju.
— Mas você já faz balé e natação, não é muita coisa? —
pergunto.

O garçom traz a água de coco e Alicia bebe um gole generoso


antes de responder:

— Não quero mais fazer balé.

— Agora a Lara vai me matar mesmo!

◆◆◆

Depois do almoço, Júlio surfa mais um pouco com a Pati e o


Pepa, e Mila e Murilo ajudam Júlia, Alícia e Lucas a construir um
forte de areia para o castelo.

Ju está completamente apaixonado pelo surf e acho que Pati já


não aguenta mais remar para o fundo, apesar disso, ela volta todas
as vezes que ele pede sem reclamar e sem perder o sorriso.

Perco vários minutos assistindo aos dois e aproveito para fazer


alguns vídeos deles. Mesmo a toda essa distância eu sei que o
sorriso nunca sai do rosto do Ju, e isso me faz sorrir também.

Se não fosse pela alegria estampada nos rostos dos meus filhos,
já teria convencido todos a voltar. Mas tento aproveitar a sombra e
minha água de coco enquanto espero as crianças se cansarem.

Uma das qualidades para ser uma boa empresária é ser


observadora. E, embora minhas irmãs me acusem de não prestar
atenção em nada além de mim, a verdade é que sei tudo que
acontece ao meu redor.

O fato de eu escolher ignorar é outra questão.

Mas, como disse, sou ótima observadora e já faz umas três horas
que sei que tem um carro parado na orla com um homem dentro
olhando na minha direção. A princípio pensei que pudesse ser uma
coincidência ou que estivesse vendo coisas. Mas está quente, o
homem está a metros da praia e o único foco de interesse parece ser
os meus passos. Então, por via das dúvidas, anoto a placa do carro
no meu bloco de notas.

Não vou deixar um stalker estragar o meu dia de folga.

Logo o vento começa a mudar e decidimos ir embora. Mila e


Murilo dizem que vão voltar ao Luneta, mesmo depois de eu convidá-
los para jantar.

Não quero ninguém me acusando de ser antipática.

Já Pati segue até a minha casa para me ajudar com as crianças,


já que Lara me avisou que ainda vai demorar pelo menos mais uma
hora. Eu sei que deveria liberar a Pati e que ela deve ter outras
coisas para fazer, mas ela ofereceu e, sinceramente, não sei se
consigo lidar com os quatro sozinha.

Ela, entretanto, não demonstra estar ansiosa para ir embora e


quando a gente chega na minha casa, ainda tem energia para ir para
piscina com as crianças.

Aproveito que ela está com eles para tomar um banho, porque
eu, por outro lado, me sinto exausta depois desse dia de praia.
Quando volto a área da piscina, o sol já está se pondo e começa a
ficar frio para estar na água. Pati está sentada na borda, passando
as mãos pelos braços e tentando convencer os pestinhas a sair da
água.

Coloco uma toalha sobre os ombros dela, que se assusta um


pouco, mas aceita de bom grado.

— Agora já chega, tá muito frio pra ficar na piscina! — falo sem


dar brecha para contestações. — Todo mundo pro banho.

Ainda bem que tem banheiro para todos eles, porque tá muito frio
para ficarem fora da água esperando e não quero ninguém doente
amanhã. Eles saem correndo para dentro. Alicia e Lucas já estão
acostumados a passarem o dia aqui na piscina e sabem exatamente
para onde devem ir.

— Pati, você pode usar o meu chuveiro, meu quarto é o último do


corredor.

— Ah, não, de boas, eu vou pra casa já.

— Besteira. Você tá aí batendo queixo — digo. — E se você ficar


doente quem vai treinar a Juju pro torneio?

Ela solta uma risada, mas cede por fim. Mostro para ela o
caminho e sigo até o quarto de hóspedes para dar banho na Alícia.

◆◆◆

Quando finalmente me deito na minha cama ao fim do dia, depois


de todos terem ido embora, o cansaço me atinge. Em dias como
esse, sinto até certo alívio de ter conhecido meus filhos com dez
anos já, porque a energia da Alicia e do Lucas é demais para mim.

Aliás, não apenas a energia, mas toda a atenção que uma


criança tão pequena exige. Não podemos virar o rosto que já
acontece alguma coisa. Nunca gostei de crianças justamente por
esse motivo. Se tem duas coisas que não gosto de gastar à toa é
energia e atenção. Mas apesar do cansaço, eu até que me diverti
hoje.

Ainda assim, nada como estar no conforto do meu quarto com um


livro. Estico o braço para pegar Torto Arado, o livro que estou lendo.
Me recosto na cabeceira acolchoada e continuo a leitura.

Não tenho tempo nem de ler uma página inteira antes de ser
interrompida por uma batida na porta.

— Entra!
O rosto do Júlio aparece na fresta. Ele está com uma expressão
meio apreensiva e logo imagino que ele deva ter quebrado alguma
coisa jogando futebol no quarto, coisa que já pedi várias vezes para
ele não fazer.

Ele hesita um pouco a entrar e noto que sua expressão não é de


quando ele faz alguma coisa errada, e sinto a preocupação surgindo.

— O que houve, Ju? — pergunto, abrindo espaço para ele se


sentar na cama comigo.

Ele caminha meio acanhado e se senta ao meu lado.

— Eu queria falar com você…

Começo a me sentir desconfortável e preocupada. Ele olha para


as mãos que estão entrelaçadas uma à outra.

— O que é, meu amor?

— Eu estava pensando… eu não gosto muito de jogar tênis — ele


diz, meio sem jeito.

— Uhum — falo, como um incentivo para ele continuar.

— Se você acha que é importante a gente praticar um esporte, eu


fiquei pensando que eu prefiro surfar.

— Você não quer mais fazer tênis, é isso?

Ele balança a cabeça de forma negativa.

— Por que você não me falou antes, Ju? Vocês não precisam
fazer nada que não tenham vontade.

— Eu achei que você queria que a gente fizesse tênis por causa
da marca…
— A marca não é responsabilidade de vocês, meu amor, vocês
não precisam fazer nada por ela — digo e puxo ele para mais perto
de mim e o abraço pelo ombro.

Ele me encara tentando me estudar e balança a cabeça


mostrando que entendeu.

— E sobre o surf — falo. — Agora a gente vai entrar no inverno,


não vai dar para você fazer aulas. Mas no verão, podemos procurar
uma escola que você goste, pode ser?

Ele sorri e assente com a cabeça.

Trago ele para mais perto e dou um beijo na testa.

— Da próxima vez, não precisa fazer nada forçado para me


agradar, está bem?

— Uhum — ele diz. — A Pati disse que você ia ser de boa.

— A Pati? Ela disse para você falar comigo?

— Mais ou menos — ele explica, se aconchegando mais um


pouco na minha cama. — Quando a gente estava na piscina ela
falou do torneio para a Juju e virou pra mim e disse “cê devia falar
logo pra sua mãe que você não gosta de tênis”, mas eu não tinha
falado nada pra ela, eu juro.

Sinto uma sensação quente no peito com a palavra mãe, mas


tento disfarçar. Não quero que ele se arrependa de ter falado,
mesmo que tecnicamente não tenha sido usado como um vocativo
ainda.

Outro detalhe foi a Pati ter incentivado ele a ser sincero comigo.

— Bom, ela era a sua treinadora, ela devia notar que você não
gostava.
— Teve aquela vez que eu empurrei ela na piscina, acho que ela
sabia que era porque eu não queria treinar.

— Eu sabia que tinha sido você! — digo, já que na época os dois


assumiram a culpa.

Ele ri e encolhe os ombros.

Apesar de ser difícil saber quem eu deveria castigar, acho bonito


o fato de um nunca acusar o outro. Sei que eles passaram por
bastante coisa nos abrigos e sempre sabiam que podiam contar um
com o outro, fico feliz em ver que isso não mudou.

— Quer ver um pouco de TV aqui? — pergunto, entregando o


controle da televisão para ele.

— Sim! — ele diz animado, já se deitando no meu ombro.

Abraço ele e assistimos ao Homem-Aranha no Aranhaverso


completo pela milésima vez antes de ele voltar ao seu quarto.
10.
Pati

— Muito bom, Vini! — incentivo meu aluno, que está jogando


contra mim.

O treino com ele está quase acabando e mal vejo a hora de ir


para casa. Estou morrendo de dor de cabeça e cólica e só quero um
pouco de paz.

Por sorte, às terças-feiras tenho apenas dois treinos à tarde,


então às 18h já estarei em casa. Pretendo pedir um poke e passar a
noite assistindo Outer Banks.

— Isso! — ele comemora ao confirmar o serviço e fechar um


game em cima de mim.

— Mandou bem! — falo, caminhando até a rede para dar um high


five nele. — Na semana que vem tem revanche. Por hoje, já deu
nosso horário.

Assim que nos despedimos, eu caminho até meu carro e Vini até
a lanchonete. Os treinos dele são feitos no Jurerê Club, já que ele
não tem quadra em casa como alguns dos meus alunos.

Pego o meu celular e vejo que tem várias mensagens da Helena.


Quando abro a conversa, dou de cara com mais de vinte fotos;
embaixo a mensagem:

Helena: Essas foram as que eu aprovei. Vamos


usar três a princípio, uma com cada uniforme.
Escolhe as que você mais gostou e me manda. Preciso
enviar para o Flávio amanhã de manhã.
Estou com dor e louca para chegar em casa, então decido olhar
com calma mais tarde, depois que estiver na minha cama.

Como sempre, Guga ignora a minha chegada. Hoje ele está


deitado no chão de taco, aproveitando a última fresta de sol, que já
está se pondo.

Tomo um remédio para dor e vou direto para o chuveiro.

Já estou de pijamas, vagando pelo aplicativo de delivery de


comida quando Helena me liga. Hesito por um segundo, tentando
imaginar se fiz alguma cagada para ela estar me ligando. Como não
consigo pensar em nada, apenas atendo à ligação.

— Oi, Helena, eu ainda não tive tempo de ver as fotos!

— O quê? Ah! As fotos, bom, não tem pressa, depois você olha
— ela diz, um pouco agitada. — Onde você tá agora?

— Hm, em casa.

— Posso passar aí? Preciso falar com você!

A primeira coisa que penso é que ela vai terminar comigo, então
me lembro que não namoramos de verdade.

— Pode… — respondo um pouco hesitante.

— Não posso falar por telefone — ela explica mais ou menos. —


Me manda seu endereço por mensagem.

— Tá.

— Até daqui a pouco. — Ela desliga antes que eu possa


responder.

Reluto para tirar meu pijama confortável e macio, mas coloco um


short de corrida e uma camiseta de malha, prendo meu cabelo e
tento deixar a minha casa em ordem. Por sorte, tudo está mais ou
menos organizado, então, apenas alinho as almofadas no sofá, tiro
os papéis e contas jogadas na mesa de centro e abro mais a cortina
da sala para entrar luz natural.

Helena chega cerca de vinte minutos depois da ligação e quando


abro a porta, me transporto para o primeiro dia do nosso “namoro”,
quando fui a casa dela. Naquele dia eu também estava de short de
corrida e camiseta e ela, absolutamente elegante.

Hoje ela está assim de novo.

Sapato Jimmy Choo — que agora já sei que é o único designer


que ela usa nos pés —, calça social preta, cinto da Chanel, uma
camisa de seda branca que deve ser de alguma grife famosa
também, mas que sou incapaz de identificar e um blazer preto por
cima. Pendurada no antebraço, uma bolsa Prada.

Deus, às vezes eu me esqueço de que ela é tão rica.

A mulher tem cheiro de dinheiro. Chega a ser ridículo pensar que


ela estava vestida assim para trabalhar. E mais ridículo ainda ela
estar vestida assim na minha casa enquanto eu estou com uma
camiseta de malha com quatro capivaras atravessando uma faixa de
pedestre, escrito The Capibeatles.

— Hm, entra — falo, me sentindo meio molambenta de repente.

Fico um pouco apreensiva com ela no meu apartamento, mas


Helena não parece reparar muito. Na verdade, pensando agora, eu
nunca a vi torcendo o nariz ou sendo metida a besta por achar que
algo está abaixo da sua classe social, embora todo mundo acredite
que ela é assim.

Talvez esse seja um desses Efeito Mandela em que todos têm


certeza de que já viram a Helena sendo esnobe, mas na realidade
isso nunca aconteceu.

E na minha área de trabalho, eu estou acostumadíssima com


soberba e gente sendo metida a besta. Tem várias mães de alunos e
às vezes até os próprios alunos que tem o nariz tão empinado que
não sei nem se conseguem me ver. Mas Helena, e todas as
Lancellotti, inclusive a mãe delas que conheci no Luneta há alguns
anos, são muito tranquilas nesse aspecto. Domingo, por exemplo,
almoçamos no restaurante mais birosca da praia e elas não
pareceram se importar.

Acho que o fato de ela não ter nenhum trato social e


simplesmente não saber como falar com as pessoas faz ela passar
por esnobe. Uma pena ela ter essa fama, porque depois que você a
conhece, ela é até divertida.

Helena se senta no sofá e eu me sento em uma cadeira Acapulco


de frente para ela.

— Acho que estou sendo seguida — ela diz, com a testa franzida.
— E talvez você também esteja.

— Oi?

— Desde domingo eu notei um homem me seguindo. Primeiro


estava na praia, então ontem vi ele na frente da Tennis&Co e agora
há pouco vi ele de novo.

— E você acha que é um serial killer, ou coisa assim? —


pergunto meio confusa.

— O quê? Claro que não, Patrícia, que ideia? Acho que é um


detetive!

— Um detetive?

Helena revira os olhos quando percebe que eu não estou


acompanhando.

Me dá um desconto, vai, eu estou com dor e com fome!

— Acho que o Vitor Pfuetzenreiter contratou um detetive — ela


diz pausadamente, como se estivesse desenhando a resposta para
mim.

— Pra quê?

— Ora, pra quê, Pati? Para provar que estamos fingindo!

Ahhh!

Helena balança o pé impaciente.

— Você acha que ele faria isso?

— Claro que faria, aquele lá é mais baixo que político evangélico.

— Tem razão, afinal ele armou aquele vídeo para você… —


comento. — E o que você sugere que a gente faça?

— Nada. Falta só um pouco mais de um mês para o MASP Gala.

Já? Parecia tão longe quando ela falou a primeira vez desse
evento.

Ela continua:

— É só a gente continuar agindo como se namorássemos.

— Tá bem.

— Talvez aparecer um pouco mais. Sair só nós, sem o Ju e a Juju


— ela diz, pensativa.

— Hm, tá — digo. Sinto certa agitação em saber que vamos


passar ainda mais tempo juntas. — E esse Vitor Frankenstein aí,
você acha que ele vai desistir assim fácil?

— Pfuetzenreiter — ela corrige, mas sorri. — Provavelmente,


não.

— Como?
— Fit-zen-rai-ter.

— Diabo de nome de vilão esse.

— Pra você ver que eu tinha motivos para mentir naquele vídeo.

— Eu só não sei por que você tinha que falar meu nome, mas
tudo bem.

— Eu também não sei — ela diz. — Mas se você quer saber, eu


fico feliz de ter dito.

— Fica?

— Pelo menos você é uma pessoa confiável e tem levado isso a


sério. Com esse monte de gente tentando investigar essa história, eu
já poderia ter me ferrado.

— Bom, fico feliz em ajudar!

Ela sorri para mim e depois de alguns segundos diz:

— Você tá com a cara péssima, o que aconteceu?

— Você sempre sabe como me bajular.

— Não, não é isso. Parece cansada, eu quero dizer… ah, você


entendeu!

Solto uma risada. Ela fica fofinha quando tenta se justificar.

— Eu entendi — falo. — Nada demais, TPM só, estava em uma


missão de me enterrar debaixo das cobertas com uma cumbuca de
poke antes de você ligar.

A campainha da minha casa toca.

— É o seu poke? — Helena pergunta.

— Não! Não fiz o pedido ainda.


Nos entreolhamos desconfiadas.

— Você acha que é o detetive stalker? — pergunto.

Mais uma vez a campainha toca.

— Filha? — a voz da minha mãe ecoa na sala.

Puta merda!

Enterro a minha cara nas mãos.

Eu amo minha mãe, mas ela nunca aceitou meu namoro com a
Fernanda, e se tem um encontro que adoraria evitar é o dela com a
Helena.

— É a sua mãe? — Helena pergunta e vejo seus olhos


arregalados.

Respiro fundo.

— Acho que você vai conhecer a sua sogra, amorzinho!

Helena morde o lábio inferior e solta uma risada ansiosa.

Que Deus nos ajude.

— Pati? — minha mãe grita mais uma vez do outro lado da porta.

— Já vai! — grito de volta.

Ela nem entrou ainda, e já sei que ela não está de bom humor.

Me viro para Helena e lanço um olhar que acho que ela entende
que é um “boa sorte”.

Caminho até a porta.

— Oi, mãe. O que você tá fazendo aqui?


— Que isso, guria, isso é jeito de receber a sua mãe?

— Hm, desculpa. É só que eu não estava esperando.

— Eu fui na Sueli, aí aproveitei para visitar a minha filha.

Embora meus pais morem no continente, a Sueli é a cabeleireira


da minha mãe há anos. O salão dela fica aqui na ilha, na verdade,
fica a poucas quadras do meu apartamento. Infelizmente.

— Hm, entra — digo, meio hesitante.

Meu apartamento tem uma espécie de hall de entrada, que é


apenas um pequeno corredor até a sala. Coisa de layout antigo, que
na prática não serve para nada, é apenas uma espaço morto da
casa. Mas isso impede minha mãe de ver a Helena, então, quando
abro caminho e ela vai a passos largos até a sala, tenho que correr
atrás dela.

— Mãe, hm, a Helena está aqui — falo, tarde demais.

Eu daria qualquer coisa para ver a cara da minha mãe agora.


Mas ela está de costas pra mim. Helena está de pé, com o melhor
sorriso polido, mas ao mesmo tempo levemente desafiador e minha
mãe está paralisada na frente dela.

— Prazer… — Helena começa.

— Susana — acrescento.

Será que é estranho minha “namorada” não saber o nome da


minha mãe?

— Prazer, Susana — Helena estende a mão para ela.

Fico me perguntando se Helena não estivesse tão empenhada


em convencer as pessoas de que a nossa relação é real, se ela seria
assim atenciosa com a minha mãe. Afinal, quando nós nos
conhecemos, ela me deixou no vácuo. Se bem que era outra
situação.

Caminho rapidamente para o lado de Helena e vejo minha mãe


encarando minha pseudo-namorada de cima a baixo.

Minha mãe não adora o fato de eu ser lésbica.

Para ser honesta, ela não gosta nem um pouco. Detestava a


Fernanda, minha ex, e vivia falando que ela não tinha futuro, que era
imprudente e que agia como uma adolescente etc. Mas a verdade é
que ela só odiava que a Fernanda era uma mulher.

Me pergunto que defeitos ela vai tentar achar na Helena, porque,


sejamos honestas, a mulher é praticamente perfeita!

— Prazer — ela responde, contrariada. — Helena, não é?

Helena assente com a cabeça e afirma:

— Helena Lancellotti.

Tudo que eu queria era um poke, um cobertor e uma série. Como


que isso se transformou nesse chá de climão?

— Eu não sabia que você estaria aqui — minha mãe diz, se


sentando no sofá.

Helena se senta na outra cadeira Acapulco de frente para ela e


eu não tenho escolha senão me sentar também.

— E eu não sabia que você viria.

— Eu não avisei a Pati.

— Por isso, então — Helena diz casualmente.

— Vocês querem alguma coisa? Um café? Uma água?


— Não quero nada, obrigada, meu bem — Helena responde no
tom mais suave que já a ouvi usar e sinto uma sensação engraçada
no estômago.

— Eu quero uma água — minha mãe fala, olhos vidrados na


Helena.

Ela não está de bom humor mesmo!

— Eu vou buscar — respondo, me levantando.

Não sei se deveria deixar as duas sozinhas na sala, mas preciso


respirar fundo e me acalmar. Não lembro a última vez que vi a minha
mãe com a cara tão amarrada, mas possivelmente foi quando saí do
armário.

— E como tá a Sueli? — pergunto assim que volto da cozinha,


tentando puxar qualquer assunto que seja.

— Trocou de marido de novo.

— De novo? Já é o quinto ou sexto, não?

— Sétimo, eu acho.

— Pai amado!

Assim que me sento, Helena encontra a minha mão e entrelaça


nossos dedos. Não sei se é porque ela nota que eu estou nervosa ou
apenas para provar para minha mãe que estamos mesmo juntas,
mas fico agradecida mesmo assim.

— E você, Helena? — minha mãe pergunta, olhos fixos nas


nossas mãos. — Já foi casada?

— Não, não — Helena responde com um sorriso educado. —


Mas gosto de pensar que se me casar, vou acertar de primeira. Não
pretendo ter mais de um casamento.
Não faço nem ideia se ela está sendo sincera ou não, mas não
vejo a Helena se casando. Na verdade, não consigo imaginar ela
com ninguém. Muito menos com um homem.

— Por isso que está demorando tanto?

— MÃE!

— O quê? — minha mãe indaga como se tivesse sido a pergunta


mais inocente do mundo. Então se vira para Helena. — Você já tem
mais de trinta, não tem?

— Trinta e dois — Helena responde tranquilamente.

— Então, já não é mais tão nova.

— Bom, quem sabe eu não me case em breve!

QUÊ?

Para que falar isso?

Ela sabe que vamos terminar em um mês e eu vou ter que ficar
aguentando as indiretas da minha mãe.

Quer dizer, ela não sabe dessa parte, porque nunca contei como
era minha mãe. Mas ainda assim, porra, Helena!

Minha mãe se engasga com a água.

— A Pati ainda é muito nova para casar! — ela diz apressada.

— Ela tem vinte e seis.

— Então!

— Não estou entendendo. Se eu sou muito velha e ela muito


nova, qual a idade ideal?
Quase consigo ver o cérebro da minha mãe entrando em colapso.
Eu acharia engraçado se não estivesse tão nervosa e ela tão irritada.

Helena parece ser a única pessoa calma nessa sala. Ela e Guga,
que não se mexeu um milímetro desde a hora que cheguei.

— Mas nós não vamos nos casar — falo de uma vez, tentando
cortar essa conversa. — Não agora pelo menos. Nós acabamos de
nos conhecer. Quer dizer, nos conhecemos há quase dois anos, mas
acabamos de começar a namorar.

Helena usa o polegar para acariciar minha mão.

— Eu só estava brincando — Helena diz. — É muito cedo para


esse tipo de conversa.

— Até porque isso não deve durar muito — minha mãe alfineta.

— Por que você acha isso? — Helena pergunta, ainda


acariciando minha mão.

— Porque a Pati vive mudando de ideia.

— O que a senhora quer dizer com isso? — pergunto.

— Ora, você tá sempre pulando de galho em galho. Uma hora


quer ser surfista, outra quer ser tenista, depois professora. Com esse
namoro aí é a mesma coisa. É só mais um deslumbre.

Sinto o sangue subindo pelo meu pescoço.

Não sei por que achei que ela pudesse ser civilizada na frente da
Helena. Acho que porque esqueci de como ela realmente tratava a
Fernanda.

E quanto ao tênis e ao surf, ela sabe muito bem que não foi assim
que aconteceu. Ou talvez não saiba mesmo, já que nunca presta
atenção nas coisas que eu conto a não ser que seja do seu
interesse.
— Eu não sei se a senhora conhece bem a sua filha — Helena
diz em um tom grave, mas calmo. — A Pati é uma excelente
treinadora e tenho certeza de que tem um futuro promissor.

— É claro que eu conheço bem a minha filha, eu não conheci ela


ontem.

Não sei se ela se refere a nós duas nos conhecermos há pouco


tempo ou está falando sobre o Ju e a Juju. De qualquer forma, sinto
meu maxilar se contraindo. Mas antes que eu possa falar qualquer
coisa, Helena continua:

— E quanto a nossa relação — ela diz no mesmo tom grave e


calmo —, vai durar o tempo que nós duas quisermos que dure, mas,
por ora, estamos muito felizes juntas goste você ou não. Talvez em
vez de torcer contra, você pudesse ficar feliz pela Pati.

Agora ela acertou a ferida. Minha mãe sempre enche a boca para
falar que só quer ver os filhos felizes, mas sempre critica tudo que eu
ou o meu irmão fazemos.

— Vou ficar feliz quando minha filha tomar rumo na vida.

— Se por tomar rumo você quer dizer “arrumar um homem”, a


senhora provavelmente vai cansar de esperar — respondo, sentindo
a raiva surgir.

Fazia anos que minha mãe não era assim direta.

Na minha adolescência brigávamos constantemente e, como


disse, ela não tratava minha ex-namorada com muito carinho, mas
fazia anos que ela estava “acostumada” com a minha sexualidade.
Mas pelo jeito foi ingenuidade minha em achar que isso significava
que ela havia aceitado.

— Vocês duas são tão bonitas — ela diz, como se fosse um


argumento.

— Mãe, por favor — falo, sentindo meus olhos ardendo.


Minha mãe escolheu um péssimo dia para querer abrir a porteira
da homofobia!

— É verdade! Vocês duas poderiam arrumar um homem bonito e


ter um relacionamento normal. Todas as mulheres lá no salão
falaram a mesma coisa e eu não soube o que responder.

— Porque essa Sueli, com o seu sétimo marido, deve ter uma
moral imensa para julgar as relações alheias — Helena responde.

— Não é essa a questão — minha mãe diz com certa


impaciência. — Eu só quero que a minha filha tenha uma vida feliz.

— Não, você só não quer ser alvo de fofoca no salão — Helena


responde de novo.

— Não entendo por que vocês tinham que tornar isso público!
Porque não podiam ser mais discretas.

— Não tornamos público de propósito — digo.

— Espera, espera — Helena diz, soltando a mão da minha e


colocando na frente do meu peito, como que me impedindo de
continuar. — Você não tem que se justificar, Pati! Não importa se
nossa relação é pública ou privada, você não tem que se esconder
para agradar os outros. — Ela se vira para minha mãe. — E daí que
é pública? Se você não quer ter que falar sobre a sua filha, é só não
sair de casa.

— Vê se você me respeita, guria.

— Ué, não é isso que você tá sugerindo para ela? Viver a vida
escondida dos outros? Se você acha um bom conselho para dar para
a sua filha, deve ser bom para você seguir também.

— E você não fala nada, Patrícia?

— O que você quer que eu fale, mãe? ‘Me desculpa por ser
assim’?
— Já vi que é inútil tentar falar com vocês! A sua vó tem razão,
disse que essa mulher que fez sua cabeça pra querer ficar famosa.

— A Helena não fez a minha cabeça pra nada! — respondo. — E


eu tô cansada de vocês acharem que a minha vida tem que ser do
jeito que vocês querem!

Minha mãe apenas me encara por um tempo e não faço nem


ideia do que está se passando na cabeça dela.

Sinto minhas mãos tremendo de raiva.

— É melhor a senhora ir, mãe!

— É melhor mesmo — ela responde áspera, já se levantando.

A acompanho até a porta e ela sai sem nem ao menos se


despedir. Assim que fecho a porta, sinto as lágrimas brotando e por
mais que tente segurar, não consigo evitar que elas surjam.

Caminho até o sofá em que ela estava minutos antes, me sento e


enterro meu rosto nas mãos.

Logo sinto Helena se sentar ao meu lado, uma de suas mãos


acaricia minhas costas. Guga parece sentir o clima e também se
junta a mim no sofá, se deitando ao meu lado com o dorso
encostado na minha coxa.

Quando o Guga e a Helena Lancellotti têm que te consolar, é


porque a coisa não foi boa mesmo.

— Desculpa — Helena diz.

— A culpa não é sua.

— De certa forma é — ela argumenta. — Fui eu que coloquei


você nessa.
— A culpa não é sua da minha mãe ser assim! A minha família
toda na verdade — digo, enxugando as lágrimas que escorrem e
olhando para ela.

Ela não diz nada, mas sei que tem um “sinto muito” na maneira
como ela me olha.

— Obrigada por me defender — falo depois de um tempo.

Ela dá de ombros, sua mão ainda acaricia minhas costas.

— Não ia deixar ninguém ofender a minha namorada — ela diz


com certo humor.

— Cristo, ela vai ficar insuportável quando a gente terminar. Vai


passar meses jogando na minha cara que sabia que não ia durar.

Pela primeira vez, tenho a impressão de ver remorso na


expressão da Helena. Me sinto mal, porque não era minha intenção
fazê-la se sentir culpada.

— Até lá a gente pensa em um bom motivo pra você terminar


comigo.

— Eu terminar com você? — pergunto, com um sorriso curioso.


— Eu achei que “ninguém fosse acreditar” se eu terminasse com
você.

Ela sorri também.

— Bom, pra sua mãe a gente pode falar que foi você que
terminou comigo.

— Obrigada.

— Eu só não quero ser corna!

Solto uma risada. Como se alguém fosse ter coragem de trair


Helena!?
— A gente pode terminar porque descobrimos que o amor não
era suficiente para superar nosso abismo social! — digo com certa
teatralidade.

— Ai que dramático!

— Eu acho romântico!

— É claro que acha — ela diz, com um sorriso. — Você ainda


quer aquele poke?

— Ah! Bem lembrado, tô morrendo de fome — falo, secando o


resto do meu rosto que ainda está um pouco molhado de lágrimas
embora elas já tenham parado de escorrer.

— Você quer que eu fique com você mais um pouco?

— Hm, não, não, já é quase sete horas, o Ju e a Juju devem


estar te esperando — falo, olhando o horário no meu celular.

— Eles estão com a Elisa — Helena diz.

— Mesmo assim, a Elisa também deve estar querendo ir embora,


e eles gostam de jantar com você!

Apesar de estar insistindo para ela ir, sinto borboletas no


estômago por ela oferecer ficar.

— Tem certeza?

— Tenho! Vou pedir meu poke e me enfiar embaixo das cobertas!

— Tá bem, então, qualquer coisa, você me avisa.

— Pode deixar.

Levo ela até a porta, fico mais uma vez sem saber como me
despedir. Mas meu pensamento é interrompido quando ela se
aproxima e me puxa para um abraço.
Sinto meu rosto afundando no pescoço dela. Helena tem o
abraço forte e apertado, como eu esperava que fosse. Consigo sentir
mais uma vez o cheiro do seu perfume, dessa vez identifico algo de
amadeirado no cheiro. É bom.

Eu poderia ficar horas aqui, mas ela logo se separa de mim e me


diz mais uma vez que se precisar, é só chamá-la. E dentro de
segundos, estou sozinha em casa, como eu tanto queria quando
cheguei do trabalho. Mas agora me sinto um pouco mais solitária que
antes.

◆◆◆

Às 20h30, finalmente estou na minha cama, assistindo a Outer


Banks e comendo meu poke de salmão.

Enquanto, na TV, os Pogues se metem em mais uma confusão


que seria facilmente evitada se eles pensassem por um segundo
antes de tomar uma atitude, na minha casa, escuto a campainha
tocar mais uma vez nesta noite.

Mas que diabos?

O meu prédio não tem interfone nem portaria, o que significa que
qualquer um pode subir para os apartamentos. Já aconteceu umas
duas vezes de baterem na minha porta por engano e imagino que
deva ser o caso agora.

Me levanto mesmo assim e abro a porta.

— Delivery — o homem do outro lado fala, esticando uma sacola


de papel pardo.

— Hm, eu não pedi nada, moço. Deve ser pra outro apartamento.

— Você é a Pati?

— Sou.
— Do 202? — ele pergunta, olhando para o número na porta.

— Sim.

— Então é pra você!

Ele me entrega o pacote, sem muita paciência, e sai. Acho que


não faz parte do trabalho dele tentar solucionar mistérios de pedidos
não realizados pelo destinatário.

Fecho a porta e levo o pacote para a cozinha. A embalagem é de


uma confeitaria famosa aqui do centro e, assim que abro, encontro
uma fatia de torta de chocolate e nozes, acompanhada de um bilhete
impresso.

“Porque você está de TPM e teve uma noite agitada. H”

A Helena me mandou isso?!

Eu sei que por debaixo das reclamações e impaciência, tem uma


pessoa generosa e que se importa até demais com as pessoas
próximas a ela. Mas eu nunca visualizei a Helena como uma pessoa
gentil!

Não estou acostumada com essa versão dela e não sei nem o
que pensar, mas, sinceramente, é mais fácil ignorar o meu crush por
ela quando ela está me xingando e não me mimando.

Sem conseguir impedir o sorriso que se forma, pego um garfo de


sobremesa e levo a torta para o quarto.

Tiro uma foto da torta com a TV ao fundo e mando para a Helena.


Embaixo escrevo apenas um “obrigada” seguido de um emoji de
coração.

Aproveito que já estou com a conversa aberta e começo a olhar


as fotos que ela me mandou mais cedo. Bento é muito bom mesmo,
porque as fotos ficaram ótimas.
Dou uma garfada na torta e minha nossa senhora! É aveludada e
úmida e derrete na boca. O chocolate amargo equilibra com a base
da torta que é bem doce e as nozes dão um crocante delicioso. Já
sinto meu humor melhorando. Acho que estava precisando de açúcar
mesmo.

Continuo olhando as fotos, as primeiras que vejo são as que


fizemos como oponentes.

Favorito uma que estamos de costas uma para a outra, Helena


está com um olhar sexy vitorioso, mas até que eu também estou
bem.

Salvo apenas umas duas fotos dessas, porque sei que tanto
Bento, quanto Flávio e Helena querem as que estamos parecendo
mais um casal. Dessa forma, avanço rapidamente para frente para
ver as tais fotos.

Paro em uma das que Helena está me segurando pelo, hm...


bumbum. Sinto minhas bochechas esquentarem ao me lembrar da
sessão e dela me segurando tão perto.

Dou mais uma garfada na minha torta.

Perco alguns minutos encarando a imagem… talvez mais que


“alguns”! Tenho que admitir que Helena é uma ótima atriz e modelo,
porque não tenho dúvidas de que qualquer um que ver essa foto vai
pensar que estamos mesmo apaixonadas.

Fico hipnotizada com o jeito com que ela me olha na imagem e,


por um segundo apenas, me permito pensar em como seria estar
realmente namorando com a Helena. Receber esse olhar de
verdade, sentir seu toque, o seu beijo…

Meu devaneio é interrompido por uma mensagem.

Helena: Espero que você goste de chocolate

Pati: E tem quem não goste?


Helena: Nunca se sabe

Em seguida manda mais uma.

Helena: tá se sentindo melhor?

Pati: Tô sim, obrigada. E a torta está uma


delícia

Envio e dou mais uma garfada.

Pati: Tava olhando as fotos que vc mandou

Helena: Já escolheu alguma?

Pati: Separei algumas aqui, calma aí

Envio para ela as fotos que gostei, incluindo a que passei mais
tempo do que deveria olhando.

Helena: Foram as que eu mais gostei também

Pati: Vc é uma ótima atriz. Achei vc bem


convincente nas fotos

Helena: Eu tenho muitos talentos

Pati: Não me diga?

Helena não usa emojis — a não ser o de aplauso quando mando


algo da Júlia ou do Júlio jogando tênis; ou revirando os olhos vez ou
outra para algo que digo — também não usa nenhum tipo de risada.
Mas gosto de pensar que a essa altura eu já conheço ela bem o
suficiente para saber que ela está com aquele sorriso ligeiramente
prepotente que faz o canto da boca se curvar.

Helena: O que você acha de sairmos quinta só eu


e você? Eu deixo os gêmeos com a Lara
Eu sei que falamos mais cedo em sair só nós duas e sei que é só
para enganar o tal detetive e o Vitor sei-lá-o-quê, ainda assim parece
que um tornado passa pelo meu estômago.

Pati: Pode ser

Isso é tudo que eu consigo elaborar.

Helena: Te pego às 20h

Pati: Combinado

Eu acho que vou vomitar de ansiedade.

Helena: Boa noite

Em seguida, manda um emoji de beijo.

Um emoji!

De beijo!

Pati: Boa noite!


11.
Helena

A semana é agitada e mal tenho tempo de pensar no detetive,


porém, imagino que ele continue me observando e tentando colher
provas.

Mas confio na Pati e sei que ela não contou nada para ninguém.
Até porque, depois daquele escândalo de terça-feira, a primeira
pessoa para quem ela diria que é tudo uma farsa seria a sua mãe.
Mas Pati manteve a história mesmo custando uma briga com a
família e eu sou muito grata por isso.

