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ELA É MAIS DO QUE VOCÊ

IMAGINA

V. S. Vilela
Copyright © 2024 V. S. Vilela

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta edição pode ser utilizada ou reproduzida (em qualquer meio ou forma, seja
mecânico ou eletrônico, fotocópia, gravação etc.) nem apropriada ou estocada em sistema de bancos de dados sem a expressa
autorização da autora.

CAPA Mariana Cagnin


ILUSTRAÇÃO DA CAPA Mariana Cagnin
ILUSTRAÇÃO DO MIOLO Mariana Cagnin e Crislainy Reis Silva
REVISÃO Ingrid Menezes dos Santos

[2024]
Todos os direitos desta edição reservados à V. S. Vilela
@autoravsvilela
Para você que levou um tempinho até entender que não existe algo de errado em ser uma
garota e gostar de garotas.
"Enquanto uns buscam a perfeição, eu só procuro a felicidade."

AUTOR DESCONHECIDO
NOTA DA AUTORA

Olá, olá! Tudo bem?

Primeiro de tudo, agradeço a você que está dando uma chance a este livro. Ele mexeu comigo de
todas as formas e, mesmo depois de finalizado, continua mexendo. Rayka e Victoria não me
deixaram quieta, enquanto eu não escrevi isso aqui. Elas precisavam ganhar vida e eu precisava
dar essa vida a elas.

Você pode não entender agora, ou nos primeiros capítulos, mas esta história é mais do que
apenas uma comédia romântica. Espero que, no final, você seja capaz de compreender isso.
Desejo também que a leitura seja tão maravilhosa para você quanto a escrita foi para mim.

Mesmo com todas as suas imperfeições, erros e acertos, falhas e certezas, Rayka e Victoria
conseguiram ser perfeitas para mim, do jeitinho delas, porque tudo isso as tornou nada mais do
que humanas.

Em geral, eu não costumo fazer notas iniciais nos meus livros.


Mas, dessa vez, acho que vale a pena.

Existe uma razão para que esse livro seja longo. Ele não é desse tamanho por acaso. Além das
protagonistas terem falado bastante comigo, essa história não mostra apenas o desenvolvimento
de um casal. Essa história fala também sobre o desenvolvimento de duas pessoas, Rayka e
Victoria. E talvez isso seja o principal tudo.

Não dá para alguém ser de um jeito e, da noite para o dia, simplesmente se tornar outra pessoa.
Em geral, a vida não é assim. Rayka e Victoria quiseram que as coisas acontecessem
naturalmente entre elas, à medida que se descobriam e se aceitavam. Aqui, o relacionamento
acompanha o desenvolvimento de questões pessoais, aos poucos, como quem coloca
gradativamente um tijolinho sobre o outro até construir uma casa inteira.

Ao longo dos capítulos, você vai perceber algumas falas, pensamentos e atitudes um tanto
problemáticas da Victoria. Sim, Victoria é aparentemente fútil, sem-noção, nojenta, insuportável,
e, como se não bastasse esses “ma-ravilhosos” adjetivos, ela ainda carrega alguns preconceitos
consigo. Ou seja, existe um cunho homofóbico/lesbofóbico, por parte dela, até determinado
ponto da história.
Quero deixar claro que eu, autora do livro, não compactuo com qualquer uma dessas falas,
atitudes ou pensamentos problemáticos. Isso apenas faz parte da construção da personagem.
Aqueles que seguirem com a leitura, até o final, perceberão as nuances e as diferenças da
protagonista, entre o primeiro capítulo e o último.

Além disso, creio que seja necessário descrever uma lista de possíveis conteúdos sensíveis:
menção ao consumo de substâncias entorpecentes, bullying, cyberbullying, revenge porn
(pornografia de vingança), relação parental tóxica, LGBTfobia, Lesbofobia, palavras de baixo
escalão e relação sexual explícita entre mulheres.

Ainda assim, a escrita preza por uma narrativa leve, com doses de humor e momentos de amor.
Muito amor.

Essa história não é apenas sobre os beijos que elas vão dar ou sobre a quantidade de sexo que
vão fazer. Sim, elas vão se beijar bastante, e também vão fazer muito amor, mas não é somente
sobre isso. É sobre o caminho tortuoso e absolutamente delicioso que elas vão percorrer até
alcançar essas linhas de chegada.

Desejo que você gargalhe, chore de emoção e, enfim, se apaixone muito por Rayka e Victoria. E,
claro, se apaixone também por alguma mulher ao longo da sua vida. Vale a pena.

Agora, vamos tocar esse bonde pra frente!


Mais uma vez, muito obrigada pela sua leitura!
VICTORIA PERFEITA PETERSON

“Pelo que eu me lembro, sei que você adora se exibir”


Flashing Lights | Kanye West

VICTORIA

Ter o mundo aos seus pés...


Já pensou nisso?
Uma delícia, não?
No meu caso, era a universidade.
A universidade inteira aos meus pés... O que era quase a mesma coisa de ter o mundo.
Para alguns, assustador. Para mim, normal.
Nada mais do que o normal.
Natural.
Fui preparada para isso, desde o dia em que eu nasci. Eu ainda me lembrava das palavras
perfeitas da mamãe: “Nunca se esqueça de que você é uma Peterson e não deve aceitar nada
menos do que a perfeição”.
Realmente não me esqueci.
Nem na infância, quando eu decidi me inscrever para as olimpíadas de matemática, aulas
de Ballet, e cursos de piano, saxofone e francês. Tudo ao mesmo tempo.
Nem na pré-adolescência, quando não me permiti viver o luto da partida da mamãe, por
mais de um mês, e logo me enfiei em um grupo de escoteiras, para não pensar, durante vinte e
quatro horas por dia, que ela não estava mais ali (e não chorar durante essas mesmas vinte e
quatro horas).
Nem na adolescência, quando, entre as aulas preparatórias para as universidades, eu
também me enfiei numa agência de modelos. Não que eu precisasse de dinheiro. Havia uma boa
quantidade na conta bancária do papai, por ser o reitor da Universidade de Miami. Mas,
confesso, não era nem um pouco ruim ver dezenas de câmeras, com milhares de flashes, tirando
fotos minhas, em uma superprodução.
E, claro, eu não me esqueci das palavras da mamãe, muito menos agora, na própria
universidade, cursando Artes Plásticas e me tornando a melhor e a mais promissora aluna dentre
todos os outros. Eu era quase uma referência.
Per-fei-ta.
Nada menos do que perfeita.
Assim como a minha mãe me ensinou.
Aquela, lógico, era mais uma manhã perfeita do terceiro ano de faculdade. Depois do fim
da última aula pela manhã e de dar uma passadinha na manicure do shopping, para ajustar a
porcaria de uma unha de porcelana que insistia em quebrar, estacionei o meu carro no campus
das residências universitárias. Um Porsche que o meu pai tinha me dado de presente pelo meu
primeiro lugar, no último concurso de artes plásticas, organizado em parceria entre a
Universidade de Miami e da Geórgia.
Mesmo não sendo exatamente um exemplo no trânsito, depois de já ter batido quatro
vezes, outros dois carros da família, e, claro, de ter escutado algumas horas de sermões irritantes
do papai nos meus ouvidos, ele fez a caridade de me dar esse.
Eu merecia, né?
Eu fiquei em primeiro lugar.
Encarei meu reflexo no retrovisor. Se não fosse aquelas olheiras estúpidas, depois de ter
passado a madrugada inteirinha fazendo uma escultura em cerâmica, para entregar à professora
da oficina de artes contemporâneas, tudo estaria realmente impecável. Mas, eu não deixaria isso
estragar a minha perfeição, nem a perfeição daquele dia, óbvio. Bom, talvez, eu precisasse
marcar algum dia no spa, ou sei lá. Por ora, no entanto, bastava eu passar um corretivo debaixo
dos olhos, repor o gloss e...
Voilà.
Perfeita.
Sorri para mim mesma e abri a porta do carro.
Travei o alarme e caminhei por toda a extensão do campus, indo em direção ao prédio da
fraternidade.
Por ali, enquanto eu passava, todos faziam questão de me olhar e me cumprimentar.
Alguns sorrisos verdadeiros e outros falsos. Eu honestamente não ligava. Talvez a minha
simpatia também não fosse das mais sinceras. Esse era o meu papel, gostando ou não. Eu tinha
que ser legal, sobretudo com as meninas. Ou, pelo menos, fingir que eu era legal.
Tipo... Fazer média... Politicagem pura, sabe?
Era como eu conseguia me eleger e reeleger a presidenta da fraternidade só para garotas,
ano após ano de faculdade, até eu, enfim, me formar.
— E aí, Vic! — uma delas acenou para mim.
— Oi, meu benzinho! Adorei a saia!
E não... De bonita, a saia não tinha nada.
— Oi, Vic! — outra passou, falando, enquanto eu continuava caminhando. — Que bota
linda!
— E esse colar, hã? — com o meu melhor sorriso falso, respondi. — Está arrasando,
querida!
Nunca vi colar mais feio.
Claro que ainda tinha uma gentinha mesquinha, que me olhava meio torto, sempre que eu
passava, ou mesmo respirava. Nada de novo sob o sol. Eu não ligava. Afinal, se você não quer
ser julgado ou criticado, não faça nada, não fale nada, não seja ninguém.
De costas eretas e nariz empinado, eu apenas seguia.
— E aí, meu amor, já está destilando o seu veneno em plena duas da tarde, no meio da
universidade? — ouvi uma voz muito conhecida.
Brittany.
Minha melhor amiga.
Pele preta, cabelos cacheados, um corpo de dar inveja em todo mundo.
E, bem, diferente de como eu agia com todas as outras pessoas daquela universidade, com
ela, eu era mesmo verdadeira. Ela sabia exatamente quem era Victoria Peterson, assim como eu
também sabia exatamente quem era Brittany Frasier. A gente combinava, afinal.
Duas cobrinhas lindas e charmosas de criação.
— Fala baixo, Brittany...! — em um sussurro de repreensão, sem tirar o sorriso do rosto,
eu repliquei. — As pessoas podem escutar.
Ela, por sua vez, rolou os olhos, já mudando de assunto, enquanto fuçava alguma coisa
dentro da sua bolsa peluda.
— Argh, sério! Eu não sei como ainda aguento o Paul! Esse namoro de um mês e meio
está me estressando mais do que eu imaginava que iria me estressar. Sabe o que eu encontrei no
banco de trás do carro dele, hoje...?! — perguntou ela, claramente indignada.
— Um baseado? — chutei.
— Não! Eu encontrei isso aqui! — e, bruscamente, puxou de dentro da sua bolsa peluda
um... — Aplique barato de cabelo, em forma de trança! Eu nem uso aplique de poliéster de
quinta categoria! Eu vou assassinar aquele desgraçado!
Suspirei, balançando a cabeça de leve.
— Por que você aguenta tudo isso, hein? — retruquei. — Não sei como você ainda se
envolve com os caras daqui, Brittany. Ficaria bem melhor sozinha, ou, então, com algum cara já
formado, centrado. Tipo, com a cabeça mais no lugar, sabe? É por isso que estou seguindo a
filosofia de só ficar com caras mais velhos e de fora daqui. Os garotos dessa universidade
parecem uns cachorrinhos. A gente mima, alimenta, e, quando eles perdem as estribeiras, ou
pisam na bola, pulam em cima da gente e ficam nos lambendo, para tentar reverter a besteira que
fizeram. Aliás, eu nem deveria compará-los aos cachorrinhos. Os cachorrinhos são adoráveis.
Esses caras são ridículos.
Bastou eu me calar, inclusive, para que um nojento aparecesse, do nada, colocando o seu
braço sobre os meus ombros.
— E aí, gata... Que tal colar no meu capô essa noite, hein? Posso te levar pra ver as
estrelas... Hehehehe.
— Argh! Desgruda! — berrei, empurrando-o para o lado.
Ouvi risadinhas da Brittany ao meu lado, enquanto eu respirava fundo e tentava
desamassar o meu vestido.
— É o preço que se paga por ser gostosa... — disse ela.
— Hã? — ergui uma das sobrancelhas, ainda revoltada. — É o preço que se paga por estar
rodeada de caras infantis, isso sim!
— Bom... — puxou o ar, largando o tal aplique no meio campus, em uma direção
qualquer. — Acho que vou dar um pé na bunda do Paul e voltar a aproveitar um pouco da minha
bissexualidade dentro daquela fraternidade. Convivo com dezenas de mulheres gostosas, debaixo
do mesmo teto, mas fico perdendo o meu tempo com um macho chato do caralho. Pelo amor de
Deus.
— Argh... Você também é nojenta, Brittany... — torci o nariz. — Não sei como consegue
olhar para as garotas da fraternidade assim. Elas são lindas e tudo mais, claro, só que... Poxa...
Elas têm... Elas têm... — pigarreei a garganta, meio sem jeito, quase como se fosse falar um
palavrão. — Elas têm peitos e bocetas, né?
— E isso não é maravilhoso? — sorriu para mim, respondendo simplesmente, com total
naturalidade. — Sendo sincera, mesmo que eu seja bissexual, sou muito mais adepta a uma
boceta do que a um pau.
— Meu Deus, Brittany... Às vezes, não dá para conversar com você.
Balancei a cabeça em negativo, enquanto atravessávamos a entrada da fraternidade.
Era uma casa enorme, com infinitos metros quadrados e pilastras brancas, imensas e
erguidas na sua frente, no melhor estilo neoclássico. A estrutura, digna de um palácio greco-
romano, chamava atenção.
A Fraternidade das Minervas era uma das mais importantes e tradicionais do país. E era
também um patrimônio da Universidade de Miami. De lá, saíram grandes mulheres e
profissionais dos Estados Unidos. Famosas médicas, conceituadas advogadas, poderosas artistas,
conhecidas estilistas, renomadas escritoras, e mais. Por isso, as vagas eram extremamente
concorridas. Não era qualquer uma que podia entrar.
Geralmente, as meninas deviam apresentar, durante a seleção, uma carta de recomendação
de alguma mulher que já foi membra da fraternidade. Mães, avós e tias, que já tivessem passado
por ali, contavam mais pontos nas cartas de recomendação.
Eu tinha nada menos que a minha avó e a minha mãe na bagagem. Ambas foram membras
e presidentas da Fraternidade das Minervas, quando estudaram na Universidade de Miami. Por
causa disso, eu fui preparada para estar ali. Nunca esperaram menos de mim do que a presidência
da Fraternidade.
Nunca esperaram menos de mim do que...
A perfeição.
Bem na entrada, depois de cruzarmos as imensas pilastras e abrirmos a porta gigante com
pé direito duplo, havia três fotos chamativas: uma minha, uma da minha mãe e outra minha avó.
Todas lado a lado.
Fiz o que eu sempre fazia quando passava por ali: sorri para a foto da mamãe e da vovó,
dando um beijo nas duas.
Grandes Madelyn e Grace Peterson...
As mais importantes e aclamadas ex-líderes da Fraternidade das Minervas.
— Oi, mamãe. A senhora está incrível hoje. Perfeita. E você, vovó, maravilhosa.
Era o que eu sempre dizia para elas.
Eram também os meus elogios mais verdadeiros.
Girei, então, os pés por ali, esperando ser recebida pelas outras garotas, como
naturalmente acontecia. Toda vida que eu pisava naquele lugar, elas me recebiam com
bajulações, perguntavam se eu estava precisando de alguma coisa e faltavam me colocar em
poltronas, estendendo folhas de palmeiras para me abanar. Era como se eu fosse uma espécie de
abelha-rainha.
Na verdade...
Eu era mesmo uma abelha-rainha.
Naquela tarde, porém, alguma coisa... Alguma coisinha incômoda e irritante parecia
sobrevoar o ar acima das nossas cabeças. Ou melhor, da minha cabeça. Franzi o cenho, cerrando
os olhos de leve, ao observar ao redor. Havia uma movimentação esquisita por ali, dentro das
dependências da minha fraternidade.
As garotas...
As garotas simplesmente não tinham me recebido como deveriam fazer.
Cada pelinho meu corpo se eriçou, de repente.
Algo não estava me cheirando bem.
Nada bem.
A real era que, por pior que fosse a sensação de me sentir invisível, já que, em geral, eu
absolutamente nunca passava despercebida, nenhuma das meninas que estavam ali parecia ter
notado a minha presença o suficiente para sequer me oferecer um mísero “oi, precisa de uma
água, querida?”. E, olha, havia uma quantidade considerável de garotas naquela sala de estar.
Na verdade, uma quantidade tão considerável que mais parecia como uma das reuniões de
assembleia.
Só que, naquela tarde, eu não tinha anunciado nenhuma reunião.
Elas conversavam entretidas, umas com as outras, enquanto gargalhavam ou cochichavam,
como se estivessem segredando algo. Grupinhos de cinco em cinco garotas se espalhavam por
toda a extensão da imensa sala de estar. Era como uma grande revolução. Uma revolução na qual
elas aparentemente tinham decidido lutar por si mesmas, já que não eram capazes de enxergar a
própria líder maldita.
No caso, eu.
Senti meu couro cabeludo pinicar.
Me virei para Brittany, perguntando:
— Você sabe o que está acontecendo aqui, querida? Por acaso, a Taylor Swift avisou que
vai nos fazer uma visita hoje e eu não estou sabendo? — perguntei quase cantarolando, como
numa atitude inconsciente de tentar acalmar aquela inquietação sem sentido em mim.
— Eu não faço a menor ideia do que deu nessas garotas hoje...
Foi tudo o que me respondeu.
E eu sabia que ela estava falando a verdade, porque a sua cara de confusa parecia muito
pior que a minha.
Droga.
Foi quando eu puxei o ar, enchendo completamente os meus pulmões e, tomando impulso,
tentei falar em um tom mais alto, acima de todas as outras vozes:
— Será que alguém pode me dizer o que está acontecendo?
De repente, um silêncio mórbido alcançou os nossos ouvidos, quando todas se calaram, ao
mesmo tempo, e viraram o rosto para mim.
Percebi a maneira como olharam umas para as outras, ao notar a cara que eu fazia. Era
como se a tensão, espalhada pelo ar, estivesse gradativamente se tornando mais palpável. Isso me
cheirou mais podre ainda.
Por qual motivo elas teriam qualquer receio em me falar sobre o que estava acontecendo?
Eu era a líder daquele pardieiro, afinal.
Esse “mistério” não ajudava, em nada, a melhorar o meu estado de impaciência. Porém,
quando pensei em perguntar outra vez, uma das garotas, enfim, se pronunciou...
— É-É... — gaguejou, sorrindo meio amarelo para mim. — Vic... Não está sabendo quem
vai voltar para a universidade e entrar na nossa fraternidade?
Voltar para a universidade...?
Meu coração errou uma batida, de súbito.
No fundo, bem no fundo, talvez o meu subconsciente quisesse sussurrar algo... Algo que,
provavelmente, se parecia muito com a resposta para todo aquele suspense ridículo. Só que eu
sabia que essa resposta ia me assustar. Ela ia me assustar pra caramba. Então, não dei atenção
ao espertinho que queria meter pensamentos intrusos na minha cabeça.
Mesmo assim...
Entrar na nossa fraternidade...?
O vinco na minha testa se tornou ainda maior.
Minhas sobrancelhas se retorceram.
Eu não me lembrava, de jeito nenhum, de ter aberto processo seletivo nos últimos dias.
Aliás, todas as garotas que entravam na fraternidade, deveriam passar pela minha aprovação. E
eu não tinha aprovado ninguém.
De orelhas bem em pé, ainda questionei:
— Quem...?!
Ela, então, me encarou com receio, como se já estivesse se preparando para um chilique
meu, e respondeu:
— Rayka Ferris.
Um buraco se abriu sob os meus pés.
Senti como se eu estivesse caindo, de súbito, em direção ao fundo de um poço, ao som do
refrão de “We are the champions” do Queen. Aquela música dos infernos, que me trazia as
piores lembranças do universo inteiro, junto com flashes e mais flashes, daquela bandida, que
pipocavam na minha cabeça.
O casamento.
O meu pai.
A mãe dela.
Todas as suas piadinhas de mau-gosto para mim e...
“Sabia que você é gata pra caralho? O que tem de chata, tem de gata.”
“Se você não fosse tão insuportável, te faria pagar com a língua todas as vezes que me diz
que não sabe por qual motivo as meninas gostam de ficar comigo.”
O meu pesadelo.
E aquele dia... Aquele maldito dia... Na beira do mar de North Beach.
— Não! — exclamei, subitamente, quando o último flash praticamente socou a minha
cara. — Aaaah naaão!
Se tudo ao meu redor era “perfeição”, Rayka Ferris era... A completa desordem.
O caos.
Ela era...
Ela era uma...
Uma terrorista...!
TEM COISA MAIS GOSTOSA QUE
MULHER?

“Eu estou apenas a um tiro de distância de você”


Take Me Out | Franz Ferdinand

RAYKA

— Querida... Filhinha linda da mamãe, o que deu na sua cabeça, para você ficar
FAZENDO ORGIAS DENTRO DO BANHEIRO DE UMA UNIVERSIDADE, COM MAIS
TRÊS MULHERES, PELO AMOR DE DEUS?! — exclamou Daisy, enquanto dirigia pela longa
estrada que ligava o aeroporto à Universidade de Miami.
Nessa altura, nem o espírito namastê da mamãe conseguiu evitar o seu estresse. E olha que
ela era bem, bem adepta ao que eu chamava de filosofia zen da vida. A dona Daisy era do tipo
que fazia ioga duas vezes ao dia, uma pela manhã, outra pela tarde, e, como se não bastasse,
ainda passava as vinte e quatro horas inteirinhas do dia, em um quase constante estado de
meditação. Isso sem falar dos incensos, dos óleos essenciais e das aguinhas medicinais.
Porém, aparentemente, ela tinha se esquecido de tudo isso, nesse exato momento.
Era como se o seu rosto pudesse explodir de vermelhidão a qualquer momento.
Porra.
Eu cursava Literatura na Universidade de Miami, mas estava há um ano e seis meses
fazendo intercâmbio em uma das universidades mais conceituadas da Europa.
Acontece que...
Bom, nas palavras do reitor homofóbico eu fui “convidada a me retirar”, mas, sendo bem
direta do jeitinho como eu realmente gostava de ser, a real era que fui expulsa mesmo. É isso.
Fui expulsa, faltando exatamente seis meses para o fim do período estipulado para o meu
intercâmbio.
— Ah, mãe, o reitor e todos aqueles seus funcionários de merda são um bando de
preconceituosos, isso sim!
— Querida, se é preconceito ou não, eu realmente não sei, mas do que eu tenho certeza
absoluta é de que você estava em uma universidade... — faltou soletrar, incisiva. — Uma das
universidades mais conservadoras da Europa. E a universidade é um lugar para estudar, não para
ficar transando dentro de um banheiro com três mulheres!
— É claro que é preconceito! — retruquei, sem pensar duas vezes. — Por que você acha
que pegaram só no meu pé? Todos os casais héteros ficam se comendo por lá, quase trepando em
público. Mas, se for eu, transando com três garotas ao mesmo tempo, dentro de um banheiro,
meu Deus! É o fim do mundo! — ironizei. — Que se foda o reitor Edgar e todos os seus Oompa
Loompas que se dizem “funcionários”.
Mamãe suspirou.
— Meu amor, independentemente de ser hétero, bissexual, homossexual, pansexual, ou
qualquer outro tipo, é uma universidade. Um lugar de estudo, não de sexo!
— Mãe... — girei o rosto para ela, encarando-a com obviedade. — Vai dizer que a senhora
nunca, nuuunca, se pegou com ninguém na... Sei lá... Biblioteca? Se você nunca fez isso, é
porque você fez errado a universidade!
Vi, então, quando ela, repentinamente, mesmo ainda dirigindo, se perdeu no olhar, por
dois segundos, passando uma das mãos pelo pescoço, como se estivesse meio sem jeito,
enquanto se lembrava de algo, até que...
Estalou a língua no céu da boca, balançando a cabeça para si mesma, e se recompôs.
Ou, pelo menos, tentou se recompor dos seus devaneios.
— Olha só, isso não vem ao caso agora. O que eu estou querendo lhe dizer, meu amor, é
que você deveria ter se comportado mais.
— Poxa... — franzi o cenho para ela. — Tá falando com uma criancinha? Eu tenho vinte e
um anos, mãe.
— Não importa, Rayka. Você é minha filha, e eu vou continuar te tratando assim, mesmo
quando você tiver cinquenta anos de idade — suspirou. — Você pisou na bola. Pisou feio na
bola.
Bufei.
— Tem razão. Foi burrice minha. Eu deveria ter usado o quarto da república.
— Hã? Quê? — de súbito, virou o rosto para mim, desviando o seu olhar do trânsito, por
dois segundos. — Nem no quarto, Rayka. Era uma universidade! Logo agora, faltando apenas
seis meses para completar o tempo do intercâmbio... Será que não dava para você ter segurado a
onda, só mais um pouquinho?
— Segurado a onda, mãe? — de leve, cerrei os olhos para ela. — Com o tanto de mulher
gata naquela universidade, eu ainda aguentei foi muito.
Apesar de ter sido expulsa, eu não me arrependia de nada do que tinha feito.
Tem coisa mais gostosa que mulher?
Os lábios macios, o corpo encaixado no seu, a delicadeza do toque (tudo bem que não tão
delicado, às vezes, mas, ainda assim, maravilhoso), a preocupação com o prazer mútuo.
Ai, fala sério, gostar de mulher é bom demais!
A melhor coisa do mundo.
— Sorte que era apenas um intercâmbio e que você pode voltar para a sua universidade de
origem, e concluir o curso... — disse ela, em um tom mais baixo, quase conformada. Para o meu
alívio, talvez os seus chakras estivessem voltando para os devidos lugares. — Amanhã mesmo
você já retorna às suas aulas normais em Miami. E, claro, você poderia muito bem ficar em casa,
mas John fez questão de conseguir um quarto na Fraternidade das Minervas. Ele acha que é uma
boa alternativa para você se readaptar à universidade, depois de quase dois anos em outro
continente. Mesmo temendo que você ainda faça alguma besteira por lá, porque, sim, conheço a
filha que tenho, eu também concordo com o John. Acho que isso pode te ajudar com a
readaptação.
— Fraternidade? — ergui uma das sobrancelhas, ligeiramente surpresa, virando o rosto
para ela, enquanto dirigia.
— Sim... Mas, pelo amor de Deus, Rayka, sem querer trepar com todas as meninas da
fraternidade, está bem? Foco nos estudos. Lembre-se de que você acabou de ser expulsa do
intercâmbio.
Bom... Se eu ia me comportar, isso eu não podia garantir, mas...
De algo eu tinha certeza.
Se eu bem conhecia certa pessoa, e se a notícia de que eu estava voltando, para ficar
exatamente na Fraternidade das Minervas, já tivesse se espalhado, eu não duvidava de que essa
pessoa estava em alguma parte de Miami, neste exato momento, tendo uma síncope.

VICTORIA

Com a boca dentro de um saco de papelão, quase sem oxigênio, eu respirava


freneticamente, soltando e puxando o ar, enquanto tentava recuperar o fôlego, depois de ter
estado muito perto de passar dessa para uma muito melhor.
Sim...
Qualquer lugar, no céu ou no inferno, era muito melhor do que eu imaginava como seria
a minha vida, com Rayka Ferris ocupando um dos quartos da fraternidade.
Sentada em uma das cadeiras do escritório de trabalho do papai, no prédio da reitoria, eu
tentava me recompor. Claro que a primeira coisa que eu fiz, depois de descobrir a razão, o
motivo e a catastrófica circunstância, para que as garotas estivessem agindo como se a Taylor
Swift pudesse aparecer a qualquer momento, foi tirar satisfações com o meu pai.
Atrás de mim, Brittany e mais quatro meninas da fraternidade me abanavam,
absolutamente preocupadas com um possível desmaio meu.
— Meu anjinho... — John, meu pai e reitor da universidade, sorriu de leve para mim,
apoiando seus cotovelos em cima da mesa do escritório e pousando seu queixo sobre suas mãos
ao me fitar atentamente. — Esse saquinho de papelão... Essa estranhíssima falta de ar... Esse
quase colapso nervoso... Não acha que... Está sendo um pouco dramática demais?
Foi automático.
Tirei o saco da boca e berrei:
— Dramática?! — esbugalhei os olhos em sua direção, completamente indignada. — Mas
é claro que não, papai! Será que não percebe o absurdo que está acontecendo aqui?!
Ele, por sua vez, tranquilíssimo, como se estivesse fazendo mais sessões de meditação do
que o normal com Daisy, a sua atual mulher, respondeu:
— Não, querida... — balançou a cabeça de leve, entortando a boca e fazendo pouco caso
de algo que eu tinha t-o-t-a-l razão. — Eu não estou percebendo mesmo. Será que pode me
explicar?
Cínico.
Rolei os olhos.
— É um absurdo que o senhor esteja abusando do poder que tem! Não pode se utilizar do
seu cargo, para tomar decisões arbitrárias e infringir normas terminantemente estipuladas pelo
regimento da fraternidade.
Eu tinha aquele regimento decorado desde os meus sete anos de idade.
— Sim, querida, sim... Olha, você está de parabéns pelo vocabulário e pela argumentação.
Primoroso. Eu realmente estou muito orgulhoso da filha inteligente que tenho, mas, veja bem,
Daisy e eu já conversamos sobre isso, e achamos que essa é a decisão mais acertada que
poderíamos tomar. Rayka está fora há um ano e meio, quase dois anos. Estar na Fraternidade das
Minervas com certeza vai ajudá-la a se readaptar à Universidade de Miami muito mais rápido.
Além do mais, talvez essa seja uma ótima oportunidade para que vocês finalmente se tornem
amigas.
Ah, claro, porque eu estava louca para ser amiga da Rayka...
Pelo amor da deusa.
Eu gostava, sim, da tia Daisy. Amava, adorava ela.
Mas... Da filha dela, não. Nem um pouco.
Mamãe morreu quando eu ainda era muito nova. Nove anos de idade. Câncer de mama. E
o meu pai passou muitos, muitos anos solteiro. Isso, até um belo dia conhecer a mãe da Rayka.
Aquela que eu costumava chamar carinhosamente de tia Daisy. Também conhecida como
“gratiluz”. Ela era meio espiritualizada até demais. Um jeitão hippie, com muito incenso, cristais
energéticos, plantas, pinturas e namastê.
Papai a conheceu quando ela foi transferida da Universidade de Chicago para a
Universidade Miami, e começou a dar aulas de Literatura por lá. Daisy era professora do curso
de Literatura até hoje. Na época em que se conheceram, meu pai ainda não era o reitor. Era o
coordenador do curso de Direito. E não demorou muito para que começassem o “esqueminha”.
Eu gostava dela. Gostava mesmo. Mas, o casamento deles, e a consequente mudança da
Daisy para a nossa casa, coincidiu exatamente com a minha ida à Nova Iorque, quando eu tinha
quinze anos. Morei lá por três anos e fiz o ensino médio em um colégio interno e particular, só
para garotas. De verdade, era uma das melhores escolas preparatórias para as universidades. Essa
foi a razão de eu ter estudado lá.
Sempre a melhor.
Sempre perfeita.
No entanto, para não dizer que não convivemos nada, ainda dividimos a casa por uns três
meses. Depois disso, fui para o colégio interno de garotas e os visitava apenas durante as férias.
Só que conviver, por três meses, debaixo do mesmo teto, com a tia Daisy, também incluía a
Rayka. Logicamente, sua filha única passou a morar na mesma casa que papai e eu tínhamos.
A questão era que... Bastou apenas três meses, e também os intervalos de férias de três
semanas, quando eu os visitava no meio e no final do ano, para perceber que Rayka e eu nunca
deixaríamos de ter uma relação um tanto... Questionável.
Rayka era irritantemente engraçadinha e sarcástica. Ela nunca perdia a oportunidade de me
encher com algum comentário irônico e completamente desnecessário. E, claro, eu também não
me esforçava, nem um pouco, para ser agradável com ela. Criei ranço.
Nossa relação poderia ser definida como passivamente agressiva. A gente se tolerava até
certo ponto, mas, depois de um limite, que sempre era muito fácil de ser ultrapassado, a gente
batia boca. E não era bater boca de brigar. Era bater boca só para irritar mesmo. Talvez a gente
competisse sobre quem conseguia jogar as melhores e mais assertivas respostas à outra.
E, assim, nós sobrevivíamos às minhas três semanas de visita, durante as férias.
Honestamente, quando chegava a última semana, eu já estava pedindo à deusa para voltar
à Nova Iorque. Rayka cansava a minha beleza. Ela desordenava tudo o que eu planejava e
arrumava milimetricamente. Se eu deixasse de pé, todos os livros de uma prateleira, ela fazia
questão de colocá-los deitados só pelo prazer de ser “do contra”. A nossa relação, um tanto
conturbada, não era segredo para ninguém, nem para as pessoas da universidade, e muito menos
para as garotas da fraternidade. Todos já sabiam que Victoria Peterson e Rayka Ferris não se
davam bem.
Depois que passamos, ironicamente juntas, para a Universidade de Miami, eu tive que ir
embora de Nova Iorque. O primeiro ano foi péssimo. Não era exatamente a melhor coisa do
mundo ter que cruzar com ela pelos corredores e participar de jantares e almoços de família com
uma menina que olhava mais para a minha bunda do que para a minha cara.
Felizmente, eu tinha a fraternidade para morar e não precisava ir para a casa, onde ela
estava. Mesmo assim, ainda agradeci a todas as deusas do universo, quando, no final do primeiro
ano, eu soube que Rayka tinha sido aprovada para um intercâmbio e que passaria dois anos fora.
Sério, eu estava no sétimo céu.
Eu praticamente nem me lembrava mais da sua existência, não fosse aquele pesadelo, em
forma de realidade, que me acometeu em plena duas horas da tarde, no meio de garotas que
pareciam prestes a receber a Rihanna.
Pelo amor da deusa, não era a Rihanna...
Era SÓ a Rayka.
E agora... Agora que eu sabia que esse meteoro estava prestes a cair em cima da minha
fraternidade, eu simplesmente, simplesmente, não podia aceitar sem, ao menos, questionar.
— Você não tem o direito de subir no seu troninho de reitor e mandar dentro da minha
fraternidade, papai! Eu sou a presidenta da fraternidade, e só eu posso dizer quem entra lá!
— Ah, eu tenho o direito sim, querida. Certamente, o reitor da universidade está acima da
presidenta da fraternidade, no patamar de autoridade — retrucou ele, sorrindo, quase sádico.
Que ódio!
— Ela foi expulsa, pai! Foi expulsa por fazer orgias dentro de um banheiro da
universidade com mais três mulheres! — pelo menos, era o que diziam as más línguas. — Essa
garota é um problema! Não deveria estar dando tantos benefícios a ela. Estar na Fraternidade das
Minervas é um baita benefício. Sabe que não é qualquer uma que entra lá.
— E, por acaso, a Rayka é qualquer uma, querida? Eu tenho o maior carinho pela Rayka.
Ela é quase como uma filha para mim. E, bem, eu sei muito bem o quanto é difícil controlar os
hormônios nessa idade de vocês... Se na minha idade já é difícil de controlar... — soltou uma
risadinha.
Eca.
Torci o nariz para ele.
Estava difícil manter um diálogo com qualquer pessoa, naquela tarde. Sobretudo, se a
pessoa fosse o meu pai.
— Que saco! — me empertiguei, ainda sentada de frente para ele.
— Olha, eu realmente não sei o motivo dessa sua rixa ridícula e infantil com a Rayka. Ela
é uma garota maravilhosa, superdivertida e tranquila. Engraçada, prestativa, inteligente. Sendo
muito honesto, minha filha, eu nunca consegui entender a razão de você nunca ter dado uma
chance.
Chance...
Eu nunca consegui entender a razão de você nunca ter dado uma chance.
Chance.
Chance.
Chance.
Foi como se, sem qualquer permissão minha ou avisos prévios, aquela palavrinha em
específico tivesse me atingido como um pequeno e repentino soco. Um pequeno soco, não muito
forte, mas certeiro e capaz de me fazer voltar no tempo, por três segundos, e me lembrar.
Me lembrar da sua voz e da...
“Claro que você vai escolher a verdade, porque tem medo do desafio, não é?”
E então...
Pontas dos dedos no meu rosto.
Pelinhos dos braços eriçados.
Mãos no meu pescoço.
Cintura.
Pele contra pele.
E...
Ai não!
Com o coração quase saindo pela boca e uma falta de ar desgraçada, me levantei
subitamente da cadeira. Fui tragada de volta ao presente com o susto que aquilo me deu. O susto
de me lembrar de algo que eu já tinha feito o maior esforço do mundo para me esquecer.
— Porque ela é irritante, pai! — disse eu, ofegante, já de pé.
E uma safada também.
Droga.
Ethan.
Sim, Ethan.
Eu tinha que ligar para o Ethan.
— Talvez você esteja muito equivocada sobre a Rayka, filha...
Equivocada?
Soprei, balançando a cabeça.
Eu ainda estava meio atarantada com a traição dos meus pensamentos, isso sim.
— Olha só, pai, me lembrei que tenho de fazer algo urgentemente, mas, ainda
conversaremos sobre isso de novo, ok?! Rayka pode muito bem ficar na casa enorme que temos,
como sempre ficou, e não na fraternidade.
— Ah, querida, ela vai ficar na fraternidade sim. Está decidido.
Argh!
Bufei.
Meu rosto quase derretendo de tanto pegar fogo.
E, então, batendo forte os pés no chão, me virei para ir embora dali, tremendo de raiva.
Raiva de tudo.
Das decisões arbitrárias do meu pai.
Da minha memória ridícula.
E, principalmente, de me importar com tudo isso que tinha a ver com a Rayka, quando, na
verdade, eu deveria agir com indiferença e largar um belo foda-se, mesmo que eu não tivesse o
costume de falar palavrões.
Afinal, quem tinha a boca suja era ela.
Não eu.
Eu era perfeita.
Ainda com o coração batucando ao ponto de senti-lo nos meus ouvidos, puxei o celular da
bolsa, enquanto caminhava na direção da saída do prédio da reitoria. Brittany e as outras garotas,
atrás de mim, quase corriam, caminhando a passos rápidos para conseguirem me acompanhar.
Não que eu fosse a fim do Ethan. Eu não era a fim mesmo. Primeiro, ele não fazia o meu
tipo. Segundo, ele estudava na Universidade de Miami e era filho do coordenador do curso de
Medicina. Um daqueles garotos musculosos, tarados e convencidos. Eu tinha prometido para
mim mesma que não me envolveria mais com caras assim, apenas com os mais velhos,
formados, e, teoricamente, mais maduros.
Porém, dado o meu atual estado de inquietação, graças aos pensamentos impertinentes que
começaram a perturbar o meu juízo, Ethan era o primeiro cara que vinha à minha cabeça, porque,
ultimamente, não parava de me encher o saco para termos um encontro.
O que ele queria, na real, era transar comigo.
Coisa que não aconteceria mesmo.
Nas minhas próprias regras, sumariamente estipuladas, eu só transava lá pelo quarto ou
quinto encontro, se eu estivesse realmente com vontade. Antes disso, jamais.
Eu era uma mulher de valor, é claro.
Perfeita.
Aquele, porém, talvez fosse o dia adequado para ter o tal encontro com o Ethan, ou com
qualquer cara capaz de me livrar daqueles pensamentos traidores e das lembranças inoportunas.
Com o celular já em mãos, encontrei seu número salvo na agenda, cliquei e coloquei no
ouvido.
No entanto, ao cruzar a porta de saída do prédio da reitoria, já alcançando a calçada de
uma das ruas internas da universidade, e ouvir a voz do Ethan soar através da linha, falando algo
como “e aí, gatinha...”, eu paralisei.
Simplesmente paralisei, cravando os dois pés no chão, em um solavanco que, com certeza,
assustou as meninas atrás de mim.
Paralisei ao ver aquela figura a alguns metros de distância de mim, mas bem à minha
frente, encostada à BWM, com os braços cruzados e o olhar mais sério e, ao mesmo tempo, mais
sexy do mundo inteiro.
Num ato involuntário, quase como se eu tivesse perdido a capacidade de controlar a minha
própria coordenação motora, a mão, que segurava o celular no ouvido, desabou, e os meus olhos
grudaram nela.
Apenas nela.
Parecia uma miragem.
Um sonho.
Rayka estava bem ali, em toda a sua aura de presunção e desapego.
Despojada.
Minha deusa...
...Estava muito mais gata do que já era.
Espera.
Pisquei os olhos repetidas vezes, endireitando a postura, ao me dar conta do rumo para
onde os meus pensamentos estavam me levando.
Não, gata não, Victoria!
Ela estava ainda mais estranha, isso sim!
Estranha.
Sim.
Aquelas roupas esquisitas que a faziam parecer um garoto; aquele cabelo curto, castanho-
escuro, cortado quase na altura da bochecha, jogado para um lado, enquanto o outro lado estava
raspado baixinho; a pele clara que agora parecia absolutamente bronzeada do sol; e, caramba...
Os piercings no nariz e na boca... As tatuagens...
Ela tinha feito mais?
Seus dois braços estavam quase completamente preenchidos de tatuagens, incluindo mãos
e dedos.
Inconscientemente, mordi de leve o lábio inferior, sem conseguir desviar o olhar.
Eu não costumava falar, nem pensar em palavrões, porque, claro, eu era Victoria Peterson,
e Victoria Peterson era perfeita demais para proferir qualquer coisa de baixo escalão, mas...
Puta que pariu.
Puta que pariu um milhão de vezes.
ERA IMPRESSÃO MINHA OU TODAS
VIRARAM SAPATÃO?

