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Copyright © 2022 by Victoria Mendes

 
CAPA Lane Medusa (@artesmedusa)
ILUSTRAÇÃO Amanda Santos (@ehmandinha)
DIAGRAMAÇÃO Victoria Mendes
REVISÃO Hillary Lancaster
FOTOGRAFIA Iris Arruda (@photo.iriss)
 
 
 
Os personagens e acontecimentos narrados neste
livro são inteiramente fictícios. Qualquer semelhança
com a realidade é mera coincidência e não
intencional por parte da autora.
 
 
Todos os direitos desta edição são reservados à
autora.
Fica terminantemente proibida a reprodução total ou
parcial, através de quaisquer meios.
 
 
 
 
 
 
 
Para você que sabe que histórias sobre mulheres que
amam mulheres merecem ser contadas.
Capítulo 1
Mulheres jovens e pequenas fazem o perfil ideal de recrutamento para
empresas de espionagem. Isso, porque a maior parte das pessoas não as
enxerga como uma ameaça ou desconfia de suas intenções. E, considerando
o quão fácil fora para Kimberly convencer aquele manobrista de que ela era
melhor amiga de Eleanor Belmonte, essa teoria tinha grandes chances de
ser verdadeira.
Claro que ela teve que colocar um vestido extravagante antes, se livrar
dos piercings do rosto e cobrir as tatuagens para ficar parecida com uma
patricinha que frequentaria festas no Clube Chalezinho; mas o rapaz
entregou a chave da BMW X6 prateada em suas mãos sem pensar muito,
acreditando piamente que ela queria fazer uma surpresa de aniversário para
a filha do prefeito. Era só uma cesta com chocolates afinal.
Mas a mercenária sequer sabia quando Eleanor fazia aniversário. Se
fizesse um ranking, em sua cabeça, de datas insignificantes, a data ocuparia
o topo da lista. Naquela cesta, havia uma bomba de óxido nitroso.
Ela caminhou pelo estacionamento e colocou a cesta pomposa no
banco do carona, depois fingiu que fechou a porta e devolveu a chave para
o rapaz, agradecendo com um sorriso doce no rosto, mais falso do que as
promessas de campanha de Armando Belmonte.
Quando lera o sobrenome do prefeito no e-mail que recebera de sua
agente, Kimberly por pouco não derrubara a garrafa de cerveja que estava
bebendo sobre seu computador. Primeiro, pensou que fosse alguma
coincidência ou um engano, mas havia uma foto anexada que não deixava a
menor dúvida: sua maior inimiga do ensino médio era uma vampira.
O irônico era que ela receberia uma recompensa de seis dígitos por um
trabalho que faria de graça. Enfiar aquela patricinha sanguessuga num
porta-malas seria como ter um dia no parque de diversões.
Tinha uma porção de memórias que envolviam a loira e a maioria delas
não eram agradáveis. Era óbvio que Eleanor Belmonte não podia ser
humana e, se seu nome tivesse passado mais do que três vezes pela cabeça
de Kimberly depois que saíra do colégio, teria chegado sozinha a essa
conclusão. Mesmo após anos, era estranhamente reconfortante ter uma
explicação lógica para o magnetismo persuasivo que Eleanor exercia sobre
todos daquela escola. Aos 17, Kimberly pensava que era culpa do rostinho
bonito e do corpo de boneca Barbie. Agora, aos 22, sabia que tudo isso não
passava de poderes sobrenaturais, desleais com os sentidos dos humanos.
Não que houvesse algo de leal sobre seus olhos azuis grandes e lábios
carnudos. Mas Kimberly não queria pensar sobre eles naquele momento.
Entrou no carro da vampira pela porta que deixara aberta, saltou para o
banco de trás, prendeu os cabelos escuros num coque apertado e foi jogar
Subway Surfers enquanto esperava.
 
***
 
Quando avistou a filha do prefeito aproximar-se do carro, Kimberly largou
o celular e tirou de sua bolsa a estaca de prata, que se desmontava para virar
uma corrente, e uma máscara com filtros de gás.
Esse trabalho seria muito mais fácil se ela pudesse matar a garota e
receber a grana, mas a instrução era para que entregasse Eleanor Belmonte
viva, então precisou usar a criatividade.
Kim vestiu a máscara, depois se encolheu no vão entre o banco dos
passageiros e do motorista.   Eleanor Belmonte entrou no carro minutos
depois, colocou o cinto de segurança e, no instante em que seu olhar se
distraiu com a cesta rodeada de laços cintilantes que estava ao lado,
Kimberly se ergueu num pulo. Por mais que seus olhares tenham se
encontrado durante milissegundos no retrovisor central, Eleanor não
conseguiu ser rápida o suficiente para escapar da corrente que foi envolta
em seu pescoço. O cheiro de carne queimada tomou conta do espaço
fechado e o reflexo involuntário de se livrar da amarra com as mãos foi a
deixa perfeita para que Kimberly desse outra volta com o objeto metálico e
prendesse os punhos da garota também. Segurando a corrente só com a mão
esquerda, usou a direta para acionar a bomba de óxido nitroso com um
controle remoto.
Deve ter demorado um minuto para que Eleanor apagasse, mas aquele
fora o minuto mais longo da vida de Kimberly, porque seus olhares
continuavam se encontrando no espelho durante o processo. A loira não
tentou gritar, o que era, no mínimo, esquisito. A não ser, é claro, que ela já
estivesse esperando por um ataque e isso fazia a caçadora se perguntar
quem estava por trás daquela contratação. Os clientes que optavam pelo
anonimato sempre lhe rendiam os trabalhos mais intrigantes.
Depois de certificar-se que Eleanor estava mesmo inconsciente, Kim
abaixou um terço dos vidros e esperou o gás sair para remover sua máscara
e sair do carro. Eleanor era magra até demais, mas tinha 1,72 de altura, o
que tornava o trabalho de erguer e arrastar seu corpo até o porta-malas
bastante complicado para alguém de 1,64. Para sorte de Kimberly, a X6
tinha um porta-malas espaçoso que comportava um corpo e um cilindro
pequeno que continha o gás que manteria Eleanor desacordada pelo tempo
que Kimberly precisava até chegar em seu destino para entregar a
“encomenda” e receber seu dinheiro.
Um sorrisinho vitorioso se desenhou em seus lábios ao ver a loira
inerte daquele jeito, como jamais achou que veria. Ela usava um vestido
rosa apertado com um decote exagerado que ia abaixo dos joelhos e
Louboutins da sola vermelha. As queimaduras provocadas pela prata da
corrente já estavam desaparecendo em sua pele alva, mas ainda eram bem
visíveis. Kimberly atou seus punhos e tornozelos com abraçadeiras de
nylon, depois acomodou o cilindro ao lado do corpo da garota e afrouxou o
pino para liberar o gás, abaixando o tampo.
Só quando se sentou no banco do motorista é que percebeu o quão
aceleradas estavam as batidas de seu coração.
Antes de dar partida, ela fez uma ligação para a sua agente.
— Já terminei, Marta. Avisa para eles que estou indo para o ponto de
encontro que a gente combinou — pediu ainda com o sorriso nos lábios.
— Eles ainda não conseguiram o dinheiro todo. — O sorriso de
Kimberly sumiu. — Você vai ter que esperar.
— Como assim eles não conseguiram o dinheiro todo? Esses caras tão
achando que somos amadores?
— Não sei, mas estou tentando pressionar para acabarmos logo com
isso. Te ligo quando o sinal estiver verde, tá bem?
— De jeito nenhum. Nosso combinado foi que eu entregaria a vampira
para eles no mesmo dia.
— O que você sugere? Que a gente termine o serviço sem receber o
pagamento? — A voz usualmente calma de Marta Silvestre soou irritadiça.
— Me dê mais algumas horas e isso vai ser resolvido. Se não for, a gente
mata a sanguessuga e fim da história.
Com “a gente mata a sanguessuga”, ela quis dizer “você mata a
sanguessuga” e, ainda que Kimberly não odiasse a ideia, tinha gastado uma
grana em óxido nítrico no mercado clandestino para acabar no prejuízo.
Eles não vendiam isso para qualquer um.
— E o que caralhos eu faço com ela enquanto isso?
— Leva para o seu apartamento.
— Que ideia ótima, já ‘tava na hora de inaugurar a cela para vampiros
que eu construí mês passado — ironizou. — Não rola.
— Você é criativa, sei que vai pensar em alguma coisa. Agora eu
tenho que desligar para ir resolver esse pepino e livrar a gente dessa. Te ligo
quando tiver novidades.
Quando a chamada foi encerrada, Kimberly recostou a cabeça no
volante, bufou e murmurou:
— Ótimo. Agora fodeu.
Capítulo 2
Encontrar um lugar para colocar Eleanor Belmonte dentro de seu
aparamento não fora tão difícil; enfim, Kimberly finalmente encontrou uma
função para a sua banheira desativada. Difícil mesmo fora carregar a
vampira por dois lances de escada sem ser interceptada por nenhum
vizinho.
Depois de abrir o porta-malas e verificar que o cilindro de óxido
nitroso só duraria por mais três horas, ela não tivera outra escolha senão
improvisar um plano. Buscara o tapete poeirento da sala de estar para
enrolar o corpo, amarrara as extremidades com uma corda e o arrastara
escadas acima.
Morava num loft modesto, grande o suficiente para ela e um Border
Collie viverem confortáveis. Já dentro do apartamento, Kimberly fechou o
cachorro no quarto, tirou de seu arsenal as algemas feitas de prata diluída
em ferro fundido, depois levou o tapete até o banheiro, arfante como um
buldogue. Desfez as amarras e desenrolou Eleanor Belmonte para colocá-la
dentro da banheira, e então algemá-la a um cano de aço da parede. Não era
uma posição confortável, mas Kim não estava preocupada em ser uma boa
anfitriã. As algemas a enfraqueceriam o suficiente para impedir que ela
quebrasse a tubulação, mas não queimavam a pele tanto quanto as de prata
pura. Ainda tinha alguns minutos antes do gás perder o efeito, e aproveitou-
os para amordaçar a vampira com um pedaço de pano e fita adesiva. Era
quase uma da manhã e, caso ela começasse a gritar, podia acordar os
vizinhos e chamar atenção. A última coisa que a mercenária precisava era
ter gente pensando em fuçar na sua vida.
Mesmo depois de todos aqueles anos trabalhando como caçadora
freelancer, era a primeira vez que um sanguessuga entrava em seu
apartamento. Também nunca tinha estado tão perto de um por tanto tempo,
ao menos não tendo consciência disso. Ela e Eleanor dividiram uma sala de
aula por três anos afinal.
Eles eram ainda mais fascinantes em tão pouca distância. A pele
imaculada reluzindo contra a luz da lâmpada fosforescente parecia
porcelana. Kimberly sentiu o impulso estender os dedos e sentir a lisura sob
suas digitais, mas a ideia esvaneceu tão rápido quanto fumaça.
Ela marchou para fora do banheiro e pôs-se a organizar a bagunça que
tinha feito ao arrastar o corpo da vampira. Sorte sua ter a maior parte de
suas coisas encaixotadas.
Estava de mudança daquela cidade para nunca mais voltar. Por isso
precisava tanto do dinheiro que pagariam por aquela vampira; ele a ajudaria
a recomeçar em um lugar novo, no Nordeste do país.
Dentre as coisas que precisou recolher e colocar no lugar, um objeto
prateado chamou sua atenção. Era uma bolsa pequena demais que só podia
pertencer a uma pessoa.
Ao abri-la, encontrou algumas cédulas de dinheiro, um cartão, um
batom chamado “Heartstaker” e um celular. Sentiu-se uma enxerida por
estar revirando as coisas de Eleanor, mas então se lembrou que ela estava
acorrentada à sua banheira naquele mesmo momento e todo resquício de
constrangimento foi embora num passe de mágica.
O celular estava bloqueado por um PIN de seis dígitos e, por mais que
provavelmente a combinação fosse alguma coisa estúpido tipo 1234 ou a
data de nascimento dela, Kim plugou o aparelho em seu computador e usou
o software caro que comprara na dark web para ter acesso a tudo que havia
ali. Depois tirou uma garrafa de cerveja da geladeira e se sentou na bancada
da cozinha para começar o que ela chamaria de uma “bisbilhotada com fins
meramente científicos”.
Primeiro, abriu os aplicativos de mensagens, mas ainda era cedo
demais para alguém ter dado falta dela, e a caçadora não se interessava nem
um pouco pelo que aquela patricinha conversava. Então abriu a Galeria e,
como qualquer pessoa faria, começou pelas pastas ocultas. Pulou a que
claramente continha vídeo e fotos de Eleanor de lingerie. Era uma
sequestradora e uma xereta, mas não uma pervertida. A pasta seguinte lhe
chamou atenção. Era uma coleção de registros em diferentes lugares com
diferentes pessoas, ou melhor: cadáveres e muito sangue. Eleanor aparecia
em algumas delas, posando ao lado de suas vítimas, vez ou outra segurando
documentos de identidade ou carteiras de motorista que identificavam os
corpos. Eles eram homens, todos eles.
Bizarro.
E assustador; para dizer o mínimo.
Kim se perguntou quem eram aquelas pessoas e se suas famílias
tinham recuperado os corpos. Se sentiam falta deles todos os dias e eram
atormentados por pesadelos todas as noites como ela era, depois que as
pessoas que mais amara foram tiradas de si por aqueles monstros; drenados
até a última gota de sangue.
Mas antes que pudesse se deixar ser consumida pela espiral daqueles
pensamentos de sempre, ouviu o barulho de correntes se arrastando contra o
metal.
Kimberly buscou sua estaca e espiou pela fresta da porta antes de
entrar; Eleanor Belmonte tinha despertado e estava furiosa, se debatendo
dentro da banheira. O efeito do gás já era. Seus olhares se encontraram mais
uma vez e Eleanor passou longos segundos a mais encarando os olhos
escuros de Kimberly, até que aconteceu: sua velha inimiga tinha a
reconhecido. Mas Kimberly não soube dizer se isso era algo bom ou ruim
até a vampira começar a arranhar a corrente das algemas ainda mais forte
contra a tubulação.
— Olha só, eu não queria estar nessa situação também, tá? — disse
Kimberly entre os ruídos agudos e atordoantes. — Quer parar de fazer esse
barulho?
Para a surpresa da mercenária, Eleanor parou de se debater. Tentou
falar alguma coisa, mas só se ouviam grunhidos abafados.
— Vou tirar a mordaça, mas — Kim ergueu a estaca de prata,
apontando-a para vampira — se eu ouvir qualquer gritinho, espeto sua
garganta com essa coisa e te deixo agonizando até eu poder me livrar de
você. Entendeu?
A loira revirou os olhos, mas acenou positivamente com a cabeça.
— Certo — murmurou Kimberly só para si.
Ela está indefesa, pensou. Não vai me machucar.
Aproximou-se da banheira a passos curtos e lentos, sem soltar sua
arma. Estava pronta para cravá-la no peito de Eleanor ao menor sinal de
ameaça. Agachada, estendeu a mão esquerda até a ponta da fita adesiva
enquanto os olhos azuis da vampira a esquadrinhavam de cima a baixo e
provocavam uma queimação esquisita na ponta de seu nariz.
Puxou a mordaça de uma só vez e saltou para trás.
— Ai! — gemeu Eleanor.
Kimberly ergueu a estaca outra vez.
— Eu disse pra ficar quieta!
Eleanor mostrou a palma das mãos em sinal de rendição, depois
umedeceu os lábios, olhou ao seu redor e depois para a caçadora outra vez.
— Kimberly Han — sibilou num tom sarcástico. — Eu sempre soube
que você era obcecada por mim no colegial. Mas depois de todo esses anos?
Não sabia que a coisa era tão séria.
— E eu sempre soube que você tinha um ego estratosférico, mas não
sabia que a coisa era tão séria. — Kimberly deixou escapar um risinho
breve pelas narinas. — Não faz ideia de porque está aqui, né?
— Tenho algumas teorias. Mas já que descartou a de você ser uma
degenerada que quer me transformar em uma escrava sexual, se importaria
em explicar por que estou algemada na sua banheira?
— Em primeiro lugar — Kimberly enfiou dois dedos na boca —, que
nojo. Eu nunca transaria com você. E, em segundo lugar, você está com as
algemas e eu com as chaves, não sou eu quem tem que responder perguntas
aqui.
— Nunca transaria comigo? Que mentira.
— Isso foi tudo que você ouviu? Sério mesmo? — Kimberly bufou. —
Inacreditável.
— O resto era óbvio. Me conta: desde quando você está nesse negócio
de caçar vampiros?
— Comecei com a mesma idade que você colocou silicones.
Ellie deu uma risada cínica.
— E desde quando você sabe que eu sou um vampira?
— Eu... Ei, espera aí, não me ouviu dizendo que sou eu quem faço as
perguntas?
— Ouvi, mas você não perguntou nada — Eleanor deu de ombros,
exibindo um sorrisinho cínico.
Kim detestava sentir-se manipulada e, percebendo como num piscar de
olhos ela havia se deixado seduzir pelas armadilhas verbais da vampira, seu
rosto esquentou como brasa. Eleanor Belmonte era uma serpente, uma
criatura das trevas que sabia usar como ninguém as suas habilidades de
persuasão. Ela era perigosa. Sempre fora.
— Já chega. — Kimberly girou no eixo dos calcanhares. — Nos vemos
de novo quando eu puder me livrar de você.
— Kimberly, espera, volta aqui — gritou Eleanor.
Isso fez com que a mercenária se virasse e lhe apontasse a estaca outra
vez.
— Minha promessa ainda tá valendo. Fica calada ou eu vou fazer você
ficar. — Seu tom era firme, incisivo. Dentre um suspiro frustrado da loira,
Kim deixou o banheiro e fechou a porta atrás de si.
Capítulo 3
Duas semanas. Esse era o tempo que fazia que Kimberly sabia que Eleanor
era uma vampira. A agência exigia o dossiê mais completo possível de
todos os seus alvos para escolher o melhor caçador e prepará-lo para o
serviço e a filha do prefeito tinha uma ficha extensa detalhando todas as
especificidades da sua linhagem milenar e prestigiada de sanguessugas.
Os Belmonte vinham de uma dinastia poderosa. Não era por acaso que
Armando era um político e empresário tão bem-sucedido, nem que tivesse
tomado o sobrenome da esposa, Lúcia Belmonte, como faziam todos os
cônjuges dentro daquela família matriarcal. Armando era só mais uma testa
de ferro para a manutenção do poder da família da esposa que contava com
representantes na imprensa, no mercado financeiro, no poder executivo,
legislativo, judiciário e até na Igreja; espalhados pelos continentes como
uma praga pandêmica.
“Portadores da Singularidade” era como chamavam oficialmente os
vampiros que Kimberly gostava de definir como “Os-netos-do-Drácula
bonitão-e-jovem-na-versão-do-Francis-Ford-Coppola que os caçadores
não conseguiram queimar”. Eles eram vampiros natos, podiam se ver no
espelho e aparecer em fotografias. Quando sob a luz do sol, suas peles não
queimavam como a dos outros; sentiam no máximo uma ardência, caso
estivessem há muito tempo sem se alimentar. Em outras palavras, eram
mais fortes e mais resistentes do que o resto. Isso os tornava ainda mais
letais, podiam se esconder entre os humanos, bem debaixo dos narizes
deles, durante anos e ainda se elegerem para cargos públicos.
Saber disso transportou Kimberly direto para sua adolescência: era a
garota bolsista e órfã num colégio da elite. Tinha traços sul-coreanos que,
quando não viravam alvo de piadinhas sem graça, sempre chamavam mais
atenção para si do que ela gostaria. Kim tentava ser invisível, mas ter raízes
na Ásia Oriental estando num mar de gente branca era o jeito mais estúpido
se camuflar.
E tinha Eleanor, seu perfeito oposto: popular, herdeira de uma família
de comercial de margarina e abastada. Ela andava pelos corredores como se
o resto das pessoas precisassem pedir sua bênção para estarem ali. Agora
que sabia sobre quem — ou o que — ela era, algumas coisas passaram a
fazer sentido, como a paixonite febril que sentira por ela durante os últimos
meses do ensino médio.
Não era de verdade.
Nada era.
Aquele poder, a beleza, o jeito sedutor.
Eleanor Belmonte era uma sirena; atraía pessoas inocentes para serem
engolidas vivas pelo mar de sangue que alimentava sua existência.
Estirada no sofá com a garrafa de cerveja pela metade e a cabeça
nublada por pensamentos, Kimberly não ouviu quando seu cachorro abriu a
porta do quarto e depois a do banheiro. Só ouviu os latidos, depois os gritos
de socorro de sua prisioneira.
Levantou-se num salto, tão afoita para alcançar o banheiro que
esquecera de levar a estaca consigo. Se deparou com a cena do Collie de
dezoito quilos e uma perna a menos dentro da banheira, investigando
Eleanor com o focinho gelado enquanto a loira tentava afastá-lo com os pés
atados e proteger o rosto com as mãos algemadas.
— Tripé! — bronqueou Kimberly. — Sai daí agora!
A caçadora bateu um dos pés no chão com firmeza, o que costumava
fazer o canino obedecer, mas não funcionou. Ela teve que segurá-lo com os
dois braços e erguer o corpanzil do bicho para tirar ele dali.
— Ele... — Kim arfou, afastando-se com o cachorro que ainda não
havia desistido de descobrir quem era a estranha dentro do banheiro da sua
casa. — Ele abre portas.
— Seu cachorro abre portas tendo só três patas, mas você, com os
quatro membros inteiros não consegue trancar uma? — disse Ellie, irritada,
dando o melhor de si para limpar a baba viscosa que grudara em sua pele e
roupas.
Tripé fora o último presente que o pai de Kimberly dera a ela. Era um
dos cachorros que a Academia de Polícia treinava para encontrar armas e
explosivos. Um dia, ele encontrara um campo minado antigo e perdera uma
das pernas dianteiras porque ainda havia bombas ativadas no lugar. Cães
que se ferem gravemente em serviço são sacrificados, mas Jorge Han o
levara para casa e, desde então, ele e Kimberly têm sido a companhia um do
outro há 8 anos.
— Não tem chave nas portas desse apartamento. Eu moro sozinha e
não recebo visitas.
— Não importa. Deixa esse cachorro longe de... — A fala dela foi
entrecortada pelo toque do celular de Kim.
A caçadora saiu arrastando Tripé para sala com um dos braços, pegou
o celular com o que estava livre e atendeu. Era Martha. 
 