Sei que não pensei no lado dela nem por um segundo quando a
arrastei para essa confusão e, mesmo assim, ela aceitou me ajudar.
Tenho que compensá-la de alguma forma, embora ainda não saiba
como. Mas talvez um bom começo seja me esforçando para tratá-la
melhor.

É quinta-feira à tarde e estou na sala da Lara no Grupo


Lancellotti, resolvendo algumas questões jurídicas. Ela está no sofá,
sua habitual xícara de chá sobre a mesa de centro, enquanto eu
estou sentada numa das cadeiras em frente à mesa dela.

— Você busca o Ju e a Juju ou quer que eu deixe eles na sua


casa? — pergunto.

Eles vão dormir na casa dela hoje para eu e a Pati sairmos.

— Eu busco quando for pegar o Lucas no Judô.

— Beleza.

— Você tá levando isso a sério mesmo, hein!


— É claro que estou!

Lara apenas me encara por algum tempo, mas ignoro o olhar


julgador dela.

— E o Lucas e a Lili deram muito trabalho domingo? — ela


pergunta depois de alguns minutos de silêncio e nós duas entretidas
com papéis.

— Nenhum — respondo. — Eles gostaram?

— Não falam de outra coisa a semana toda. Minha filha tá


completamente apaixonada pela sua namorada.

Compreensível.

A Pati tem mesmo muito jeito com criança, e sei que a Alícia se
divertiu bastante brincando com ela na água.

— Desconfio que seja recíproco — digo, ainda tentando prestar


atenção no documento que estou lendo.

— Já estou prevendo vários corações partidos quando esse


namoro acabar — ela alfineta.

Rolo os olhos.

Às vezes Lara se parece demais com a nossa mãe. E não no


bom sentido!

— Não é como se a Pati fosse se mudar para o Alasca, ela vai


continuar treinando a Juju e convivendo com a família.

— Por falar nisso, vocês que incentivaram a Lili a fazer tênis?

— Não! A ideia partiu dela.

— Ah, então você tá sabendo?


— Ela falou qualquer coisa na praia sobre querer jogar também,
eu até falei que ela já fazia coisas demais.

— Tem certeza? — Lara estreita os olhos. — Porque ela adorava


o balé e agora ela não para de dizer que balé é chato e que tênis é
legal.

— E por que você acha que ela não poderia perceber uma coisa
tão óbvia sozinha?

Lara solta um suspiro contrariado e volta para o documento na


sua mão.

Somos interrompidas pelo telefone da sala tocando.

— Atende pra mim? — ela me pede já que estou mais próxima.

— Helena — falo ao atender. — Manda subir — Desligo o


telefone. — O Vicente tá subindo.

— Quê?! Por que você deixou? Eu preciso retocar a maquiagem!


— ela diz, largando os documentos como se estivessem pegando
fogo.

— Deixa de frescura, guria — falo, séria. — Senta nesse sofá e


finge que não tá nem aí.

Apesar de me olhar feio, ela faz o que eu mando.

Depois de uma breve batida na porta, Vicente entra pedindo


desculpas pela interrupção. Ele é todo polido e engomadinho, bem o
tipo da Lara.

Não vou negar que ele ficou bonito, quando era criança era
magricela e meio desengonçado, mas Lara já tinha um crush nele
naquela época. Hoje em dia ele é alto, tem ombros largos e me
lembra muito o Christopher Reeve como Clark Kent, só que com o
cabelo um pouco mais claro. Mas apesar de bonito, é meio nerd
demais para o meu gosto.
Ele cumprimenta nós duas com um educado beijo no rosto. Um
pouco mais demorado na Lara.

— Nós tivemos um contratempo com a liberação de um lote no


porto — ele diz. — É coisa rápida, mas preciso de uma posição de
vocês para podermos ir em frente.

— Tudo bem, Vicente — falo, já me levantando. — Vou deixar


isso com a Lara porque estou atrasada pra uma reunião na
Tennis&Co.

Me despeço dos dois e lanço uma piscada para a minha irmã.

Eu não menti para eles, tenho mesmo que voar para Tennis&Co
para acertar os últimos detalhes da nova campanha com o pessoal
do marketing, já que vamos lançar sábado e estampar os painéis de
publicidade do Aberto Floripinha.

Aliás, eu daria qualquer coisa para ver a cara do Vitor quando ele
chegar no complexo e se deparar comigo e minha namorada como
as modelos da campanha.

◆◆◆

— Qual dos dois? — pergunto, segurando dois vestidos, um preto


mais justo e um branco de linho.

— Os dois são bonitos — Júlio diz. — E os outros cinco que você


mostrou também eram.

— Eu gosto desse. — Júlia aponta para o pretinho básico da


Gucci.

Os dois estão deitados na minha cama enquanto tento decidir o


vestido que devo usar no encontro de hoje à noite. Combinei de
buscar a Pati em pouco mais de uma hora, mas ainda não sei o que
vestir.
Dado que não tenho muito tempo, decido confiar no gosto da
minha filha.

—Vou com esse então!

— Finalmente — Júlio diz.

— Aonde vocês vão? — Juju me pergunta.

— Vou levar a Pati em um restaurante à beira mar em Santo


Antônio de Lisboa — explico, separando o vestido que vou usar.

— Que romântico! — Juju fala com uma expressão sonhadora.

— Ué, por quê? — Júlio pergunta.

— Porque é de frente pro mar!

— Se for assim, então o almoço de domingo foi romântico.

— Você não entende nada!

— E você entende?

— Entendo mais do que você!

— Não comecem vocês dois — falo, rindo deles.

— Mas por que é romântico? — Júlio insiste.

— O que faz ser romântico é a companhia, não o lugar — explico.


— Mas uma vista bonita sempre ajuda.

— Ahh!

Meu celular vibra em cima de uma poltrona no quarto.

— A tia Lara tá chegando — informo, depois de ver a mensagem.


— Está tudo pronto? Material de amanhã?
— Uhum!

Os dois balançam a cabeça afirmativamente e correm para seus


quartos para pegarem as mochilas e a malinha com as roupas. Eles
estudam no mesmo colégio que Alícia e Lucas, então Lara que os
deixará lá amanhã.

Dou graças a Deus por Lara estar com pressa e não querer
entrar, sei que se tivesse tempo iria me atormentar com perguntas
sobre esse encontro.

Assim que meus filhos saem, tenho que correr para ficar pronta a
tempo. Ainda tenho que me vestir, me maquiar e chegar ao centro,
tudo isso em menos de uma hora.

◆◆◆

Por sorte não tem trânsito e em quinze minutos chego à rua da


Pati. Assim que estaciono, envio uma mensagem avisando que
cheguei.

Enquanto espero, tento descobrir se o tal detetive está me


seguindo ou observando o apartamento dela. Eu não sei ao certo
como isso funciona. Ele trabalha 24 horas por dia? Ele tem folga?
Ele me segue o tempo todo, ou apenas algumas horas por dia? Será
que tem mais de um e eles revezam?

Não faço nem ideia, mas é melhor não dar mole.

Quando eu olho de volta para a entrada do prédio da Pati, levo


um segundo para reconhecê-la.

Uau!

Ela está com um vestido verde estonado de alça, desses soltos e


longos, mas que o decote termina abaixo da linha do busto e,
caramba, ela deveria usar coisas assim mais vezes, porque ela tem
ombros e o colo muito bonitos. É a primeira vez que a vejo mais
arrumada e, embora o estilo surfista-barra-esportista combine muito
bem com ela, hoje ela está realmente linda.

— Nossa, como você tá gata — Pati diz, assim que entra no


carro.

O tom é despretensioso, do tipo que diria para uma amiga


próxima, ainda assim sinto minhas bochechas esquentando.

Que isso, agora? E eu lá sou uma adolescente para corar com


um elogio?!

— Você também está linda — digo.

— Tô? — ela pergunta com aquele sorriso meio miss Honey, que,
nesse vestido, a faz parecer mais uma das fadas de Sonho de uma
Noite de Verão, para ser sincera.

Também reparo pela primeira vez nas tatuagens. Eu já tinha visto,


é claro, mas nunca prestei muita atenção. Não são muitas e, no
momento, consigo ver apenas uma ondinha estilizada no pulso e
uma concha sobre o cotovelo esquerdo, mas eu sei que tem outras
porque lembro de ter visto na praia.

— Como se você não soubesse que é linda — respondo, dando


partida no carro.

Essa conversa está me deixando um pouco desconfortável.

— Não da sua boca.

— Bom, agora sabe.

— Obrigada — ela responde com um quê de prepotência, mas


abre um sorriso satisfeito em seguida.

No som do carro deixei tocando uma playlist de verão, porque


imagino que seja o tipo de música que ela goste.
Não sei por que estou preocupada com o que ela gosta de ouvir,
se esse encontro é apenas um ato de precaução.

Acho que essa história de detetive entrou demais na minha


cabeça!

Como sempre, tudo culpa do Vitor Pfuetzenreiter.

Logo começa Good Vibrations dos Beach Boys, e ela cantarola


junto com eles. É engraçado ver a Pati cantando essa música,
porque imagino que a musa que inspirou a canção seja uma mulher
muito parecida com ela. A letra parece se encaixar perfeitamente.

O trajeto até o restaurante é curto e deixo que a Pati domine a


conversa me contando sobre os treinos extras dela com a Juju nessa
semana. Tenho vontade de perguntar sobre a sua mãe, mas não
faço, porque não quero aborrecê-la. A verdade é que me sinto
culpada com essa situação e não queria que ela tivesse brigado com
a mãe por minha causa.

Quando a gente chega a Santo Antônio, já está anoitecendo, mas


ainda dá para ver os contornos dos barcos de pesca ancorados na
baía. O céu está em tons de púrpura e laranja e reflete como um
espelho no mar que mais parece uma lagoa de tão calmo.

Essa é uma das vilas mais antigas da ilha e isso fica evidente
para qualquer um que chegue aqui e se depare com as casinhas
centenárias, as ruas de pedra e essa aura meio parada no tempo.

— Eu adoro esse lugar! — Pati diz, parando ao meu lado, para


apreciar a vista assim que a gente desce do carro.

— Tem um certo charme mesmo.

Reservei uma mesa na parte externa do restaurante, que fica


numa espécie de deque sobre a encosta. O lugar não é exatamente
elegante, mas tem uma das melhores vistas da cidade e a comida é
excelente.
Pedimos um Pinot Grigio italiano e o peixe que é a especialidade
da casa. Espero que seja bom.

— Então é aqui que você traz os seus dates? — Pati me pergunta


com um sorriso travesso.

Demoro um pouco para compreender a pergunta.

Eu nem lembro quando foi a última vez que saí com alguém. Faz
tempo. Bastante.

E na maioria das vezes que saí, nunca foi algo com essa
conotação romântica. Sempre preferi ir a um bar, algo mais casual,
nunca vi sentido em jantar com uma pessoa com a qual eu não tinha
intenção nenhuma de aprofundar laços.

Não entendo essa pressão para que uma mulher adulta namore,
noive e se case. Por quê?

Para mim o único motivo válido para uma mulher estar em um


relacionamento é porque ela quer! E eu nunca quis.

Ainda assim, ouvi muitas e muitas vezes que deveria ao menos


tentar. Ora, se eu quisesse tentar, teria tentado.

— Eu não tenho “dates” — respondo, simplesmente.

Pati eleva as sobrancelhas, mas tem um sorriso um pouco irônico


o qual disfarça tomando um gole do vinho.

— Bom, para ser justa — ela diz —, esse é o meu primeiro


encontro também!

— Aqui?

— Não… quer dizer, sim. Mas digo, na vida. Nunca saí para
jantar para conhecer alguém. Conheci minha ex e as outras meninas
que fiquei na praia, bares, baladas… e nunca fui a um encontro
romântico assim, mesmo quando começamos a nos conhecer, íamos
para a praia, bar, essas coisas. Primeiro encontro com jantar
romântico parece meio coisa de filme.

— Lamento te informar, mas, teoricamente, isso não é um


primeiro encontro, a gente já namora há mais de um mês.

— Verdade, eu já tinha esquecido. Esse também não é um


encontro real, então acho que vou continuar sem essa experiência —
ela diz e solta uma risada.

— É, não é real — digo, me sentindo ligeiramente estranha. —


Mas supondo que fosse... sobre o que a gente deveria conversar?

Ela franze o nariz de leve, formando algumas marcas de


expressão.

— Sobre as coisas que gostamos, eu acho.

— Tipo, filmes e músicas?

— Também. Mas eu já sei que tipo de música você gosta — ela


diz. — Qualquer coisa da década de 90 para baixo.

— Qualquer coisa também não!

— Você entendeu.

— E como você sabe? — pergunto.

Pati eleva os ombros e brinca com suas pulseiras. Ela tem várias
no pulso, a maioria são fitinhas coloridas.

— No seu carro só toca clássicos das décadas de 70 e 80, e lá no


Luneta você torceu o nariz para todas as músicas mais atuais no dia
do luau.

— Bem observado — digo e tomo um gole do vinho. Apoio a taça


de volta à mesa e respiro um pouco mais fundo antes de continuar:
— Meu pai ensinou eu e as minhas irmãs a tocar piano, flauta e
violão. A Mila e a Lara nunca deram muita bola, mas eu e a Luísa
vivíamos com ele no estúdio que tinha lá em casa. Mesmo ela sendo
criança e eu adolescente, eu não ligava, gostava de estar lá. Ele
tinha um gosto bem específico pra música e acho que escuto as
mesmas coisas que ele escutava… Na verdade, eu nunca tinha me
dado conta disso — digo, deixando minha memória voltar para
àqueles dias. — Mas você errou, eu escuto música contemporânea
também, é só que, não sei, os clássicos me trazem…

— Conforto — ela completa quando percebe que não estou


encontrando a palavra.

— Isso.

— Ele morreu há muito tempo?

— Doze anos.

— Sinto muito — ela diz com sinceridade. — Sabe, eu sempre


imaginei seu pai parecido com o Chiquinho porque sei que eles eram
bem amigos, um estilo meio Bear Grylls assim — ela solta uma
risada. — Totalmente o oposto de você!

— Ele era mesmo, na verdade, eu sempre fui bem mais parecida


com a minha mãe — explico. — Quem gostava dessas aventuras no
meio do mato eram a Mila e a Luísa, eu e ele só compartilhávamos a
música mesmo.

— Faz sentido o seu apego pelas músicas que ele gostava — ela
diz com um sorriso, que, sem perceber, retribuo.

Eu não costumo falar dos meus pais, muito menos da morte


deles, mas até que essa conversa me trouxe boas lembranças.
Ainda assim, prefiro mudar de assunto.

— E que tipo de filme eu gosto? — pergunto.

Ela estreita os olhos me estudando.


— Você tem total cara de que gosta dos clássicos românticos,
mas não admite, tipo Gigi, Casablanca, A Princesa e o Plebeu, essas
coisas.

— Não gosto de Casablanca — respondo, tomando um gole de


vinho.

— Ah há! — exclama. — Porque eles terminam separados!

— Vou te falar que é a primeira vez na minha vida inteira que


alguém tenta insinuar que eu sou romântica!

— Sempre tem uma primeira vez — ela diz. — Mas eu acertei?

— Mais ou menos — respondo. — Pra ser sincera, eu não assisto


mais a tantos filmes hoje em dia, mas, sim, eu gosto de alguns
clássicos como Crepúsculo dos Deuses e Bonequinha de Luxo,
embora esse eu prefira o livro… ah, eu gosto dos filmes da Bette
Davis.

— Agora que você falou, isso faz total sentido!

— Por quê?

— Ué, a Bette Davis não é aquela de A Malvada?

— Você tá insinuando que eu sou malvada?

— Não! Não é isso… bom, um pouco! — Pati ri. — Mas eu quis


dizer que você tem uma presença marcante, assim como ela, e gosta
de impor essa presença. Mas você é muito mais bonita.

— Vou considerar isso um elogio — falo, sem saber ao certo o


que ela quis dizer.

— É um elogio! Igual naquela música da Kim Carnes — ela diz,


no mesmo tom entusiasmado que usava no Luneta. — Agora é a sua
vez. Que tipo de música e filme eu gosto?
Ela tem uma expressão travessa, como se tivesse certeza de que
vou errar. Penso por um segundo antes de responder.

— Quanto a música, acho que tudo com essa vibe surf music,
reggae, folk ou música acústica... sei lá.

— Parcialmente certa.

— Não vai me dizer que você é fã de heavy metal?

— Não, não... — ela responde com um sorriso. — Na real, eu sou


bem eclética pra música, escuto de tudo, de bossa nova à k-pop,
mas prefiro mesmo um reggaezinho. Só que diferente de você, eu
não tive a sorte de ouvir música boa em casa com os meus pais, e
só comecei a formar meu gosto musical mais tarde, tipo, final da
adolescência.

— A parte do k-pop me pegou desprevenida, não vou negar. Mas


é engraçado, eu imaginava a sua família como aquela família de urso
da história do mingau, sabe? Todos iguais: o papai surfista, a mamãe
surfista e a filhinha surfista.

— Não, meu pai não tem nada de surfista! Nem a minha mãe.

— Eu notei. Inclusive, eu imaginava ela completamente diferente.


Na verdade eu imaginava ela igual a você só que mais velha.

Pati solta uma risada nervosa.

— A gente não é muito próxima uma da outra, não. Na verdade,


eu sempre me senti meio distante da minha família, mesmo vendo
eles quase todos os fins de semana. No geral, eu sei que eles não
gostam muito das minhas escolhas e queriam que eu tivesse
estudado direito ou coisa assim e, embora eles não sejam de jogar
na minha cara, com exceção daquele surto que você viu no outro dia,
eu sei que eles esperavam outras coisas de mim.

— Eu poderia jurar que você era uma pessoa super família e


apegada aos pais.
— Bem que eu queria — ela diz, brincando mais uma vez com as
pulseiras.

— E quando você começou a surfar? — pergunto, achando por


bem mudar de assunto.

— Eu tinha uns dezesseis anos, eu estava ficando com uma


menina que era surfista, comecei a surfar com ela e nunca mais
parei.

— E vocês ainda são amigas?

— A gente era sim, mas ela morreu uns anos atrás surfando.

— Surfando? A sua namorada morreu surfando e você quer que


os meus filhos aprendam a surfar???

— Ela morreu surfando a Pipeline, Helena, não as ondinhas da


Praia do Forte. Se acalma.

— Eu preferia não saber dessa história.

Ela coloca a mão sobre a minha na mesa.

— Vai por mim, se o Ju quiser aprender, ele vai atrás assim que
tiver uma oportunidade, mas quanto mais cedo ele aprender e mais
segurança tiver, melhor. Quando eu aprendi, ninguém me ensinou os
procedimentos de segurança, só me levaram pra água e eu tive que
me virar. Tomei uma cacetada de caldo por bobeira e por não saber
nada direito.

Olho para a mão dela sobre a minha, ela acaricia o meu dorso
com o polegar.

— Não sei por que ele não poderia querer virar mestre de xadrez,
em vez de surfista! — resmungo. — Mas acho que você tem razão,
se é para aprender, melhor aprender direito e em segurança.
— Com certeza — ela diz de forma encorajadora, depois de
alguns segundos ela continua: — Tá, e os meus filmes?

Levo um segundo para lembrar do que estávamos falando, mas


logo me ponho a analisar.

— Animações da Disney? — chuto.

— Por que você acha isso?

— Sei lá, você tem a mesma personalidade das princesas deles.

Dessa vez ela solta uma gargalhada com vontade.

— Tenho, é?

— Tem! Se você me falar que passarinhos azuis confeccionaram


esse vestido e te vestiram enquanto você cantava sobre a vida e as
flores serem lindas, eu acredito.

— Por que todas as suas concepções sobre mim têm a ver com
personagens animados?

Dou de ombros.

— Você passa essa energia de personagem animado, eu acho.

Novamente ela solta uma risada, enquanto me olha meio


incrédula.

— Mas lamento te decepcionar, eu não gosto de filmes de


princesa.

— Tudo bem! Eu também nunca gostei — afirmo e estreito os


olhos antes de arriscar mais um palpite. — Mas aposto que você
gosta de Lilo & Stitch.

— Ahh, mas esse é daora!


— Então acertei quando disse animações.

— Animação. Singular.

— Pra mim dá no mesmo.

— Deus, como você é competitiva!

— Foi você que começou com isso.

— Hm, tem razão — ela responde, contrariada.

— E você tem cara também de que gosta de filmes tipo


Caçadores de Emoção.

— Ah, adoro esse! Qualquer filme com surfista ou aventura. Mas


o meu preferido era A Onda dos Sonhos… e antes que você diga
qualquer coisa, eu sei que é ruim, tipo, muito ruim, mas eu adorava
por ser sobre uma mulher surfista no Hawaii.

Solto uma risada porque me lembro de ter visto esse com a Mila
e ter achado muito ruim.

— Eu entendo — digo, tomando mais um gole do vinho. — É


meio que a sua cara mesmo. Até que você também não é tão
imprevisível!

— Bom, eu nunca achei que eu fosse.

— Mas ainda assim, eu admito que tinha uma visão distorcida de


você.

— Como assim?

— Tinha a impressão de que você fosse sonsa e sem graça, além


disso achava que por não ter um pulso firme com as crianças elas
iriam fazer o que bem entendessem. Mas você é divertida e
inteligente. E as crianças te respeitam mesmo sem você precisar
gritar com elas.
— Hm, obrigada?

Vejo ela ficar sem graça e tomar um gole de vinho para disfarçar.

O garçom nos interrompe trazendo o nosso prato.

Bacalhau com batatas souté e legumes. O cheiro das azeitonas


pretas com a cebola no azeite virgem preenchem minhas narinas e
sinto meu estômago respondendo ao estímulo.

Provamos o prato em silêncio, ou quase silêncio, já que nós duas


soltamos alguns gemidos de satisfação ao experimentar o peixe.

A carne está perfeitamente cozida com as lascas se soltando com


facilidade e a batata souté absorve o azeite aromatizado, fazendo de
cada garfada uma explosão de sabores e texturas.

— Você chegou a participar de algum torneio de tênis como


jogadora? — pergunto depois de alguns minutos apenas apreciando
a comida.

— Participei de alguns. Mas o problema de começar tarde num


esporte como o tênis é que é muito difícil recuperar o tempo perdido.
Eu comecei com dezoito.

— Então você chegou a pensar em jogar profissionalmente?

— Pensar, eu pensei. Eu era boa. Mas não era brilhante. Era


apenas boa e disciplinada. Essa é meio que a história da minha vida
— ela diz, soltando uma risada meio frustrada —, ser boa em várias
coisas, mas não ser excelente em nenhuma.

— Você é uma excelente treinadora.

Ela não responde, apenas me encara, curiosa, então eu continuo:

— Como eu disse, você tem o respeito dos meus filhos sem


precisar gritar. E tudo que você fala para a Juju é lei. E eu sei que ela
é boa e tem muito talento natural, mas o tanto que ela evoluiu nesses
meses é graças a você!
12.
Pati

Não sei ao certo como lidar com essa versão gentil da Helena,
mas sinto um quentinho no coração com o elogio.

Eu adoro treinar tênis, tanto quanto gostava de jogar, mas é difícil


medir os resultados. Quando o aluno vai bem, sinto que é mérito
dele, quando vai mal, demérito meu. E não porque eu não acredito
em mim, ou estou me autossabotando, é só que é um sentimento
normal de quem ensina, eu acho. Mas é muito bom ser reconhecida
por outra pessoa, principalmente pela Helena, que sei que não é de
querer agradar ninguém, então, esse é mesmo um elogio sincero.

— Obrigada — digo, simplesmente.

Ela retribui meu sorriso e volta sua atenção para o prato.

Está sendo uma noite surpreendentemente agradável e a Helena,


uma companhia melhor ainda. Tento aproveitar o momento e não
pensar demais na situação estranha ou no nosso “término” que se
aproxima muito mais rápido do que eu imaginei a princípio.

Depois do jantar, pedimos um crème brûlée de sobremesa e logo


após, Helena me convida para dar uma volta.

A noite está fresca e sinto uma brisa fria no meu rosto. Apesar de
o céu estar bem estrelado, não vejo a lua e me lembro que estamos
na lua nova.

Caminhamos pela ruela estreita, espremida entre as coloridas


casinhas açorianas e a praia. Quando me dou conta, Helena pega a
minha mão e entrelaça nossos dedos.
Me pergunto se ela viu o tal detetive mais uma vez, mas acho
melhor não verbalizar a dúvida, nunca se sabe se eles não estão nos
gravando com um microfone ultrassônico de longo alcance.

O quê? Eu nunca fui seguida por um detetive antes!

Eu não sei como funciona!

No meio do percurso, encontramos uma senhorinha vendendo


artesanato na calçada e decido parar e comprar uma pulseira.

— Essa aqui é quanto? — pergunto, segurando um modelo


fininho e bem delicado, com algumas bolinhas pequenas douradas e
um búzio natural no centro.

— É quinze, quirida, mas se levares treish faço por trinta — ela


diz com o sotaque bem manezinho.

— Eu já tenho muitas dessas, vou levar só uma mesmo.

— Pode ser três, eu fico com as outras duas — Helena diz se


antecipando e entregando o dinheiro para a mulher. — Meus filhos
adoram essas coisas, as deles podem ser essas mais coloridas —
Ela aponta para as duas que quer.

— Deus te abençoe, minha quirida — a senhora diz.

Helena lança um sorriso educado para ela, então se vira para


mim:

— A sua é presente.

Antes de continuar, ela prende a pulseira no meu pulso direito,


junto com outras no mesmo estilo que já estavam ali. Não sei se
Helena precisa de óculos ou o que, mas tenho a impressão de que
ela está bem mais perto de mim do que seria necessário para
amarrar uma pulseirinha. De novo, sinto o cheiro do perfume dela
inundando meus sentidos.
— Você quer caminhar na areia? — ela pergunta, assim que
chegamos ao fim da via gastronômica.

— Claro.

Tiramos nossos sapatos para sentir a areia fria e úmida da noite


sob nossos pés.

Sem nenhum tipo de aviso, ela pega mais uma vez a minha mão
livre e entrelaça nossos dedos.

Caminhamos pela rebentação, sentindo a água nos nossos pés.


A água está em uma temperatura agradável, mais quente que a
areia.

— A Juju é igualzinha — Helena diz indicando minhas pulseiras e


colares —, adora acessórios!

— Nós duas temos bom gosto.

— Questionável — ela responde. — Mas vocês tem bastante


coisa em comum mesmo, tipo, o bom humor inexplicável pela
manhã.

— Como você sabe que eu tenho bom humor de manhã?

— A gente trabalhou um mês inteiro no Luneta, Pati. E você já


começava mais alegre que um Teletubbie. Era muito difícil de
processar tanto bom humor de uma vez.

— De novo com as comparações com personagens animados.

— Teletubbies não eram animados, eram pessoas fantasiadas.

— Ah, me desculpa! Não sabia que você era fã do programa.

— Você se esquece de que eu tenho três irmãs mais novas.

— Você cuidava delas?


— Às vezes — ela diz. — Nós tínhamos uma babá para os dias
que meu pai estava no Luneta e minha mãe no Grupo Lancellotti, o
que eram quase todos os dias. Mas a Luísa odiava a velha, aí eu e a
Lara acabávamos passando mais tempo com ela.

— Tadinha da babá.

— Era uma velha odiosa mesmo — ela diz ácida. — Não deixava
a gente fazer nada, nem comer direito, eu tinha que pegar bolacha
escondida na despensa. A Lara chamava ela de Miss Trunchbull.

Solto uma risada com a ideia de uma babá tentando impedir a


Helena de fazer qualquer coisa.

— E quantos anos vocês tinham nessa época?

— Eu tinha uns doze e a Luísa de dois pra três. A Lara uns oito
eu acho.

— E a Mila?

— A Mila tinha uns dez ou onze. Mas ela gostava da velha! E


insistia que o que faltava para aquela mulher dos diabos era amor —
Helena responde com um vinco na testa, como se ainda estivesse
zangada. Não consigo evitar uma risada. — Ela era uma puxa-saco,
isso sim.

— Vai ver que ela tinha razão.

— Acho que você também seria uma puxa-saco.

— Eu não gosto de conflitos — digo, dando de ombros.

— Eu já notei.

Como a praia aqui é pequena e tem a faixa de areia estreita,


subimos mais uma vez para a vila e atravessamos a Praça Roldão
em direção ao carro dela. Instintivamente me percebo desacelerando
o passo.
Essa é uma praça bem antiga e tudo que sei sobre ela é que é
uma homenagem à visita de Dom Pedro II, assim como a rua ao lado
dela, que foi a primeira rua calçada do estado.

Os turistas passeiam em meio aos nativos. Não é exatamente


calmo, mas ainda assim tá longe da agitação de outras praias daqui.

— Quanto tempo faz que você terminou com a acrobata? —


Helena me pergunta, de repente.

— Ela não era acrobata — corrijo. — Ela me trocou por uma


acrobata! Se bem que a essa altura, ela já deve estar fazendo
apresentações com o circo também.

— Bom, então há quanto tempo a guria que te trocou por uma


acrobata terminou com você?

— Pouco mais de dois anos.

— E não namorou mais ninguém depois dela?

— Eu saí com algumas gurias, mas namorar não.

— Por quê? Você ainda gosta dela ou o quê?

Meu Deus, parece que baixou o espírito do Júlio nessa mulher.

É uma pergunta atrás da outra.

— Não, não. Eu gostava bastante dela e foi um choque na época,


mas já superei. Isso é página virada.

— Você me parece do tipo que gosta de estar namorando — ela


diz.

— Por que você acha isso, Freud?

Ela dá de ombros.
— Não sei, é só uma impressão. Parece que gosta de manter as
pessoas por perto — ela diz. — Por que outro motivo você seria
amiga do Pepa até hoje?

Solto uma gargalhada com o comentário. O Pepa é muito mal


compreendido, tadinho, mas é uma boa pessoa e um dos meus
melhores amigos.

— Você tá me chamando de carentona?

— É você que tá dizendo.

— Mas você tem razão — digo. — Eu gosto mesmo de estar


namorando, apesar de só ter tido um namoro mais longo.

— E por que isso?

— Por que o quê?

— Por que teve só essa namorada?

— Porque ao contrário do que você insinuou — digo com falso


tom de crítica. — Eu não sou carentona, e pra dar um passo desses
com uma pessoa você tem que estar apaixonada.

— Entendo. Então você só se apaixonou uma vez?

— Hm… não sei. Quanta pergunta, mulher!

Helena apenas dá de ombros.

De repente, sinto a mão dela soltando a minha e me puxando


pela cintura.

— Não olha — ela sussurra no meu ouvido e sinto meu corpo


todo arrepiar —, mas o cara que estava me seguindo essa semana
está ali no outro lado da praça.
Tenho que usar todo o meu autocontrole para não olhar na
direção que ela disse. Quando finalmente chegamos ao carro, ela
caminha comigo até a porta do passageiro.

Antes que eu consiga puxar a maçaneta, a mão de Helena, que


ainda está na minha cintura, me puxa e ela me beija.

Na boca!!!

É um beijo rápido, mas consigo sentir a maciez dos seus lábios e


mais uma vez o aroma floral do seu perfume, e meu coração começa
a martelar no peito.

Antes mesmo que eu tenha tempo de ter alguma reação, ela se


afasta como se nada fosse e abre a porta para eu entrar.

Levo mais tempo do que seria adequado para voltar a funcionar e


entrar no carro.
13.
Helena

Sábado de manhã, todos acordamos cedo na minha casa. É o


primeiro dia do Aberto Floripinha e temos que sair cedo para chegar
ao Costão do Santinho, local onde acontecerá o torneio e que fica no
extremo norte.

Eu estou animada para mostrar mais essa parte da ilha para as


crianças. Eles passaram a vida toda morando em Palhoça e não
conhecem quase nada de Florianópolis, e cada novo lugar que
conhecemos juntos, é como se eu também estivesse vendo pela
primeira vez.

Essa é uma das coisas que mais gosto sobre morar aqui, sempre
tem um novo lugar para conhecer. A ilha é cheia de pontos
escondidos a serem descobertos e meus filhos sempre fazem essas
descobertas serem ainda melhores.

Quando chegamos ao complexo, me deparo comigo mesma e


minha namorada em um painel de cinco metros.

Porque o Flávio achou que seria uma boa ideia colocar


justamente a foto que estou segurando a guria pelo traseiro para
estampar o painel em uma competição infantil é que eu não sei.

Mas apesar da posição, não tem nada de vulgar na imagem, na


verdade está bastante elegante e, nessa foto em específico, minha
mão está mais no quadril dela do que na bunda.

Na foto, o olhar da Pati está nos meus lábios e minha mente me


leva mais uma vez para o nosso encontro de quinta-feira.

Tive a impressão de que o beijo — se é que dá para chamar de


beijo, estava mais para um selinho — deixou ela tensa. A volta para
a casa dela foi bem mais silenciosa do que o resto da noite e na hora
de subir para o seu apartamento, ela ficou toda estranha sem saber
o que fazer.

Talvez devesse ter falado com ela sobre a possibilidade de


precisar nos beijarmos em público antes de beijá-la. Mas que culpa
tenho eu se colocaram esse aspirante a Benoit Blanc para me
seguir?

— Uau! Vocês estão tão lindas! — Júlia diz, me tirando do meu


devaneio.

— Vocês vão ficar famosas? — Júlio pergunta.

— Elas já são famosas! — Júlia responde.

— Nós não somos famosas — explico. — Só um pouco


conhecidas.

— Qual a diferença? — Júlio pergunta.

— Você tá me vendo distribuindo autógrafos?

— Não!

— Então! Todo mundo conhece gente famosa — concluo, com


um sorriso. — Vamos entrar? A Pati já deve estar por aí.

◆◆◆

Júlia já está aquecendo com a Pati na quadra 11–12, quando me


sento ao lado do Júlio na arquibancada para assistir a primeira
partida do dia. Como a Tennis&Co é uma das patrocinadoras do
evento, tinha algumas pessoas com quem eu precisava conversar.

Assim que me vê na arquibancada, minha filha abana para mim


com um sorriso largo. Ela está linda no uniforme branco com
detalhes verde limão que escolheu especialmente para o torneio.
Sinto um misto de orgulho e alegria em ver como ela está feliz em
estar na quadra.

Pati também me vê e apenas me cumprimenta assentindo com a


cabeça, de maneira acanhada.

Por que eu tinha que beijar ela?

A gente estava tão bem. Era quase como se fossemos amigas.

Que besteira, nós éramos amigas!

Quer dizer… ainda somos!

Eu acho.

Volto a observar a Juju e tento não pensar demais no meu


namoro falso. Ela não para de sorrir nem por um segundo.

Júlia se apaixonou pelo tênis à primeira vista. Assim que pôs os


olhos na quadra de saibro do condomínio, ela já me pediu pra jogar.
E nós jogamos. Ela foi pegando tudo de primeira como se fosse a
coisa mais natural. Por isso, logo matriculei os dois na escola de
tênis, e desde então não paro de me surpreender com a evolução do
seu jogo. Ela joga há apenas sete meses e já é melhor do que eu.

— Ela não parece nervosa — comento com o Ju.

— A tia Pati disse pra ela que o segredo é fingir que é só um


treino, por isso.

Sempre fico impressionada como, apesar da Pati ser feita de gato


e sapato por esses dois, ainda assim tudo que ela fala é lei para
eles. Se Pati falar que a Júlia tem que treinar vendada, ela mesma
amarra uma venda sobre seus olhos, sem nem questionar.

— A outra jogadora é bem maior que a Juju — digo com certa


apreensão ao notar a oponente dela se aquecendo no outro lado da
quadra. Comparada a ela, a Júlia não passa de um gravetinho.
— Ela já tem doze! Mas a tia Pati disse que a Juju joga melhor,
então a gente não precisa se preocupar.

Apesar do tamanho da quadra ter passado para o oficial agora


que a Júlia está no juvenil, o formato da competição e da pontuação
das partidas ainda são diferentes para as crianças da idade dela,
para que as partidas sejam mais curtas. Então os jogos têm apenas
três sets de quatro games.

Quando a partida começa, tento torcer de forma moderada, não


quero ser uma dessas mães que envergonham os filhos na
arquibancada, muito menos agir como certos pais que colocam uma
pressão exagerada nos filhos, como se a vida deles dependesse da
vitória. Quero apenas que Júlia se divirta e sinta que deu o seu
melhor.