“Ela é tão doce com seu olhar ameaçador”


Are You Gonna Be My Girl | Jet

VICTORIA

Ainda naquela minha completa situação de inércia e imbecilidade, só ouvi quando Brittany
falou bem atrás de mim:
— Pera aí, aquela não é a...?
E deixou a frase solta pelo ar, como se estivesse tão em choque quanto eu.
Quero dizer...
Não, não.
Era impossível que ela estivesse tão em choque quanto eu. Na verdade, ninguém, no
mundo, poderia estar se sentindo tão idiota quanto eu me sentia naquele momento. Rayka não
merecia isso. Ela não merecia que eu estivesse assim por sua causa. Eu sabia que não. Mas, os
meus malditos olhos não paravam de...
Droga.
Observá-la.
Ou pior.
Admirá-la.
Mesmo assim, apesar da Brittany não ter completado a frase e ainda que o meu juízo
estivesse em um iminente estado de pane, eu sabia exatamente o que ela queria dizer.
Por isso, ainda dura e toda travada, eu só consegui acenar um breve sim, e, com o último
filete de ar dos meus pulmões, sibilar:
— Aham... É ela...
A garota, por sua vez, completou:
— Porra... — faltou assobiar. — Como ela tá gata! Quero dizer, ela sempre foi gata... — e
soltou uma risadinha.
Foi quando eu finalmente caí em mim. Pisquei os olhos algumas vezes, com aquelas
palavras reverberando na minha cabeça, até que, enfim, acordei. Tentei endireitar a coluna, para
não parecer ainda mais idiota, e torci o nariz, enojada, balançando a cabeça em negativo.
— Cala a boca, Brittany.
Era só a Rayka.
Pelo amor da deusa.
Só a Rayka.
Do outro lado da rua interna da universidade, onde o carro estava estacionado e Rayka, em
toda a sua pose de super-heroína, se encostava, vi o momento em que a tia Daisy apareceu.
Correu para atravessar, indo em direção à menina estranha, também conhecida como sua filha.
Vestindo uma das suas saias estampadas, estilo boho, ela carregava algumas sacolas nas mãos.
Parecia ter parado ali para comprar alguma coisa na lojinha de conveniência que ficava em frente
ao prédio da reitoria.
Ou, então...
Ou, então, era só o destino mesmo, querendo tirar o meu restinho de paz, naquela tarde já
tão absolutamente estressante, colocando-as exatamente no meu caminho, quando, na real,
poderiam ter parado em qualquer outra parte do campus.
E não, o universo não girava ao redor do meu umbigo, é claro. Eu não era convencida a
esse ponto. Porém, eu tive ainda mais certeza de que aquilo tinha sido, de fato, obra do safado do
destino, quando...
— Vic! Querida! — Daisy me viu. Ela. Me. Viu. E acenou para mim, toda entusiasmada.
— Ah, que surpresa te encontrar! Venha aqui, meu amor! Venha falar com a Rayka! Ela acabou
de chegar!
Eu travei.
Juro que travei muito mais do que eu já estava travada só por ter encontrado aquela garota
bem na saída.
Minha Deusa...
O que ela queria que eu fizesse? Queria que eu fosse até lá, cumprimentasse e abraçasse
a Rayka, dando dois beijinhos, um em cada lado do rosto, como se fôssemos as melhores amigas
do mundo inteiro?
Só vi quando a garota, ao lado da mãe, fixou os olhos em mim.
E a cara que ela me deu foi aquela que eu já conhecia muito bem, há anos.
Cínica.
E sarcástica.
Olhei de um lado para o outro, imaginando qual seria a melhor rota de fuga, mas... Não
dava, não tinha como. Eu já estava na mira delas. O idiota do destino pregou mais uma das suas
peças. E, olha, essa foi muito bem pregada.
Não era exatamente esse o dia perfeito que eu tinha planejado para mim.
Por cima do ombro, ainda perguntei à Brittany, quase cochichando:
— De verdade... Ela tá me chamando mesmo?
Daisy, porém...
— Venha, meu amor! — falou de novo, acenando para mim.
Suspirei.
Uma gotinha de suor se formando no cantinho da minha testa e, provavelmente,
estragando a base caríssima que eu tinha passado no rosto, mais cedo, para rebocar.
— Tá sim! Vai logo, menina!
E me empurrou, fazendo-me quase tropeçar sobre os pés. Aliás, eu meio que tropecei
mesmo. Por pouco, não larguei minha bundinha linda na calçada da reitoria. Um gritinho de
susto escapou da minha garganta, enquanto eu “patinava” por ali, tentando me equilibrar.
Se eu não estivesse ficando louca, coisa que eu realmente não estava, pude ouvir um
risinho baixo da Rayka, por ter me visto passar bem perto de me estatelar no chão.
Idiota.
Ela não perdia uma oportunidade.
Tia Daisy, por sua vez, deu um tapinha de leve no ombro dela, para que parasse,
sussurrando algo em seu ouvido que eu não consegui entender.
De alguma forma, porém, talvez aquilo tivesse funcionado como um gatilho para eu
caminhar. Afinal, eu não sabia como teria saído do lugar, sem aquele sopapo da Brittany. Um
mal necessário, ou eu teria passado ainda mais vergonha ali.
Respirando fundo e endireitando a postura, passei as mãos na minha roupa. Passar as mãos
na roupa, como se qualquer coisa pudesse amassá-la, era uma mania que eu tinha. Uma mania
muito antiga de virginiana perfeccionista.
De queixo erguido, ou pelo menos tentando ficar de queixo erguido, caminhei até lá, com
o meu melhor e mais falso sorriso no rosto.
A cada passo que eu dava, me aproximando delas, porém, eu percebia a maneira como
Rayka me encarava. Com os braços cruzados frente ao corpo, ela mantinha aquele sorrisinho de
canto de boca, quase imperceptível, mas presunçoso e absolutamente irritante. O olhar de quem
guardava na ponta da língua todas as exatas palavras capazes de me provocar.
Sim, eu sabia que não ia demorar até ela pronunciar sua primeira provocação.
Estava escrito na sua testa.
Maldita testa.
Porém, era também o olhar de quem conseguia enxergar por baixo da minha roupa. Ou
pior, o olhar de quem tinha total habilidade para tirar a minha roupa, se eu deixasse.
Minha deusa...
Por que o meu pai teve que se casar logo com uma mulher cuja filha tinha cérebro de
garoto e corpo de garota?
— O-Oi... — até gaguejei. No segundo seguinte, entretanto, ao perceber minha falha,
pigarrei a garganta. Droga. Victoria Peterson nunca falhava, principalmente se fosse na frente
da Rayka. Tentando soar mais segura, refiz a palavra e ergui de leve uma das mãos. — Oi!
Eu que não ia chegar mais perto do que isso.
Só um aceno já era o bastante.
— E aí, tantã...! Como é que tá essa força? — e levantou uma das mãos, oferecendo-a a
mim, como num daqueles toques que garotos faziam para se cumprimentar.
Eu, óbvio, não retribui. Já bastava ter de engolir o fato de que ela não deixava de me
chamar de tantã, mesmo depois de quase dois anos fora, eu também não precisava sair por aí
dando toques de mãos como os caras faziam. Isso era estranho.
Tantã era o seu jeito eufemista, e nada carinhoso, de me chamar de maluca. Um apelido da
nossa adolescência que ela, irritantemente, usava até agora. Começou quando tínhamos quinze
anos e convivemos por três meses em casa, depois do casamento entre John e Daisy, antes de eu
ir para o colégio de Nova Iorque.
Desde o dia em que eu disse para ela que não pegava bem, se andássemos juntas, porque
poderiam me confundir com uma sapatão, ela começou a me chamar assim. Tantã da cabeça. No
fundo, eu sentia que ela desejava ter me chamado de muitas outras coisas. Mas, felizmente, ou
infelizmente, ficou só no “tantã” mesmo. E a palavra perdurou até agora.
Bom, a Brittany era bissexual e era minha melhor amiga.
Mas... A Brittany era feminina. Mulher. Menina. Garota. Se vestia normal, como eu.
Já a Rayka... A Rayka sempre foi estranha. Sempre misturou roupas de garota com roupas
de garoto, assim como também tinha muitos trejeitos masculinizados. Às vezes, ela até parecia
ter nascido com mais hormônios masculinos do que femininos.
Ou seja, não pegava bem para a minha imagem.
As pessoas poderiam me confundir.
E eu, com certeza, não era sapatão.
— Ah, eu estava ótima até... — você aparecer... Tentei, porém, manter a paz e a política
da boa vingança, pelo menos ali. Não que a tia Daisy não soubesse que eu e a sua filha éramos
tão unidas quanto Tom e Jerry, mas eu também não queria fazer uma cena, bem ali, no meio da
rua. Victoria Peterson jamais fazia cena na frente de desconhecidos. Por isso... Ajustei a frase.
— Quero dizer, estou ótima! — e pus novamente o sorriso mais falso que eu tinha.
— Aaaahhh, é tão lindo ver vocês juntinhas!!! — tia Daisy repentinamente falou e, então,
pegando-me de surpresa, abraçou nós duas, ao mesmo tempo, fazendo Rayka ficar literalmente
colada em mim.
O abraço, que eu não pretendia dar, foi praticamente forçado. Mesmo que eu não soubesse
exatamente onde colocar as minhas mãos ou meu rosto, eu não podia deixar de considerar aquilo
um abraço. Um abraço bem estranho e desconsertado, mas, ainda assim, um abraço.
Droga.
Quando éramos mais novas e eu passava as férias em Miami, por volta dos quinze ou
dezesseis anos, a tia Daisy criou a chamada “Camisa da União”. Era literalmente enooorme,
tamanho GGGG, Extra G. Cabia Rayka e eu juntas. Segundo ela, era uma ótima forma de
realinhar os nossos chakras. Sempre que Rayka e eu brigávamos na sua frente, nós ficávamos
grudadas na camisa até fazer as pazes.
Spoiler: não, não realinhava os nossos chakras.
Muito pelo contrário, a gente só ficava com ainda mais raiva.
E não, a gente nunca fazia as pazes.
Mas, a gente fingia.
E, agora, eu simplesmente não queria experimentar a sensação de estar grudada na Rayka
sem precisar. Afinal, não tinha nenhuma Camisa da União ali.
Por isso...
Engoli seco, franzindo o cenho, quando vi o sorriso cínico no rosto da outra, tão perto do
meu, se tornar maior, e...
— É, pois é, tia... É lindo mesmo... — disse eu, rapidamente, já tentando me afastar e me
safar daquilo.
As empurrei de leve com as mãos. Não muito forte, para não ser mal-educada o bastante
com a tia, mas de forma que, em dois segundos, eu já podia respirar um pouco mais aliviada.
Dei dois passos para trás. Era uma distância mais segura.
Daisy, porém, já foi logo falando e acabando com o pouco oxigênio que eu tinha
conseguido.
— Querida, sabe que foi ótimo te encontrar aqui?
Por um segundo, eu quis enrugar a testa.
Meu sorriso falso vacilou, mas logo o prendi nas bochechas.
— Ah é, tia? Por quê?
— Porque eu acabei de ter uma excelente ideia! O que acha de irmos juntas à
Fraternidade?! — sugeriu, ainda tão entusiasmada. — Vai ser maravilhoso! Eu já estava indo
para lá com a Ray, mas indo junto com a presidenta é melhor ainda. Você já está sabendo, não é,
meu amor? Rayka vai ficar lá! — e sorriu como se essa fosse a coisa mais legal que poderia
acontecer na face da Terra.
Minha. Deusa.
O que eu fiz pra merecer?
Não, pera aí.
Era melhor eu não perguntar isso.
Senti meu rosto doer com aquele sorriso forçado.
Tudo dentro de mim querendo gritar e fazer um escândalo, enquanto, por fora, eu não era
nada mais do que a Victoria perfeita, compreensiva e hospitaleira.
— Olha só, tia... — soltei uma pequena risadinha falsa. — Quer saber? Era justamente
sobre isso que eu queria conversar com a senhora! — falsamente empolgada, completei. — Eu
estava pensando e... O que acha da Rayka ficar em casa, hum? — ergui uma das sobrancelhas,
sugestiva, ao mesmo tempo que o meu juízo suplicava para que ela fosse mais sensata que o meu
pai e aceitasse a sugestão. — Sabe que temos uma casa enooorme em Miami, com milhares de
metros quadrados e muito conforto! Eu tenho certeza absoluta de que a Rayka ficará muito
melhor lá do que em uma fraternidade já lotada de garotas! — e soltei mais uma pequena
risadinha.
De repente, porém, foi Rayka quem falou...
— Ah, imagina, Vic... — E eu já podia sentir o sarcasmo escorrendo por cada palavra,
antes mesmo que ela terminasse a frase. — Para com isso. Eu sei que você tá looouca para que
eu fique na fraternidade.
Imbecil.
Aproveitadorazinha barata.
Cerrei os olhos de leve.
Ela fazia isso porque sabia que estávamos na frente da sua mãe e, mais, no meio da rua.
A infeliz já me conhecia muito bem, para saber que eu não fazia barraco em público.
Ainda assim, eu não ia deixar por isso mesmo.
Ah, eu definitivamente não ia!
Sorri para ela, com todo o ranço que eu tinha disfarçado de simpatia, e...
— Na verdade... Não. — ri. — Eu não quero mesmo que você fique na fraternidade. Aliás,
querida, os quartos já estão todos lotados. Estamos em capacidade máxima. Não teria onde você
ficar.
Bem... Eu sabia que existiam quartos vagos.
Mas, isso não vinha ao caso agora. E elas também não precisavam ficar cientes desse
pequeno detalhe.
Inferno.
— Como assim lotada, meu amor? — tia Daisy, no entanto, franziu o cenho. — John me
confirmou pessoalmente, hoje pela manhã, que conseguiu um quarto só para a Rayka. E, ainda
mais, bem ao lado do seu! Isso não é perfeito?! — sorriu, radiante.
Ah não!
O meu pai era muito fofoqueiro, que saco!
— Maravilhoso, mãe! — Rayka respondeu antes de mim. — Incrível! Eu tenho certeza
que a Vic já amou.
E ela não parava de sorrir, cínica.
Pelo amor da deusa das líderes de fraternidade!
Que desgraça!
Já sentindo os indícios de desespero querendo se apoderar do meu corpinho outra vez, do
mesmo jeito como fiquei na sala do meu pai, quase sem respirar, passei uma das mãos na testa,
esfregando de leve. Fechei os olhos por dois segundos, tentando me segurar para não colapsar.
Talvez, no fundo, bem no fundo, eu já estivesse cogitando a possibilidade de quebrar um
dos meus princípios da perfeição e fazer mesmo uma cena, bem ali, no meio da rua.
Ainda assim, me esforçando para manter a linha, ou pelo menos os meus últimos
resquícios de serenidade da alma...
— Tia, é sério... — abri os olhos de novo, fitando-a. — Rayka vai ficar muito, muito
melhor em casa. É mais confortável, mais espaçoso e...
— Que nada, meu amor! — abanou as mãos, interrompendo-me e soltando uma risadinha,
sem nem me deixar completar. Era como se os meus argumentos e nada fossem a mesma coisa.
— Ficar na fraternidade será ótimo para a Rayka. Ela vai se readaptar muito mais rápido à
universidade. Aliás, será ótimo para vocês duas! Serão amigas, finalmente! É o que os astros
estão me dizendo!
E, então, antes mesmo que eu pudesse falar qualquer outra coisa ou alguma idiotice
milagrosamente capaz de fazê-la mudar de ideia, Daisy, ainda super empolgada, me puxou pelo
braço, para sairmos dali.

✽ ✽ ✽

Que mané astros o quê?!


Se, por um acaso, alguém estivesse dizendo para a tia Daisy que Rayka e eu nos
tornaríamos amigas, depois que ela fosse morar na fraternidade, não eram os astros.
Era o próprio diabo!
De verdade.
A fúria estava subindo pela minha garganta, enquanto eu dirigia pelas ruas internas da
Universidade, bem atrás da BMW da Daisy, tentando não aumentar ainda mais a minha listinha
nem um pouco modesta de acidentes de trânsito. À medida que o meu carro deslizava por ali e eu
mantinha o olhar fixo na frente e a mandíbula trincada, na mesma intensidade da minha raiva,
meus dedos apertavam o volante como se eu estivesse apertando o pescoço de alguém.
No banco, ao meu lado, estava a Brittany, assim como, nos bancos traseiros, estavam as
outras garotas que me acompanharam até a sala do papai e ficaram me abanando para que eu não
desmaiasse ali mesmo, na frente dele, tamanho ódio que eu sentia.
O som ecoava pelas caixinhas do carro, enquanto o vento bagunçava os nossos cabelos,
graças ao teto rebaixado do Porsche, mas, confesso, eu não conseguia prestar atenção em nada,
nem nas músicas, e muito menos nas conversas delas. Na real, a minha cabeça, a mil por hora,
ficava repetindo, umas duzentas milhões de vezes, aquela ceninha ridícula na frente da reitoria.
“E aí, tantã...! Como é que tá essa força?”
Tão masculina.
“Ah, imagina, Vic... Para com isso. Eu sei que você tá looouca para que eu fique na
fraternidade.”
Sarcástica.
“Maravilhoso, mãe! Incrível! Eu tenho certeza que a Vic já amou.”
E aquele cinismo.
Aquele cinismo desgraçado, misturado com o olhar castanho, pequeno, ligeiramente
puxadinho nas laterais, e tão... Tão... Bonito.
Argh!
Que saco!
Eu não entendia a razão de ficar pensando assim nessa menina, reparando na sua beleza,
sendo que ela era muito mais estranha do que bonita.
Sim.
Muito mais estranha do que bonita.
Só por causa... Só por causa daquele cabelinho ridículo, esquisito, que ela jogava para um
lado e deixava a mostra o que estava raspado por baixo? Só por causa daqueles piercings no
nariz e na boca? Principalmente aquele da boca, cuja língua ficava brincando pra lá e pra cá? Ou
só por causa daquela postura de garota má que não me fazia olhar para qualquer outra coisa que
não fosse ela, quando estava por perto?
Ou...
Ou por causa daquelas tatuagens que cobriam seus dois braços de um jeito tão... Tão...
Charmoso.
Ah não.
Pelo amor da deusa das líderes certinhas e perfeccionistas de fraternidades.
De novo não.
Apertei ainda mais o volante entre os meus dedos, com raiva de mim mesma.
Esses pensamentos intrusos estavam se tornando piores e ficando cada vez mais
frequentes, naquele maldito dia.
Que droga.
— Aaaahhh, é a nossa música! — uma das garotas disse, no banco de trás, bem nos meus
ouvidos.
— Sim! Vamos cantar! — empolgada, Brittany também berrou.
Era “A Thousand Miles” da Vanessa Carlton.
Aparentemente, nenhuma delas estava percebendo que eu continuava implodindo, minuto
a minuto, desde o momento da conversa com o meu pai.
Ou, se percebiam, não davam a mínima.
— Makin’ my way downtown! Walkin’ fast! Faces pass and I’m homebound!
Começaram a gritar.
Sim, gritar.
Elas não estavam cantando. Estavam gritando.
— Tinininini! — Brittany imitou o toque do piano.
— Vai, Vic! — outra falou. — Canta com a gente também!
Foi quando eu bufei.
Meu estresse em níveis alarmantes dentro do corpo.
— Eu não vou cantar música nenhuma!
E, sem pensar duas vezes, desliguei o som.
Subitamente, um silêncio mórbido se fez no carro. Apenas o barulho do vento bagunçando
os cabelos e batendo nos ouvidos era possível escutar.
Ainda vi, pelo retrovisor, as garotas do banco de trás se olhando meio confusas e
espantadas. Talvez não estivessem esperando por aquele “chilique”, muito embora tivessem visto
o meu estado no escritório do papai. A única que não parecia tão surpresa era a Brittany. Ela
sabia exatamente o motivo de eu estar assim.
Estacionei o carro em frente à casa da fraternidade e me preparei para mais um show de
horrores. Sim, mais uma sessão de tortura, onde eu precisava engolir o meu próprio veneno e
tentar não morrer comigo mesma e o meu material radioativo.
Era isso.
Apenas isso.
Esse era o fim da linha.
O meu nocaute.
O meu xeque-mate.
Eu sabia que não conseguiria convencer a tia Daisy do contrário, e muito menos o meu
pai.
Se eu não aceitasse aquele inferno, de uma vez por todas, eu ficaria louca e criaria rugas
muito antes do tempo. E não, eu não queria criar rugas aos vinte e um anos. A minha pele era
absolutamente perfeita para que eu permitisse que algo tão trágico assim acontecesse a ela.
Me olhando no espelho do retrovisor e respirando fundo, tirei um pequeno hidratante de
rosto de dentro da bolsa. Passei rapidamente por ali, espalhando o creme e já me precavendo dos
possíveis efeitos colaterais, à saúde da minha pele, que mais uma dose de Rayka poderia causar.
E, assim, saí do carro, junto com as outras meninas.
Tia Daisy já estava bem ali na calçada, me esperando, sorridente, como se ela não
estivesse ao lado da personificação do maior dos meus pesadelos. E, bem, aquele pesadelo
também não parava de sorrir para mim. Seu sorriso, no entanto, era diferente. Irônico, sarcástico.
Quase sádico.
Aquela filha da mãe estava se deleitando com o meu total desprazer.
Sim, ela me conhecia o bastante para saber que eu estava odiando aquilo.
E eu a conhecia o bastante para saber que ela estava adorando aquilo.
Miserável.
Só ouvi quando a tia Daisy, assim que eu dei a volta no carro e parei ao seu lado, falou:
— Vamos? — indicou com a cabeça na direção da entrada da fraternidade.
Nãaaao!
Pelo amor da deusa das líderes malucas e complexadas de fraternidades, nãaao!
Era isso o que eu queria berrar.
Porém...
Por fora, sendo apenas a Victoria perfeita, gentil e educada, tudo o que eu respondi, foi:
— Claro.
INFERNO.
Não me dei nem ao trabalho de olhar para a Rayka, porque senão eu realmente teria um
treco bem ali, só de ver a sua cara cheia de felicidade por me matar de raiva. Apenas esbocei,
outra vez, o meu sorriso mais duro e falso de todos os tempos, e passei a frente, seguindo no
rumo da enorme porta de entrada, para que elas, infelizmente, me acompanhassem.
Depois disso, tudo se tornou ainda mais estranho e surreal do que já estava.
Bastou.
Eu disse: bastou.
Bastou Rayka colocar os dois pés, dentro da fraternidade, para que se tornasse o centro das
atenções. Literalmente, o centro das atenções. Todas as garotas, absolutamente todas as garotas,
trataram-na como se ela fosse uma espécie de “evento”. Um acontecimento histórico.
Ridículo.
Isso sem falar no pior... Algumas a encaravam apenas com curiosidade e simpatia, já
outras... Outras pareciam ter puro interesse. Um interesse escancarado ou mesmo velado no
olhar, pela garota tatuada que se vestia como menino e tinha um tremendo olhar de safada.
Sim, safada.
À medida que caminhava pela sala e cumprimentava as meninas que acenavam para ela,
tipo todas, eu notava os olhares da Rayka, a forma como as suas orbes recaíam em direção ao
corpo das outras, a maneira como ela parecia passar um “Raio-X” nas garotas enquanto as
abraçava. E, claro, os sorrisos que, no fundo, não escondiam o seu descaramento.
Rayka já era irritantemente simpática por natureza, mas, quando se tratava de garotas
dando mole, essa simpatia aumentava em níveis estratosféricos.
E as meninas... Retribuíam.
Era impressão minha ou todas viraram sapatão?!
Rayka só podia estar se sentindo no sétimo céu... Ia morar em um lugar abarrotado de
garotas que quando não estavam babando por ela, estavam admirando-a unicamente por ser
“estilosa” e diferente da maioria.
Todas eram iguais na fraternidade, como bonecas padronizadas e recém-saídas da linha de
produção de alguma fábrica.
Rayka era a única diferente.
Ela não se parecia com qualquer uma dali.
Ela era uma novidade.
Talvez fosse por isso que todas estavam mostrando a arcada dentária inteirinha para ela.
E também para a sua cara de safada, é claro.
Considerando o quanto as meninas da fraternidade eram cobras absolutamente venenosas,
eu só podia julgar que aquela extrema simpatia era puro interesse mesmo. Interesse pela amizade
da Rayka ou por alguma outra coisa.
Um negócio dentro de mim se contorceu em algo que eu nem sabia definir direito...
Incômodo? Indignação? Raiva? Eu não fazia ideia. A única coisa que eu tinha certeza era de que
aquela recepção por parte das garotas, junto com o olhar de interesse de algumas delas e a
extrema cara de safadeza da Rayka, me enojava e me dava uma gigantesca vontade de revirar os
olhos.
Naquele meu marasmo de irritação pelos risos e sorrisos alheios, porém, ouvi quando a tia
Daisy falou para mim:
— Bom... O John me entregou a chave do quarto 22. Onde fica, querida?
Droga.
Era realmente o quarto ao lado do meu.
O segundo melhor da fraternidade, na verdade. Lógico, ficava ao lado do quarto da
presidenta. Então, tinha que ser bom mesmo. Entretanto, no geral, eu não deixava ninguém
ocupar aquele quarto, nem o 24, ou seja, o da esquerda e o da direita ao meu, para evitar que
qualquer mínimo barulho atrapalhasse o meu sono de beleza, ou os meus estudos, ou a minha
sessão de cinema na cama, ou qualquer outra coisa.
Eu odiava barulho.
Sendo assim, ninguém ocupava aqueles dois quartos específicos.
E isso nem era pensando no caso de alguma das garotas levar alguém para dormir lá.
Todas da fraternidade já eram educadas a não gritar como vadias durante o sexo. Isso era feio,
baixo, vulgar. Precisávamos ser finas até na hora de transar, afinal. Mesmo assim, ainda que eu
tivesse a certeza de que não seria incomodada com o barulho de alguma garota gemendo como
uma cadela no cio, eu queria evitar qualquer mínimo barulhinho que tirasse a minha paz.
Agora, porém, eu sabia que teria uma neandertal como vizinha de parede.
Rayka teria de se educar, ou ser reeducada, porque, se ela enchesse o meu saco, eu jogaria
todas as suas roupas pela janela.
É sério.
— Fica lá em cima, tia — respondi após um longo suspiro. — Eu levo vocês.
Não.
Eu não queria levá-las até lá.
Na verdade, eu preferia que um raio caísse, naquele exato instante, em cima da
fraternidade, a ter que fazer isso.
Mas...
Como não tinha raio e eu também não tinha escolha, tudo o que eu fiz foi engolir, pela
milésima vez, o meu próprio veneno, e subir as escadas.
Deixando para trás as safadas enrustidas que se diziam membras da fraternidade,
alcançamos o andar superior. Ao lado do meu, o quarto ficava exatamente no final de um dos
corredores. Sendo honesta, era um lugar bom demais para uma garota, recém-expulsa de uma
universidade altamente renomada, ficar.
Mas, bom...
O mundo não era justo.
O mundo nunca era justo.
Pegando a chave da mão da tia Daisy e trincando a minha mandíbula ao ponto de achar
que os meus dentes poderiam quebrar a qualquer momento, eu abri a porta. Sugando meu próprio
material radioativo, que subia pela garganta e quase me fazia engasgar, pronunciei a frase que
não me imaginei falar nem em um pesadelo:
— Então... Este é o quarto... Que a Rayka vai ficar.
Afinal, eu não tinha escolha mesmo.
Mas, eu juro, eu juro que se ela fizesse qualquer coisa contra as regras da fraternidade,
eu ia mover céus e terras para arrastá-la para fora dali, ou eu não me chamava Victoria Ramsey
Sadowski Peterson!
— Uaaau! Que quarto maravilhoso, querida! — com os olhos brilhando de entusiasmo, tia
Daisy falou.
— É uma beleza mesmo... — a garota também disse, mantendo as sobrancelhas erguidas
em surpresa e aquele sorriso irritante no rosto.
— É... — suspirei, empinando o nariz. — Nós temos bom gosto.
— Percebe-se...! — tia Daisy respondeu. — Agora, eu tenho ainda mais certeza de que
estar aqui será ótimo para a Rayka!
Só se fosse para a Rayka, porque, para mim, a situação parecia piorar a cada minuto.
— Eu já estou adorando e mal cheguei... — soltou uma risadinha, insuportável.
Dessa vez, eu não me contive. Girei o rosto brevemente para o lado, para que a tia não
percebesse, e, então, revirei mesmo os olhos. Revirei muito. Revirei bonito. Na mesma
intensidade e vontade que eu tinha de tirar a Rayka dali.
— Então... Sendo assim, acho que a minha missão de pegar o pacote no aeroporto e
entregar à fraternidade se encerra por aqui. Tenho milhares de provas para corrigir e um livro
enorme para revisar. — soltando uma risadinha, a tia falou. — Vou deixá-la descansar um
pouco, meu amor. Em breve, as suas malas chegam aqui no quarto. Se precisar de alguma coisa,
me avise. E não se esqueça do jantar de mais tarde. Vou preparar aquele Guacamole que você
adora!
— Tá bom, mãe... — respondeu ela. — Eu apareço por lá.
— Ótimo, meu amor — sorriu, dando um beijo no rosto da garota, e, então, foi até mim.
— Vic, querida... — segurou minhas mãos. — Muito obrigada, tá? Você é uma menina de ouro!
Eu tenho certeza de que a convivência de vocês aqui será incrível! Os astros nunca mentem!
Foi tudo o que disse, segundos antes de me dar dois beijos, um em cada lado do rosto, e ir
embora.
Os astros nunca mentem...
Até parece...
Ainda girei o rosto, vendo-a sumir pela porta do quarto.
Depois disso, tudo o que existiu entre Rayka e eu, naquele lugar, foi um silêncio enorme.
Era, enfim, o momento de nós duas a sós, depois de quase dois anos.
Sem entender e sem nem voltar o meu rosto para ela outra vez, repentinamente, senti o
meu coração acelerar.
Eu juro que não fazia ideia do que isso significava.
Estranho.
Esquisito.
Tão estranho quanto era a própria Rayka.
Inconscientemente, ainda fechei os olhos, por alguns segundos, e respirei fundo, como se
estivesse me preparando para algo que eu não sabia nem exatamente o que era. Eu não entendia o
que sentia. Não tinha ideia se era irritação, nervosismo ou algo mais. Talvez a junção das três
coisas, mesmo que eu não conseguisse nomear a última.
Porém...
Tive a certeza de que era só irritação mesmo, quando, irônica, eu a ouvi dizer:
— Tava com saudade de mim... Confessa...
Puxei o ar novamente.
Dessa vez, para tentar não cometer um assassinato bem ali.
E, então, abri os olhos, mirando nela com todo o meu mais sincero entojo.
— Você deve estar adorando isso, né? Está estampado na sua cara o quanto você gosta de
me ver irritada com a sua presença aqui, na minha fraternidade.
Ela sorriu, me olhando e inclinando a cabeça para um lado, ao morder o lábio inferior.
Charmo...
Ai não.
Que saco.
Para com isso, Victoria!
— Olha, sendo bem honesta, eu tô adorando sim.
Cerrei os olhos em sua direção.
E eu ainda pensei em lhe dar alguma resposta muito malcriada.
Porém, todas as palavras pareceram sumir da minha boca, quando ela, com aquele olhar
ridículo e relativamente bonito, e aquela postura desprezível e quase nada instigante, se
aproximou de mim.
Ficou tão perto, mas tão perto, que o meu coração idiota voltou a acelerar.
Por um instante inútil, até perdi a capacidade de piscar.
— Eu estava com saudade de você...
E se aproximou ainda mais.
Engoli seco.
Tudo dentro de mim se revirou.
Droga.
Tão perto quanto daquela última vez, antes dela ir para a Europa, em que nós...
Não, Victoria.
Não!
Estalei a língua no céu da boca e me afastei, ganhando uma distância segura.
— Me poupe das suas palavras, Rayka.
— Continua insuportável daquele jeitinho que eu acho lindo — sorriu. — Você fica muito
gata assim. É sério.
Balancei a cabeça em negativo, quase indignada com a sua cara de pau.
— E você continua uma maldita chupadora de boceta — retruquei. — Poderia ainda estar
na Europa, curtindo a sua vidinha de imoralidade, e não aqui, agora, dentro da minha
fraternidade, maltratando os meus tímpanos.
— Uhuhuhu... — riu, sarcástica, erguendo as mãos e arqueando as sobrancelhas. — Quê
que foi? Tá com ciúmes? Quer que eu chupe a sua também?
Sério...
Por que ela sempre apelava?
— Pelo amor da deusa, eu tenho mais o que fazer do que ficar aqui escutando esse tipo de
coisa — empinando o nariz, completei. — Vou a um encontro agora.
De repente, o seu olhar sarcástico se tornou ainda mais evidente.
— Hum... encontro, é? Mais um? Bora lá, tantã. Vamos colocar os papos em dias. Qual é
o cara do momento? Quem vai te iludir dessa vez? O riquinho que acabou de se formar e já
herdou a empresa do pai? O dono do próximo shopping de Miami? Ou o representante discente
esquisitão, que, só porque tem músculos, se torna sexy?
Eu juro que não merecia maltratar os meus ouvidos assim.
— Você nunca muda, né? Sempre cansativa e desprezível.
— E você também não muda... Sempre linda e inteligente, mas com um péssimo gosto
para homens.
Sinceramente, a minha cota já estava batendo.
— Me dá licença, porque eu tenho mais o que fazer... E vê se você se comporta por aqui.
Tente não transar com todas as garotas da fraternidade até a meia-noite.
— Então, isso quer dizer que, depois da meia-noite, eu posso? — ergueu uma das
sobrancelhas.
Revirei os olhos.
— Você é um nojo.
Ela soltou uma risadinha.
— Tchau tchau, tantã.
Nem me dei ao trabalho de responder, apenas dei meia volta e caminhei para fora dali.
Ethan precisava me livrar momentaneamente do meu estado de estresse.
Pelo menos, para alguma coisa, aquele imprestável tinha que servir.
FURACÃO VICTORIA

“Bem-vindo à nova era, eu sou radioativo”