— Por favor, me diz que você tem boas notícias — pediu Kim.
— Dois dias.
— O quê?
— Eles pediram mais dois dias para conseguir o dinheiro todo.
— Tá brincando, né? Não tem a menor condição de eu ficar com essa...
coisa no meu apartamento.
— Vai ter que ficar, não tem nada que eu possa fazer. A não ser que
queira soltar ela agora e buscar de novo depois de amanhã.
— Vai se foder.
Num espasmo involuntário de raiva, ela deixou Tripé se soltar.
— Quer o dinheiro, não quer? — perguntou Marta; Kim rosnou baixo.
Queria muito aquele dinheiro. — Se deu um jeito até agora, dois dias vão
passar num estalo.
Latidos e gritos ecoaram do banheiro de novo.
— Tenho que desligar.
Ela nem sequer apertou o botão, só atirou o celular em cima da mesa e
correu, a tempo de assistir enquanto Tripé fugia assombrado da banheira,
ganindo magoado, porque Eleanor tinha o atordoado mostrando suas presas.
Ele se encolheu entre as pernas de Kimberly e latiu outra vez.
— Pssss — silvou Kim para o canino. — Que porra você fez com o
meu cachorro?
A vampira deu de ombros.
— Eu disse pra deixar ele longe de mim.
O bicho não parecia machucado ou debilitado, só estava tremendo de
medo na mesma intensidade com a qual latia.
— Psssssss. Quieto! São quase 3 da manhã.
— Tomara que seus vizinhos te expulsem.
— Maldita hora em que eu tirei aquela mordaça — disse Kim,
enxotando Tripé do banheiro outra vez e tirando do armário mais fita
adesiva.
— Espera, Kimberly — pediu Eleanor. — Escutei você no telefone.
— Mas como... — Ah. A superaudição. — Ótimo, agora eu também
vou ter que arranjar protetores de ruído industrial.
— Quanto vão te pagar por esse trabalhinho sujo? Qualquer que seja a
quantia, eu pago o dobro para você me soltar.
— Não é assim que as coisas funcionam. — Kim cerrou os olhos,
tornando-os ainda mais estreitos. — Acha que eu sou idiota?
— Quer mesmo que eu responda?
— Você vai voltar para a mordaça.
— Só estou dizendo que, se dinheiro é o que você quer, eu posso te dar.
É só a gente fazer um acordo.
— Vai mesmo tentar me fazer acreditar que cravar os dentes no meu
pescoço e drenar todo o meu sangue não é a primeira coisa que você vai
fazer assim que eu soltar essas algemas?
— Caramba, você quebra mesmo o estereótipo do asiático inteligente,
não é? — Ela revirou os olhos e Kim sentiu o rosto arder num misto de
raiva e confusão. — Você morta não tem nenhuma utilidade para mim,
Kimberly. Estou propondo um acordo, porque sei quem está por trás desse
circo patético e você é a única que pode me levar até essa pessoa.
— Me engana que eu gosto. Você é uma mentirosa compulsiva e não
vai conseguir me fazer acreditar nessa sua ladainha.
— Vou provar que estou falando a verdade. Pega o meu celular.
— O que você pensa que vai fazer?
— Ligar para a minha família.
— Isso aqui não é uma prisão para você ter direito a uma ligação, é um
cativeiro. O meu cativeiro. E eu faço as regras. — Cruzou os braços e olhou
a vampira de cima. — Desiste.
— Vou ligar para minha família e pedir para pagarem o resgate para os
meus “sequestradores”. — Ela fez aspas com os dedos e Kimberly cerrou os
olhos, confusa. — Por que acha que ainda não recebeu o pagamento?
— Está dizendo que a pessoa que me contratou está esperando seus
pais pagarem o resgate para me pagar? Isso é idiotice.
— Eu não poderia colocar de forma melhor. E, para a minha sorte, não
conheço muitos idiotas, por isso foi tão fácil descobrir quem foi.
— Ainda não acredito.
— Então divirta-se esperando seu dinheiro aparecer, porque minha
família não vai comprar essa farsa. Só espero que você tenha outro
banheiro.
Capítulo 4
Kimberly não conseguira pregar os olhos naquela noite. Prendera Tripé pela
coleira no pé de sua cama e se deitara sem a menor esperança de ter uma
boa noite de sono.
Perto das 7 da manhã, quando sentiu vontade de fazer xixi, saiu para
um passeio matinal com o cão. Era um pretexto para usar o banheiro da
padaria que tinha em sua rua. Ainda que ela também precisasse, mais do
que nunca, de um banho longo e revigorante. Seu cabelo preto estava preso
num rabo de cavalo frouxo e ela vestia um moletom velho combinando com
os chinelos vermelhos
Enquanto andava, com o sol morno da manhã de outono beijando o
topo de sua cabeça e desanuviando sua mente, conseguiu organizar os
pensamentos. Era complicado racionar dentro da atmosfera claustrofóbica
daquele loft sabendo que apenas algumas paredes dividiam ela e aquela
sanguessuga.
O bairro em que morava não era o melhor da cidade, mas ocupava um
dos dez primeiros lugares. Era ajeitado. Ruas limpas e arborizadas,
senhorinhas fazendo suas caminhadas matinais ou passeando com seus
Chihuahuas que latiam feito alarmes de carro quando viam Tripé passando
do outro lado da calçada.
Entretanto, ainda não era o suficiente para fazer Kimberly querer ficar.
Aquela cidade era uma gaiola enferrujada de memórias, que estivera com a
porta aberta durante todo esse tempo, e Kim só percebera que precisava
deixá-la quando as grades começaram a ficar apertadas demais.
Por isso a proposta de Eleanor Belmonte era tão tentadora. Com o
dobro da recompensa, podia conseguir um lugar mais confortável e não se
preocupar com contas durante muitos meses. Sabia que a ganância era um
dos piores aliados do ser humano; ela te cega, te faz cair em armadilhas
estúpidas, quando há centenas de avisos de perigo. E, nesse caso, havia
milhares deles.
Só que, além de gananciosa, Kimberly também era dona de uma
autoconfiança que beirava a arrogância. E não havia nenhum perigo que ela
não se julgava capaz de driblar.
Quando chegou em casa, deu uma olhadela pela fresta do banheiro
para conferir se sua prisioneira ainda estava lá e que tudo aquilo não passara
de um sonho. Teve um vislumbre rápido das mãos esguias de Eleanor e isso
foi o suficiente.
Agora, precisava pensar num plano e ensaiar suas falas para não correr
o risco de gaguejar na frente da vampira.
***
— Eu tenho algumas condições — disse Kimberly, sem delongas,
escancarando a porta do banheiro, cinco horas mais tarde. — Para soltar
você e te levar até a pessoa que me contratou para te capturar.
O semblante outrora entediado de Eleanor ganhou um brilho tétrico.
Ela ergueu o queixo e abriu um sorriso pequeno, mas vitorioso.
— Até que enfim. — Ela se revolveu como pôde no espaço confinado
para conseguir olhar nos olhos de Kim. — Sou excelente em fazer
negócios.
— Não vamos negociar nada. Nenhuma das minhas condições está
aberta à discussão, entendeu? Ou você cumpre ou pode esquecer a minha
ajuda.
— Uau. Kimberly Han, o que aconteceu com você? — debochou
Eleanor. — Não parece mais aquela ratinha assustada que conheci no
ensino médio. De onde saiu toda essa coragem?
A mercenária revirou os olhos e se aproximou da beira da banheira,
depois inclinou o corpo e se sentou sobre a tampa da privada para que
pudesse nivelar o olhar com o da garota.
— Já acabou? — Eleanor balançou os ombros e suavizou a expressão.
— Ótimo, vamos acabar logo com isso. Vou te dizer como as coisas vão
acontecer a partir de agora e, se me interromper, vou sair por aquela porta e
só vou voltar quando for para sumir com você daqui, entendeu?
— Sim, senhora.
— Ótimo. Vai ser assim que vai funcionar: vou pegar o meu celular e
você vai fazer uma ligação para os seus pais, pedindo para eles pagarem o
resgate. Se eles concordarão ou não, é problema seu. Depois, vai me dar
todo o meu dinheiro, são 300 mil, e quero cada centavo. Então, vamos
esperar até entrarem em contato outra vez para eu te levar até o ponto de
encontro que combinamos.
— E depois? — perguntou a vampira, assim que houve uma breve
pausa.
— Não tem depois. Eu sumo e a gente nunca mais vai se ver.
— Parece bom para mim, mas como eu vou saber que você não vai
pegar o meu dinheiro e pular direto para a parte que você some?
— Do mesmo jeito que eu sei que você não vai me matar: não dá pra
ter certeza. Mas, já que tocou no assunto, tomei a liberdade de criar minhas
próprias medidas de segurança.
Ela tirou o celular do bolso, desbloqueou, ergueu a tela diante dos
olhos de Eleanor e deslizou o dedo devagar por um documento de quase
cem páginas, que continha as fotos de cadáveres do celular da vampira, as
piores e mais explícitas delas. Também detalhes sobre ela e sua família e
mais um monte de outras coisas escritas que a visão turva da loira não
permitiu que ela lesse.
— Posso não ter uma família, muito menos uma tão poderosa como os
Belmonte, mas tenho amigos que fariam isso aqui se proliferar pela internet
como um vírus. E, se alguma coisa acontecer comigo, qualquer coisinha
que seja — Kim afinou o tom da voz para enfatizar —, toda essa merda vai
parar no ventilador em menos de 24 horas.
Depois de longos segundos em silêncio encarando a parede por cima
do ombro da caçadora, Eleanor disse:
— Impressionante. — E olhou nos olhos de Kim outra vez, cerrando as
pálpebras e franzindo os lábios. — Mas, se já tem tudo isso para usar contra
mim e minha família, por que vai me ajudar?
— Porque não sou uma chantagista covarde, Eleanor. Nós vamos fazer
um acordo e eu vou cumprir com a minha parte e esperar que cumpra com a
sua. Vou apagar esse dossiê da face da Terra assim que tiver certeza de que
estou segura.
Houve um momento breve em que as duas se encararam, buscando por
resquícios pequenos de sinceridade nos olhos uma da outra. Mas tudo que
havia era um nevoeiro de dúvidas. Nada era claro, nem mesmo as más
intenções.
— Vamos fazer aquela ligação — disse Ellie, enfim quebrando o
silêncio. — Depois, vamos até o meu banco para eu fazer a transferência.
Mas eu vou precisar de um banho antes.
— Banco? Você nunca ouviu falar em internet banking?
— Internet banking não funciona para pessoas como eu, porque
existem pessoas como você soltas por aí. Meu limite de transferência é
ridiculamente baixo. — Kimberly bufou. — Me dá logo o telefone.
A caçadora hesitou, mas estendeu o aparelho desbloqueado e assistiu
enquanto a outra garota teclava os números de um telefone fixo. Seu celular
era irrastreável de qualquer forma.
Não demorou nada para que os Belmonte atendessem a ligação e, por
mais que Kim mal pudesse distinguir o que diziam do outro lado da linha,
era notório que havia preocupação em suas vozes. Isso lhe causava um
sentimento que beirava inveja. Eleanor Belmonte, a criatura mais
desprovida de alma que conhecera em toda a sua vida, tinha uma família
que se importava com ela, alguém para ligar e explicar por que não dormiu
em casa.
— Estou bem — disse Eleanor. — Não, não estou presa coisa
nenhuma. Eu fiz uma... — seu olhar pousou em Kim, enquanto procurava a
palavra certa para usar — aliada. Mas preciso que deem o que ele pediu. —
Houve claros sons de protesto. — Podem confiar em mim, sei o que estou
fazendo.
Ele.
Kimberly estava formigando de curiosidade para saber quem queria
ferrar os Belmonte, mas isso não era problema dela.
— Não. Não liguem para a polícia. É melhor deixar isso só entre a
gente, sem ter que dar satisfações sobre... vocês sabem. — Ela se calou, as
vozes ficaram mais baixas e, por alguns segundos, olhou de soslaio para
Kim. — Pode passar o telefone para ela. — E, como feitiçaria, a loira
suavizou a expressão. Do vinho: intenso, agridoce, intoxicante, para a água:
suave, clara e pura. — Ei, June. — Agora, a voz do outro lado era quase
infantil. — Se acalma. Ninguém vai me machucar.
Kimberly sabia quem era Júniper, a caçula dos Belmonte. A última vez
que a vira, ainda era uma criança. Se lembrava vagamente dos olhinhos
brilhantes que acompanhavam cada gesto da irmã sobre o tablado, enquanto
a loira tomava seu diploma e discursava sobre “a grande jornada
inesquecível” que fora o ensino médio em nome de toda a turma. Na falta
da própria família dentre a plateia, Kim precisou buscar por outros rostos
para olhar e os Belmonte eram alguns dos mais que se destacavam na
multidão.
— Vou voltar para a casa logo e vamos ver um daqueles filmes que
você gosta, está bem? É, eu também te amo.
E desligou. Após um curto fio de silêncio, Eleanor estendeu o celular
de volta.
— Meus sequestradores entraram em contato com meus pais há
algumas horas para pedir o dinheiro do resgate.
— E por que eles não ligaram para a polícia?
— É uma história complicada, como tudo que envolve o meu
sobrenome. Posso contar, mas você vai ter que me soltar antes.
Ela estendeu com os punhos algemados. Kimberly ainda estava
atordoada, mas tirou a pequena chave do bolso num gesto mecânico, tomou