O primeiro set é bem equilibrado, mas Juju consegue fechar. Ela


perde o segundo por pura ansiedade e agora a decisão fica para o
terceiro.

A adversária começa forte, marcando dois pontos seguidos. O


game está 30 a 0, mesmo com Júlia no saque. Eu e Júlio
incentivamos da arquibancada e vejo Pati falar alguma coisa ao lado
da quadra, mas não consigo entender. Juju assente.

Ela muda o saque e tenta imprimir mais velocidade no jogo. Dá


certo. 30 a 15. Ela consegue mais um bom saque e dificulta a
devolução da oponente que devolve uma bola fácil e permite que
Juju arremate o ponto com um voleio. Trinta iguais.

Pati grita mais alguma coisa para ela, em seguida Júlia mais uma
vez vai para o saque, mandando a bola na diagonal no limite da
linha, a adversária não consegue chegar a tempo e Juju marca um
ace. 30 a 40.

— Isso! — Júlio grita e se vira para mim para comemorar.

— Vai, Juju! — grito para ela, e acho que ela escuta, porque abre
um sorriso em meio a expressão séria de concentração.
O ponto seguinte é um rali. Júlia quer fechar logo o game e a
adversária quer impedir a todo custo. Eu e Júlio estamos assistindo
de pé, tamanho nosso nervosismo.

Juju é ágil e recupera diversas bolas. Ela está no canto esquerdo


e a adversária consegue uma diagonal, colocando a bola no
contrapé da Júlia, que corre e consegue recuperar mais uma, tirando
a força da bola e jogando quase rente a rede da adversária, que não
consegue salvar.

— MEU DEUS! — Júlio grita! — VOCÊ VIU ISSO!?

— Essa é minha filha!!! — falo, abraçando o Júlio.

Não sei se é coisa de mãe, mas essa menina tem muito talento!

Com essa jogada, Júlia conquista a torcida e fecha o set em


poucos minutos.

◆◆◆

Depois de assistir os outros jogos da chave da Júlia, saio com os


gêmeos para almoçar em um dos restaurantes do resort onde está
acontecendo o torneio. A Pati está em quadra com outro aluno e só
vai conseguir almoçar mais tarde.

Me sinto um pouquinho culpada por estar aliviada, mas o


sentimento de culpa dura pouco tempo, porque assim que entramos
no restaurante, o que sinto é irritação ao dar de cara com o Vitor
Pfuetzenreiter em pele, osso e botox.

O Michelangelo dos penteados que cuida do topete dele resolveu


ser criativo hoje e, em vez de penteado para o lado como sempre, o
seu topete está completamente para cima.

Se Vitor não fosse tão velho, estaria parecendo o Johnny Bravo.

— Vitor! — exclamo, apesar da repulsa e vontade de virar a cara.


— Bom dia, Helena.

— Eu ainda não tive a oportunidade de te agradecer — comento.


—, desde que você me tirou do armário, nossas vendas não param
de crescer.

Ele me fuzila com o olhar e depois de uns três segundos de


silêncio, escolhe ignorar meu comentário.

— Então esses são os famosos gêmeos?

— Não sei se famosos, mas são Júlio e Júlia, meus filhos. —


Coloco uma mão sobre o ombro de cada um de forma protetora.

Não confio nesse homem.

— Só falta a namorada pra família ficar completa — ele diz com


certa ironia.

— Na verdade, não falta, ela tá com um dos alunos dela na


quadra 15–16. Mas você já deve saber disso — falo em tom de
constatação.

— Eu não dou tanta importância pra sua vida como você acha,
Helena.

— Engraçado, não é o que parece. Principalmente nos últimos


dias.

— Não sei do que você está falando, querida.

— Não mesmo? Estranho — falo com sarcasmo. — Pensei ter


sentido o cheiro desagradável do seu laquê me perseguindo nos
últimos dias.

— Você se acha muito inteligente com os seus comentariozinhos


ácidos.
— Bom, se você quiser, eu posso ser bem direta: se aquele
brutamontes continuar me seguindo, você vai ter que se entender
com a justiça — ameaço. Ousaria dizer que vi sua expressão o trair,
embora seja difícil ver qualquer movimento facial com tanta plástica e
botox. — O quê? Você achou mesmo que eu não iria perceber
aquele troglodita no meu pé? Tenha dó, Vitor!

Ele esboça um sorrisinho cínico antes de responder:

— Eu conheço um psiquiatra excelente que trata de casos graves


de paranoia, se quiser eu te passo o contato.

— Talvez você devesse arrumar o contato de um advogado em


vez disso… ou de um cabeleireiro! — digo, franzindo o nariz ao
reparar mais um pouco no topete dele. — E quanto à minha
namorada, que eu sei que você está louco para conhecer, estará
comigo no MASP Gala mês que vem, tenho certeza de que ela vai
adorar te conhecer.

Apesar de ser um evento que não tem nada a ver com esporte,
sei que Vitor estará lá, porque esteve nos outros anos em que fui.
Além de celebridades, o evento sempre reúne empresários de vários
segmentos e todos vão pelo mesmo motivo: fazer contato e
aparecer.

E talvez apoiar a arte.

É por isso, inclusive, que vou levar a Pati. Sei que terá vários
fotógrafos e colunistas e será a oportunidade perfeita para divulgar
massivamente nosso namoro. Depois, se terminarmos, não terá
tanta repercussão assim, e o posicionamento já vai ter sido feito.

— Será recíproco — ele diz no mesmo tom cínico que diz


qualquer coisa.

Francamente, não sei como ele se aguenta 24h por dia.

— Bom, nós precisamos almoçar — falo, dando um tapinha de


leve nos ombros dos meus filhos, para sairmos daqui logo. — Passar
bem, querido.
14.
Júlia

Eu nunca tinha visto um velho com a cara tão dura antes.

Quer dizer, eu não meti a mão pra saber, né? Mas dava pra ver
que era dura. Parece até que ele encheu as bochechas com aquele
negócio de encher balão que a tia Lara tem. A tia Helena disse que é
uma coisa boa as pessoas serem diferentes umas das outras e que
elas são bonitas de formas diferentes, mas eu não achei ele bonito
de forma nenhuma.

A tia Helena não gosta dele e se ela não gosta eu também não
gosto. Também não gosto do jeito que ele olha pra mim e o pro Ju.
Nem do jeito que ele olha pra ela.

No almoço eu como macarrão, bife, salada e tomo dois sucos de


laranja porque a tia Pati disse que eu preciso de energia pro jogo da
tarde.

— Quem é aquele homem? — o Ju pergunta pra tia Helena.

— É o dono da VP Sports.

— Ahhh! E por que ele é deformado?

A tia Helena solta uma risada com a pergunta do Ju.

— Porque ele quis mudar o rosto dele pra ficar assim.

— Por quê? — o Ju pergunta.

A tia Helena levanta os ombros.

— Para parecer mais jovem, eu suponho.


— Então ele deve ter uns duzentos anos se assim ele parece
mais jovem!

Ela ri mais uma vez.

Eu acho que a tia Helena é a mulher mais bonita que eu já vi e


quando sorri fica mais bonita ainda. O Ju também acha.

E acho que a tia Pati também acha, porque ela sempre fica
olhando pra tia Helena quando ela vê os meus treinos, e esquece de
me mandar fazer as coisas.

— Sabe que eu não sei quantos anos ele tem — a tia Helena fala,
limpando a ponta do nariz do Ju com um guardanapo.

Ele sempre se suja comendo pudim, não sei como ele faz, mas
sempre tem pudim no rosto.

— Ele parece ter uns cem — o Ju comenta.

— Deve ser quase isso — ela fala. — Juju, você não quer mesmo
sobremesa, meu amor?

— Não, brigada! A tia Pati disse que atleta tem que cuidar com o
que come.

— Mas você ainda é uma criança e pode comer se tiver vontade.

— Eu sei — eu falo. — Mas eu não quero hoje.

— Tá bem — ela responde, passando a mão no meu braço.

— Eu preciso ir no banheiro — falo.

— Também pudera, depois desses dois baldes de suco que você


tomou — a tia Helena fala. — O banheiro fica ali.

Ela aponta para uma porta no outro lado do restaurante.


Que lugar grande esse.

Eu caminho até o banheiro, mas vejo o velho da cara dura


falando com um moço. Acho que ele não me vê por que tá de lado
pra mim.

— Eu sei que elas estão fingindo — ele fala.

— Quem? — o moço pergunta.

— A Helena Lancellotti e aquela loirinha — ele responde.

Ele tá falando da tia Helena?

— E por que ela faria isso?

— Para vender a linha PRIDE! — ele diz meio brabo. — Tenho


certeza de que elas não estão namorando. A Helena deve tá
pagando essa menina.

Minha bexiga tá muito cheia e preciso correr pro banheiro, mas


fico pensando no que ele falou.

Será que a tia Helena e a tia Pati não tão namorando?

Eu achava que elas estavam apaixonadas!

Eu tenho que contar pro Ju.

Quando eu volto pra mesa, a tia Helena tá tomando um café,


como ela sempre faz.

Olho pro Ju tentando explicar que tenho que falar uma coisa pra
ele. Acho que ele entende. Ele sempre entende.

— A gente pode brincar ali no parquinho enquanto você toma o


café? — pergunto pra tia Helena.
A gente não gosta muito de deixar ela sozinha no almoço, mas é
uma emergência.

— Pode, claro — ela fala.

A gente sai correndo até o parque na frente do restaurante.

— O que aconteceu? — Ju pergunta.

— Vem comigo — falo, subindo no trepa-trepa.

Ele me segue. Quando a gente chega no topo, eu me sento na


penúltima barra e apoio o braço na última, Ju faz o mesmo.

— Eu ouvi o velho com a cara dura falando da tia Helena e da tia


Pati — digo.

— E o que ele falou?

— Que elas não tão namorando e que tão fingindo pra... essa
parte eu não entendi. Mas ele acha que elas tão fingindo.

Ele faz uma careta. A mesma que faz quando tem que ler os
números romanos na aula da professora Sônia.

— E o que você acha, Juju?

— Eu não sei.

— Eu nunca tinha visto elas juntas até aquele dia que elas
contaram pra gente — ele diz.

— A gente pode investigar — falo.

— Como?

— Não sei, a gente pode perguntar alguma coisa que elas deviam
saber se estão namorando e comparar.
— A gente pode perguntar quando elas começaram a namorar e
como foi.

— Você pergunta pra tia Helena e eu pra tia Pati — digo,


animada. — Hoje à noite a gente compara.

— Fechô! — ele diz. — Você acha que aquele velho deformado


quer prejudicar elas?

— Não sei, mas acho que ele não gosta da mam... tia Helena.

— Vamos? — a tia Helena chama a gente da parte de fora do


parque. Eu sei que ela não gosta de pisar na areia de salto. — Daqui
a pouco é o seu jogo, Juju.

— Já vamos — respondo para ela e depois falo pro Ju: —


Pergunta pra ela durante o jogo.

— E você pergunta no aquecimento — ele responde.

A gente faz o nosso aperto de mão secreto.

◆◆◆

Eu já tô no vestiário com a tia Pati e ela tá me falando sobre a


menina que vai jogar comigo.

— Ela é canhota e tem dificuldade com as diagonais de direita.

— Tá.

— E acho que ela é um pouco lenta, mas não desiste de


nenhuma bola, então quanto mais você conseguir deslocar ela, mais
fácil pra fechar.

— Tá.
— É isso, você é melhor que ela, é só ficar concentrada e não ter
pressa de fechar os pontos.

— Tá!

Ela levanta a mão para eu bater e depois dá um beijo na minha


testa. Ela sempre faz isso.

— Tia Pati…?

— Hm?

— Posso perguntar uma coisa?

— Claro, manda!

— Quando você e a tia Helena começaram a namorar?

— Ah, hm, a gente... ahem, a gente começou a conversar pelo


whats, e, hm, um dia ela me convidou para tomar um café e foi
assim.

— E aonde vocês foram?

— Ah, fomos no... num café no centro, não lembro o nome!

— Você não lembra o nome do café que saiu a primeira vez com
a sua namorada?

— Não, por quê?

Levanto meus ombros, fingindo não saber.

— É estranho, eu lembro de onde ela levou eu e o Ju a primeira


vez pra comer.

— Isso porque vocês voltam lá toda semana!

— Porque é um lugar importante! — falo.


— É, tem razão — ela diz, tomando água do squeeze azul-piscina
dela.

— Você ama ela?

A tia Pati se engasga com a água e cospe metade fora. Ainda


bem que foi pro outro lado. Não quero ficar babada.

— Ainda, hm, é muito cedo pra essas coisas, Juju!

— A tia Mila disse que com ela e o tio Murilo foi amor à primeira
vista.

— Bom, eu conheci a mãe de vocês quase expulsando o Ju do


Luneta...

— Hm, é verdade — digo. — Eu tinha esquecido disso.

— Porque você tá tão perguntadeira hoje? Parece até o Ju!

Levanto os ombros de novo.

— Curiosidade.

— Uhum — ela diz, se levantando e esticando a mão para mim.


— Vamos? Você tem que se aquecer ainda.

— Vamos!
15.
Júlio

A Juju tá perdendo de um set a zero.

Cada vez que ela erra, a tia Helena aperta meu ombro ou a
minha mão com força. Ela fica estressada, eu acho. Espero que a
Juju comece a ganhar logo, porque capaz da tia Helena quebrar os
meus dedos.

Eu não reclamo, porque acho que faz ela se acalmar e também


porque eu gosto quando ela me abraça ou pega na minha mão. Ela
não fazia isso lá no Luneta e também não fazia muito quando a
gente se mudou. Agora ela abraça e beija a gente sempre.

A Juju faz um ace e fecha o game. Falta só mais um game para


ela vencer o set.

Aproveito que a tia Helena tá mais calma para investigar.

— Posso fazer uma pergunta?

Ela me olha confusa.

Acho que não sabe se dá atenção pra mim ou pra Juju, mas foi a
Juju que me mandou investigar, então acho que é o mais importante.

— Pode, claro, meu amor.

Também faz pouco tempo que ela começou a chamar a gente de


“meu amor”. Eu gosto muito quando ela me chama assim.

— Quando você e a tia Pati começaram a namorar?

— Quê? Ah... um dia depois do treino de vocês eu convidei ela


pra jantar.
— Que dia?

— Aquele que vocês dormiram na tia Lara, que vocês foram no


cinema, lembra?

— Uhum. E vocês foram aonde?

— No Orso — ela diz. — VAI, JUJU!

A Juju fecha o set e vai para o set de desempate.

Acho que ela vai ganhar, porque ela tá mais concentrada.

— O que você gosta nela?

— Na Juju?

— Não, na tia Pati!

Ela vira para mim arregalada.

Essa é a mesma cara que o Pedro fez quando a tia Betina pegou
ele jogando papel higiênico molhado no banheiro das meninas lá no
Luneta.

Coitado, eu não queria tá no lugar dele. A tia Betina dá medo


mesmo.

Mas não sei por que a tia Helena fez essa cara. E não sei se ela
tá com medo ou não sabe o que falar.

— Hm, não sei, Ju.

— Você não sabe o que você gosta na sua namorada?

Ela passa a mão no rosto.

— Eu gosto que ela é gentil, divertida, inteligente, bonita, que ela


gosta de vocês, um monte de coisas... por que tantas perguntas?
— Só pra saber.

Ela sorri e me puxa pra um abraço de lado.

A gente termina de ver o jogo da Juju.

Ela ganha a partida e vai ter mais dois jogos amanhã.

◆◆◆

Eu tô em primeiro e a Juju em segundo, ela tá bem atrás de mim


e eu tento aumentar a vantagem, mas ela consegue o cogumelo bem
na curva e passa na minha frente.

— O que a tia Pati falou? — pergunto, tentando pegar todas as


moedinhas que consigo.

Já estamos na última volta do Mario Kart, mas acho que consigo


passar a Juju ainda.

— Ela disse que foram em um café no centro de tarde.

— A tia Helena disse que foram no Orso de noite.

— Acho que o homem da cara dura tá certo, Ju! Elas não tão
namorando.

— Pra que fingir, então?

— Não sei, mas acho que elas gostam uma da outra.

— Eu também acho — falo, passando a Juju na última reta e


ganhando. — Aê! — comemoro. — Eu perguntei pra tia Helena o que
ela gostava na tia Pati e ela ficou toda vermelha.

— A tia Pati também ficou.

— Mas se elas gostam uma da outra, por que não namoram de


verdade? — pergunto.
A Juju levanta os ombros enquanto coloca mais uma corrida.

— Às vezes elas precisam de ajuda pra perceber.

— Acho que você tá certa, Juju! E se elas estiverem namorando


de verdade, o homem deformado não vai poder fazer nada contra
elas.

— Só mais dez minutinhos, tá bem? — a tia Helena diz, saindo


do quarto com o cabelo molhado e pijama.

— Tá bom! — a gente fala junto.

— Vocês não querem comer mais nada?

— Não, obrigada — a Juju fala.

— Eu posso comer um picolé? — pergunto.

— Essa hora, Ju? Tá, pode, pode, só porque você comeu a


salada toda no jantar.

Dou pause no jogo e pulo do sofá para pegar um picolé de uva no


freezer. Quando volto pra sala, a tia Helena tá jogando com a Juju
com o meu controle.

Eu nunca vi ela jogar antes e a Juju tá tentando ensinar ela como


é. Me sento do lado dela e ajudo também falando o que ela tem que
pegar e do que tem que desviar. Ela não joga muito bem, mas no fim
acaba em primeiro. Eu sei que a Juju deixou ela ganhar pra ela ficar
feliz.

Depois de mais duas partidas, a tia Helena diz que a gente tem
que dormir porque amanhã a Juju tem mais dois jogos no torneio e a
gente tem que acordar cedo.
16.
Pati

É final de tarde e sinto que minha energia chegou ao fim junto


com o torneio. Júlia e outros dois alunos avançaram até a final nas
suas categorias, ou seja, vários jogos hoje.

Ainda bem que amanhã terei o dia de folga.

Nas últimas semanas parece que minha vida virou uma sucessão
infinita de acontecimentos e que não tenho tempo para mais nada.
Eu costumo ter muita energia e raramente me sinto cansada. Mas
hoje eu estou exausta!

Estamos no último jogo da Juju que é também o último jogo do


dia. No momento, Júlia está perdendo o segundo set, depois de ter
vencido o primeiro. Não sei se ela está muito nervosa ou apenas
desconcentrada, mas está errando bolas que normalmente não erra.

A adversária encaixa um ace e ganha o set.

Júlia se senta irritada no banco ao meu lado.

— Esquece esse set, não deixa ele te atrapalhar — falo para ela
com calma. — Respira!

Na arquibancada, vejo Helena apreensiva. Não sei se porque


Júlia perdeu o set, ou porque consegue notar que a filha está
estressada. Mas tenho a impressão de que é a segunda opção.

A gente não se falou muito depois de quinta e do, hm, beijo.

Mas não faço a menor ideia do que dizer.


“Beijo daora, né” ou “Que massa que agora a gente pode se
beijar”???

Eu não posso falar essas coisas!!!

Em frente à Helena e ao Júlio, está o tal do Vitor sei-lá-das-


quantas e posso ver que ele está falando alguma coisa alto o
suficiente para Helena ouvir, mas não consigo identificar o que é.

Vejo apenas Helena revirar os olhos castanhos.

◆◆◆

— Segundo lugar é um excelente resultado, meu amor. — Helena


consola Júlia após a derrota na final.

Júlia perdeu o último set e ainda está um pouco contrariada.

Estamos na saída do resort, e Helena e os gêmeos decidiram que


deveríamos sair para comer uma pizza. Não poderia dizer não,
porque ficaria estranho já que “namoro” a mãe deles.

O problema é que ainda não sei direito como agir na presença


dela.

— Que pena que você não conseguiu, querida — o Vitor Pfeu…


Pfiu, ah!, você sabe quem, diz para Júlia.

Sinto o meu maxilar apertando. Sei que esse sujeito não é flor
que se cheire e não gosto dele falando com a Júlia. Pelo jeito,
Helena pensa a mesma coisa e abraça a Juju pelo ombro, trazendo
ela para mais perto.

Mas vou te falar, esse homem tem muita coragem para sair na
rua com esse cabelo. Parece uma mistura de cacatua com Jimmy
Neutron.
— Eu consegui participar da final na minha primeira competição.
— Júlia diz, canalizando sua melhor versão de mini-Helena.

Não consigo segurar o sorriso.

— E você, Vitor? — Helena pergunta. — Conseguiu vender o


estoque encalhado da coleção passada?

Ele sorri… eu acho. É difícil dizer. A cara desse homem não se


mexe. Me pergunto se ele ainda consegue mastigar a comida.

— Não precisa se preocupar com a minha marca, querida. E a


gente — diz, se virando para mim —, se vê no MASP Gala.

MASP Gala? Eu?

De onde ele tirou essa ideia?

A Helena disse que iríamos namorar até o evento, não que eu


teria que participar do evento.

Tento manter a linha para não comprometer nosso disfarce, mas


faço uma nota mental para perguntar para Helena mais tarde.

Assim que Vitor se vira, vejo uma coisa rosa grudada no cabelo
dele.

— Vitor, querido — Helena chama de volta. — Acho que um


flamingo fez as necessidades no seu cabelo.

O homem estreita os olhos e leva a mão à cabeça.

Quanto mais ele tenta puxar, mais o chiclete parece grudar. Ele
olha irritado para os gêmeos, que mantêm as suas melhores caras
de anjinhos. Sem conseguir uma resposta, Vitor apenas bufa e vai
embora.

Vejo Júlio rindo, ele ergue a mão para a irmã dar um high-five.
Helena prende o riso, mas vejo um pouquinho de orgulho da
travessura dele.

Na pizzaria, tenho a impressão de que Júlia passou uma semana


inteira sem comer, porque a menina já tá no sétimo pedaço e não
parece disposta a parar.

Preciso conversar melhor com ela sobre o que significa “cuidar da


alimentação” para um atleta, talvez ela tenha levado muito a ferro e
fogo meu comentário na última vez.

— A Luísa e a Sofia estão voltando de viagem depois de amanhã


— Helena comenta.

— É sério??? — Júlia levanta a cabeça, desviando o olhar da


pizza pela primeira vez na noite.

— Que massa! — Júlio diz, com brilho nos olhos.

Acho que Helena pegou os dois de surpresa. Bem, eu também fui


pega, porque não lembrava mais de que seria já esta semana,
apesar de a Luísa ter me contado no domingo passado, quando ela
comentou em um dos meus stories na praia.

— Não vejo a hora de saber o que é o presente que a tia Lu disse


que tá trazendo pra gente! — Júlio diz animado.

— Eu nunca ganhei nada vindo de outro país — Júlia diz.

— Tecnicamente, várias coisas que vocês têm vem de outro país


— digo.

— Mas é diferente!

— Acho que você tem razão.

— A Lara tá organizando uma festa surpresa de boas-vindas —


Helena comenta —, ela disse pra você ir também, Pati. Se você
estiver livre, claro.
— Claro que eu vou — respondo. — Eu adoro festa surpresa!

— Vocês dois entenderam, né? — Helena diz em tom sério. — É


surpresa, vê se não vão dar com a língua nos dentes.

— Pra isso a gente teria que ter nossos próprios celulares — Júlia
pondera —, só assim a gente poderia falar com a tia Lu e a tia Sofi e
dar com a língua nos dentes.

Quem acha que genética é mais forte que amor e convívio,


certamente nunca viu essas duas. Juju é muito mais simpática, é
verdade, mas tem exatamente os mesmos trejeitos e mesmo tom de
reprovação de Helena quando precisa explicar algo óbvio.

— Eu quis dizer numa chamada de vídeo com todo mundo,


espertinha.

Júlia apenas dá de ombros, então se vira para mim, como um raio


e solta:

— Você vai dormir lá em casa, tia Pati?

Sinto um pedaço de pizza entrando pelo lugar errado e preciso


dar umas batidinhas no peito para conseguir respirar normalmente
mais uma vez.

— Hum, não — digo.

— Mas por quê? Vocês não são namoradas?

Cristo, de onde essas crianças tiram essas ideias?

— Somos — respondo com certo receio.

— Então! A gente não se importa, né, Ju?

— Não — Júlio responde, balançando a cabeça efusivamente


para provar. — Ia ser legal, a gente podia fazer um campeonato de
videogame!
— Nós acabamos de sair de um campeonato e vocês já querem
outro? — Helena comenta, na certa, achando por bem tentar me
ajudar.

— Mas esse é só pra família — Júlio diz.

Família.

— Vocês são uns amores, mas não é esse o caso.

Vejo os olhos de Helena brilhando de emoção.

Não é preciso ser um gênio para saber que essa fala é importante
para ela.

Saber que eles de fato a consideram sua família é algo que ela
ainda busca ter certeza. Embora, para mim seja óbvio que eles já a
consideram há tempo, eu entendo a sua insegurança.

Também me pego desejando poder fazer parte desse círculo.

Fazer parte de verdade.

— E qual é então?

— Ainda é muito cedo pra essas coisas, eu já falei pra vocês.

— E quando não vai mais ser cedo? — Júlia pergunta dessa vez.

— Não sei, Juju — Helena diz, levemente exasperada. — O que


deu em vocês esse final de semana que estão tão obcecados com
esse assunto?

— Nada! — Juju diz, dando de ombros. — A gente só não quer


que vocês deixem de fazer coisas juntas por nossa causa, só isso.

Oh.

Não aguento a fofura deles em se preocupar com a gente!


Acho que Helena também não, porque a cara que ela faz é a
coisa mais fofinha que eu já vi vindo dela.

— A gente fica feliz que vocês se preocupem, mas nós estamos


bem, né, Pati? — Helena coloca a mão sobre a minha pela primeira
vez nesses dois dias.

Sei que o gesto é para demonstrar para os filhos dela que está
tudo bem, mas de certa forma ele acaba me tranquilizando junto.
Como se tivéssemos finalmente voltado ao normal depois de quinta.

◆◆◆

— Então tá decidido — Lara fala com tom de autoridade. — A


Lena vai buscar a Lu e a Sofia no aeroporto, enquanto a gente
termina de organizar tudo.

Por “a gente” ela quer dizer eu, ela e a Mila.

Murilo e Chiquinho estão vindo do Luneta e devem chegar a


qualquer momento. Assim como o Pepa e alguns amigos mais
chegados da Luísa e da Sofia.

É terça-feira de noite e Luísa e Sofia chegam daqui a pouco de


São Paulo. Elas já chegaram ao Brasil pela manhã, mas só
conseguiram voo para Floripa para o último horário.

De certa forma, veio a calhar, já que no meio da semana seria


impossível fazer uma festa surpresa durante o dia.

— A gente pode ir junto? — Júlio pede.

— Nós nunca buscamos ninguém no aeroporto! — Júlia explica.

— Eu posso ir também? — Lucas pergunta.

— Claro que não — Lara responde para o filho. — Esqueceu que


nós não vamos porque inventamos que você e a Lili estão gripados?
— Não vai caber nós três, mais as duas e todas as malas —
Helena argumenta com os gêmeos.

— A Pati pode ir com o carro dela e trazer as crianças na volta. —


Lara sugere. — Pelo menos assim elas não vão achar tão estranho
só você ter ido recebê-las no aeroporto. E eu e a Mila damos conta
de tudo aqui.

— Tem certeza? — pergunto. — Olha o estado dessa guria!

Aponto para a barriga da Mila que está quase explodindo. Mila


solta uma risada, mas diz:

— Já está quase tudo pronto, e o Mu e o Chiquinho estão


chegando. Eles mandaram mensagem dizendo que em dez minutos
estão aqui.

— Então tá — respondo.

— Uhul — Júlio comemora.

— Vem, Ju, a gente precisa fazer uma plaquinha que nem nos
filmes! — Júlia puxa o irmão para uma mesa onde estão amontoados
uma quantidade enorme de itens de decoração.

Estamos na casa da Lara, que é na verdade a casa que era da


mãe delas, que, até onde eu sei, é a casa em que cresceram e fica a
apenas alguns minutos da casa da Helena. Pelo que a Helena me
contou, quando elas voltaram do Luneta, todas concordaram que a
casa não deveria ser vendida. Então Lara foi a escolhida para se
mudar.

A casa é enorme.

Eu não diria que chega a ser uma mansão, mas é uma casa
grande naquele estilo cubo característico dos anos 80, com janelas
enormes e venezianas de madeira e, apesar de antiga, dá para ver
que acabou de passar por uma reforma.
O ponto alto, entretanto, é o jardim em que estamos, que parece
até um daqueles jardins de grã-fino das novelas do Manoel Carlos,
com gramadão, piscina e área de festa… Tenho a impressão de que
a qualquer momento a Susana Vieira vai aparecer com uma taça de
champagne na mão e, no aparelho de som, vai começar a tocar
Corcovado do Tom Jobim.

Já temos até nossa própria Helena para compor a cena.

Helena e Júlio vão em um carro e Júlia e eu em outro, porque, de


acordo com Juju, é melhor ter companhia.

Curiosamente, em vez de falar de tênis, que é o seu assunto


preferido, ela tira o dia para me encher de perguntas, como…

— Você não acha que a tia Helena tá bonita hoje?

— Ela está bonita, como sempre — respondo.

— Então você acha ela bonita?

— É claro que acho.

— A mulher mais bonita que você já viu?

Com certeza!

— Hm, talvez.

— Talvez?

— Acho! A mulher mais bonita que já vi — respondo na


esperança de ela parar de me fazer esse tipo de pergunta.

O que deu nessa menina hoje, meu Deus?

— Foi o que eu imaginei.

— Foi, é?
— Foi, porque vocês namoram, faz sentido isso.

— Uhum.

Eu devia ter trazido o Júlio. Pelo menos só precisaria falar de


videogame, não sobre a minha falsa relação com a mãe deles.

Depois de quase meia hora sendo sabatinada sobre tudo que eu


gosto na Helena, finalmente chegamos ao aeroporto.

Estamos no saguão, Júlio segura uma placa com o nome da


Sofia e Júlia uma com o nome da Luísa.

Helena explicou que a placa serve para quando a pessoa que tá


chegando não sabe quem é a pessoa que está indo buscá-la, mas
eles não abriram mão das plaquinhas mesmo assim.

Já faz uns dez minutos que vimos a aeronave delas pousar e


Júlio e Júlia estão impacientes com a demora para elas saírem do
portão de desembarque.

— Por que tá demorando tanto? — Júlio pergunta.

— Porque demora para todo mundo sair do avião e depois


demora mais um tempão para eles tirarem todas as malas do
compartimento de carga e colocar na esteira — Helena explica.

— Que saco isso.

— Eu sei! — concordo.

— Você já viajou de avião, tia Pati? — Júlio me pergunta.

— Já, mas eu não gosto. Tenho um pouco de medo.

— Por quê?

— Porque é muito alto, eu acho.


— Mas a tia Helena disse que é seguro.

— É mesmo, super seguro — digo. — É bobagem ter medo, mas


às vezes a gente não consegue controlar tudo que assusta a gente.

— Eu tenho medo de borboleta — Júlia diz.

— Elas chegaram! — Helena nos interrompe.

Luísa não está mais com as pontas do cabelo rosa e tirou o loiro
também. Já Sofia manteve as luzes castanhas, mas está com o
cabelo mais comprido. Elas estão lindas como sempre, mas no
momento posso ver que estão cansadas da viagem.

As duas abrem um sorriso quando nos veem… na verdade,


quando veem o Júlio e a Júlia com os cartazes, mas acredito que
estejam felizes em ver eu e Helena também.

Entre vários, “como você cresceu”, “você está linda”, “eu estava
com saudades”, escuto um “como você está gay” da Luísa para a
Helena.

Eu posso até ter convivido pouco com a Luísa no breve período


em que ela esteve no Brasil, mas a conheço bem o suficiente para
saber que isso é sarcasmo. E levando em conta que Mila e Lara
sabem que estamos fingindo, Lu e Sofia devem saber também.

Quando abraço a Sofia, ela cochicha no meu ouvido:

— Depois quero saber direitinho essa história aí com a minha


cunhada.

— Achei que você já soubesse.

Sofia sorri com certa malícia.

Ela sabe.

Eu sabia que Luísa não iria esconder isso dela.


Quando retornamos à casa de Lara, tudo está silencioso. Helena
buzina e o portão se abre alguns instantes depois. Deixamos os
carros no caminho da garagem e seguimos em direção à sala anexa
ao jardim.

— Poxa, a Lara já foi mais receptiva — Luísa se queixa —, que


escuridão é ess…

— SURPRESA!!!

As luzes do jardim se acendem iluminando os balões e cartazes


de boas-vindas enquanto todo mundo fala junto e uma música
começa a ecoar ao mesmo tempo.

Lucas e Alícia correm para abraçar as tias.

Chiquinho também não contém a ansiedade em abraçar a filha e


corre até Sofia. Noto ambos com os olhos marejados.

Mila e Lara chegam para um abraço triplo com Luísa.

— Você achou mesmo que eu iria perder a oportunidade de dar


uma festa? — Lara pergunta ainda agarrada à irmã mais nova.

— Ou que essa barriga iria me impedir de vir? — Mila completa.

— Pensando aqui, eu deveria ter suspeitado mesmo.

Luísa beija cada uma delas na bochecha e também a barriga de


Mila.

É engraçado ver elas assim hoje, porque a primeira vez que vi as


quatro juntas, foi no Luneta e elas passavam mais tempo brigando
do que conversando. Mas agora, Luísa tem um sorriso de orelha a
orelha enquanto Lara faz todo tipo de pergunta que uma mãe faria, e
Mila continua abraçada à irmã. Mesmo Helena, que sempre se
esforça para ser blasé, está sorrindo ao lado de Lu.
O resto do pessoal também dá as boas-vindas e não demora
muito para as rodas irem se formando.

As crianças brincam na casa da árvore que a mãe delas construiu


para os netos quando ainda era viva e morava aqui. Chiquinho
assume a churrasqueira, Murilo, o bar, Mila, o som, e Lara, bem, eu
não sei ao certo, mas ela parece ocupada o tempo todo.

— … você sabe que eu adoro cachorro — Luísa diz —, mas


aquele doguinho não parou de latir nem por um mísero segundo a
noite toda. Eu quase esqueci completamente que sou contra maus
tratos aos animais!

— É verdade — Sofia confirma. — Foi infernal mesmo, ainda por


cima, ele tinha aquele latido agudo que quase estourou meu
tímpano.

Estamos quase todos na área da piscina enquanto Luísa e Sofia


contam como foi a viagem.

Logo começa a circular pratos com petiscos e também legumes


assados. Murilo me oferece uma Margarita e aceito sem pensar duas
vezes.

— Você não tem muita moral para reclamar não, Lu — Lara diz,
se sentando ao lado de Mila depois de terminar de fazer… o que
quer que ela estivesse fazendo.

— O que você quer dizer com isso? — Luísa pergunta.

— Ah, aquela vez que fomos para Buenos Aires, lembra? Foi em
2007, eu acho, você nem era tão pequena, já tinha uns 4 anos. Ficou
chorando e gritando o voo inteirinho. O papai já não sabia mais o que
fazer para você ficar quieta e a mamãe não sabia onde enfiar a cara.

— É verdade! — Helena concorda. — Isso aí se chama karma,


porque aquele foi o pior voo da minha vida.
— Tenho certeza de que eu não era tão chata como aquele
cachorro.

— Olha, Lu, eu te amo — Mila fala. — Mas acho difícil qualquer


ser, humano ou animal, conseguir ser mais goeludo do que você
naquele dia.

— Eu voltei pro Brasil para ser ofendida?

— Família é para isso — Helena comenta.

— Mas tirando o voo, foi uma viagem bem legal — Lara diz sobre
a viagem à Buenos Aires. — A gente até pegou neve na semana que
estava lá.

— Acho que foi a primeira vez que eu vi neve — Luísa comenta.


— Eu lembro que a Lena ficou brincando comigo, porque a Lara não
queria molhar os pés.

— Você? — eu pergunto para Helena.

— O quê? — Helena pergunta.

— Nada — digo. — É só que não consigo visualizar.

— Pode não parecer — Luísa diz. — Mas no fundo, a Lena tem


um coração e ela ficou com pena de mim naquele dia.

Não consigo evitar um sorriso. A Luísa não precisa me dizer isso,


eu já notei sozinha que Helena não é tão megera quanto parece à
primeira vista.