Radioactive | Imagine Dragons

RAYKA

Era por volta das sete da noite quando eu parei em frente à mansão dos Peterson. Agora,
Ferris Peterson. Bom, a casa já era do John, há anos. E aí, depois do casamento, mamãe e eu
passamos a morar ali. Sim, enquanto Victoria estava em Nova Iorque, eu fiquei ali um tempão,
até ir para o intercâmbio. A casa não ficava muito longe do campus da universidade. Na verdade,
era bem perto. Uma estratégia de John Peterson, para nunca chegar atrasado ao trabalho. Por
isso, não era difícil tirar o skate da bagagem e ir para lá.
Foi o que eu fiz.
Em pouco tempo, eu já estava na frente dos portões, que me foram abertos sem que eu
precisasse esperar por mais que meio minuto.
Já estavam me aguardando.
Quase dois anos depois, eu pisava naquele lugar de novo, onde vivi dos meus quinze aos
dezenove anos. Confesso que senti falta. Senti falta da minha mãe, do John. Senti falta até do
clima quente de Miami, se comparado com as temperaturas da Europa. Senti falta das praias, dos
drinques que eu sempre bebia na beira do mar durante as tardes de sexta-feira, daquele sorvete
maravilhoso na Ocean Drive, das noites no Mynt Lounge, das vezes em que eu me deitava na
areia da South Point Pier e fumava, das incontáveis estrelas que pareciam muito mais brilhantes
no céu da Flórida, e... Da Victoria.
Por mais que ela nunca levasse a sério absolutamente nada do que eu dizia.
Não que tivesse sido ruim o meu período de intercâmbio. Claro que não. Longe disso. Na
verdade, foi muito, muito bom. Muito bom para ficar distante de certas coisas que martelaram o
meu juízo até o momento em que pus os pés dentro do avião. Lembranças agradáveis e
desagradáveis, ao mesmo tempo. Bom, as garotas europeias foram uma distração bem-vinda.
Muito bem-vinda.
E então, quase dois anos depois, eu estava de volta a Miami.
De volta à minha casa.
Com o skate nos pés, depois que os portões foram abertos, deslizei por ali, indo em
direção à porta de entrada principal. Atravessando jardins e piscinas, fui recebida com um
sorrisão, antes mesmo de tocar a campainha, pela Bernadine, a governanta da casa, uma senhora
de cinquenta ou sessenta anos que trabalhava há um tempão para os Peterson.
— E aí, Bê, meu amor! — em um pulo meio brusco, saltei do skate e, quase pegando-a de
surpresa, abracei-a, já entrando com tudo dentro da casa. Um abraço enorme, de urso. — Cada
dia mais linda e maravilhosa, pelo amor de Deus!
A risada que ela me deu foi muito gostosa.
Um amor de pessoa.
— Você, como sempre, tão gentil, querida... Mas, vamos com calma. Não sou mais tão
forte e jovem, para lidar com os seus pulos em mim, sem sentir dor no corpo inteiro.
— Que? Como assim, Bê? — franzi o cenho, brincalhona. — Isso quer dizer que não vou
poder dar uma passada no seu quarto mais tarde? Que desperdício... Uma gata dessas.
Ela gargalhou.
— Você é impossível, menina.
Eu ri também.
E então, perguntei:
— Onde estão a mamãe e o John?
— Sua mãe finalizou o Guacamole há pouco tempo. Não deixou ninguém da cozinha
fazer. Disse que ela mesma queria preparar a comida preferida da filha... Nunca vi mãe mais
babona... — sorriu. — E o John já deve estar descendo para o jantar... Aliás, vocês terão
companhia hoje... — suspirou. — Grace Peterson está aqui para o jantar também.
Ergui uma das sobrancelhas, de automático.
— Grace Peterson?
— Sim.
Bernadine até podia tentar disfarçar e fazer alguma média na frente das outras pessoas da
família, mas não para mim. À mim, graças a cumplicidade e amizade que conseguimos construir
durante os anos que morei naquela casa, ela não fazia o menor esforço de esconder seu breve
desprazer com a matriarca dos Peterson. E, só pela sua cara, eu sabia exatamente o que ela estava
sentindo.
Compartilhávamos o mesmo sentimento desagradável por Grace.
Aliás, se todos as pessoas da Terra fossem realmente sinceras, teriam essa mesma
percepção que Bernardine e eu, sobre a avó da Victoria, incluindo a minha própria mãe, que era
gratiluz o bastante para enxergar o melhor das pessoas até quando não existia nada de bom, e o
John, que tentava puxar o saco da sogra em nome da paz e dos bons costumes.
Puxando o ar de leve, perguntei:
— Acha que estou vestida à altura de Grace Peterson?
Foi quando a Bê, enfim, relaxou a postura outra vez e, rolando os olhos, me deu um
sorrisinho.
— Ah, minha querida, por favor, acha que vale mesmo a pena se importar com a opinião
da Grace ou com os olhares de julgamento dela? Apenas aja naturalmente, do jeitinho como você
é. Está ótimo. Você não deve nada a ninguém, e muito menos à Grace.
Sorri de volta para ela.
— Quer saber? — dei de ombros. — Tem razão, Bê! A vó nem é minha... — soltei uma
risadinha. — E mesmo se fosse. Tô nem aí.
— É assim que se fala! — entusiasmada, Bê respondeu.
Isso foi o bastante para que eu desse meia volta e caminhasse em direção à sala de jantar.
Pedi para Bernadine guardar o meu skate e, pisando em locais que eu não andava há quase dois
anos, segui por ali. Observar cada canto daquela casa era como revisitar uma parte da minha
adolescência, dos meus quinze aos dezenove anos.
As lembranças, porém, ficaram para trás quando pus os meus olhos na sala de jantar e vi
quem já estava ali. Toda a minha atenção se voltou para o presente. Mamãe e... Como Bernadine
mesma tinha falado, Grace Peterson.
Avó da Victoria.
Mãe da falecida mãe da Victoria.
E ex-líder da Fraternidade das Minervas.
Ela até tentava ser legal, mas, no fundo, o que existia por trás dos seus olhos era a rigidez,
a crítica e a reprovação daquilo que ela julgava estar fora dos seus padrões. Como se a merda dos
seus padrões fossem o certo. Isso era algo que, por mais que Grace tentasse esconder, não
conseguia. Ela não era capaz de omitir o fato de que, mesmo aos sessenta anos de idade,
continuava sendo igual a todas as outras líderes que já passaram pela fraternidade: uma cobra.
Era uma característica comum a todas as presidentas das Minervas, afinal.
As ervas venenosas.
E as orbes criteriosas daquela mulher, emolduradas pelo rosto procedimentado e cheio de
botox, pairaram sobre mim. Com a quantidade de plásticas e intervenções estéticas que já tinha
feito, Grace nem parecia ter sessenta anos.
Ela me encarou de cima a baixo.
Minha camisa larga e preta do Led Zeppelin estampada com um demônio de asas e
chifres.
A calça jeans rasgada nos joelhos.
Os tênis surrados de tanto eu usar.
As tatuagens que cobriam os dois braços, as mãos e os dedos.
O cabelo curto e raspado em uma das laterais.
Eu vi o seu olhar e o seu desprezo na leve contração que a sua boca deu.
A repulsa disfarçada em um mínimo e quase imperceptível sorriso.
Por um segundo, um só segundo de imbecilidade, eu quis me encolher. O déjà vu da
menina que fui por um breve espaço de tempo, durante a minha pré-adolescência. Aquela garota
que não entendia por que não gostava de “roupas de meninas”, mas, ao mesmo tempo, gostava
de meninas. Passei por momentos solitários, enquanto eu apertava a mim mesma só para caber
nos padrões de alguém que eu realmente não era.
Isso foi péssimo. Foi horrível.
Então, há muito tempo, logo no início da minha adolescência, eu prometi a mim mesma
que jamais faria o que queriam que eu fizesse, se eu não quisesse fazer. Selei uma aliança
comigo mesma de que nunca mais baixaria a minha cabeça para alguém, só por não ser a garota
que esperavam que eu fosse. Felizmente, eu tinha uma mãe maravilhosa que me ajudou com isso.
Ou seja, se eu não me curvava para ninguém, não seria agora que eu faria isso justo com a avó da
Victoria.
Por isso, erguendo o queixo e agindo normalmente, como eu sempre fazia, entrei ali,
mesmo debaixo dos seus olhares disfarçadamente ríspidos.
— Oi oi, boa noite! — disse eu, me sentando em uma cadeira ao lado de onde a minha
mãe já estava.
— Ah, meu amor, que bom que você chegou! — mamãe falou, dando um beijo no meu
rosto. — Já vão começar a servir o jantar.
— Ótimo! Porque a minha barriga tá roncando de tanta fome! — puxando bruscamente
um guardanapo de tecido e o balançando, para colocar sobre as minhas pernas, soltei uma
risadinha, para minha mãe, girando displicentemente o rosto em direção à Grace. — Eu seria
capaz de comer um hipopótamo, agorinha.
Mamãe também riu.
A matriarca dos Peterson, porém, engoliu seco, passando levemente uma das mãos pelo
pescoço como se tivesse achado o meu comentário inapropriado demais para as etiquetas e os
bons costumes à mesa.
Quase rolei os olhos.
Ainda assim, tentando disfarçar a breve cara de entojo, que ela me deu, ouvi quando falou:
— E você, Rayka, como está? A viagem de volta foi boa?
Seu esforço em parecer simpática, no entanto, não me convencia.
Apesar dos pesares, eu sempre respondia a ela naturalmente, como se estivesse falando
com qualquer outra pessoa. Afinal, a gente só dá o que tem. Se ela me dava falsidade, eu lhe
oferecia a sinceridade.
— Estou muito bem, Sra. Peterson. Obrigada pela pergunta. Bom, tirando o fato de que
vou sentir falta da mulherada europeia, a viagem de volta foi bem tranquila... — ri de leve,
brincalhona.
— Como sempre tão... — entortou o cantinho da boca, sorrindo daquele jeito que
disfarçava a sua reprovação. — Tão expansiva...!
E eu já conhecia Grace Peterson o bastante para saber que, com “expansiva”, ela queria
dizer: indelicada, rude, sem modos, mal-educada e masculinizada.
— Pois é... — repliquei sorrindo para ela. — Pelo menos, agora, estou na fraternidade, o
que é quase a mesma coisa de estar rodeada de garotas europeias. A diferença é que essas são
norte-americanas. Mas, são maravilhosas do mesmo jeito. — soltei mais uma risadinha.
Grace, porém, ergueu uma das sobrancelhas para mim.
Os lábios, que sorriam falso e de leve, tornaram-se apenas uma fina linha tensa.
— Então... Você está na Fraternidade das Minervas?
— Estou sim! Não é o máximo?!
Confesso... Talvez o prazer que eu tinha em perturbar a Victoria fosse quase o mesmo que
eu tinha de irritar a sua avó. E, bem, era certeza absoluta que Grace não ia curtir, nem um pouco,
a notícia. Afinal, ela nunca gostou mesmo de mim. Nunca me achou apropriada, nem à altura de
ser uma Minerva. Honestamente, eu estava cagando para o que ela pensava a meu respeito.
— Hum... — entortou o canto da boca de novo. Dessa vez, porém, nem se deu ao trabalho
de disfarçar o seu desprazer. — E você passou pela seleção?
Antes que eu pudesse responder, no entanto, foi a minha mãe quem falou. Era como se ela
tivesse sentido o repentino clima tenso que se instalou por ali, apenas com a minha breve menção
de estar na fraternidade, e quisesse me “salvar” da “Santa Inquisição” de Grace.
— É-É... Sra. Peterson... — forçou um sorriso a ela, tentando contornar a situação. — É
que o John conseguiu um quarto vago para a Rayka lá. Achamos que será bom para readaptação
dela à universidade, depois de quase dois anos fora.
Mamãe tão boba, sempre querendo prezar pela boa convivência.
— Entendo... — respondeu Grace. No fundo, porém, ela não parecia estar entendendo
nada. — E o que a Victoria disse sobre isso?
A garota odiou.
É claro.
Mas...
— Adorou!
Foi isso o que a mamãe respondeu, entusiasmada.
— Adorou? — erguendo novamente uma das sobrancelhas, desconfiada, porque “adorar
que eu estivesse na fraternidade” não parecia uma reação natural à Victoria, questionou.
— É... Pois é... — mamãe continuou sorrindo. — Victoria é uma ótima menina. Muito
compreensiva. Você sabe, não é, Grace? — completou puxando o saco da garota na frente da sua
avó. Uma clara tentativa de amolecer o coração da velha. Muito esperta a dona Daisy. — Ela
recebeu muito bem a Rayka, hoje à tarde, na fraternidade.
Grace suspirou, parecendo não completamente satisfeita com isso.
Ou quase nada satisfeita.
— E eu posso saber onde está a Victoria, agora? Ela não vem jantar conosco?
Deve estar se enroscando com algum filhinho de papai por aí.
John, porém, com um cheiro de sabonete e creme de barbear exalando pelo ar, entrou na
sala de jantar bem nessa hora, simpático como sempre.
— É verdade... Onde está a Vic? — e sorriu, perguntando diretamente a mim. — Você
sabe, Ray?
— A-Ah... — franzi o cenho de leve, me recordando das últimas palavras dela, antes de
sair do quarto que seria meu. — Eu ouvi dizer que... Sei lá. Parece que ela tem um encontro hoje.
— Encontro? — dessa vez, foi Grace quem falou. E, novamente, a rigidez no seu tom de
voz, ainda que disfarçada, era quase palpável.
— Foi o que ela me disse... — respondi apenas isso.
A velha cheia de procedimentos e de plásticas, por sua vez, empinou o queixo e o nariz e,
rigorosamente, replicou:
— Espero que seja um encontro com um rapaz decente. Victoria é uma Peterson, e não
deve se relacionar com uma pessoa qualquer. Apenas com homens que estejam à altura do
sobrenome que tem.
De uma forma ou de outra... Eu até poderia concordar com a velha recauchutada. Mesmo
que Victoria e eu não tivéssemos a melhor das relações e que ela nutrisse um aparente ranço
ferrenho de mim, eu sabia que a garota valia a pena. Sim. Victoria valia a pena demais para que
qualquer cara ousasse tentar algo com ela.
Mas...
Será que realmente existia algum homem à sua altura?
Eu tinha as minhas dúvidas.
E não, eu não estava falando do sobrenome que ela tinha, nem do dinheiro na gorda conta
bancária dos Peterson, nem da fama renomada da sua família, ou mesmo do quanto ela realmente
era bonita.
Não, eu não estava falando de nada disso.
Eu estava me referindo, na verdade, ao que existia dentro dela, por baixo da pele de cobra,
de erva venenosa.
Sim, eu sabia que, por mais que não parecesse, existia escondida, muito bem escondida,
uma alma bonita, um coração bom. Uma menina autêntica, por dentro de todo o padrão que eu
tinha certeza de que ela se forçava a seguir.
De verdade, eu me perguntava se existia algum cara bom para ela.
Não, eu não estava desejando o seu mal, nem colocando olho gordo no seu encontro.
Óbvio que não. Na real, sendo muito honesta, mesmo que a Victoria não fosse com a minha cara,
eu desejava coisas boas a ela, desejava que ela se desse bem.
E Victoria se esforçava para conseguir os rapazes certos que a sua avó vivia falando. Só
que eu nunca precisei conviver mais do que três semanas, com ela, durante as suas férias
escolares de Nova Iorque, ou mesmo durante o primeiro ano inteiro de faculdade, para saber que
ela não tinha um dedo muito bom para escolher caras.
Depois da maioridade, Victoria até enchia a boca para dizer que não ficava mais com
garotos novos ou mesmo com caras da universidade, e que, agora, apenas se relacionava com
homens mais velhos, já formados e, aparentemente, mais maduros.
Só que isso e nada continuavam sendo a mesma coisa.
A Victoria não percebia. Ou, se percebia, fazia-se de desentendida, porque independente
de ser da universidade ou não, mais velho ou não, rico ou não, de boa família ou não, no fim das
contas, Victoria sempre quebrava a cara, por pior que fosse pensar assim a respeito dela.
E a frequência disso, numa escala de zero a dez? Mil.
Os caras, em sua maioria, não valorizavam a maravilha que aquela garota era.
Infelizmente, por mais gata, inteligente e sortuda para noventa por cento das áreas da sua
vida (sim, às vezes eu tinha a impressão de que ela nasceu com aquela bunda linda virada para a
lua), Victoria tinha um azar do caralho nos relacionamentos.

VICTORIA

Eu juro que, às vezes, eu ainda me perguntava o quê que eu tinha feito para merecer.
Só que aí, eu me lembrava de que, se eu perguntasse isso à deusa, ela viria com um rolo de
papel imenso, para me mostrar, ponto por ponto, cada mísera coisinha que fiz de errado, desde o
dia em que eu nasci.
E, olha, não foram poucas.
Mas...
Mesmo assim!
Que inferno!
Será que custava colocar um homem minimamente decente no meu caminho? Um cara
lindo, maravilhoso, cavalheiro, respeitador, rico, bem-sucedido e de boa família? Isso era o
mínimo, não era?!
Será que era pedir demais?!
Só que é claro que a vida (muito disposta a brincar com a minha cara) sempre me mandava
caras incompletos. Sempre tinha que faltar alguma coisinha, sabe? Quando era bonito, não tinha
dinheiro. Quando tinha dinheiro, era feio. Quando tinha dinheiro e beleza, era um maldito
safado, desrespeitador e infiel.
Juro.
Eu ainda dava conselhos à Brittany sobre ela não se envolver com os garotos idiotas da
Universidade, mas, sinceramente, vez por outra, me batia a impressão de que, nem fora do
campus, eu seria capaz de encontrar alguém que completasse a minha listinha mental que eu
costumava chamar carinhosamente de “o tipo de homem certo e perfeito para namorar, casar e
ter filhos”.
Por que isso tinha que acontecer comigo?
Logo eu...
Tão linda, inteligente e perfeita...
Parecia uma trágica ironia do destino.
Eu merecia um homem lindo e perfeito, e não um que ficasse olhando para os meus peitos
a cada cinco segundos, assim como Ethan estava fazendo desde o momento em que foi me
buscar na fraternidade.
Que saco.
Eu ainda estava tentando manter a calma. Ou, pelo menos, fazendo o possível para não
descer do meu lindo salto e enfiar a mão na cara daquele menino. Isso porque, mesmo que aquilo
não estivesse sendo o melhor encontro do mundo, eu sabia que iria me estressar, ainda mais,
quando eu chegasse à fraternidade e me desse conta de que o único lugar, na face da Terra, onde
eu me sentia completamente em paz, agora estava contaminado por uma praga pior do que peste
a bubônica.
Rayka Ferris.
Suspirei.
Minha vida estava cada vez mais difícil.
Era melhor agendar um spa para o fim de semana.
Ethan não parava de encarar o decote da minha roupa. E, detalhe, o decote nem era
grande. Apenas o suficiente para que a blusa não se tornasse uma gola alta. Talvez o volume dos
meus seios estivesse hipnotizando aquele maldito, ou sei lá. Ele não parou de encarar essa região
específica por nem um segundo.
Se o infeliz conversasse comigo tanto quanto observava o tamanho dos meus peitos, nós
estaríamos muito bem de diálogo.
Aliás, para ser sincera, eu nem tinha certeza se realmente queria gastar a minha
maravilhosa saliva, conversando por mais de cinco minutos seguidos com ele. Talvez os
pequenos diálogos espaçados fossem um bônus por ter que aguentá-lo até o filme acabar. Eu já
estava mesmo quase farta daquele encontro.
Se a minha expectativa era desestressar, o tiro saiu totalmente pela culatra.
Nem para isso o Ethan servia. Nem para me fazer esquecer do que me aguardava na
fraternidade, pelos próximos meses.
Os únicos momentos em que os seus olhos se mantiveram longe do decote da minha blusa
foram quando nós estávamos dentro do cinema, mas, isso, porque estava tudo escuro e ele
assistia o filme.
Porém, tudo pareceu se tornar ainda pior, quando o filme acabou e nós entramos no carro.
É SÉRIO.
O cara me atacou!
Simplesmente me atacou!
Que absurdo!
Não perguntou sequer se eu tinha gostado daquele filme idiota, já foi logo avançando em
mim e enfiando a língua na minha boca, enquanto eu ainda segurava o restinho de refrigerante do
cinema. Suas mãos me puxaram de tal modo que, em um piscar de olhos, eu já estava quase
saindo do banco do passageiro, ao seu lado, e indo para cima dele.
— Ei, ei, ei! — exclamei, empurrando-o com a mão livre. — O quê que você tá pensando?
Tá ficando louco?
Eu tinha dado abertura para isso, por acaso?
Se para transar, eu demorava de quatro a cinco encontros com a mesma pessoa. Para
beijar, o cara tinha que saber conversar, e conquistar o meu interesse na conversa, claro. O idiota
do Ethan, no entanto, não parecia ter capacidade para nenhuma das duas coisas. Nem para
conversar, e, muito menos, para conquistar o meu interesse com a conversa.
— Desculpa, gatinha... — soltou uma pequena risadinha, já levando sua maldita boca em
direção à minha, outra vez. — É que... Eu estava louco para fazer isso, desde quando te chamei
para sair — completou, puxando a minha blusa e enfiando os seus dedos por baixo do tecido. —
Olha só... — e segurou minha mão livre, levando-a até sua calça, para que eu sentisse o seu pênis
duro.
Mas...
Mas...
Que nojo!
— Para com isso, seu imbecil! — exclamei de novo, empurrando-o com mais força.
— Poxa, gatinha... O que foi...? — ergueu de leve as sobrancelhas, me fitando cinicamente
confuso. — É por que a gente tá no carro? Não se preocupe, bebê... — e me puxou novamente,
beijando-me em todas as partes. Boca, bochechas, pescoço, tudo. — Tenho um lugar muito
melhor pra gente ir. — e, determinado, foi logo colocando a chave do carro na ignição.
Argh!
— Você é burro ou se faz, Ethan? — questionei, afastando meu rosto dos seus lábios
nojentos. — Será que não está percebendo que eu não estou a fim? Eu saí da fraternidade para
um encontro decente e civilizado. E não para um programa, onde o cara passa duzentas milhões
de horas seguidas, olhando para os meus peitos, sem nem um tipo de diálogo, e ainda acha que
pode avançar em mim, pensando que eu estou a fim de transar. Sim, eu sei que é isso o que você
quer! E a gente mal se falou! Aliás... Honestamente, eu nem sei se quero mesmo conversar com
você.
— Pera aí... Como assim a gente mal se falou? — questionou ele, ligeiramente indignado.
— Cara, eu passei a noite inteira com você. Paguei lanche, paguei cinema. Porra.
Calma aí.
Isso era sério?!
— E agora eu sou obrigada a dar pra você porque você pagou uma salada pra mim?! —
retruquei, dois tons acima do dele.
— Os caras falaram que você dava fácil.
Hã?
Co-Co-Como é que é?
Eu dava FÁCIL?
Quem disse isso?!
Eu demorava, no mínimo, quatro encontros até transar, e, às vezes, mais que isso!
Não era todo mundo que tinha chance de tocar no meu corpinho, ora essa.
Eu não dava fácil, eu era perfeita!
— Os caras O QUÊ?!
Aliás, quem eram esses enviados do demônio para falar de mim assim?
Ethan nem me conhecia direito.
Nem ele, nem ninguém!
Eu, porém, não me dei ao trabalho de escutá-lo outra vez ou esperar por alguma
explicação sua, fui logo falando:
— Quer saber? Eu não quero mais olhar pra sua cara!
E, já com lágrimas de ódio, simplesmente joguei o resto do refrigerante do cinema na sua
cara, abri a porta e saí do carro, pisando firme a passos largos e rápidos.
Ele ainda deixou o carro também, tentando se apressar, para ir atrás de mim, enquanto
exclamava:
— Ei, Victoria, espera! Calma! Me desculpa... Não foi exatamente isso o que eu quis
dizer. Espera!
Só que eu nem lhe dei ouvidos.
Eu estava farta daquele encontro, desde os cinco primeiros minutos que saí da
fraternidade. E farta também de mais alguma coisa que eu nem sabia nomear. Uma inquietação,
uma agonia no peito. Uma coisa inexplicável e ridícula, desde o momento em que saí do prédio
da reitoria e dei de cara com aquilo de braços cruzados e pose marrenta do lado de uma BMW.
Ou seja, o que o imbecil do Ethan me disse foi apenas uma gotinha d’água dentro de um
copo que já estava transbordando.
Com os ombros subindo e descendo, em meio a uma respiração pesada de quem já não
conseguia mais conter o choro idiota de raiva e decepção, caminhei noite afora, pelas ruas de
Miami.
Eu sabia que não deveria derramar uma lágrima sequer por causa daquela bobagem.
Mas, eu simplesmente não conseguia parar.

RAYKA

Meu relógio de pulso marcava onze horas da noite, quando pus o skate debaixo do braço e
cruzei a porta da fraternidade, depois do tal jantar. Passar três ou quatro horas seguidas,
aguentando a conversinha mole e veladamente preconceituosa de Grace Peterson não foi
exatamente um paraíso. Mas, pelo menos, mamãe, John e Bernadine estavam lá. E só de matar a
saudade que eu estava deles, já valeu a pena.
Minha mãe quase não me deixou ir embora. Segundo ela, agora que eu estava de volta à
Miami, merecia passar a maior parte do meu tempo livre com ela. Honestamente, eu concordava.
A dona Daisy não me deixaria quieta enquanto eu não matasse a sua saudade completamente.
Mesmo assim, quando deu dez e meia da noite, e o sono começou a bater, ela se
compadeceu da minha situação. Claro, um voo de doze horas não era o melhor lugar para tirar
um sono. Eu estava praticamente virada, porque não conseguia dormir direito em viagens, nem
de carro, nem de avião. Naquela hora, meus olhos já estavam pesando pra caralho.
Então, sonolenta, voltei para a fraternidade.
Por um instante, pensei que todas as bonequinhas padronizadas já estivessem dormindo.
Lógico. O tal “sono da beleza”, como Victoria costumava chamar. Onze da noite era um horário
limite para que os seus lindos e imaculados rostinhos não amanhecessem cheios de olheiras. Ao
menos, foi isso o que eu li uma vez, no primeiro ano de faculdade, antes do intercâmbio, quando
dei de cara com um memorando ridículo de regras das “Irmãs Minervas”. Era assim como elas se
chamavam.
Quando entrei na imensa sala de estar da enorme casa que funcionava como fraternidade,
porém, ao contrário do que eu imaginava, uma boa quantidade de garotas ainda estava por ali.
Umas sentadas no sofá, outras no chão. Algumas assistiam televisão, outras faziam as unhas.
Umas conversavam e outras mexiam no celular.
No instante em que notaram a minha presença ali, contudo, a mudança na postura delas foi
visível. Era como se ainda não estivessem acostumadas com a minha presença. Ou então, como
se não estivessem acostumadas com alguém que não era mais uma bonequinha padronizada,
como elas.
Havia uma parcela delas, uma minoria, que me encarava de um jeito meio torto, com certo
ar de preconceito, por eu ser “diferente”. Ou mesmo por gostar de mulher. Mas, outras, talvez a
maioria, carregavam, na verdade, um interesse bizarro no olhar. Era como se eu pudesse sentir a
energia que exalava do corpo delas. Uma vontade de se aproximar, um desejo de conhecer a
garota de tatuagem que misturava roupas socialmente vistas como de “menino” e “menina”.
Isso era legal, confesso... Se sentir desejada... Qual sapatão não queria se sentir
desejada? Era uma sensação gostosa, ainda mais porque elas eram gatas. Muito gatas. E até
fariam completamente o meu tipo, se não estivessem a fim de apenas matar a curiosidade.
Pois é.
Aos vinte e um anos, eu já tinha uma boa experiência, como lésbica, para reconhecer um
interesse genuíno.
E aquilo ali não era exatamente um interesse genuíno.
Era provável que tivesse uma ou outra lésbica, ou bissexual, por ali, claro. Com certeza
devia ter. Mas, a maioria delas não passava de hétero-curiosas. Apenas hétero-curiosas. Sim, eu
sabia que sim. E eu não precisava nem as conhecer a fundo para ter certeza disso. Estava
estampado, nos olhares, o fetiche que algumas tinham por garotas desfeminilizadas.
Era como se enxergassem um homem, um macho pronto para lhes servir, quando, na
verdade, não existia homem algum ali. Por mais que eu não fosse tão feminina quanto elas, eu
continuava sendo uma mulher. Uma mulher com boceta e com vontade de não apenas dar prazer,
mas também de receber e se satisfazer tanto quanto elas pareciam querer.
Mesmo inconscientemente, elas queriam transformar uma relação homoafetiva em
heteronormativa. Isso não era legal.
E era por isso que eu evitava meninas hétero.
Eu gostava de ficar? Gostava.
Já fiquei bastante? Demais.
Eu gostava de curtir? Gostava.
E de beijar e transar? Cara, eu era louca por isso.
Mas...
Eu não me permitia ser parquinho de diversão das garotas heterossexuais que queriam que
eu agisse como um macho, ou que só precisavam de uma piscadinha de olho dos caras, para que
dessem as costas e fossem trepar em um pau.
Quero dizer...
Talvez...
Só talvez... Existisse uma única hétero, em específico, que eu deixaria brincar no meu
playground.
Mas, bem, isso não vinha ao caso agora.
Apesar de tudo, ainda dei um sorrisinho simpático para as garotas que estavam por ali, já
pronta para subir as escadas e cair na cama. Porém, quando eu ia colocando os meus pés no
primeiro degrau, uma delas, de repente, pulou bem ao meu lado.
— Hey... E aí! Tudo bem? — disse ela, seu olhão grande para mim. — Eu me chamo
Anna... — e mordeu o lábio inferior, com um sorrisinho faceiro.
— E aí, Anna... — sorri. — Tudo tranquilo?
— Tudo ótimo... — e mexeu seu tronco de leve, de um lado para o outro, empinando o
busto, de modo que foi impossível não olhar para os seus peitos, porque eles ficaram quase na
minha cara. — Legal que você vai morar aqui com a gente agora... Está precisando de alguma
coisa? Quer que eu suba com você? Posso te ajudar a organizar suas coisas por aqui. Eu vi a
quantidade de malas que chegaram... — soltou uma risadinha.
Suspirei, desviando o meu olhar do decote cujo volume, com certeza, tinha silicone. Era
mais uma das filhinhas de papai que começavam a fazer plástica aos quinze anos de idade.
— Ah, não, não... — balancei a cabeça de leve. — Obrigada mesmo, mas não precisa.
Sério. A última coisa que eu quero fazer agora é arrumar minhas coisas nos armários... Tô morta
de cansada.
— Hum... — passou a língua entre os lábios e me fitou com ainda mais atenção, pousando
uma das suas mãos no meu braço. — Tem certeza de que não quer que eu... Suba com você?
Foi quando eu enfim parei e, de fato, caí na real.
A maneira como ela falou aquilo...
Se antes eu achava que ela poderia estar descaradamente dando mole pra mim, agora tinha
ficado muito mais claro. Me dei conta do que, nas entrelinhas, a garota estava tentando dizer com
“tem certeza de que não quer que eu suba com você?”. Um convite velado.
Porra...
Quando eu fui responder uma merda qualquer a ela, porém... Um sobressalto de susto me
tomou. De repente, um furacão passou pela entrada da fraternidade, mais conhecido como
Furacão Victoria. Devastador, tóxico e destruidor da saúde mental de um monte de gente. Talvez
até da minha, durante um tempo atrás. Com um baque surdo na porta, ela a fechou e cruzou a
sala, quase correndo, sem falar nem olhar para ninguém, passando por mim como um vendaval e
subindo as escadas ligeiro.
Pelos breves dois segundos em que pude ver o seu rosto, de relance, Victoria parecia estar
chorando, completamente transtornada.
Droga, o encontro. Eu sabia... Eu sabia, por mais que isso não fosse nem um pouco legal.
Eu sabia que ia dar em merda. De novo. Pela milésima vez.
Uma hora ou outra, sempre dava.
Me preocupei.
Mesmo que a nossa relação não fosse das melhores e que eu tirasse muita onda com a sua
cara, eu me preocupava com ela, quando sabia que alguma coisa estava errada. E ali, tinha, sim,
alguma coisa muito errada. Eu não seria capaz de ficar papeando com uma menina, enquanto
soubesse que ela estava chorando no andar de cima.
Assim, sem pensar duas vezes, deixei a outra garota e fui atrás da Victoria, subindo rápido
as escadas, no seu encalço.
Eu tinha que alcançá-la, antes que ela pudesse fechar a porta do seu quarto bem na minha
cara.
— Ei, Vic! Espera! — exclamei, correndo atrás dela. — O que aconteceu?
Ainda consegui segurar seu braço por dois segundos, mas ela rapidamente o puxou, se
soltando e continuando a caminhar ligeiro.
— Sai fora, Rayka! — retrucou, já abrindo a porta do quarto.
Naquele seu alvoroço e também na minha rapidez, Victoria, porém, não conseguiu me
impedir de entrar junto com ela. Só vi quando ela se sentou na cama, praticamente jogando-se,
exausta. Apoiou os cotovelos nos joelhos e colocou as mãos no rosto, inclinando a cabeça. Eu
sabia que ela não queria que eu a visse daquele jeito.
Victoria não gostava de chorar na minha frente.
Ela nunca, nunca queria parecer fraca.
Aliás, Victoria não gostava de chorar na frente de ninguém.
Afinal, nas suas palavras, ela era perfeita demais para chorar.
Só que eu não podia simplesmente sair dali. Pelo menos, não agora, porque eu odiava,
odiava vê-la assim por causa de macho escroto.
— Vic, me escuta... — parei a alguns passos dela.
No entanto...
— Ai que saco! — retrucou, tirando bruscamente as mãos do rosto. Me encarava em total
indignação. Seu rosto tão bonito, mas também tão enfurecido. — Eu não posso mais nem chorar
em paz, porque agora você está na minha fraternidade!
A menina tinha ranço de mim.
— Só quero ajudar... — ainda tentei falar.
— Mas, eu não quero sua ajuda, Rayka. Não preciso disso. Sai daqui. — e me encarou tão
firmemente. Os olhos completamente molhados. — Você deve estar adorando isso, não é? Deve
estar adorando me ver assim. Sei que tem prazer em saber que está sempre tão certa a respeito de
tudo sobre mim.
Franzi o cenho, contudo, balançando a cabeça em negativo.
— Não, claro que não. Que tipo de pessoa você acha que eu sou, para pensar que estou
gostando de te ver assim?
— O tipo de pessoa que zoa com a minha cara a cada vez que eu tenho um encontro. Hoje
mesmo você me questionou quem seria o cara da vez a me iludir. Você gosta disso. Tem prazer
em ver eu me ferrar, porque sabe que não tenho sorte com isso, enquanto você... Você
simplesmente pode ter na palma da sua mão a garota que quiser.
Nem todas...
Existia uma que eu não conseguia ter, porque ela simplesmente não curtia mulheres.
Puxei o ar.
Sim, eu sabia que falava merda, na maior parte do tempo. Era cara de pau até demais, e,
poucas vezes, eu tinha noção do poder das minhas palavras. Até quando a Victoria dizia que eu
era irritantemente engraçadinha, eu não tirava a sua razão. Eu era mesmo.
Eu não ligava para muitas coisas na vida.
Mas, sem dúvidas, uma delas era quando eu a via chorar.
— Olha... Vic, não. Eu não tô gostando de te ver assim. Claro que não. Eu tô preocupada
com você.
Ela, por sua vez, soltou o ar pelo nariz, em um “tsc”, meneando a cabeça, como se não
acreditasse no que eu falava.
— Ah, tá se fazendo de boazinha agora... — e rolou os olhos, deixando mais algumas
lágrimas teimosas caírem.
Respirei fundo, chateada comigo mesma por ser tão pouco convincente.
Droga.
Eu poderia dizer mil vezes que me importava, mas Victoria não acreditaria em nenhuma
delas.
— Foi o idiota com quem você saiu, né? — ainda perguntei, mesmo com todo o
esnobismo dela. — O que ele fez com você?
— Como sempre, né? — sorriu sem humor, para mim. — Ele fez o mesmo que todos
fazem. Não é você quem diz que eu tenho o dedo podre para homens? — e ergueu uma das
sobrancelhas, me fitando, amargurada. — Você está certa, Rayka.
Merda.
Puxei o ar e, com cuidado, tentei me aproximar, fazendo de tudo para não enfurecer ainda
mais a fera. Era como se eu estivesse lidando com um leopardo pronto para me atacar. Mesmo
sabendo que essa minha atitude poderia ser demais para o seu temperamento já tão enraivecido,
me sentei ao seu lado, na cama.
Para a minha completa surpresa, ela não me enxotou dali, apenas encarou atentamente
cada movimento meu, com o cenho franzido e os olhos molhados. Firmei o meu olhar no seu,
quando respirei fundo outra vez e...
— Vic... Eu não estou certa sobre isso. Você sabe que, às vezes, ou na maioria das vezes,
eu falo muita merda. Mas, de uma coisa eu tenho certeza. Não é que você tenha o dedo podre,
você só precisa parar de forçar a barra para achar o “cara perfeito” — se é que esse cara
realmente existe... Pensei, mas não disse. — Quando tiver que ser com a pessoa certa, pode ter
certeza de que vai acontecer, sem que você precise fazer o menor esforço para isso. Você é
especial, Victoria. Só precisa ter um pouco de paciência e deixar que o tempo leve até você
alguém que vai te valorizar da maneira como merece.
Quando me calei, porém, percebi o instante em que os seus olhos desceram
displicentemente na direção da minha boca. E ficaram observando por mais tempo do que um dia
eu imaginei que pudesse acontecer. Victoria estava tão distante e, ao mesmo tempo, tão perto.
Era como se estivesse se lembrando de algo. Algo que, de uma maneira ou de outra, eu também
me lembrei.
Não era fácil esquecer, afinal.
O verão de dois anos atrás, poucos dias antes de eu ir para o intercâmbio na Europa...
Aquela brincadeira na roda de amigos, que pareceu ter acontecido em um universo
paralelo. Um universo paralelo onde tudo era possível.
Onde Victoria poderia se interessar por mim.
E aí, como se algo repentinamente tivesse furado a sua bolha, ela piscou os olhos algumas
vezes, engolindo seco e retornando ao mundo real. Vi quando sua garganta subiu e desceu, e,
num impulso, Victoria se levantou da cama, caminhando até a porta e parando ao seu lado.
Foi quando ela se virou novamente para mim.
— Tudo bem, obrigada pelo conselho, querida. — e apontou para fora, com a cabeça, me
dando o seu recado. A forma como ela disse a palavra “querida” foi carregada de sarcasmo. —
Só que agora eu quero ficar sozinha.
Que saco.
A garota era puramente cabeça-dura.
— Vic... Vamos conversar mais um pouco...
Ainda tentei.
Porém...
— Não, obrigada... Eu quero mesmo ficar sozinha. Desculpe. — tocou a porta, indicando
mais uma vez para que eu saísse. — Aliás, você sabe que não somos amigas. A gente só se tolera
e pronto.
“Aliás, você sabe que não somos amigas...
...A gente só se tolera e pronto.”
Eu não ligava para muitas coisas na vida. Na verdade, eu era bem desleixada com quase
tudo. Mas, há muito tempo, eu já tinha percebido que, de todas as coisas que faziam eu me
importar ou me afetar, muitas delas estavam relacionadas à Victoria e às vezes em que ela me
tratava daquela maneira.
Com indiferença.
Desprezo.
Mesmo que eu não quisesse sentir isso, porque parecia idiota demais, me incomodava.
Assim como me incomodou agora.
Porque eu me lembrava que, desde a primeira vez em que eu pus os pés dentro da casa de
praia dos Peterson, em Jacksonville, e a vi, há sete anos, alguma coisa, dentro de mim, quis se
aproximar de alguma coisa dentro dela. Eu só não sabia exatamente o quê.
Suspirei.
E, juntando a minha dignidade que, naquele momento, com certeza já tinha escorrido para
o chão, me levantei da cama, passei por ela e, sem falar mais nada, saí do seu quarto.
EU SÓ PODIA SER A ÚNICA HÉTERO

“Eu sou muito boa para todas as suas besteiras, mas tem algo em você
que não me faz desistir”
Redrum (What So Not Remix) | Era Istrefi

VICTORIA

“Are! Are! Are!”