uma das mãos da vampira e a destrancou. Na pele que estivera sob o metal,
havia marcas de queimaduras de primeiro grau.
Com uma das mãos livres, a vampira se tornava uma ameaça maior e,
por mais que tenham acordado com uma trégua, serem traiçoeiros era da
natureza dos sanguessugas. A caçadora manteve a postura defensiva
enquanto libertava sua prisioneira, pronta para um ataque que nunca veio.
Eleanor Belmonte sentou-se sobre a beirada da banheira, descalçou os
saltos, deu um suspiro dramático e depois perguntou:
— Qual número você veste?
Capítulo 5
O barulho do chuveiro ligado abafava os sons do lado de fora do banheiro.
Vez ou outra, Kim reduzia o jato só para ter certeza de que não estava
ouvindo portas se abrindo ou coisas se quebrando.
Quando saiu, ainda enrolada na toalha, se deparou com Tripé em cima
do sofá, sentado, com os olhos grudados no episódio da série que passava
na televisão. Ao seu lado estava Eleanor, com as pernas esticadas,
convivendo pacificamente com o cachorro, como se os dois não tivessem
quase se atracado na noite passada. A loira ergueu o pescoço e encarou a
figura estática e patética de Kimberly no corredor, pingando água no piso.
— Parks & Recreation deve estar tipo no topo das sitcoms mais chatas
que já existiram, e, por algum motivo, você tem todas as temporadas em
DVD — disse ela. — E ainda viciou o seu cachorro nisso.
As bochechas de Kim arderam. Tanto pelo comentário indiscreto
quanto pelo fato de que Eleanor estava vestindo uma de suas blusas curtas,
que nela ficava mais curta ainda, mostrando parte da barriga. Também
vestia sua saia velha de pregas da época do colegial. Devia ter jogado
aquela peça fora há muito tempo, mas ela parecia se encaixar perfeitamente
no corpo da vampira. Era uma visão bonita no mínimo.
— O que ela fez com você, bebezinho? — perguntou ao cachorro, ao
perceber que seus olhos estiveram passeando pelos lugares errados por
tempo demais. — Ela te enfeitiçou?
Tripé girou o pescoço para olhar para Kim de forma breve, mas a
verdade era que ele não podia se importar menos.
Cachorro dissimulado.
— Eu não enfeitiço ninguém, eu enveneno, é diferente. — Kim olhou
feio para ela. — Não vai se vestir?
A mercenária ainda estava impressionada. Tripé estivera preso pela
coleira quando o deixou em seu quarto, mas agora estava ali,
confraternizando com sua prisioneira. Isso a fazia questionar aquilo que
dizem sobre cães serem bons julgadores de caráter. Ele devia estar
enxotando a vampira da casa à base de latidos e mordidas, como achou que
ele faria da primeira vez.
Ou talvez ele só tivesse sintonizado com a energia dela e, ao perceber
que Eleanor estava caminhando por sua casa e agora dividindo o espaço
com ele e sua tutora sem demonstrar hostilidade, deixara vir à tona seu lado
amigável e doce.
Isso era um mal sinal.
Eleanor seria sempre uma ameaça e deixar de vê-la como tal era um
erro. Sua natureza era cruel, a prova eram as vidas que ela tirara e se
vangloriava por isso.
Por que, de repente, Kimberly se via precisando repetir para si mesma
todas as coisas que ela sabia sem nenhum esforço horas atrás?
***
— Temos um problema — disse Eleanor.
Elas estavam dentro do carro. A BMW X6 que Kimberly também
havia “sequestrado” por tabela. A caçadora dirigia enquanto a outra
encarava os próprios punhos e o reflexo insípido no espelho. As marcas da
corrente haviam sumido, mas as das algemas ainda estavam ali. Ela não
estava forte o suficiente, havia passado muito tempo desde a última vez em
que se alimentara e isso deixava seu rosto ainda mais pálido, a pele e os
cabelos secos, lhe dava lábios partidos e olheiras escuras.
Ainda era bonita, mas não era a Eleanor Belmonte.
— O que você quer que eu faça? — perguntou Kim, sem tirar os olhos
do caminho. Deu um pulinho de susto no banco quando sentiu as unhas
longas de Eleanor percorrendo a extensão de seu antebraço. — Não. Nem
fodendo.
— Não posso entrar no banco desse jeito. — Ela gesticulou para o
retrovisor. — Vão desconfiar que tem alguma coisa errada. Podem até
chamar a polícia.
— Eu não vou deixar você cravar os dentes em mim e sugar meu
sangue, Eleanor.
— Prometo que não vai doer nada. — Sua voz se tornara sedosa outra
vez. — Não vai nem ficar uma marca.
— Não é isso.
— Ou é você ou eu vou ter que achar outra pessoa pelo caminho. — A
loira deu de ombros. — Você escolhe.
Kim bufou alto. Quis acertar os punhos cerrados sobre o volante da
BMW, mas se controlou. A desvantagem de viver sozinha é que não tem
ninguém para te aconselhar a não fazer merda. Esse era o tipo de situação
em que mesmo um amigo menos íntimo te avisa que você não deve se
meter.
Quando estacionou o carro na esquina da agência bancária, contou até
3 em sua cabeça para abandonar a vontade de saltar do carro e sair correndo
e, enfim, estendeu o braço para a vampira.
— Você vai beber o suficiente. — Ela ergueu o indicador em direção
ao rosto de Ellie. — E nem uma gota além disso.
— A menos que você queira.
Antes de consumar o ato, Eleanor traçou as tatuagens da caçadora com
os olhos. Símbolos orientais, desenhos disformes que mais pareciam
rabiscos ou as pranchetas do teste de Rorschach, um corvo, uma pata de
cachorro, coelhos, letras soltas dos alfabetos latino, grego e Hangul e um
arame farpado.
Nada parecia dialogar entre si, mas transformavam a pele amarela da
garota num quadro peculiar, evocativo.
Então aconteceu rápido: as presas perfuraram a artéria radial e ela foi
sentindo a cabeça ficar leve. Seu coração estava acelerado como um motor.
A última coisa que se lembrava de ter sentido era a ponta quente da língua
da vampira lambendo o ferimento. Depois, tudo ficou escuro.
***
Fagulhas de luz branca trouxeram Kimberly de volta à consciência como
explosões estelares num céu escuro. Ela ainda estava no carro, com os olhos
ansiosos de Eleanor sobre si. Tinham se passado apenas alguns minutos,
mas o suor gelado sob a pele fria fazia tudo parecer mais devagar do que
realmente era.
Então, lembrou-se do que tinha acontecido, apesar de não haver mais
dor ou marcas de presas.
— Eu disse para beber só o suficiente — irritou-se, se sentindo
violada.
— Você não comeu nada hoje de manhã, não foi?
— Não interessa se eu... Ah. — Ela se lembrou da garrafa de cerveja
pela metade abandonada no fundo da pia. Não comia desde a noite passada.
— É claro que eu não comi. Tinha um pandemônio acontecendo na minha
vida, se ainda não deu pra notar. E ele ainda está aqui. — Kim cruzou os
braços.
— Foi o que eu pensei. Vamos pegar o seu dinheiro e depois você vai
usar um pouco dele num jantar decente — comandou Eleanor, abrindo a
porta do carro para descer. Seu rosto e lábios estavam rosados outra vez, as
marcas tinham desaparecido, os cabelos dourados reluziam como se
tivessem acabado de sair do salão.
— Uau. Está bem, mãe.
— Não estou preocupada de verdade, só preciso que esteja de pé para
cumprir sua parte do trato — disse, já do lado de fora, se reclinando sobre a
janela. — Mas tudo bem se quiser me chamar assim, sei que você tem
mommy issues.
E daddy issues, e todo o tipo de issues que uma garota órfã pode ter,
completou em sua cabeça. Não era uma ofensa, era um fato; mas Eleanor
não falaria com ela daquele jeito.
— Não espero que entenda, ainda mais vindo de uma pessoa cujos pais
ainda são casados — disse Kim sem olhar pros lados, enquanto elas iam em
direção à porta giratória do banco. — Você não é capaz de entender e nunca
vai ser, porque o vazio que existe em mim foi entalhado por um de vocês
quando minha família foi morta. Já o seu está aí desde que você saiu do
útero. Somos muito diferentes.
E enquanto a adolescente que ela fora teria dado tudo para ser um
pouco mais como Eleanor, a versão adulta de Kimberly dava graças aos
céus por não serem parecidas em absolutamente nada.
— Não vai entrar? — perguntou Han. Ellie estava parada diante do
capacho com o olhar ensimesmado quando Kim perguntou. — Já está quase
anoitecendo.
— Eu não sabia — disse a loira. — Que seus pais tinham sido mortos
por...
— Como você ia saber? Eu nunca te contei. Não fomos amigas, não
somos e nunca seremos amigas. — A caçadora estreitou os olhos e apontou
a entrada do banco com a cabeça. — Depois de você.
Ela então girou a porta sem nenhuma delicadeza.
Queria ser arrastada para fora daquele pesadelo com o toque de seu
despertador e descobrir que estivera dormindo durante todo esse tempo.
Sentia formigar em suas veias o rastro de veneno vampírico e isso a fazia
sentir culpa por ter aceitado entrar nessa só pelo dinheiro. Tinha acabado de
passar sabe-se lá quanto tempo desacordada num carro escuro com uma
garota que não só era sua arqui-inimiga do ensino médio, como também
uma assassina sádica por natureza.
E estaria mentindo se dissesse que o fato de ter acordado inteira para
contar a história não a fazia ficar um pouquinho menos tensa na presença
dela. Porque, de alguma forma, suas intenções sempre se provavam
verdadeiras; e toda vez que Kim esperava o pior, não era isso que via
acontecer diante dos seus olhos.
Mas o gado a caminho do abatedouro também não vê a face da morte
até sentir o primeiro rasgo da faca afiada no pescoço.
Capítulo 6
Todos aqueles dígitos a mais em sua conta bancária fizeram Kim se
esquecer de seu incômodo por estar na companhia de Eleanor Belmonte; e
ela dirigira durante os quinze minutos até seu restaurante favorito pensando
em como gastaria cada milhar. Tinha vislumbres de um apartamento perto
do litoral, com uma varanda espaçosa para Tripé, e uma pequena adega
particular. Talvez pudesse ter um arsenal disfarçado de adega, o que talvez
não fosse prático, mas não precisava ser; faria só pela estética.
Bebidas alcóolicas e armas de caça estavam entre suas coisas favoritas.
Ao sentarem-se à mesa perto da janela, Kim começou a bater os pés
inconscientemente, aguardando a comida e também o momento em que
receberia a mensagem que diria que ela podia se livrar da filha do prefeito.
Toda a sua ânsia estava restrita àquele momento; depois que cumprisse sua
parte do acordo, estaria livre.
Adeus, cidade mórbida.
Tiraria férias de vampiros assassinos por um bom tempo.
Era quase seis da tarde e o sol já estava se pondo, banhando as ruas de
laranja-forte enquanto a brisa brincava com as folhas e o com o lixo da
calçada. Aquele era um bairro mais antigo e afastado do centro que tinha
pouco ou nenhum planejamento urbano. Tudo era disforme, mas Kim se
sentia parte daquilo, já que vivera ali com seus pais na infância.
— Você me trouxe até o outro lado da cidade para comer carne crua?
— disse Eleanor enquanto corria os olhos céticos pelos pratos que foram
servidos diante das duas.
Sem dizer nenhuma palavra, Kim levantou o tampo da grelha anexada
à mesa delas, apertou os botões para ligar e jogou as fatias da carne sobre o
metal. O chiado borbulhante das fatias assando a fez salivar.
— Nunca comeu churrasco coreano?
A vampira a encarou sem precisar dizer nada para explicar como
aquela pergunta era estúpida por uma dezena de motivos. Kim sentiu a
ponta de suas orelhas ficarem quentes, envergonhada. Um mal-estar subia
pela sua garganta toda vez que se lembrava do que Eleanor se alimentava.
Não entendia como algo assim podia escapar de sua consciência tão fácil.
A verdade era que Eleanor possuía uma aura inegável de charme e
simpatia, um sorriso largo de dentes brancos e alinhados que ficava ainda
mais intenso nas vezes ínfimas em que demonstrava resquícios de empatia.
Exercia poder, mesmo só com o esticar das linhas finas de seu rosto.
— Mas para tudo tem uma primeira vez. — Belmonte deu de ombros.
Quando a loira levou uma tira fina de carne até a boca e mastigou, foi
como ver um lobo selvagem comendo McDonald’s.
— E então? — perguntou Kim com as sobrancelhas arqueadas. —
Melhor do que sangue, né?
Eleanor comprimiu os lábios, ainda apreciando o sabor da gordura que
derretia sobre a língua, então sorriu depois de engolir.
— Não, mas é melhor do que muita coisa que já comi.
— Eu não sabia que você podia comer comida de gente.
— Você não lembra do projeto de Literatura que fizemos juntas no
segundo ano? Eu te convidei para a minha casa depois da aula, nós levamos
o dia todo para terminar e meu pai fez o jantar pra nós duas, porque ficou
muito tarde e você disse que estava ficando com fome.
— Porra, é claro que eu não lembrava. Isso faz anos.
Mas, agora que a memória havia sido desbloqueada, Kimberly tinha