Ela sorri para mim daquele jeito que faz quando acha que está
certa. Um sorriso ao mesmo tempo gentil e prepotente.

— E como vai o namoro? — Luísa pergunta para a gente e


percebo que por um segundo, eu tinha esquecido que elas estavam
ali.
— Está ótimo, obrigada — Helena responde.

— Vocês formam um casal fofinho.

— Eu sei! — Helena responde mais uma vez com aquele sorriso.

— Eu nem sabia que você era tão boa atriz, Lena — Luísa
provoca.

— Fica quieta, guria! — Helena diz entredentes, a lembrando de


que o resto das pessoas não sabem que estamos fingindo.

Luísa solta uma risada, mas observa Helena com certa


curiosidade.

— Ah, falando em atuação, a gente fez figuração em um filme


independente em Berlim.

— É verdade! — Sofia confirma empolgada, como se já tivesse


se esquecido.

— Como foi isso? — Mila pergunta.

— A gente estava caminhando por Berlim — Sofia conta — e


vimos que uma das ruas estava fechada para gravações, a gente
parou para ver, aí o diretor, que viu a gente e nos achou bonitas, nos
convidou para ser figurantes.

— Depois a gente descobriu que era um filme de um cara que se


apaixona por um fantasma da segunda guerra e naquela cena ele vê
o momento do assassinato dela… baita viagem.

Luísa e Sofia contam mais algumas histórias e casos que


aconteceram com elas nesse período. Logo eu me levanto para
pegar mais um drink e encontro Pepa e Murilo.

Pepa conta sobre a menina que conheceu há algumas semanas


e ainda não sabe como chamar para sair.
— Sei lá, parece que nunca é o momento certo — ele diz.

— Eu convidei a Mila para sair no velório da mãe dela, Pepa! —


Murilo diz, rindo da insegurança dele.

— Pô, você foi grandão mesmo.

— Realmente — concordo. — Ali você foi destemido.

— E agora a gente vai ter um bebê — ele diz com um sorriso de


orelha a orelha. — E eu vou pedir ela em casamento.

— O quê?

— É SÉRIO?

Eu e Pepa perguntamos juntos.

— Shh — Ele faz com a mão um sinal para falarmos baixo. — Ela
não sabe ainda. Pretendo pedir só depois do parto, para não
sobrecarregar ela agora.

— Parabéns!! — digo, brindando com ele.

— Obrigada.

— Mas vem cá — digo me virando para o Pepa —, desde quando


você tem algum pudor para chamar uma menina pra sair?

— É verdade — Murilo diz — até a minha namorada você


chamou quando viu a primeira vez.

— Aí, foi mal por isso — Pepa diz, coçando a cabeça. — É que,
sei lá, ela é diferente, não quero levar um toco, então tenho que ter
certeza antes.

— Que bonitinho que você é — brinco, passando a mão na


cabeça dele.
— Não me digam que o Pepa está apaixonado — Sofia pergunta,
se aproximando também.

— Apaixonado é uma palavra muito forte.

— Você não toma jeito, né, guri — Sofia diz, mas tem um sorriso.
Ela então se vira para mim: — E você vem comigo… desculpa aí,
meninos.

Ela me arrasta para um canto mais vazio e nem espera eu


recuperar o fôlego antes de me bombardear:

— Como foi que isso aconteceu, afinal? — ela me pergunta, se


sentando em um futon e me puxando junto.

— Foi por causa daquele vídeo que viralizou, você não viu?

— Ver eu vi, só não entendi por que você aceitou! A Helena te


ameaçou? — ela pergunta, olhando séria nos meus olhos.

— O quê? Você tá doida? É claro que não… Um pouco!

— A sua família não é toda caretona, como eles reagiram?

— Nem me lembra dessa parte — digo, soltando um suspiro. —


Mas o que eu poderia fazer? A merda já estava feita, o vídeo já
estava no ar e meus pais já tinham visto de qualquer forma. Eu não
podia deixar ela se ferrar, desmentindo o caso.

— É claro que não podia — Sofia diz com sarcasmo.

— O que você quer dizer com isso?

— Que você tem um crush enorme nessa mulher desde o Luneta.

— Eu não tenho crush nenhum!

— Pff, assim você me ofende.


— Tão na cara assim?! — pergunto, me sentindo aflita, de
repente.

— Pati, Pati... cuidado para não sair mal dessa história — ela me
fala, e posso perceber que sua preocupação é genuína.

— Eu sei o que eu tô fazendo.

— Espero que saiba mesmo. Porque eu gosto da Helena, ela é


minha cunhada e a personalidade dela melhorou muito depois do Ju
e da Juju, mas essa mulher ainda é problema!

Não tenho tempo de responder antes de uma vozinha meio


aguda meio rouca me chamar:

— Tia Pati — Júlia corre até mim. — Eu perdi meu brinco no


quarto da Lili, eu acho. Você pode me ajudar a achar? Não quero
que a tia Helena saiba.

— Claro, Juju!

— Você quer que eu ajude também? — Sofia pergunta.

— Hum, não — Júlia diz. — Você, hm, você tem que ficar na
festa, porque a gente organizou pra você!

— Está bem, então. — Sofia diz com um sorriso de lado, sem


entender direito.
17.
Helena

— Ficou daora mesmo a reforma, Lara — Luísa comenta.

Estamos eu e as minhas três irmãs na sala adjacente à área da


piscina. Lara fez um tour pela casa com a Lu, que não tinha visto a
reforma concluída antes de viajar.

— O arquiteto queria abrir essa parte aqui, deixando apenas


colunas separando a sala da piscina, mas eu insisti em manter assim
— Lara explica.

— Você fez certo — Mila diz. — Quando bate o vento sul, essa
área fica muito gelada.

— E a gente costumava ficar bastante aqui, mesmo no inverno —


digo. — Se você abrisse, não daria para usar em dias frios.

— Você lembra que a gente costumava jogar Banco Imobiliário e


Perfil aqui?

— Verdade, e no inverno o papai fazia chocolate quente — Luísa


relembra.

— Teve aquela vez que a Lara deu uma lavada na Lena no Banco
Imobiliário — Mila conta —, e a Lena ficou puta da cara porque
achou que a Lara estava roubando, você lembra, Lena? — ela
pergunta para mim.

— Sim, eu joguei uma almofada nela e acabei derrubando o vaso


que a vovó tinha trazido da Holanda e que custava uma nota.

— Naquele dia a mamãe ficou brava, viu — Lara diz. — Eu nem


tinha feito nada e tive que ficar de castigo também.
— Claro que tinha feito — falo. — Você tinha roubado!

— Helena, já faz vinte anos, supera! Eu venci honestamente.

— Sei.

— A Lena jamais vai admitir essa derrota, Lara — Luísa diz,


rindo.

— A mamãe era bem criativa pra castigo — Mila lembra. — Teve


uma vez que ela me fez vender o ingresso pro show do Jack
Johnson que eu tava doida pra ir!

— Mas também, né, Camila — falo —, você fugiu de casa no


meio da noite pra encontrar um cara!

— Em minha defesa, eu não sabia direito o que estava fazendo.

— Quantos anos você tinha? — Luísa pergunta.

— Catorze, eu acho, e o cara uns dezoito.

— A mamãe fez certo, sua maluca! — Lara repreende.

— Uma vez — conto —, ela me fez ler Os Miseráveis inteiro e ela


só me deixou sair de casa de novo depois que acabei e escrevi uma
resenha. Levei mais de dois meses pra acabar aquela merda e ela
ainda me deu uma lição de moral porque eu disse que o Jean
Valjean era um frouxo.

— O que você tinha feito de tão horrível, meu Deus? — Luísa


pergunta.

— Roubado dinheiro da carteira dela.

As três riem da minha cara.

— Não sei como ela deu conta de nós quatro — Lara diz. — Eu já
passo trabalho com dois. E eles são uns anjinhos comparados com a
gente.

— Verdade — concordo. — A gente não dava trégua.

— Tia Helena — Júlio me chama.

— Que foi, meu amor?

— Eu posso mostrar uma coisa pra você?

— Claro.

— Vem comigo, então — ele diz.

— Não é aqui?

— Não!

Me viro para as minhas irmãs, elas dão de ombros. Então sigo


Júlio pelo corredor que leva aos quartos.

— O que aconteceu, Ju?

— Eu quero mostrar um jogo que eu quero igual ao do Lucas —


ele diz me puxando até o quarto no fim do corredor.

— Ah! — digo. — Mas esse é o quarto da Lili.

— Ele deixou aqui — Ju explica.

Assim que entro pela porta, vejo Júlia e Pati olhando alguma
coisa embaixo da cama. Quando Júlia me vê, ela abre um sorriso
travesso, e ela e Júlio saem correndo e fecham a porta atrás de mim.

Escuto o clique da chave sendo trancada pelo lado de fora.


Quando me dou conta, estou presa no quarto da Alícia com a minha
namorada de mentirinha.
18.
Pati

— O que você acha que aconteceu aqui? — pergunto ainda


ajoelhada ao lado da cama.

— Acho que eles armaram para deixar a gente sozinha — Helena


responde.

— Então a Juju não perdeu nenhum brinco?

— Acho que não!

Pff!

Me levanto e limpo meus joelhos.

— Embusteira, a sua filha.

— E o meu filho também, pelo visto — ela diz. — Eu deixei meu


celular na bolsa, você tá com o seu aí?

— Não, acho que deixei lá no balcão do bar.

Me sento na cama e Helena se senta ao meu lado.

— Eles andaram fazendo algumas perguntas estranhas sobre a


gente — ela diz.

— Pra você também? A Júlia parecia uma recrutadora em


entrevista de emprego, era uma pergunta atrás da outra. Me
perguntou até do nosso primeiro encontro.

— E o que você disse? — Helena pergunta.


— Eu não podia dizer o que a gente combinou porque se eles
moram na mesma casa que você, saberiam que eu nunca fiquei
depois do treino para tomar um drink. Disse que fomos tomar um
café.

— Ah! O Ju também me perguntou isso e eu respondi que fomos


ao Orso num dia em que eles vieram dormir aqui.

Helena e eu trocamos um olhar de entendimento.

— Eles sabem! — concluímos juntas.

— Mas porque nos prender aqui? — pergunto.

— Pra nos juntar de verdade, não é óbvio?

— É?

— Claro que sim, eles estavam adorando a ideia de você fazer


parte da família. Devem pensar que tem uma chance de ser real.

Parte da família.

Sinto uma sensação engraçada no estômago.

— Que absurdo — digo, mas não consigo não pensar no “e se”.

— Pois é! Eu preciso conversar com eles.

— Bom, acho que vamos ter que pular a janela — digo, tentando
mudar de assunto.

Me levanto e caminho até a janela para abrir a cortina.

— Eu não vou pular do segundo andar, Patrícia!

— Nem dá, tem rede de segurança — constato.

— Bem, esse é o quarto da Lili, e a Lara é a maníaca da


proteção.
— E agora? — pergunto.

— A gente espera, ué, alguma hora alguém vai dar a nossa falta.

Pelo jeito os dois pensaram bem antes de nos trazer para cá,
porque além da rede de proteção, o quarto é virado para a frente da
casa e a festa está acontecendo na piscina, que fica nos fundos.

Me sento mais uma vez na cama ao lado de Helena.

— Que lindo que é esse quarto — digo.

Parece esses quartos de criança que você vê no Pinterest, ele é


todo em tons pastel e tem um papel de parede lindo com temática de
animais da savana.

— Era o meu quarto — Helena diz.

— Esse?

— Uhum.

— Eu tenho que confessar que não consigo nem imaginar como


era o seu quarto quando era adolescente.

Mas certamente não tinha temática de bichinho.

— Não tinha muita coisa, não.

— Não me diga que você não tinha poster dos colírios da


Capricho? — brinco.

— Essas eram a Lara e a Mila. Eu tinha algumas medalhas de


xadrez e tênis penduradas em cima da cabeceira da cama. Ali — ela
aponta para a parede ao lado da janela — ficava o meu violão e ali
— Aponta para a parede oposta onde agora tem uma estante de
brinquedos —, minha escrivaninha e em cima uma prateleira de
livros.
— Medalhas de xadrez? Que nerd!

— E de tênis — ela acrescenta com certa prepotência.

— É claro!

Essa mulher é mesmo muito cheia de si. Mas admito que eu


gosto.

Ficamos em silêncio alguns segundos. Acho que nenhuma das


duas sabe o que falar, mas resolvo perguntar aquilo que está me
incomodando há uns dias:

— Hm, Helena? Posso te perguntar uma coisa?

— Pode… — ela responde reticente.

— Aquele dia no torneio, o Vitor Frankenstein disse que iria me


ver no MASP Gala?!

— Pfuetzenreiter!

— Você entendeu.

— Entendi. Mas o que que tem?

— Quando você pretendia me contar que eu também iria nesse


evento?

— Ué, eu te disse no dia que combinamos em fingir que estamos


namorando.

— Hm, não! Você disse que namoraríamos até o evento.

— Então!?

— Eu achei que era até você ir ao evento.

— Não! Até o fim do evento. Porque você vai comigo.


— Eu não posso ir!

— Por quê?

— Eu nunca fui em um evento de gala antes!

— E daí?

— Sei lá, eu não sei como funciona essas coisas!

— Eu vou estar com você — ela diz com mais gentileza do que
estou acostumada vindo dela.

— Eu não tenho nem roupa pra essas coisas.

— Não se preocupa com isso, Pati. Deixa o vestido comigo.

— Mas porque você quer que eu vá?

— Para poder mostrar para todo mundo que estamos mesmo


namorando!

Não sei se a cama da Lili que é muito pequena ou a Helena muito


espaçosa, mas sinto como se ela estivesse invadindo meu espaço
pessoal, e a sua proximidade me deixa meio zonza.

— Eu vou para ser a sua trophy wife então?

Helena solta uma risada dessa vez.

— Mais ou menos, você não é a minha esposa e nem é tão mais


nova do que eu, mas sim.

— Pensando bem, a parte do troféu também não é lá muito


verdade — brinco. — Convenhamos que para uma mulher se
destacar ao seu lado tem que ser, sei lá, uma Angel da Victoria’s
Secret.
— Eu já disse pra você uma vez, para não se desmerecer — ela
fala de uma forma mansa, diferente da primeira vez que disse isso.

Dessa vez, sinto que é uma fala sincera, não condescendente.

— E eu já te disse que não tenho problema de autoestima —


respondo, no mesmo tom. — É só que somos muito diferentes.

— Mas eu acho que isso é uma coisa boa.

— Acha?

— Acho — ela diz, prendendo uma mecha do meu cabelo atrás


da orelha. — Eu gosto que você seja diferente de mim e me faça ver
algumas coisas de outra maneira.

— É mesmo?

— Uhum — ela responde. Consigo sentir o seu perfume e noto


como estamos mesmo muito, muito próximas. — Como ver o lado
positivo das coisas, por exemplo.

— É? — pergunto, sentindo meu estômago se contorcendo.

— É — ela sussurra. — A gente não precisa se desesperar


porque estamos presas juntas, você não acha?

— Acho — respondo, e sinto a sua presença cada vez mais


próxima e a respiração dela se mesclando à minha.

Me dou conta de que a mão da Helena ainda está no meu rosto,


com a palma na minha bochecha. Sinto minha boca seca de repente
e os olhos dela estão focados em mim. Minha respiração se torna
ofegante e levo meu olhar para a sua boca.

Fecho os olhos, esperando sentir os seus lábios macios mais


uma vez e…

— Você ouviu isso?


Quê???

Helena me larga como se eu estivesse em chamas.

— Acho que tem alguém aqui no corredor — ela diz se


levantando.

— Hm, o quê?

Sinto como se tivesse em um trem bala que parou de repente.

Chacoalho a cabeça tentando voltar para a realidade e agora


consigo ouvir passos no piso de madeira.

— LARA? — Helena chama alto.

— Lena? — Lara pergunta em tom de curiosidade.

— Lara, abre a porta — Helena pede. — Os gêmeos nos


prenderam aqui!

Escuto a tranca sendo aberta. Pelo jeito eles deixaram a chave


na porta.

— O que aconteceu? — Lara pergunta ao ver nós duas sentadas


na cama da Lili.

— O Ju e a Juju quiseram brincar de cupido e nos prenderam


aqui — Helena responde.

— Hm, eu vou… hm, eu vou ao banheiro — digo, passando por


Lara como um raio.

— Ué, se você estava tão apertada por que não usou o da Lili? —
Lara pergunta, mas ignoro.

Assim que chego ao jardim, dou de cara com a dupla.

— Vocês dois — digo para eles. — O que vocês tem na cabeça?


— A gente só queria ajudar — Júlio diz, com as sobrancelhas
erguidas como o gato de botas do Shrek.

— Bom, da próxima vez que vocês quiserem bancar as gêmeas


Olsen, pensem duas vezes! Isso aqui não é As Namoradas do
Papai… ou da mamãe!

— Eu não sei quem são essas — Júlio diz.

— Isso não importa — digo. — Só não façam mais isso.

— Eu achei que ia dar certo — Júlia diz cabisbaixa.

Para ser sincera, por um segundo eu também achei.

— Não dá para forçar essas coisas, Juju. As pessoas não ficam


juntas só porque a gente quer. Espera… falando nisso, como vocês
descobriram?

— Eu ouvi aquele homem da cara dura falando que vocês


estavam fingindo, aí a gente foi investigar.

Apesar de tudo, não consigo conter uma risada.

— Tá bom, Nancy Drew, mas da próxima vez, tenta conversar


com a gente primeiro, está bem?

— Eu não sei quem é essa também.

— Hoje em dia é a Enola Holmes — Helena diz, parando ao meu


lado.

Sinto meu corpo todo se enrijecendo com a presença dela.

— Eu adoro a Enola Holmes! — Júlia comenta.

— Eu vou deixar a mãe de vocês dar o sermão — falo, evitando o


olhar da Helena. — Eu vou beber alguma coisa.
19.
Helena

Dois pares de olhos negros me encaram com a pura expressão


da inocência.

— De mim, vocês não vão conseguir se escapar — falo para os


dois. — Venham comigo.

Caminho para a parte de dentro da casa, então os levo para o


local que era o estúdio do meu pai e que Lara transformou em uma
brinquedoteca.

Me sento em uma das poucas cadeiras de tamanho adulto e os


dois em um pufe cada um.

— Desculpa, tia — Júlio diz.

— Eu que tenho que pedir desculpa para vocês — digo.

— Tem? — Júlia franze a testa, como se estivesse esperando ser


uma pegadinha.

— Tenho. Eu sei que vocês descobriram que não estamos


namorando, e quero me desculpar por ter mentido.

— Por que você mentiu?

— Parte porque não queria envolver vocês nisso e parte porque


achei que era mais seguro. Mas vocês tinham o direito de saber.

— Mas porque falaram que estão namorando então?

— É meio complicado, mas eu queria que as pessoas gostassem


de mim para comprar mais da minha marca.
— E elas não gostavam de você antes?

— Não é isso. É que eu queria que as pessoas sentissem que eu


sou parecida com elas, entende?

— Hm, mais ou menos — Júlia parece meio confusa.

— Eu acho que eu entendi — Júlio diz. — É como eu! Eu gosto


de ver Homem-Aranha porque o Miles é parecido comigo.

— É isso aí!

— Quer dizer que você não gosta da tia Pati de verdade? — Júlia
pergunta.

Apesar de eu ficar feliz de eles não questionarem muito a parte


ética da minha mentira, fico sem saber o que responder para a Juju.

— Eu gosto dela, meu amor.

— Então por que vocês não namoram de verdade?

— Porque as coisas não acontecem assim.

Não sei por que simplesmente não digo que não gosto da Pati
desse jeito. Mas alguma coisa me impede e não quero decepcionar a
Júlia.

— E como elas acontecem? — Júlio pergunta.

— Não sei direito, meu amor, eu não tenho muita experiência com
isso.

— Então se acontecer você não vai saber! — Júlia exclama. — Já


pode até ter acontecido e você não ter percebido!

Confesso que esse comentário me pega desprevenida, mas acho


por bem tentar encurtar essa conversa.
— Isso não é o tipo de coisa que você não percebe, Juju.

Eu acho, pelo menos.

— Agora — continuo —, é melhor a gente voltar pra festa, senão


o Murilo e o Pepa vão comer toda a nossa comida.

Ainda parecendo confusos, os dois me obedecem e voltamos


para a piscina.

Pati me evita o resto da noite e sinto uma sensação estranha no


peito e uma voz, estranhamente parecida com a da minha filha, me
dizendo que eu fiz alguma coisa errada.
20.
Pati

É quinta à tarde e estou no Jurerê Club arrumando os materiais


entre um treino e outro. Meu último aluno do dia só chega daqui a
meia hora, mesmo assim, prefiro deixar tudo pronto, vai que ele
chega mais cedo.

— Tá encerrando ou ainda tem treino?

Escuto a voz atrás de mim, e apesar de totalmente inesperada,


reconheço no mesmo segundo. É a voz que não ouço desde terça-
feira.

— Helena? O que você tá fazendo aqui?

Ontem tive treino com a Júlia, mas Helena não apareceu para
assistir no final como já tinha se tornado comum nas últimas
semanas.

— A Tennis&Co tá fechando uma parceria com o clube, eu tive


uma reunião com a dirigente agora pouco e, olha só, ela me disse
que minha namorada estava dando aulas aqui essa tarde.

Apesar da minha apreensão, Helena parece normal e tem um


sorriso no rosto.

Ela está usando um terninho rosa que faria qualquer outra mulher
parecer uma irmã perdida do Rosa & Rosinha ou um cosplay de A
Garota de Rosa-Shocking, mas ela está absolutamente linda, como
sempre.

— Eu nem sei quem é essa pessoa — falo.

— Mas parece que ela sabe bem quem você é.


— Já tô com saudade de quando eu era anônima — digo,
coçando a nuca.

— Você mesma disse que queria ser famosa.

— Eu sei, mas não de verdade.

Ela solta uma risada.

Tem sido muito estranho essas últimas semanas. Até as mães


dos meus alunos vieram perguntar sobre o meu namoro. Teve uma
que só faltou pedir para eu conseguir um autógrafo da Helena.

Em compensação, teve outra que não gostou muito da ideia de


eu ter uma relação tão pública — com uma mulher — e disse que
não era profissional da minha parte expor minha vida amorosa.

Sinceramente, estou pouco me lixando para o que esse tipo de


gente pensa ou deixa de pensar, mas não vou negar que era bem
mais fácil quando elas fingiam que eu não existia.

— Bom, achei melhor passar para dar um oi, mas se você tiver
livre a gente pode tomar um café.

— Ah, não vai dar, tenho aula daqui a pouco.

— Que pena — ela diz e parece, não sei, sincera?! Será? Ela
continua: — Se você tiver tempo essa semana, podemos ver os
vestidos para o MASP Gala, o que você acha?

Ainnn… já tinha esquecido disso.

Odeio avião!

Só voo quando é estritamente necessário, ou seja, para fazer


alguma viagem que eu quero muito. O que não é o caso dessa.

Além disso, eu não sei me comportar perto de gente metida.


Quer dizer, quando eu não sou uma funcionária, pelo menos.

— Claro — respondo, mesmo assim.

— Você não precisa ficar nervosa.

Outra coisa que mudou radicalmente nessas última semanas foi o


tom da Helena, ainda não me acostumei com essa fala mais mansa
e tom suave. Mas não vou negar que eu gosto.

— Eu não tô nervosa! — minto.

— É claro que tá, você tá quase quebrando essa raquete. —


Helena aponta para a minha mão.

De fato, estou segurando a raquete de tênis com mais força que o


necessário. Jogo ela em cima do banco, para disfarçar.

— Eu não gosto de gente metida.

— E eu aqui achando que você gostava de mim — ela diz com


humor.

— Você não é metida!

— Não? Você é a primeira pessoa que me diz isso.

— Eu não acho. Você só é tipo, ridiculamente rica, mas não é


metida.

— Bom, se te conforta, você não vai precisar falar com ninguém


no evento, só comigo — ela diz, em um tom que eu poderia jurar que
é flerte.

— Hm, não,… quer dizer, sim, me conforta, mas… tá tudo bem —


gaguejo e não falo nada com nada.

— Relaxa, Pati! — ela diz, se aproximando.


— Eu tô… eu tô relaxada!

Francamente, o evento me deixa bem menos ansiosa do que a


sua proximidade nesse momento.

Mas eu prefiro que ela não saiba disso.

— Está bem, então — Helena diz. — Eu vou indo.

Mas já?

Por alguma razão, achei que ela ficaria mais tempo.

Espera!

O que eu estou falando?

Acabei de dizer que ela me deixa nervosa e agora estou torcendo


para ela ficar mais tempo?

Quanta incoerência… ou será que é masoquismo?

Se concentra, Pati!

— Hm, está bem, até amanhã, então.

— Até amanhã — ela repete e se aproxima ainda mais.

Tenho a impressão de que ela vai me dar um beijo no rosto e um


abraço, como já aconteceu algumas vezes, mas antes que eu tenha
tempo de pensar, sinto os lábios dela contra os meus.

Os lábios dela contra os meus???

Os lábios da Helena estão beijando os meus!!!

Não sei se era para ser um beijo de despedida como o primeiro,


mas ela demora um pouquinho demais e para mim isso é uma deixa
para que eu retribua.
E é exatamente o que eu faço!

Não penso duas vezes antes de colocar minhas mãos na nuca


dela e intensificar o beijo, tentando deixar claro que eu aprovo
totalmente a iniciativa.

E como!

Penso que esse pode ser o beijo que não aconteceu na festa de
boas-vindas e que Helena, no fim das contas, não se arrependeu
como pensei a princípio, apenas fomos interrompidas.

As mãos dela estão na minha cintura e eu só rezo para que ela


não perceba que eu estou tremendo. Dessa vez consigo sentir mais
que a maciez dos lábios, sinto também o gosto doce e refrescante da
sua boca e penso que poderia facilmente me viciar nele.

Acho que ela foi pega de surpresa pela minha reação, mas não
parece nem um pouco em dúvida agora e, como não recuou,
entendo que ela também quer.

Passo uma mão pela sua cintura e a trago para mais perto.
Escuto um som baixo de aprovação escapar pela sua garganta e não
consigo me lembrar de um beijo me causar tantas sensações antes.

Como essa mulher pode ser tão perfeita?

Se dependesse só de mim, não pararia tão cedo, mas ainda


estamos em público e meu aluno deve chegar logo.

Quando nos separamos me sinto ligeiramente sem ar e Helena


me olha com um sorriso prepotente e as pupilas dilatadas.

Ela demora um segundo inteiro apenas me encarando.

— Agora ninguém vai duvidar! — ela me diz.

— Duvidar do quê?
— Não olha — ela sussurra, ainda muito próxima de mim,
segurando minhas duas mãos. — Mas o detetive que o Vitor
contratou esteve me seguindo o dia todo e posso apostar qualquer
coisa que ele está por aqui nos observando.

— O quê?

Mas que diabo de detetive é esse que não sabe se esconder?!

É ele que está seguindo a Helena ou o contrário?

— Agora quero ver ele duvidar — Helena diz mais uma vez, como
se eu fosse demente e já tivesse esquecido.

— Você me beijou porque o detetive pode estar aqui? — pergunto


de forma retórica.

— Eu achei que era uma boa oportunidade de mandar um recado


para o Vitor!

— Você bateu a cabeça quando era criança ou o quê?

— Hã?

— Você acha o quê, Helena? Que você pode sair agarrando as


pessoas a força só pra provocar os coleguinhas? Você tem o quê?
Cinco anos???

— Epa! — ela diz. — Não pareceu a força em nenhum momento!

Como essa mulher pode ser tão sem noção, meu Deus?

— PORQUE EU NÃO SABIA QUE ERA ENCENAÇÃO!

— O que você ach… Ah!

Ela tem a decência de ficar sem jeito e não olhar para mim.

— É melhor você ir!


— Pati…

— Eu tenho um aluno agora, outra hora a gente conversa! — falo,


rezando para ela sair logo da minha frente antes de eu me humilhar
ainda mais.

— Se você prefere assim — ela diz. — Eu vou.

Helena me encara por mais meio segundo e sai.

Não faço nem ideia do que se passa na sua cabeça, mas na


minha parece que passou um furacão.

Não queria me sentir assim, só queria me livrar dessa confusão


de sentimentos e seguir meu dia em paz. Em vez disso, sinto as
lágrimas rolando pelo meu rosto contra minha vontade.

Eu estou chorando?

Não!

Não vou chorar por uma coisa tão besta. De jeito nenhum!
Enxugo as lágrimas na munhequeira e me recomponho. Ainda tenho
uma aula pela frente.

Graças a Deus meu aluno logo chega, e pela hora seguinte não
penso em nada mais que não seja o treino. Deixo boa parte da
minha raiva e frustração na quadra.

Quando chego em casa, me sinto mais calma.

Tomo um banho, visto um short e o moletom mais velho do meu


guarda-roupa e me jogo no sofá. Acho que o rabugento do Guga
sente pena de mim e se deita no meu colo sem eu precisar me
humilhar por atenção. Acaricio as orelhinhas peludas dele.

Embora eu tente, não consigo fugir dos acontecimentos dessa


tarde. Eles simplesmente tomam conta dos meus pensamentos.
Eu me deixei levar pelas circunstâncias, pela proximidade da
Helena e por esse namoro de mentira. Confundi ficção e realidade e
acreditei que pudesse ter algo acontecendo de verdade entre a
gente.

Como deixei isso acontecer?

Só porque ela foi gentil comigo uma ou duas vezes, demonstrou


algum interesse pela minha vida, me mandou chocolate, segurou
minha mão, enfrentou minha mãe, me fez alguns elogios sinceros e
me beijou com aqueles lábios deliciosos?

Pensando bem… A culpa é dela por ser tão boa atriz!

Também é culpa dela eu estar aqui nessa miséria, remoendo toda


essa história num círculo infinito de lamúrias e arrependimento e
lembrando daquele maldito beijo toda vez que fecho os olhos.

E quando não fecho também!

Sei que só tem uma coisa no mundo capaz de me ajudar a


recuperar minha paz de espírito. Então pego meu celular e mando
uma mensagem para o Pepa.

◆◆◆

São seis da manhã e só agora o dia começa a amanhecer. Não


tenho certeza se eu cheguei a dormir essa noite, mas já estou de pé,
na praia, sentindo a areia entre os meus dedos e com minha prancha
sob o braço.

Não é a melhor época e nem o melhor dia para estar na água. Na


verdade, o dia está péssimo, com muito vento e garoa, mas eu não
ligo. Preciso surfar.

Pepa tenta me convencer a não entrar na água, mas não escuto.


Quando vejo, ele está na minha cola.
— O que aconteceu, feia? Você e a MILF brigaram? — ele
pergunta enquanto remamos para o fundo.

— Não, não aconteceu nada.

E é esse meu problema, penso.

— Uhum — ele diz, sem acreditar muito em mim. — Então por


que você tá com essa cara de velório?

Dou de ombros, realmente não sei o que falar para ele.

— Só tô a fim de surfar, só isso!

— Sei. Vamos ver se uns caldos melhoram esse humor aí… Oh


lá, tá vindo uma grandona!

— Essa é sua! — digo.

Pepa começa a remar na direção da onda que está se formando.


Deixo ela passar, porque era esse o momento que eu estava
esperando quando vim pra cá: apenas eu, minha prancha e o mar.

Ainda mais hoje que o mar está vazio.

Espero paciente pela onda certa, sem nenhuma pressa. Quando


ela aparece, não só é a certa como também uma das maiores que já
surfei.

Sinto a adrenalina subindo instantaneamente.

O mar não está fácil hoje, mas coloco toda a energia na remada e
chego nela bem a tempo, começo o dropping e logo consigo
executar algumas manobras. De repente, na minha cabeça, existe só
esse momento.

Nado de novo com o Pepa para além da rebentação. Ele


comemora comigo.
— Tá quebrando muito, feia!

— Você viu aquele aéreo?

— Aéreo top! A rasgada também foi irada.

— Foi demais!

Vejo mais uma boa onda se formando.

— Posso cair? — pergunto.

— Manda ver, gata.

Remo para a onda, me sentindo mais livre e confiante, começo a


descer e está tudo incrível, tento dar uma primeira rasgada e…

— PATI???

É a última coisa que escuto.


21.
Helena

Acabo de deixar as crianças na escola e estou a caminho da


empresa quando me dou conta que estou há apenas algumas
quadras do apartamento da Pati. Penso em passar lá e me desculpar
por ontem.

Não, melhor não.

É uma ideia estúpida. Ficou claro que ela não quer me ver tão
cedo, e acho que talvez seja uma boa ideia começar a respeitar as
vontades dela também. Creio que a Pati tenha razão em estar
irritada. Eu não posso sair beijando ela sem avisar. Embora eu tenha
tido a impressão de que poderia.

Merda, odeio ficar assim confusa.

O fato é que desde ontem estou me sentindo mal com essa


história e não consigo pensar em um jeito de me desculpar.

Assim que a porta do elevador da Tennis&Co. abre, Amanda


praticamente pula no meu pescoço, lendo toda a minha agenda do
dia.

Que inferno, guria, será que você não está vendo que eu preciso
de espaço?

Jogo a minha bolsa da Fendi na direção dela, e Amanda se


esforça para pegar no ar, nem assim ela para de tagarelar por um
único segundo.

— … e às 10h30 tem a reunião com os acionistas, às 13h…


— Amanda — digo, interrompendo-a —, se você falar mais uma
única palavra pelas próximas cinco horas, você pode mandar seu
currículo para o Vitor Pfuetzenreiter porque eu vou te demitir!

— Hm… o-ok.

Levanto o dedo em sinal de alerta. Ela arregala os olhos e dessa


vez apenas assente com a cabeça.

Bem melhor.

Assim que entro no meu escritório, deixo o corpo afundar na


cadeira. Coloco o celular no modo não perturbe por alguns minutos,
levo as mãos às têmporas e massageio com cuidado.

Não tenho nem tempo de respirar direito e essa bosta de telefone


já está tocando.

Eu vou demitir a Amanda!

Não sei por que não fiz ainda.

Mesmo contrariada, atendo:

— É melhor alguém ter morrido para você estar me


interrompendo.

— Hm, Helena, me desculpa, é, hm, é uma emergência. É um tal


de Pepa. Ele disse que não estava conseguindo no seu celular…

Um pressentimento ruim me atinge antes mesmo que ela conclua


a frase.

◆◆◆

Logo que chego no hospital, dou de cara com o Pepa sentado na


recepção, assim que me vê, ele se levanta e vem ao meu encontro.
— Teve mais alguma notícia? — pergunto aflita.

— Eles levaram ela agora pouco pra tomografia, a moça disse


que pode demorar um pouco até sair o resultado.

— Tomografia?

— Ela desmaiou com a pancada, a prancha bateu na parte de


trás da cabeça, por isso ela se afogou.

— O que diabos vocês estavam fazendo, surfando num dia como


hoje? Você tem titica na cabeça?

— Eu tentei falar pra ela que o tempo não tava bom, mas ela
disse que precisava surfar e que iria de qualquer forma, aí achei
melhor ir com ela.

Sinto uma fisgada de culpa me acertando. Será que ela falou isso
por causa de ontem? O que teria acontecido se o Pepa não tivesse
ido com ela?

Maldição! Por que eu tenho que ser sempre tão impulsiva?

Sem nem perceber, levo a mão ao braço de Pepa.

— Obrigada por salvar ela.

— Pô, ela é minha melhor amiga! — ele diz e posso ver como
está preocupado, nunca o vi assim sério antes.

— E os médicos falaram mais alguma coisa?

— O médico falou que eles precisam descobrir se não teve uma


lesão interna ou coisa assim.

Me sinto impaciente e impotente. Olho o relógio, 8h40 já.

— Você tem algum compromisso agora?


— Hm, tenho que trabalhar, mas já avisei que iria me atrasar.

— Tá, se você quiser, pode ir, eu fico aqui e te aviso quando tiver
notícias.

— Mas avisa mesmo? — ele pergunta, sério.

— Aviso, eu prometo.

— Tá bem — ele diz e me puxa para um abraço de lado e planta


um beijo na minha cabeça. Tenho que engolir o nó que se forma na
minha garganta. — Eu vou então.