Foi o que eu comecei a ouvir de longe. Uma voz distante... Tipo Freddie Mercury
misturado com unicórnios. Sim, era isso que eu estava vendo. Freddie Mercury cavalgando com
unicórnios rosados e felizes, enquanto eu olhava para ele, chocada, no meio do meu campo de
trufas de chocolate, com árvores coloridas e cintilantes, até que...
“Weeeee are the champions, my frieeeends!”
Freddie Mercury berrou.
E, então, quando guitarras e baterias soaram forte nos meus ouvidos, eu pulei de susto
sobre a cama, quase caindo no chão. Acordei. Simplesmente acordei atarantada. Demorei três
segundos até conseguir abrir completamente os meus olhos remelados e identificar onde eu
estava. Quarto. Sim, quarto. Olhei de um lado para o outro. Era a minha suíte na fraternidade.
Sim, fraternidade.
Nada de unicórnios rosados e saltitantes, nem de Freddie Mercury cavalgando no meu
campo de trufas de chocolate.
Graças a deusa das líderes complexadas e traumatizadas de fraternidade com o Queen.
O meu coração, porém, ainda estava nas mãos, os batimentos cardíacos nos meus ouvidos,
a respiração ofegante, e...
“And weeeee’ll keep on fightiiiing! Till the eeeeend!”
Minha cabeça latejou.
Juro que latejou pelo susto e por aquela barulheira infernal.
Fechei os olhos, levando os meus dedos às têmporas, para massageá-las, mas... Outro
susto!
Que droga.
Dessa vez, porém, o susto foi comigo mesma, ao sentir uma meleca gosmenta na minha
cara. Saco. Girei o rosto, me olhando no espelho que ficava ao lado da cama, e vi a minha cara
toda verde. Eu não me lembrava que tinha dormido com a máscara facial.
Depois de ter chorado horrores por causa de um patife, decidi criar vergonha na cara e
fazer skin care, em vez de sofrer porque alguém, tão idiota quanto o Ethan, me falou uma
bobagem. Isso poderia me causar rugas.
Deusa me livre.
Meu rostinho foi feito para cremes e hidratantes, não para lágrimas.
Porém...
“Weee are the chaaampions! Weee are the chaaampions!”
Ainda tinha aquela maldita música.
E como se não bastasse...
“Nooo tiiime for loooosers, ‘cause weee are the chaaampiooons!”
Repentinamente, flashes diabólicos e impertinentes de algo que eu deveria esquecer, ou
pior, de algo que eu achei que já estava enterrado e sepultado na vala mais escondida e obscura
da memória, mais uma vez pipocaram na minha cabeça.
Desde que eu soube que aquela sapatona ia voltar, isso estava se tornando frequente e...
Rayka fazendo o “L” de “losers” com os dedos, para mim, enquanto a música tocava na
beira do mar de North Beach, até que depois...
Depois...
Se virou para a outra garota e...
Que droga.
Para de pensar, Victoria.
Para de pensar.
Só que eu... Eu simplesmente... Não conseguia...!
Pele com pele.
Dedos no meu pescoço.
Mão na minha nuca.
Todos os meus pelinhos arrepiados.
Algo esquentando entre as minhas pernas.
A vontade absolutamente estranha de nunca mais parar com aquilo e...
Lábios que...
Argh! Não!
Não!
Rayka!
Não!
Aquela miserável!
Me enfureci ainda mais, voltando à realidade.
Ela estava fazendo isso de propósito!
Sim, estava sim!
Aquela música... Aquela maldita música… Ela não tinha a escolhido por acaso. Claro que
não. Ela era esperta demais para isso. Ela queria me cutucar. Queria sim! Ainda mais, naquela
altura absurda. Certamente, os vizinhos da fraternidade estavam ouvindo a baderna em plena sete
horas da manhã, assim como todas as meninas que moravam ali.
Sério.
A Rayka não tinha o senso do ridículo.
O estrondo das guitarras e baterias, no maior e último volume, junto com a letra da
música, estava me enlouquecendo.
Eu odiava barulho.
Especialmente, se o barulho era “We are the champions” do Queen.
Furiosa, me levantei da cama, sem pensar em mais nada, a não ser acabar com a festinha
daquela caminhoneira.
Quem ela achava que era para infringir uma das principais regras da fraternidade? A
filha do Joe Biden? A irmã caçula da Miley Cyrus?!
Sim, fazer barulho nas dependências da fraternidade era uma infração de penalidade
máxima. Estava no memorando de regras das Irmãs Minervas, que eu decorei desde os meus
sete anos de idade!
Com o diabo no couro, abri a porta do meu quarto e, em um pulo, voei para o dela, já que
irônica e infelizmente, agora, Rayka estava dormindo bem ao lado. Sem ter a mínima dúvida do
que eu ia fazer, abri a porta do seu quarto, não me dando nem ao trabalho de bater.
Enchi o peito, para despejar toda a minha indignação, ainda que eu fosse uma Lady
Peterson muito educada para não fazer barracos, e já fui logo falando alto:
— O QUE VOCÊ TÁ...
Porém...
Parei no meio da frase e travei meus dois pés no chão, subitamente ao vê-la.
Meu corpo inteiro retesou.
Rayka ainda pulou ao dar de cara comigo, exclamando:
— Ai, que susto da porra, garota! Sua cara tá verde! O quê que você tá fazendo aqui?
Droga... A máscara facial do skin care.
Eu, no entanto, continuei paralisada como a imbecil que eu realmente era.
Minha deusa das líderes absolutamente femininas e heterossexuais de fraternidade.
Rayka estava usando apenas um top e uma calcinha boxer. Ambos pretos. Seus cabelos
curtos estavam molhados e bagunçados. Ela parecia ter saído há pouco tempo do banho.
Gotículas de água ainda pingavam dos fios e escorriam pelo seu corpo.
Eu sempre soube que ela não tinha vergonha da própria nudez. Em geral, durante as férias
do colégio de Nova Iorque, quando eu ia visitar o papai, Rayka andava de top para cima e para
baixo, pela casa. Sim, ela não era de usar sutiã. Ela usava top. E parecia um menino, na maior
parte do tempo, mesmo quando misturava as roupas masculinas com femininas.
Mas...
Sempre que eu via aquela caminhoneira assim...
Por baixo de tudo e de todas aquelas roupas ridículas...
Ela parecia tão...
Gost...
Não, pera.
Digo... Tão mulher.
Os seios pequenos, bonitos, a cintura bem delineada, o abdômen ligeiramente definido, as
curvas que desapareciam sob o tecido das roupas e se mostravam perfeitas quando descobertas.
No fundo...
Bem no fundo...
A minha cabeça só conseguia formar uma frase:
Que inferno de imbecil linda.
Com olhos mais atentos do que eu gostaria, vi o exato instante em que uma das gotinhas
de água dos seus cabelos pingou, escorregou pelo seu pescoço, alcançando o busto, e se
escondeu dentro do top, entre os seus seios.
Entre os seus seios...
E... No início do rabo daquela...
Da última vez em que a vi desfilando de top pela casa do papai, ela ainda não tinha aquela
tatuagem. Uma serpente. O rabo ficava justamente entre os seios, debaixo do top, e o restante
descia pela costela esquerda. Mas, a cabeça... A cabeça terminava perto da sua... Engoli seco.
Terminava depois dos limites do cós da frente da sua calcinha boxer.
Eu era louca por desenhos, eu também desenhava, pintava, ilustrava, esculpia, criava,
imaginava. E... Aquela serpente... Aquela serpente estava perfeita.
Aliás, não só a serpente.
Mesmo em meio ao meu completo estado de estupidez, ainda consegui perceber o
momento em que ela, enfim, abaixou o volume do som e, aparentemente irritada, falou:
— Quê que você tá pensando, Victoria?! Acha que pode entrar assim, no meu quarto, só
porque é a presidenta disso aqui? — sua mandíbula estava trincada. — Não sei se você sabe,
mas, quando a porra de uma porta está fechada, você tem que bater, antes de entrar.
Eu, no entanto, imbecil e inerte, não conseguia ouvir direito o que ela estava dizendo.
Tudo o que entendia era só um blábláblá sem fim. Ainda meio fora de órbita, sem raciocinar
corretamente ou parar para pensar nas minhas palavras, perguntei, encarando o seu corpo:
— Fez agora, foi? — e apontei com o queixo.
A sapatilha, por sua vez, franziu o cenho para mim e, logo depois, abaixou o rosto,
observando a si mesma, na exata direção do meu olhar.
Foi quando se deu conta.
E eu tive a certeza de que Rayka soube do que eu estava me referindo, no instante em que
o seu semblante de irritação mudou e deu lugar a um sorrisinho sagaz, ao erguer novamente a
cabeça e me encarar.
Seu olhar passeou pelo meu corpo, fitando as minhas pernas nuas, graças ao short curtinho
do baby doll, e demorou-se especialmente na região da minha blusa pequena, de alças bem
fininhas, que mal comportava os meus peitos. O tecido, então, era fino o bastante para não
esconder o desenho dos meus mamilos. Foi nesse exato ponto que as suas orbes se fixaram por
mais tempo do que deveriam.
E eu sabia disso.
Sabia muito bem como eu estava vestida.
Mas, naquele momento, eu parecia muito mais aérea do que propriamente capaz de reagir
e cobrir o meu busto.
— Tá falando da tattoo? — ela finalmente se pronunciou. — Fiz pouco antes de voltar da
Europa. Gostou?
Adorei...
Pensei automaticamente, mas não disse.
Mesmo assim, aquele sorriso safado aumentou ainda mais nos seus lábios.
Sacana.
E, antes que eu pudesse responder qualquer coisa, ela já foi logo insinuando, bem cara de
pau:
— Tá me secando, Victoria?
Bem cara de pau mesmo.
Para completar, deu dois passos, se aproximando.
Se aproximando.
Foi quando eu finalmente acordei.
Minha deusa...
Minha deusa das líderes perfeitas e completamente heterossexuais de fraternidade!
Pisquei repetidas vezes, virando o rosto e mirando em todas as direções do quarto onde ela
não estava. Nem ela, nem aquele top, nem aquela calcinha boxer, e, muito menos, a infeliz
tatuagem de serpente cuja cabeça terminava quase na sua boceta.
Soprei o ar pesado dos meus pulmões, irritada comigo mesma.
Senti as minhas bochechas queimarem.
Que droga...
Que droga você está fazendo, Victoria?
— Olha só... — mudei o semblante, encarando-a seriamente, ao me lembrar do exato
motivo pelo qual eu fui até ali, com a cara toda verde de máscara facial. — Eu tô aqui porque
você fez o DESSERVIÇO de me acordar e, certamente, de acordar a fraternidade inteira, com
esse barulho INFERNAL, em plena sete horas da manhã!
— Hum... — inclinou a cabeça para um lado, irritantemente charmosa, daquele jeitinho
que ela sempre costumava fazer, chegando ainda mais perto. — Por um instante, eu tive a
impressão de que você veio aqui só para mostrar esse corpão gostosão pra mim.
Co-Corpão gostosão?
Ela tinha dito que o meu corpo era gostosão?
Sério…?
Eu já ia sorrindo que nem uma idiota, quando, repentinamente, caí na real.
Q-Q-Que “corpão gostosão” o quê? Eu, por acaso, tinha dado liberdade a ela de falar
assim comigo?!
— Se enxerga, Rayka... — retruquei entredentes. — Para de ser convencida.
— Sim... Eu me enxergo... — usando só aquele top e aquela calcinha miserável, parou
bem pertinho de mim, a poucos centímetros. Seus olhos grudaram nos meus, enquanto o
sorrisinho de quem sabia mais de mim do que eu mesma, continuava ali. — Pelo que percebi,
você também me enxerga. E me enxerga muito bem.
Por um segundo muito, muito idiota, eu quis tremer na base.
Ela estava perto demais, assim como sempre se aproveitava para estar, quando conseguia
qualquer mínima abertura para isso.
Mas, eu segurei as pontas.
Ou, pelo menos, tentei segurar.
Empinei o nariz, sustentando o seu olhar, e seriamente falei:
— Não mude de assunto. Você sabe que está infringindo uma das regras mais importantes
da fraternidade. Se continuar assim, quebrando os códigos de conduta daqui e acabando com a
paz desta casa, eu vou...
— Vai fazer o que? — me interrompeu, sagaz, erguendo uma das sobrancelhas, quase
desafiadora.
Senti sua respiração quente no meu rosto, mesmo com toda aquela gosma verde que ainda
estava na minha cara.
Ridícula.
Pressionei a minha mandíbula, irritada com tudo. Com ela. E, principalmente, comigo
mesma, por sentir o princípio de coisas que eu não deveria nem sonhar em experimentar.
Aproveitando a sua proximidade e a minha ira, segurei firmemente o seu rosto, por baixo
do queixo, apertando suas bochechas e encarando seriamente no fundo dos seus olhos.
— Não pense que, só porque o meu pai gosta de você e te enfiou dentro desta fraternidade
sem o meu consentimento, eu não sou capaz de transformar a sua vida em um inferno, enquanto
estiver aqui.
— Poxa, eu estou louca para ter a minha vida transformada em um inferno por você —
sorriu.
Descarada.
Bufei, soltando bruscamente o seu rosto.
E, já me afastando dela, repliquei:
— Não me provoque, Rayka. E coloque as suas músicas altas apenas nos seus ouvidos, ou
eu não vou pensar duas vezes em jogar as suas coisas pela janela e te expulsar daqui.
— Se for para você pegar assim em mim outras vezes, pode ter certeza de que eu vou
provocar com o maior prazer — ironizou, ainda com aquele sorrisinho sacana.
— Você me cansa! — disse eu, batendo com os pés para fora do seu quarto.
— E você me excita!
Argh...
Idiota.

✽ ✽ ✽

E você me excita...
Você me excita...
Você me excita...
Você me excita...
— Que saaaaco! — berrei, dentro do carro, enquanto dirigia pelo caminho que ligava a
fraternidade até à região dos prédios com as salas de aula.
Ficava tudo dentro do mesmo campus da universidade, mas, obviamente, eu não ia gastar
as energias das minhas lindas perninhas para sair andando por aí, quando eu tinha um Porsche
que poderia fazer todo esse trabalho para mim.
O fato, porém, era que aquelas três palavrinhas diabólicas que a Rayka Belzebu Ferris me
disse antes de eu sair do “seu” quarto, juntamente com o seu olhar cafona e sexy, e o seu sorriso
ridículo e charmoso, não saíam da minha cabeça.
Aquela cena terrível ficava se repetindo em um looping infinito. Um looping onde a sua
carinha cretina e sacana, de quem se achava absolutamente capaz de satisfazer qualquer mulher
que caísse nas suas mãos, preenchia cada espaço da minha memória.
Soprei o ar pesado dos meus pulmões.
Sinceramente, eu não sabia por que o universo queria me castigar dessa maneira.
Eu era uma menina tão boa!
Tá... Tá, tudo bem... Eu não era tão boa assim.
Mas custava muito ter feito o meu pai se casar com uma mulher cuja filha não era uma
sapatona? Tipo assim, custava caro?!
Quero dizer...
Eu adorava a tia Daisy.
Sim, eu a adorava mesmo.
Ela era um amor e a gente se dava muito bem, desde o início do relacionamento.
Honestamente, depois da minha mãe, eu não imaginava o meu pai com uma mulher melhor que a
tia Daisy. Ela era incrível, e fazia John Peterson muito, muito feliz.
Mas, em relação à sua filha encapetada, eu já não podia rasgar os mesmos elogios.
A menina parecia viver com o cão nos couros.
Safada em um nível extremo.
Cara de pau num grau inimaginável.
E gosto...
Não!
Ai, Victoria.
Talvez fosse a hora certa de parar tudo e fazer uma corrente de oração à deusa das líderes
de fraternidade ferradas e alucinadas por causa de uma caminhoneira. Eu tinha que pedir perdão
por todos os pecados. Sim, isso só podia ser castigo. Castigo por, no mês passado, eu ter mentido
para uma menina da minha turma, dizendo que ela ainda iria fazer parte da fraternidade, sendo
que, segundos depois, quando a garota se virou e deu as costas, eu ri da sua cara, junto com a
Brittany, por ela ter ido à aula parecendo uma árvore de Natal brega.
Tão cafona, minha deusa!
O que eu podia fazer se a maioria das pessoas da face da Terra não tinha senso de moda
e estilo?
Era injusto que eu estivesse sendo castigada por causa disso!
Ainda irritada, estacionei o carro, felizmente sem bater em ninguém, e saí caminhando
pelo pátio, seguindo em direção ao Centro de Convivência da Universidade. Era lá onde ficavam
vários restaurantes e lanchonetes, assim como também era um espaço interessante com mesas e
cadeiras para comer e conversar. Geralmente, eu ia para lá, encontrar as minhas amigas, antes do
início da aula.
Empinei o nariz e pus no rosto o meu melhor e mais falso olhar de que eu era demais e de
que a minha vida era perfeita.
Eu era boa em fingir isso, afinal.
Andando por ali, esperei que as primeiras pessoas começassem a falar comigo e que eu
ouvisse as primeiras bajulações do dia, como já era de costume, sempre que eu saía da
fraternidade e pisava em qualquer parte daquele campus.
Sob saltos de oito centímetros e uma postura impecável, quase desfilando, eu parecia
empoderada. A Presidenta da Fraternidade das Minervas. A filha do reitor. A garota mais
popular, desejada e invejada daquela universidade.
Porém...
A postura de empoderamento não durou tanto quanto eu gostaria. A real foi que, no meu
primeiro franzir de cenho, apesar do olhar determinado, a postura começou a desmoronar
gradativamente. Alguma coisa estava estranha por ali. Muito estranha. Senti a minha orelha
coçar. Isso já era um sinal.
Ninguém estava falando comigo.
Ninguém me cumprimentava.
Ninguém me soltava elogios, nem ao menos me olhava, ainda que dezenas de pessoas
estivessem cruzando o meu maldito caminho.
Na verdade, era como se eu e nada fôssemos a mesma coisa.
Senti quando algo se inquietou dentro de mim. Dentro do meu peito. Talvez fosse aquele
negócio que, vez por outra, eu chamava de coração. Não que eu tivesse um, mas o rebuliço era
bem no local onde os livros de biologia diziam que existia um órgão que bombeava sangue para
o corpo inteiro.
Era como uma angústia que eu nunca tinha sentido.
Uma sensação única e absolutamente nova de que, agora, eu era invisível.
Logo eu… Como assim?
Trinquei a mandíbula pela milésima vez.
O que deu nessa galera, hoje?
Foi quando eu notei uma movimentação mais intensa, em uma das entradas do Centro de
Convivência. Na verdade, um falatório. Um burburinho incessável. Uns olhavam para os outros e
cochichavam. Outros apontavam e sorriam.
Tudo parecia ainda mais bizarro.
O vinco na minha testa se tornou maior.
O que podia estar acontecendo ali, para que todos tivessem perdido o bom senso de
cumprimentar uma das representantes discentes mais importantes (eu) daquela universidade?!
Quando eu já estava quase alcançando a entrada de onde acontecia aquela balbúrdia, fui
repentinamente parada. Alguém segurou o meu braço. E, mesmo que eu sempre tivesse odiado
esse tipo de contato íntimo e próximo demais, com quem não era íntimo e próximo demais de
mim, por um segundo, eu quis sorrir. Sim, eu quis.
Uma sensação de alívio inundou o meu peito.
Uma certeza de que tudo não passava apenas de uma terrível impressão minha.
Um grandíssimo mal-entendido.
As coisas continuavam, sim, como sempre foram.
Claro!
Só que aí...
No momento em que eu parei e me virei para ver a pessoa, todo o meu sorriso, iludido e
recém-nascido, se desfez completamente, assim como todas as minhas expectativas foram para o
espaço, junto com a consciência estudantil daqueles miseráveis que agiam como se eu tivesse me
tornado uma qualquer.
Era o...
Que droga!
Ethan.
O imbecil do Ethan.
Se eu soubesse, não tinha nem parado.
Automaticamente, o encarei em pura preguiça. Toda a minha postura se desfazendo em
um instantâneo cansaço, só por estar de frente para a sua cara mais uma vez, coisa que eu
desejava que não acontecesse pelos próximos mil anos.
— Ah, que bom que te achei, gatinha... Eu queria mesmo falar com você.
Sem paciência, puxei o braço, para que ele me soltasse, e respondi:
— Ethan, não temos nada para conversar.
— Mas... Eu queria me desculpar por ontem, minha gatinha. Sei que pisei na bola.
Rolei os olhos.
Pelo amor da deusa...!
— Primeiro, eu não sou sua gatinha. Segundo, se o que você está esperando é um “ok, está
desculpado”, então “ok, você está desculpado”.
Eu não fazia mesmo questão de dizer essa bobagem a ele, se fosse para me livrar o quanto
antes da sua presença e da sua cara nojenta de quem não tinha nada no cérebro além da academia
e do esquema de colas para ser aprovado nas disciplinas.
Dando meia volta e já me virando para ir embora, foi tudo o que eu realmente disse a ele.
No entanto...
— Ei, Vic, espera! — correu atrás de mim, me segurando pelo braço outra vez e quase me
fazendo ter uma síncope de pura raiva. — Isso significa que podemos ficar de novo?
Ele só podia estar brincando, né?
Ou, então, era mais sem noção do que eu imaginava.
Virando-me brevemente para ele, sorri tão falsa quanto de costume eu já era.
— Oh! Se nós podemos ficar de novo, querido? — arqueei as sobrancelhas, numa simpatia
que não era minha.
— Sim! — sorriu ele, cheio de dentes.
Eu merecia mesmo...
— É claro, meu amor. Nos seus sonhos.
E fechei o semblante, puxando o meu braço outra vez.
Idiota.
Antes mesmo que pudesse me responder qualquer coisa, eu já estava caminhando para
bem longe de onde ele ficou, parado e plantado feito o imbecil que era. Eu tinha mais o que
fazer. E, de mim, Ethan não teria mais nada. Aliás, nunca deveria ter tido. Se não fosse a
sapatilha da Rayka perturbando a minha cabeça, eu nem teria cogitado a possibilidade de ter
saído, na noite anterior, com o ele.
Suspirei, tentando controlar os meus níveis, ainda maiores, de irritação, e, então, foquei no
meu principal objetivo. Eu precisava descobrir que diabo era aquilo que as pessoas não paravam
de olhar e falar, super entusiasmadas. Ou melhor, eu precisava saber quem era a pessoa que tinha
conseguido o que eu levei anos para construir: a minha popularidade.
Talvez a Taylor Swift?
A Rihanna?
Olha só, eu só aceitava perder para elas!
Fui me aproximando.
O falatório se intensificando.
Eu me tornando cada vez mais invisível, porque ninguém, absolutamente ninguém estava
olhando para mim.
O meu coração se apertando e se retorcendo.
O meu ego se tornando tão pequeno quanto a minha sanidade mental, por ter a certeza,
egoísta e infantil demais, de que algo ou alguém tinha conseguido a mesma atenção que os
outros davam a mim.
E, então, entrei no Centro de Convivência, aos trancos e barrancos, já com uma sede de
competitividade ridícula e irracional.
Foi quando eu vi...
Todos os meus questionamentos foram automaticamente respondidos.
Eu vi...
...Lá no meio do Centro.
Rindo, sorrindo e gargalhando para um monte de pessoas, como se fossem amigos de
infância.
Inconscientemente, sibilei entredentes, só comigo mesma:
— Rayka.
Ela era o assunto.
Ela era o momento.
Rayka era política, simpática até demais, com todo mundo. Talvez muito mais política do
que eu. Sempre foi assim, especialmente no primeiro ano da faculdade, antes do intercâmbio.
Aonde chegava, ela fazia amizade com qualquer pessoa.
Gente boa... Eu me lembrava que era assim que os babões da faculdade costumavam
chamá-la.
Enquanto para uns ela era considerada “gente boa”, para mim não passava de intragável,
insuportável.
E o pior...
O pior de tudo não era nem a minha irritação com a atenção que ela estava recebendo ou
com o fato de eu ter praticamente me tornado invisível depois da sua chegada, mas, sim, aquela
sensação esquisita e desconfortável que eu senti ao ver a quantidade de garotas em sua volta, se
exibindo e se insinuando para ela.
Involuntariamente, pressionei a mandíbula, fechando os punhos.
Todas tinham virado sapatão mesmo, conforme eu já suspeitava.
Estava na moda, afinal!
Eu só podia ser a única hétero.
Sim, claro.
A única hétero.
EU SÓ QUERIA FICAR COM ELA

“Vou arruinar você, puta”


212 | Azealia Banks

RAYKA

Não demorou mais que meio minuto, assim que pus os pés na região onde ficavam os
blocos com as salas de aulas do campus, para que eu começasse a ouvir o burburinho de dezenas
de pessoas, ao meu redor, dizendo “ei, essa não é a Rayka Ferris?”, “ela já voltou do
intercâmbio?”, “caraca, que avião”. Ou mesmo “E aí, Rayka! Tudo bom?”, “que legal que
você tá de volta!”.
Risos e sorrisos que eu fazia questão de retribuir. Gente me puxando pelo braço para falar
comigo. Abraços, toques de mãos, piadinhas que me arrancavam gargalhadas.
Eu adorava isso.
Eu realmente adorava tudo isso.
Estava tudo exatamente do jeitinho como eu me lembrava que era, há dois anos, antes de
eu ir para a Europa. Alguns, que falavam comigo, já me conheciam desde o primeiro ano de
faculdade, enquanto outros estavam apenas curiosos para saber quem diabos era aquela menina
que tanto cumprimentavam. Amigos, conhecidos, e pessoas que só estavam entrando na onda
mesmo.
No Centro de Convivência, então, aquela “recepção” calorosa e não planejada, foi ainda
mais intensa. Eu, que já estava feliz por ter voltado, apesar da expulsão por um motivo
absolutamente bobo e preconceituoso (sim, nada tiraria da minha cabeça que aquele reitor
bundão foi um puta preconceituoso), agora, me sentia muito mais. Mesmo enxergando uma boa
quantidade de pares de olhos que não paravam de me observar, eu não me sentia inibida ou
constrangida.
As coisas já eram assim, no primeiro ano da faculdade, e eu ficava contente que não
tivessem mudado. Ainda se lembravam de mim, mesmo com o tempo que passei fora. Era bom
ser bem recebida na “minha casa”. E eu, claro, tinha prazer em falar com a galera, pegar na mão,
dar abraços. Talvez fosse por isso que eles também se sentiam à vontade para puxar conversa
comigo.
A minha filosofia, desde que decidi parar de me esconder dentro de mim, lá na minha pré-
adolescência, era: quanto mais amigos que aceitassem quem eu era, melhor. Aliás, quanto mais
amigos verdadeiros e que aceitassem quem eu era, melhor. Depois de tanto me apertar para
caber em padrões que eu jamais conseguiria atingir, resolvi parar de lutar contra mim mesma e,
felizmente, comecei a achar uma galera maneira que me enxergava como eu era.
Enquanto eu caminhava por ali, tentando alcançar uma das lanchonetes, para comprar um
café, um cara de um dos grupinhos falou:
— Hey! E aí, foi bom lá, Rayka?
— Foi daora! Exceto pela parte de ter sido expulsa... — soltei uma risadinha.
— Expulsa por estar aproveitando o lado bom da vida!
Arqueei as sobrancelhas de leve, ainda sorrindo.
— Vocês já tão sabendo, é?
— Nada passa batido nessa universidade, Rayka... — respondeu, divertido.
Sorri, pouco me importando.
A galera era fofoqueira mesmo.
Uma das garotas do grupo, faceira e sorridente até demais, olhando para mim o tempo
todo, exclamou, antes que eu pudesse dizer qualquer coisa:
— Senta aqui com a gente, Ray!
— Sim! Fica aqui...! — outra também falou. — Tem espaço!
De repente, porém, ouvi uma voz bem atrás de mim:
— E aí, novata! Quanto custaram esses tênis? Paguei cinquenta dólares nos meus.
Aquela voz...
Conhecida.
Conhecidíssima.
Até me desliguei de todas as outras pessoas, enquanto tudo dentro de mim
automaticamente explodia em pura felicidade.
Era aquela vadia.
Só podia ser.
Girei meu corpo para trás, com um sorriso ainda maior no rosto. Quando a vi, todas as
minhas suspeitas foram confirmadas. Era ela. Cara de má, cabelos loiros com mechas cor de
rosa, olhos pintados em tons fortes para uma quarta-feira de manhã, e suas típicas roupas pretas
iradas e fashionistas.
Alyssa.
Minha melhor amiga.
Nós nos conhecíamos há anos, tipo muitos anos mesmo, desde a época do colegial. E
fizemos muitas merdas memoráveis (e divertidas), juntas, na mesma quantidade de tempo que
éramos amigas.
Ao seu lado, havia um garoto. Típico padrãozinho na aparência, mas não nas atitudes.
Apesar do rosto de quem tinha saído de uma capa de revista ou do corpo que certamente treinava
à beça em academia, ele parecia ser calmo e quieto. Eu diria até que ele era como um daqueles
nerds. Um tantinho diferente dos padrõezinhos da Universidade de Miami.
O que a Alyssa fazia com esse cara, eu não tinha ideia. Alguma hora, eu ia descobrir. Para
ser sincera, naquele momento, eu estava com muito mais vontade de abraçar aquela vadia e
matar um pouco da saudade acumulada durante os últimos dois anos, do que fazer um
interrogatório sobre os motivos dela estar com um macho bombado.
Ainda assim, entrei na onda da sua brincadeira e, com um sorrisinho sacana, respondi a
sua pergunta. Uma daquelas típicas perguntas suas que, aparentemente, não faziam o menor
sentido, mas que, no fim das contas, eram inteligentes pra caramba.
— Não custaram nada, gata. Achei numa lata de lixo em Oxford.
— Lata de lixo? — ergueu uma das sobrancelhas para mim.
Seu sorriso se tornando gradativamente maior.
— Sim... Deu valor?
— Ahhh... — exclamou ela, divertida, desfazendo completamente a sua postura. — Por
que você sempre vence nas melhores respostas, sua otária?
Gargalhei.
— Vem cá e me dá logo um abraço, vagabunda!
Rindo, ela assim o fez, me envolvendo tão forte ao ponto de quase me deixar sem ar.
— Quem é vivo sempre aparece, né? — falou.
— Ou, então, quem trepa com três garotas ao mesmo tempo, no banheiro de uma
universidade homofóbica, e é pega no flagra — repliquei.
Alyssa gargalhou.
— Oh sim, claro, como sempre uma puta.
— Com orgulho — pisquei um dos olhos pra ela, irônica. — E esse aí, quem é? — pontei
com o queixo. — Tá pegando macho agora?
— Ah, não, Deus me livre! — berrou, fazendo uma pura cara de nojo. — Continuo
sapatão firme e forte! Esse aí é só o Jeff! Jefferson ou Jeff para os mais íntimos. Eu também
costumo chamá-lo de chupador de saxofone... — riu, dando um tapinha divertido no braço dele.
— Enfim, eu tinha que fazer amizade com alguém enquanto você estava fora, né?
Chupador de saxofone?
— Ahh sim... — sibilei, balançando de leve a cabeça, enquanto o encarava. — Tô me
lembrando... Você até me mandou umas fotos, né? — estendi a mão para ele. — Valeu, cara!
Valeu por ter segurado as pontas e aguentado essa doida durante quase dois anos.
Ele riu, simpático, me cumprimentando de volta.
— Não vou dizer que foi fácil, mas... Eu sobrevivi — brincou. — Prazer, Rayka.
— Ei! — Alyssa deu um soquinho no seu ombro. — Que falta de consideração é essa? Eu
fiz o favor de ser sua amiga! E olha que eu não gosto de macho nem pra amizade.
Jeff e eu rimos.
A garota era uma figura.
— Mas, e aí... — toquei no seu braço. — Me conta... Como estão as coisas por aqui?
Não que eu já não soubesse. Felizmente, graças ao Canal de Notícias da Alyssa, mais
conhecido como mensagens de texto do Iphone, eu tinha atualizações, quase em tempo real, das
melhores fofocas do campus da Universidade de Miami. Isso sem falar nas videochamadas, uma
vez por semana, que também eram bem eficazes.
— Não antes de você, gata. Por que diabos não avisou logo que já tinha chegado? Tava se
escondendo?
— Não... Eu não estava me escondendo — soltei uma risadinha. — Só foi muito corrido
mesmo, desde que eu botei os pés aqui, ontem. Tinha a minha mãe e as minhas coisas para
colocar em ordem... Ainda me puseram para ficar na fraternidade e...
— Pera aí. — ela me interrompeu de automático. — Tá falando da Fraternidade das
Minervas?
— Sim.
— O QUÊ? — berrou. — Você vai ficar na Fraternidade das Minervas, Rayka?
Suspirei.
— Não por vontade própria... Minha mãe e o John quiseram que eu ficasse lá, porque,
segundo eles, eu vou me readaptar muito mais rápido à Universidade, com as garotas.
— Caralho! — exclamou, boquiaberta. — Não posso acreditar que você está nas
Minervas. Vai se tornar mais uma plastificada, que nem elas. Daqui a pouco, o seu cabelo vai
crescer e você vai virar loira.
Gargalhei.
— Tá maluca, pô?
— Ah, porra, ser loira não tá no regulamento delas? — zoou. — Tá... Nem todas são
brancas e loiras. Tem de todos os tipos. Mas, mesmo assim, cara, elas são um pé no saco.
Dei de ombros, sorrindo.
— Pelo menos, só o que tem é mulher por lá, né?
— É... — puxou o ar de leve. — Nisso você tem razão... Um monte de gostosa. Mas, você
sabe, são todas frescas. Quase não pisam no chão.
— Olha, até que não... — respondi. — Por mais incrível e bizarro que isso possa parecer,
eu achei elas até bem simpáticas, viu? Claro que algumas ainda me olharam meio torto. Isso já
era esperado. Mas, a maioria me recebeu super bem por lá.
— Super bem? — Alyssa ergueu uma das sobrancelhas, sorrindo sacana para mim. —
Você sabe que o nome disso é curiosidade, né? Deve estar te vendo como um “garoto” dentro da
fraternidade. Bonita, diferente de todas elas, e, para completar, ainda se veste assim... — apontou
para cima e para baixo, em minha direção. — Um prato cheio para quererem te dar a boceta só
para experimentar como é ficar com uma mulher que se parece com um “cara”.
Pois é...
Nisso, eu precisava concordar com ela.
Desde o primeiro segundo que coloquei os meus pés dentro daquela fraternidade e notei o
olhar da maioria delas para mim, eu soube.
Hétero-curiosas.
Esse era o diagnóstico, doutor.
— Mas, você me conhece, Alyssa... — soltei quase um “tsc”, fazendo pouco caso sobre o
que ela dizia. — Sabe que eu não gosto de ficar com menina hétero, principalmente aquelas que
acham que eu vou agir como um homem só por causa da forma como eu me visto.
Porém...
Na rolada de olhos que eu dei, ao pronunciar a última palavra, minhas orbes, sem querer,
caíram de relance em alguém que estava do outro lado do Centro de Convivência. Alguém que
me observava. Cabelos longos, ondulados e castanho-escuros, descendo como castanhas
perfeitas até a sua cintura. Olhos escuros. Pele clara, mas deliciosamente bronzeada da praia.
Rosto de quem sabia que dava de mil a zero na beleza de qualquer outra garota dali.
Victoria.
Ao perceber que eu tinha notado as suas orbes sobre mim, contudo, ela rapidamente virou
o rosto, toda atrapalhada, e puxou uma das suas amigas.
Eu até poderia também ter voltado à minha atenção para Alyssa, mas puta que pariu... O
vestidinho que Victoria estava usando, acima dos joelhos, deixando à mostra suas pernas bonitas
e marcando tão bem a cintura, era diabólico.
Linda.
Só ouvi quando a loira ao meu lado falou, quase cantarolando:
— Exceto essa hétero, né? Se essa hétero aí quisesse mijar na tua boca, tu abria e ainda
ficava feliz.
Foi quando, bruscamente, me senti arrastada de volta à realidade.
Os cincos segundos de olhares perdidos, na direção da Victoria, simplesmente
evaporaram. Pisquei as orbes repetidas vezes e pigarreei a garganta, passando uma das mãos pelo
pescoço sem nem saber o motivo.
— Ah, para, Alyssa. Deixa de falar bobagem.
Tentei desconversar, já virando o rosto para ela de novo.
— Não tô falando bobagem, gatinha... Te conheço há tempo demais para saber que você é
uma idiota por essa menina. Pelo menos, você não esquece a boquinha dela desde...
Caralho.
— Para, Alyssa!
Se a Victoria ao menos sonhasse que alguém da Universidade sabia o que tinha acontecido
em North Beach, ela me mataria, me esquartejaria e ainda colocaria os meus pedaços em um
incinerador. Não que eu tivesse medo das consequências ou da sua mãozinha linda e pesada na
minha cara, mas... Eu não queria que a menina fosse exposta sem o próprio consentimento.
E, pelo que eu conhecia da Victoria, era provável que ela preferisse morrer do que
admitir o que aconteceu.
Além do mais, Jeff estava bem ali. Não que eu não confiasse nele, porque eu sabia que
Alyssa não se misturaria com um cara escroto. Porém, eu tinha acabado de conhecê-lo. Daquela
universidade, só quem sabia o que tinha acontecido em North Beach era Victoria, Alyssa e eu, e
era assim que deveria continuar sendo.
— Poxa, tá bom, tá bom... Relaxa. Não vou tocar mais no nome da patricinha nojenta.
Suspirei.
— Também não é pra tanto, Alyssa... A Victoria é só...
— Insípida? Convencida? — a loira sugeriu.
— Não... — franzi o cenho de leve. — Quero dizer... Eu sei... Eu sei que ela é chata,
nojenta, mimada e...
— Metida, convencida, insuportável...
— Tá bom, Alyssa... — interrompi-a antes que continuasse a sua lista infindável das
maravilhosas qualidades de Victoria Peterson. Puxei o ar, tentando encontrar as melhores
palavras. — Sim, eu sei que ela parece ser tudo isso, mas... Cara, no fundo, sei também que tem
uma menina boa ali.
A loira gargalhou.
— Boa menina?! Meu Deus, a garota tem ranço de ti, mas você ainda a defende? Quem
tem alma boa aqui é você, gata, e não ela.
Rolei os olhos outra vez, balançando a cabeça de leve.
— Apesar de toda a personalidade meio podre, deve ter alguma coisa boa por dentro.
Deve ter, não.
Tem.
— Por favor, Rayka... — balançou a cabeça, rolando os olhos. — Seu caso é mesmo mais
sério do que eu imaginava. O que tem ali é só uma princesinha convencida, usando um vestido
de verão estrategicamente planejado para fazer garotas, como nós, perceberem que nunca vão
encostar nela, e garotos, como os filhinhos de papai, herdeiros das maiores fortunas de Miami,
perceberem que é o que eles querem fazer. Ela, minha amiga, é só uma fantasia pro banheiro, e
pronto.
Assim que Alyssa se calou, entretanto, foi quase instantâneo.
Ouvimos bipes de vários celulares ao mesmo tempo. Aquele típico som de mensagem
chegando na caixa de entrada. Era como se todos do Centro de Convivência, ou da Universidade
inteirinha, tivessem recebido ao mesmo tempo. Vi quando, sem entender, confusos, começaram a
tirar seus celulares do bolso. O meu era o único que não tinha vibrado.
O mais esquisito, porém, não foi exatamente isso. Foi a cara que fizeram ao visualizar as
telas. Alguns ficaram em choque, outros pareciam com vontade de rir. Um burburinho infernal e
generalizado, muito maior do que aquele que ouvi quando cheguei ali há quinze minutos, se
espalhou por todo o local, enquanto apontavam, sem o menor pudor, na direção em que Victoria
estava.
Para completar, o queixo do Jeff despencou e a mão da Alyssa foi à boca.
Que porra estava acontecendo?
Sem conseguir conter a minha inquietação, porque algo me dizia que aquilo tinha a ver
com a Victoria, puxei a mão da loira para encarar a tela do seu celular. E, então, quando assim o
fiz e os meus olhos se fixaram naquilo, todo o sangue do corpo sumiu, de automático.
Merda.
Merda, merda, merda.
Puta que pariu...
Lá estava... Victoria...
A filha do marido da minha mãe.
A minha Victoria...
Seminua.
Na foto, que era tipo uma selfie de frente para o espelho, onde ela mesma segurava a
câmera, Victoria estava apenas de calcinha. Na parte de cima, não havia sutiã. Ela cobria um seio
com uma das mãos e o outro com o braço. Os mesmos cabelos longos e ondulados caindo feito
cascatas castanho-escuras sobre o seu corpo.
Linda.
Absolutamente maravilhosa.
A foto era uma obra de arte.
Porém, não tinha sido feita para ser espalhada assim. Victoria, provavelmente, a enviou
para algum desgraçado sem escrúpulos, que não soube cuidar direito do presente que tinha nas
mãos.
Puta que pariu.
Puta. Que. Pariu.
Segundos depois do choque, a ira consumiu cada centímetro do meu corpo. Senti a minha
pele esquentar e todos os meus nervos entrarem em combustão. Sim, eu pegava muito no pé da
Victoria, eu tirava onda com a sua cara vez por outra, mas... Eu curtia a menina, mesmo que ela
não fosse a pessoa mais fácil de se conviver no mundo. E eu me preocupava com ela. Me
preocupava da mesma forma que me preocupei quando eu a vi chorando na fraternidade, ontem.
Ergui meu olhar no rumo que eu a vi pela última vez e, então, percebi o exato instante em
que as suas orbes se encheram d’água. Foi quando ela mesma se deu conta do que estava
acontecendo, ao mirar no seu celular. Com os pés fincados no chão, em puro choque, seu corpo
tremeu.
Tremeu ao enxergar a quantidade de gente, vendo-a praticamente nua e rindo da sua cara.
Rindo. Simplesmente rindo.
Um bando de filhos da puta!
Toda a empatia que, há dois minutos, eu sentia por aquela galera, foi para o espaço.
Tudo o que eu sentia, por eles, agora, era puro ódio e nojo.
Porém, mesmo em meio a tantos sentimentos de fúria que se embolavam dentro de mim,
eu também me senti quebrar por inteira quando, ao ouvir um soluço escapar da sua garganta,
lágrimas arrebentaram os olhos da garota. Victoria saiu correndo dali, repentinamente.
Naquele instante, cega de vontade de estar com ela, não pensei duas vezes em deixar todo
mundo para trás e tentar alcançá-la.
Foi o que eu fiz.
Nem me despedi da Alyssa, apenas corri, na mesma direção para onde Victoria ia. Jamais
conseguiria ficar parada, como uma idiota, sabendo do que estava acontecendo. Corri por entre
aqueles filhos da puta que não paravam de rir e cochichar. Corri no rumo em que eu a vi se enfiar
e desaparecer.
Coração na mão. Lágrimas de ódio nos olhos. Irritação à flor da pele.
Eu sabia o que ela queria. Eu sabia que Victoria queria sumir. E sabia também que eu era a
última pessoa que ela gostaria que a visse nesse estado. Victoria era orgulhosa, não curtia chorar
na minha frente. Não gostava de parecer frágil para mim, nem para qualquer outro ser humano.
Ainda assim, obstinada, continuei.
Eu não era capaz de fazer outra coisa.
Porém, quando dobrei em um corredor e a vi encostada a uma parede chorando, quem me
parou foi a minha mãe. Surgiu do nada, como se tivesse aparecido ali em um passe de mágica, e,
antes que eu pudesse alcançar a garota, ela me disse:
— Querida, está tudo bem. Deixe-me falar com a Victoria, primeiro. Depois, vocês podem
conversar.
A surpresa da sua chegada repentina foi tão grande que, antes que eu conseguisse
responder qualquer merda, mamãe já tinha saído com Victoria e entrado em uma das salas.
Droga.
Eu só queria ficar com ela.
VOCÊ NÃO É PERFEITA