vislumbres de uma casa luxuosa e muitíssimo limpa, um candelabro de
cristal e um aparelho de jantar que pagaria dois meses do salário do seu pai
na polícia.
— Puta merda, agora que eu me toquei: aceitei jantar na sua casa
correndo o risco de ser o prato principal.
Pela primeira vez, Eleanor deu uma risada que não continha nenhum
tom de cinismo ou ironia. Era um riso espontâneo, suave como o tom de
rosa das maçãs de seu rosto.
— Foi a primeira e única vez que fiz dupla com alguém que debateu
comigo sobre como fazer o trabalho. Eu sempre mandava as pessoas
fazerem do meu jeito.
— Óbvio. Eu era bolsista, não podia arriscar tirar uma nota baixa.
— E eu era a maior overachiever de todo colégio. Não íamos tirar uma
nota baixa. — Eleanor cerrou os olhos. — E, depois do pesadelo que foi
aquela tarde, eu achei que ficaríamos amigas. Mas você foi uma grossa
quando nos falamos no outro dia.
Kim tossiu, engasgando-se com a comida.
— Do que você está falando?
A vampira riu da cara dela, que estava tomada por um tom sutil de
rosa.
— Te procurei no intervalo e tentei puxar assunto sobre o jantar,
porque, no fundo, eu te achava interessante. Mas você fingiu que não estava
ouvindo, então fiquei irritada e fui embora.
— Espera, você disse que me achava interessante? — A caçadora
arqueou as sobrancelhas e reclinou o corpo, tentando forçar as sinapses do
seu cérebro a processarem aquela informação.
— Você era uma sabe-tudo como eu. Meio misteriosa, excêntrica, emo.
Fazia meu tipo. Além do mais, existe uma linha muito tênue entre
curiosidade e paixão platônica.
— Eu fazia seu tipo? — As bochechas de Kim arderam. Sua cabeça
estava explodindo com aquela revelação.
— Não importa. Pra quem está acostumada a ter tudo e todos na palma
da mão, não é fácil aceitar quando não consigo alguma coisa que eu quero.
— Olha só, eu não tinha muitos amigos, tá? E você e sua turma de
patricinhas e jogadores de futebol eram o meu pesadelo na Terra. Eu não ia
ser toda sorrisos para você só porque foi legal comigo por um dia.
— Mas deveria. Se fosse minha amiga, as pessoas iam ter te deixado
em paz.
Kim revirou os olhos.
— Nunca fui de me importar com o que os outros pensam, se ainda não
deu pra notar. — Ela apontou para si mesma. A mercenária era uma mistura
de estilos que iam do emo ao punk e ao “eu não dou a mínima”. — Quanto
mais com um bando de adolescentes cujo ápice do humor era me chamar de
“japa”, mesmo sabendo que sou coreana.
— Kimberly Han? — Antes que Eleanor pudesse responder, uma voz
masculina emergiu do ruído do restaurante. — Caramba, há quanto tempo
eu não te vejo?
Kimberly olhou para trás para ter certeza de que tinha reconhecido o
dono da voz e estava certa: era o melhor amigo de infância e ex-namorado
do seu pai. Pedro Yoon também tinha pais vindos da Coreia e os dois
cresceram juntos, tinham a mesma idade e gosto para músicas; mas,
enquanto Jorge se mudara com a esposa e a filha, Pedro continuou morando
no mesmo bairro com o marido. Ao menos, era disso que Kim se lembrava.
A última vez que o vira fora no funeral de seus pais.
Sua família tinha muito carinho por Pedro e ter um pai bissexual, que
falava abertamente sobre isso, foi um divisor de águas quando ela começou
a olhar diferente para as garotas na escola aos treze anos.
— Bastante tempo. — Ela se colocou de pé e cumprimentou o homem
com um aperto de mão, mas ele a puxou para um abraço quase paterno. —
Como estão as coisas?
— Estou ótimo. Estamos ótimos — respondeu, referindo-se ao marido
com um sorriso largo. — E com você?
— Estou bem, na medida do possível. — Ela mordeu o lábio por
dentro e balançou os ombros. — É bom te ver.
— Poxa, você está tão diferente, tão crescida e cheia de tatuagens
descoladas. Estou mesmo ficando velho. — Ele então tirou o celular do
bolso. — Vamos mandar uma foto nossa para o Júnior.
Eles juntaram os rostos para tirar uma selfie, em seguida Pedro gravou
uma mensagem de voz dizendo:
― Amor, você não vai acreditar quem eu encontrei no restaurante! A
filha dos Han!
Havia alegria em sua voz, mas também uma pitada agridoce de
memórias tocadas pela tristeza do luto que, mesmo tendo ficado em um
passado distante, doía. Kimberly sentia isso o tempo todo; ainda que se
parecesse com o furo rápido de uma agulha fina.
— Foi bom te ver, Kim — disse ele. — Desculpa por ter atrapalhado
seu encontro, mas eu tinha que vir te dizer um “oi”.
Kim franziu o cenho, confusa com a frase. Só entendeu que Pedro
tinha confundido a situação depois que ouviu a risadinha irônica de Eleanor
atrás de si.
— Ah, não, isso não era... Não estamos num encontro — esclareceu,
perplexa que a possibilidade tenha sido sequer considerada. — Não mesmo.
— Desculpa. — Pedro riu, enquanto a face da garota ardia. — É que
vocês estavam conversando com uma energia de primeiro encontro. De
qualquer forma, tenho que ir agora, o Júnior está me esperando com esse
filé. — Ele ergueu o saco de papel que carregava consigo. — Nos vemos
por aí.
Eles trocaram acenos enquanto o homem fazia o caminho até a saída;
depois, Kim se sentou outra vez e checou o celular. Nenhuma novidade,
nenhuma mensagem de Marta dizendo que o sinal estava verde. A vampira
do outro lado da mesa a olhava como uma jogadora de xadrez que aguarda
o oponente fazer o próximo movimento.
A comida estava quase no fim, e já estava escuro lá fora. Kim se
levantou outra vez e disse:
— Levanta. Vamos voltar pro meu apartamento.
Capítulo 7
Kimberly devia ter voltado para o apartamento.
Devia ter seguido o lado racional da sua consciência que dizia que era
melhor sentar no sofá e assistir o próximo episódio de Dexter até o
momento de livrar-se de Eleanor Belmonte chegar.
Só que, ao invés disso, ela se deixou convencer a dar uma voltinha pelo
parque de diversões do bairro. Estavam fazendo o caminho de volta quando
avistaram de longe as luzes da roda gigante e a nostalgia lhe atingiu como
um taco de beisebol. Aquele lugar era pré-histórico; guardava memórias
nunca visitadas da infância de Kim em cada um dos brinquedos de
segurança duvidosa.
Tinha gente por todos os cantos, o que não era nada incomum para um
sábado à noite, mas a aglomeração de corpos deixava a mercenária zonza.
Aquelas luzes coloridas piscando diante dela, as conversas e risadas altas e
o cheiro de pipoca doce bagunçavam seus sentidos. Já tinha esbarrado em
pelo menos umas três crianças pequenas, tentando abrir o caminho até a
barraquinha de tiro ao alvo.
— Você sabe atirar? — perguntou Kim, assistindo Eleanor tomar posse
de uma das espingardas falsas.
— Eu não preciso — respondeu ela, erguendo a arma na altura dos
ombros. — Mas sim, eu sei.
O rapaz que tomava conta do estande olhou a loira com um quê de
incredulidade; isso até Eleanor derrubar o primeiro alvo. Um sorriso
presunçoso formou-se no canto dos lábios dela à medida que não errava
nem uma vez sequer.
Kimberly se impressionou até o momento em que se deixara esquecer
das vantagens naturais da vampira. Mas, antes disso, observara
minuciosamente cada movimento suave que Eleanor Belmonte fazia,
alternando de um alvo e outro, calculando a trajetória dos projéteis,
movendo os cabelos dourados para trás dos ombros para que não a
estorvassem.
Os olhos azuis miravam cada um dos alvos como se fossem suas
presas. Eleanor sempre foi assim: intensa, brilhante, inesquecível; mesmo
fazendo algo tão frívolo como brincar de tiro ao alvo num parque velho da
cidade. Kim conhecera outros vampiros, mas, verdade seja dita: nenhum
deles era como ela.
— Acho que já posso escolher meu prêmio — disse a loira, depois de
derrubar o último alvo. — Vou querer o panda-vermelho de pelúcia.
O sorriso em seus lábios se alargou ainda mais quando o rapaz a
entregou o bicho dentro de um saco plástico fechado com um laço. Era uma
pelúcia grande, do tamanho do antebraço de Kim, e tinha olhos brilhantes
enormes.
— Isso é trapaça — disse a caçadora, cruzando os braços.
— É. Eu sei. Não vai tentar?
— Não. Vamos achar outro brinquedo — respondeu mal-humorada,
marchando para outro canto. Eleanor riu.
— Está com medo de não ser tão boa quanto eu, não é?
— Não sei se você lembra, mas quem acordou algemada na minha
banheira foi você e não o contrário.
— Não é justo, você me pegou de surpresa. — Ela se recostou na grade
da fila para a roda-gigante e pegou o celular.
— Por que mesmo eu deixei o seu celular com você? — perguntou
Kim. Era uma vergonha como sequestradora.
— Não tem nada aqui que você já não tenha visto. — Ela virou a tela
que mostrava as mensagens com sua irmã mais nova. — Espera aí, você viu
minhas fotos de lingerie também, não viu?
— Claro que não! — Kim ofendeu-se. — Não sou uma degenerada.
— Que pena, elas são muito boas.
As duas se sentaram no banco apertado da roda gigante. Era daqueles
abertos de sentar que só cabem duas pessoas muito magras e olhe lá.
— Digamos que eu estava distraída demais com... Outras coisas. —
Lembrar-se de todos aqueles cadáveres fez um frio subir por sua espinha.
Houve um momento de silêncio até acionarem o brinquedo. A roda
começou a girar lentamente, elevando-as cada vez mais. À medida que
subiam, os arredores iam ficando cada vez menores e pontinhos de luz
emergiam da escuridão noturna. Era uma vista bonita, mesmo que
estivessem num bairro tão simples.
Kim olhou para baixo e viu as luzes coloridas do parque piscando em
padrões aleatórios. Depois, viu essas mesmas luzes nos olhos de Eleanor
quando ergueu o rosto e percebeu que eles estiveram nela todo esse tempo.
Elas estavam perto demais, seus ombros se tocavam e havia mais calor ali
do que o comum para aquela época do ano.
— Aquelas pessoas... aqueles homens que você viu no meu celular...
eles não eram boas pessoas — disse a loira, sem quebrar o contato visual.
— Eu sempre gostei de caçar, não vou mentir, já machuquei pessoas
inocentes...
— Matou — corrigiu Kim. — Você matou pessoas inocentes.
— Nos primeiros anos, quando a minha sede estava fora do controle,
eu matei. Mas não fiz mais. Não matei mais ninguém, até receber a notícia
que uma das minhas melhores amigas tinha sido violentada por um cara que
colocou droga na bebida dela numa festa universitária que ela foi. Ela
estava animada para começar a faculdade, mas depois do que aconteceu, ela
não conseguia mais sair de casa ou se relacionar com outras pessoas. Essa
merda a deixou em pedaços.
— Já estou vendo para onde vai essa conversa e já adianto que isso não
importa. Suas justificativas não vão me fazer voltar atrás no que eu disse.
Aliás, nem sei se isso é verdade mesmo ou se você só quer me convencer a
apagar aquele documento.
— Não ia te pedir para apagar nada, mas queria que soubesse que eu
não sou o monstro que você pensa. Vou atrás de caras que não sabem ouvir
“não”, que são violentos ou até assassinos. Sei que eles são seres-humanos,
que a vida para vocês é sagrada e que a família deles provavelmente vai
chorar e toda essa conversa fiada e sentimental, mas antes a deles do que a
de alguma garota inocente que só saiu de casa para curtir a noite.
Kim sentiu a boca secar, porque concordava com cada palavra. Era por
isso que havia escolhido ser uma caçadora. Seus pais morreram de um jeito
violento em circunstâncias suspeitas depois que seu pai começou a
investigar um caso de corpos estripados dentro de caçambas. O velório foi
com o caixão fechado, pois os corpos estavam irreconhecíveis, e ela ouvira
um colega de seu pai dizer: “O que os matou não era humano.”
Mas, na época, Kimberly não sabia de nenhuma criatura não-humana
que era capaz de matar dois adultos dentro de um carro fechado.
E entender que a morte dos seus pais não havia sido acidental fizera
com que o luto se transformasse numa vontade irrefreável de descobrir o
que acontecera e buscar vingança. E cada monstro que ela matava a deixava
mais perto de consegui-la. Mas Eleanor era como eles.
Não era?
Claro que sim.
E as duas não tinham nada em comum.
  — E você está me contando isso por quê? O que importa o que eu
acho ou deixo de achar? — Ela deu um sorrisinho enigmático e arqueou
uma das sobrancelhas; precisava achar um jeito de quebrar a conexão
momentânea que havia se formado entre as duas. — Estou começando a
achar que você ainda não superou a quedinha que tinha por mim no ensino
médio e está tentando me fazer gostar de você de volta.
— Então está funcionando? — A vampira rebateu, ágil como se fosse
num jogo de ping-pong.
Kim corou. Estava tendo um baita de um gay panic porque, por mais