Assim ​que Pepa sai, me sento em uma das cadeiras da recepção


e mando uma mensagem para Amanda cancelar todos os meus
compromissos com a Tennis&Co. Depois ligo para Lara para contar o
que aconteceu e pedir para ela buscar o Júlio e a Júlia no colégio e
almoçar com eles, já que aqui parece que vai demorar. Também
peço para ela me substituir em uma reunião que teria à tarde no
Grupo Lancellotti.

Espero por quase uma hora sem nenhuma novidade. Apenas um


médico me avisa que ela foi levada para o quarto, mas ainda não
pode receber visitas.

— Lena! — escuto a voz da Luísa e vejo ela e a Sofia vindo na


minha direção.

Me levanto para abraçar a minha irmã, e então a Sofia.

— Alguma novidade?

— Nenhuma ainda.

— O Pepa me contou mais ou menos o que aconteceu — Sofia


diz. — Mas ele não conseguiu ver a hora que a prancha bateu nela,
vamos torcer para que não tenha sido grave.
— Eles ainda não têm o laudo da tomografia — falo. — Mas é pra
sair a qualquer momento.

— E você precisa de alguma coisa? — Luísa pergunta.

— Na verdade, sim. A Pati obviamente não vai poder treinar com


a Juju hoje, mas a Elisa, a babá deles, só pode ficar até as 16h. Se
por acaso a Pati ainda estiver aqui, vocês podem ficar com eles um
tempo?

— Claro! — Sofia diz. — Aliás, se você quiser dispensar a babá,


a gente fica a tarde toda com eles. Eles devem estar preocupados
também.

— É, boa! — Luísa concorda.

— Obrigada! …Ah! O médico que falei antes. Alguma novidade?


— pergunto antes mesmo de ele se aproximar.

— Bom dia, bom dia — ele cumprimenta Luísa e Sofia, então se


vira para mim: — O impacto foi realmente forte, mas ela sofreu
apenas uma concussão cerebral leve e deve se recuperar sem
nenhuma sequela mais séria.

Solto o ar que nem tinha percebido que estava prendendo. Sinto


a mão da Luísa nas minhas costas, num gesto de apoio.

— Em relação ao afogamento que sofreu, ela teve sorte de o


colega ser socorrista e ter agido de maneira rápida e correta. No
mais ela está bem.

— E ela vai ter que ficar aqui quanto tempo?

— Nós vamos deixá-la algumas horas em observação, mas creio


que ainda hoje ela possa receber alta. Entretanto, é de suma
importância que ela fique em repouso absoluto nos primeiros dias e
só volte às atividades normais depois de 14 dias.
— Pode deixar, eu vou amarrar ela na cama se for preciso — falo,
já prevendo a relutância dela em repousar. Nunca vi uma pessoa
com tanta energia. — E eu posso ver ela agora?

— Pode, mas é melhor que receba apenas uma visita por vez.

— Beleza — Luísa diz. — A gente já vai então, qualquer coisa


você me liga, tá?

— Uhum. Vocês podem atualizar o Pepa? Eu prometi que daria


notícias.

— Eu ligo pra ele — Sofia diz.

— Ah! — exclamo, colocando a mão na bolsa. — Podem ficar


com a minha chave. O Ju e a Juju têm a deles, mas é melhor
prevenir.

Luísa coloca a chave no bolso e me dá mais um abraço. Sofia faz


o mesmo antes de saírem.

Respiro fundo e sigo o médico até o quarto em que Pati está.


22.
Pati

Sinto gosto de água salgada na minha garganta e, em um


movimento brusco, consigo cuspir toda a água para fora.

Abro os olhos e vejo Pepa, praticamente em cima de mim com


cara de preocupação.

— O que…? — não consigo elaborar o fim da frase.

— A prancha bateu na sua cabeça e você apagou!

Pepa está branco como uma vela e é a primeira vez na vida que
o vejo tão sério. De repente, percebo a areia sob meu corpo e o
barulho das ondas estourando e me lembro de que eu estou na praia
e, pelo que parece, levei um caldo.

— Não me diz que você fez boca a boca comigo?

Ele solta uma risada, mas confirma.

— Era isso ou morrer afogada, feia!

Tento me sentar, mas fico zonza. Escuto Pepa falar alguma coisa
antes de tudo escurecer de novo.

Dessa vez, acordo em uma sala branca.

Espera, eu não estava na praia?

Uma luz forte machuca meus olhos.

Olho em volta e percebo que estou sozinha. Cadê o Pepa? Ele


não estava comigo? Será que eu sonhei?
Consigo ouvir vozes no lado de fora, depois de… não sei, depois
de um tempo, uma mulher loira entra, ela tem uma blusa verde-claro.

Ela pergunta como estou me sentindo.

— Tô bem, eu acho. Um pouco tonta.

— Que bom — ela diz. — A tontura e a confusão mental podem


permanecer por um tempo ainda, já que você levou uma pancada
muito forte na cabeça.

— Ah.

Acho que o Pepa já me falou isso. Não?

— Você vai precisar passar por uma tomografia agora.

— Vou?

Tomografia? Eu estou em um hospital? Eu não estava na praia?

Depois da tomografia, me levam para um quarto e me avisam que


vou precisar ficar algumas horas em observação. Não sei o que me
deram, mas deve ser forte porque logo pego no sono.

Acordo mais uma vez. Já perdi as contas de quantas vezes isso


aconteceu ao longo desse dia.

Se é que ainda é o mesmo dia.

— Você acordou!

Eu conheço essa voz.

Viro a cabeça para o lado e dou de cara com a Helena sentada


na poltrona ao lado da minha cama.

Deus, como ela está linda.


Um segundo depois já está ao meu lado, segurando minha mão,
ao mesmo tempo que com a outra, ela passa o lado de fora dos
dedos pelo meu rosto em um carinho cuidadoso.

— Tá sentindo alguma coisa?

— Hm, minha cabeça! O que aconteceu?

— A prancha acertou a sua cabeça e você se afogou.

— Ah, é verdade.

Eu acho que eu já sabia disso.

— O que você estava pensando em surfar em um dia como hoje?

— Acho que eu não tava — digo, tentando me sentar na cama.

— Espera, espera — ela diz, usando a mão que estava no meu


rosto para segurar meu ombro e impedir o movimento. — Você tem
que repousar.

— Eu não posso, eu tenho aula agora… que horas são?

Ela não me responde o horário, apenas balança a cabeça e tem


um sorriso incrédulo.

— Você não pode trabalhar assim. Eu já avisei todos os seus


alunos do dia, A Juju sabia o nome da maioria e pedi para Amanda
descobrir o telefone e entrar em contato com eles. O resto a gente
avisa depois.

— Quem é Amanda?

— Minha assistente.

— Ela é bonita?

— O quê?
— Ela é bonita?

— Não sei, nunca reparei muito, por quê?

— Mais bonita do que eu?

Helena solta uma risada, ou talvez esteja mais para uma


gargalhada.

— Uma das médicas me disse que você teria certa confusão


mental, mas não achei que seria assim — ela diz, ainda rindo. — E
não, ela não é mais bonita que você! Até porque seria bem difícil de
achar.

Sinto o meu rosto esquentando. Será que é efeito colateral?

— Quanto tempo eu dormi? — pergunto.

— Não sei, eles só liberaram a visita há pouco mais de uma hora.

— Há quanto tempo me trouxeram para cá?

— Umas seis horas.

— Você está aqui esse tempo todo?

— Uhum.

Ela ainda segura uma das minhas mãos e sinto o seu polegar
acariciando a minha pele.

— Cadê o Ju e a Juju?

— Em casa com a Luísa e a Sofia. Eles ficaram preocupados


com você.

— Ah, você acordou — uma mulher que eu não conheço, diz ao


entrar no quarto.

Ela tem um estetoscópio no pescoço, então acho que é a médica.


— Eu sou a doutora Letícia Albuquerque — ela explica com um
sorriso polido. — Como você está se sentindo — pergunta, pegando
meu braço (o que a Helena não está segurando) para medir minha
pressão.

— Hm, como se eu tivesse batido a cabeça.

— E você lembra o que aconteceu?

— A Helena me disse que eu tomei um caldo e a prancha bateu


na minha cabeça, mas eu não lembro.

— E você sabe o seu nome?

— Patrícia Borges.

— Uhum. Onde estamos? — ela pergunta colocando uma mini


lanterna nos meus olhos. — Olha para a minha mão.

Ela ergue a outra mão na minha frente e tento focar o olhar ali.

— Floripa — respondo a pergunta. — Em um hospital, não sei


qual.

Antes da próxima pergunta, ela me faz abrir a boca e examina a


minha garganta.

— Que data é hoje? — pergunta depois.

Tento ignorar o gosto ruim de palito de madeira,

— Hm, oito de junho de 2024?

— Isso aí! — ela diz com certo incentivo. — Tirando a amnésia


traumática, que deve ser temporária, você não sofreu nenhuma outra
sequela.

— Isso quer dizer que eu posso ir embora?


Ela faz uma cara que lembra um pouco a minha mãe antes de me
dar algum sermão.

— Você receberá alta hoje — ela diz com cautela. — Mas terá
que ficar em repouso absoluto.

— Ela vai — Helena garante.

A médica assente com a cabeça para a Helena.

— Só vai levar mais algum tempo e daqui a pouco eu libero você,


está bem?

— Obrigada — digo para ela.

Assim que a dra. Letícia sai, Helena pergunta se eu estou com


fome, mas fico distraída com ela tirando o meu cabelo do rosto e
colocando atrás da orelha.

Se bem que agora que ela mencionou…

— Eu tô morrendo de fome!

— Acho que eles devem trazer alguma refeição antes de você


receber alta.

— Hmm, comida de hospital! — falo com ironia.

— Quando você sair daqui, eu vou atrás do que você tiver


vontade.

— Ah, não precisa, era só uma piada — respondo, me sentindo


mal-agradecida de repente. — E você comeu alguma coisa?

— Ainda não. Depois eu como.

— Helena! Você precisa comer!

— Depois eu como, relaxa, Pati.


Que mulher teimosa.

Ainda assim, fico com borboletas no estômago de saber que ela


não arredou pé do meu lado.

◆◆◆

Como ela mesma previu, eles me servem um café da tarde antes


de eu receber alta e, apesar de ter reclamado, nem estava tão ruim,
ou eu que estava com muita fome.

Por ser política do hospital, sou levada de cadeira de rodas até o


carro de Helena, o que eu acho ridículo já que bati a cabeça e não as
pernas ou a coluna, mas nem a médica, nem a Helena me dão outra
opção.

Junto com a alta, recebi um milhão de indicações médicas do que


posso comer, fazer, ouvir, assistir… É como se eu tivesse trocado de
vida com o Guga!

(O meu gato, não o jogador… infelizmente.)

De repente, só posso dormir e comer.

Nem o rádio do carro a Helena liga.

— Agora você tá exagerando.

— Ela disse nada de muitos estímulos.

— Cristo! — resmungo e volto a me encostar. — Você perdeu a


entrada.

— Que entrada?

— A da minha casa.
— Você tá maluca? Eu não vou te deixar sozinha, você vai pra
minha casa!

— É o quê?

— A médica disse para você ficar sob observação. Quem vai te


observar na sua casa? Aquele gato antipático?

— Não fala assim do Guga! — defendo, embora seja verdade. —


Eu não tinha pensado nisso.

— Eu cuido de você — ela diz, como se fosse a frase mais


normal do mundo a ser proferida por ela.

— Hm, falando nisso… Você falou com os meus pais?

Ela vira para mim.

— Ainda não, queria esperar você acordar antes.

— Eu vou ligar para minha mãe quando a gente chegar.

— Deixa que eu ligo — ela diz. — É melhor você não se estressar


muito.

Assim que chegamos a casa de Helena e atravessamos a porta,


sinto dois pares de braços me apertando com força. Júlio e Júlia
estão me abraçando pelo tronco e abraço eles de volta.

— Vão com calma vocês — Helena adverte. — Ela ainda tá meio


zonza.

— Desculpa — os dois falam, aliviando um pouquinho a pressão.

Em seguida, vejo Luísa e Sofia vindo na minha direção. As duas


são mais cuidadosas que os gêmeos, mas me abraçam também.

Helena me olha de uma forma estranha e me pego desejando


que ela também me abrace.
— Você deu um baita susto na gente, sua maluca — Luísa diz.

— Foi só um caldo!

— Um caldo que te levou pro hospital.

— Ah, preciso ligar para o Pepa, falando nisso. Acho que foi ele
que me tirou da água, não foi?

— Foi, você deu muita sorte de ele estar lá — Helena fala.

— Você tá vendo isso? — Luísa pergunta para mim de forma


teatral. — A Lena tá defendendo o Pepa! Pra você ver como o seu
“caldo” foi sério.

Solto uma risada do comentário e vejo Sofia e os gêmeos


fazerem o mesmo.

— Tá, mas deixa a guria sentar! — Helena diz, já se irritando com


todo mundo e soando bem mais como a Helena que estou
acostumada.

— Bem, já que a donzela já está sã e salva, a gente vai — Luísa


comenta. — Melhor você descansar.

Agradeço às duas, e Helena leva elas até lá fora. Ju e Juju me


enchem de perguntas e tento responder o máximo que consigo,
porque a verdade é que não me lembro de quase nada dessa
manhã. Mas lembro o que Helena me contou.

Eles pedem para ver o local em que a prancha bateu e me dou


conta de que eu também ainda não vi o estrago. A prancha bateu
meio que na lateral posterior, atrás da minha orelha direita. Levanto o
cabelo para mostrar para eles e percebo que o local está tão
sensível que até o movimento com a raiz do fio faz a lesão doer.

— NOSSA! — Júlio diz.

— Tá, tipo, meio azul, meio preto e meio verde! — Júlia completa.
— Não encosta — Helena diz, voltando para a sala e se sentando
ao meu lado. — Vocês já jantaram?

Jantaram? Que horas são?

Os dois balançam a cabeça em afirmação.

— A tia Luísa pediu pizza — Júlio diz. — Ainda tem alguns


pedaços.

— Ótimo, eu tô morrendo de fome… Pati, vou preparar um banho


pra você na minha banheira.

— Ah, não precisa — digo, envergonhada de repente.

Sei lá, também não estou tão mal assim para ser paparicada
desse jeito.

— Vocês dois fazem companhia para ela? — ela diz aos filhos,
ignorando meu protesto.

Os dois assentem mais uma vez.

— Mas sem muita pergunta e definitivamente sem videogame, ela


tem que descansar a cabeça!

— Pode deixar, tia! — Júlio diz.

Dessa vez os dois falam mais devagar e baixo e me contam


como foi a semana deles e que receberam um convite para um
aniversário aqui no condomínio domingo.

Fico feliz com isso, porque me lembro muito bem como ficaram
chateados com o episódio do aniversário do tal Enzo.

— É uma festa de 13 anos! — Juju fala como se fosse uma festa


de adulto. — Vai ser com tema de k-pop.

— E vocês gostam de k-pop?


— Mais ou menos — Júlia diz. — As minhas amigas gostam, mas
eu não conhecia antes de começar nessa escola e não entendo nada
que eles falam. A tia Helena disse que poderia estudar coreano se
eu quisesse, mas, sei lá, acho que inglês é mais importante para
jogar tênis! Eles sempre falam em inglês no fim do jogo, nunca vi
ninguém falar coreano.

— E você gosta de inglês? — pergunto.

Geralmente consigo interagir melhor com ela, mas hoje minhas


perguntas saem simples e objetivas.

— Gosto porque a nossa professora é bem legal. Mas acho um


pouco difícil.

— Eu sou melhor que ela — Júlio diz. — Mas ela é melhor que eu
em matemática!

— Assim um ajuda o outro — digo. — E vocês já compraram o


presente?

— Já! — Júlio responde. — A tia Helena levou a gente ontem à


noite no shopping pra escolher.

— E o que é?

— O banho está pronto — Helena anuncia, voltando para a sala,


antes que eles me respondam.

— Bom, depois vocês me contam.

— Vocês dois já tomaram banho? — Helena pergunta.

— Eu já! — Júlia diz.

— Eu não.

— Então, vai tomar banho, porque já tá ficando tarde. Vocês


podem jogar um pouco de videogame hoje antes de dormir porque
eu vou ter que ficar de olho na Pati.

— Eba! — Júlio diz, saltando do sofá como um raio para ir tomar


banho o mais rápido possível.

— Pera aí, guri — Helena ri da pressa dele e o segura pelo braço.


— Você não vai dar boa noite pra Pati?

Ele me olha confuso, afinal ainda é cedo para um adulto ir dormir


— quer dizer, eu acho que é, não faço nem ideia de que horas sejam
— e na certa achou que me veria de novo. Mesmo assim caminha
até mim, eu me abaixo o suficiente para ele me dar um beijo no rosto
e um abraço e me desejar boa noite. Júlia se levanta do sofá e faz o
mesmo.

Helena me acompanha até o… espera! Esse é o quarto dela. Ela


falou “minha banheira” mas por alguma razão não assimilei essa
informação.

É a segunda vez que entro no seu quarto, a primeira foi no dia da


praia que ela insistiu para eu tomar banho aqui. Aquele dia, eu
estava tão obstinada em não estragar nada e sair o mais rápido
possível do seu banheiro, que nem tive tempo de reparar no
ambiente. O quarto dela é enorme e exatamente aquilo que você
espera de uma pessoa rica: cama gigantesca com milhares de
travesseiros que parecem tão macios quanto as nuvens, tapetes que
devem custar mais que a mobília completa da minha casa, poltrona
para ler com um luminária moderna e elegante, um closet que deve
ter o tamanho do meu quarto e esse banheiro dos sonhos, que é
onde estamos agora.

— Você precisa de ajuda para, hm, tirar a roupa? — Helena


pergunta e me viro assustada para ela.

Como é?

Ela está vermelha, mas me encara como se esperasse uma


resposta. Então me dou conta que a pergunta é por causa do
acidente.
— Hm, não, não, eu consigo sozinha, obrigada.

— Eu separei um pijama pra você, mas vou deixar as coisas que


o Pepa pegou na sua casa aqui também.

— Hã?

— Eu pedi para ele passar na sua casa mais cedo e pegar


algumas coisas básicas, porque você só tinha biquíni, o traje de
Neoprene e uma saída de praia. — ela explica. — Mas não vi
nenhum pijama na bolsa que ele trouxe.

Ah! É verdade!

Antes de sair do hospital, eu vesti uma muda de roupa limpa que


certamente não é a mesma que estava usando na praia. Na hora eu
não pensei muito no assunto, apenas vesti.

— Como ele entrou?

— Ele pegou a chave no seu carro — ela explica. — E já


aproveitou e o estacionou no seu prédio, porque ainda estava na
praia. Levou a sua prancha também e deu comida pro Guga.

Parece que todo mundo teve o dia cheio por minha culpa.

— Desculpa!

— Pelo quê?

— Por atrapalhar o dia de todo mundo.

— Você não atrapalhou ninguém — ela diz. — Todo mundo


ajudou porque se importa com você.

Ela coloca a mão na base das minhas costas e faz um carinho,


reafirmando que está tudo bem. Sinto minhas pernas meio bambas e
me pergunto se tem alguma coisa a ver com a paulada que levei.
— Obrigada.

Não sei como vou viver quando as coisas voltarem ao normal


depois do nosso “término” e ela parar de sorrir para mim desse jeito.
Mas acho que é melhor não pensar nisso por ora.

— Eu, hm, eu vou deixar você tomar banho. Se precisar de


alguma coisa, pode me chamar, eu vou ficar aqui no quarto.

Apenas aceno com a cabeça e ela sai, me deixando sozinha


nesse banheiro de revista de decoração.

A banheira parece absurdamente convidativa e decido não perder


muito tempo. A água está na temperatura perfeita e recosto a cabeça
no apoio fofinho, tentando não encostar a parte lesionada. Aproveito
o banho para relaxar e tentar me lembrar do que aconteceu.

Agora me lembro que fui eu que mandei mensagem para o Pepa,


insistindo para surfar e que ele disse que o vento não estava bom,
mas ainda não lembro do resto da manhã. Entretanto, me lembro
exatamente porque eu queria tanto surfar.

Acho que não existe pancada que me fizesse esquecer do beijo


de ontem e nem da sensação dela grudada a mim. Uma pena,
porque eu era bem mais feliz na ignorância, sem saber como era
beijar Helena. Agora vou ter que saber para sempre sem poder
repetir.

Tento ignorar o sentimento ruim no meu peito e focar no banho


relaxante. Ele realmente é maravilhoso e me sinto muito melhor
depois que termino.

A toalha que Helena me empresta é a mais macia que já usei e


vejo que ela deixou uma necessaire com minhas coisas na bancada
da pia.

Tenho a impressão de que Pepa pegou absolutamente tudo que


tinha no meu banheiro, incluindo todo meu estoque de absorventes.
Ninguém pode culpá-lo por não ter boas intenções.

Separo apenas o que vou precisar agora para escovar os dentes


e hidratar meu rosto, que está bem ressecado da maresia e do ar
seco do hospital. Visto o pijama que Helena me emprestou. Ele é
macio e confortável.

Quando saio do banheiro, Helena está sentada em uma poltrona


de madeira com couro que deve ter um nome chique, mas eu não
saberia dizer.

— Tinha tudo que você precisava? — ela pergunta, erguendo os


olhos do celular para mim.

— Sim, obrigada.

Fico sem saber o que fazer com a toalha que está na minha mão.

— Pode deixar aí — ela diz, apontando com os olhos para uma


cômoda. — Eu levo pra lavanderia depois.

Mais uma vez fico sem saber o que fazer. Helena se levanta e
caminha até mim.

— Senta aí — ela diz, indicando a cama. — Deixa eu ver como tá


a sua cabeça.

Faço o que ela manda, porque, apesar de estar mais gentil


nessas últimas semanas, ela ainda é ela.

Helena tira os sapatos e se senta na cama com as pernas


cruzadas em posição de meditação.

— Posso? — ela pergunta, com a mão próxima ao meu cabelo.

— Uhum.

Ela leva uma das mãos ao meu queixo e com a outra, afasta meu
cabelo com cuidado. Novamente sinto meu rosto franzindo, porque o
simples movimento do cabelo faz a pele sensível doer.

— Ainda tá bem inchado.

Sinto uma das suas mãos tocar a minha nuca, longe da parte
lesionada.

— Você quase me matou do coração! — ela acrescenta.

— Desculpa.

Helena solta o meu queixo e me viro de frente.

Merda! Mexer a cabeça também dói!

— Da próxima vez que for fazer uma coisa estúpida dessas, não
faça!

— Sim, senhora — digo, batendo continência.

Ela me encara e percebo em seus olhos que quer falar alguma


coisa, mas não sabe como. Por fim, respira fundo e diz:

— Me desculpa por ontem — Ela desvia os olhos dos meus para


as suas mãos. — Eu deveria ter perguntado antes, você estava certa
em ficar zangada.

— Tudo bem, Helena — digo. — Eu aceitei fingir que estávamos


namorando e, enfim, namoradas se beijam…

Está na hora de eu aceitar que não é sua culpa ela não sentir o
mesmo por mim. Eu sabia que ela nunca tinha se envolvido com
mulheres, aliás, eu sabia que não se envolvia com ninguém quando
aceitei fingir. Também sabia que ela tentaria vender essa farsa a todo
custo.

A culpa foi minha por ter me iludido quando a Helena sempre foi
apenas ela mesma o tempo todo.
— Me desculpa, mesmo assim, eu prometo que não vai mais
acontecer!

Isso deveria me deixar feliz? Porque não deixa!

Devo ser muito masoquista mesmo. É a única explicação para eu


querer beijos falsos de uma mulher que não quer nada comigo.

Cria vergonha nessa cara, guria!

— Uhum.

Ela força um meio sorriso para mim e se levanta.

— Vou deixar o quarto pra você e vou ficar no de hóspedes, mas


se precisar de mim, pode me chamar.

— O quê? Não, eu fico no de hóspedes.

— A cama aqui é melhor — ela diz como se fosse algum


argumento válido.

Até porque tenho certeza absoluta de que qualquer cama nessa


casa é confortável.

— Helena, isso não faz o menor sentido.

— Você vai dormir nessa cama nem que eu tenha que te colocar
à força.

Eita!

Minhas bochechas esquentam com a imagem que meu cérebro


gerou com esse comentário.

Essa mulher não me ajuda em nada!

— Credo, como você é mandona — digo. — Mas eu não estou


com sono ainda. Posso, sei lá, ver TV, pelo menos?
— Pode.

Ela coloca o controle da TV de 900 mil polegadas, ou algo assim,


na minha mão e ajeita os travesseiros para eu me deitar. Antes de
sair, ela planta um beijo no meu rosto e sinto meu peito se acender
com o toque e o cheiro do perfume dela.

Eu tô muito fodida mesmo!


23.
Helena

Antes de tomar um banho, como duas fatias de pizza de quatro


queijos fria mesmo, porque estou com preguiça de esquentar e nem
estou mais com tanta fome.

Ju e Juju ainda estão jogando videogame e decido deixá-los jogar


mais um pouco, afinal amanhã é sábado e eles não precisam
acordar cedo.

Eu já levei minhas coisas para o quarto de hóspedes mais cedo,


então me enfio de baixo do chuveiro e tento relaxar um pouco.

Minha vontade é de dar uma surra na Pati por fazer uma coisa
estúpida dessas, como se não tivesse um monte de gente que se
importa com ela. E ainda tem coragem de fingir que não foi nada.
Insuportável, é isso que ela é. Insuportável e idiota!

Apesar disso, tem uma outra parte de mim que quer poder cuidar
dela e garantir que mais nada de ruim aconteça… nunca.

Depois do banho, visto meu pijama e vou até a sala passar um


tempo com os meus filhos, que mal vi hoje.

Júlia insiste para que eu jogue um pouco e me empresta o seu


controle. Ela tenta me ensinar as manobras e truques, e percebo que
alguns são os mesmos do Nintendo 64 que meu pai deu para a
gente quando éramos crianças. Mas, por mais que ele tenha tentado,
nenhuma de nós quatro gostávamos muito e ele quase sempre
acabava jogando sozinho ou com o Chiquinho quando ele ia lá em
casa.

Depois que ele morreu, Luísa passou a jogar com um pouco mais
de frequência, mas para ser sincera, acho que era mais para se
sentir próxima a ele do que por vontade de jogar.

Júlio me deixa vencer, mas finjo que não percebo. Jogo mais uma
partida com a Júlia, então vejo que está na hora do remédio da Pati.

Falo para os dois irem dormir em meia hora e sei que eles vão
obedecer sem eu precisar vir checar, porque, apesar de levados,
eles são muito obedientes e quando querem algo, me pedem em vez
de fazer pelas minhas costas. Dou boa noite aos dois com um beijo
na testa e, hoje, ganho um abraço apertado da Juju.

Não sei como ela sabia que era exatamente o que eu estava
precisando, mas aceito sem questionar.

◆◆◆

Dou uma batida na porta antes de entrar e escuto Pati responder.


Ela está recostada na cabeceira da minha cama assistindo alguma
coisa na TV e me sento ao lado dela com um comprimido e um copo
de água.

— Obrigada — ela diz e toma sem reclamar.

— O que você está assistindo? — pergunto, reconhecendo a


Kate Hudson e o Matthew McConaughey.

— Um Amor de Tesouro — ela diz. — Eles tão tentando achar o


tesouro da coroa Espanhola que afundou no sul da Flórida em 1700
e qualquer coisa.

Na cena seguinte, o personagem de Matthew McConaughey leva


uma paulada na cabeça e desmaia.

— É temático o filme? — pergunto, me recostando também na


cama.

— Pelo jeito — responde com uma risada. — Mas gosto de


pensar que eu seria mais esperta que ele.
— Com certeza não seria!

— Eita! Que coice!

— Ué, não foi você que resolveu surfar num dia que tinha um
ciclone extratropical passando pela costa?

— Tinha um ciclone extratropical passando por aqui hoje?

— Tinha!

— Hm. Entendo onde você quer chegar! Bom, pelo menos ele é o
herói do filme.

— Até onde me lembro, se não fosse a Kate Hudson eles não


chegariam a lugar nenhum.

— Eu vim para sua casa para ser ofendida?

— Sim! Pra aprender a não me assustar mais.

— Eu já pedi desculpas — ela diz, fazendo um biquinho que tento


ignorar. — Você vai me tratar assim até quando?

Sei que está brincando, mas o tom manhoso e a sua carinha


fazem eu me sentir um pouco culpada e com o impulso de… não,
nada. Com impulso nenhum.

— Você quer pipoca? — pergunto, mudando de assunto.

A sua expressão muda imediatamente, ela abre um sorriso e


concorda com a cabeça. Hoje está igual uma criança, você fala de
comida e ela esquece que estava triste. Impressionante.

Quando volto ao quarto, vejo que Pati pausou o filme para me


esperar, então me sento mais uma vez na cama para assistirmos o
resto juntas.
Percebo que ela ainda está com um pouco de confusão mental
porque está tendo dificuldade de acompanhar a trama, que não é tão
complicada assim, e já me perguntou cinco vezes o que está
acontecendo.

Não me preocupo muito porque a dra. Letícia já tinha me alertado


que ela poderia ficar assim algumas horas ou até alguns dias. Então
me conformo em responder várias vezes a mesma pergunta.

Pelo menos ela parece confortável. Está deitada meio de lado,


para não machucar a parte lesionada, aconchegada em um
travesseiro que separa nós duas. Tenho o impulso de fazer cafuné
nos cabelos loiros dela e preciso me controlar diversas vezes.

Eu sei que seria estranho!

Não seria?

É claro que seria.

— Quando eu era criança, queria ser uma caçadora de tesouros


— ela diz ao fim do filme, já meio sonolenta, ainda abraçada ao
travesseiro.

Por um segundo, imagino como seria se fosse eu no lugar do


travesseiro. Chacoalho a cabeça tentando me livrar desses
pensamentos intrusivos.

O que está acontecendo comigo?

— Eu consigo visualizar você vivendo no Caribe, mergulhando


atrás de navios naufragados do século XVIII — respondo, pegando o
controle para desligar a TV.

— Nem precisava ser no Caribe, poderia ser qualquer caverna


como a dos Goonies ou daquele filme que a Christina Ricci e a Anna
Chlumsky são namoradas… como era o nome mesmo?

— Caçadoras de Aventuras, e elas não eram namoradas.


— Claro que eram!

— Não, não eram.

— Bom, deveriam ser, então.

Solto uma risada e me levanto para ir ao quarto de hóspedes.

— Aonde você vai?

— Para o outro quarto, você já está quase dormindo aí.

— Por que você quer ir?

— Ué, a gente já não combinou que você vai dormir aqui?

— A cama é enorme, Helena.

— E daí?

— E daí que cabe nós duas.

Me sinto um pouco desconfortável de repente e com as


bochechas quentes.

Ela continua:

— Fica aqui comigo.

Penso um pouco na proposta. Ela deveria ficar em observação


mesmo. Vai que passa mal de noite ou coisa assim. É melhor ter
alguém para acompanhar.

— Está bem — digo. — Só vou buscar o meu travesseiro que


levei pra lá.

— Eu vou escovar os dentes — ela diz, meio sonolenta, se


levantando.

— Epa, devagar aí.


Pati cambaleia e quase cai.

Seguro-a pelo braço e pelas costas. Ela se apoia em mim. Sem


dúvidas é melhor eu ficar aqui esta noite.

— Fiquei tonta.

— Eu vou com você até o banheiro, depois pego o travesseiro.

Quando volto para o meu quarto, Pati já está praticamente


dormindo. O travesseiro que antes ela estava abraçada, agora está
na poltrona Charles Eames que fica ao lado da cama e que uso para
ler.

Tento não fazer barulho, nem movimentos muito bruscos para


não acordar ela, mas na hora que me deito na cama, ela se vira e me
abraça, da mesma forma que estava abraçada ao travesseiro
enquanto víamos o filme.

Me viro para ver se ela está acordada, mas parece imersa em


sonhos, respirando profundamente. O lado do pescoço que sofreu a
pancada está virado para cima e ela está deitada sobre o meu braço
direito.

Tento me ajeitar sem acordar ela e uso a mão para acariciar os


seus cabelos. Ela se aconchega um pouco mais, me puxando para
mais perto com a mão que está sobre o meu abdômen. Ela entrelaça
a perna na minha, eu apago as luzes no interruptor da cabeceira e
fecho os olhos também.
24.
Pati

Não consigo me lembrar da última vez que me senti tão


confortável. Ainda estou de olhos fechados, mas as memórias do dia
anterior vão voltando pouco a pouco.

Lembro do acidente, lembro da praia, lembro do hospital, lembro


de ter vindo para a casa da Helena, lembro de assistirmos ao filme,
lembro de eu ter pedido para ela ficar comigo, lembro…

Espera!

Eu pedindo para ela o quê?

Abro os olhos e vejo Helena dormindo com o rosto a milímetros


do meu. Estou abraçada a ela e nossas pernas estão entrelaçadas.
Ela tem um braço sob a minha cabeça e a outra mão me abraça pela
cintura.

Está resolvido o mistério do porquê eu dormi tão bem!

Ela parece bem mais serena dormindo e perco alguns segundos


apenas observando. Noto os detalhes do seu rosto como uma leve
cicatriz acima da sobrancelha e os cílios longos. Um sinal na lateral
do nariz, uma discreta marca de expressão em forma de curva do
lado da boca. Coisas que nunca tinha reparado antes, mas que sei
que agora que vi, nunca mais passarão despercebidas.

Três batidas na porta desviam minha atenção da mulher ao meu


lado. Depois de poucos segundos, mais três batidas.

Percebo que não tenho muita escolha senão acordá-la. Tento ser
delicada, sacudindo-a de leve.
— Helena?

— Hm?

— Helena, acorda, os gêmeos estão na porta.

Ela abre os olhos devagar e percebo que demora um pouco pra


entender a situação e lembrar que eu pedi para ela ficar aqui.

Mais três batidas, um pouco mais impacientes.

— Cristo, que horas são? — Helena pergunta.

— Umas sete, eu acho.

Ela estica o braço até o apoio lateral e pega o celular.

— 6h45!

Mais uma batida.

Meu Deus, como essas crianças são determinadas.

Helena se desvencilha de mim e se ajeita na cama.

— Entra! — ela grita.

O quê?

Eu achei que ela iria falar com eles lá fora. Me apresso para me
ajeitar também.

Escuto um clique na porta e Júlio e Júlia entram, ele segurando


uma bandeja. Posso ver pela cara da Júlia a satisfação de saber que
eu finalmente dormi aqui depois de eles pedirem tanto.

Tadinha, mal sabe ela que foi só por causa do acidente.

— O que é isso tudo? — Helena pergunta.


Me espreguiço e percebo que minha cabeça dói bem menos hoje.

— Café da manhã! — Júlio diz.

— Foi a gente que fez — Júlia completa.

Como são fofos, meu Deus!

— Uau — digo, olhando para a bandeja cheia.

Tem frutas, suco e alguma coisa pastosa que prefiro não tentar
identificar, mas acho que é mingau… ou um creme de tofu. Talvez
seja canjica.

— O que é isso? — Helena pergunta, apontando para a pasta


não identificada.

— Ovos mexidos — Júlia informa toda orgulhosa.

Como?

Como que eles deixaram os ovos com essa consistência?

Bem, acho que o que vale é a intenção.

— Hm, que delícia — Helena diz com um sorriso gentil. — Vocês


já comeram?

— Uhum! — Júlio responde. — A gente acordou bem cedo!

— Você tá melhor, tia Pati?

— Muito melhor, Juju, obrigada!

— Como vocês sabiam que eu estava aqui? — Helena pergunta


fisgando um pedaço de mamão.

— A gente olhou no quarto de hóspedes primeiro.


Esses dois aí colocam a Lindsay Lohan no chinelo nessa
Operação Cupido.

— Vocês querem comer com a gente? — Helena pergunta e torço


para eles aceitarem, assim pelo menos o clima não vai ficar estranho
entre a gente.

— Podemos? — ambos perguntam esperançosos.

Ai que vontade de apertar eles.

— Claro, meu amor! — Helena responde.

Os dois dão um jeito de se acomodar na cama com a gente, Júlia


ao meu lado e Júlio ao lado da Helena.

Eu pego um copo de suco e tomo um gole generoso. Ambas


desviamos cuidadosamente dos “ovos” e comemos o resto. Helena
liga a TV e entrega o controle na minha mão.

— Escolhe alguma coisa aí.

— Vocês gostam de Lilo & Stitch?