“Eu sou apenas humano, não coloque sua culpa em mim”


Human | Rag’n’Bone Man

VICTORIA

— AI QUE ÓDIO! — praguejava eu, dentro de uma sala, enquanto lágrimas de fúria
continuavam escorrendo dos meus olhos sem parar. Assoei forte o nariz, em um pedaço de papel
higiênico, quase como se estivesse tirando catarro do meu cérebro. Ao meu redor, inúmeras
bolinhas já estavam jogadas. — Esses idiotas! Agora, o meu corpinho lindo tá aí, para todo
mundo ver! E olha que eu só dei essa honra a pouquíssimos caras, tia!
Choraminguei e solucei de novo, sentada em uma cadeira onde Daisy me colocou.
Ao meu lado, ela tentava me acalmar.
— Querida, respire fundo. Nós vamos dar um jeito nisso. Eu prometo. Seu pai não vai
deixar essa situação passar em branco. — esfregou uma das mãos nas minhas costas, fazendo
carinho. — Agora, tente parar de chorar e beba essa aguinha com açúcar e sais minerais. Com
certeza, você vai melhorar. É terapêutica.
Eu, no entanto, já não tinha tanta certeza de que aquela sua aguinha-namastê era
terapêutica o bastante para me fazer melhorar de qualquer coisa.
Eu estava incrivelmente furiosa!
Não me lembrava da última vez em que eu tinha me sentido assim. Nem mesmo quando
eu soube que Rayka voltaria e ficaria na fraternidade, eu não me senti tão irritada. Para
completar, havia um vinco, enorme e profundo, grudado na minha testa, que, provavelmente, me
deixaria com rugas mais cedo do que eu gostaria de pensar.
E não, eu não conseguia parar de me sentir um gigantesco lixo, por mais que eu tentasse.
Logo eu... A líder da fraternidade, a filha do reitor, a perfeição em forma de gente se
sentindo um lixo. Sim, isso era uma tremenda barbaridade! Mas... Eu simplesmente não
conseguia parar de me ver como um grande monte de bosta, nem pelo bem da saúde da minha
pele maravilhosa, hidratada e, agora, enrugada.
A raiva e a indignação eram tão grandes que eu tinha a impressão de que poderia explodir
a qualquer momento. Raiva não somente pelo que houve, mas, principalmente, indignação por
estar chorando, pela segunda vez, em menos de vinte e quatro horas.
Argh!
Eu odiava chorar!
Odiava, com todas as minhas forças, derramar as minhas lágrimas tão preciosas por causa
de miseráveis patéticos.
Porém...
— Estavam rindo de mim, tia! — exclamei. Meu nariz já cheio de catarro de novo,
deixando o som da minha voz anasalado. Meu rosto banhado e, provavelmente, todo borrado de
rímel preto. — Estavam olhando para mim e rindo, como se eu fosse algum tipo de palhaça!
Daisy suspirou.
— Eu sei, meu amor. Isso tudo é terrível. Um grande absurdo. Mas, tenha certeza de que
medidas serão tomadas. Eu prometo. — branda, ela replicou. — Agora, beba essa água e respire
fundo. Vamos, querida. Você está muito acelerada.
Bufei.
Sim, eu estava, sim, muito acelerada.
Nunca, nunca, nunca fui feita de chacota dessa forma. Nunca me senti tão ridícula. Era a
primeira vez. Uma péssima primeira vez. E eu me lembrava muito bem da cara de todos aqueles
otários que riram de mim. Eram os mesmos que costumavam lamber o chão, antes de eu passar.
Os mesmos que me soltavam elogios, esperando algo em troca. Um benefício, ou sei lá...
Qualquer coisa que a idiota da filha do reitor pudesse oferecer.
Bajuladores, interesseiros, aproveitadores.
Falsos, falsos, falsos.
Traidores!
Todos eles!
Aliás, eu já estava começando a achar que não existia mais ninguém que prestasse no
mundo.
“Tão falsos quanto você, meu anjo”, disse o miserável do meu subconsciente.
Revirei os olhos.
Que ódio.
Tá...
Tá bom, tá bom!
Eu também nunca fui a garota mais adorável, verdadeira e simpática daquela universidade.
Eu só tentava ser minimamente legal, para conseguir me reeleger como presidenta da
fraternidade, e pronto. Mesmo assim, apesar de todos os meus esforços para parecer “gente
boa”, vez por outra eu ainda ouvia boatos de alguns me chamando de “sujeitinha desprezível”,
no mínimo. Bem no mínimo mesmo.
Eu já tinha escutado nomes piores se referindo a mim.
Uma verdadeira barbaridade de gente sem classe e sem vocabulário.
Balancei a cabeça em negativo.
E, bruscamente, ainda nervosa e igualmente irritada, puxei o copo d’água da mão da tia
Daisy. Tremendo, quase deixei a água derramar. Ainda assim, porém, consegui virar e tomar
tudo em um gole só. Ofegante, respirei fundo, limpando a boca com as costas das mãos.
Injustiça!
O que eu sofri foi uma injustiça!
Só porque eu olhava primeiro para a marca da roupa do que para a cara da pessoa?
Só porque eu reconhecia perfume de pobre e torcia o nariz por achar fedorento?!
Só porque eu iludia garotas em troca de votos, dizendo que ia aceitá-las na fraternidade,
mas nunca aceitava?
Que saco!
Era errado expor fotos íntimas das pessoas.
Um crime!
Eu. Não. Tinha. Permitido.
Eu não tinha permitido que espalhassem fotos minhas assim.
E o pior... O pior era que eu não fazia a menor ideia de quem poderia ter armado aquela
atrocidade contra mim. Foram tão poucas as vezes em que eu mandei fotos seminua ou nua para
algum cara, que eu nem me lembrava mais. Eu precisaria forçar muito a minha memória. Se eu
não me lembrava nem do que almocei no dia anterior, imagina para qual miserável sortudo eu
enviei uma foto linda do meu corpinho.
Há séculos, eu não fazia isso.
Claro, há séculos ninguém merecia isso.
Mesmo assim...
Que droga!
Eu só queria saber quem era, para poder matar e esconder o corpo em algum terreno
baldio.
Será que tinham hackeado o meu celular antigo?
Ou...
Ou será...
Será que foi aquela ordinária invejosa da Stacy Hinkhouse, que sempre quis tirar a
presidência das Minervas de mim? Ou será que foi o babaca do Dylan Minnette, que me xingou
até a décima terceira geração, porque neguei ir para a cama com ele?
Poderia ser o imbecil do Ethan?
Não, não poderia.
Se nem beijo na sua boca eu quis lhe dar, quanto mais um nude.
Eu nunca enviei fotos assim para o Ethan.
Inferno.
Ao mesmo tempo que as possibilidades poderiam ser muitas, também pareciam tão
poucas, graças à minha péssima memória e ao meu brilhante costume de apagar das lembranças
todas as burrices que eu fazia.
E, juro, eu até tentava permanecer de nariz empinado, queixo erguido, forte, maravilhosa,
inabalável, e totalmente indiferente aos panacas que sempre existiram naquela universidade,
mas...
— Ai, tia... Tô arrasada! — simplesmente desabei de novo, chorando, desolada.
Ela, por sua vez, me abraçou, afagando os meus cabelos, enquanto eu fungava e catarros
escorriam.
Sério, eu nunca me senti tão feia.
E eu era linda.
— Vai ficar tudo bem, meu amor... — disse ela.
— Tem certeza? — choraminguei.
— Eu tenho certeza absoluta.
Assim que ela se calou, porém, a porta da sala onde estávamos se abriu em um solavanco.
Quem apareceu ali foi o papai. Seus olhos arregalados, preocupados, quase saindo da caixa
craniana. Não mirou em mais nada, a não ser em mim. E, num piscar de olhos, sem que eu
pudesse ao menos medir seus passos, me agarrou forte em seus braços.
— Princesa linda do papai, eu estou aqui agora... Fique calma.
Princesa linda do papai…
...Eu estou aqui agora.
Só de ouvir a sua voz me falando isso, junto com aquele abraço forte e tão carinhoso, eu
conseguia realmente respirar um tiquinho mais aliviada. Receber o afeto da tia Daisy já era muito
bom, mas do meu pai... Do meu pai era indescritivelmente melhor.
Ele era o melhor pai do mundo.
O melhor pai que eu poderia ter, mesmo com as suas decisões arbitrárias sobre colocar
Rayka na fraternidade. Provavelmente, era o único homem decente do planeta inteiro. A tia
Daisy tinha tanta sorte de ter conseguido o único cara com quem realmente valia a pena se casar.
— Nós vamos dar um jeito nisso, meu amor — completou ele. — Não tenha dúvidas de
que vou tomar providências. Só tente ficar um pouco tranquila agora.
Em vez de apontar o dedo na minha cara, ele me oferecia colo. E era exatamente disso o
que eu precisava agora.
— Eu consegui falar com a psicóloga da universidade — ouvi quando a tia Daisy disse. —
Ela já está esperando a Vic.
— Ótimo — papai respondeu. — Enquanto eu cuido da bagunça que está nessa
universidade, é melhor que você converse com ela, querida.
Por um segundo, depois de tanto chorar, um pequeno e quase imperceptível sorrisinho quis
aparecer nos meus lábios. Me senti protegida por eles. Me senti ligeiramente mais forte.
Até que...
— Quanta irresponsabilidade junta. Terrível.
Repentinamente, o pequeno sol que surgiu através do meu sorriso recém-nascido, sumiu
de súbito. Tudo o que pareceu clarear, se tornou trevas de novo. O clima mudou, enquanto
nuvens pesadas se formavam acima das nossas cabeças, apenas com a sua chegada e o seu tom
de voz.
Minha avó.
Grace Peterson.
Mesmo no auge dos seus sessenta anos de idade, ela continuava trabalhando na
universidade. Era a conselheira da reitoria. Ou seja, o seu trabalho era dar pitaco no trabalho do
meu pai. Uma dama de ferro, com pulso firme e forte. Sim, literalmente de ferro. Às vezes, não
parecia ter qualquer sentimento. Mas, só às vezes.
Eu já senti o seu carinho.
Especialmente quando eu me comportava da maneira como ela queria.
Os seus abraços eram bons.
Muito bons.
O afeto dela me levava para um pouco mais perto da minha mãe.
Mas, eu também já senti a sua repulsa e a sua rejeição. E como senti. Na verdade, eu
estava sentindo exatamente agora, apenas com a sua presença naquela sala. Eram as piores,
piores sensações do mundo.
E tudo pareceu se tornar muito mais ruim, quando eu me desfiz do abraço do meu pai e
olhei para o rosto dela. Toda a sua rigidez e a sua opressão estampadas no olhar, sem qualquer
reserva. Não existia uma parcela sequer de empatia ali. Como sempre, não existia. Ou, pelo
menos, como na maioria das vezes em que eu fazia algo que ela não aprovava.
Tudo o que eu enxergava, dolorosamente no seu rosto, era o tamanho da decepção que eu
parecia ser para ela.
Um completo fracasso.
Alguém que não conseguia, nem ao menos, ser digna do sobrenome que tinha.
Era o que ela costumava me dizer.
— Vó... — sussurrei, encarando-a sem nem piscar os olhos.
Meu corpo começou a tremer, de repente.
Pânico.
Medo.
Eu não tinha tanta certeza do que, mas algo me dizia que o meu pavor era sempre da sua
rejeição.
E o mais bizarro de tudo era o quanto a sua dureza me afetava muito mais do que se fosse
o meu próprio pai me tratando assim. Não que eu entendesse perfeitamente a razão disso. Claro
que o meu pai era importante para mim tanto quanto ela, mas... Talvez... Só talvez... O peso da
rejeição da minha avó fosse maior, porque ela era, querendo ou não, a única parte viva que tinha
sobrado da minha mãe.
A única parte.
Era nela em quem eu me espelhava para ser, pelo menos, cinco por cento tão perfeita
quanto mamãe foi, e, com isso, ganhar, pelo menos, cinco por cento do amor que ela deu à minha
mãe.
Grace Peterson era muito mais do que uma avó para mim. Ela era o que eu tinha mais
próximo de uma figura materna. Ela era o sinônimo de perfeição que eu sempre almejei alcançar.
E era a própria Grace Peterson quem fazia eu me sentir cada vez mais longe desse objetivo,
sempre que desaprovava tão fria e firmemente qualquer coisa em mim.
— Será que não se cansa de ser ridícula, Victoria?
Meus olhos se encheram de lágrimas outra vez.
Foi automático e impossível de segurar.
Parecia uma faca muito afiada entrando no meu peito.
— Ridícula, vó...? — com um filete de fôlego, respondi baixinho.
— Tudo bem, Grace. Vamos pegar leve. — tia Daisy tentou amenizar a situação. — Eu
acho melhor acalmar os ânimos e deixar que a Vic converse com a psicóloga agora.
— Sim... — papai também replicou. — Essa situação é muito delicada para ser tratada
assim, Grace.
O olhar duro da minha avó, porém, recaiu sobre ele.
Eu pude ver as chamas de fogo, lançadas pelas suas íris.
— Você é patético, John — disse ela, entredentes, tão rígida quanto sempre foi. — Não
defenda essa pouca vergonha. A culpa também é sua! Falhou não somente como reitor desta
universidade, permitindo que malandros se tornassem alunos daqui, mas também como pai,
mimando essa garota ao extremo e sempre deixando-a fazer o quer. O resultado agora é esse.
Uma vagabunda que envergonha a família Peterson.
Vagabunda...?
— Vó... — engoli seco, enquanto as lágrimas ainda dançavam nos meus olhos.
— Grace... — papai tentou soar mais firme com ela. Percebi sua mandíbula trincar por
alguns segundos. — Tomaremos atitudes. Os responsáveis por isso não sairão impunes.
Ela respirou fundo.
Sua cara quase derretendo de tanto nojo.
— Nesse caso, já podemos começar a punir a principal culpada...? — e virou o rosto,
mirando firmemente em mim outra vez. Meu corpo ainda tremendo sob as suas imponentes
orbes. — Victoria.
— Vovó... — ofeguei, quase em choque. — Está dizendo que eu sou culpada pelo que
aconteceu? — e, boquiaberta, questionei. Aliás, talvez eu não devesse ficar tão surpresa assim
com a sua atitude. Na maioria das vezes, nada do que eu fazia estava cem por cento bom para
ela. Grace era muito crítica. Até quando eu acertava em algo, ela sempre encontrava algum
mínimo defeito para reclamar. — Eu não sou culpada, vovó... Eu sou a vítima!
— Vítima? — ligeiro, ela franziu o cenho para mim, quase irônica. — Mulheres de
respeito não enviam fotos nuas para homens, como se fossem vagabundas. Isso, Victoria, é coisa
de mulher baixa, fácil. E não foi essa a educação que eu dei para você. Estou profundamente
decepcionada. — completou ela, me partindo em um bilhão de pedaços, a cada palavra
pronunciada. — Você é sim culpada pelo que aconteceu. E é culpada também pelas
consequências que isso vai trazer para a sua vida. Afinal, que homem decente vai te querer
agora? Homens decentes querem mulheres decentes. E você não passa de uma depravada.
Grace soube muito bem como terminar de cravar o punhal afiado no meu coração. Eu não
costumava baixar a minha cabeça tão facilmente, ou me sentir pessoalmente atingida por
qualquer coisa que falassem sobre mim, mas... Quando era a minha avó quem me tratava assim,
a proporção dos sentimentos ruins, que se embolavam dentro de mim, parecia muito maior.
Senti como se eu estivesse morrendo um milhão de vezes seguidas, por dentro.
Senti como se, mesmo que eu não quisesse, eu tivesse tomado ainda mais distância não
somente dela, mas também da minha mãe.
Doía.
Doía muito mais do que doeu ver todas aquelas pessoas rindo de mim, enquanto
encaravam a minha foto seminua.
Doía ficar ainda mais longe fisicamente da minha mãe do que eu já estava desde os meus
nove anos de idade... Porque eu sentia saudade. Eu sentia muita saudade dela. Grace era tudo o
que tinha restado de Madelyn Peterson, a tão perfeita Madelyn, e, enquanto ela me enxergasse
com tanta decepção, era como se eu estivesse desobedecendo o último e mais importante pedido
da minha mãe, antes de ir embora.

...

Os bancos gelados do hospital me incomodavam. Me incomodavam tanto quanto esperar.


Esperar, pensar, sentir falta, esperar de novo, e ver enfermeiras e médicos andando de um lado
para o outro sem que qualquer um deles parasse para dizer algo. Ao meu lado, meu pai estava
sentado, enquanto, com a cabeça encostada ao seu peito, eu sentia suas mãos fazendo carinho
nos meus cabelos.
Ele tinha me dito que era melhor que eu fosse para casa. Já estava tarde. Passava da
meia-noite. Mas, eu supliquei... Eu supliquei por infinitas vezes para que ele me deixasse ficar
ali. Talvez, por eu ter nove anos, pensassem que eu não entendia metade das coisas do que
falavam. Só que eu entendia sim. E eu ouvi muito claramente, quando, mais cedo, uma das
enfermeiras falou para o meu pai que as coisas não estavam bem.
Meu coração apertou, e eu prometi para mim mesma que só sairia dali depois que eu
conseguisse ver a minha mãe.
Esperei...
Esperei...
E esperei mais um pouco.
Esperei até os meus olhos começarem a pesar de tanto sono.
Esperei até achar que o dia fosse amanhecer.
Foi quando, finalmente, sabe-se lá quantas horas depois, uma médica se aproximou de
nós. Papai se levantou prontamente para falar com ela. E eu percebi ele tentar se distanciar um
pouco, para que eu não escutasse a conversa. Mas, eu ouvi. Os meus ouvidos eram muito bons
para esse tipo de coisa. Eu escutei perfeitamente o que disseram.
— A situação está ficando pior... — a médica falou. — Temo que... — suspirou. — Você
sabe, John...
E eu vi o momento em que o pomo-de-adão do meu pai subiu e desceu, ao engolir seco.
Seus olhos ficaram ainda mais úmidos e, ao mesmo tempo, opacos de tristeza.
— O que ainda pode ser feito?
A médica balançou a cabeça em negativo.
— Tudo já foi feito, John.
Papai puxou o ar, esfregando as mãos no rosto e deslizando-as pelos cabelos.
Apenas esse pequeno ato fez as batidas acelerarem ainda mais no meu peito.
— Madelyn quer ver a filha...
Tudo dentro de mim se agitou, tanto quanto o meu coração. Dessa vez, não de temor, mas
de felicidade. A minha mãe... A minha mãe queria me ver! E aquele sorriso, que há tanto tempo
eu não sentia no rosto, quis aparecer.
— Ela quer ver...? — papai perguntou, esperançoso e preocupado.
— Sim, mas... A Victoria é só uma criança — disse a médica. — Acho que não seja bom
para ela.
Enruguei a testa de automático.
Como assim não ia ser bom pra mim?
É claro que ia ser bom!
— Eu quero ir! — de supetão, pulei da cadeira, determinada. — Eu quero ver a minha
mãe.
Papai, receoso, ainda baixou o olhar para mim, como se estivesse considerando os prós e
contras da possibilidade. Quando ele ia abrir a boca para dizer algo, porém, senti duas mãos
firmes pousarem nos meus ombros, quase como se alguém estivesse me tomando para si. E,
então, uma voz rígida, firme, e totalmente reconhecível, falou:
— Victoria merece ver a mãe agora. Talvez seja a última vez. E, se Madelyn pediu para
que ela entrasse no quarto, é porque tem algo importante para falar. Não podemos perder mais
tempo. Vamos, querida.
Era a minha avó.
Grace.
E, segurando a minha mão, me levou antes mesmo que o meu pai pudesse responder
qualquer coisa.
Ainda olhei para trás, por alguns instantes, antes de entrar no quarto onde mamãe estava,
e vi a preocupação misturada com impotência no olhar molhado do papai. Eu não sabia
exatamente a razão dele estar temeroso sobre eu ver a mamãe, mas... Quando eu pus os pés no
local onde ela estava deitada, eu tive a resposta.
Travei.
Simplesmente travei, só por vê-la.
Não era a primeira vez que eu a via internada. Desde que descobriu o câncer, há um ano
e meio, ela já tinha passado por diversas outras internações. Porém, sem dúvidas, essa era a vez
em que mamãe estava em pior estado. Dolorosamente, irreconhecível.
Meus olhos chegaram ao limite do transbordamento.
Um nó absurdo se formou na minha garganta e quis subir rasgando na contramão.
Ela, que já tinha perdido muito peso, desde a descoberta, agora estava ainda mais magra.
Seu semblante absolutamente abatido. Seus cabelos, antes tão longos e bonitos, já não existiam
mais. E ali, tudo o que podia se ver, era a casca da mulher forte e maravilhosa que um dia foi.
Linda.
Perfeita.
Eu sabia o quanto mamãe tinha sido admirada por muitos. Eu me lembrava dos prêmios
de concursos de beleza que ela já tinha ganhado, das menções honrosas da fraternidade, e das
vezes em que ela saía nas colunas dos jornais da cidade, como uma das mulheres mais bonitas
de Miami.
Maldita doença... Se eu pudesse pedir qualquer coisa no mundo, eu pediria a sua cura.
Somente isso.
Apenas isso. E mais nada.
Só a sua cura.
Ouvi, porém, quando ela disse:
— Venha, meu amor... Chegue mais perto da mamãe.
Mesmo precisando forçar as minhas pernas, além do normal, para que reagissem, assim o
fiz. Mais ofegante, a cada passo que eu dava, por causa da absurda vontade de chorar, eu me
aproximei.
Doía.
Doía demais ver a minha mãe assim.
Quando parei ao seu lado, sua mão fraca, fria e cheia de furos de injeções, tocou a
minha.
— Eu te amo tanto, querida...
O bip da máquina parecia cada vez mais lento.
— Eu também te amo muito, mamãe... Estou com tanta saudade... Quando vai voltar para
casa? Berinjela e eu estamos esperando por você.
Berinjela era o cachorrinho que a gente tinha. Mamãe me deu quando completei quatro
anos de idade, e, desde então, ele morava na nossa casa.
No momento em que me calei, porém, percebi os olhos dela se encherem de lágrimas. Um
pequeno e quase imperceptível sorriso estampou os seus lábios, enquanto ela me observava com
tanta ternura.
Balançou de leve a cabeça, com as suas pálpebras quase se fechando, e, então, em um
sussurro de pouco fôlego, disse:
— Quero que faça uma coisa para mim, meu amor.
— Eu faço qualquer coisa por você, mamãe... — com a voz meio embargada, prontamente
respondi, sem nem pensar duas vezes. — Me diga o que quer, e eu faço.
Ela sorriu fraco.
— Você é tão linda... — em um sopro, quase sem forças, ela replicou, afagando a minha
mão. E, então, suspirando de leve, completou. — Quero você continue sendo essa menina
maravilhosa e perfeita que é, mesmo quando eu não estiver mais aqui... E a sua avó vai te
ajudar com isso. Ouça o seu pai, ele é muito sábio e inteligente, mas, principalmente, obedeça a
sua avó. Ela sempre vai te mostrar o melhor e mais correto caminho a seguir. Enquanto você
estiver perto dela, você também estará perto de mim, meu amor.
Enruguei a testa, confusa.
— Por que está me dizendo isso, mamãe?
Puxou o ar com tão pouca força e...
— Apenas me prometa isso, querida... Seu pai e sua avó são as únicas pessoas em quem
eu confio para cuidar de você. Você é uma Peterson e não deve aceitar nada menos do que a
perfeição.
Foi o que disse, até soltar a minha mão, completamente sem forças, e me deixar ainda
mais perturbada do que eu estava. De repente, o seu olhar se tornou opaco, longe, distante. Era
como se ela nem estivesse mais me vendo, mesmo que os seus olhos permanecessem abertos em
minha direção.
Tudo dentro de mim entrou em estado de pane.
E, então, com o coração latejando no peito, eu respondi:
— Eu prometo, mãe... Eu prometo.
Foi quando a máquina, ao seu lado, soou em um bip único e estridente.
Um bip aterrorizante e inacabável.
Ela parecia ter parado de respirar.
— Mãe?! Mamãe?! — me desesperando, eu a sacudi, na ilusão de que ela fosse reagir.
Só que aí... Os médicos subitamente invadiram a sala, ocupando todo o espaço ao redor
de onde eu e minha avó estávamos. Ainda os vi dando choques e mais choques nela... Tudo
pareceu confuso demais para mim, a partir daí. E eu não consegui me conter. Lágrimas
arrebentaram os meus olhos.
Por alguns minutos, eu só soube chorar, chorar, e chorar.
Isso até eu sentir minha avó me segurar firme pelos ombros outra vez, se abaixar na
altura do meu ouvido, e falar:
— Levante o queixo. Não chore. Grandes garotas nunca choram.

...

E eu não pude nem chorar pela morte da minha mãe, do tanto que eu queria, porque,
segundo a minha avó, grandes garotas não choravam.
As Peterson nunca choravam.
Assim, logo depois da sua partida, na minha pré-adolescência, eu me enfiei em um grupo
de escoteiras, para não pensar, durante vinte e quatro horas por dia, que ela não estava mais
comigo (e não chorar durante essas mesmas vinte e quatro horas).
Sempre tentei atingir as expectativas que a minha avó traçava para mim, mesmo quando o
processo, para isso, parecia ser doloroso demais. Eu sempre tentei ser o exemplo, a garota de
quem a grande Grace Peterson poderia se orgulhar.
Só que...
Agora...
Agora... Ali... Depois de tudo o que aconteceu nos últimos quarenta minutos e do seu olhar
severo e tenebroso sobre mim, era como se aquela perfeição das Peterson se tornasse ainda mais
inatingível para mim.
O semblante da minha avó me envergonhava, me encolhia, me acuava. A vergonha que eu
estava sentindo ali, só de notar a maneira como ela me observava, era muito, muito maior do que
aquela que eu senti, no Centro de Convivência, enquanto dezenas de pessoas riam ao meu redor
porque, por acaso, encontraram uma foto minha, seminua, nos seus celulares.
O olhar de Grace Peterson era pior.
O peso era muito maior.
Mesmo assim, ainda tentei falar e contornar a situação de alguma forma.
— V-Vó... Ca-Calma, vó... E-Eu... — até gaguejei, sem nem saber direito o que falar.
Grace Peterson era muito difícil de se convencer de algo. — Eu sou uma Peterson... — tentei
sorrir para ela, numa mistura de esperança, desespero e loucura. — Eu sou uma Peterson...
Perfeita. E eu vou dar um jeito nisso tudo.
Lágrimas cintilando o meu olhar, mesmo que eu estivesse fazendo o maior esforço para
que nenhuma delas caísse.
Afinal, eu não queria parecer fraca.
Eu não queria ser fraca.
No entanto, todo o meu esforço de não chorar na frente da minha avó e não lhe dar mais
um motivo para ter a certeza de que eu, de fato, era um completo fracasso, foi literalmente por
água abaixo, quando, ao me fitar fria e rigidamente, se aproximou mais de mim, e, com seu tom
de voz cortante e magistral, disse:
— Mulheres perfeitas não enviam fotos nuas para homens, como se fossem vagabundas.
Você pode ser qualquer coisa, menos perfeita, Victoria. Você não é perfeita. E vai continuar não
sendo, enquanto permanecer tomando atitudes que envergonham e mancham a imagem da
família.
OBRA DIVINA? PURO ACASO? UMA
BELA PEÇA PREGADA PELO
DESTINO?