que Eleanor fosse uma assassina impiedosa, ela ainda era a mulher mais
linda que a caçadora havia colocado os olhos; mas, se alguém perguntasse,
negaria até sob tortura.
— Não. — A morena cruzou os braços. — Ainda acho que é uma
armadilha, você não vai me convencer que...
Eleanor Belmonte a beijou.
E o erro de Kimberly foi levar mais que dois segundos para se afastar.
Porque dois segundos foram o suficiente para que ela sentisse o gosto de
cereja e a maciez dos lábios da vampira e se viciasse. Paralisada, Kim
entreabriu a boca para protestar, mas em sua mente só havia o torpor.
Torpor e desejo.
Isso estava tão claro pelo modo com o qual seus olhos encaravam os
lábios vermelhos de Eleanor, que ela preferiu fechá-los e se entregar.
A mais de 30 metros do chão, Kimberly sentiu que estava prestes a cair
em queda-livre.
E elas se beijaram de novo, suas bocas se encaixaram como se feitas
uma para a outra. A caçadora já havia sentido borboletas no estômago, mas
dessa vez elas estavam em chamas, incendiando tudo, e o contato das peles
sob a roupa pareceu insuficiente. A avidez com a qual as mãos de Eleanor
apertavam sua cintura e puxavam os fios de cabelo da sua nuca a faziam
estremecer.
Mas era a vez de Kim ter o controle.
Debruçou-se sobre a loira até onde a trava de segurança permitia, sem
se importar com as pessoas ao redor que podiam vê-las enquanto o
brinquedo dava voltas. Quando afundou os dentes no lábio inferior de Ellie,
a vampira gemeu baixinho e Kim esboçou um sorriso lascivo entre o beijo.
Queria ir além, antes que a realidade a atingisse como uma bola de
demolição. Sua euforia mal deixou que impedisse seus dedos de subirem
pelas coxas de Belmonte e se esgueirassem por debaixo da saia, onde era
ainda mais quente.
Mas o celular dela tocou e o fogo se extinguiu tão rápido quanto
começara.
Elas partiram o beijo e as borboletas em chamas de seu estômago eram
agora cinzas, lhe causando náusea.
Capítulo 8
Elas precisaram esperar a roda completar as últimas 5 voltas antes de
descer.
Era isso então.
Na ligação que recebera da sua agente, Kim tivera a permissão para
entregar Eleanor aos “sequestradores”. E a primeira coisa que ela pensara
fora: Ufa. Acabou. Mas, por que no caminho para o carro, ela torcia para ter
mais algumas horas?
Seu corpo havia esfriado e o vazio gélido se tornara um incômodo que
ela jamais imaginara que seria tão difícil de superar. Havia sido beijada por
Eleanor Belmonte e cada centímetro de sua pele havia traído seus
princípios. Naquele momento, sentada no carro com nada além do silêncio
caótico dentro de sua mente, Kimberly queria despertar do transe.
 — Você vai dirigir? — perguntou Eleanor.
As mãos de Kim seguravam o volante com tanta força que os nós de
seus dedos estavam esbranquiçados. O rosto dela formigava e seus olhos
apontavam para o lado de fora, mas não via coisa alguma diante de si.
— Eu... — A caçadora limpou a garganta. — Eu vou sim.
Girou a chave e, se o carro não fosse automático, com toda certeza
teria morrido ali mesmo. O freio de mão ainda estava puxado quando ela
pisou no acelerador.
— Vamos pra minha casa. Preciso trocar de roupa e pegar uma coisa lá
― disse Ellie.
— Coloca no GPS.
Por mais que a vampira tenha se surpreendido com a facilidade com a
qual a garota aceitara a ideia, ela rapidamente digitou o endereço da mansão
dos Belmonte na tela e a viagem seguiu silenciosa.
O alarme de que isso podia ser uma má ideia soava mil e uma vezes lá
nas camadas profundas do cérebro de Kimberly, mas, sendo franca, depois
de ter beijado Eleanor e gostado disso, se os Belmonte sugassem seu sangue
e jogassem seu corpo numa vala, estariam lhe fazendo um grande favor.
— Você está bem?
Kim tirou os olhos do trânsito e encarou a vampira por alguns
segundos. Não sabia se era uma pergunta de verdade ou se Eleanor só
estava curtindo com a sua cara, porque a vampira vestia sua expressão
indecifrável de sempre.
— Você me beijou.
— Sim, e daí?
— Por quê?
— Não adianta fingir que não gostou. Ficou claro como água que você
gostou e gostou bastante.
— Você não respondeu: por que você me beijou?
— Porque eu senti vontade.
— Então é sempre assim com você? Quando sente vontade de beijar,
machucar ou matar alguém, vai lá e faz?
— É. É exatamente assim. Não escondo o que eu penso e nem as
coisas que eu quero. Devia tentar, é melhor do que se esconder.
Kim girou o volante, parou o carro ao lado de uma calçada, abriu a
porta e saiu. Estava cega de raiva. Tinha raiva de Eleanor, sim, mas
principalmente raiva de si mesma por ter sido tão estúpida e caído naquela
armadilha óbvia. Em poucas horas, tudo em que ela acreditava tinha sido
posto à prova e isso porque se deixara levar pela lábia daquela maldita
vampira e por sua própria ganância.
Precisava de um tempo para clarear as ideias. O fato de que pensara,
por um segundo sequer, que se aliar a Eleanor Belmonte era uma boa ideia,
mostrava sinais de um declínio grave à insanidade.
— Onde você pensa que vai? — As unhas longas de Eleanor
afundaram na pele de seu braço e a impediram de dar mais um passo para
longe.
Kim se virou para se encontrar com os olhos azuis que ardiam diante
de si. Era agora que a vampira revelaria sua verdadeira face e ela sabia
disso. Ela nunca gostou de ser contrariada.
— Vou voltar pra casa. Te mando por mensagem o endereço que
combinei com o cliente e você se vira — respondeu Kim, rápida como um
gatilho. Tentou soltar o braço, mas não funcionou, e ela estava exausta
demais para insistir.
— Não foi isso que combinamos. Você disse que ia me levar até lá.
— Também não combinamos que você ia ficar o tempo todo tentando
me convencer de que não é a assassina fria e desprezível que achei que
fosse. Não combinamos que você ia me beijar e que isso ia desgraçar a
minha cabeça! — Ela usou a mão que estava livre para afastar os cabelos da
testa e puxar os fios. — E o pior de tudo é que depois de um dia inteiro
fingindo ser alguém decente, você diz que eu me escondo? Você não faz
ideia do que é ser de verdade, Eleanor. Então me solta e me deixa ir.
— Tentei ganhar sua confiança, sim, mas não menti nem fingi nada.
Nem por um segundo. — A vampira revirou os olhos de maneira teatral e a
soltou. — Então pode ir, mas antes fique sabendo que foi tudo de verdade:
as nossas conversas, o beijo. E, se você conseguisse esquecer essa paranoia
de que eu estou tentando te manipular, perceberia.
Kim balançou a cabeça em negação e deu um passo à frente,
encurtando a distância entre os corpos das duas, com os ombros e o queixo
erguidos.
— Isso não faz nenhum sentido. Você quer a minha confiança para
quê? — perguntou em um tom afiado.
— Porque você me ajudou.
— Por dinheiro, não porque eu gosto de você.
— Só... para pra pensar um pouco. Qualquer um que soubesse o que eu
e a minha família somos e tivesse visto o que você viu no meu celular,
poderia conseguir muito mais do que eu te dei, Kimberly. Você foi justa e é
uma pessoa boa. — Ela cerrou os lábios e foi a primeira vez que Kimberly
viu Eleanor hesitar antes de dizer alguma coisa. — A coisa que mais fascina
sobre você é o que eu mais desprezo no resto das pessoas: sua humanidade.
Han deixou sua consciência sorver aquelas palavras. Podia virar as
costas, ir embora e nunca mais voltar a ver Eleanor Belmonte outra vez.
Podia sentar no meio-fio, contemplar o caos de sentimentos dentro de si e
procurar o bar mais próximo para beber até perder a consciência e esquecer
que estivera a um passo de trair seus próprios ideais.
Ou podia escolher ficar e decidir o que faria depois.
Não sobrevivera sozinha todo esse tempo tomando decisões
impulsivas; cada atitude que tomara até ali havia sido planejada com horas
ou até dias de antecedência. Mas, ali estava, prestes a fazer alguma
estupidez colossal da qual podia arrepender-se pelo resto da vida.
— Eu tenho problemas de confiança — disse Kim.
— Não brinca. — Eleanor arqueou a sobrancelha com um sorrisinho
no canto dos lábios. Tinha beijado Kim, mas o batom ainda estava
imaculado.
— Mas, convenhamos, mesmo se eu não tivesse, se coloca no meu
lugar. Você é um... — Ia dizer “monstro”, mas, preferiu frear o tom passivo-
agressivo. — Você é uma vampira. Eu te amarrei, te joguei no porta-malas
do meu carro, depois na minha banheira, ameacei te machucar e expor seus
segredos. Se alguém fizesse isso comigo, eu não culparia por quererem se
vingar.
— E você faria de novo? — Um vinco se formou entre as sobrancelhas
de Kim. — Depois de hoje, se alguém te oferecesse uma quantia ainda
maior de dinheiro para me sequestrar, para me matar, você faria mesmo
assim?
— Eu não sei.
Mas o breve instante de hesitação antes que a resposta fosse dada já
dizia muito por si só. Eleanor deu um sorriso. Um daqueles que faria
qualquer um entender a metáfora sobre sorrisos serem capazes de fazer os
olhos e rostos de uma pessoa brilharem.
— Dizem que tudo que não é um “sim” é um “não”, sabia?
— Também dizem que é melhor prevenir do que remediar, mas por que
me sinto tão disposta a ignorar a sabedoria popular?
— Porque você gosta de mim, Kimberly Han. Nem que seja só um
pouquinho — ela usou a ponta do dedo indicador para tocar o peito da
mercenária. — Lá no fundo, você gosta de mim.
Kim rolou os olhos e capturou a mão da vampira com a sua, fechando
o punho em torno do dela.
— Não por opção. — A caçadora desviou o olhar por alguns segundos,
depois encarou a loira que estava mais perto do que ela se lembrava. Os
olhos azuis a esquadrinhavam com uma desfaçatez provocante e ela ainda
não havia desfeito o sorriso. — Esqueceria esse dia inteiro se pudesse.
— Cuidado com o que você deseja. Posso fazer acontecer.
— O quê?
— É o meu superpoder secreto. Posso fazer as pessoas se esquecerem
das coisas.
— Tá brincando, né? — Mas não havia o menor resquício de humor no
tom da loira. — E você só me conta isso agora?
A outra deu de ombros.
— Não é como se eu saísse contando pra todo mundo. Ou se tivesse
algum contexto pra contar, porque você nunca cala a boca.
— Você... Não usou isso em mim, né? Tipo assim, enquanto a gente
tava juntas, você não apagou minha memória, apagou?
Eleanor bufou, irritada com a estupidez da pergunta.
— Me diz você: tem alguma coisa dessas últimas horas que você não
consiga se lembrar?
Era difícil dizer, porque depois de terem se beijado, todas as outras
memórias haviam ficado esmaecidas. Mas, não, nada estava faltando ou
fora do lugar. Kimberly seria capaz de ditar tudo, detalhe por detalhe.
Verdade seja dita, ela sempre soube onde estava se metendo.
Capítulo 9
A casa dos Belmonte parecia ter parado no tempo. A mobília com um quê
da era vitoriana era exatamente a mesma, desde a última vez em que pisara
lá há anos, e ela conseguia ver o próprio reflexo no piso polido de mármore
branco. Curioso como, quando crianças, ouvimos histórias sobre vampiros e
seus covis sombrios, poeirentos e repletos de morcegos; seu pequeno
apartamento se parecia mais com um covil vampírico do que aquela mansão
iluminada por tons quentes de branco e janelas cristalinas de quatro metros
de altura.
Elas passaram pelo hall de entrada, que estava silencioso feito um
convento e cheirava a sândalo, depois pela antessala da cozinha, de onde as
vozes do restante da família podiam ser ouvidas. Kim não ousou atravessar
o arco que dividia os cômodos. Precisava se lembrar que aquele era um
território hostil, por mais que repleto de rostos amigáveis.
A caçadora assistiu a vampira caminhar graciosamente até os pais e a
irmã mais nova; esta última a recebeu com um abraço, enquanto Lúcia
Belmonte e o marido pareceram surpresos com sua presença.
— Que roupas são essas? — perguntou a matriarca.
— Ei, mãe, eu estou viva, obrigada por se preocupar tanto — retrucou
Eleanor. Depois girou nos calcanhares para indicar que eles tinham visitas.
— Peguei elas emprestadas com a minha nova amiga.
— Eu já não conheço você? — O prefeito se manifestou, assim que
colocou os olhos em Kim e reconheceu seus traços.
— Nós estudamos juntas no ensino médio. Eleanor e eu.
— Estou ansioso para ouvir essa história.
— June, mostra para a Kimberly onde fica o meu quarto? Eu já vou
subir.
— Mas...
— Por favor? Prometo que vou te contar tudo depois. — Ellie tombou
a cabeça para o lado como um filhote, o que foi o suficiente para convencer
a caçula.
Aquela era primeira vez que Han ouvia Eleanor Belmonte dizer “por
favor” a alguém. E, por mais que não gostasse da ideia de deixar a loira fora