— Eu nunca vi — Júlio diz e Júlia confirma.

— O quê? Nunca? Nunquinha?

Eles balançam a cabeça em negação.

— Vamos corrigir isso agora mesmo então.

Dou play no filme e Júlia se aconchega em mim para assistir e


vejo Júlio fazer o mesmo na Helena. Apesar da cama ser imensa e
ter espaço de sobra para todo mundo, Helena se aproxima ainda
mais de mim.

Sinto uma sensação estranha. Ao mesmo tempo que não me


lembro de me sentir tão feliz, sei que é tudo falso e que não pertenço
a essa vida, não de verdade, e que tudo isso vai se desfazer em
duas semanas, depois da tal festa.

Quando eu aceitei participar dessa farsa com a Helena, não


imaginei nem por um minuto que encontraria nela aquilo que eu
sempre estive procurando.

Na metade do filme, Júlio, que está na outra ponta, tira a bandeja


e coloca na cômoda e todos nos aconchegamos um pouco mais.

Fico feliz com a escolha, porque Ju e Juju parecem estar


adorando. Júlio acha especialmente incrível a cena em que eles
estão surfando e vê a Lilo surfando na prancha de longboard com a
Nani assim como eu e ele fizemos.

Em todas as cenas que a Nani ou a Lilo mencionam a perda dos


pais, sinto Helena se remexer um pouco. Sei que esse assunto é
delicado e que ela esconde o quanto ainda a machuca.

Levo a minha mão até a sua e ela não pensa duas vezes antes
de entrelaçar nossos dedos.

É um filme engraçado.

Hilário até.

Então por que estamos todos a ponto de chorar?

No final, enquanto Stitch faz seu discurso sobre Ohana, Ju e Juju


parecem entender a mensagem melhor que qualquer um, e sinto
Júlia me apertando um pouco mais forte. Mas eu também entendo!
Entendo melhor do que gostaria de admitir e sinto uma sensação
triste em saber exatamente a que família eu gostaria de pertencer.

◆◆◆

Passamos a manhã toda juntos assistindo a desenhos, jogando


Jenga, conversando e apenas relaxando nesse sábado fresco de sol.
Perto do meio-dia, Pepa aparece para me visitar. Dou um abraço
apertado nele, porque sei que se não fosse por ele, eu estaria com
um problema bem sério agora.

— Como você tá, feia?

— Nova em folha!

— A patroa tá cuidando de você? — ele pergunta, olhando para a


Helena que, para minha total surpresa, sorri.

— Melhor do que ela merece por ser tão idiota!

— Tá vendo? É assim que ela me trata!

— Pô, mas ela tem razão, feia, você levou um baita caldo.

Ele me conta que foi ao meu apartamento hoje de manhã e deu


mais comida para o Guga e regou minhas plantas.

— Pô, o Guguinha tá deprimido com saudades de você, eu acho!

— Impossível. Aquele gato não gosta de nada nem ninguém.

— Ele gosta de você! Hoje tava lá miando todo manhoso,


enrolado na sua cama.

Oh.

Apesar de ele me esnobar, eu amo o Guga!

— Que pecado! E ele tá lá sozinho! — digo, sentindo sua falta.

— Eu tô te falando, ele te ama, só não sabe demonstrar direito.

Helena se levanta para pegar alguma coisa na cozinha.

— Querido! — digo sobre o Guga.

— Quando a gente vai conhecer ele? — Júlia pergunta.


— Quando vocês quiserem.

— Ele é o melhor amigo do meu cachorro, o Pelanka — Pepa diz.


— Quando a gente vai pro Luneta, deixa os dois com a minha mãe lá
na Penha, depois eles nunca querem se separar.

Isso é verdade. O que é muito estranho, já que o Pelanka, o


bulldog do Pepa, é o cachorro mais feliz que eu já vi, mas, por algum
motivo, o Guga adora ele. Mesmo odiando todos os outros
cachorros.

— Você chama o seu cachorro de Pelanka? — Júlio pergunta.

— Chamo, porque ele é pelancudo!

Os dois caem na gargalhada.

Helena volta com uma jarra de suco e oferece para todo mundo,
e Pepa passa mais algum tempo com a gente. Depois que ele sai,
decidimos pedir comida em vez de sair para comer.

Nós nem acabamos de almoçar ainda quando a campainha toca


de novo. Quando Helena abre a porta, vejo a minha mãe.

Eu não falo com ela desde a nossa última conversa lá em casa.


25.
Helena

Susana está segurando uma cuca e me cumprimenta com


educação, bem diferente da primeira vez que nos vimos. Os olhos
dela desviam dos meus e encontram os da filha, consigo ver que
estão um pouco marejados.

Ontem a noite, assim que chegamos em casa, liguei para ela


para contar o que tinha acontecido e que Pati estava bem, porém em
repouso absoluto, e a convidei para vir visitá-la.

Pelo que pude entender, elas não se falavam desde aquele dia na
casa da Pati e pude notar que estava arrependida da maneira que
haviam deixado as coisas. Ela não hesitou nem um segundo antes
de aceitar o convite.

Eu realmente espero que façam as pazes. Sei que a relação


delas não será perfeita do dia para a noite e que a mãe da Pati disse
um monte de absurdos, mas espero que esse acidente possa servir
para elas voltarem a ficar bem uma com a outra. Espero ter facilitado
pelo menos isso para a Pati, já que elas brigaram por minha causa.

As duas não falam nada por alguns segundos, então Susana me


entrega a cuca para poder abraçar a filha.

Elas ficam abraçadas um tempo e eu caminho até os meus filhos


também.

— Você tá bem? — Susana pergunta.

— Tô, foi só um susto.

— A Helena me disse que você esteve no hospital.


— Ah, era só procedimento padrão, eu tô bem, eu juro.

Não desminto a Pati, porque como mãe, sei que ela só vai ficar
mais preocupada.

— O seu pai está em Blumenau desde ontem, só volta amanhã.


Mas ele disse que vem te visitar assim que voltar, e a vó mandou
essa cuca — ela diz, procurando a cuca, que coloquei na mesa de
centro, com os olhos.

— Bom, vamos servir como sobremesa, então — falo.

— Obrigada — Susana diz.

— Mãe, esses são o Ju e a Juju — escuto Pati falar antes de eu


entrar na cozinha.

Quando volto, os dois estão enchendo a mulher com histórias da


Pati no Luneta e nos treinos de tênis, pelo menos, ela parece se
divertir. Percebo que a relação delas não é próxima mesmo e que a
mãe de Pati não sabe muito sobre a vida da filha.

Ao mesmo tempo que entendo, porque eu tinha uma relação


meio conturbada com a minha mãe também, hoje em dia eu me
arrependo de várias coisas, mesmo sabendo que ela era uma
pessoa difícil e que a culpa não era só minha.

Susana fica algumas horas com a gente e, assim que ela vai
embora, percebo o sorriso estampando o rosto da Pati.

— Não foi tão ruim, não é? — pergunto, me sentando ao lado


dela no futon da varanda.

Ju e Juju estão concentrados montando um lego na mesa ao


lado. Acho que vai ser um navio pirata ou talvez um castelo, não sei.
Mas tenho certeza de que depois eles vão me explicar detalhe por
detalhe da obra deles.
— Foi muito bom, eu acho — ela diz com aquele sorriso doce que
só ela tem. — Obrigada por ter chamado ela aqui.

— Foi nada — digo. — Acho que ela nem me odeia mais.

Pati solta uma risada.

— É verdade, mas antes que você fique muito convencida, acho


que os méritos disso não são seus, são do Ju e da Juju que
conquistaram a véia.

É verdade, eles quase não pararam de falar, mas a Susana


parecia bem interessada e sorridente com eles.

— O importante é que minha sogra gosta de mim.

Vejo o sorriso dela esmorecer um pouco e fico imaginando se


disse alguma besteira. Era só uma piada, eu sei que ela não é a
minha sogra de verdade.

Decido mudar de assunto.

— Essa semana, vou resolver a questão dos vestidos do MASP


Gala e como você está de repouso, vou escolher o seu vestido por
você!

— Não escolhe nada que tenha muitas partes ou que eu fique


parecendo empalhada dentro!

— Confia em mim — digo.

— Eu confio.

E é exatamente isso que acontece.

As duas semanas passam como um raio para mim com um


milhão de coisas para resolver antes do evento e com a Pati de
repouso. Eu, Pepa, Luísa e Sofia nos revezamos para visitá-la, não
apenas para fazer companhia, mas para ter certeza de que ela
estava mesmo de repouso.

Quanto mais o dia do evento se aproxima, mais a iminência do


nosso término me incomoda. Finalmente chego à conclusão lógica
de que só tem uma saída.

E é ela que eu pretendo seguir!


26.
Pati

— Você pode ficar com a janela — falo para Helena assim que
chegamos às nossas poltronas.

— A janela é sua.

— Eu prefiro o corredor.

Ela me olha com curiosidade, mas aceita a oferta.

— Achei que todo mundo preferisse a janela — ela comenta


enquanto se acomoda.

Apenas dou de ombros, não quero ter que falar em voz alta que
tenho medo de que essa lata de sardinha caia, e que ficar olhando
para as asas e turbo só me deixa mais ansiosa. Ainda mais para a
Helena, que até agora não descobri ter um único medo. Ela vai me
achar patética. Então apenas me sento na poltrona no corredor e
coloco meu celular no modo avião.

— Não vai ativar o modo avião? — pergunto um pouco


impaciente para Helena, que não para de digitar recomendações
para a Lara.

— Isso ainda é necessário hoje em dia? — ela pergunta, sem


desviar os olhos da tela.

— Ué, você acha que os celulares ainda viriam com essa função
se não fosse? Você quer mesmo causar uma obstrução na
comunicação do comandante com o solo?

Ela me olha com um misto de divertimento e amolação, ainda


assim atende ao meu pedido e ativa o modo avião.
— Feliz? — ela pergunta, me mostrando a tela antes de guardar
o telefone na bolsa.

— Muito! Por que será que tá demorando tanto para decolar?

— Pra quem nem queria ir a essa festa até que você tá com
bastante pressa.

— Tô com pressa para descer desse negócio.

Helena me observa por um segundo.

— Você tem tanto medo assim?

Sinto que é uma pergunta genuína, que ela não está perguntando
apenas para tirar sarro da minha cara.

— Não gosto de altura.

— Você tem coragem de surfar no meio de um ciclone, mas não


de andar de avião?

Apenas encolho os ombros e Helena solta uma risada, sacodindo


a cabeça.

O avião finalmente começa a taxiar na pista e confiro o cinto de


segurança mais uma vez. Helena me observa, mas não fala mais
nada, apenas pega a minha mão e entrelaça nossos dedos.

Milagrosamente, me sinto mais calma assim.

— Obrigada.

Ela apenas abre um sorriso gentil e leva minha mão à boca antes
de plantar um beijo no dorso, então, se vira para a janela para olhar
a paisagem.

O gesto e o formigamento que ele deixa na minha mão são a


distração perfeita para não pensar na decolagem.
◆◆◆

Helena fez reserva no Vesano, um hotel bacanudo nas


imediações da Paulista, bem perto do museu em que será a festa.

O hotel é realmente muito luxuoso e com o lobby enorme quase


todo em mármore, lustres de cristal, um milhão de funcionários e
poltronas de designers. Eu nunca nem entrei em um hotel tão chique
e, para ser sincera, me sinto o Kevin McCallister em Esqueceram de
Mim 2… Se bem que, nesse momento, eu devo estar bem mais para
Vivian Ward em Uma Linda Mulher, sendo bancada por uma
milionária. Quer dizer, exceto o fato de eu não ser prostituta… nem
tão linda quanto a Julia Roberts.

Enfim, a questão é que eu nunca estive em um lugar tão grã-fino


e me sinto em um filme.

Helena faz o check-in, enquanto nos servem com taças de


espumante de boas-vindas. Pelo jeito, a demora para fazer check-in
é só em hotel fuleiro mesmo, porque em menos de cinco minutos já
estamos subindo para o quarto.

Não demora muito para eu perceber que apesar de enorme, o


quarto só tem uma cama!

É claro que Helena não iria cometer um deslize desses e permitir


qualquer tipo de fofoca entre os funcionários de que não dormimos
na mesma cama.

Como eu não pensei nisso antes?

Agora eu não posso fazer mais nada além de rezar para que eu
sobreviva a essa noite, mesmo já sabendo como é difícil ignorar o
efeito que a proximidade dessa mulher me causa.

Tento não pensar nisso por ora e perco um tempo reparando no


quarto.
Não é que seja extraordinariamente chique, mas é
extraordinariamente confortável. E espaçoso. E elegante! A cama
king-size tem lençóis de algodão egípcio e travesseiros de plumas de
ganso. As cortinas são de linho, os tapetes kilins são persas e os
quadros são originais, pelo menos é isso que diz a revista exclusiva
do hotel que eu dei uma olhada nos três minutos que levou para a
Helena fazer o check-in.

Por conta do horário do voo, chegamos cedo em São Paulo,


então depois de desfazer as malas e mandar nossos vestidos para a
passadoria, temos o dia todo pela frente. Quer dizer, metade do dia,
porque boa parte da tarde está reservada só para fazer cabelo e
maquiagem.

Que Deus me ajude.

Descemos para tomar café da manhã no hotel num terraço tão


verde que se me colocassem aqui vendada eu jamais adivinharia
que estamos bem no centro de São Paulo. Como é a minha primeira
vez em um hotel assim grã-fino, decido relaxar e tirar algum proveito
dessa situação.

Como que lendo meus pensamentos, Helena fala:

— A gente podia aproveitar a manhã no spa do hotel, eles têm


algumas terapias muito boas. O que você acha, posso reservar?

Não acredito que me tornei mesmo a Vivian Ward.

— Acho que eu mereço depois de duas semanas sem poder


fazer nada.

Helena sinaliza para a moça elegantemente vestida e penteada


que está sempre por perto, pronta para atender cada mínimo desejo
que possamos vir a ter.

— Com certeza você merece — ela me diz com um sorriso tão


doce que é até difícil de acreditar que ela é a mesma Helena que
conheci no Luneta. — Depois do café, vamos ao spa, você pode
agendar para nós — ela diz à moça.

Enquanto isso, um garçom chega com a nossa comida: tostex


com pão de miga, queijo branco e ovos beneditinos para a Helena e
waffles com frutas e mel para mim.

Como se já não fosse comida suficiente, ele também serve uma


cesta com pães selecionados e todo tipo de acompanhamento, além
de iogurte, cereais, frutas frescas, café, chá e suco de laranja.

Comemos sem muita pressa porque ainda falta algum tempo para
o nosso horário no spa. Helena aproveita para me contar sobre os
eventos dos anos anteriores que ela participou e me conta que
costumava vir com a sua mãe quando ela era viva.

Ao mesmo tempo que Helena parece outra pessoa


completamente, assim gentil e sorridente, essa parece ser a sua
versão mais sincera. Como se por debaixo do sarcasmo e irritação
sempre tivesse existido essa outra versão escondida.

Depois do café, vamos para o spa. Helena, é claro, escolheu o


tratamento para casal.

Essa mulher não tem compaixão.

O ritual inicia com um escalda pés, depois uma esfoliação


corporal com água de alecrim, açúcar de coco e um óleo especial.

Para isso, temos que tirar as nossas roupas e colocar os biquínis


descartáveis do spa, que são minúsculos. E olha que eu estou
acostumada a estar de biquíni, mas esse aqui me deixou
desconfortável.

Por mais que eu me esforce para não olhar para a Helena, não
consigo e quando dou por mim, meus olhos estão passeando pelo
corpo dela. Não é como se eu já não a tivesse visto na praia, mas de
alguma forma, essa é uma experiência muito mais íntima.
Helena se deita na maca ao lado da minha de bruços e a
massagista cobre a sua bunda com uma toalha — que pena — e
abre o biquíni, deixando as suas costas nuas.

Um toque de leve no meu ombro faz com que eu dê um pulo.


Vejo minha massagista se esforçando para esconder o sorriso em ter
me flagrado tarando a minha “namorada”. Pelo menos ela é discreta
o suficiente para não demonstrar nenhuma outra reação.

Ela pede para eu me deitar e faz o mesmo ritual comigo.

Sinceramente, entendo por que essas mulheres ricas vivem em


spa. Eu poderia fazer isso toda semana e nunca mais teria uma
única preocupação na minha vida. É sério!

Depois da esfoliação, as terapeutas nos explicam que farão


massagem nos cabelos e cabeça com o óleo para potencializar os
efeitos regenerativos do tratamento.

— Cuidado com a nuca dela — Helena diz séria para a minha


massagista. — Ela ainda está se recuperando de uma concussão.

— Não se preocupe — a mulher responde com cordialidade.

— Não é pra tanto — digo logo.

— É claro que é, linda — Helena diz. — Você ficou inconsciente


por bastante tempo e eu sei que ainda tá roxo aí atrás.

Do que ela me chamou?

— Eu vou tomar cuidado — a massagista fala, assentindo para


Helena.

— Obrigada.

E ela toma mesmo, ainda assim é uma das experiências mais


relaxantes da minha vida. E junto com a massagem, meu cérebro
fica repetindo, como um disco furado, Helena me chamando de linda.
Meu coração fica dividido, uma parte se derretendo todo por ela e
a outra desesperada sem saber como vou fazer para superar o
nosso término de mentira.

Por fim, um lifting facial e uma drenagem corporal encerram meu


dia de princesa. Aliás, a manhã de princesa, porque a tarde tem
mais, embora para o cabelo e maquiagem, eu não esteja tão
animada.

— Olha, confesso que no começo estava achando tudo isso uma


frescura, mas a minha pele e cabelo estão bem mais brilhantes e
macios — falo assim que entramos no elevador e vejo minha
imagem no espelho.

Helena também está luminosa e ainda mais linda que o normal,


ainda mais nesse roupão branco, é até difícil tirar os olhos… e as
mãos.

— Acho que a gente podia tirar uma selfie — Helena diz,


pegando o celular do bolso do roupão.

Ela me abraça por trás e encaixa o rosto entre meu ombro e


pescoço, sinto meu corpo inteiro amolecer um pouquinho com o
contato.

Não satisfeita, ela faz mais uma foto beijando minha bochecha.
Tenho a impressão de que ela se demora um pouco mais no beijo,
talvez seja só porque estava posando para a foto, mas a respiração
dela no meu rosto me deixa até meio zonza.

Quando entramos no quarto, nossos vestidos de festa já estão lá,


impecáveis, pendurados em uma arara. Até parece que estou me
casando e não indo a uma festa.

— Se você quiser, pode tomar banho primeiro, vou aproveitar


para ligar pra Lara e falar com o Ju e a Juju.

◆◆◆
Pedimos uma salada no quarto mesmo, porque nenhuma de nós
estava com muita fome, em seguida, apesar do meu protesto, temos
que descer para fazer cabelo e maquiagem para o evento.

Esse momento é exatamente como imaginei. Chato, tedioso,


desconfortável e longo. Para a sua sorte, Helena fica pronta antes de
mim, e quando ela se levanta da cadeira ao meu lado consigo ver o
resultado.

Uau.

Ela é linda sem um grama de maquiagem, mas não vou negar


que ela está magnífica nesse momento, parece até que está indo
para o tapete vermelho do Oscar. Tirando a parte do roupão, claro.

— Vou subir e acabar de me arrumar, me encontra no quarto?

— Claro.
27.
Helena

Já estou penteada, maquiada e vestida, e nada da Pati aparecer.


O que estão fazendo com ela, afinal? Uma cirurgia plástica de última
hora?

Agora tenho que ficar aqui esperando eles terminarem de


embelezar uma pessoa que já é perfeita. Isso não faz o menor
sentido! Ela nem precisaria de maquiagem, poderia ir de cara limpa e
ainda seria mais bonita que qualquer uma naquele evento.

Odeio ter que esperar!

Por esse motivo, decido tomar um drink no bar do hotel para


passar o tempo. É sempre uma boa oportunidade para fazer
contatos.

Deixo um bilhete em cima da cama, pedindo para ela me


encontrar lá quando estiver pronta e saio.

Cruzo a recepção e desço os degraus que a separam do


sofisticado bar de pé direito duplo e paredes de vidro. Me sento ao
bar de mogno e peço um Ginger Negroni.

Como imaginei, encontro um conhecido do ramo de sapatos


masculinos que também está ali matando tempo antes de ir para o
MASP Gala.

Luciano comenta sobre a campanha da Tennis&Co. que eu e Pati


protagonizamos e que a equipe de marketing dele achou muito boa.

— O meu marqueteiro gostou muito, falou várias vezes que você


ter sido a cara da campanha trouxe um ar pessoal que favoreceu
muito a marca. Além de gerar conexão.
— Eu relutei um pouco, mas no fim, gostei do resultado.

— Agora ele está tentando me convencer a ser o garoto


propaganda da Paquito também — ele diz, se referindo à própria
marca.

Penso até que seria uma boa ideia. Ele é a representação


perfeita do público da Paquito: empresário com crise de meia idade e
senso estético lastimável.

— Você deveria fazer — digo.

Conversamos por uns dez minutos enquanto bebemos nossos


drinks. Logo, mais um conhecido se junta a nós; pelo jeito estamos
os três esperando nossas acompanhantes ficarem prontas. Olho
para o relógio no bar, impaciente com a demora da Pati, quando
Mauro, o outro cara que se juntou a nós, comenta:

— Uau! Quem é essa?

Vejo que o seu olhar está na escada, atrás de mim e me viro a


tempo de ver Pati descendo.

De repente, é como se tudo ficasse em câmera lenta e meus


olhos colam nessa figura hipnótica. Pati está simplesmente linda,
parecendo um sol brilhante no vestido dourado que escolhi.

Eu tinha um palpite de que combinaria com ela, mas não estava


preparada para essa visão!

É um vestido estilo grego com decote em V profundo frente e


costas. A saia se forma em uma silhueta evasê em camadas e uma
pequena cauda adiciona um efeito dramático.

O cabelo parcialmente preso dá um ar de princesa, ao mesmo


tempo que as mechas rebeldes e a maquiagem leve dão uma certa
naturalidade ao visual.
— É a minha namorada — respondo a Mauro, sem tirar os olhos
dela. — Eu vejo vocês lá.

Me despeço e caminho em direção a ela sem me importar que


Mauro e Luciano também a olhem. Eles podem olhar o quanto
quiserem, seria impossível não olhar, mas essa noite ela é minha!

Encontro-a na base da escadaria com um sorriso.

— Desculpa a demora — ela diz com certa timidez. — Eu não


estou ridícula, estou?

— Você está perfeita! — digo, estendendo a mão para ela, para


ajudá-la a descer os últimos degraus.

Ela abre um sorriso radiante.

Entrelaço nossos dedos e a conduzo para uma mesa já que ainda


falta uns minutos para o horário que combinei com o motorista.

— Você também não tá nada mal — ela diz, examinando meu


figurino de cima a baixo. — Esse vestido é, hm… sexy.

Sinto uma satisfação inesperada em saber que ela acha que


estou bonita, de repente, a sua opinião é a única coisa importante
nessa noite.

Meu vestido é exatamente o oposto ao dela: um longo preto, reto,


de ombro único e manga longa cujo único traço mais ousado é a
fenda profunda que deixa minha coxa esquerda totalmente à mostra.
Diferente do da Pati, meu cabelo está preso em um sleek bun.

◆◆◆

A chegada ao evento é uma espécie de tapete vermelho com


toda a pompa e circunstância que você pode imaginar, e já na
entrada paramos para posar para um monte de fotógrafos.
Tenho certa pressa de passar por aqui, sei que Pati não gosta
desse tipo de exposição, porque me lembro bem do dia da sessão de
fotos, e da minha parte, tudo que me interessa hoje é aproveitar a
noite ao lado dela. Apesar disso, não conseguimos sair dali tão
rápido quanto gostaria.

Estive nas últimas quatro edições desse evento e nunca havia


sofrido tamanho assédio. Eles não deveriam estar focando nas
celebridades? Sei que terão várias aqui hoje.

Pati me olha um pouco assustada e seguro ainda mais firme a


sua mão, mas a verdade é que eu também não esperava por isso.

O poder da fofoca não conhece mesmo limites.

— Vem comigo — sussurro no seu ouvido antes de puxá-la pela


mão até a entrada, desviando dos fotógrafos que insistem em invadir
nosso espaço.

Não me escapa a ironia de que foi por conta deste único


momento, em que os fotógrafos tirariam fotos nossas juntas, que
convenci ela a fingir que estávamos namorando até o dia do evento.

Como eu fui estúpida, meu Deus.

Não pensei nela nem por um segundo quando decidi arrastá-la


para essa farsa toda. Ainda assim ela aceitou, sem exigir nada em
troca. O mínimo que posso fazer é tentar proporcionar uma noite
agradável.

Antes do jantar, acontece uma espécie de coquetel que marca a


abertura da nova exposição no andar superior. Caminhamos pelos
corredores e paramos para ouvir a curadora falando sobre o tema
desse ano, algo como solidão social ou isolamento coletivo, não
prestei muita atenção porque Pati estava brincando com a pulseira
de brilhantes no meu braço com a mão que não está grudada à
minha.
— …não são os primeiros itens de seleção da obra, porém são
elementos de contextualização importantes…

— Você quer beber o quê? — pergunto para ela.

— Hm, não sei, o que você vai beber?

— Espumante, eu acho.

— Então eu também.

— Se você quiser outra coisa, a gente pede no bar.

— Espumante está bom.

Eu sei que ela ainda não está se sentindo à vontade. E para ser
sincera, não sei se alguém se sente à vontade nesse tipo de evento,
mas espero que logo ela relaxe e aproveite um pouco.

O garçom passa com taças de espumantes e pegamos uma cada


uma. Percebo de repente que calculei mal a situação: estou com a
minha bolsa, que contém apenas meu celular e um cartão, em uma
mão e a taça na outra. E nenhuma mão sobrando para segurar a de
Pati.

Tenho a impressão de que ela fica desapontada também.

Caminhamos pela exposição, que é bem moderna, cheia de


quadros abstratos. Eu não sou uma profunda conhecedora de arte,
embora goste muito, e confesso que tenho certa dificuldade de
compreender esse tipo de pintura.

Sou uma pessoa objetiva, gosto de bater o olho e entender. Mas


creio que a arte exista justamente para fazer pensar.

— Esse parece um galo saindo de uma chaleira gigante — Pati


comenta. — Você acha que era a intenção?

— Onde diabos você tá vendo um galo?


— Aqui — Ela contorna as linhas com a mão a uma distância
respeitosa da obra. — O bico e a crista.

— Pra mim tá mais para um sapo usando uma coroa.

— Isso não faz sentido.

— E o galo na chaleira faz?

— Talvez… — Pati diz, contrariada.

— Além do mais, o sapo com a coroa faz super sentido — digo.


— A solidão coletiva do príncipe transformado em sapo, que vive em
meio aos outros sapos sem ser igual a eles, esperando a princesa vir
beijar e salvá-lo, ah, sei lá, não estudei arte.

Ela abre um sorriso de deboche e solta uma risada da minha


cara.

Bem melhor assim, sorrindo!

— Você não me parece do tipo que se sensibiliza com o príncipe


que é transformado em sapo.

— Tenho certeza de que foi transformado por um bom motivo —


digo. — Mas, sei lá, acho que todo mundo merece um arco de
redenção.

Vejo ela segurando o riso e não sei direito no que está pensando.

— Você acha, é?

— Acho!

— Interessante! — Ela ainda está com o mesmo sorriso de


deboche, que logo dá lugar a uma franzida de nariz. — Adivinha
quem chegou? — pergunta, olhando para alguém atrás de mim.

Pela cara dela, não tenho dúvidas de quem é.


— Não preciso nem olhar, já tô sentindo o cheiro do laquê daqui.

Não demora nem dois segundos para eu ouvir meu nome sendo
emitido por aquela voz irritante e prepotente.

— Helena!

— Vitor — digo, me virando.

Ao lado dele, está um rapaz que não deve ter mais do que 25
anos. O acompanhante parece absolutamente entediado e observa
as pessoas ao seu redor, talvez procurando alguma celebridade ou
apenas tentando dissociar da figura ao seu lado.

Nem gosto do Vitor, mas acho a situação toda deprimente.

Penso que se ele se dedicasse tanto aos seus relacionamentos


como se dedica ao meu, talvez ele até conseguisse um namorado
sem precisar pagar. Afinal, tem gosto para tudo e estou certa de que
deve haver nesse país um homem que aprecie esse topete ridículo e
a ojeriza ao envelhecimento natural.

— Sempre um prazer — ele diz com seu sarcasmo costumeiro


que sinceramente, hoje não estou a fim de retribuir. — Vi que os
fotógrafos estavam interessados em vocês duas hoje.

— Deve ser por conta da campanha — digo, tentando me


esquivar dele.

— Pelo menos eles vão ter inúmeras fotos para usar quando
forem anunciar que as pombinhas se separaram.

Noto Pati desconfortável com o assunto e Vitor com um sorriso


vitorioso. Apoio minha bolsa na mesa ao meu lado, então seguro a
mão da Pati.

— E por que você acha que vamos terminar? — pergunto.


— Vocês certamente não pretendem manter essa farsa para
sempre, não é?

— Continuo sem saber do que você está falando, Vitor — digo,


começando a ficar irritada —, mas não pretendo terminar meu
namoro tão cedo.

— Tenho minhas dúvidas se a sua namoradinha pensa igual —


ele diz, olhando para Pati.

— É claro que penso — ela responde, encarando-o também.

Eu sei que ela está incomodada com a situação, e eu queria


muito que não estivéssemos passando por isso, especialmente essa
noite, mas fico feliz com o seu apoio.

Acaricio a mão sob a minha em agradecimento.

— Bom, é sempre um desprazer, Vitor — falo, com pressa. —


Vamos, linda?

Caminhamos para o mais longe possível deles.

— Que homem insuportável — digo.

— Você ainda acha que todo mundo merece um arco de


redenção?

— Acho! Quem sabe se ele estivesse mais feliz, parasse de me


encher o saco.

— Helena Lancellotti, quem te viu, quem te vê!

— O quê? Acho que todo mundo deveria ser feliz.

— E você tá muito certa — ela diz com um sorriso, depois planta


um beijo na minha bochecha. Não sei por que sou beijada, mas não
reclamo… nem um pouco. — E você tá feliz? — ela pergunta.
— Tô! — respondo e percebo que é a mais pura verdade.

— Eu também — ela responde, ainda com o mesmo sorriso.

Continuamos observando os quadros, mas logo temos que nos


dirigir a um dos mezaninos do museu, onde será servido o jantar.

As mesas são todas para seis pessoas e nos sentamos com mais
dois casais, que conheço apenas de vista.

O cardápio é todo inspirado na gastronomia brasileira e de


entrada é servido Lagostim com Abobrinha, Castanha de Caju e
Redução de Puxuri.

Sei lá o que diabos é “puxuri”, mas é o que está escrito no menu.


Até que é gostoso, mas parece demais com as comidas que a Mila
gosta… tirando a parte do lagostim.

O prato principal também é cheio de frescura, nos servem uma


releitura de Pato no Tucupi e Aligot. É gostosinho, mas prefiro a
comida do Orso.

O jantar é agradável e Pati logo engata uma conversa sobre tênis


com o casal ao seu lado. O homem joga de forma amadora e
acompanha todos os campeonatos e grand slams.

— Mas o Djoko é o maior de todos os tempos, eu não tenho


dúvidas — o cara diz com brilho nos olhos.

Para mim é caso de estudo o amor que os homens têm por


atletas. Acho que eles amam mais seus atletas preferidos do que
suas esposas.

— A maior de todos os tempos é a Serena Williams — Pati


responde com um sorriso educado. — Mas no masculino, eu prefiro
o Nadal.

Decido aproveitar que estão todos entretidos com a conversa


para checar com a Lara como estão meus filhos.
— Espera — digo, procurando com os olhos por todos os cantos.
— Onde deixei minha bolsa?

— Hã? — Pati vira para mim confusa.

— Minha bolsa, não sei onde deixei.

— Você estava com ela quando saímos da exposição?

— Acho que não, ah… deixei na galeria — digo, lembrando que


larguei em cima de uma mesa. — Eu vou lá pegar.

— Você quer que eu vá junto?

— Não precisa, fica aí — digo e planto um beijo na bochecha


dela. — Já volto.

Não demoro muito para perceber que a bolsa não está mais onde
deixei. Imagino que a equipe de segurança deva ter guardado
quando a viu ali. Caminho até um dos seguranças para perguntar se
está com eles e ele me diz que irá verificar e me retornar assim que
tiver uma resposta.

Volto para a mesa a tempo da sobremesa: uma mousse de


coalhada, caju e calda de vinho.

Cristo.

Isso tem gosto de mingau de isopor com cobertura de graxa.

O resto do jantar é tranquilo, apesar do incômodo que é termos


mais quatro pessoas na mesma mesa que nós.

◆◆◆

Logo após, há um show acústico no primeiro subsolo do museu,


mas antes de nos levantarmos da mesa para ir ao concerto, um dos
seguranças me chama:
— Helena Lancellotti? — o segurança pergunta. — A sua bolsa.

— Ah, muito obrigada — respondo enquanto abro. — Meu celular


não está aqui!

— Perdão?

— Dentro tinha meu celular e meu cartão. O cartão está aqui,


mas o celular sumiu.

— A senhora tem certeza de que estava dentro? — ele pergunta


mais por precaução do que por dúvida.

— Sim, tenho certeza. Você sabe quem a encontrou?

— Foi encontrada no chão pela nossa equipe, próximo ao


banheiro feminino.

— Entendo. Você tem um papel e uma caneta?

Ele assente e me entrega.

— Vocês podem checar as câmeras? Eu estava próxima ao


quadro “Chama Eterna que Nunca Brilhou” quando esqueci a bolsa.
— Anoto o nome do hotel e o número do quarto. — Se vocês
encontrarem alguma coisa, por favor entrem em contato comigo
neste hotel.

— Sim, senhora — ele diz, colocando a nota no bolso.

— Obrigada.

— É estranho não terem levado o cartão, você não acha? — Pati


me pergunta enquanto nos dirigimos ao primeiro subsolo.

— Sei lá, qualquer compra é fácil de rastrear e ter o dinheiro


estornado, já o celular eles podem restaurar e vender.

— Mas é estranho ter sido roubado aqui.


— Isso é mesmo. Às vezes a pessoa é cleptomaníaca.

— Você não parece muito preocupada — Pati comenta.

— Eu não vou estragar minha noite por causa disso — respondo,


pegando a mão dela mais uma vez. — Você também não precisa se
preocupar.

Ela assente com um sorriso antes de comentar:

— Parece meio cheio lá embaixo.

As cadeiras estão dispostas na frente do palco montado para a


camerata que está se apresentando.

— Podemos ficar aqui, dá para ouvir bem — sugiro, sinalizando


um dos bancos fixos do mezanino.

Me sento e puxo Pati junto pela mão. Os músicos são bons e


apenas prestamos atenção na música por algum tempo.

De repente, me dou conta de que é a primeira vez esta noite que


não estamos cercadas de pessoas ou câmeras. Pelo contrário,
estamos sozinhas aqui, e por mais que tenha desejado isso a noite
toda, agora fico sem saber o que fazer.

Quando a banda para e os aplausos cessam, por alguns


segundos há apenas o silêncio e não importa que tenha quase
seiscentas pessoas sob o mesmo teto que a gente, fica a sensação
de que o silêncio é apenas entre nós duas.

— Posso te fazer uma pergunta? — Pati me encara e noto um


certo embaraço.

— Claro.

— Por que você disse aquilo pro Vitor?

— Que era um desprazer ver ele? Ué, porque era mesmo.


— Não — ela diz, soltando uma risada nervosa. — Por que você
disse que… hm, a gente não vai terminar tão cedo?

— Oh!

— Você sabe que o nosso acordo termina hoje.

— Eu sei — digo e, de repente, sinto como se toda a minha


ansiedade tivesse sumido. — Mas eu queria que não terminasse.

Os olhos dela se fixam nos meus.

— Queria?

Encaixo minha mão no seu rosto e sussurro a alguns centímetros


da sua boca:

— Uhum.

— Eu também queria.

Não preciso ouvir mais nada antes de trazê-la para mais perto e a
beijar.

Sem falsos pretextos ou dúvidas.

Dessa vez, eu beijo de verdade os lábios que não saíram da


minha memória desde aquele dia na quadra do clube.