“Garota, eu nunca amei alguém como você”


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RAYKA

Eu continuava puta.
Puta.
Puta.
Puta com aqueles desgraçados que se diziam estudantes. Um bando de miseráveis. Era
óbvio que a minha empolgação momentânea, por estar de volta à universidade e por ter sido
“bem-recebida” por uma boa parte deles, desapareceu completamente. Criei total aversão depois
do que aconteceu com a Victoria. Ranço mesmo. Eu e a minha vontade idiota de ser legal com
todo mundo. Agora, não mais. Eu já sabia exatamente quem eles eram, e não fazia mais questão
de ser amiga de uma boa parte deles.
Ainda passei um tempão em frente à sala onde eu sabia que Victoria e minha mãe
estavam. Esperei pacientemente por alguma pequena brecha que me permitisse falar com a
garota. Até vi o momento em que John apareceu e, depois, a dama de ferro Grace Peterson. Só
que aí, quando achei que finalmente sairiam dali, um grupo de funcionários da universidade, de
repente, apareceu, não somente no corredor onde eu esperava, mas em todas as outras partes,
chamando, ou melhor, ordenando que todos os alunos se reunissem no maior auditório da
universidade, pois o reitor queria fazer um pronunciamento.
Não quiseram nem me ouvir ou saber que eu estava esperando a minha mãe... Aquela que
era a professora do curso de Literatura, e, por acaso, a mulher do reitor. Não, não. Já foram logo
me empurrando dali, antes mesmo que eu pudesse me explicar. Assim, precisei reunir todo o
meu sangue de barata para fazer aquilo que provavelmente tinha sido uma ordem de John
Peterson, como reitor daquele inferno cheio de demônio, e segui em direção ao auditório.
Minha vontade real, quando eu passava por cada um, era plantar a mão na cara de todos os
que riram dela. Sério mesmo. O meu punho estava coçando e o rosto deles parecia muito, muito
convidativo. Ainda assim, fiz o máximo de esforço possível para conter os meus ânimos, pelo
menos até que eu soubesse o que John queria falar. Depois disso, talvez eu pudesse gastar, com o
maior prazer, o meu réu primário com aqueles babacas.
Quando entrei no auditório, já lotado de cobras, minha irritação pareceu se elevar ao nível
mais extremo. Mesmo que eu estivesse tentando me recordar de todas as sessões de meditação
que a dona Daisy já me ensinou, a única coisa de que eu conseguia me lembrar perfeitamente era
da cara dos miseráveis, que riram da Victoria, agora sentados nas poltronas com os maiores
olhares de cinismo.
Trinquei a mandíbula, pressionando os punhos, enquanto caminhava à procura de um
lugar para mim.
Porém, foi quando virei o rosto e vi Alyssa e Jeff sentados em uma ponta, que eu também
tive o vislumbre de uma luz no fim do túnel. Bem ali, um pouco mais à frente de onde a minha
amiga estava sentada, eu vi a dita cuja. Sim, a própria dona Daisy, minha mãe, conversando ao
lado do palco, com um dos funcionários.
Eu juro que não pensei duas vezes em ir até lá.
Obstinada, segui na direção de onde ela estava e...
— Mamãe...! — segurei-a por um dos braços, pouco me importando de estar atrapalhando
a sua conversa provavelmente profissional.
— Querida...? — o olhar de susto que ela me deu, pela minha chegada repentina, se
misturou com um sorrisinho sem jeito que ofereceu ao funcionário com quem conversava. —
Rayka, como sempre, tão... Intrépida — soltou uma risadinha para o outro. — Com licença,
Oliver. Acredito que a minha filha tenha um assunto muito urgente a tratar, considerando a
maneira como nos interrompeu... — e eu senti a pequena alfinetada dela. — Pode auxiliar o
John no que ele precisar, falta pouco para o pronunciamento.
Foi tudo o que disse, afastando-se do homem e me puxando levemente, pelo braço, para
um cantinho.
— O que você quer, Rayka?
— Onde está a Victoria? Ela está bem? Parou de chorar? Para onde vocês a levaram? —
perguntei quase atropelando palavra por palavra, tamanha rapidez.
Mamãe suspirou.
— Victoria foi levada para conversar com a psicóloga da universidade. Ela vai melhorar.
Eu tenho certeza. Victoria é uma menina muito forte.
— Vai melhorar...? — arqueei as duas sobrancelhas.
Mamãe passou a língua entre os lábios, esfregando carinhosamente uma das mãos no meu
braço, como um gesto para eu me acalmar. Complacente, falou:
— Sim, querida, vai. Fique tranquila, ela vai ficar bem. Agora, vá. John quer falar algo
muito importante com vocês.
— Mas, mãe... — ainda tentei saber algo mais da garota.
Daisy, porém...
— Querida, vá. — me interrompeu. — John já vai subir no palco.
E, assim que ela se calou, as cortinas do bendito púlpito se abriram.
Droga.
Numa mistura de preocupação com irritação, soltei forte o ar pesado dos meus pulmões,
dei meia volta e segui para onde Alyssa estava sentada com Jeff.
Pelo que vi, ela já tinha até guardado um lugar para mim.
Me sentei ao seu lado, em uma das cadeiras acolchoadas, de frente para o imenso palco, e,
sem conseguir evitar, resmunguei:
— Não me lembrava da Universidade de Miami ter tantos cuzões.
— Seja bem-vinda de volta ao paraíso, gatinha — respondeu a loira, irônica. — Você até
pode ter pensado que não, mas as coisas mudaram um pouco por aqui. Não que aqui já tenha sido
uma maravilha. Mas, aparentemente piorou. Agora, quando não estão tentando te comer, estão
julgando você. Eles só esperam o seu primeiro deslize, para cair em cima de você e zoar com a
sua cara. Você lembra das minhas fofocas em tempo real, nas mensagens de texto, né?
Ultimamente, a cada semana, alguém tem sido suspenso ou expulso por bullying, chantagem
com professores, ou sistema de cola muito avançado.
— Realmente fascinante... — sarcástica, retruquei.
Ao nosso redor, os canalhas agora faziam um silêncio mórbido. Bem diferente de como eu
os vi no Centro de Convivência, cheios de si, rindo e fazendo brincadeiras de mau gosto como
imbecis. Provavelmente, estavam com o cu trancado, só aguardando a “sentença de morte” do
reitor Peterson.
— Cara, eu não acredito que fizeram isso com a Victoria — ouvi Jeff comentar. — Ela
não merece.
— Nenhuma mulher merece isso — Alyssa também falou.
Trinquei os dentes pela milésima vez, pressionando a mandíbula. Aquela imagem linda e
perfeita do seu corpo sendo feita de chacota, na frente de dezenas de alunos.
Aparentemente, só Alyssa e Jeff se salvavam mesmo.
De resto, ninguém mais prestava naquele lugar.
Quando pensei que eu não iria suportar ficar mais nem um segundo no meio daqueles
otários, John apareceu no palco. Sua expressão absolutamente séria. Os olhos cheios de
indignação. Ele parou bem em frente ao púlpito, encarando a todos, e posicionou suas mãos
sobre a madeira, pressionando as quinas entre os dedos.
Eu conhecia John Peterson.
E sabia que ele estava fazendo um esforço tremendo para não deixar o pai furioso
substituir o reitor da universidade.
Certamente, ele ficaria chateado, se isso tivesse acontecido com qualquer outro aluno.
Aliás, qualquer pessoa, com o mínimo de senso, não aprovaria de maneira alguma o que fizeram.
Mas, a situação se tornava absolutamente pessoal, por se tratar da sua filha.
— Eu estou estarrecido com o que aconteceu aqui mais cedo — disse ele, com o seu olhar
cravado em todos, visivelmente aborrecido. — Nós estamos em uma universidade. Um local de
aprendizado, de formação de cidadãos. Aliás, em nenhum lugar isso deveria acontecer. O mundo
não deve dar espaço para disseminação de ódio, de preconceito e de desrespeito contra quaisquer
pessoas, sobretudo contra as mulheres — parou por alguns segundos, respirando fundo. Estava
puto. Estava puto mesmo. — Isso que aconteceu com a Victoria é algo muito sério. Na verdade,
tudo o que vem acontecendo nesta universidade, ultimamente, é seríssimo. Toda semana, temos
um caso de bullying, de brigas e de violência, seja física ou verbal. Toda semana, alunos são
suspensos ou expulsos. E o que fizeram, hoje, com a Victoria, é um crime. Nós vamos investigar
até descobrir os responsáveis por trás do disparo da mensagem anônima no grupo geral de
alunos, para que haja a devida punição. Vamos, sim, tomar providências. Por ora, a decisão que a
reitoria está tomando, juntamente com os demais professores, é que, a partir de agora, o uso de
celulares, tablets e computadores, dentro das dependências da universidade, está
terminantemente proibido, por tempo indeterminado. Os aparelhos devem ser depositados em um
baú, junto ao professor que estiver ministrando disciplinas nas salas de vocês, e só serão
devolvidos ao final do período de aulas do dia.
Depois disso, foi praticamente instantâneo. A bolha de silêncio mórbido, dentro do
auditório, foi subitamente furada, quando um burburinho, ou pior, um escarcéu, em alto e bom
som, saiu das bocas daquelas gentalhas em forma de:
— Aaaaah não, que saco! Eu não tenho nada a ver com isso!
— Acha que somos crianças? Estamos no colégio primário?!
— Voltamos ao século XIX? Como eu vou fazer os meus trabalhos agora sem poder usar
o meu notebook aqui?!
Porra, que galera insuportável.
Os únicos que ficaram quietos foram Alyssa, Jeff e eu.
— Calem-se! — John exclamou, ainda ao microfone. — Eu não quero ouvir qualquer
barulho ou discussão sobre isso! Se não quisessem ser tratados como crianças, não deveriam ter
agido como crianças. Essa é uma decisão que já está tomada, que não cabe protestos e que deve
ser terminantemente seguida! Aqueles que se indispuserem a isso ou que forem pegos com
aparelhos eletrônicos escondidos, durante a vigência desta regra, serão suspensos ou mesmo
expulsos da universidade. E eu tenho certeza absoluta de que nenhum de vocês quer perder a
vaga em uma das universidades mais disputadas e conceituadas dos Estados Unidos, não é?
Portanto, espero que saibam tomar as atitudes corretas daqui para a frente. Aparelhos eletrônicos
ou perda da vaga na universidade. Acho que não é uma escolha muito difícil. — esboçou um
pequeno e quase imperceptível sorriso irônico. — Agora, podem seguir para as suas salas de
aula. E estudem, porque é isso o que deve ser feito em uma universidade. Não quero mais
presenciar qualquer outra situação desse tipo. Exijo que se comportem e que episódios assim, ou
de quaisquer outras naturezas que tenham a ver com disseminação de ódio, não aconteçam mais.
Acolham a Victoria. Mais do que nunca, ela vai precisar desse acolhimento. Tratem-na bem. Ela
é uma mulher que merece respeito. Ajam como adultos. Ou melhor, como seres humanos
empáticos. É assim que sempre deveria ter sido. E é assim que deve ser, daqui para frente. E,
mais uma vez, estudem. Podem ir para as suas salas de aula.
Depois disso, eu só vi e ouvi quando aqueles inúmeros canalhas se levantaram das
poltronas e, ainda em meio a um pequeno e baixo burburinho, caminharam cabisbaixos para fora
do auditório.
Miseráveis.

✽ ✽ ✽

Eu mal tinha voltado àquela universidade e já queria sair porta afora para nunca mais
voltar. Me enganei quando achei que tudo continuava do mesmo jeitinho de pouco antes de eu ir
para o intercâmbio. Não, não continuava do mesmo jeitinho. Aquele lugar se tornou um
chiqueiro de porcos. Uma merda. A cada minuto, era como se eu notasse novos detalhes que
acabavam com a “magia” de todo o meu retorno.
Pelo menos, Alyssa continuava matriculada na mesma turma de Literatura que eu. Jeff
também estava com a gente. Talvez fosse um pouco menos difícil de aturar a escória ao meu
redor, enquanto eu estivesse com amigos de verdade.
Quando entramos na sala de aula, assim como os outros, logo depositamos nossos
celulares dentro do baú, mencionado por John, já a postos. A diferença era que todos estavam
reclamando, mesmo que em tom baixo, enquanto fazia isso. Por mim, poderiam morrer de tanta
raiva. Certamente, não fariam a menor falta no mundo.
Isso, porém, não foi a única coisa que eu percebi por ali.
As cadeiras da sala estavam visivelmente divididas, como se fosse em dois grupos: um
lado esquerdo e um direito. Alyssa, Jeff e eu escolhemos aleatoriamente nossos lugares, para nos
sentarmos perto uns dos outros. Ficamos na lateral esquerda, próximos às janelas.
A primeira aula do dia, na nossa turma, seria ministrada pela minha mãe. E não era porque
ela era a minha mãe que eu dizia isso, mas, cara, Daisy era uma das professoras mais daora do
curso de Literatura. A sua vibe zen-namastê-e-gratiluz-até-demais, deixava a aula leve. Eu só
não sabia como ela estaria naquele dia, depois da merda que aconteceu com a Victoria. Talvez
não existisse meditação que desse jeito na inevitável indignação com aquilo.
Enquanto eu tirava caderno e caneta da mochila, porém, as dúvidas sobre minha mãe
foram respondidas, ao vê-la entrar na sala. Sua expressão estava séria e fechada de uma maneira
que raríssimas vezes eu vi. Eu sabia que ela estava tentando segurar as pontas, apesar de tudo.
Sim, eu sabia que sim. Mas, nem por isso seria capaz de disfarçar a própria frustração.
Colocou sua bolsa e seus livros sobre a mesa, e, então, virou-se para nós:
— Eu não vou comentar sobre o ocorrido, mesmo que eu esteja bastante decepcionada
com todos vocês — sisuda de uma forma que a deixava até meio irreconhecível, foi a primeira
coisa que ela falou. Não se deu ao trabalho nem de dar “bom dia”. Não tinha nada de bom,
afinal. — Acredito que o reitor Peterson já tenha falado a vocês tudo o que é mais pertinente, por
ora. No momento, além de começarmos a agir como adultos de verdade, precisamos também
falar a respeito da nossa disciplina. Sendo assim, eu não quero ouvir gracinhas ou comentários
maldosos sobre o que aconteceu. A partir de agora, foco na aula.
Minha mãe era muito rainha mesmo, irmão.
Enquanto a gente não desse mais palco para aqueles canalhas, suas atitudes poderiam ser
sufocadas. Era provável que, quanto mais se falasse, maiores seriam as chances da Victoria
escutar coisas que não ajudariam-na, em nada, a se esquecer do que houve.
No momento, o melhor a se fazer era deixar o caso nas mãos dos responsáveis pelas
investigações, para que eles encontrassem os culpados e os punissem como mereciam.
— A nossa aula de hoje é sobre a linguagem na sociedade e as influências no processo de
construção sociocultural — continuou ela. — Mas, como vocês sabem, estamos nos
aproximando do final do período letivo, e, claro, será necessário um trabalho para concluir a
disciplina. Depois do que houve hoje, mais cedo, eu fiquei muito... — franziu o cenho, olhando
para cima, como se estivesse tentando escolher as palavras certas para falar aquilo. — Eu fiquei
muito inspirada a passar um trabalho específico a vocês, como nota de conclusão de curso.
Inspirada é?
Eu tinha certeza que a sua vontade mesmo era de dizer que ficou muito puta. Mas, claro,
ela era muito ética e “namastê” para isso.
— E o que seria, querida professora? — um garoto da voz irritante, falou lá do fundão,
irônico.
Revirei os olhos.
Daisy suspirou, encarando não somente a ele, mas a todos da sala. Com um sorrisinho
quase desafiador, porém, ela replicou:
— Será bem simples. Esqueçam celulares, computadores, tablets. Esqueçam toda essa
tecnologia. O trabalho será bem à moda antiga. Vocês deverão construir uma história de amor,
em dupla, com um parceiro de turma. Afinal, estamos em um curso de Literatura. Então, nada
mais justo do que exercitar a escrita de vocês, inspirados em todos os autores e autoras de
romances que estudamos aqui. Eu não vou dar um número mínimo de páginas. Deixarei vocês
bem livres quanto a isso. Mas, fora o requisito de que a história precisa ser criativa, também
teremos outras regrinhas para seguir.
Foi quase instantâneo.
A maioria da turma enrugou a testa e torceu o nariz. Eu, na verdade, adorei. Aquilo ia dar
um trabalho da porra, mas, quanto mais eu visse essa galera se fodendo, melhor.
Até sorri.
— História de amor? — uma garota de nariz empinado, enjoada, questionou.
— Sim, uma história de amor — sorrindo como eu, Daisy respondeu. — Estamos
passando por uma onda de ódio muito absurda nesta universidade. Então, precisamos de doses de
amor nesses coraçõezinhos amargos de vocês, queridos.
“Doses de amor nesses coraçõezinhos amargos de vocês.”
A-ha!
Essa era a Daisy namastê que eu conhecia.
— E quais são as regras? — com ares de desconfiança e temor, como se aquilo não fosse
um trabalho, mas, sim, uma bomba prestes a explodir, um dos caras perguntou.
— Bem, essa é a melhor parte — mamãe soltou uma pequena risadinha. — Como eu falei,
o trabalho será à moda antiga. Mas, muito divertido. Eu tenho certeza que, com o tempo, vocês
vão adorar. Ele deverá ser feito em dupla. A comunicação, porém, precisa ser feita através de
bilhetes ou cartas. Vamos exercitar a escrita de vocês. Esqueçam totalmente os celulares e os
computadores. Afinal, vocês não podem mais usar aparelhos eletrônicos dentro da universidade,
por tempo indeterminado, segundo o reitor Peterson. Então, cada bilhete deve ser depositado
naquela caixinha perto da porta — apontou ela. — E, bem, a dupla não será escolhida por vocês.
Na verdade, faremos agora um sorteio para isso.
Pronto.
Isso foi o bastante para que entrassem em colapso.
Claro, o último fio de esperança que tinham era de que pudessem fazer o trabalho com os
seus grupinhos.
Para mim, isso estava cada vez melhor.
Eu ri baixinho.
Alguns, idiotas demais, reviraram os olhos, outros esfregaram o rosto. Ouvi bufadas e
suspiros. E ainda teve gente dizendo que não via a hora de se formar.
— Se acalmem, se acalmem... — meio irônica, falou. — Eu ainda nem acabei as
explicações... — e sorriu, meio sórdida. Minha mãe era bem namastê, mas, quando ela queria,
ela também sabia ser uma terrorista. — Como vocês podem perceber, a sala foi dividida em dois
grupos, antes mesmo de vocês entrarem. Os alunos que estão do lado esquerdo vão sortear um
papel onde vai constar o nome de outro aluno. Esse aluno será a dupla. Enquanto isso, os que
estiverem à direita, ficarão esperando os primeiros bilhetes. Só tem mais um detalhe. Os alunos
da esquerda, que sortearem o papel, não poderão se identificar para o colega da dupla. Vai ser
como um trabalho quase às cegas... Então, nada de escolher o amiguinho com quem tem mais
afinidade, ou de se identificar para o parceiro que você tirou o nome. Não, não, nada disso. Eu
não quero isso.
— Ah não, professora! Que loucura é essa? — uma garota, com uma baita cara de
mesquinha, logo exclamou, antes mesmo que minha mãe pudesse continuar. — Isso não faz
sentido...! Eu nunca vi um trabalho assim. Por que está dificultando tanto? Basta deixar que a
gente escolha as nossas duplas e pronto. Vai ser muito simples.
— Bom, se vocês quisessem facilidade, não teriam feito o que fizeram hoje mais cedo. —
respondeu ela, tranquilamente. Eu ri baixinho de novo. Cara, ela era a melhor. — E, para mim,
faz total sentido. Eu não pensei nesse trabalho com outro objetivo a não ser fazer vocês
aprenderem a se respeitar, de um jeito ou de outro. Quero incentivar a cooperação e o respeito.
Sei que vou conseguir isso. Esse trabalho, sobretudo, vai falar sobre respeito. O respeito que
vocês precisarão ter com o seu parceiro, mesmo que ele não faça parte do seu grupo de amigos,
no caso daqueles que vão sortear os nomes, ou mesmo que você não saiba quem ele é, no caso
dos que não vão tirar os papéis e apenas aguardar o primeiro bilhete.
Ouvi, porém, quando alguns ainda sibilaram e suspiraram, com mais reviradas de olhos.
— Que saco...
— Eu deveria ter me inscrito em outra disciplina.
— Pior que agora não dá mais pra trancar...
— Essa universidade é pior do que a Caverna do Dragão.
Era o que eles diziam.
— Olha só, eu não quero ouvir reclamações, hein? — mamãe retrucou. — A maneira
como vão organizar o trabalho, eu deixo nas mãos de cada dupla. Enquanto estiverem dentro da
universidade, vocês poderão trocar quantos bilhetes quiserem e forem necessários, para o
desenvolvimento do trabalho, através daquela caixinha perto da porta. As regras, porém, devem
ser seguidas à risca. Se eu souber que algum de vocês, que sorteou o nome, andou se
identificando para o parceiro ou parceira, perderá o direito de fazer o trabalho em dupla. Ou, na
pior das hipóteses, poderá reprovar a disciplina. No fim das contas, por mais que agora não
pareça, vocês vão perceber que fazer o trabalho em dupla é um benefício. E, se eu fosse vocês,
não correria o risco de perder essa vantagem ou mesmo de reprovar. Portanto, não ousem se
identificar para os parceiros sorteados, está bem? — disse ela, encarando firmemente todos nós
que estávamos no grupo da esquerda. — Usem pseudônimos, para que os colegas que forem
sorteados possam enviar bilhetes de volta à vocês. Esta é a regra do trabalho, e eu conto com a
colaboração de todos. Agora, vou passar os papéis entre os alunos do grupo esquerdo. Ao final
da aula, vocês devem se dirigir, organizada e discretamente, à minha mesa, para me repassar os
nomes dos colegas que vocês tiraram e os pseudônimos que vocês vão usar. Eu preciso ter um
controle quanto a isso, ok?
Ah, dona Daisy, sua danadinha... Você sabe botar o terror mesmo, hein?
Cadê suas plantinhas, incensos e vasos de argila feitos à mão, hein?
Namastê, rainha, namastê!
Entre surtos e burburinhos, mamãe anotou os nomes de todos os alunos que estavam no
grupo da direita, e, então, foi passando com a caixinha de papéis dobrados. No fim das contas,
aquilo era quase um “amigo-secreto” em forma de trabalho de conclusão de disciplina.
Como eu estava do lado esquerdo, eu era uma das pessoas a tirar o tal papelzinho. Então,
fiquei observando a movimentação até chegar a minha vez. Alguns abriam o papel e balançavam
a cabeça em reprovação, provavelmente odiando o colega de trabalho. Outros suspiravam,
tentando se conformar.
Mamãe, gradativamente, foi passando de carteira em carteira, e, quando chegou em mim,
me ofereceu um pequeno sorriso seguido de uma piscadinha de olho. No fundo, por mais maluco
que pudesse parecer, uma aura de... magia perpassou o seu semblante. Eu não sabia se era aquela
sua vibe zen demais, mas eu percebi. Eu percebi muito bem.
Por dois segundos, eu não enxerguei minha mãe, mas, sim, uma fada-madrinha, como
daqueles filmes da Disney. Sim, muito estranho. Estranhíssimo. Franzi o cenho de leve, tentando
dar de ombros para essa impressão que não fazia o menor sentido, e, então, enchi os dedos com
alguns micropapéis, até soltar aleatoriamente a maioria deles, dentro da caixinha, para que
sobrasse somente um.
Suspirei.
A única coisa que eu esperava era que eu tirasse alguém que fosse minimamente aturável.
Sério. Eu juro que não sabia se seria capaz de agir como a pessoa mais paciente do mundo, caso
eu sorteasse o nome de algum daqueles otários que formavam praticamente noventa por cento da
turma.
Se eu, ao menos, tivesse alguma mínima chance de tirar Alyssa ou Jeff, já seria uma boa.
O foda era que, assim como eu, eles também estavam sentados no grupo da esquerda, perto de
mim. Ou seja, não existia a menor possibilidade de qualquer um dos dois ser a minha dupla,
porque, na real, eles também iriam sortear alguém.
Uma merda.
Pelo menos, era só um trabalho. Nós não precisaríamos morar juntos, nem dividir uma
vida durante vinte e quatro horas por dia.
Assim, enquanto mamãe seguia para Alyssa e Jeff, logo atrás de mim, eu,
displicentemente, abri o meu papelzinho.
Não achei que fosse encontrar nada demais, além do nome de algum filho da puta.
Porém...
Quando as letras pareceram se desenhar frente aos meus olhos e a minha consciência
decodificou a informação que tinha ali, eu travei. Não acreditei. Juro que, por alguns instantes,
encarando fixamente o papel, eu não acreditei. Senti como se tudo ao meu redor tivesse
desaparecido de repente, e, agora, só me restava o papel com aquele nome.
Ainda o segurei firmemente entre os meus dedos, como se, de alguma maneira, ele
pudesse fugir, escapar, sumir, e...
Victoria Peterson.
Era isso o que estava escrito lá.
Victoria Peterson.
Victoria.
Victoria.
Victoria.
Peterson
Caralho.
Engoli seco.
Me assustei.
Victoria era estudante de Artes Plásticas. Literatura era uma arte, mas não tinha
exatamente a ver com o curso que ela fazia. Eu juro que não tinha noção de que Victoria também
estava matriculada naquela disciplina.
O que isso significava?
Obra divina? Puro acaso? Uma bela peça pregada pelo destino?
Eu. Não. Fazia. Ideia.
Ainda meio aérea, ouvi o momento em que mamãe disse:
— Agora, escrevam o primeiro bilhete. Depois, depositem na caixinha.
Isso foi no exato instante em que a porta da sala se abriu e Victoria apareceu.
Meu mundo simplesmente parou outra vez, enquanto eu acompanhava cada passo seu.
Quase sem piscar as pálpebras, eu a observei. Achei que ela nem fosse ficar para assistir
qualquer aula depois do que houve.
Mas, Victoria era uma Peterson. Eu já deveria saber disso. Mesmo quebrada, ela sempre
fazia de tudo para passar a falsa impressão de que era inabalável. Uma Peterson forte, que não se
abatia com nada.
Vi quando ela se sentou na primeira carteira que encontrou pela frente, ao lado da porta. E
lá ficou, sem olhar para ninguém. A falta de contato visual estava acompanhada do seu tão
habitual nariz empinado. Por fora, era esnobismo. Por dentro, no entanto, eu sabia que isso não
passava de vergonha, constrangimento e insegurança pelo que houve.
Ainda que a garota fosse difícil, complicada, a gente já teve algo, e, desde então, mesmo
que eu não fizesse o menor esforço para isso, passei a enxergá-la com o coração. Eu a conhecia
melhor do que todas as outras pessoas daquela sala, incluindo a minha mãe, e eu não tinha a
menor dúvida de que a sua postura era como uma espécie de véu, muito bem colocado, para não
deixar transparecer a alguém que estava mesmo arrasada.
Isso me quebrava de tantas formas.
Não apenas por saber que ela realmente estava sofrendo, mas também pelo fato de se
esforçar para fingir que estava tudo bem, quando, no fundo, a realidade não era essa. Não existia
nada pior do que ser o que não era. Disso eu sabia muito bem.
E, mesmo que Victoria não fizesse questão da minha preocupação, eu ainda queria falar
com ela, quem sabe dizer algo encorajador, tipo “você é linda demais para ficar triste, manda
esses filhos da puta irem se foder”.
Porém...
Embora eu quisesse dizer isso, e até mais, eu não tinha dúvidas de que, assim como
aconteceu na noite anterior, ela não aceitaria as minhas palavras por muito tempo. Não enquanto
ela soubesse que eu era quem estavam falando. Seja lá por qual fosse o motivo. Não importava o
quanto eu lhe dissesse coisas maneiras, ela não acreditava. Ou, se acreditava, fingia que não.
Victoria não me dava abertura. Não depois daquele verão de dois anos atrás. As coisas
desandaram ainda mais entre nós. Se antes a nossa relação já não era das melhores, ficou pior
com o episódio devastadoramente fascinante, em North Beach. Foi como se eu tivesse adquirido
alguma espécie de doença contagiosa pela qual Victoria parecia se sentir realmente ameaçada.
Ela não aceitaria qualquer uma das palavras que eu tinha para dizê-la.
A não ser que...
A não ser que eu...
De repente, a minha cabeça girou numa velocidade tão grande e tão rápida, que eu me
assustei. Me segurei nas bordas da carteira, meio zonza, quando uma ideia perpassou os meus
pensamentos.
Franzi o cenho para mim mesma, ao me dar conta do que significava.
Caralho... Você está ficando maluca, Rayka?
Passei a língua entre os lábios, meio ansiosa. Meu corpo inteirinho começando a tencionar
para um só objetivo.
Droga.
Parecia loucura mesmo.
Mas...
De uma maneira ou de outra, nós precisaríamos trocar bilhetes sem que ela soubesse que
eu era eu.
Essa era a regra do trabalho, afinal.
Encarei-a mais uma vez. Meu raciocínio deu saltos mortais por mais umas trezentas e
cinquenta milhões de vezes, enquanto eu cogitava as possibilidades. Coração batendo rápido.
Victoria ainda arrasada. Daisy fada-madrinha. Eu, pirada. Puxei o ar. E baixei o meu olhar para
as folhas do meu caderno.
É isso, Rayka.
É isso.
Você sabe o que tem que fazer.
E, então, num rompante de coragem, escrevi, tentando uma letra de fôrma que eu
raramente usava:

“Querida Victoria,
Duas verdades: a galera dessa universidade é idiota e você é linda pra caralho.
Ninguém pode fazer você se sentir inferior sem o seu consentimento. Ouvi essa frase uma
vez e achei irada. Acho que é da Eleanor Roosevelt. Ou sei lá.
O fato é que tu é foda, garota. E eu me sinto a pessoa mais sortuda por estar fazendo esse
trabalho com você.
Até o próximo.”

No final, assinei.
Maverick.
QUEM ME MANDOU ESSE BILHETE?

“Vou deixar bilhetes para você, por baixo da sua porta”


Je Te Laisserai Des Mots | Patrick Watson

RAYKA

Porra, o quê que eu fiz...? A Victoria não é boba. Ela vai perceber.
Era nisso que eu não parava de pensar, desde que o sinal tocou, quando o horário de aulas
acabou e eu a vi pegar, na caixinha, o bendito bilhete que escrevi. Sim, aquele mesmo onde
estava o seu nome no envelope improvisado com papel de caderno, que eu rasguei e dobrei.
Victoria saiu da sala em um pulo e sumiu, fugindo de qualquer contato social, apesar do típico
nariz empinado que passava a falsa impressão de que já tinha “superado” o que quer que fosse.
Depois disso, eu não a vi mais em parte alguma da universidade. Porém, ainda que eu
continuasse preocupada e com vontade de falar com ela, agora a minha cabeça martelava
freneticamente o fato de que eu escrevi um bilhete fofo e afetuoso para a Victoria, quando, na
verdade, ele deveria ter sido quase impessoal, e exclusivo para falar sobre o trabalho, segundo as
regras que a minha mãe passou.
Tá, tá, tudo bem, eu era cara de pau com a Victoria.
Eu sempre fui muito cara de pau com ela.
Sério... Já reparou no quanto a garota fica gata quando está irritadinha por eu flertar
com ela? Puta que pariu, muito gata.
Era quase um prazer “orgásmico” provocá-la, só para receber de volta o seu rostinho
vermelho, o biquinho com os lábios pressionados e os olhos me encarando com tanta atenção (ou
melhor, com tanto ódio, rs).
Mas, aquilo não foi na cara de pau.
O bilhete não foi na cara de pau.
Na real, foi verdadeiro até demais. E era isso o que me deixava meio... Inquieta.
Bom, eu já estava acostumada a receber os seus cômicos desaforos, quando eu falava
qualquer bobagem na sua frente. Era engraçado, para falar a verdade. Eu me divertia. Tipo, me
divertia pra caramba. Mas, no caso do bilhete, ainda que ele tenha sido muito mais amigável do
que realmente uma paquera e mesmo que ela nem fizesse ideia de que eu era a remetente, eu não
fazia ideia de como ela iria reagir.
Talvez fosse isso...
Talvez fosse exatamente isso.
Eu só não estava acostumada a mandar bilhetes para a Victoria, ou ser tão sincera com ela
quanto fui naquelas míseras frases. Não que os meus flertes-caras-de-pau não tivessem o seu
fundo de verdade, porque tinham sim. No entanto, confesso, existia uma dose um pouco maior
de zoação, para aborrecê-la, do que sinceridade propriamente dita. Era uma forma de me proteger
e, sei lá, evitar de levar completamente a sério os foras que ela sempre me dava.
Só que...
Que droga.
Eu não ia pirar por causa de um bilhete bobo!
Eu não tinha escrito nada demais, afinal. Sim, nada demais. A garota passou por péssimos
momentos naquela manhã. Merecia palavras amigas, ora. E foi isso o que eu fiz. Sem
arrependimentos.
Só isso.
Só. Isso.
Eu não ia pilhar.
Não mesmo.
Respirei fundo e tirei um panfleto de dentro do bolso, tentando desviar o foco dos meus
pensamentos para algo que eu tinha que resolver com certa urgência.
Entre os meus dedos, encarei o tal panfleto que recebi pela manhã, na saída da
Fraternidade. Lá estava escrito “Vaga aberta na Esquina das Panquecas. Trabalhos de
balconista, atendente e garçom. Falar com James”. Ao lado, tinha a foto da fachada da
lanchonete e a logomarca em forma de panqueca gigante e sorridente.
Por mais bizarro, e até assustador, que a logomarca pudesse parecer (sim, os responsáveis
pelo marketing foram criativos demais), aquela panqueca gigante e sorridente caiu nas minhas
mãos quase como um sinal dos deuses. Claro, só podia ser um sinal dos deuses! Era tudo o que
eu estava precisando.
Minha mãezona era uma rainha. Incrível, maravilhosa, tudo de bom. Namastê pra caralho.
Ela era, sim, sem mentira, gente finíssima! Mas... Ela continuava sendo mãe. E, como todos bem
sabem, mães adoram (sim, elas adoram) passar sermão e cortar a mesada na primeira
oportunidade que encontram pela frente.
A minha expulsão do intercâmbio, por estar chupando três bocetas gostosas,
aparentemente foi a chance perfeita para a dona Daisy cancelar o repasse da verba para a minha
humilde conta. Não importava o quão feliz ela estivesse com o meu retorno à Miami e com a
possibilidade de matar toda a sua bela saudade, ela jamais deixaria passar em branco o fato de
que fui “convidada a me retirar” de uma das universidades mais conceituadas da Europa, por
causa de uma orgiazinha-amiga.
O fato era que eu estava... Completamente lisa.
Assim, para não dizer que eu realmente não tinha um centavo no bolso, minha mãe ainda
me dava dinheiro para o básico, e estritamente necessário, tipo comprar comida. De resto, mais
nada. E, bom, eu ainda queria tomar uma de vez em quando, sair para algum rolê nas sextas-
feiras, depois da faculdade. Para isso, era óbvio que eu precisava de grana.
Aquilo que eu chamava de “lei do corte” foi sumariamente estipulada ainda dentro do
carro, enquanto fazíamos o caminho do aeroporto até a Universidade de Miami. Honestamente,
eu não quis contestar a sua decisão. A bem da verdade era que, se eu pensasse friamente, talvez
fosse o momento certo de começar a caminhar com as minhas próprias pernas e ir atrás da minha
grana sozinha, mesmo que a minha mãe e John tivessem uma vida financeira muito confortável e
milhares de Joe Biden’s nas suas contas bancárias.
Eu já tinha vinte e um anos, porra.
Era hora de trabalhar.
E aquele panfleto, com uma panqueca gigante, sorridente e esquisita, parecia ser a chance
perfeita, não importava a miséria que eles pagassem.
Por isso, segurando o folheto na mão, coloquei o skate nos pés e saí deslizando pelas ruas
e avenidas de Miami. A Esquina das Panquecas ficava fora do campus da universidade, mas não
muito longe. Era uma distância considerável para ir a pé, mas tranquila para ir de skate, bicicleta
ou carro.
Não demorei muito para avistar a fachada. Logo eu a vi, igualzinha àquela da imagem no
panfleto, com a emblemática placa imensa de panqueca à sua frente. Naquele horário, por volta
das três da tarde, o movimento ainda estava calmo. Mas, mesmo que eu tivesse passado quase
dois anos fora, eu me lembrava muito bem daquela lanchonete, e sabia o quanto ela era
frequentada.
Quando o relógio marcasse umas cinco horas e o período de aulas da tarde se encerrasse
na Universidade, aquele lugar ficaria lotado de alunos esfomeados. A Esquina das Panquecas era
uma das maiores e melhores lanchonetes da região. Por isso, os estudantes caíam em cima.
Colocando o skate debaixo do braço, caminhei até a entrada. Ao atravessar as portas de
vidro, que se abriam automaticamente, senti o vento gelado dos ares-condicionados. Respirei
fundo. Isso era bom. Meu pescoço suado do trajeto agradecia. Miami estava especialmente
quente naquele dia. Por ali, três ou quatro clientes lanchavam, enquanto uma música pop tocava
ao fundo e garçonetes com patins e chapéus estampados de panquecas passavam de um lado para
o outro.
Girando com o meu olhar ao redor, vi uma garota encostada ao balcão principal, pela parte
interna. Estava de frente para um computador, mas teclava muito mais no seu celular, enquanto
mascava um chiclete, do que fazia qualquer outra coisa. Loira com pele de porcelana, boca de
quem tinha preenchimento labial, peitos de silicone, piercing de septo e algumas tatuagens nos
dois braços. Ela parecia uma mistura de patricinha com sapadrão. Não dava para entender direito.
A minha única certeza era de que ela tinha muita cara de rica para ser apenas uma
atendente de lanchonete.
Mesmo assim, me aproximei... Eu precisava de alguma informação sobre a tal vaga.
— É... Oi... Com licença? Eu gostaria de falar com o James. Ele está?
No momento em que a garota ergueu o rosto para mim, porém, percebi o seu corpo
inteirinho retesar. Em um primeiro instante, pareceu surpresa com a minha presença ali, como se
já me conhecesse. Depois disso, passou o Raio-X completo em mim. Sim, inteirinho.
Encarou os meus olhos, foi descendo pelo meu corpo, analisando, tão atenta, cada parte,
até chegar aos meus pés. Em seguida, fez o mesmo caminho, só que de volta, até parar com as
suas orbes verdes nas minhas outra vez. O sorriso que me deu, por fim, carregava mais
promessas do que eu era capaz de acreditar.
— Rayka Ferris...? — se levantou da cadeira onde estava.
Franzi o cenho.
— Me conhece?
— Quem não conhece Rayka Ferris? — soltou uma risadinha sugestiva, dando a volta no
balcão, até ficar de pé bem na minha frente. — Muito prazer...! — estendeu a sua mão para mim.
— Eu me chamo Stacy Hinkhouse. Sou a filha do dono.
Ah... Logo que vi que ela tinha muita cara de rica para ser mais uma das garçonetes
usando patins rosa e chapéus estampados.
— O prazer é todo meu, Stacy... — cumprimentei-a, enquanto, faceira, ela enrolava uma
mecha de cabelo loiro no dedo da outra mão. Seu olhar, o tempo inteiro, alternando entre o meu
e a minha boca. — Me conhece de onde?
— Te vi mais cedo na Universidade, chamando a atenção de todo mundo, inclusive a
minha... — disse ela, mordendo o lábio inferior leve, ao abafar um sorrisinho pretensioso. —
Queria ter falado com você, mas... Aquela confusão, sabe...? Coitada da Victoria.
Puxei o ar de leve.
Era melhor que eu nem falasse sobre isso agora, ou permitisse que a minha memória
trouxesse de volta qualquer detalhe daquela merda. Sem dúvidas, todo o meu estresse ia voltar,
junto com a raiva monumental, e isso ia me desconcentrar completamente da minha possível
entrevista de trabalho.
— Realmente foi um absurdo... Espero que os responsáveis sejam descobertos logo, mas...
— suspirei, tentando não prolongar o assunto. — Eu queria saber se o James está.
— James? — surpresa, ergueu uma das sobrancelhas para mim.
— Sim... Eu vi esse panfleto e...
— Ah, você veio pra vaga?! — me interrompeu de súbito, entusiasmada. Seus olhos, que
já estavam brilhantes para mim, se tornaram ainda mais. — Por que não me disse antes...? Papai!
— gritou ela, caminhando brevemente na direção de uma porta vaivém, que provavelmente dava
para a cozinha da lanchonete. — Temos uma candidata!
Foi quando um coroa careca apareceu. Usando pulseiras douradas, um relógio caro
daqueles que John Peterson costumava comprar, e uma camisa com a frase “seja feliz e coma
uma panquequinha hoje”, ele não parecia estar cozinhando, mas, sim, supervisionando o
trabalho dos cozinheiros das panquequinhas.
Ergueu uma das sobrancelhas para mim e me fitou meio desconfiado, respondendo à filha
o recado que, na verdade, era para mim:
— Não estamos em horário de entrevistas. As entrevistas acontecem apenas das nove às
onze da manhã.
— Papai... — manhosa, se aproximou do homem, como uma gata faceira, e pousou suas
mãos nos ombros dele, fazendo-o se aproximar a passos lentos de mim. — Ela é Rayka Ferris...
Enteada dos Peterson. A mãe dela é casada com John Peterson, o reitor da Universidade de
Miami. Você sabe.
Porra... A menina tinha a minha ficha completa.
E aquele “você sabe”, da maneira como ela falou e com a entonação que usou, enquanto
apertava de leve os ombros do pai, foi quase como se estivesse dizendo em outras palavras ou
deixando subentendido: “você sabe que ela merece um tratamento diferente da maioria.”
Não que eu usasse ou curtisse usar o nome dos Peterson para conseguir benefícios. Eu não
gostava nem quando usavam por mim, para justificar qualquer coisa, como Stacy estava fazendo.
A real era que eu achava isso uma grande besteira. Era só um sobrenome. Mas, se Grace
Peterson, por exemplo, soubesse que eu estava usando o nome da sua família em meu próprio
benefício, já poderiam encomendar o meu caixão.
Nossa, a mulher faria uma guerra.
Capaz de me processar.
Porém...
Se, por outro lado, eu pensasse friamente e aquele sobrenome de merda me ajudasse com o
novo trabalho, não seria nada mal. Eu estava mesmo precisando daquela vaga. Eu estava
precisando de grana. E, ao menos de alguma coisa, aguentar a cara azeda de Grace Peterson tinha
que me servir.
Percebi, então, quando o coroa começou a me olhar diferente, só porque eu era (uau,
grande coisa) enteada dos Peterson. Pigarreou a garganta, ajeitando a postura, e, ao baixar um
pouco a guarda, ele perguntou:
— Você... Você trouxe o seu currículo?
Cu-Currículo...?
Ah, merda.
Sim, claro que se precisava de um currículo até para ser atendente de uma lanchonete
com uma estátua de panqueca gigante bem na porta!
Como você é burra, Rayka!
Eu tinha me esquecido completamente desse detalhe. Peguei apenas o tal panfleto e segui
direto para lá, sem pensar em mais nada. Completamente despreparada. Que droga.
Pensa.
Pensa, pensa, pensa, sua idiota.
Foi quando eu repentinamente me lembrei... Ah, sim, graças a Deus! Isso só podia ter sido
uma iluminação divina. Com certeza. Me lembrei do meu e-mail. Sim, eu tinha lá um... Bem, não
era exatamente um currículo, mas... Foda-se! Não importava. Era quase um currículo. Eu usava
nas seleções de atividades extracurriculares da universidade.
E também não era como se eu tivesse um vasto histórico na área de lanchonetes, porque,
não, eu não tinha. Mas, para tudo na vida, sempre existia uma primeira vez, e eu esperava que
aquele coroa careca me desse a chance da minha primeira vez em uma lanchonete, agora.
No fim das contas, tudo o que eu já tinha feito na vida estava naquele arquivo.
— É-É... E-Eu tenho sim... Tá aqui... — apontei para o celular, selecionando rapidamente
o arquivo no meu e-mail e entregando para ele. — Me-Meu currículo... — sorri amarelo,
esperando que aquilo servisse.
Ele, por sua vez, de queixo erguido e olhar meio sisudo fitou a tela, quase por baixo dos
cílios, dizendo:
— Então, vamos lá... Habilidades... Campeã de competições de skate e basquete; fala
inglês, francês, português, alemão; escreve livros; e já ganhou um prêmio de melhor conto do
curso de Literatura — enrugou a testa, um vinco profundo se formando por ali, enquanto erguia
as orbes novamente para mim. — Olha, isso tudo é ótimo. Mas, eu preciso de alguém com
experiência em uma lanchonete, e você não tem nenhuma.
Ai, que droga.
Toda a minha expectativa de conseguir um trabalhinho, indo pelo ralo.
Porém...
— Eu posso ensinar tudo a ela! — a loira pulou logo ali, exclamando.
Seu pai, no entanto, a encarou com os olhos cerrados, e, cético, perguntou:
— Como você vai ensinar, se não consegue passar mais de meia hora aqui sem começar a
reclamar, Stacy?
— Estou há vinte anos enfurnada nas suas lanchonetes, papai. Já sei de cor e salteado
como tudo funciona por aqui. Serei uma excelente professora. — sorriu para mim.
Aquele mesmo sorriso cheio de promessas.
Promessas essas que não pareciam incluir apenas as lições sobre como assar uma
panqueca e atender clientes em cima de patins cor de rosa.
O coroa suspirou.
— Ainda preciso entrevistar outros candidatos... É uma seleção concorrida e...
— Pera aí...! — a garota o interrompeu. — Concorrida, pai? — gargalhou. — Desde que
começou a distribuir esses panfletos, ela é a segunda aluna interessada que aparece. As seleções
daqui não são nem um pouco concorridas. Os estudantes da universidade estão mais preocupados
em gastar o dinheiro dos pais, do que em trabalhar. Olhe ao redor, papai, não tem mais ninguém.
— disse ela, persuasiva. E, então, sem cerimônia, passou um dos seus braços pelos meus ombros,
me envolvendo. Seus peitões roçando em mim. — Contrata a Rayka. Ela é a sua melhor opção.
Além do mais, não é todo dia que aparece uma Ferris Peterson para trabalhar aqui.