do seu campo de visão, sentiu que não era o momento de contrariá-la. Não
na presença dos pais. Kim não era a pessoa mais sensível do mundo, mas
qualquer um perceberia a tensão palpável que pairava no ambiente. Talvez
fosse só Lúcia Belmonte e o vinco entre as sobrancelhas que parecia nunca
sumir; ou a aura sinistra de apatia que ela podia perceber em todos eles
agora que sabia que não eram humanos.
Sem dizer uma palavra, ela seguiu Júniper escada acima até chegarem
no último cômodo do extenso corredor de portas de madeira entalhadas. Até
mesmo a maçaneta parecia ter saído direto de um filme de romance
histórico.
Mas, do lado de dentro, traços da personalidade de Eleanor revelavam-
se aos olhos de Kim um por vez. Havia rosa e dourado por todas as partes.
Um retrato exageradamente grande, pintado a óleo, da vampira pairava
sobre uma lareira ornamentada, acima das caixas de joia que imitavam
livros velhos. Não havia uma ruga sequer no lençol da queen size com
dossel de madeira, até um gato angorá saltar sobre ela e esticar as patas
preguiçosamente.
É claro que ela tinha um gato branco, peludo e gordo dos olhos azuis.
Teria que prestar contas ao Tripé ao voltar para a casa com o cheiro do
felino.
— Você ajudou a minha irmã, não ajudou? — perguntou Júniper,
sentando-se sobre a cama e olhando Kim bem nos olhos.
— É. Ajudei.
Eu também entrei no carro dela escondido, apaguei ela com óxido
nitroso, joguei no meu porta-malas e depois a algemei na minha banheira,
mas, pff, detalhes.
— Obrigada. — O gato branco se estirou sobre as pernas da garota,
depois virou de barriga para cima para receber carinho. — Vocês são
amigas?
A mercenária caminhava em de um lado para o outro e quase tropeçou
no tapete felpudo ao ouvir a pergunta. Não era nada demais, era esperado na
verdade, mas isso não a fazia ter uma resposta.
Correu os olhos pelo cômodo outra vez, passando pela penteadeira
equipada com perfumes caros e pelo menos 20 tons diferentes de batom.
Uma escova decorada com pérolas estava ali também, esquecida num canto,
com um emaranhado de fios loiros nas cerdas.
— Acho que sim.
Não que ela tivesse beijado suas amigas alguma vez e sentido a pele
entrando em combustão.
Não que ela tivesse amigas, de qualquer forma.
— Eu sempre quis conhecer os amigos da Ellie, mas ela não traz
ninguém aqui — confessou June, afagando barriga peluda do gato; ela
abaixou o olhar. — Minha irmã não confia em ninguém, mas acho que ela
confia em você.
Os olhares delas se encontraram outra vez e, durante os minutos que
estiveram juntas, fora fácil esquecer que Júniper Belmonte era uma vampira
também. Ela era uma garota pequena, com os cabelos mais escuros e mais
ralos do que os de Eleanor, mas havia algo na beleza de ambas que tornava
claro o parentesco. Talvez fossem os rostos simétricos ou a imortalidade.
Às vezes, Kimberly se perguntava como seria sua vida se tivesse
irmãos ou irmãs. O mais perto que chegara da fraternidade foram as outras
crianças do abrigo em que estivera por um longo tempo até os 18 anos.
— Temos isso em comum — disse Kim. Sentou-se numa poltrona
confortável de couro perto de uma das janelas, de frente para Júniper. — E,
quer saber? Se você sempre esperar o pior das pessoas, elas nunca vão te
decepcionar.
— Quer parar de fazer a minha irmãzinha ficar amarga igual você? —
A voz de Eleanor surgiu da porta do quarto.
Kim revirou os olhos, corrigiu a própria postura na cadeira
involuntariamente e firmou os pés no chão. Havia algo diferente sobre a
vampira. A Eleanor que ela havia deixado lá embaixo não era a mesma que
estava ali e isso se traduzia pelos ombros caídos, o rosto vermelho e os
punhos cerrados. O momento que tivera com os pais não devia ter sido
agradável.
— Eu não disse nenhuma mentira. — Deu de ombros.
— Já deixei vocês duas sozinhas por tempo demais.
Só um olhar foi necessário para que a caçula dos Belmonte entendesse
que aquele era um convite sutil para que ela se retirasse. E ela foi, mesmo a
contragosto.
— A garota cresceu tendo você como irmã e é a minha companhia que
te preocupa?
A mercenária cruzou os braços e esticou-se na poltrona.
— A June é diferente, tá? — Antes que Kimberly pudesse retrucar, a
gata peluda saltou sobre as pernas dela. — Você está no lugar da Safira.
Han encarou a felina de rabo de olho. Não conhecia muitos gatos, mas
sabia que não era comum eles atacarem sem serem provocados ou se
sentirem confortáveis na presença de estranhos, por isso relaxou o corpo e
deixou que a bichana se acomodasse.
— Diferente como?
— Tipo... como você. Ela é toda boazinha e gosta de fazer as coisas
certas. — A loira se sentou sobre a cama, se livrou os sapatos e tirou um
elástico de dentro da gaveta da cabeceira para prender o cabelo num rabo de
cavalo. — Vai saber como ela ficou assim tendo sido criada nessa família.
A última parte da fala saiu carregada por uma mágoa ainda fresca.
Talvez fosse a hora de perguntar o porquê de aquela nuvem cinzenta estar
sobre si desde que aparecera no quarto.
— Ei, está tudo bem? Você parece... chateada.
— Deu pra notar? — Kim balançou os ombros como resposta. Era
claro como água na verdade. — Tá tudo bem, sim. É só que, às vezes, eu
esqueço que nessa casa é cada um por si.
Eleanor tornou a levantar, tirou a blusa sem mais nem menos e jogou-a
para Kimberly, depois fez o mesmo com a saia.
— Isso é seu — disse ela, caminhando pelo quarto usando somente
uma lingerie roxa. — Vou tomar um banho.
Ah, Kimberly pensou ter dito em voz alta. Ela estava hipnotizada feito
um cachorro que cobiça um pedaço de carne fresca. Uma mulher com
aquele corpo não devia ficar seminua na frente de alguém sem um aviso
antes. E é claro que Eleanor Belmonte sabia disso, e não apenas porque
conseguia ouvir as batidas descompassadas de seu coração naquele exato
momento. O sorriso ladino em seus lábios expressava bem mais do que ela
podia dizer.
— A gata comeu sua língua?
— Engraçadinha. — Kim virou o rosto, ao passo que suas bochechas
ardiam.
— Você fica uma graça quando está tímida desse jeito. — Com três
passos, ela parou diante da poltrona e apoiou-se sobre os braços do móvel
usando as mãos. A gata saltou dali.
— Eu não estou tímida! — Ela tornou a virar o rosto, relutando para
manter os olhos fixos nos da vampira, porque os seios dela ocupavam um
lugar privilegiado em seu campo de visão. — Estou sendo respeitosa, é
diferente.
Ellie deu uma risada fraca e anasalada.
— Olha só para mim. — Com o indicador, a loira ergueu o queixo da
caçadora. — E se a gente deixar o respeito para outra hora?
Ela deixou um selinho rápido nos lábios de Kim e foi o bastante para
que seu corpo esquentasse. A mercenária encarou o relógio de pulso que
usava: ainda tinham algumas horas. Depois, encarou a própria consciência.
Mas já era tarde demais, porque os lábios de Eleanor estavam nos dela e
suas mãos entrelaçadas a guiavam para dentro do banheiro.
Suas roupas foram arrancadas peça a peça até que a sensação da pele
de Ellie contra a sua se fizesse mais necessária do que o ar em seus
pulmões; a água morna da ducha podia evaporar ao tocar seus corpos.
Ao sentir os caninos de Eleanor arranharem a pele do seu pescoço, ela
se lembrou dos ensinamentos bíblicos que recebia sempre que ia a igreja
com a mãe nos finais de semana. O padre costumava dizer que se o Diabo
fosse feio, não teria tantos seguidores. Porque as coisas erradas nunca
parecem erradas; uma hora você está se deixando levar por um rostinho
sedutor e peitos grandes, na outra, está no inferno.
Mas Kim podia lidar com o inferno, contanto que Eleanor Belmonte
continuasse beijando-a daquele jeito.
A loira gemeu quando as mãos da outra alcançaram seus seios e
deixaram a marca de uma meia-lua nos mamilos com a ponta das unhas.
Mas o barulho da água corrente abafava sons e Han não se daria por
satisfeita tão fácil. Quando a caçadora percebeu uma leve pressão sobre
seus ombros, entendeu que a vampira queria que ela se ajoelhasse; e
obedeceu, deixando um rastro de seus beijos até o baixo-ventre.
Podia ser alguns centímetros mais baixa, mas, de joelhos, tinha a altura
perfeita para encaixar os lábios entre as coxas de Eleanor.
Depois de provar aquele gosto, Kimberly não se lembrava de ter
sentido nada melhor e sabia que Ellie sentia o mesmo, não só pelos gemidos
sôfregos que escapavam de seus lábios, mas também pelo jeito com o qual
suas mãos puxavam os cabelos negros e ela rebolava contra a sua boca.
O aperto ficou mais forte. O contato, o calor, a língua de Kimberly
deslizando avidamente para satisfazê-la, enquanto a água escorria por seu
corpo e tornava toda a pele mais sensível; Eleanor não se seguraria nem que
pudesse.
E quando Kim a sentiu escorrer em sua boca, foi a primeira vez que
não duvidou, nem por um segundo, das intenções da vampira.
Capítulo 10
Deitada sobre a cama de Eleanor Belmonte usando só uma toalha que era,
provavelmente, a coisa mais cara que Kimberly tocara em sua vida inteira, a
caçadora concluiu que era tarde demais para refletir sobre suas ações.
O que a Kimberly do passado diria?
E com passado, leia-se dois dias atrás.
O que seus pais diriam?
Talvez eles aceitassem que ela estivesse transando com uma vampira,
contanto que a vampira em questão não fosse a filha do prefeito. Que sorte
a deles estarem mortos agora e não terem esse desgosto.
A vampira estava ao seu lado com uma das mãos apoiando a cabeça e a
outra traçando suas tatuagens do braço direito com a ponta do dedo
indicador, enquanto suas costas arranhadas ardiam. A caçadora não saberia
dizer o que se passava dentro daquela mente, nem que sua vida dependesse
disso; mesmo depois de quase um dia inteiro de convivência e de terem
feito o melhor sexo da vida dela, Ellie ainda era um enigma.  
Um belo de um enigma. Um enigma que Kim queria desvendar, mas
sabia que ia morrer tentando. O panda-vermelho de pelúcia estirado no chão
do quarto era prova ocular de sua boa-vontade dúbia e tentativas vãs.
— Você se dava bem com os seus pais?
A pergunta de Eleanor surgira do nada. Kim aspirou rápido o ar.
― Na maior parte do tempo, sim. ― Usando os cotovelos, ela ergueu o
tronco um pouco e tombou a cabeça para o lado, ainda assistindo a loira
tocar os traços da tatuagem sob sua pele. ― Vou te contar uma coisa que a
maior parte das pessoas acha estranho, mas...
― Estou com medo do que você vai dizer. E olha que minha relação
com meus pais é a mais disfuncional possível.
Kim riu.
― Eles estão na minha tatuagem. Essa que você está tocando. ― Era
um yin-yang cercado por escamas dracônicas que se assemelhavam a
chamas. ― A tinta foi feita com as cinzas dos dois. É meio mórbido e às
vezes eu entro em pânico por saber que tem restos mortais na minha pele,
mas gosto de acreditar que é só um jeito diferente de levar eles sempre
comigo.
Ellie arqueou as sobrancelhas, um tanto quanto impressionada.
― Não dava para colocar uma foto deles na carteira como uma pessoa
normal? ― Elas deram risada juntas. ― Meus pais vão viver pra sempre, se
nada ou ninguém interferir, então não passei muito tempo pensando em
como seria minha vida se eles não existissem.
O tom da vampira era agridoce. Ela não olhou nos olhos de Kim
enquanto falava, o que quase nunca acontecia. Talvez fosse hora de mudar
de assunto.
― Você nunca me disse o motivo de eles não terem chamado a polícia
assim que souberam do sequestro.
― Porque meu... sequestrador sabe de coisas demais sobre essa
família. Eles não arriscariam, ainda que saibam que ele mais ladra do que
morde e que é só um idiota querendo o dinheiro e a atenção que nunca teve.
― E qual é o plano de vocês para pegar ele? ― A pergunta veio com
toques sutis de preocupação. ― Vocês têm um plano?
― Eu tenho um plano. Eu. Sozinha.
― O quê? Mas e seus pais?
― Eles gostam muito de mim ― ela esboçou um sorriso amargo ―,
mas preferem não sujar as mãos. Eu dou conta.
― Eleanor, eu realmente acho que... ― Seus lábios foram selados
pelos da loira num instante. Aquela boca, tão difícil de resistir, estava
borrando seus sentidos, pintando sua mente com tons saturados de
vermelho, deixando-a quente como uma fogueira outra vez.
― Está se preocupando comigo, que coisa mais adorável. ― Eleanor
afastou o rosto uns 15 centímetros para encarar o rosto corado de Kim. O
vislumbre daqueles olhos azuis assim tão perto era como encarar as portas
do purgatório. ― Juro que não conto pra ninguém.
Kim mordeu os lábios para conter um sorriso e infiltrou seus dedos nos