Se eu for sincera, desde aquele dia que saímos para jantar.


Naquele dia foi apenas um beijo rápido, mas foi o suficiente para se
fixar na minha memória e não sair mais.

Eu sei que demorei bem mais do que deveria para ser honesta
comigo mesma, mas agora que fui, não quero perder mais um único
segundo. Levo minha mão livre à sua cintura, puxando-a para ainda
mais perto.
Coloco todo meu sentimento nesse beijo e deixo que ele fale por
mim.

Pati me beija de volta com suavidade, demorando em cada


mudança de direção, experimentando minha boca sem pressa. Ela
me beija com um cuidado que nunca experimentei antes. Um beijo
que é ao mesmo tempo gentil e faminto. Intenso e zeloso.

Quando nos separamos, ela está sorrindo.

Ela está sempre sorrindo, eu sei. Mas esse sorriso… esse sorriso
é diferente. Único.

— Só para conferir… — ela diz — a gente não precisa mais fingir,


né?

Dessa vez sou eu que abro um sorriso.

— Não! — digo e puxo ela de volta para mim.

Não sei por quanto tempo nos beijamos, mas em algum


momento, Pati me solta e pergunta:

— Tem alguma razão para eu estar te beijando nesse banco


gelado em vez de naquele quarto maravilhoso que espera por nós?

Ela tem um sorriso malicioso, que me provoca uma onda de


arrepios.

— Nenhuma — digo, já me levantando e puxando-a comigo.

Vamos direto para a saída do museu, onde alguns motoristas


estão esperando. Apesar da minha pressa e ansiedade, controlo
meu instinto de beijá-la no carro mesmo. Pati não deixa claro, mas
tenho a impressão de que está desconfortável com a presença tão
próxima do motorista. Para ser sincera, não poderia me importar
menos com o que ele pensa ou deixa de pensar, mas se ela não se
sente à vontade, é claro que eu respeito.
◆◆◆

Assim que entramos no quarto, ela finalmente me beija ali mesmo


contra a porta. Pelo jeito, ela também estava ansiosa para chegar.

Deus, como eu resisti a isso por tanto tempo?

Tenho a impressão de que se ela me largar agora, eu posso


morrer aqui mesmo! Eu preciso do seu toque para continuar
existindo!

Esse pensamento me faz a puxar para ainda mais perto.

Os lábios quentes e deliciosos dela estão agora explorando o


meu pescoço e deixando um rastro de calor para trás. Seus dedos
deslizam pela minha nuca e se enterram nos meus cabelos com o
firme propósito de soltar meu coque.

Ela consegue com mais facilidade do que previ e meus cabelos


caem livres pelas costas, e vejo um sorriso de satisfação nos seus
lábios antes de eles encontrarem mais uma vez os meus.

Ela me puxa em direção a cama e suas mãos encontram o fecho


do meu vestido, ajudo-a a me livrar dele com certa pressa. Pressa
essa que termina quando chega minha vez de fazer o mesmo.

Abro o zíper lateral do vestido dela e escorrego as alças pelos


ombros. Meus olhos vão deslizando pelo seu corpo acompanhando a
peça que cai junto aos seus pés.

Ela é perfeita.

Nossos olhos se encontram mais uma vez e, uma fração de


segundo depois, nossas bocas. Sinto a pele dela contra a minha pela
primeira vez e sei que é essa a sensação que quero sentir pelo resto
da vida. Mergulho em sua boca explorando cada contorno, textura e
sabor. Ela tem gosto de mar e o cheiro de um dia de verão.
Ela é um dia de verão.

Quente e convidativo. Capaz de derreter qualquer gelo e trazer


tudo de volta à vida.

Foi isso que ela fez comigo. Sem eu nem notar.

Quando me dei conta, meu coração já estava tomado.

Suas mãos passeiam pelo meu corpo e quando chegam ao meu


quadril sinto minha pele arder e não consigo pensar em mais nada
que não seja ela, sua boca e suas mãos em mim.

Sinto como se ela tivesse ligado um botão dentro de mim,


acordado alguma coisa que estava adormecida, só esperando por
ela.

Nunca me senti assim antes, nunca desejei ninguém dessa


forma, nunca nem mesmo me importei.

Mas agora me importo, quero poder sentir todas as coisas que


nunca senti. Mais que isso, quero retribuir todas as coisas que estou
sentindo.

Quero que ela saiba!


28.
Pati

Acordo com Helena enroscada a mim e os flashes da noite


passada vão voltando um a um.

Se ela não estivesse, literalmente, respirando no meu cangote, eu


pensaria que foi um delírio. Ela ainda está dormindo sobre o meu
braço, com o rosto enfiado no meu pescoço e as pernas
entrelaçadas às minhas. Boa parte das suas costas estão
descobertas e deslizo minha mão na pele nua.

A sensação de sentir o corpo dela junto ao meu é ainda melhor


do que imaginei. Um sentimento de felicidade plena e conforto se
espalha pelo meu peito e é impossível conter o sorriso que surge.

Eu poderia ficar assim para sempre.

— Do que você tá rindo?

Como ela sabe que estou sorrindo?

— Achei que você estivesse dormindo.

— É difícil com você aí me tarando — ela responde ainda de


olhos fechados, mas sinto a musculatura do seu rosto formar um
sorriso também.

— Como você é convencida!

— Bom, se não era isso, por que você está rindo?

— Porque você parece um anjinho dormindo.

— Eu sou um anjinho — ela diz, abrindo os olhos.


Ela afasta o rosto apenas o suficiente para conseguir me olhar e,
de repente, não me sinto preparada para esses olhos castanhos
cravados em mim.

— Não tem ninguém na face da terra que iria concordar que você
é um anjinho, mas é bem desse jeitinho que eu gosto de você.

Ela sorri ainda mais e me retribui com um beijo terno na ponta do


nariz.

— Você dormiu bem? — ela pergunta, e consigo perceber uma


certa ansiedade por trás.

— Você tem mesmo dúvida?

Rolo para cima dela e não me escapa seus olhos desviando para
o meu busto quando o lençol desliza um pouquinho para baixo.

Ela fica encabulada quando percebe que foi flagrada, e fica a


coisa mais fofa vermelha.

— Só queria ter certeza.

— Nunca dormi melhor! — respondo séria que é para não deixar


dúvidas, então beijo seus lábios.

Dessa vez é Helena que rola por cima de mim invertendo nossas
posições. Reconheço o brilho nos olhos dela, mas meu estômago
ronca tão alto que quebra qualquer clima.

Ela solta uma gargalhada ao mesmo tempo que cai de costas na


cama.

— Entendido! — diz. — Café da manhã primeiro. Acho que a


gente devia pedir o café no quarto hoje. Que horas são?

— Não sei — digo, me espreguiçando.

— Cadê meu celu… Ah!


Eu já tinha esquecido que ela tinha perdido o celular e, pelo jeito,
ela também. Me estico para ver as horas no meu. Helena se
aproveita do acesso livre e traça um caminho de beijos pelas minhas
costas subindo em direção a nuca.

Essa mulher vai ser meu fim!

Assim que acendo a tela do celular, levo um susto com a


enxurrada de notificações.

Tenho dificuldade de acompanhar, ainda mais com Helena


beijando meu pescoço. Ignoro todas as mensagens e entro direto no
Twitter para tentar entender o que está acontecendo.

Logo de cara, vejo um tweet com mais de dez mil curtidas em que
há um vídeo de uma conversa por áudio no WhatsApp.

Dou play no áudio e a voz da Helena surge preenchendo o


quarto. Ela paralisa atrás de mim.

“Ah, Lara, guarda esse sermão pra você. Eu já te disse que


vamos fingir só por dois meses. Graças a Deus inclusive! Eu não ia
aguentar mais tempo que isso”

“Essa guria sorri o tempo todo. O TEMPO TODO. Parece uma


porra de uma hiena!”

“Nem posso culpar a ex dela por ter fugido com o circo! Acho que
eu faria o mesmo!”

“Pelo menos ela é fácil de manipular porque é uma trouxa que


deixa qualquer um pisar nela!”
29.
Helena

Pati me encara em silêncio absoluto enquanto os áudios que


mandei para Lara ecoam pelo quarto. Eu consigo ver a mágoa
cobrindo seus olhos.

Sinto meu coração acelerar no peito, mas dessa vez de um jeito


muito diferente do que ontem. Dessa vez, sinto como se um meteoro
estivesse a ponto de se chocar com a terra, mas eu sou a única que
pode vê-lo.

Me sinto paralisada. Não consigo correr até ela para pausar esse
monte de barbaridade que sei que disse, mesmo com todos meus
instintos me mandando fazer isso.

De que adiantaria impedir ela de ouvir? Já foi falado! Eu mesma


disse. Sei o que disse e sei que estava absolutamente equivocada.
Mesmo assim não posso retirar o que foi dito.

— Pati…

— Não! — ela diz, se levantando da cama e entrando no banheiro


com uma muda de roupa que estava na poltrona.

Ela tranca a porta antes que eu possa fazer qualquer coisa.

Não estou disposta a deixar ela sair sem ter a chance de me


explicar. Procuro uma roupa na mala e me visto enquanto ela está no
banheiro. Ela sai assim que termino de abotoar minha calça.

— Pati…

— Eu não quero falar com você.


— Você sabe que esses áudios são antigos.

— Eles são de um mês atrás, Helena!

— Então! Foi antes de eu conhecer você de verdade.

— Você já me conhecia há mais de um ano! — ela diz, enfiando


tudo na mala com força.

— Você entendeu o que eu quis dizer.

— A parte mais triste é que você realmente acha que isso é um


argumento — ela diz e se vira para mim. — Mas se você quer saber,
eu tô cagando para o que você quis dizer. A única coisa que me
importa é que essa porra tá circulando o Brasil inteiro e todo mundo
descobriu como eu sou patética antes de mim.

Vejo os olhos dela inundados de lágrimas, embora ela se esforce


muito para não as deixar cair.

— Você não é patética!

Tento me aproximar dela, mas ela me lança um olhar tão duro,


tão diferente dela, que paraliso no meio do caminho.

— Ah, desculpa, era: trouxa que deixa qualquer um pisar em


cima!

— Você sabe que eu não penso isso de verdade — tento


argumentar.

Ela fecha a mala e a coloca de pé.

— Vai pra merda, Helena! — diz e abre a porta. Antes de sair ela
se vira mais uma vez. — Eu vou te dar a oportunidade de não
precisar fugir com o circo. Eu mesma vou! E nem se atreva a me
seguir!

O que diabos acabou de acontecer?


Deixo meu corpo cair sentado na cama mais uma vez.

De repente, me dou conta de que ela realmente foi embora e que


não vai mais voltar. E é só nesse momento que entendo o tamanho
da cagada que fiz.

Sinto minha garganta se fechando e meus olhos embaçados com


as lágrimas que insistem em brotar sem a minha autorização.

Me deito na cama ainda desfeita e enterro a cabeça no


travesseiro. O cheiro de maresia invade minhas narinas e desisto de
lutar contra as lágrimas.

Meu coração se aperta no peito e sinto como se estivesse sendo


sufocada, como se tivessem tirado o meu ar.

Sei que ela não vai mais falar comigo. Não depois de ser
humilhada dessa forma.

Por que eu sou tão idiota? Por que eu insisto em fingir que não
me importo?

Fui eu que falei o nome dela aquele dia! Eu que coloquei ela
nessa situação. E se eu for sincera comigo mesma pelo menos uma
vez nessa minha vida miserável, vou admitir que falei o nome dela
porque eu queria que fosse ela!

Porque eu sempre gostei do jeito que ela traz luz para qualquer
lugar que entre, do jeito que ela sempre acha o lado positivo da
situação, do jeito que ela trata os meus filhos, do jeito que ela
sempre me tratou mesmo eu pisando nela. Do jeito que ela
conseguiu entrar no meu coração antes mesmo de eu perceber.

Não era o sorriso iluminado perfeito dela que me incomodava, era


a facilidade com que ela conseguia demonstrá-lo quando para mim
sempre foi tão difícil. E mais ainda o jeito que esse sorriso fácil fazia
eu sentir um frio na barriga.
Se eu fosse sincera comigo mesma, admitiria também que sentia
inveja de como ela não tinha medo de ser vulnerável e honesta na
frente dos outros.

A trouxa nunca foi ela nessa história.

A trouxa era eu.

Não sei por quanto tempo fico aqui, abraçada ao travesseiro dela
e às lembranças da noite passada, mas só volto a me mexer quando
o telefone do quarto toca.

Penso em ignorar, mas uma faísca de esperança de que seja a


Pati faz com que eu me levante.

— Alô?

— Senhorita Lancellotti? Aqui é a Denise, da recepção, um


senhor acabou de deixar um pacote para a senhora, posso mandar
entregar?

Hã?

Enfim, não quero pensar nisso.

— Manda.

Desligo o telefone antes do protocolo de educação com os


hóspedes.

Menos de dois minutos depois escuto uma batida na porta e


recebo a tal encomenda. Na hora que vejo o tamanho do pacote já
sei o que é.

— Obrigada — digo e fecho a porta.

Abro a pequena caixa e, por cima do meu celular, há um bilhete


“Helena, querida, encontrei seu celular no museu ontem, espero
que chegue inteiro em suas mãos.

- Vitor.”

Nesse momento não consigo nem sentir raiva dele, porque sei
que a culpa de tudo isso é apenas minha.

Amasso o papel e pego meu celular.

Assim que acendo a tela, vejo que tem mais de vinte chamadas
das minhas irmãs e muitas mais dos acionistas da Tennis&Co. Ignoro
os acionistas e abro a conversa com a Lara para ver se tem alguma
coisa a ver com o Ju e a Juju.

Dou play nos últimos áudios que ela me mandou:

“Lena, atende logo, a bolsa da Mila estourou, a Luna vai


nascer!!!”

“Volta pra cá agora.”

“Eu estou indo para o Luneta, Ju e Juju estão comigo, me avisa


assim que você estiver chegando.”

Vejo que a última mensagem é de apenas trinta minutos atrás.

Corro para arrumar minhas malas enquanto ligo para a Amanda.


Eu sei que é sábado, mas ela mesma já me ligou quinze vezes hoje
por causa do vídeo. Assim que ela atende, ignoro todos os
problemas da Tennis&Co. e peço para ela remarcar minha passagem
para o próximo horário.
30.
Pati

Consigo comprar uma passagem para o próximo voo que sai em


trinta minutos, então preciso correr para o portão de embarque.

Por sorte, o embarque está atrasado e consigo chegar na fila a


tempo. Solto um suspiro de alívio, não vou precisar ficar aqui nesse
aeroporto mais tempo, odeio essa sensação de que as pessoas
estão me encarando.

Sem saber o que fazer nessa fila, coloco as mãos nos bolsos. É o
primeiro minuto que não estou frenética desde que saí do quarto do
hotel. E até agora não tive coragem de olhar meu celular, muito
menos acessar o Twitter. Ainda assim, não consigo pensar em mais
nada que não seja isso.

À minha esquerda, duas adolescentes cochicham e riem, e tenho


a impressão de que olham para mim. Talvez seja apenas coisa da
minha cabeça, mas fico desejando que essa fila ande mais rápido.

Quando finalmente me sento no assento da janela, recosto minha


cabeça e sinto novamente vontade de chorar.

Por quê?

Por que eu deixei me iludir por essa situação?

Eu sempre soube como a Helena é e o que ela realmente pensa


de mim. Não é como se eu tivesse escutado alguma novidade.

Por que eu aceitei participar disso?

Por que eu me iludi a ponto de acreditar que ela gostasse mesmo


de mim? Ela não gosta de ninguém!
Por puro masoquismo, pego meu celular para abrir o Twitter e ler
os comentários.

Coitada da garota, além de ter que fingir foi humilhada.

No mínimo ela arrancou uma boa grana da ricaça.

Pff, nem isso eu fiz!

A autoestima de centavos pra aceitar namorar a mulher que te


humilha.

Pensa ser trouxa assim.

Eu real me mataria no lugar dela.

Deus!

A ex ter fugido com o circo foi foda. A guria deve ser mto chata
mesmo.

Achei estranho mesmo uma mulher como a Helena querer sair


com uma gratiluz sonsa dessas.

Ela tem mó cara dessas mina lesada que acha tudo lindo.

Odeio esse tipo de gente que acha que tudo se resolve com
~amor

— …favor coloque o celular no modo avião. Não é permitido


fumar e…
Fecho o aplicativo como se estivesse em chamas e abro o
WhatsApp. Ignoro todas as notificações e vou direto para a conversa
com o Pepa.

A última mensagem que ele me mandou foi há duas horas.

Pepa: Me liga quando quiser falar

Respondo apenas:

Pati: Me pega no aeroporto em uma hora.

Então coloco o celular no modo avião.

Odeio voar!

Odeio voar sozinha!

◆◆◆

Depois de uma hora que mais pareceu cinco, finalmente


aterrissamos em Floripa. Pelo menos a vista é maravilhosa.

Enquanto o avião se prepara para o pouso, é possível ver a ilha


de vários ângulos. E só de ver o mar, já começo a sentir certo
reconforto.

Assim que vejo o Pepa, corro para abraçá-lo.

Ele não faz nenhuma piadinha, não tira onda com a minha cara e
não me pergunta nada, apenas me acompanha até o seu carro e
espera que eu fale.

— A gente estava fingindo — falo assim que me sento no banco


do passageiro.

— Eu sei — ele diz. — Quer dizer, eu não sabia. Soube quando vi


o tweet.
Ele faz uma pausa, e eu apenas espero.

— Mas eu sei que você gosta dela.

— A gente passou a noite juntas — digo em um quase sussurro.

Pepa se vira para mim mais uma vez. O carro ainda estacionado
no aeroporto.

Continuo:

— Ontem ela disse que não queria mais fingir e meio que
concordamos de, sabe… namorar de verdade. Mas aí hoje…

— E vocês conversaram hoje?

— Não muito.

— Ela não pediu desculpas?

— Não, só ficou falando que os áudios eram antigos e sei lá o


quê. Eu que fui burra de achar que ela poderia sentir algo por mim.

— Sinto muito, feia!

Eu tenho a impressão de que ele quer falar alguma coisa, mas


fica quieto por um tempo. O que eu agradeço, porque não tem nada
que ele possa falar que faça eu me sentir melhor agora. Então me
puxa para um meio abraço e me dá um beijo no topo da cabeça.

O percurso até a minha casa é silencioso, mas é reconfortante


saber que ele está do meu lado.

— Você quer que eu suba? — ele pergunta quando começamos a


nos aproximar do meu prédio.

— Acho que preciso ficar sozinha um pouco.


— Se você quiser alguma coisa, me liga. E se quiser jogar uma
partida mais tarde, a gente pode ir lá no clube.

Pepa não é tenista, mas joga bem o suficiente e sei que ele
oferece o tênis porque o clima está péssimo para surfar.

— Brigada, feio.

Subo as escadas do prédio e assim que abro a porta, vejo o


Guga deitado na soleira da janela. Ele, como sempre, ignora minha
presença, mas fico feliz em vê-lo.

Largo tudo no meio da sala e vou tomar banho. Me sinto imunda,


não de sujeira exatamente, mas de humilhação. Sei que isso a água
não pode lavar, mas me sinto um pouco melhor mesmo assim.
Coloco um pijama e me jogo na cama.

Ligo a TV em um canal qualquer e vejo que está passando um


programa de skate, deixo ali apesar de não estar prestando atenção.
Logo, sinto Guga subindo na minha cama e se deitando perto de
mim.

Abraço ele e começo a chorar de novo.


31.
Helena

Sou obrigada a desligar essa merda de celular porque não paro


de receber ligações de acionistas, advogados e clientes.

Como se eu não tivesse nada mais importante com o que me


preocupar.

Por exemplo, o nascimento da minha sobrinha.

É isso.

É com isso que eu tenho que me preocupar.

Não com a Pati…

Ou com cheiro de maresia e o sorriso mais iluminado que um dia


de verão. Ou o toque e o gosto dela. A sensação do seu corpo contra
o meu. Ela naquele vestido dourado, ou mesmo com aquela blusa
ridícula dos Capibeatles, ou ela surfando, ou jogando tênis, ou
brincando com os meus filhos, ou me abraçando, ou apenas sendo
ela…

Não com a Pati que faz meu coração acelerar, meu estômago
revirar e meu cérebro apagar. E que me odeia e nunca mais vai olhar
na minha cara…

Merda! Foco, Helena!

Me concentro na estrada até o Luneta e na minha irmã e


sobrinha, não na Pa… não se atreva!

Dirijo por mais meia hora e, finalmente, o portal do Luneta surge


no horizonte e me arranca dos meus pensamentos… que não
estavam na Pati!!!

É a primeira vez, desde fevereiro, que venho para cá e apesar da


forte neblina sobre o lago, logo avisto a silhueta da sede.

É uma cabana enorme, com troncos rústicos encaixados, grandes


janelas de vidro e uma entrada imponente com portas duplas,
varanda ampla e escadaria larga. E apesar de ter sido reconstruída
ano passado, tem a mesma cara da sede que meu avô construiu nos
anos 70.

Contorno o lago e percebo que está tudo exatamente igual,


estaciono atrás da sede, bem ao lado do jipe da Luísa, que já está
aqui há uns dias. Vejo o carro da Lara umas duas vagas à esquerda.

Assim que saio do carro, Ju e Juju correm para me abraçar.

Deus, por favor, não deixe que eu chore na frente deles!

Os dois bracinhos que já nem são tão pequenos assim, me


envolvem pela cintura e tenho que me controlar muito para não
deixar as lágrimas caírem.

Pelo aperto do abraço, acho que eles já sabem, ainda assim


nenhum de nós três toca nesse assunto agora.

Quando eles me soltam, planto um beijo na testa de cada um e


pergunto:

— Ela já nasceu?

— Ainda não — Júlio diz.

— Eu nem sabia que demorava tanto! — Júlia comenta.

— Nem eu! — admito.

Os dois partos da Lara foram cesariana e foi literalmente a única


mulher que eu vi passar por trabalho de parto tão de perto. E nem foi
tão de perto assim, eu apenas visitei ela no hospital depois de cada
um deles nascer. Nós não éramos tão próximas naquela época como
somos hoje em dia.

Caminhamos até o bangalô da Mila que é uma construção até


que bastante grande de madeira com vista para o lago.

Sinceramente, não sei por que essa guria quer passar por isso
em vez de ir para um hospital com anestesia. Não importa quão
confortável seja sua casa, nunca se sabe o que pode acontecer,
ainda mais aqui, a horas do hospital mais próximo.

Mas cada um sabe de si.

Na sala, tiraram os móveis e montaram uma piscina de plástico,


dessas de criança mesmo, porque essa desmiolada insiste nessa
ideia absurda de ter um parto natural na água.

Em cima dela, estão duas mulheres: uma enfermeira e uma doula


acompanhando as contrações e a dilatação.

Murilo está sentado atrás fazendo tudo que as duas mulheres


mandam ele fazer.

E Elvira, a gata da Mila, está sobre uma estante cheia de budas e


outras estátuas indianas, observando tudo.

— Finalmente você chegou, Lena — Luísa diz, assim que me vê.

— Não posso dizer o mesmo da Luna.

— Ela entrou em trabalho de parto há quatro horas já — Lara diz.

Credo!

Graças a Deus eu não precisei passar por isso.

Mila solta um gemido de dor e as duas mulheres em cima dela


seguram a sua mão.
— Essa menina podia ter mais compaixão por você e sair logo! —
digo.

— Ela tá quase pronta — Mila anuncia.

— Ainda vai levar um bom tempo! — a doula corrige.

Mila me olha arregalada e com pânico nos olhos.

Minha filha, agora é tarde para se arrepender. Você que quis isso.

Só agora me dou conta de que está tocando uma música indiana


no aparelho de som, acho que é uma dessas músicas de ioga ou
meditação, sei lá, creio que deixe a Mila mais relaxada.

Confesso que apesar de estar toda esgualepada e gritando de


dor, ela parece feliz. Vai entender.

Fico ali mais alguns minutos, até Luísa comentar que está com
fome, então aproveito a desculpa para sair dali.

Sinceramente, já vi bem mais do que gostaria.

— Deus, esse parto tá me traumatizando — Luísa diz, assim que


ficamos sozinhas.

— Nem me fale, estou dando graças a Deus por ter adotado.

Saímos à caça de alguma coisa, que não seja de tofu, na


geladeira e armários deles, e encontramos um pote de vidro com
biscoito integral dentro. Não é lá muito bom, mas dá para o gasto.

Comemos em silêncio por alguns minutos. Percebo os olhos de


Luísa sobre mim de tempos em tempos.

Queria que ela desembuchasse logo.

— Eu já sei que fiz cagada, tá bem — digo, erguendo as mãos


em rendição. — Mas vai em frente, eu sei que você vai falar de
qualquer forma.

— E vou mesmo! Porque além de idiota, você é teimosa que nem


uma mula. Eu te avisei que ia dar merda!

— Eu sei…

— Eu achei que você tivesse aprendido alguma coisa com tudo


que aconteceu depois da morte da mamãe — ela me corta. — Não
entendo por que você tá sempre querendo provar que é mais esperta
que todo mundo.

— Pra ser sincera, nem eu.

— Foi muito vacilo fingir esse namoro pra promover a marca, e


mais vacilo ainda foi o que você fez com a Pati!

— Eu sei.

— Você leu as coisas que estão falando sobre ela no Twitter?

— Falando sobre ela???

Ainda não tive coragem de ler o que as pessoas falaram, mas


pelo alvoroço dos meus acionistas, posso imaginar que não sejam
palavras de apoio.

Mas porque diabos alguém iria falar dela!?

— Estão falando que ela deve ter espantado a ex com a


positividade tóxica dela, que ela é uma trouxa mesmo por deixar
você pisar nela, que ela deve ser insuportável porque nem a
namorada de mentira aguentou e daí pra pior.

— O que esses babacas sabem dela afinal??? — pergunto,


sentindo meu sangue ferver.

— Aquilo que você disse pra eles, sua lesada!


— Eu achei que estariam falando de mim! Fui eu que fiz a merda
toda, eu que menti!

Luísa me encara com um misto de pena e impaciência enquanto


tenta quebrar um dos biscoitos com a mão, o movimento exige muito
mais força do que um alimento deveria exigir. Quando ela consegue,
voa farelo para todo o lado.

Do que diabos esse negócio é feito? De ração?

— Estão falando de você também, é claro, mas de você é tudo


verdade — Luísa continua, sem rodeios. — Você é mesmo uma
narcisista egoísta que se aproveitou da situação para explorar uma
minoria.

Sim, sou.

E não estou nem aí para o que estão pensando de mim.

Mas sinto meu punho se cerrando em saber que estão falando da


Pati, que é a última pessoa que merece passar por isso. E que a
culpa é minha!

— Ela nunca mais vai falar comigo!

Luísa me encara, acho que vejo compaixão em seus olhos, mas a


conheço o suficiente para saber que ela não vai passar a mão na
minha cabeça. E eu prefiro assim.

— A parte da humilhação nacional é uma bosta mesmo e você


mandou muito mal, mas você sabe que, além disso, ela deve estar
achando que você não gosta dela, né? — ela me pergunta como se
fosse óbvio.

Desvio meu olhar para a minha irmã.

Como é que é?
— E eu sei que você gosta dela! — Luísa continua. — Senão não
estaria aí com essa cara miserável agora.

— Eu gosto dela — admito finalmente.

Ela se levanta do balcão que está sentada e se encosta na


bancada ao meu lado. Fico aliviada de não ter que olhá-la nos olhos
enquanto temos essa conversa.

— Eu percebi no dia da festa.

— Tão óbvio assim?

— Até a Alícia percebeu, Lena! E se a Elvira estivesse lá, teria


percebido também.

— Pelo jeito, fui mesmo a última a entender.

— Você acha que é bi? — Luísa pergunta.

— Não faço ideia — respondo, dando de ombros. — Eu não


pensei nisso ainda, pra ser sincera. Ela foi a primeira mulher com
quem eu estive… — digo, me sentindo meio desconfortável de
repente.

— Esteve? Tipo, sexualmente? — Ela pergunta e apenas


confirmo com a cabeça. — Mas que diabo de fingimento era esse?

— Só aconteceu uma vez… — explico. — Ontem, depois da


festa. Nós conversamos, eu falei para ela que não queria mais fingir,
que queria que fosse real. Mas aí hoje…

— E como foi?

Por mais estranho que pareça, o tom natural da Luísa faz meu
desconforto diminuir e vou me sentindo mais à vontade.

— Perfeito! — digo. — Eu nem sabia que podia ser tão bom. Pra
ser sincera, eu achava que nem gostava tanto assim de sexo. Não é
que tenha tido experiências péssimas ou algo assim, é só que nunca
me interessei tanto quanto o resto das pessoas parecia se interessar.
E isso nunca foi um problema.

— Sei lá, talvez você seja demi.

— Que porra é essa agora, Luísa?

— É tipo a pessoa que só sente atração sexual por pessoas que


tem uma conexão, e como eu acho que você nunca teve uma
conexão com ninguém antes…

— Você acabou de inventar isso!

Embora, a parte da conexão seja verdade. Nunca me senti assim


por outra pessoa antes. Mesmo a gente sendo tão diferente, é como
se, na prática, essa diferença se completasse.

— Não, eu juro — Ela solta uma risadinha. — Depois você


pesquisa.

— Bom, isso não importa agora, o que importa é que eu fiz merda
e a Pati nunca mais vai falar comigo!

— Eu não acho isso — Luísa faz uma pausa. — Ela deve tá


arrasada, isso é verdade, porque afinal de contas, que tipo de
pessoa apaixonada fala o que você falou?

— Uma otária que nem eu, pelo jeito!

— Mas não é verdade.

— Que eu sou uma otária?

— Não, isso é!

— Vai se ferrar, Luísa.


Ela abre um sorriso e percebo que está curtindo com a minha
cara.

— A parte do áudio, sua tonta.

— Ah!

— O que você falou nos áudios não era de verdade, era?

— Claro que não!

— Por que você faz essas coisas, Lena? — ela pergunta,


balançando a cabeça em negação.

— Você sabe como eu sou. Falei aquilo para não dar o braço a
torcer e admitir que gostava da personalidade dela.

— Você faz a sua vida ser muito difícil — ela diz, levando a mão
ao topo do nariz, como a nossa mãe fazia quando estava estressada
comigo ou com uma de nós.

— Não me diga!

— Bom, você precisa falar para ela o que sente de verdade. Ela
vai te perdoar porque apesar de toda essa situação, ela tá
apaixonada por você.

— Como você sabe disso?

— Porque eu tenho olhos!

Volto a sentir o mesmo frio na barriga que tem me acompanhado


desde o acidente da Pati.

— Vale a tentativa — digo, tentando me sentir mais otimista.

Gosto de falar com a Luísa porque ela é igual a minha mãe para
dar conselhos. Joga tudo que você fez na sua cara e depois manda
você consertar.
— Essa é a Lena que eu conheço — ela diz, se afastando da
bancada em que estamos. Planta um beijo na minha cabeça e
anuncia: — Eu vou ver se a Luna já resolveu dar o ar da graça.

Assim que Luísa sai, caminho até a varanda da casa da Mila. Me


sento em um dos bancos virado para o lago e respiro fundo antes de
pegar meu celular no bolso.

Assim que abro o WhatsApp, vejo a foto dela na praia, segurando


um coco. É a mesma foto que curti no Instagram dela no dia que
começamos com isso.

Perco algum tempo apenas olhando para o seu sorriso.

Como ela é linda!

Percebo que ela fica online no aplicativo e decido não perder


tempo. Envio uma mensagem dizendo que precisamos conversar e
espero. De repente, os dois risquinhos ficam azuis e sinto meu
coração disparar.

Alguns segundos se passam e a indicação de que ela está online


desaparece.

Resolvo ligar.

Luísa tem razão, eu preciso tentar.

Chama duas vezes antes de cair na caixa postal. Sei que isso
significa que ela desligou. Tento de novo e dessa vez nem chega a
chamar antes de cair novamente na caixa postal.

— Maldição!

— É verdade? — Escuto a voz da Júlia atrás de mim.

Me viro e vejo os dois, lado a lado na porta da varanda.

— O que, meu amor?


— Que você e a Pati brigaram — Júlio diz.

Mais uma vez, sinto o nó na garganta e apenas faço que sim com
a cabeça.

Juju se senta ao meu lado.

— Mas você gosta dela! — Júlia diz em afirmação. Como se ela


soubesse antes de mim.

Acho que sabia mesmo.

— Gosto!

— E ela gosta de você! — Júlio diz, se sentando no outro lado.

— Eu acho que sim também.

— Então por que vocês não ficam juntas?

— Porque eu fiz uma coisa errada — digo. — Falei uma coisa


que não era verdade e magoei ela.

— Então fala a verdade! — Júlio incentiva.

Eu consigo ver nos olhinhos deles que têm esperança de que


tudo dê certo, e sinto meu coração se apertando e as lágrimas
surgindo.

— Ela não quer falar comigo agora! — digo com a voz trêmula e
as lágrimas começam a escorrer.

Merda, eu jurei que não ia chorar na frente deles.

Por que eles tem que ser tão amorosos e querer me consolar?

Por mais que tente segurar, não consigo parar.

— Não chora, mamãe! — Juju diz, me abraçando.


Júlio também se junta, cada um me abraçando por um lado.

Sinto uma nova leva de lágrimas surgindo.

— Você me chamou de mamãe!

— Posso?

Tudo que consigo fazer é assentir com a cabeça e abraçar ela


com força. E o Júlio também.

Nunca na minha vida eu tinha imaginado ser mãe e agora


simplesmente não consigo pensar na ideia de não ser. Não consigo
mais nem me lembrar da minha vida sem eles. Às vezes é como se
eles sempre estivessem estado ao meu lado.

— Eu amo vocês! — digo, pela primeira vez, embora seja


verdade há muito tempo.

— A gente também te ama, mamãe! — eles falam praticamente


juntos. E me abraçam mais forte, se é que é possível.

Não sou muito supersticiosa, nem religiosa, mas gosto de pensar


que teve um dedinho da minha mãe nessa história.

— ELA VAI NASCER! Ela vai nascer!!! — Lara grita, chegando na


varanda. — … Hm, vocês estão bem? — ela pergunta ao me ver
chorando.

— Sim, sim — digo, secando as lágrimas.

Ju e Juju se levantam também, animados de repente com a ideia


de a priminha estar nascendo. Dou um beijo em cada um dos meus
filhos e digo para eles encontrarem a Sofia no parque junto com a
Alícia e o Lucas.

Eles relutam um pouco, mas vão. Eles deveriam era me


agradecer por eu poupar eles da visão traumática que é ver um parto
natural.
Por recomendação médica, não é permitido muitas pessoas
nesse momento, então estamos apenas eu, a Luísa, a Lara e, é
claro, o Murilo, além dos profissionais.

Pelos gritos dela, as contrações devem ser bem dolorosas.


Dolorosa também é a forma como a Lara aperta minha mão cada vez
que a Mila grita.

Se eu pudesse ler mentes, acho que estaria ouvindo ela


agradecer ter tido os filhos no hospital. Luísa parece absolutamente
horrorizada com toda a cena e não para de roer as unhas. Ela nunca
teve esse hábito, mas esse momento é estressante mesmo e acho
que ela deve estar desejando um cigarro. Eu sei que ela nunca mais
fumou desde que largou, mas sei também que quando fica nervosa,
tem vontade de fumar.

Já Murilo tem uma cara besta de emoção e medo ao mesmo


tempo. Pelo menos ele e a Mila concordam em tudo sobre esse parto
e tenho a impressão de que ele será um bom pai.

De repente, vejo aparecer uma cabeça sob a água.

— Ela tá saindo! — Lara anuncia.

— Pai amado! — eu exclamo.

— Isso deve doer! — Luísa diz.

— AAAAAAAAH! — Mila grita.

— O que ela está esperando? — Luísa pergunta, depois de


alguns segundos com a Luna entalada… lá.

— Ela vai sair no tempo dela — a doula diz com calma.

Vejo Mila olhar para ela arregalada. Depois do que parece horas,
mas creio que foram apenas segundos, Luna finalmente termina de
sair. Mila coloca ela sobre o peito, e Murilo abraça as duas com
cuidado.
Ela é roxa e gosmenta. Mas é tão bonitinha!