VICTORIA

Você não é perfeita.


Você não é perfeita.
Você não é perfeita.
Você pode ser qualquer coisa, menos perfeita.
Você não é perfeita, Victoria.
Você. Não. É. Perfeita.
AAA!
Que inferno.
Eu não parava de pensar.
A voz da minha avó, falando isso, era nítida na minha memória, em um looping infinito e
aterrorizante. As lembranças de cada uma daquelas palavras, sendo pronunciadas e repetidas,
junto com o seu semblante rígido e depreciativo, eram como socos na minha cara.
É, meus amigos... Aconteceu algo incrível...
Minha avó conseguiu me deixar ainda mais na fossa.
De novo!
Eu já estava arrasada com aquela maldita foto circulando pelos celulares de todo mundo,
mas Grace Peterson foi capaz de deixar tudo pior.
Mesmo que eu tivesse passado horas conversando com a tal psicóloga (ou ao menos
tentado conversar, porque, sinceramente, eu não gostava, nem um pouco, de me abrir com quem
eu não conhecia) e mesmo que eu tivesse, por livre e espontânea vontade, decidido ir para a sala
de aula, só porque eu não queria que aqueles idiotas da universidade pensassem que eu era fraca
o bastante para qualquer coisa me derrubar, ainda chorei horrores, mais uma vez, depois que
voltei para a fraternidade.
Exausta de tudo, de absolutamente tudo, cheguei, subi as escadas, entrei no meu quarto,
fechei a porta e me joguei na cama. Algumas garotas que estavam por ali, na sala de estar, ainda
tentaram se aproximar, perguntando como eu estava ou se eu queria companhia, mas,
sinceramente, eu não queria ninguém no meu pé. Não estava a fim de conversar, não queria ver
nenhum ser humano. Eu não queria abrir a boca para dizer uma palavra.
Eu estava cansada.
Eu só queria ficar sozinha.
Apesar do nariz de soberba que eu fiz um tremendo esforço para manter até o final da aula
da Daisy, saí em dois tempos de lá, depois que acabou. Nem falei com Brittany, que
provavelmente estava louca atrás de mim, considerando as suas quarenta e cinco chamadas
perdidas no meu celular. Apenas peguei o meu carro, tentando não causar qualquer acidente pela
milésima vez, e fui direto para a fraternidade.
Irritada sobre a cama, enquanto algumas lágrimas desgraçadas ainda teimavam em descer,
tirei as sandálias com os próprios pés e afundei minha cara contra um travesseiro.
Mais uma vez, me distanciando da minha avó, por ser uma completa inútil. Mais uma vez,
não suprindo as expectativas que a família tinha em mim. Mais uma vez, não conseguindo
alcançar a perfeição que a minha mãe um dia alcançou. Parecia que sempre que eu estava perto
de alcançar, ou sempre que a minha relação com a minha avó estava indo bem, algum inferno
acontecia, para destruir todo o castelinho de areia que eu, com muito esforço, montava
diariamente para Grace.
A grande admirada, invejada e exaltada Victoria Peterson foi de líder de fraternidade
adorada para garota ferrada do nude.
Eu não me surpreenderia se colocassem isso embaixo da minha foto do anuário.
Droga.
Atirei o travesseiro contra o chão e esfreguei as mãos no rosto, respirando fundo.
A sensação de impotência me tomando, por eu não fazer ideia de quem era o demônio que
armou aquilo para mim. E o pior era que... O pior era que... Poxa, eu era Victoria Peterson. Eu
raramente me sentia impotente.
Eu era perfeita!
“Você não é perfeita.”
Que saco.
Eu podia ouvir claramente a voz da minha avó falando isso.
Agora, ela tinha a desculpa ideal para pesar a mão nos seus sermões, que costumavam
começar com “você precisa ser uma mulher íntegra, direita e exemplar, para conquistar o
interesse verdadeiro dos rapazes” e terminar com “nenhum homem decente vai te querer, se
você não se der ao respeito”.
Para a minha avó, a cereja do bolo, que completaria toda a perfeição de uma Peterson, era
se casar com um homem bom. Uma Peterson nunca seria uma Peterson de verdade, se não
tivesse, ao seu lado, um homem à sua altura. Minha mãe, por exemplo, se casou com o meu pai,
John, o cara mais legal do mundo inteiro. Uma sortuda. Mas, se vovó bem soubesse o quanto os
garotos da universidade (ou, sei lá, de Miami inteira) eram uns verdadeiros idiotas, ela não
gastaria tanta saliva com os seus puxões de orelha disfarçados de conselhos sobre eu ter que ser
perfeita para encontrar um homem perfeito.
“Não é que você tenha o dedo podre, você só precisa parar de forçar a barra para achar
o ‘cara perfeito’. Quando tiver que ser com a pessoa certa, pode ter certeza de que vai
acontecer, sem que você precise fazer o menor esforço para isso. Você é especial, Victoria. Só
precisa ter um pouco de paciência e deixar que o tempo leve até você alguém que vai te
valorizar da maneira como merece.”
Escutei, repentinamente, a voz rouca da Rayka nos meus ouvidos.
Foi o que ela me disse naquela noite em que eu, estúpida, cheguei chorando na
fraternidade por causa do imbecil do Ethan.
Por alguns segundos, juro que senti verdade nas suas palavras. Não me lembrou, em nada,
aquela Rayka insuportável que me irritava e pegava no meu pé ao seu bel-prazer. Os seus olhos
pareciam sinceros. Tão sinceros quanto carinhosos. Era como se fosse aquela garota que eu não
via há dois anos... Aquela que eu conheci na beira do mar de North Beach, sob a luz de uma
fogueira, rodeada de amigos que aguardavam ansiosos o tão esperado...
Argh.
Você é boba, Victoria. Você é boba.
Melhor parar de pensar nisso.
Não fazia sentido desenterrar algo que deveria ficar no passado.
Balancei a cabeça em negativo.
Rayka não era inocente. Em geral, ela só esperava uma pequena oportunidade para tirar
onda comigo e esfregar na minha cara o quanto eu era azarada no quesito “romances”. Essa foi a
primeira coisa que ela fez, quando ficamos a sós no quarto da fraternidade, afinal.
Suspirei, virando-me sobre a cama e encarando o teto.
Só me restava esperar que realmente investigassem e pegassem o miserável responsável.
Ou melhor, irresponsável.
Eu estava tão na fossa...
Tão na fossa, mas tão na fossa, de um jeito como nunca estive, que, agora, eu só queria os
meus fones de ouvidos, para escutar músicas deprimentes, até o final do dia, e rolar ainda mais
naquela lama, como se não houvesse amanhã.
Assim, ainda deitada, sem ânimo, estiquei o braço e peguei a bolsa que levei para a
universidade, procurando meu celular e os fones. Quando assim o fiz, porém, percebi o momento
em que um papel caiu de dentro. Franzi o cenho de leve e mirei naquilo. Era o bilhete.
Minha cabeça, de pronto, me teletransportou de volta à aula da tia Daisy. O exato instante
em que ela pediu para que o grupo da direita pegasse os bilhetes da caixinha, antes de ir embora
para casa. Eu saí voando da sala, isso era verdade, mas, ainda me dignei a pegar o tal bilhete do
trabalho maluco, onde tinha o meu nome escrito.
A tia Daisy inventava cada coisa...
Balancei a cabeça de leve.
E, sem grandes expectativas para saber o que tinha ali, displicentemente desdobrei o papel,
por pouco não o jogando para escanteio e deixando para ler somente no dia seguinte.
Porém, quando os meus olhos se fixaram nas primeiras letras e decodificaram os
significados de cada palavra, foi como se tudo ao meu redor tivesse parado somente para que eu
tivesse a oportunidade de ler com a total atenção que aquilo merecia.

“Querida Victoria,
Duas verdades: a galera dessa universidade é idiota e você é linda pra caralho.
Ninguém pode fazer você se sentir inferior sem o seu consentimento. Ouvi essa frase uma
vez e achei irada. Acho que é da Eleanor Roosevelt. Ou sei lá.
O fato é que tu é foda, garota. E eu me sinto a pessoa mais sortuda por estar fazendo esse
trabalho com você.
Até o próximo,
Maverick”

Eu não sabia explicar.


Não sabia mesmo.
Mas...
Foi como um fôlego de... Esperança.
Me senti subitamente mais disposta.
O mundo pareceu mais alegre. O sol mais iluminado. A vida mais... Perfeita.
Para quem estava se sentindo tão cansada e desanimada, por um segundo eu até achei que
tivesse entrado em um daqueles musicais da Disney, onde as pessoas começavam a dançar uma
coreografia (do nada) no meio da rua e passarinhos cantavam junto com você. Sim, por mais
bizarro que isso fosse.
Um ânimo tão estranho que a minha testa enrugou enquanto os meus olhos se encheram de
lágrimas outra vez, só que, agora, não por tristeza e ódio. Era por... Uma coisa esquisita e nova.
Algo diferente de tudo o que senti naquele dia. Talvez fosse felicidade.
Meu coração, tão idiota, aqueceu dentro do peito, enquanto eu segurava, firmemente,
aquele pedacinho de papel, como se ele pudesse escapar ou sumir a qualquer momento. Era
realmente estranho. Sei lá. Mas, bom. Muito bom.
Um sorriso bobo brincou nos meus lábios sem que eu nem percebesse direito.
Até que...
Repentinamente, senti um soco de realidade atingir o meu rosto imbecil e feliz.
Caí em mim.
Pisquei os olhos repetidas vezes e raciocinei.
Sim, enfim, raciocinei fora da caixinha da Disney.
Quem me mandou esse bilhete?
Que tipo de pessoa, daquela universidade cheia de idiotas, teria a capacidade de escrever
algo tão gentil assim pra mim?
Quem diabos era Maverick?
Um vinco ainda maior se formou no meu cenho, enquanto o desejo de descobrir quem era
o engraçadinho que me mandou isso, aumentava a todo segundo. Sim, porque, depois de ver
dezenas de miseráveis rindo da minha cara e fazendo piadas de mau gosto por causa de uma foto
seminua, eu já não acreditava mais que alguém pudesse perder o seu “precioso” tempo
escrevendo “palavras bonitas” para mim.
Pessoas não eram legais.
Os caras de Miami não eram legais.
Com certeza era mais alguém tentando brincar comigo.
Só que, dessa vez, eu não permitiria.
Ah, mas eu não permitiria mesmo!
Se achavam que eu ia cair naquele papinho, feito uma imbecil, estavam muito enganados.
Agora, eu estava bem esperta.
Será que foi o Ryan?
Ele era muito metido a piadista. Sempre tentando pregar peças nas pessoas.
Ou será que foi o Sebastian?
Ai, não. Que droga. Não, o Sebastian não! Aquele esquisito sempre foi a fim de mim, mas
eu, claro, nunca dei uma chance. Ele era horrível! Eca. Pelo amor da deusa das líderes de
fraternidade gostosas e azaradas no amor. Eu não me sentia nem um pouco atraída por aquela
sua barbicha que vivia suja de óleo das inúmeras batatas fritas que ele passava o dia comendo.
Mas, também havia a possibilidade de ser o...
Ou...
De repente, travei, soltando o bilhete sobre a cama e arqueando as duas sobrancelhas,
quando uma luz muito forte e intensa recaiu sobre a minha cabeça, ao me dar conta de algo.
Ah não.
Não, não, não.
Será que...
Será que...
Será que era a Rayka?
Será que era aquela imbecil querendo brincar com a minha cara pela milésima vez?
Subitamente, antes deitada, me sentei sobre a cama.
Meu corpo inteiro em puro estado de alerta.
Rayka agora estava na turma da disciplina de Literatura da tia Daisy, que eu, por acaso,
também era matriculada. Sim, eu a vi lá, apesar do meu completo estado de fossa disfarçado de
esnobismo. Infelizmente, quando eu fiz a matrícula, não pude adivinhar que aquela sapatão ia ser
expulsa do intercâmbio por causa de uma suruba e que voltaria para Miami antes do tempo.
Tudo bem que eu era aluna do curso de Artes Plásticas, mas Literatura também era uma
forma de arte. E eu estava precisando muito completar alguns créditos para me formar. Então, me
matriculei. Só que a última pessoa que eu esperava encontrar, naquela turma, era a Rayka.
Maldita chupadora de bocetas. Podia ainda estar na Europa, se não fosse isso.
Rolei os olhos, balançando a cabeça.
Ela poderia, muito bem, ter tirado o meu nome. Não que eu tivesse reparado no local
onde ela se sentou, durante a aula. Não sabia se era no grupo da direita ou da esquerda. Eu estava
muito aérea naquela hora, para prestar atenção nisso. Apenas me sentei na primeira carteira que
vi pela frente, e lá fiquei.
Porém, independente de qualquer coisa, ela poderia ter tirado, sim, o meu nome. E,
honestamente, eu não ficaria surpresa se fosse ela a pessoa que me escreveu aquele bilhete.
Rayka era mesmo o tipo de pessoa “engraçadinha” capaz de fazer algo assim comigo. Ela sempre
tirava onda com a minha cara, afinal. Seria mais uma das suas brincadeiras de mau gosto.
Acontece que, agora, eu realmente estava farta de brincadeiras. Não suportaria mais
nenhuma.
Nenhuma.
Bruscamente, peguei o meu celular e, determinada, liguei para a tia Daisy.
Dentes trincados, mandíbula pressionada. Segurei também o bilhete outra vez, enquanto o
apertava, entre os meus dedos, na mesma intensidade que queria esganar o pescoço da Rayka, se
eu descobrisse que era ela tentando pregar uma peça em mim, novamente.
Inquieta, me levantei da cama, andando de um lado para o outro do quarto, enquanto
esperava Daisy atender.
Chamou uma, duas, três vezes.
Chamou até eu pensar que a ligação fosse cair.
Porém...
— Oi? Alô? Querida? — preocupada, tia Daisy, de repente, atendeu. — Me desculpe pela
demora, meu amor. Você está precisando de alguma coisa? Como está? Se sente melhor?
Eu, no entanto, embasbacada com aquele bilhete, não queria falar sobre qualquer outra
coisa que não fosse...
— Quero saber quem é a minha dupla, tia!
Sim, eu sabia que ela tinha o controle com o nome de todas as duplas, porque eu a vi
anotando essas informações no fim da aula.
Daisy suspirou através da linha.
— Meu amor, eu estou com a mão cheia de argila, enquanto faço um vaso, no meu ateliê.
Pensei que você estava me ligando por causa de algo mais urgente.
Bufei.
— Isso é urgente...! — em um tom mais baixo, porém, igualmente impaciente, retruquei
entredentes. — Por favor, me responda. Eu sei que você sabe. Vai... Quem foi que me tirou,
hein?
Pude ouvir quando ela puxou o ar de leve.
— Querida, a regra é clara. O segredo deve ser mantido até o fim do trabalho.
Quase cantarolou enquanto respondia.
Que saco.
— Tia, a Rayka me tirou? — impaciente, fui bem direta. — Olha só, eu recebi um bilhete
fofo até demais da minha dupla. Algo que tem cara de brincadeira da Rayka. Se foi ela quem me
tirou e se é ela quem está escrevendo bilhetes fofos, só para brincar comigo, eu juro, juro, que
corto ela em pedacinhos e jogo para baratas comerem, mesmo que seja sua filha. Não quero mais
ser chacota de ninguém, depois do que aconteceu hoje.
Mesmo que eu tentasse manter a linha na frente da tia Daisy, numa aparente “política de
boa vizinhança” com a sua filha, não era segredo para ela, nem para ninguém, que Rayka e eu
não éramos as melhores amigas do mundo. Na verdade, a gente não chegava nem perto disso. E
eu não tinha a menor intenção de esconder essa realidade.
Daisy, por sua vez, suspirou novamente.
— Meu amor, eu entendo que esteja com os nervos à flor da pele. Aquela situação terrível
ainda está muito recente. Mas, tente relaxar. Primeiro, existem quarenta alunos na sala de aula.
Ainda se considerarmos a metade que tirou os papéis, é muita gente. Você acha mesmo que,
dessa quantidade toda, quem tirou o seu nome foi logo a Rayka ou alguém que queira brincar
com você? Segundo, eu sei que a Rayka pode ser meio... Espirituosa até demais, mas é o jeitinho
dela. Ela é uma ótima garota, e seria maravilhoso que vocês começassem a se dar bem. Você só
precisa ser um pouco menos tensa, querida. Respira fundo. Vai... Um, dois. Um, dois.
Pelo amor da deusa das líderes iludidas e arrasadas de fraternidade.
— Ah não, tia... — choraminguei, trocando o peso do corpo para a outra perna, enquanto
mantinha o celular no ouvido. — Eu prometo, prometo, que não vou contar para ninguém, se
você me disser quem me tirou. Só me fala quem foi. Segredo nosso.
— Querida, eu já disse, fique tranquila. Eu não permitirei brincadeiras nesse trabalho, nem
John permitirá na universidade como um todo. Os alunos já estão bem avisados, e também já
estão sofrendo consequências pelo que houve. Sei que eles não vão ser inconsequentes o bastante
para colocar a perder uma vaga numa universidade conceituada e disputada como a nossa.
Puxei o ar.
No fundo, ela tinha alguma razão.
Eu soube que meu pai foi bem rígido no discurso e nas punições.
Era só que...
— Tia, sério, quem da universidade poderia escrever coisas gentis para mim? Não existe
ninguém que preste naquele lugar. Todos são uns miseráveis.
Ela soltou uma pequena risadinha.
— Minha linda... Apenas aproveite. Ao final da disciplina, você vai descobrir. Por
enquanto, se aproxime e seja amiga de alguém sem saber quem realmente é. Não existe
sentimento mais verdadeiro do que gostar de uma pessoa de graça, sem rótulos, sem motivos,
sem ao menos saber como é o rosto. Somente o afeto ditando a relação. Pare de fazer perguntas e
aproveite.
Soltei o ar dos pulmões, cansada de insistir.
Daisy e o seu jeitinho zen até demais...
Era legal, mas, às vezes, só me deixava mais irritada.
— Tá bom, tia, tá bom — com os ombros curvados em puro desânimo, e sem paciência,
repliquei. — Obrigada. Depois nos falamos mais.
Foi tudo o que eu disse, antes de rolar os olhos e desligar a chamada.
Ela não me diria nada mesmo.
A verdade era essa.
Ainda irritada, olhei para o bilhete nas minhas mãos, e balancei a cabeça em negativo.
Agora eu teria que conviver com uma curiosidade ridícula, porque a tia Daisy resolveu que seria
uma boa ideia passar um trabalho maluco.
Que droga.
Passei a língua entre os lábios, sentindo a minha sequidão.
Eu estava desidratada depois de todo o estresse e choro das últimas horas. Isso
provavelmente faria mal para o pleno funcionamento do meu corpinho. E não, eu não poderia me
acabar ainda mais por causa de idiotas. Essa era uma decisão da qual eu não abria mão de jeito
nenhum.
Apesar de tudo, eu ainda era Victoria Peterson.
E jamais deixaria de ser.
Por isso, abri a porta do meu quarto, praticamente saindo de uma caverna, desci as escadas
e fui direto para a cozinha. Para a minha felicidade, a fraternidade estava tranquila. Pelo menos,
no trajeto que eu fiz, não vi garotas por ali. Isso colaborava com a reintegração da minha
digníssima paz de espírito.
Abri a geladeira, enchi um bendito copo e tomei alguns goles d’água.
Porém...
Como alegria de líder de fraternidade ferrada, arrasada e azarada durava pouco, comecei a
ouvir uma voz quebrando o maravilhoso silêncio e se aproximando da cozinha, aquela voz,
enquanto resmungava coisas tipo “puta que pariu, que calor do caralho hoje, tem um sol pra
cada cabeça!”.
Assim que eu escutei a última palavra, entretanto, ela cruzou a porta da cozinha e tudo o
que eu vi foi a Rayka só de top, com a camisa sobre um dos ombros, a barriga exposta e definida,
a cintura desenhada e as gotículas de suor que escorriam por ali. Isso sem contar com os cabelos
curtos e bagunçados, os braços cujas veias saltavam enquanto ela segurava várias sacolas de
supermercado e...
Até parei de beber água, por um instante.
Aquela maldita tatuagem de serpente que sempre, sempre prendia a minha atenção.
Sexy...
Muito sexy.
A palavra flutuou nos meus pensamentos, de um jeito tão natural que eu me assustei.
Acordei.
Simplesmente, acordei, ao me dar conta.
Sim.
Que droga.
Os meus olhos estavam clínicos até demais com aquela garota, ultimamente.
— Ah, Vic, você tá aqui...? — ela, por sua vez, já foi logo falando, ao me ver. — Eu
queria mesmo falar contigo! Você sumiu quando a aula acabou. Como você tá? Tá melhor?
Ah, eu merecia.
Se eu já não estava a fim de muito contato humano, imagina se esse contato fosse com
uma garota que me deixava perturbada ao ponto dos meus olhos teimarem em reparar em cada
mísero centímetro de pele sua.
Suspirei, rolando as orbes e largando o copo ali por cima.
— Eu estou bem, obrigada — tentei ser sucinta e sair logo dali.
Porém...
— Hey... — com jeitinho, ela se aproximou de mim. E, por um instante, pareceu tão
genuinamente preocupada comigo que, de alguma forma, a maneira como falou, me fez parar.
Era como se ela se importasse mesmo. Sem brincadeiras, apenas sinceridade. — Você chorou de
novo?
Seus olhos dançaram sobre os meus.
Orbes castanhas e brilhantes para mim, sensíveis de um jeito como poucas vezes eu vi.
Não que eu estivesse chorando naquele exato momento, mas a minha cara provavelmente
continuava péssima. Eu precisaria passar a noite inteira dormindo com uma das minhas máscaras
faciais mais caras, para recuperar pelo menos um por cento do viço da minha maravilhosa pele
tão maltratada pelo estresse das últimas horas.
E eu já ia me desencostando do balcão, para respondê-la, quando aqueles mesmos olhos,
que dançavam junto com os meus, deslizaram para baixo e miraram especificamente na minha
mão, percebendo o bilhete que eu ainda segurava.
Rayka parou.
Seu corpo pareceu ligeiramente tencionar.
E ela observou o papel por mais tempo do que parecia natural.
Estranho.
Franzi o cenho.
Isso não me cheirou bem.
Quando dei por mim, desconfiada, eu já estava perguntando:
— O que foi? Por acaso, sabe que papel é esse?
TÁ A FIM DE TOMAR UMA?

“Eu construí uma casa para você e para mim, até que desapareceu de mim e de você”
The Build a Home | The Cinematic Orchestra