fios dourados de Eleanor. A vampira estava prestes a beijar o pescoço dela
quando o celular tocou outra vez.
Era hora de ir.
***
Elas entraram no carro de Eleanor, rumo ao endereço que o contratante dera
à agente de Kimberly para fazer a “entrega”. O local era afastado da cidade,
num trecho desativado da rodovia que ligava dois estados. Silencioso e
escuro para que não houvesse nenhum imprevisto ou testemunhas.
― Dois caras vão me esperar nesse quilômetro que eu te falei, a gente
para o carro um pouco antes e faz como combinamos ― disse Kimberly,
tirando os olhos da estrada por alguns segundos. A vampira estava no banco
do carona, com o aplicativo Maps aberto no celular. ― O que você está
procurando?
― Eu sei pra onde eles vão me levar. Ou melhor, acham que vão me
levar. Meus pais têm uma chácara nessa região.
― É claro que têm. ― Kim revirou os olhos e focou outra vez no
caminho diante de si. ― Tem certeza que não é perigoso?
Ellie abriu um sorriso cínico.
― Não para mim.
***
Um quilômetro antes de chegarem ao local combinado, Eleanor saltou
do carro e entrou no porta-malas e Kim dirigiu até avistar o pisca-alerta de
um SUV no acostamento. Ela parou o veículo logo atrás e, com uma Desert
Eagle .50 na cintura, desceu do carro e fez um sinal para que os homens se
aproximassem.
Eram dois armários de pelo menos 1,70 com músculos que saltavam
para fora das roupas, corte militar e tatuagens mal cicatrizadas, mas a
mercenária já tinha derrubado criaturas maiores e mais fortes antes.
― Ela está no porta-malas ― disse Kim.
― Imobilizada? ― um deles perguntou.
― Uhum.
― Como podemos ter certeza?
― Como você acha que eu enfiei ela lá dentro?
Os homens se entreolharam, deliberando a resposta atrevida, depois
deram de ombros. A tampa foi aberta pela caçadora e lá estava Ellie,
deitada, imóvel. Ela só abriu os olhos ao escutar o baque abafado da
coronhada que Kimberly acertara na cabeça de um deles. E antes que o
outro conseguisse reagir, a vampira se soltou das amarras frouxas em seus
punhos e pulou para fora do carro. Com seu comparsa apagado e o cano
gelado da arma de Kim em sua nuca, ele não teve outra escolha senão
erguer as mãos e se render.
Eleanor apalpou sua cintura e encontrou um revólver pequeno, que
guardou para si, depois fez o mesmo com o que estava desmaiado. Em
seguida, ergueu o corpo dele e o enfiou dentro do mesmo porta-malas onde
estivera.
― O que vocês querem da gente? ― perguntou o rapaz num lapso de
coragem.
― Você vai saber ― respondeu Kim, dando um toquinho no ombro
dele para que ele caminhasse em direção ao SUV. ― Entra no carro, liga
pro seu chefe e diz que está a caminho, depois dirige até o lugar que
combinaram de se encontrar. Se você se comportar direitinho, a gente jura
que não te machuca.
― Que mandona ― provocou Eleanor, logo atrás, assim que fechara o
porta-malas. ― Eu te ensinei bem.
Kim revirou os olhos.
― Cala a boca.
***
Eleanor estava certa. Eles planejavam mesmo levá-la para a chácara dos
pais.
A propriedade era extensa e fácil de ser transpassada. Com um
comando do refém, a porteira foi aberta. Kim e Eleanor estavam no banco
de trás, escondidas, mas com os dedos no gatilho.
O motorista parou o carro e não teve sequer um minuto para respirar.
― Fica aqui ― disse Eleanor para Kimberly, abrindo a porta com uma
das mãos enquanto a outra segurava firme o revólver perto demais da
cabeça do refém. ― Juro que não vou demorar.
― Vai entrar lá sozinha? ― Kim indicou com a cabeça a casa que,
assim como os arredores, estava tomada por um breu sinistro. ― Você nem
sabe quem pode estar lá dentro.
― Ah, eu sei sim.
― É perigoso.
― É. Para eles.
Ela desceu do carro e empurrou as costas do rapaz contra a lataria.
Aconteceu tudo rápido demais para Han ter certeza do que tinha visto, mas
a vampira olhou fixamente nos olhos do motorista e os dela cintilaram num
tom forte e quente.
O homem sacudiu a cabeça, mas não voltou a si. Parecia perdido como
uma criança sem a sua mãe.
― Estamos só nós dois aqui, entendeu? ― disse Eleanor.
Ela o puxou pela gola da regata e se posicionou por trás, usando-o
como um escudo de carne osso, depois deu um empurrãozinho para que ele
começasse a caminhar. 
Talvez Kimberly estivesse impressionada demais, mas tinha quase
certeza de que a loira usara seu poder para protegê-la. Isso era fofo e bizarro
ao mesmo tempo. Ela sabia onde estava se metendo, mas, será que sabia
mesmo? Das centenas de maneiras que ela fantasiou seu reencontro com
Eleanor Belmonte, estar sentada num carro no meio do nada, com um cara
apagado no porta-malas e o coração na mão de preocupação com a vampira
não estava em nenhum dos cenários.
Que merda.
Não deveria ser deixada sozinha com seus pensamentos. Aqueles
breves segundos de reflexão e consciência a atingiram como uma pancada,
bem na cabeça.
Podia fugir agora e fingir que nada acontecera.
Mas, verdade seja dita, não era o que ela queria fazer.
Se fosse honesta consigo mesma, o que queria fazer era entrar naquela
casa para garantir que nem um fio de cabelo de Eleanor fosse tocado.
Porque ela se importava. Não sabia em que momento das últimas horas
tinha passado a se importar, mas que diferença fazia?
Kim se remexeu, com a ponta dos dedos formigando e as pernas
começando a latejar. Pulou para o banco da frente e cutucou as saliências do
volante, bateu os pés e brincou com a trava da porta.
Trancado.
Destrancado.
Trancado.
Destrancado.
A espera parecia se arrastar pela elasticidade do tempo, mas o relógio
em seu pulso dizia que não haviam se passado nem cinco minutos.
Até que ela ouviu o disparo estrondoso de uma arma de fogo.
Capítulo 11
É difícil matar um vampiro com apenas um tiro, mesmo com uma bala de
prata. Você tem que atirar no lugar certo: na cabeça, na jugular ou no
coração e torcer para que o projétil certo faça o estrago necessário.
Habilidade conta, mas a sorte é a sua maior aliada.
Eleanor Belmonte estava perfeitamente sã, nem um arranhão
maculando sua pele alva. Mas não dava para dizer o mesmo do sujeito no
outro lado do cômodo.
Um furo de bala em seu ombro escorria sangue, manchando a camisa
clara de botões. Não era um rosto estranho, o que causou em Kim uma
sensação desconfortável, mas não fez com que ela abaixasse a arma.
Eles estavam a uns 5 metros de distância um do outro, numa sala de
estar que parecia ter saído de um filme de fantasmas da era vitoriana.
Móveis velhos, cobertos por lençóis poeirentos tomavam a maior parte do
espaço. As únicas coisas que não estavam cobertas eram os quadros da
família. E, ao olhá-los de relance, Kimberly descobriu o porquê de aquele
rapaz lhe ser tão familiar.
― Volta para o carro ― disse Ellie, entredentes, sem tirar os olhos do
alvo para o qual ela apontava a arma.
Volta para o carro.
Kim voltaria, mas estava paralisada.
Olavo Belmonte erguia uma das mãos até o ferimento para conter o
sangue. Era o irmão gêmeo de Eleanor e era impressionante como, por
também não terem divido a placenta, havia mais uma centena de traços que
os dividiam feito água e óleo. A arma da vampira devia estar carregada com
balas de prata, porque o ferimento já devia ter fechado, mas a expressão de
dor nos olhos do rapaz não aparentava intenção de deixá-lo tão cedo. Ele
era bonito, mas Eleanor o ofuscava o suficiente para que Kimberly tivesse
se esquecido por completo de sua existência até vê-lo outra vez.
Um sorrisinho cínico se formou nos lábios do vampiro ao notar o que
estava acontecendo.
― Quem é essa? ― perguntou ele, prestando atenção na mercenária
pela primeira vez. ― Você arranjou outro bicho de estimação, irmãzinha?
― Volta para o carro, Kimberly ― comandou ela outra vez. ― Agora.
Ele piscou os olhos azuis escurecidos.
― Kimberly Han? A do colégio?
Esse seria o momento em que Kim ia se perguntar como ele podia
lembrar-se dela depois de tantos anos, mas, outra vez: coreana num mar de
gente branca.
― Mas que merda tá acontecendo aqui? ― questionou Kim, sem saber
se queria receber uma resposta ou fingir um desmaio.
― Sou eu quem pergunto ― disse Olavo. ―É a reunião do ensino
médio? Não me diga que seus amiguinhos babacas estão a caminho
também.
― Você quer que eu atire de novo? ― Eleanor corrigiu a postura e
ergueu a arma um pouco mais.
Muitas perguntas passavam pela cabeça da mercenária, mas ela sabia
que a maioria delas podia esperar até que estivessem numa situação menos
hostil, mortal, seja lá o que fosse aquilo.
― Seu irmão é o sequestrador? ― Assumiu, ainda que a resposta fosse
óbvia. ― Mas...
 ― É, é ele ― disse Eleanor, interrompendo-a. ―Lembra que eu disse
que era um idiota?
― Você só esqueceu dizer que era um idiota da sua família e, porra,
por que ele tá fazendo isso?
― Tanta gente no mundo para me fazer esse serviço e foram me
arranjar logo a presidente do seu fã clube, não é, Eleanor? ― O rapaz se
intrometeu.
― Do que você está falando? A gente nem se gostava na época do
colégio ― retrucou Kim. Foi a primeira vez que ela deixou os músculos do
braço relaxarem e abaixou a arma.
― Foi isso que você disse para ela, Eleanor?
Uma risada cínica ecoou do fundo da garganta de Olavo. As ondas
sonoras causaram arrepios ao chegarem aos ouvidos de Kimberly; ela
pressentia que aquela seria a cena do monólogo do vilão, como em filmes
de super-heróis. Mas antes que ele pudesse falar, houve outro disparo. Um
furo na parede a poucos centímetros da cabeça do garoto.
― Fica calado ou eu não vou errar da próxima vez ― ordenou a
vampira.
― Não ― protestou Kim. ― Deixa ele falar.
A mercenária se arrependeu do pedido logo depois de tê-lo feito. Ela
tinha medo, porque uma parte de si desconfiava do que estava prestes a ser
jogado no ventilador.
― Acha mesmo que ninguém notava você olhando para ela feito um
cachorrinho faminto no último ano? ― Kimberly ia protestar, mas não
soube o que dizer. ― Acha que foi por acaso?
Os olhos da caçadora pousaram em Eleanor, como quem buscava nela
a resposta mais direta possível para a pergunta de Olavo. A loira revirou os
olhos e bufou antes de falar:
― Ele está tentando te confundir e, pelo visto, tá dando certo. Deixa eu
me resolver com esse idiota e a gente conversa depois.
― Não, Eleanor. Eu quero ouvir.
― Ainda bem que você era tapada o suficiente e nunca fez nada sobre
isso. Mas era bem engraçado para falar a verdade, ver você encarando
fixamente ela pelas costas, suspirando pelos corredores. Qualquer um
notaria, ela também notou. Estou mentindo, Ellie?
― Por que você não me disse que sabia? ― Kim sentiu a barriga doer,
estava prestes a ter uma vertigem.
Mais cedo naquele mesmo dia, ela podia ter contado para Eleanor
sobre o momento mais decadente de sua adolescência, em que ela assumira
para si mesma que era um clichê ambulante por estar apaixonada pela loira
patricinha do colégio, mas a revelação de que o sentimento podia ter sido
recíproco a havia deixado em choque antes.
Era por isso que ela não compreendia.
― E, se sabia, por que não fez nada, já que...
― Deixa eu adivinhar: ela disse que gostava de você, não disse? Foi
assim que ela te convenceu a trazer ela aqui?
― Kim... ― disse Eleanor.
― Você trabalha para uma das melhores agência de caçadores que
existe, alguma coisa eles viram em você, então vou assumir que não é uma
completa estúpida, tá bem? ― disse Olavo. ― Mas, tenha a santa paciência,
como você foi cair num truque tão barato desses? Minha irmã é capaz de
qualquer coisa para conseguir o que ela quer. Qualquer coisa mesmo.
Acredita em mim, nós dividimos o berço.
― Você mentiu? ― perguntou Kimberly.
― Ele mandou me sequestrarem para conseguir arrancar dinheiro da
própria família, ameaçando contar para todo mundo o que nós somos se
meus pais não dessem o que ele queria. Eu não sou a vilã aqui, Kimberly.
― Eu estaria fazendo um favor para as pessoas contando a verdade
sobre a família Belmonte, esse império de filhos da puta desleais que exila
qualquer um que não se curve às regras.
― Você não saberia o significado de lealdade nem que alguém
desenhasse ele para você.
― Chega! ― gritou Kimberly, zonza. ― Vão se foder, vocês dois. Eu
não devia ter vindo aqui, não devia ter confiado em você. ― Ela apontou o
dedo para Eleanor. ― Vocês são farinha do mesmo saco.
A caçadora ignorou o incômodo sufocante no peito, enfiou a arma no
cós da calça e deu as costas. Eleanor teria ido atrás dela se, segundos
depois, Kim não tivesse sido erguida no ar pelo mesmo homem em quem
ela havia dado uma coronhada mais cedo.
 