Mila está chorando, mas tem um sorriso tão grande que acho que
já esqueceu das seis horas que esse bebê sádico fez ela esperar.

Lara e Luísa também estão chorando, então me dou conta de que


eu também estou. Murilo corta o cordão umbilical e Luna fica no peito
da Mila por um tempo.

◆◆◆

Passo o resto do sábado e domingo no Luneta.

Ju e Juju estão encantados com a Luna, Mila até deixou que eles
segurassem ela um pouquinho, apesar das contraindicações da
Lara.

Mila e Lara são a prova viva de que não existe um jeito certo de
ser mãe. Porque está na cara que Mila vai ser o oposto da Lara em
quase tudo. Ainda assim não tenho dúvidas de que ambas são mães
incríveis.

Decidimos aproveitar que estamos todas aqui e fazer um luau de


boas-vindas para a Luna. Luísa e Sofia que organizam tudo com a
ajuda do Murilo e do Chiquinho… e com a desajuda das crianças.

Enquanto isso, eu e Lara ficamos com a Mila e a Luna.

— Será que é uma boa ideia? — Lara pergunta, preocupada. —


Ela acabou de nascer.

— O que que tem demais? — pergunto. — É só ouvir a Lu tocar e


se aquecer na fogueira.

— Ela não foi vacinada ainda.

— Qual a diferença de a família toda olhar para ela aqui ou ali


fora, Lara?
— Relaxa, Lara — Mila diz, tranquila, amamentando. — Vou
embrulhar ela bem e o Murilo vai montar o toldo pra ela não ficar no
sereno.

— A menina tem até nome de lua, imagina se um luau vai fazer


mal para ela — digo.

Mila solta uma risada e consigo ver que ela está cansada, mas ao
mesmo tempo, completamente hipnotizada pela filha.

— Vocês não querem descansar um pouco antes? — pergunto.


— Eu te chamo quando estiver tudo pronto.

Mila assente com a cabeça e eu e Lara deixamos elas sozinhas


no quarto da Mila e do Murilo e vamos ajudar com os preparativos.

O luau é bem tranquilo, Lara convidou Vicente para visitar e


percebo que esse romance aí é sério mesmo já que ele conheceu o
Lucas e Alícia. Fico feliz por eles, porque fazia tempo que não via a
Lara tão relaxada assim.

Luísa canta canções de ninar para a Luna enquanto as crianças


fazem marshmallow na fogueira. Apesar do momento agradável,
minha mente insiste em voltar para os acontecimentos dos últimos
dias e para a protagonista deles.

Sei que ela deveria estar aqui também, fazendo parte desse
momento comigo e com as crianças.

— Você quer um, mãe? — Júlio pergunta, me oferecendo um


marshmallow com chocolate.

Ainda não me acostumei com o meu novo nome e sinto meu


coração se derretendo e meu sorriso se abrindo.

— Não, meu amor, obrigada!

◆◆◆
Ignorei todas as ligações até essa manhã, mas agora não tenho
mais como adiar.

Respiro fundo antes da porta do elevador da Tennis&Co. se abrir.


Como sempre, Amanda já está em cima de mim.

— Helena…

— A não ser que você tenha alguma coisa boa para me falar, eu
prefiro tomar meu café primeiro. Sozinha.

Costumo sempre tomar um expresso na minha mesa antes de


começar minha agenda. E hoje não será diferente.

— Eu tenho uma ideia — ela fala.

— Para?

— Reverter a imagem da Tennis&Co.

Suspiro novamente, já cansada antes mesmo de começar.

— Bom, a não ser que a sua ideia sirva para eu recuperar minha
namorada, eu realmente prefiro tomar meu café primeiro.

— Eu acho que serve, sim.

Me viro para ela com olhos e ouvidos atentos.

Eu vou promover a Amanda!


32.
Pati

Minha segunda-feira começa como uma bela bosta.

Já logo de manhã a mãe do meu aluno resolveu me alugar por


uma hora inteira sobre o meu namoro falso antes de me demitir.

Me demitir por ter mentido sobre algo sério.

A mulher literalmente ganha a vida vendendo gel redutor de


medidas.

Quem está mentindo sobre coisa séria, Virginia?

Passei sábado e domingo inteiros no meu apartamento com o


Guga e com o meu celular desligado. Fiquei super apreensiva de que
minha mãe fosse aparecer a qualquer momento para me dar uma
baita lição de moral, a qual eu não teria nem direito a me justificar.
Mas felizmente, meu medo não se concretizou.

O que não significa que a lição de moral não virá.

Assim que ligo meu celular, há, simplesmente, vinte e três áudios
dela. Escuto todos dentro do carro, enquanto mato tempo antes do
meu próximo aluno, que eu espero que não me demita também.

Os primeiros áudios é ela preocupada com a história e querendo


saber como eu estou — o que me deixa feliz, na verdade. Os do
meio são ela me chamando de trouxa por ter caído na lábia da
Helena e ter topado esse fingimento — o que não é mentira. E os
últimos são apenas ela xingando a Helena mesmo — o que me
causa certa satisfação, não vou negar.
Saber que minha mãe tomou meu lado dessa vez, me alivia um
pouco e faço uma nota mental de ligar para ela hoje à noite.
Principalmente porque em um dos áudios ela diz para eu achar uma
mulher que goste de mim também.

Uma mulher!

Considero uma vitória ela não tentar empurrar homofobia nos


xingamentos. Tenho certa vergonha de admitir que eu chorei com
esse áudio, mas acho que boa parte tem a ver com o fato de eu estar
em estado de nervos há dois dias.

Além dos vinte e três áudios da minha mãe, tem mais oito da
minha avó.

Dou play no primeiro e o sotaque manézinho dela preenche o


meu carro:

“Minha filha, espero que tu tenhas conseguido arrrancá um bom


dinheiro dessa jaguára.”

“A Alcides disse que a neta dela disse que tu podes processar por
danos morais e tirar ainda mais”

“Tu não seja boca móli, né, tua mãe me disse que essa mulher é
um câcu mesmo.”

“Onde já se viu falar essas coisa de ti, uma querida que nunca fez
mal pruma mosca, deve de ser uma jaguára mesmo”

“Se tu precisar de alguma coisa, fala com a vó, filha, que a vó faz,
tá?”

“Queish que a vó faz aquele bolinho de cenoura que tu gosta?”

“Vem visitá a vó esse fim de semana, filha, que aí a vó faz”

“Não sei porque essa porcaria não tá funcionando pra te ligar,


mas vou ficar te esperando, tá?”
“E tansa é aquela boca móli, não tú.”

Solto uma risada com o último áudio. Por alguma razão esperava
que minha mãe e minha vó fossem me repreender, mas fico feliz em
ver que elas estão do meu lado.

Decido aceitar a proposta e visitar elas no fim de semana. Faz


tempo que não vou e acho que vai ser bom.

Mas antes disso tenho a semana inteira pela frente e hoje ainda
tenho vários treinos, inclusive o da Juju.

Já pensei várias vezes em ligar para algum colega meu pedindo


para me substituir, mas não poderia fazer isso com ela. Ela não tem
culpa de nada nessa história.

A única culpada fui eu em ter me iludido com algo que estava na


minha cara.

O segundo treino da manhã ocorre sem grandes transtornos e se


o meu aluno ficou sabendo dos eventos envolvendo meu nome, não
mencionou nada.

Ao meio-dia, encontro Pepa para almoçar no clube em que nós


dois damos aula algumas vezes na semana, ele como personal
trainer.

Hoje eu pego bastante salada e filé de frango, e ele pega… bom,


de tudo um pouco. E comemos na parte externa do restaurante,
onde geralmente é mais vazio.

— Você ainda tá com essa cara? — ele pergunta. — Você não


falou com ela?

— Não!

— Ela tentou te procurar?

— Tentou no sábado, mas não atendi, depois desliguei o telefone.


— Por quê?

— Porque me sinto uma trouxa por ter me apaixonado enquanto


ela estava só brincando comigo.

E porque eu tenho medo de falar com ela e acabar confirmando


isso. Confirmar que eu não signifiquei nada.

— Sabe por que eu nunca desconfiei que vocês estavam


fingindo?

— Porque você é um anjinho de bom coração que acredita em


todo mundo?

Ele solta uma risadinha.

— Também! Minha mãe sempre disse que eu tenho um coração


puro! — ele fala meio de brincadeira, mas sei que a mãe dele fala
isso mesmo… e é verdade. — Mas não. Não é por isso, é porque a
Helena sempre te tratou diferente do resto do pessoal do Luneta.

— Isso não é verdade.

— Claro que é, feia! Você acha que ela iria me contratar para ser
treinador dos filhos dela? Mesmo eu sendo qualificado para isso?

— Ah, mas isso é porque eu fui a dupla dela…

— E a Michelle foi da Mila, e a Betina da Lara. Você vê elas de


amizade hoje?

— Porque a Michelle é insuportável! E a Betina… bom, é a


Betina, você sabe!

— Não importa. Não importa porque elas se afastaram…


provavelmente porque não tinham nada em comum, só isso. O que
importa é que a Helena sempre deu um jeito de te manter por perto.
Eu sei também que foi ela que pediu para a Mila para você ser a
monitora dos pestinhas esse último verão.
— Como você sabe?

— Eu ouvi elas conversando na sede no dia que a Helena levou


os dois. Ela praticamente ameaçou a Mila — ele diz. — Você sabe
como ela é.

— Sinceramente, isso faz tudo ser ainda pior, porque os áudios


são do mês passado.

A ideia de ela ter vergonha de mim ou de admitir que goste de


mim para os outros me dói tanto quanto saber que ela nunca sentiu
nada por mim.

— Eu sei — ele diz e coloca a mão sobre a minha na mesa. — Eu


não tô falando pra você correr pros braços dela, porque não importa
se não foi ela que vazou os áudios, a merda tá feita igual e é você
que tá sofrendo a humilhação. Mas se te consola, eu acho que ela
estava mentindo nos áudios.

— Ela não estava, não. Eu sempre soube como ela era, eu que
sou uma masoquista de ter um crush numa mulher que pensa essas
coisas de mim.

— Ela te acha tão insuportável que escolheu justamente você


para fingir que estava namorando? Sei!

— Você tá do lado de quem, feio?

— Do seu, gata! Já disse, ela mandou malzão, e eu odeio ver


você assim, mas não quero que você fique pensando que aquelas
babaquices que ela disse são verdade. Primeiro porque não tem
nada a ver o que a Helena disse da Nanda. Ela se apaixonou pela
guria lá, pode acontecer com qualquer um, ela não fugiu de você! E
segundo que ser uma boa pessoa não é o mesmo que ser trouxa!

— Por que ela disse então?

— Na moral, Pati, você tá esperando sinceridade de uma pessoa


que não é sincera nem com ela mesma. Melhor esperar sentada! A
mulher não era nem capaz de admitir que simpatizava com você,
imagina admitir que tinha um crush. E como eu disse, se ela não é
capaz de assumir que gosta de você, é melhor ficar longe mesmo.
Mas ela não conseguir assumir é diferente de ela não sentir.

— Meu Deus, quando você ficou tão sabido de amor, moleque?

Ele encolhe os ombros e dá uma risada.

— Desde sempre, você que nunca me consultou.

— Sempre supus que você sabia o mesmo nada que eu, já que
está sempre solteiro também.

— Estava! — ele diz, erguendo as sobrancelhas de forma


sugestiva. — Eu chamei a Mariana, a mina que te falei, pra sair
ontem e foi baita massa, vamos sair hoje de novo.

— Ai meu Deus, não acredito que vou te perder pra uma


namorada — brinco, apertando as bochechas dele. — Mas eu fico
feliz por você, feio.

— Até parece que você vai se livrar de mim assim fácil.

Até que minha segunda-feira nem está tão bosta assim, no fim
das contas. Pepa e a minha família me animaram um pouco.

Terminamos de comer e, antes de ele começar com o próximo


cliente, vira e me diz:

— Mas você deveria dar uma chance.

— Hã? Chance pra quê?

— Pra ela assumir, oras!

◆◆◆
As palavras do Pepa ecoam pelos meus pensamentos à tarde
toda.

Quando meu relógio anuncia que a aula das 15h está chegando
ao fim, sinto meu corpo todo agitado. O próximo treino é o da Juju.

Será que a Helena vai estar lá?

Não sei qual ideia me deixa mais aflita, a de ela estar ou de ela
não estar!

Chego ao portão do condomínio dela e até o porteiro me olha


estranho hoje e, em vez de me cumprimentar como sempre, apenas
abre o portão com um olhar reprovador.

Eu não te fiz nada, homem!

Só de ver o Ju e a Juju faz meu coração se apertar todo e tenho


de novo vontade de chorar.

Mas me controlo.

Os dois me abraçam e, pela força, sei que eles já sabem. Apesar


disso, resolvo não tocar no assunto a não ser que eles queiram.

Hoje, Ju fica para assistir ao treino, coisa que ele não fez
nenhuma vez desde que parou de treinar também. Tenho para mim,
que eles estão com pena de mim e querem me fazer companhia.

É por isso que eu amo eles!

Durante todo o treino, não consigo parar de olhar para a direção


da casa deles que, por coincidência, é a direção da qual Helena
sempre aparece quando assisti aos treinos da Juju.

Mas nada acontece. Só aquela escrota, mãe do Enzo, que passa


por ali, me olhando como se eu fosse uma aberração.

Nada da Helena.
Nem mesmo no fim do treino, e tenho que deixar os dois com a
Elisa, que também me olha com certa pena.

Ju e Juju simplesmente não falam sobre o assunto e sinto que


minhas esperanças se reduzem a pó. Acho que o recado está dado.

Volto a ser apenas a treinadora.

Nada mais.

◆◆◆

Chego em casa com o coração partido.

Sei que ela tentou me ligar no sábado e eu não atendi, mas


naquela hora não iria conseguir falar com ela, não estava preparada.
Mas achei que ela tentaria de novo.

Não sei por que estou assim, deveria estar zangada com ela, mas
só estou triste. Toda a raiva que senti já passou e ficou só o
sentimento de perda, o que é ridículo porque a Kate Hudson tem
razão, você não pode perder o que nunca teve!

Depois do banho, me jogo na cadeira Acapulco e decido pedir um


poke. Guga se deita ao meu lado.

Meu Deus, devo estar em um estado lastimável mesmo para esse


gato estar tão afetuoso comigo esses últimos dias.

Enquanto olho o cardápio no aplicativo de delivery, aparece uma


notificação do Instagram na parte superior do meu celular:
helena.lancelloti está ao vivo.
33.
Helena

Amanda faz um sinal de joinha para mim, indicando que estou ao


vivo.

— Se você está aqui, provavelmente sabe quem eu sou — digo.


— E eu sei que você está aqui para saber por que eu fingi estar
namorando uma mulher.

Estamos na minha sala na Tennis&Co. com a Barra Norte ao


fundo. Estou sentada na cadeira de couro com os cotovelos
apoiados na mesa, e Amanda, na minha frente com meu celular em
um tripé, me filmando. Ela anota alguma coisa em um bloco do papel
e me mostra:

“Pati entrou”.

Sinto meu coração acelerar com essa informação, mas respiro


fundo e continuo:

— Tudo começou com uma Live, que eu não sabia que estava
acontecendo, então, nada mais justo do que responder em uma Live
também. E sim, eu menti naquele primeiro depoimento.

“Quem assistiu, percebeu que eu estava apenas tentando


encerrar uma conversa da qual não queria fazer parte, e não
esperava que uma mentirinha tomasse tamanha proporção.

“Mas tomou, e quando vi a repercussão e como havia


impulsionado as vendas, decidi convencer a treinadora de tênis dos
meus filhos a fingir comigo. Convencer, não. Ameaçar.

“E como certamente todos vocês que estão aqui sabem, sábado


alguns áudios que troquei com a minha irmã vazaram. Neles eu digo
que não aguentaria mais de dois meses nesse fingimento.”

Faço uma pausa antes de proferir minha próxima fala:

— E eu estou aqui para reafirmar essa informação!

Vejo Amanda arregalar os olhos e sacudir a cabeça querendo que


eu pare. Continuo:

— Eu realmente não aguentei fingir por dois meses, mal aguentei


fingir por duas semanas. Porque quanto mais tempo eu passava com
ela, mais eu queria que tudo deixasse de ser um fingimento e fosse
real!

“Quanto mais tempo eu passava com ela, mais eu percebia que


as coisas que eu pensava que me incomodavam era apenas as
coisas que faziam meu estômago se revirar de ansiedade. O que me
incomodava não era ela, era o sentimento que eu achava que não
queria sentir. Que achava que não precisava. E que não conseguia
fugir.

“Então, estou aqui para dizer que, sim, nosso namoro começou
de mentira, mas o que a gente viveu foi de verdade. E, Pati, se você
estiver vendo isso, me desculpa por não ter dito antes e por ser uma
babaca. Mas eu te amo!

“De verdade!

“Eu sei que você tem o direito de não querer falar comigo, mas eu
não vou deixar de te amar por causa disso!”

Vejo Amanda enxugando uma lágrima.

Cristo. Espero não me arrepender de ter promovido ela.

Continuo:

— E sobre a Tennis&Co., nós não vamos encerrar a campanha!


Porque o orgulho deve ser vestido. E todos têm o direito de sentir
orgulho de ser quem são. Mas todos os lucros da campanha PRIDE
serão revertidos para ONGs de apoio a pessoas LGBTQIAP+ e
poderão ser monitorados pelo nosso site. Caso você seja
coordenador de algum projeto social, pode entrar em contato
conosco através do nosso e-mail.

“Espero ter esclarecido todas as dúvidas. Se não, minhas redes


sociais estão abertas… Até logo!”

Vejo Amanda encerrar a live.

— Foi lindo — ela diz.

— Você acha que ela viu tudo?

— Acho. Nas quase cinquenta mil pessoas assistindo, ela deveria


estar no meio.

— Cinquenta mil?

— Quase.

O telefone da empresa começa a tocar e meu celular a chover


notificação. Eu só quero um minuto de paz!

— Vai — Amanda diz.

— Hã?

— Atrás dela — ela explica. — Eu resolvo as ligações.

Sinto meu peito se agitar e lanço um sorriso para ela e digo antes
de sair:

— Eu vou te dar mais um aumento.


34.
Pati

Estou há pelo menos dez minutos encarando meu celular.

A Helena disse que me ama!?

— Você também ouviu, né? — pergunto para o Guga.

Guga não me responde. É claro que não. Eu estou falando com


um gato.

Mas ela disse!

Eu tenho certeza!

— O que eu faço? — pergunto a ele. — Será que vou atrás dela?


Será que espero aqui? Será que tenho que correr no meio da rua e
beijar ela na chuva? …Não tá chovendo agora!

Toda a empatia de Guga por mim some e ele pula do meu colo e
se aconchega nas almofadas no sofá.

Antes que eu consiga tomar qualquer decisão, a campainha do


meu apartamento toca.

Sinto meu coração martelar no peito.

Mesmo cansada de saber disso, sou pega de surpresa quando a


imagem da Helena surge no outro lado da porta: Deus, como ela é
linda!

Ela está usando um pulôver de lã embaixo de um sobretudo cinza


e cachecol, porque está ventando e faz frio lá fora. Nessa época do
ano o vento que vem do mar costuma derrubar a temperatura aqui
na ilha.
— Oi — ela diz.

— Você disse que me ama!

— Disse — ela responde com um sorriso meio prepotente, meio


gentil e totalmente Helena. — Porque eu te amo!

Puxo ela pela lapela do sobretudo e a beijo.

Helena fecha a porta com o pé e eu a puxo para o sofá sem


nunca desgrudar da sua boca. Caio de costas sobre as almofadas
e…

— AAAAH! — solto um grito junto com o Guga quando caio por


cima dele.

Ele escapa e se abriga na soleira da janela, seu lugar preferido,


mas em vez da expressão antipática comum dele, ele me olha com
certa mágoa.

Tadinho.

Minha pena por ele, entretanto, dura apenas o tempo de eu voltar


para aqueles olhos castanhos e para a mulher que ainda está em
cima de mim.

— Mas calma, linda — ela diz, saindo de cima.

O quê? Por quê?

— Eu tenho que me desculpar — Helena continua.

Mordo o lábio, mas me sento também. Ela apoia o cotovelo no


encosto do sofá e leva a mão ao meu cabelo.

— Eu sinto muito que aqueles áudios tenham vazado e as


pessoas tenham se achado no direito de falar de você, mas eu sinto
mais por ter dito o que eu disse.
Ela coloca uma mecha do meu cabelo atrás da orelha, já quase
um hábito, e usa as pontas dos dedos para fazer um cafuné.

— Eu gosto que você esteja sempre sorrindo e que sempre veja o


lado bom das coisas. Sinto que eu sorri bem mais nessas últimas
semanas do que provavelmente na minha vida toda. E eu só falei
aquelas coisas porque eu sou uma imbecil e tinha medo de admitir
que falei o seu nome aquele dia para o Vitor, porque era você que eu
queria.

— Você não é uma imbecil… talvez um pouquinho!

— Ei! — ela protesta. — Eu tô aqui me declarando!

— Desculpa! Pode continuar.

— Mesmo lá no Luneta você já tinha me deixado intrigada, mas


você sabe, minha vida estava um caos naquela época e depois teve
o Ju e a Juju. Mas quando eles falaram que queriam fazer tênis e
você voltou a orbitar a minha vida… eu não consegui mais fugir. E eu
nunca achei que diria isso, mas acho que tenho que agradecer ao
Vitor!

— A gente não precisa exagerar — digo, tirando o cachecol dos


ombros dela e depois ajudando a tirar o sobretudo. Me aproximo
mais e consigo sentir a sua respiração próxima da minha. — Você já
acabou?

— Hm… — Ela desvia os olhos para a minha boca — acho que


sim.

— Ótimo!

Puxo ela para mais perto para finalmente a beijar de novo…

— Ah! — digo, me afastando de repente. — Eu também te amo!

O sorriso dela é a última coisa que vejo antes de sentir seus


lábios nos meus. E, minha nossa, como é bom sentir eles mais uma
vez, principalmente depois de achar que isso nunca mais
aconteceria.

O seu beijo é insinuante e cheio de intenção, e deixa claro que


ela também tem pressa. Sinto seu polegar deslizando pelo meu
maxilar enquanto ela abandona a minha boca. Seus lábios agora
estão por toda parte, acabando com meu juízo.

Sua mão sobe pelas minhas costas com a intenção de tirar minha
blusa.

— Espera, espera! — digo, me lembrando de algo importante. —


Já são quase nove horas, as crianças estão com a babá ainda?

— Não, a Lara pegou os dois mais cedo, eles vão dormir lá — ela
diz com um sorriso mal-intencionado.

— Você estava bem otimista, né? — pergunto espelhando o seu


sorriso.

Ela eleva os ombros e morde os lábios.

Agora sim, nada mais nos interrompe.


35.
Helena

— Mamãe…

— Que foi, meu amor? — pergunto para a Juju.

— Falta o seu voto — ela diz assim que entro na sala com duas
bacias de pipoca. — Encanto ou Viva: A Vida é uma Festa?

— Viva!

— Deu empate — Júlio diz.

— Eu já disse, a gente vê os dois — Pati responde, entrando logo


atrás de mim com uma caixa de pizza.

Ju e Juju estão jogados cada um em um sofá. Júlio abraçado com


o Guga, que parece estar no mais profundo sofrimento, e Júlia de
bruços, zapeando com o controle remoto pela lista de filmes.

Coloco uma bacia de pipocas na frente dela e a outra entrego


para o Júlio. Me sento no sofá maior, o mesmo que Ju e Guga estão,
mas na outra ponta. Pati coloca a caixa de pizza aberta na mesa de
centro e se joga ao meu lado.

Abro os braços para ela se encaixar em mim e recebo um beijo


na bochecha antes de ela se aconchegar.

— Eu não aguento ver dois filmes sem pegar no sono — digo.

Muito menos animação, mas não falo isso porque não quero
decepcionar os dois.

— Tudo bem se você dormir, mãe — Júlio diz. — Pelo menos


você não ronca igual a Juju!
— Eu não ronco, seu mentiroso — Juju se defende e joga uma
almofada nele.

Guga solta um miado nervoso em reprovação quando a almofada


bate nele. Ju e Pati riem.

— Você não ronca, meu amor! — digo para ela e ganho um


sorriso de recompensa. — Mas a Pati ronca!

— Eita, isso não é verdade!

Dessa vez Ju e Juju é que riem dela.

Não é verdade mesmo, mas a cara dela é impagável.

— Podemos começar por Encanto? — Júlia pergunta.

— Por mim… — Júlio diz, dando de ombros, colocando uma


mãozada de pipoca na boca.

Metade cai no sofá e na cabeça do Guga que solta mais um


miado de protesto.

Que gato mais rabugento, meu Deus. Reclama de tudo.

Sexta-feira à noite é o único dia da semana que eu deixo meus


filhos — e minha namorada — comerem na sala, mas é só porque
temos a tradição de ver um filme todos juntos… ou, neste caso, dois.

Pati se levanta para pegar uma fatia de pizza de marguerita e


antes de dar a primeira mordida, me oferece a ponta.

— Obrigada, linda — digo e dou uma bocada.

Se alguém me falasse há dois anos que eu passaria minhas


noites de sexta-feira com os meus dois filhos, namorada e até um
gato com problemas sociais, eu iria rir e chamar a pessoa de
lunática.
Mas hoje, simplesmente não consigo mais imaginar a minha vida
sem nenhum deles… talvez sem o Guga.

Talvez.

A verdade é que eu gosto dele. Ele me entende.

Durante todo o filme, quando ela acha que Ju e Juju estão bem
entretidos com a história, Pati se vira para mim para ganhar um beijo
ou um chamego, e nos esquecemos do filme por alguns minutos. Ju
e Juju soltam gargalhadas de tempos em tempos, seguidos de
inúmeros comentários sobre a trama e o que vai acontecer.

Essa não é a única tradição que desenvolvemos sem nem


perceber: nos sábados de sol, às vezes jogamos tênis, eu e a Pati
contra os dois.

É humilhante admitir que perdemos com frequência, mas fico


orgulhosa pela Júlia, que está se dedicando cada dia mais ao
esporte.

Júlio por outro lado, ainda pensa em surfar, mas é muito bom com
música também, o que me deixa feliz. Então dei para ele o ukulele
que era do meu pai. Admito que o ukulele é também uma tentativa
desesperada de fazer ele trocar a bateria por um instrumento menos
barulhento, mesmo assim, ele é muito bom percussionista.

Depois do filme, meus filhos vão para os seus quartos e eu e a


Pati para o nosso. Outra coisa que simplesmente não consigo mais
imaginar é como dormir sozinha depois de me acostumar a dormir
com ela todos os dias.

— Eu vi você chorando com o filme — Pati diz, saindo do


banheiro depois de escovar os dentes. Ela se deita na cama.

Eu convidei Pati para vir morar com a gente depois de um mês de


namoro real. A Luísa disse que essa foi a coisa mais sáfica que eu
poderia fazer, seja lá o que ela quer dizer com isso. Mas não me
importo se me acham impulsiva ou emocionada ou o que seja.
Decidi que não iria deixar de fazer mais nada por medo de
parecer vulnerável, e foi isso que fiz. Eu não queria passar mais
nenhuma noite dormindo sem ela, então a convidei para se mudar. É
verdade que tive que insistir um pouco porque Pati achou que era
muito cedo e não queria atrapalhar minha rotina com meus filhos,
mas o importante é que eu a convenci e agora ela está aqui.

— Eu não chorei! — digo me deitando ao lado dela.

— É claro que chorou! — Pati acusa, enquanto rola para mais


perto de mim. — Você é tão emocionada.

— E daí se eu chorei?

— Nada. Acho fofo.

Não sei exatamente como eu fui de uma vida solitária em que


trabalhava quase dezesseis horas por dia para isso. Nem sei se
mereço tanto, mas me esforço todos os dias para retribuir a eles tudo
que eles me dão.

— É só que fiquei pensativa — admito.

— Com o quê?

Pati apoia a cabeça sobre o braço.

— Com o filme e isso de ser lembrado. Me esforcei tanto para


afastar todo mundo por tanto tempo, que até hoje não sei se mereço
o esforço que você, meus filhos e minhas irmãs fizeram para se
aproximar de mim.

— É claro que merece, amor — Pati coloca a mão livre sobre


meu quadril e me puxa para ela. — Você é um cactozinho espinhudo
às vezes, mas é só porque é, tipo, frágil por dentro.

— Isso é para ser um elogio?

— É!
— Não parece.

— Ué, o que você tem contra os cactos?

— Nada, mas você me chamou de espinhuda!

— Meu Deus, você implica com tudo — ela diz, me puxando para
ainda mais perto. Consigo sentir aquele cheiro de maresia e de pasta
de dente.

— Foi você que começou a me atacar.

— Quer saber? Você tem razão… você não merece mesmo o


meu amor!

— Agora é tarde pra voltar atrás.

Ela roça os lábios contra os meus e tudo que consigo pensar é


em beijar sua boca.

— Eu sei! — ela diz e concede o meu desejo.


Epílogo
Guga

Bem, você deve estar se perguntando o que eu tô fazendo aqui.


A verdade é que eu também mereço um capítulo!

Você acha que é fácil ser suplantado pela Helena Lancellotti? E


depois ter que me mudar para a casa dela? E ter que dividir a Pati
não só com três pessoas mas também com um cão? Sim. Um cão!

Pois não é!

A traição com a Helena eu até aceito e consigo entender. Mas a


Pati poderia pelo menos fingir que gosta mais de mim do que desse
filhote de labrador estúpido que chegou na vida dela ontem!

Em pensar que eu era o único alvo da atenção dela, nossa vida


era perfeita… Só nós dois no nosso apartamentinho. Paz, sossego,
silêncio. Todos os abraços só pra mim!

Faz sete meses que nos mudamos para cá e dois que esse
filhote estúpido apareceu. O Pudim — sim, até o nome é idiota —, foi
presente de aniversário para o Ju que queria um cachorro.

Traidor!

Eu só perdoo ele, porque ele ainda brinca comigo como brincava


antes do Pudim.

Estou deitado no sol, próximo a piscina da casa. Pati caminha até


um dos futons perto de mim e, imediatamente, viro a cara para
ignorar ela.

Não demora nem dois minutos para ela me pegar no colo e me


apertar.
— Que saudade de você, Guguinha — ela diz, mesmo me vendo
todos os dias.

Psicologia reversa.

Sempre funciona.

— Deixa esse pobre gato em paz — Helena diz, caminhando


para a parte externa também e se sentando ao lado dela. — Ele tá
claramente em sofrimento.

Fica quieta, Helena! Você não sabe nada!

— Ele adora abraços! — Pati diz, me apertando ainda mais.

Ela ainda me ama.

Mais do que o Pudim!

— Bom, não parece — Helena diz, desconfiada.

— Confia em mim, tenho prática com esse tipo de personalidade.

Pati abre um sorriso debochado para a Helena, que apenas revira


os olhos.

Não queria dizer nada, mas a Pati tá certa. A Helena tem mesmo
uma personalidade difícil. Não que a minha também seja difícil, é
claro… bem, é melhor mudar de assunto.

Vamos voltar para a Helena. Esses dias estava olhando nos


bolsos dela no closet… O quê? Não tem muita coisa para um gato
fazer o dia inteiro! Enfim, estava olhando e achei um anel de ouro
com uma pedra em cima, acho que é um diamante, mas eu sou um
gato, não entendo nada de pedra.

Fiquei me perguntando quando ela vai ter coragem de fazer o


pedido. Talvez esteja esperando o momento certo, mas sei que a
Pati vai aceitar.
Logo as crianças e o idiota do Pudim também vêm aqui para fora.
Tá, até que ele é fofinho… meio burro, mas bem fofinho.

Júlia começa a contar alguma coisa que, confesso, não presto


muita atenção, porque Pati está brincando com as minhas orelhas.
Mas escuto as risadas e a empolgação.

Sei que ela está feliz.

Estamos.

Fim.
Gostou desta história?
Se você gostou desta história deixe sua avaliação na página da
Amazon e nos ajude a alcançar mais pessoas.

Nos siga nas redes sociais: @gbbaldassari

Instagram

Twitter

TikTok

Newletter

Spotify

Conhece nossas outras histórias clicando aqui.


As Autoras
Escrever em dupla não foi algo que Bruna e Gisele planejaram,
mas apenas mais uma das coisas que o casal de autoras descobriu
gostar de fazer juntas. Elas se conheceram em 2012, mas o
casamento — entre elas e entre suas escritas — só aconteceu em
2018. Muito do que escrevem tem inspiração na rotina e em seu
próprio relacionamento, principalmente nas situações de humor
cotidiano.

Bruna é formada em psicologia, gastronomia e tradução; Gisele é


designer de formação mas trabalha com produção de conteúdo.
Quando não estão escrevendo, estão falando sobre histórias e,
enquanto fazem isso, gostam de cozinhar e beber vinho — menos no
calor de fevereiro. Também gostam de planejar viagens ao redor do
mundo (que provavelmente precisariam de duas vidas inteiras para
serem feitas). Concordam que a coisa que menos gostam de
escrever é sobre elas mesmas.

Nas suas histórias, o mundo é um lugar mais tolerante, a


protagonista quase sempre é atrapalhada e sempre termina com
outra mocinha.
Leia também:

As jovens irmãs Lancellotti acabaram de perder a mãe e estão


prestes a descobrir que sua polpuda herança está condicionada a
uma cláusula no mínimo estranha.

Para provar que são capazes de manter o legado da família,


essas quatro irmãs muito diferentes e que raramente se entendem,
são obrigadas a passar um verão trabalhando juntas em uma colônia
de férias.

Acompanhe esta divertida e profunda jornada individual e familiar


das protagonistas e seus processos de luto e autodescoberta. Além,
é claro, de todas as confusões, intrigas e paixões que só um
acampamento de verão ao redor do lago é capaz de proporcionar.

Só Por Um Verãoé uma história sobre ser jovem e se apaixonar,


sobre crescimento e mudança, mas principalmente uma história
sobre o amor em todas as suas formas.
Leia também:

E se um livro te indicasse uma pessoa?

Amélia é uma jovem chef de cozinha que busca sucesso dentro


da alta gastronomia. Depois de uma entrevista de emprego
desastrosa, ela vê sua coleção de fracassos aumentando. As coisas
não saíram nem um pouco como ela planejou quando se mudou para
Buenos Aires para perseguir seu sonho, e agora ela está desiludida.

Assim como na carreira, as coisas também não vão bem no


quesito amor, e ela sente que precisa, desesperadamente, de uma
volta por cima. Decidida a dar uma chance ao destino, ela deixa um
bilhete com seu endereço de e-mail dentro do seu livro preferido e o
vende no sebo. Se tudo der certo, ele vai trazer a garota dos seus
sonhos. Simples assim. Exceto que, para Amélia, nada acontece de
forma simples ou sem muita confusão.

Uma Pitada de Sorte é uma comédia romântica que tem como


pano de fundo o charme de um inverno em Buenos Aires e a
nostalgia do ano de 2007. Uma história com protagonismo feminino,
amizades reais e uma mãozinha do destino.
Leia também:

Em 1952, na era de ouro da aviação, quando voar era apenas


para os mais ricos, ser aeromoça era uma profissão dos sonhos.
Então, quando a chance de trabalhar para a Northern Star Airlines
caiu no colo de Jane Smith, ela não pensou duas vezes!
Seria realmente um sonho se tornando realidade se não fosse por
um pequeno, quase insignificante detalhe: o emprego não era
exatamente dela. Ela iria assumir a identidade de sua melhor amiga,
Claire Davis.

Jane sabia que sua vida estava prestes a mudar drasticamente,


mas o que ela não esperava, era que, ao aceitar se passar por outra
pessoa, ela iria descobrir algo muito importante sobre si mesma.

Quando uma nova comissária chegou a sua equipe, Charlotte


Thompson soube imediatamente que havia algo intrigante a respeito
da garota, e não demorou muito para que sua vida tranquila e
organizada começasse a virar de cabeça para baixo.

Ao tentar esconder seus segredos, as duas se veem cada vez


mais enroladas em suas próprias mentiras, e as confusões vão
tomando proporções cada vez maiores neste encantador romance
épico.

Prepare-se para viajar no tempo a bordo de voos luxuosos, com


destino às mais fascinantes rotas, e acompanhada de personagens
apaixonantes. Mas não esqueça de apertar o cinto, pois haverá
turbulências!

Você também pode gostar