Capítulo 12
É difícil medir o quão realmente precisamos de sangue circulando no
cérebro até alguém estar com o braço em torno do seu pescoço,
pressionando a veia jugular, enquanto tudo vai ficando escuro ao seu redor e
você fica à beira de perder a consciência.
Kim estava imobilizada.
E odiava cada segundo dessa sensação.
A baixa estatura criava uma desvantagem, é obvio, por isso ela evitava
combates corpo a corpo a qualquer custo. Entretanto havia sido pega de
surpresa e tudo que restava era torcer para que o homem não a matassem,
ou que a matasse de um jeito indolor. Mas ela acertara a cabeça dele com
uma arma e o deixara desacordado no meio do nada. Ele não tinha nenhum
motivo para ser misericordioso.
― Manda ele soltar ela, Olavo, isso é entre mim e você ― vociferou
Eleanor, agora com a arma apontada para a cabeça do sujeito que tinha seus
braços em volta do pescoço e do torso de Kimberly.
A loira tentava disfarçar, mas suas mãos trêmulas entregavam o quanto
ela estava amedrontada.
― Está mesmo me pedindo para eu poupar a vida dessa garota? ―
ponderou Olavo. ― Parece que agora eu tenho algo que você quer então.
― O que você quer? Para deixar a gente ir.
― Se está disposta a negociar, então ela deve ser importante. Posso
pedir o que eu quiser?
― Não testa a minha paciência, Olavo. Se ela se machucar, eu mato
ele, depois você e quem sabe aquele outro que prendi na dispensa. Mas
nenhum de nós dois quer que acabe assim, então facilita as coisas pra mim.
― Dinheiro, irmãzinha. O dinheiro que você veio pegar de volta. ―
Ele apontou para uma mala de viagem enorme que estava jogada aos pés de
Eleanor. ― Pensa rápido, ela está quase apagando.
Ela havia prometido aos pais que recuperaria o dinheiro e os livraria
das chantagens de Olavo. Era uma quantidade alta demais, mesmo para a
família Belmonte. Se ela voltasse para casa sem aquela mala, teria
problemas.
E ela sempre achara que não havia nada pior do que decepcionar a
família e ser fraca, mas, ao assistir os olhos de Kimberly perdendo o brilho
cada vez mais depressa, não conseguia pensar em uma coisa sequer que
fosse pior do que vê-la morrer.
Eleanor colocou a arma no chão e a chutou para longe.
― Sua vez ― disse ao rapaz.
Ele virou o rosto para Olavo, que fez um sinal para que soltasse a
caçadora e, depois de um resmungo mal-humorado, puxou a arma que
estava enfiada na calça da garota e a largou. Kim caiu sobre o chão com um
baque duro dos tacos de madeira. Seus olhos estavam lacrimejando,
enquanto ela tossia e tentava retornar à lucidez.
Eleanor ajoelhou-se no chão e engatinhou sobre o corpo da caçadora,
tocando o rosto vermelho com suas mãos macias e geladas. Kim conseguia
sentir o cheiro de seu perfume importado misturado com suor e assistir as
rugas de preocupação no rosto da vampira suavizarem à medida que seus
olhos se tornavam alertas outra vez.
Um sorrisinho desenhou-se nos lábios da asiática.
― O que você está fazendo? ― perguntou Kim com a voz falha, mas
num tom provocativo.
― Salvando a sua vida, sua idiota.
Uma legião de pensamentos difusos tomou conta da mente de Kim,
enquanto sentimentos mais conflituosos ainda inundavam seu peito.
Estivera tão próxima da morte que não tivera tempo o suficiente para sua
consciência processar.
― Tanto dinheiro por uma humana ― disse Olavo. Ele deu o primeiro
passo adiante na direção de seu comparsa, que já havia pegado a mala e
arrastado para longe, como se seu conteúdo pudesse evaporar. ― Quem
diria que você se importaria com alguém além de você mesma?
― Por que você ainda tá falando? ― Eleanor cuspiu as palavras,
enquanto se punha e de pé e estendia a mão para segurar a de Kim e ajudá-
la a se levantar. ― Fica longe da minha família ou eu não vou ser tão
boazinha da próxima vez.
O gêmeo bateu dois dedos contra a testa num sinal de continência
carregada de sarcasmo. Mas Eleanor tinha preocupações maiores do que se
importar com a irreverência de um garotinho malcriado.
Dedos esguios se entrelaçando nos seus trouxeram Kim de volta à
realidade. Ela olhou para baixo, encarando a sua mão unida a de Ellie e
depois seguiu a vampira para fora da casa.
― Não acredito que acabou. ― comentou a loira. ― Eu preciso tanto
dormir.
O ar frio da madrugada contra seu corpo quente a fez estremecer, as
cenas dos últimos momentos eram rebobinadas em sua mente repetidas
vezes. Eleanor Belmonte tinha salvado a vida dela e, por mais que parte de
si quisesse se deixar acreditar em boas intenções e atos altruístas, precisava
saber:
― Se eu não tivesse ameaçado você... Com as fotos e tudo mais, teria
dado o dinheiro para ele mesmo assim?
Eleanor parou de caminhar, ainda segurando a mão da caçadora. As
duas estavam no meio de uma trilha que serpenteava entre a relva a
caminho de onde tinham deixado o carro. A expressão da vampira era de
surpresa.
― Isso nem passou pela minha cabeça ― respondeu, mais rápido do
que Kimberly pensou que ela responderia.
― Como eu posso acreditar em você? Você... ― Eleanor encerrou a
distância entre elas outra vez, beijando Kimberly nos lábios enquanto
segurava seu queixo e passava os braços em volta da cintura pequena da
mercenária, depois se afastou outra vez. ― Precisa parar de me interromper
assim enquanto eu estou falando.
Eleanor a beijou de novo, um beijo rápido e estalado nos lábios que,
mesmo sem o consentimento de Han, desejavam os da vampira. Era inútil
brigar contra o seu próprio corpo, por isso elas se beijaram outra vez, mas
com mais intensidade, mais vontade. Kimberly tinha o controle dessa vez,
permitindo-se sentir a textura macia dos lábios carnudos da vampira e seu
gosto, agridoce feito vinho tinto. Parecia certo, o calor de suas peles, o
encaixe de seus dedos na cintura curvilínea.
Dessa vez, Eleanor partiu o beijo.
― Você estava dizendo?
A caçadora cerrou os olhos, irritada.
― Eu perguntei: como eu posso acreditar em você?
― Me deixa te provar. Você também não acreditou em mim quando te
pedi para me soltar, não acreditou quando eu disse que te queria e quando
meu irmão tentou te colocar contra mim. Mas eu provei que estava dizendo
a verdade, não provei?
― Mais ou menos.
Belmonte revirou os olhos.
― Bom, então quem sabe quando meus pais descobrirem que entreguei
todo aquele dinheiro para salvar sua vida e me expulsarem da família você
finalmente acredite então? Não duvida do quão eles são importantes para
mim, né?
Não. Se Kim tinha certeza de alguma coisa sobre Eleanor, era sobre
como ela era devota à sua família.
― E o que você vai fazer?
― Vou começar arranjando um lugar novo para morar. ― Elas
voltaram a caminhar, já conseguiam enxergar o carro dali. ― O que você
vai fazer?
― O que eu pretendia fazer desde o começo: ir embora dessa cidade e
nunca mais voltar.
― Está falando sério? ― Kim assentiu. ― Mas por quê?
― Eu sempre quis sair daqui e agora tenho dinheiro pra fazer isso.
― Levando em consideração que se trata do meu dinheiro, você
deveria, no mínimo, me levar junto.
― Eu vou pro Nordeste, morar perto da praia. Você não duraria um dia
com a areia entrando nos seus Louboutins.
― Tem razão. ― Eleanor riu. ― Vou ter que arranjar sapatos novos.
Dessa vez, Kimberly parou e cruzou os braços.
― Não pode estar falando sério.
― Não estou me convidando para morar com você ou coisa assim, sua
idiota, só acho que a gente devia ficar... juntas, pelo menos?
Kim sentiu as bochechas arderem. Também queria ficar com Eleanor.
― Pode ser.
― Então, me leva com você?
― Pergunta isso pra mim de novo aqui a 6 meses, se a gente não tiver
se matado até lá.
A vampira esboçou um sorriso involuntário e Kim fez o mesmo ao
olhá-la.
― Então vai ficar?
― Vou. Por enquanto.
Elas se beijaram de novo e, quando tudo parecia certo, o celular de
Kim tocou pela enésima vez. Ela alcançou o aparelho no bolso e olhou o
visor. Era sua agente; mas ela encerrou a chamada.
― Você não devia atender?
― Nah. Ela pode esperar.
― E se ela te demitir?
― Não é exatamente um emprego e quantos caçadores de vampiros
você acha que existem por aí? Não dá pra achar a gente no LinkedIn ―
Kim deu uma piscadela. ― Vamos pro meu apartamento?
Elas entraram no carro.
― Só se você prometer que não vai me algemar de novo na banheira.
― Prometo que não vou te algemar de novo, na banheira.
Eleanor riu.
― Então, o que estamos esperando?
― Espera, eu tenho que fazer uma coisa antes que eu me esqueça.
Kim pegou o celular, digitou algumas coisas e fuçou em seus arquivos
para depois bloquear a tela e guardá-lo no bolso outra vez.
― Eu disse que apagaria aquele arquivo quando me sentisse segura e,
por mais que meus problemas de confiança ainda falem mais alto, eu
apaguei. Se você for me matar, bom...
Kim ia dizer que teria valido a pena porque ela tinha sido sincera sobre
seus sentimentos pela primeira vez, mas foi interrompida por um beijo da
vampira de novo.
 
VICTORIA MENDES nasceu em 2000, cursa Direito na Universidade
Federal de Minas Gerais e lê e inventa histórias desde que se entende por
gente. Ama cachorros, os jogos da Riot Games, a Taylor Swift, um bom
thriller e histórias de crimes reais. É também autora da duologia “Filhas de
Margery” e do romance “Sob o Céu de Vagalumes”, disponíveis na
Amazon.
 
 
 
 
 
 
 

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