VICTORIA

Ainda notei quando ela piscou os olhos repetidas vezes, como se estivesse sendo arrastada
de algum mundo paralelo, de volta para a realidade. E, então, ergueu novamente as orbes, para
mim, pigarreando a garganta.
— Hã? Quê? Pa-Papel? — franziu o cenho, se fazendo de desentendida. — Que papel?
Cerrei os olhos para ela.
— Esse papel aqui, querida... — e fiz questão de balançá-lo bem nas suas fuças. — Esse
papel que você ficou olhando, como se soubesse do que se trata. Vai, desembucha.
Ela soltou uma risadinha, seguida de um pequeno “tsc”.
— Tá ficando mais doida do que você já é, tantã? Não faço a menor ideia do que é isso
aí... — apontou com o queixo. Um sorrisinho meio atrevido pintando os seus lábios. — Aliás,
que papel é esse? Diz aí pra mim.
Tantã...
Girei as orbes, meneando a cabeça.
Ela tinha que começar.
— Deixa pra lá... Não interessa.
Era burrice minha perguntar qualquer coisa à Rayka.
Ela nunca levava nada a sério mesmo.
Já cansada de ficar ali, amassei o bilhete e o coloquei dentro de um bolso da roupa que eu
usava. Quando eu fiz que ia me afastar, para cair fora, porém, ela tornou a falar, aproximando-se
outra vez:
— Sério, Vic... Me fala como você tá... O seu rosto... — ergueu a mão livre, aquela que
não estava carregando as várias sacolas de supermercado, quase tocando o meu queixo.
— Ei... — desviei dos seus dedos, torcendo o nariz. — Sai pra lá... — garota sem-noção.
— Se quer saber... Eu tô exausta. Mesmo. De tudo.
Ela suspirou.
Seu peito subindo e descendo, dentro daquele top suado.
Droga, eu já estava começando a reparar de novo.
Mudei a direção do olhar, encarando as minhas unhas de porcelana. Que saco, o meu
esmalte já estava saindo. Talvez fosse melhor eu interromper o meu drama de novela mexicana,
ou a minha babação de ovo por uma sapatão, sair do fundo do poço, e ir à uma manicure.
— Bom... Acho que a psicóloga da universidade, a minha mãe e o seu pai já devem ter
gastado muita saliva com frases motivacionais — Rayka continuou. — E, claro, eles estão super
certos, mas... Eu tenho uma ótima, ótima sugestão de algo que também pode te fazer relaxar,
depois dessa merda que aconteceu, além de todo o blábláblá sentimental que você já ouviu dos
coroas.
Enruguei a testa para ela, pela milésima vez, com certo ar de desconfiança. Talvez, no
fundo, sendo bem honesta comigo mesma, eu estivesse topando qualquer coisa que me fizesse
parar de pensar naqueles imbecis rindo de mim e, principalmente, nas palavras nem um pouco
meigas da minha avó.
Porém, eu nunca sabia quando podia ou não confiar no que Rayka dizia, porque ela
sempre, ou pelo menos em noventa e nove por cento das situações, levava tudo na brincadeira.
— Que sugestão? — ainda dei o braço a torcer para perguntar. — Olha só, se for mais
uma das suas gracinhas, eu juro que nunca mais paro pra falar contigo.
Óbvio... Eu já estava abrindo uma imensa e milagrosa exceção para ela, considerando que
eu não estava com muita paciência para nenhum tipo de interação humana, no momento. Aliás,
até agora, eu não fazia ideia do motivo de ter aberto essa exceção justo para a Rayka e, ainda por
cima, continuar ali, parada, de frente para ela, ouvindo a sua conversa fiada.
Eu só podia ser muito boba mesmo.
Ela, no entanto, riu.
— Você é uma figura, tantã... Tá a fim de tomar uma?
Comequié?
— Tomar uma? — o vinco no meu cenho se tornou mais profundo. — Pera aí, tá querendo
me embebedar? Essa é a sua brilhante ideia para me tirar da fossa?
Sorrindo para mim, com aquele arzinho irritante de sabichona, Rayka de repente colocou,
em cima do balcão da cozinha, todas as sacolas de supermercado que estavam na sua mão,
fazendo ecoar um barulho de garrafas de vidro chocando-se umas nas outras.
Entortei as sobrancelhas.
Eu nunca tinha visto tanta bebida alcoólica na fraternidade. As meninas de lá não
costumavam beber muito assim. Afinal, uma das regras de boas condutas das irmãs Minervas era
nunca, absolutamente nunca, passar vergonha por pesar a mão no álcool. As irmãs Minervas, ou
quaisquer outras mulheres que se dessem ao respeito, jamais ficariam caindo bêbadas por aí. Pelo
menos, foi o que me ensinaram.
— Que tanta cerveja é essa? — questionei.
— Decidi usar o resto do dinheiro que minha mãe me deu para comprar comida, e gastei
com cerveja — sorrindo astuciosa até demais, ela continuou. — Meu plano é passar a tarde
todinha enchendo a cara, em comemoração ao meu novo trabalho.
— Trabalho?
— Sim... — garbosa, ela respondeu cheia de pernas. — Pode dar os parabéns para a nova
garçonete da Esquina das Panquecas.
Gargalhei automaticamente.
Isso só podia ser piada.
Sério, só a Rayka e as suas idiotices para me fazerem rir no meio de uma fossa.
— Você? Garçonete da Esquina das Panquecas? — ergui uma das sobrancelhas, cruzando
os braços. — Quê que foi? A tia Daisy parou com as mesadas? Ou o James Hinkhouse bateu
com a cabeça na pia da cozinha, para aceitar te contratar?
— Na verdade... — a passos lentos e seguros, ela se aproximou mais de mim. Aquele
sorrisinho irritante e presunçoso, se tornando maior no seu rosto. — A filha dele é muito gente
boa... Stacy, né? Você deve conhecê-la. Estuda na Universidade de Miami também. Ela me
recebeu super bem e praticamente obrigou o James a me contratar, porque, segundo ela, eu era a
melhor opção. Acredita? — e soltou uma pequena risadinha pelo nariz, balançando de leve a
cabeça.
Automaticamente, mesmo que eu não quisesse, ou me forçasse a agir com indiferença,
senti um cutucão ridículo e imbecil no meu peito. Uma vibraçãozinha estranha. Uma coisinha
idiota até demais. Sim. Uma espécie de... De... Ai que droga. Uma espécie de incômodo. Sim,
era um incômodo. Sei lá o porquê. Mas, sim, um incômodo.
Não sabia se era pelo simples fato de Rayka tê-la mencionado. Ou se era por ela ter feito
questão de enfatizar o “boa” do “gente boa”, dizendo descaradamente na minha cara, em outras
palavras, que achava Stacy gostosa demais. Ou se era porque, no fundo, eu concordava que Stacy
era realmente gostosa, mas não queria que Rayka achasse isso. Ou se era porque eu sabia que,
agora, elas ficariam próximas demais. Ou se... Aaaah, sei lá!
A única coisa que eu tinha certeza era de que algo me incomodou.
Me incomodou à beça.
Mesmo assim, fazendo o possível para engolir o gosto amargo do veneno que já subia pela
minha garganta, quase cantarolei, praticamente sem mexer os lábios, enquanto a encarava de
cima a baixo, ainda de braços cruzados:
— Ela o obrigou foi...?
Eu conhecia bem demais a Stacy Hinkhouse. Era uma vadia. Talvez por se achar muito
rica ou popular em certa medida, ela sempre quis tirar a fraternidade de mim, desde o primeiro
ano em que me tornei a presidenta. Stacy sempre quis ser eu, desde as roupas que comprava até o
Porsche vermelho que pediu ao pai de presente de aniversário. O carro era igual ao meu.
Pobre coitada.
Nunca chegaria aos pés de uma Peterson. Ela nem mesmo tinha a tradição de família na
fraternidade, que era um requisito importantíssimo para não somente se tornar uma das irmãs
Minervas, mas, principalmente, para ser uma presidenta. Apenas uma tataravó dela, já esteve por
lá. E só. Nada mais do que isso.
Não era uma grande coisa.
— Foi... Daora né? — respondeu Rayka, ainda com aquele sorrisinho provocativo. — Eu
achei ela bem gente fina. Uma garota muito maneira.
Eu achei ela bem gente fina...
Uma garota bem maneira...
E blábláblá!
Saco.
— Você não presta... — rolei os olhos, balançando a cabeça. — Daqui a pouco está
levando Stacy Vadia Hinkhouse para a cama.
Pelo menos, até onde eu sabia, Hinkhouse também ficava com meninas.
Rayka, por sua vez, gargalhou de novo. Sua risada era frouxa. Frouxa demais. Ela
claramente estava se divertindo com a minha cara.
— Não fala assim da garota... — e agora já estava defendendo a Stacy...?! — Você tem
que parar de achar que eu fico levando toda e qualquer menina para a cama. Não é assim que
funciona. — tirando, então, uma cerveja de dentro de uma das muitas sacolas, abriu a tampa da
garrafa com o dente e ergueu em minha direção. — Vai... Toma uma comigo...
E eu juro que não sei o que me deu. Talvez fosse a mistura de todo o pesadelo de mais
cedo, junto com as palavras afiadas da minha avó, junto com aquele incômodo ridículo demais
por causa de Stacy Hinkhouse. Ou talvez... Ou talvez fosse a combinação disso tudo com mais a
forma como os seus malditos lábios deslizaram pela garrafa e os seus dentes arrancaram tão
simplesmente a tampa da cerveja. Sei lá.
Sei lá mesmo.
Tudo dentro de mim se revirou em pura inquietação. Quando dei por mim, num piscar de
olhos, eu já estava puxando a garrafa da mão da garota e virando um gole na minha boca.
Fechei os olhos automaticamente, sentindo o ardor.
Desceu queimando, mesmo que estivesse gelada.
Eu não tinha o costume de beber álcool, afinal.
Só ouvi, porém, as risadinhas da Rayka, ao meu lado.
— Uou... Para quem só bebe raramente piña colada e martini de frutas, você foi muito
bem com a cerveja... — disse ela, brincalhona. — Tá de parabéns.
Quando consegui abrir os olhos outra vez, sentindo a minha garganta começando a se
acostumar ligeiramente com o gosto, vi o momento em que ela também puxou uma garrafa para
si, tirou a tampa no dente outra vez, e bebeu.
Desgraçada sexy...
Inferno.
Automaticamente, virei a garrafa de novo, tentando abafar aquele pensamento miserável.
A minha cabeça só podia estar muito desregulada. Sem pena, tomei um gole ainda maior do que
antes. Passou rasgando a minha garganta.
Droga.
— Não sei como você consegue beber isso... — torci o nariz, virando mais um pouco. —
É horrível.
Ela riu de novo.
— É horrível, mas você continua tomando, né? — e bebeu mais da sua também.
Assim que ela se calou, porém, vi quando o mundo subitamente girou. A cozinha, com
tudo ao redor, se mexeu tão rápido quanto a velocidade de um piscar de olhos. De repente, senti
como se eu estivesse em um barco no meio de oceano, com ondas pra lá e pra cá, ao ponto de
quase perder o meu equilíbrio e a força das minhas pernas.
Achando que ia me estabacar no chão, exclamei ao me segurar nas pontas do balcão, ainda
com a garrafa em uma das mãos:
— Ai minha deusa!
Eu estava tonta?
Tudo rodopiou de novo.
Droga.
Eu estava sim.
Diabo de cerveja forte. Parecia veneno... Fazia efeito na mesma hora.
Ou então... Ou então, eu só era fraca para álcool mesmo.
No fim das contas, talvez as duas alternativas estivessem certas. A cerveja era forte e eu
era fraca.
— Ei, ei... O que foi? — ligeiro, Rayka se aproximou, tentando me segurar.
— Meu organismo perfeito, saudável e limpo de substâncias tóxicas só não está
acostumado com esse tipo de bebida barata — retruquei.
— Oh, sim, claro, você é muito princesinha para beber cervejas de três dólares.
Por pouco, não rolei as orbes. Foi para o bem do meu equilíbrio. Eu não queria me sentir
ainda mais zonza. Mesmo assim, que saco, a boca dela, desde que nos conhecemos há seis ou
sete anos era: “Victoria é muito princesinha para isso, muito princesinha para aquilo, muito
princesinha para aquilo outro”.
Idiota.
Até parecia que eu era feita de açúcar.
— Me poupe das suas ironias, Rayka.
— Não estou ironizando... Você é uma princesa mesmo — respondeu simplesmente. —
Quer que eu te ajude a subir as escadas e ir até o seu quarto? Vem... Eu te ajudo. Talvez seja bom
você se deitar.
Já pousando uma das suas mãos na minha cintura e outra no meu braço, foi tudo o que ela
disse.
Porém...
— Sai, sai... Sai pra lá... — ainda meio zonza, dei-lhe tapinhas de leve, para ela
desencostar. — Me deixa. Eu tô bem.
Só que eu não estava realmente bem. Na verdade, eu não estava nem um pouco bem. O
álcool, agindo no corpo de uma fracote como eu, nublava o meu raciocínio ao ponto de eu ter
pouca noção do que estava fazendo ou falando. Quando me dei conta, os meus pés já deslizavam
pela cerâmica, junto com as minhas costas que escorregavam pelo balcão. Me sentei no chão da
cozinha como uma bêbada.
Ouvi quando Rayka sibilou:
— Ah não... Eu tô matando a filha alheia... — e, já descendo, ela se agachou ao meu lado.
— Vic, você tá bem mesmo? Tá legal?
— Eu tô bem sim, sua imbecil, para com isso... — dessa vez, não hesitei em girar as orbes,
me afastando um pouco. Quando assim o fiz, porém, a cozinha inteira girou junto comigo mais
uma vez. — Que droga... Eu não posso mais nem rolar os olhos em paz... — resmunguei,
fazendo uma careta ao apoiar as costas no balcão.
O fundo do poço era ali mesmo, onde eu estava.
Quem diria que a grande Victoria Peterson, líder de fraternidade e filha do reitor, um
exemplo para muitas, um objeto de inveja para outras, estaria, agorinha, arrasada no chão de uma
cozinha, segurando uma garrafa de cerveja ruim e zonza de beber álcool?
Era o fim.
A minha avó ia me massacrar se soubesse disso.
Talvez até me tirasse da presidência da fraternidade, por estar infringindo algum código de
conduta das Minervas. Ou mesmo por não estar sendo tão perfeita quanto ela queria que eu
fosse.
O pior era que aquelas gotas de álcool já estavam me deixando tão aérea que, confesso,
não fiquei muito tempo refletindo sobre o quanto o meu atual estado parecia degradante para
alguém como eu. Apenas ergui a garrafa de novo, a fim de beber mais um pouco.
Foi quando eu percebi o líquido já no final.
Me assustei.
Caramba, como eu consegui quase acabar essa cerveja com apenas três goles?
Aliás, quase acabar não... Acabar mesmo, porque, depois disso, virei a garrafa e bebi, de
uma só vez, todo o restante que ainda tinha ali.
Rayka suspirou ao meu lado, teoricamente preocupada.
— Tem certeza de que quer continuar tomando isso? Você ficou tonta, Victoria. Quero
dizer, ainda deve estar tonta... E pode piorar, se continuar bebendo assim.
— Como se você se importasse... — soprei um “tsc”. — Sim, por incrível que pareça, eu
tô a fim de beber essa cerveja ruim e barata. Pode ser que assim eu não me lembre mais do que
aconteceu. Não é desse jeito que gente pobre se esquece dos problemas?
E simplesmente puxei a garrafa que ela segurava, já que a minha estava seca.
— Eu me importo...
Ri, meio bêbada, tomando mais um gole, não consegui segurar.
— Desde quando você se importa comigo, Rayka?
— Desde sempre... — retrucou. — Se eu soubesse que você ia ficar tonta assim, nem teria
te oferecido a bebida.
— Own, que boazinha... — ironizei.
Ela, contudo, puxou o ar.
— Olha só... Me dê essa cerveja pra cá. Vem, vamos. — disse ela, já me segurando de
leve pelo braço e tentando tirar a garrafa da minha mão. — Eu te ajudo a se levantar e ir para o
quarto.
Ai, que saco!
Logo agora que a minha cabeça estava começando a flutuar, do jeitinho como eu queria,
ela vinha cortar o meu barato?
Nem!
— Sai pra lá! — retruquei, empurrando-a como eu podia, ainda escorada no balcão, em
pleno estado de decadência. — Me deixa... Se eu passar mal e vomitar, pelo menos estou em
casa.
Sim, a fraternidade era a minha casa. Era lá onde eu morava, afinal.
A garota, por sua vez, respirou fundo, quase como se estivesse tentando se conformar de
que jamais conseguiria me convencer de qualquer coisa.
— Tá legal... — meio sisuda, ela replicou. — Mas, eu vou ficar de olho em você — e
puxou outra cerveja para si, acomodando-se em uma parte do chão, ali por perto.
A tampa foi aberta, mais uma vez, com os seus dentes. Em dois segundos, o lacre já tinha
escorregado por ali, enquanto Rayka tomava um gole da bebida, literalmente sem tirar os olhos
de mim, assim como disse que faria. Olhos atentos, intensos, e grudados nos meus.
Alguma energia diferente começou a circular por ali, entre nós e acima das nossas
cabeças.
Sim.
Eu sentia.
Eu sentia algo esquisito, à medida que seus dedos tatuados, tão despojados, seguravam a
garrafa e a cerveja descia pela sua garganta.
Por um instante, a minha cabeça flutuou muito mais do que quando comecei a notar os
primeiros efeitos do álcool. Por um instante, me perguntei se isso era só do álcool mesmo, ou se
também tinha a ver com a Rayka e a maneira como ela parecia se preocupar com tão poucas
coisas, enquanto estava ali, largada no chão, me observando e tomando a sua cerveja.
Me dei conta de algo.
Aliás, eu já tinha me dado conta disso há muito tempo.
Não importava o quanto ela fosse irritante, desagradável, insuportável, esquisita, um
verdadeiro pé no saco... Ela era livre. Sim. Livre. Independente de qualquer coisa, Rayka era
livre. E tinha escolhido um estilo de vida para si, por livre e espontânea vontade, em vez de uma
colcha de retalhos de comportamentos e códigos de condutas traçados previamente para ela,
antes mesmo de sair da barriga da sua mãe.
Rayka era livre.
Ela não tinha que dar satisfações sobre qualquer coisa, nem alcançar expectativas que não
foram projetadas por ela mesma. Rayka vivia por si, não pelos outros. E, bem, acima de tudo e
de todas as vantagens de ser ela mesma, existia algo ainda mais importante: Rayka não precisava
ser... Perfeita.
Zonza da bebida e de algo mais que eu nem sabia explicar, de repente, falei:
— Tenho inveja de você...
Para ser sincera, apenas me dei conta do que disse, depois que já tinha saído da minha
boca.
Só vi quando ela franziu o cenho, confusa.
— Inveja de mim?
Suspirei e tomei mais um gole da garrafa que, há alguns minutos, tirei da sua mão.
Meus olhos já um pouco trocados.
— Sim...
— Por quê? — ainda mais embaraçada, perguntou.
— Porque eu aposto que você só faz o que quer. Você nunca faz nada que não queira.
— E você também não precisa fazer, Victoria.
De automático, ri pelo nariz, meio bêbada.
Isso só podia ser piada.
— Até parece... Esqueceu de qual família eu venho? — suspirei. — Você é muito sortuda,
sabia? Não tem que se encaixar em nenhum padrão, porque não esperam isso de você. Ninguém
nunca criou expectativas sobre a sua vida, como criaram sobre a minha. Eu já nasci com roteiro
predefinido. Cada passo meu é previamente determinado.
Ela, por sua vez, balançou a cabeça de leve, em negativo, e disse:
— Você que pensa, Victoria... Para chegar aonde estou agora, houve todo um processo.
Um processo de anos. Você não participou. Quando você apareceu, recebeu tudo de bandeja. Eu
já era assim. Então, não tire conclusões precipitadas... — tomando um gole da sua cerveja, ela
continuou. — A diferença, entre a minha situação e a sua, está na decisão de tomar o controle
sobre a própria vida. Eu tomei o controle da minha vida, quando percebi que eu estava lutando
para tentar me encaixar num padrão que não era meu. Foi a época mais solitária da minha vida.
Eu podia estar cercada de pessoas e, ainda assim, me sentir sozinha, porque eu estava longe de
mim mesma. E estar longe de si mesma é a pior sensação do mundo.
Por alguns segundos, isso o que ela falou me cutucou.
E era estranho quando Rayka me cutucava.
Especialmente na alma.
Muito estranho.
Uma troca de olhares entre nós.
Aquela vibração esquisita tornando a pairar sobre as nossas cabeças.
Puxei o ar, meio inquieta, e, quebrando o gelo, sorri para ela, num misto de sarcasmo com
falta de lucidez por causa da bebida, dizendo:
— Sozinha...? E, por acaso, você já se sentiu realmente sozinha, em algum momento?
Aonde você chega, você faz amizade. Hoje mesmo, lá na universidade, antes do pesadelo, Rayka
Ferris foi o centro das atenções. Todos só falavam com você. Todos só falavam sobre você. —
rolei os olhos de leve, balançando um pouco a cabeça, mesmo que o mundo ainda estivesse
girando comigo.
— Eu já disse, Victoria... Você ainda não me conhecia nessa época. Foi antes do seu pai
começar a namorar a minha mãe, na minha pré-adolescência, quando eu me forçava a ser como
as outras garotas, mas percebia que não gostava de meninos e que não curtia ser tão feminina
quanto as minhas amigas. Tipo, eu não gostava de coisas de garotas, mas gostava de garotas.
Sorri, ainda aérea, e…
— Sapatão... — soltei, rindo de leve.
Ela também riu, divertida.
— Sabe que, pra mim, isso é um elogio, né?
Balancei a cabeça de leve, bebendo mais um gole da cerveja, e, sem nem saber por qual
motivo, eu já estava sorrindo ainda mais para ela. Ou melhor, sorrindo com ela. Sim. Ela também
estava sorrindo para mim. E, da mesma forma que eu tomava a bebida sem tirar os olhos dela,
ela também não parava de olhar para mim.
Era esquisito...
Ou melhor, era diferente estar assim com ela.
Porém...
No fundo, bem no fundo, também era bom.
Sim.
Bom.
Tinha gosto de familiaridade.
De intimidade.
Tinha cheiro de... Amizade.
Mesmo que nós nunca tivéssemos nos considerado amigas.
Ou melhor... Cheiro de algo maior do que amizade.
Repentinamente, porém, entre olhares e sorrisos involuntários, e entre goles de cerveja e
algumas risadinhas que escapavam sem que eu nem percebesse direito, uma lembrança da minha
avó cruzou a minha memória, como se, indiretamente, mesmo que nem estivesse ali com a gente
naquela cozinha, ela apontasse o dedo na minha cara e me dissesse que eu já estava errando.
Errando de novo. Errando pela milésima vez.
Um aviso.
Um aviso de que aquela minha breve proximidade com a Rayka era perigosa, errada.
Suas palavras de mais cedo, então, pipocaram na minha cabeça.
“Você não é perfeita. E vai continuar não sendo, enquanto permanecer tomando atitudes
que envergonham e mancham a imagem da família.”
Droga.
Meu sorriso desapareceu no mesmo segundo.
E a Rayka percebeu.
— O que foi?
— Grace Peterson.
Mesmo que eu não estivesse a fim de tocar no seu nome, ele simplesmente escapuliu da
minha garganta, como uma consequência do tanto que eu estava cheia por dentro. Eu estava
transbordando. Transbordando de pura exaustão.
Rayka soltou o ar, esfregando uma das mãos na nuca.
— Ela foi muito ruim com você?
“Mulheres de respeito não enviam fotos nuas para homens, como se fossem vagabundas.”
“Estou profundamente decepcionada.”
“Você não passa de uma depravada.”
“Você pode ser qualquer coisa, menos perfeita, Victoria.”
Se segundos atrás eu estava sorrindo, agora novas lágrimas, malditas e teimosas, já
enchiam os meus olhos d’água.
Que saco.
Eu odiava chorar.
E, às vezes, chorava do ódio que eu sentia por estar chorando.
— Ruim? — ri sem humor, uma lágrima idiota escapando por ali. — Ela conseguiu ser
ainda mais severa do que normalmente já é. Foi um dos piores momentos que eu já tive com a
minha avó. Grace praticamente me disse que eu sou uma imprestável.
Não que ela já não tivesse quase dito isso outras vezes.
Mas, agora, foi pior.
Rayka, por sua vez, largando a sua garrafa no chão, se aproximou de mim. Por um
momento, eu senti que ela quis tocar o meu rosto, segurar o meu queixo e me fazer encará-la
com a certeza de que estava do meu lado e não tiraria os pés dali se eu deixasse ela ficar.
Porém...
Se conteve.
Talvez fosse melhor assim.
De toda forma, disse:
— Vic... Não fala isso. Você sabe que não é imprestável.
— Não sou eu quem diz... É a minha avó. Ela me disse, com todas as letras, que eu
envergonho a família. Ter a minha foto seminua circulando por aí mancha a imagem dos
Peterson. E, bem, é a primeira vez que acontece isso comigo na universidade, mas não é a
primeira vez que eu escuto coisas assim da minha avó. Ela nunca está satisfeita com a maioria
das coisas que faço. Eu até poderia aguentar na boa, ou tentar relevar os esporros que ela me dá,
se isso não fizesse eu me lembrar de que não tenho mais a minha mãe aqui e de que, a cada vez
que Grace se decepciona comigo, eu fico mais distante da minha mãe e do que ela sonhou pra
mim um dia.
Essa era a parte que mais doía.
A minha mãe.
Uma lágrima idiota escapou por ali, enquanto eu, no fundo, confusa, ainda me perguntava
por que diabos tinha resolvido conversar tudo isso com a Rayka (logo com a Rayka), sendo que
eu não estava com vontade de falar com ninguém. Aliás, eu me perguntava não somente isso,
mas, principalmente, a razão pela qual eu continuava ali, ao seu lado, no chão da cozinha,
bebendo e chorando como uma inútil.
— Olha... Eu tenho certeza absoluta, absoluta de que, onde quer que esteja a sua mãe, ela
está orgulhosa de você, independente de qualquer coisa. Vic, a sua mãe te amava e continua te
amando. Aliás, não existem motivos para que ela, sua avó, ou qualquer outra pessoa se
decepcione com você. Você foi a vítima do que aconteceu, Victoria. A vítima...! — disse ela,
com tanta ênfase, cravando os olhos nos meus. — Nunca se esqueça disso. Você não teve culpa.
Suspirei, abaixando o rosto, enquanto encarava o esmalte largando das minhas unhas.
Tão desleixada... Era o que Grace diria, se olhasse para as minhas mãos.
— Não é isso o que a minha avó faz parecer... — repliquei.
— Não a escute.
— Como se fosse fácil... — soltei “tsc”, balançando a cabeça de leve, em negativo. — É
difícil não a escutar.
E, então, tomei mais um generoso gole da cerveja.
Dessa vez, porém, não foi como se a minha garganta já estivesse se acostumando com o
gosto, pelo menos levando-se em consideração tudo o que eu já tinha bebido ali. Dessa vez,
aquela porcaria desceu rasgando... Como um sinal.
Fiz uma careta, torcendo nariz.
— Quer saber? — ergui, enfim, o rosto para a garota novamente. — Eu estou começando
a acreditar no que Grace diz sobre mim. Não era para eu estar bebendo a porcaria dessa cerveja
barata, ou me sentindo bêbada que nem uma vagabunda miserável, como estou agora. Isso não é
algo que uma Peterson faria. Minha avó disse que eu não sou perfeita, que envergonho a família.
E talvez isso seja verdade mesmo, considerando o meu atual estado.
Simplesmente, soltei a garrafa no chão, meio irritada, meio brusca.
Eu diria até grosseria e indelicada.
O barulho que ecoou por ali foi feio, mas o vidro não quebrou.
Antes que eu pudesse pensar em qualquer coisa, só vi quando Rayka subitamente deslizou
pelo chão e se encostou em mim. Dessa vez, diferente de minutos atrás, ela não hesitou em me
tocar. Encaixou sua mão no meu rosto, segurando firme o meu queixo, tão perto, e encarou o
fundo dos meus olhos de modo que não me deixava espaço para olhar para qualquer outro lugar
ao nosso redor.
Aliás, no fundo, eu suspeitava de que eu não queria mesmo olhar para qualquer outra parte
onde ela não estivesse.
— Escuta aqui, Victoria... — replicou, com os seus olhos tão intensos, tão... Bonitos. A
atenção completamente voltada para mim. Era como se ela só enxergasse eu. — A sua avó não
sabe o que diz. Não escute o que ela fala, nem permita que ela te faça de fantoche. A imperfeição
não é um problema. Nunca foi. Ser imperfeita significa que você é humana. — puxou o ar e
continuou. Sua respiração tão perto do meu rosto. Eu podia senti-la. — E, acredite, Victoria...
Acredite no que eu digo... Você é chata pra caralho, garota. Você é fresca até dizer chega, e
quase não pisa no chão, mas isso não muda o fato de que você é... Especial. Sim, você é. E eu
tenho certeza absoluta de que não sou a única pessoa a achar isso. Mesmo com todas as suas
imperfeições, você é perfeita pra muita gente, inclusive pra mim.
E então...
Quando ela pronunciou a última palavra, já não era apenas a sua respiração que eu estava
sentindo, mas... Alguma coisa nova que eu nem fazia ideia de como explicar. Ou talvez... Ou
talvez, não tão nova assim. Talvez eu já tivesse sentido isso em algum outro momento. Em
algum outro lugar. Talvez há dois anos. Ou até depois disso. Talvez na praia. Talvez na beira do
mar de North Beach.
Percebi as suas orbes escuras escorregando para os meus lábios. E o pior... Eu também
estava olhando para a boca dela. Me dei conta no mesmo instante em que ela observava tão
detidamente aquela parte específica do meu rosto. De segundo em segundo, eu alternava entre os
seus olhos e a sua boca, até notar... Até notar, gradativamente, o passado invadindo o presente.
We are the champions do Queen soando baixinho nas minhas lembranças.
E...
Dedos que deslizavam sobre os meus braços.
Pelinhos arrepiados.
Mãos na nuca.
Lábios.
Línguas.
E uma enorme vontade de fazer tudo, tudo de novo.
Não.
Não, não, não.
Victoria!
Subitamente, senti quando a minha barriga se revirou. O gostinho da cerveja ruim, junto
com a salada proteica que comi mais cedo, subiu na contramão da minha garganta. Uma
sensação enorme de enjoo me tomou.
Pelo amor da deusa das líderes de fraternidade com amnésia dissociativa!
Eu poderia vomitar a qualquer momento.
Engoli seco, empurrando a bebida barata, junto com o café da manhã, para bem dentro da
minha barriga, e, de supetão, me levantei do chão. Com a adrenalina correndo nas minhas veias e
a enorme sensação de loucura misturada com enjoo, até a tontura parecia ter sumido. Quero
dizer, a tontura sumiu, mas um enjoo absoluto apareceu.
— Tá... Tá legal... Va-Valeu pelas palavras... — ofegante, enquanto a língua se enrolava,
foi tudo o que eu consegui dizer. — Agora, e-eu... Preciso ir.
E, com a bebida já na goela de novo, saí praticamente correndo da cozinha.
Eu não sabia nem como fui capaz de subir as escadas naquele estado.
Mas, subi.
Subi e entrei no meu quarto, arrastando tudo o que eu via pela frente. Fechei e tranquei a
porta. Segui direto para o banheiro e foi automático. Despejei tudo na pia. Vomitei até achar que
a minha bile estava indo junto. E, quando pensei que tudo não poderia ficar ainda pior, eu
percebi que estava redondamente enganada.
Me encarei no reflexo do espelho, sorvendo a sensação de nunca ter me sentido tão feia e
tão destruída em toda a minha vida, enquanto recebia claramente de volta, como um filme
passando frente aos meus olhos, todas as lembranças que, durante os dois últimos anos, eu fiz o
maior esforço do mundo para esquecer, enterrar, sepultar e incinerar da minha memória.
Ainda assim, foi para lá que os meus pensamentos me levaram.
North Beach.
O MELHOR BEIJO AINDA ERA DELA

“A primeira vez que você me tocou, louvado seja o mistério do amor”


Mystery of Love | Sufjan Stevens

VICTORIA

DOIS ANOS ATRÁS

Era de lei: nas férias de verão, papai e Daisy Ferris viajavam. E, claro, eles sempre
arrastavam Rayka e eu para irmos juntos. Apesar de tudo, das frequentes piadinhas sem graça da
garota mais insuportável que eu já tive a oportunidade de conhecer, das muitas horas de estrada
em que eu não conseguia dormir, e dos inúmeros mosquitos, no meio do mato, que arrancavam
um pedaço da minha pele; eu deveria confessar que as viagens eram legais. Mesmo que fossem
semanas de muitos óleos corporais e cremes faciais, para barrar os efeitos dos bichos
peçonhentos, era maneiro conhecer um monte de cidades, dentro do motorhome.
Daisy e John tinham um espírito aventureiro meio... Bizarro. Na verdade, eles
combinavam, em tudo, até demais. Eram tipo a tampa e a panela. Talvez fosse por isso que o
casamento deu tão certo. Logo no primeiro ano morando juntos, eles compraram o motorhome,
para fazermos essas tais viagens.
Dessa vez específica, nas férias do meu primeiro ano de faculdade, fizemos um roteiro
bem maluco de dias, muitos dias, visitando várias cidades entre os estados da Flórida e da
Carolina do Sul. Fomos pela costa, com o vento do litoral batendo no rosto e as paisagens das
praias que tiravam o fôlego. Bom, se tivéssemos escolhido ir direto de Miami para Charleston,
sem paradas, levaríamos umas nove horas. Porém, com pausas de lugar em lugar, de praia em
praia, para conhecer, tirar fotos, descansar e dormir, levamos alguns dias, quase uma semana, até
chegarmos ao destino final.
Em Charleston, morava uma parte da família dos Ferris. Daisy e Rayka visitavam alguns
dos seus parentes, enquanto papai e eu éramos apresentados a quem não conhecíamos. Ainda que
houvesse uma praia por lá, era uma cidade pequena. Nada do que eu estava acostumada a ver em
Miami. Não era o tipo de lugar onde eu moraria. Eu era muito urbana para Charleston, talvez eu
nunca me acostumasse com o clima parado demais, iria me entediar facilmente. No entanto, para
passar alguns dias, era bom. Tranquilo, aconchegante.
Ainda nos chamaram para deixar de lado o motorhome, pelo menos enquanto estávamos
em Charleston, porque, segundo eles, família não dormia dentro de um carro, quando se tinha
casa com cama confortável. Devo dizer que eu preferiria mil vezes a minha cama king size, do
que qualquer outra, dentro ou fora do motorhome. No sexto dia de viagem, a minha lombar já
estava pedindo socorro. Porém, era óbvio que o espírito aventureiro de John e Daisy falou mais
alto. Acharam por bem recusar o convite (e as minhas costas que se ferrássem).
Passávamos a noite estacionados em um campo aberto, dormindo no motorhome. A
paisagem, pelo menos, fazia valer a pena (alguns por cento) das dores que o colchão duro e
pequeno me causava. Ainda procurei algum massagista decente por lá, mas achei tudo muito...
Ultrapassado para os padrões que eu estava acostumada. Fiquei com dor mesmo, contando os
minutos para retornar à Miami e ao spa que eu já estava acostumada.
Durante o dia, até o horário de dormirmos novamente, nós conhecíamos alguns lugares
com a família Ferris, tomávamos banho em lagos, andávamos de bicicleta pelo parque, fazíamos
caminhada pela orla. E, bem, a programação das manhãs e tardes conseguiam me fazer esquecer,
pelo menos por alguns minutos, as dores no corpo do maldito colchão pequeno e as picadas
dolorosas dos infelizes pernilongos carnívoros. A única coisa que nem o melhor passeio do
mundo seria capaz de me fazer ignorar era: a encheção de saco da Rayka.
Sério.
Querendo ou não, viagens, como essa, faziam a garota ficar quase grudada em mim
durante vinte e quatro horas por dia. Era terrível.
A menina era hiperativa. Juro. Mesmo com dezenove anos, ela tinha cérebro de cinco.
Inacreditável, mas real. Ela não parava quieta, com as suas brincadeiras impertinentes a cada
cinco minutos. Sempre que eu estava na minha, ela surgia, lá das profundezas do inferno, para
me cutucar. Me dava sustos, colocava apelidos em mim dos quais eu não gostava, tipo “tantã”,
imitava o meu jeito de falar, e passava pasta de dente no meu lindo e hidratado cabelo, quando eu
estava dormindo. Eu acordava gritando de ódio, querendo quebrar, na cabeça dela, a mesa de
madeira da cozinha.
Papai e Daisy, por vezes, precisavam apartar a briga, enquanto aquela idiota ria e sorria
para mim, sagaz, sarcástica, imoral, como se tivesse prazer em me fazer perder a razão. Aliás,
“como se estivesse” não, ela adorava mesmo. Ela tinha prazer em me ver perder o controle, em
descer do salto, em não ser perfeita.
Era um dos poucos momentos em que me esquecia da perfeição, dos modos.
Vovó me disse que garotas perfeitas não levantavam a voz para brigar.
Mas, de verdade, com a Rayka eu não conseguia.
Ela me tirava completamente do sério.
Para completar, tudo parecia se tornar ainda pior no cubículo do motorhome. Aquele
espaço minúsculo nos deixava compulsoriamente mais próximas. Ou seja, isso fazia Rayka se
lembrar mais vezes da minha existência e me perturbar mais vezes também.
Idiota.
Irritante.
Convencida.
Eu ainda me perguntava como as pessoas conseguiam aguentá-la. Sério. De verdade. Isso
era meio inconcebível para mim. A menina era completamente desagradável, mas sempre
conseguia fazer amizade, muitas amizades, por onde passava. Em Charleston, não foi diferente.
Além dos primos que ela, obviamente, já conhecia, logo juntou também garotos e garotas, que
moravam na vizinhança, até se tornarem um grupo inseparável naqueles dias de férias.
Eles andavam, para cima e para baixo, juntos, enquanto eu, claro, fazia vistas grossas. Não
tinha a menor intenção de me enturmar com eles, ou me juntar a qualquer pessoa que
praticamente babava pela Rayka.
Sério... O que essa menina tinha de mais?
Ao que parecia, estava até ficando com uma das garotas do grupinho, o que não era uma
novidade. Rayka era uma safada. Não podia ver uma menina bonita dando bobeira,
especialmente se fosse uma das suas, tipo sapatão também. Era nojento. Sem fazer o menor
esforço, Rayka parecia ter o dom de atrair garotas loucas para dar a boceta a ela. Um bando de
vadias.
Eu, claro, como me dava ao respeito, do jeito como a minha avó tinha me ensinado, não
saía por aí, balançando as asinhas para o primeiro cara que eu visse pela frente. A pessoa, para
ficar comigo, tinha que ralar e fazer por merecer.
Eu era Victoria Peterson, afinal.
Pelo menos, era isso o que a minha avó dizia.
Por essas e outras, eu não fazia a menor questão de criar amizade com aqueles idiotas que
faziam qualquer coisa para ganhar a atenção da Rayka. Eu não precisava deles, afinal. Muito
pelo contrário. Considerando o quanto fumavam e bebiam às escondidas dos pais, eles só
poderiam ser péssimas influências para mim.
Numa das nossas noites em Charleston, porém... Algo aconteceu.
Quando Rayka estava escapando para mais uma das suas muitas saídas noturnas, com
amigos e primos, e eu assistia tutorias de maquiagem no YouTube, enquanto maquiava a mim
mesma na mini sala do motorhome, tia Daisy soltou algo para mim:
— Querida, por que não acompanha Rayka e os amigos? Você está aproveitando pouco as
férias. Largue esses pincéis de maquiagem e vá.
Hã?
Logo agora que eu teria a paz de respirar dentro do cubículo daquele motorhome, sem
dividir o oxigênio com a Rayka?
Nem.
Claro que eu não ia perder essa oportunidade única.
Por um triz, eu já ia abrindo a boca para negar, quando Rayka foi mais rápida e, sarcástica,
falou:
— Que nada, mãe. Eu tenho certeza que ela vai preferir ficar passando base na cara.
Trinquei a mandíbula, cerrando os olhos em sua direção.
Não que isso não fosse verdade, porque, sim, era isso o que eu ia ficar fazendo na porcaria
daquele motorhome, enquanto ela saía por aí, para fazer sabe-se lá o quê. Porém, existia uma
grande, uma grandíssima diferença entre responder normalmente e responder com ironia. E eu
odiava os seus tonzinhos de ironia, quando se referia a qualquer coisa sobre mim.
Era como se eu pudesse sentir o cheiro do seu ar de superioridade.
Intragável.
— Realmente... Prefiro base de maquiagem do que fumaça de baseado na minha cara. Se
eu fosse a senhora, tia Daisy, ficava de olho no que a Rayka anda fazendo por aí. — disse eu sem
tirar os olhos da garota, mesmo que eu estivesse falando com sua mãe. — Outro dia, eu encontrei
seda na mochila dela. — e lhe ofereci o meu melhor e maior sorriso cínico.
Foi automático.
Todo o nariz empinado e o ar de superioridade sumiram em um piscar de olhos. Tudo o
que eu vi no seu semblante foi o queixo levemente caído, as sobrancelhas arqueadas, e a cara de
indignação, pelo que eu tinha dito.
Não que eu falasse palavrão, porque eu era perfeita demais para isso, mas pude ver o
quanto os olhos dela, repentina e claramente, passaram a me chamar de “filha da puta”.
Dei de ombros.
A tia Daisy, porém...
— Que história é essa de baseado, Rayka? — cruzou os braços, encarando seriamente a
garota.
Rayka puxou o ar, inquieta, movimentando os lábios por alguns instantes, sem que som
algum fosse pronunciado. Era como se estivesse escolhendo as palavras certas, ou mesmo
buscando, no fundo da sua consciência, qualquer expressão existente no vocabulário, enquanto
todas pareciam ter fugido da sua memória.
Eu quis rir.
Juro.
Uma pequena dose de sadismo.
Era tão engraçado vê-la constrangida.
— Ah, mãe, nã-não é isso o que vo-você tá pensando... — gaguejou, ainda meio nervosa,
até que, trinta segundos depois, apontou o dedo indicador, de súbito, em minha direção,
exclamando. — É mentira dela! Sim, mãe, é mentira dela. Lógico, claro. E, mesmo que fosse
verdade, coisa que não é, eu também já achei seda nas suas coisas, ué... A senhora não é cheia
das plantinhas?!
Ah não... A falta de juízo era mesmo um mal da família Ferris inteira.
Suspirei, quase desacreditada.
Foi quando Daisy, de repente, parou. Seus olhos se arregalaram brevemente por alguns
segundos, como se tivesse sido pega no flagra. Passou uma das mãos pelo pescoço, meio sem
jeito, deslizou a língua pelos lábios, pigarrou a garganta e...
— Não interessa! — berrou, depois de estalar a língua no céu da boca. — Você não tem
idade para essas coisas, Rayka! Eu deveria te deixar de castigo agora.
— Quê?! — os olhos da outra faltaram saltar da caixa craniana. — Não, mãe! Eu não fiz
nada!
O riso, mais uma vez, por pouco não escapuliu da minha garganta. Precisei segurá-lo entre
os lábios, embora a vontade fosse forte demais.
Meu Deus, como era bom azucrinar a vida da Rayka tanto quanto ela infernizava a
minha. Tudo devolvido na mesma moeda. Uma delícia.
Daisy, por sua vez, bufou, balançando a cabeça em negativo, e, então, ponderou:
— Pelo sim ou pelo não, hoje você vai sair acompanhada. E Vic vai me contar tudo o que
acontecer. Não é, meu amor? — cheia de dentes, sorriu para mim.
Pera aí.
Quê?
Comequié?
Subitamente, pisquei os olhos repetidas vezes em direção a ela, voltando do universo dos
sonhos, onde eu me divertia com a cara de tacho da Rayka. O mundo real, porém, não me
pareceu tão legal quanto o outro.
— E-Eu? — confusa, questionei.
— Com dezenove anos, eu vou ter uma babá, mãe...? — exasperada, a outra questionou.
E, bem, pela primeira vez, eu precisava estar do mesmo lado daquela idiota, porque, não,
eu não queria ser a sua babá, nem por uma noite.
Daisy, no entanto, retrucou:
— Calada, Rayka. — e, então, se aproximou de mim, toda interessada e cheia de jeito,
falando delicadamente comigo. — Você vai fazer isso para mim, não vai? Sei que é uma ótima
menina, muito centrada e muito responsável. O tipo de pessoa que Rayka precisa ter por perto.
A cada elogio da sua mãe para mim, Rayka revirava os olhos, em puro desdém.
Tudo bem, era legal aborrecê-la assim também, indiretamente, mas...
— Tia... — sorri amarelo. — Sei que sou perfeita, maravilhosa e muito madura, só que...
— Ela vai se sentir completamente deslocada — subitamente, Rayka me cortou, sem que
eu nem pudesse terminar a frase. — Melhor ficar. Victoria é careta, chata e sem graça. Não vai
dar certo.
Calma aí.
Victoria é careta, chata e sem graça?
Não vai dar certo?
Careta, chata e sem graça...?
Careta, chata e sem graça?!
Involuntariamente, dentro de apenas um mísero minuto, meu cérebro repetiu isso um
milhão de vezes, até que eu entrasse em estado de ebulição. Tudo dentro de mim borbulhou, sem
acreditar no quanto aquela inútil conseguia ser cara de pau o bastante para ter a coragem de se
referir a mim dessa maneira.
Fervi de ódio.
O meu corpo esquentou, o meu rosto ficou vermelho e a minha mandíbula trincou, até que,
segundos depois, reunindo todo o meu sangue de barata e a minha vontade de matá-la de raiva,
sorri cinicamente para ela, dando a resposta que mudaria não somente os rumos daquela noite,
mas também das nossas vidas:
— Pois agora eu vou.
— Quê? — ela automaticamente replicou, e, sem entender, me encarou.
Eu, no entanto, apenas falei:
— Vamos, querida... Estou louca para ser careta, chata e sem graça, com você, por aí. E
pode deixar, tia. Não se preocupe. Quando eu voltar, te passo o relatório completo. — disse eu,
dando uma piscadinha de olho para Daisy, enquanto me levantava da cadeira e já caminhava para
fora do motorhome.
— Porra...
Foi tudo o que eu ouvi sair da boca da Rayka, ao resmungar.
Depois disso, seguimos noite afora, pelas ruas de Charleston, enquanto eu tentava não me
martirizar de ter perdido, por puro orgulho, a oportunidade de respirar ar limpo, bem longe da
Rayka. Por fora, eu só parecia uma garota convencida querendo irritá-la. Por dentro, eu estava
louca para voltar ao motorhome, ou me matar (também era uma opção).
Quando encontramos os seus primos e amigos, doze pares de olhos me encararam.
Aqueles idiotas não sabiam nem disfarçar, me observaram descaradamente, de cima a baixo,
cochichando entre si, como se eu fosse uma espécie de objeto fora de contexto entre eles.
A voz da Rayka ainda soou nas minhas lembranças...
“Ela vai se sentir completamente deslocada. Melhor ficar.”
Revirei os olhos, tentando não dar ouvidos a essa baboseira. Apenas empinei o nariz,
colocando o meu melhor semblante de indiferença misturado com soberba, e os acompanhei.
Eu era Victoria Peterson, afinal.
E era disso que eu tinha que me lembrar sempre que me sentisse ligeiramente acuada.
Entre eles, estava a tal garota que, agora, andava para todos os lados com a Rayka, sua
ficante temporária. Eu a vi, mesmo que não quisesse. Ela, então, me observou umas quatrocentas
mil vezes de cima a baixo. Seus olhos não mentiam. Claro que não. Pelo menos não para mim.
Era puro despeito. Ela me enxergava como um bicho perigoso, peçonhento.
Pobre coitada.
O que ela estava pensando? Que eu era algum tipo de ameaça?
Pelo amor da deusa...!
Eu nunca seria uma ameaça, porque eu jamais me interessaria pela Rayka ou por
qualquer coisa que tivesse a ver com ela.
Óbvio que não.
Que nojo.
Era ela quem gostava de chupar boceta, não eu.
Ainda assim, enquanto caminhávamos em direção a sabe-se lá onde, com os olhares da
garota sobre mim, era impossível não reparar nela e Rayka juntas. Não, eu não queria olhar. Não
queria passar a falsa impressão de que estava “interessada” na vida delas, porque, não, eu não
estava. Era claro que não. Mas, que droga, vez por outra, quando eu percebia a menina me
encarando com aquela cara azeda, ou até mesmo quando não me olhava, as minhas orbes
recaíam sobre elas.
Aliás, não tinha quem não reparasse nelas, porque Rayka parecia se orgulhar de passar o
seu braço por cima dos ombros da outra, para abraçá-la e beijá-la, onde quer que estivessem.
Bom, apesar da cara desagradável de enjoada, a menina era bonita. Mas... Também não era só
por esse motivo que Rayka parecia ter orgulho de sair desfilando com ela. Na real, o seu orgulho
mesmo era de ser... Lésbica.
Só que não era apenas isso que chamava a minha atenção...
Existia outra coisa...
Outra coisinha...
Tipo... O próprio olhar da Rayka.
Mesmo que nós estivéssemos em grupo com doze pessoas e mesmo que a menina
estivesse colada nela o tempo todo, eu seria capaz de colocar, em números exatos, a frequência
com que Rayka simplesmente desviava o olhar para mim sem qualquer necessidade. Eu não fazia
ideia se era porque ela ainda estava aborrecida com o que falei para a tia Daisy no motorhome,
ou mesmo irritada com a minha presença ali, quase como uma penetra numa festinha. Eu não
sabia mesmo.
Mas...
Por mais bizarro que parecesse, algo me dizia que não era raiva. Ou, pelo menos, não era
só raiva. Não, não era isso. Eram olhares esquisitos que pareciam esconder ou mascarar alguma
coisa, ainda que não conseguisse descrever exatamente o que era. Despropositais e sutis, mas...
Presentes. A todo instante. Sempre quando eu me mexia, ou até quando eu não me mexia, não
falava, ou não respirava, Rayka estava me observando daquele jeito.
Bizarro.
Era como um ímã estranho. Muito estranho. Um ímã que fazia o seu rosto virar para mim,
ainda que ela estivesse com uma garota pendurada no seu pescoço. Como se não bastasse,
querendo ou não, mesmo que eu tentasse agir com indiferença, esses olhares, no fundo, me
inquietavam.
Me inquietavam bastante.
Porém, o pior... Por incrível que pareça, o pior ainda não era exatamente isso.
O pior foi quando nós chegamos ao maldito local, onde o grupinho estava planejando
ficar. Juro. Juro que, por alguns segundos, eu me perguntei onde eu estava com a porcaria da
minha cabeça, quando decidi dar uma de orgulhosa e sair com a Rayka.
É sério, essa galera era maluca!
Eles simplesmente, SIMPLESMENTE, pararam de frente para a entrada dos fundos de
North Beach, um dos parques mais conhecidos em Charleston, e acharam que seria uma ótima
ideia invadir o local, em plena dez horas da noite, enquanto tudo estava fechado.
Pelo amor da deusa das líderes de fraternidade perfeitas e responsáveis, isso era uma
loucura! Vandalismo!
Para completar, um dos colegas de vizinhança dos primos Rayka pegou, do chão, uma
pedra de tamanho médio, e jogou na câmera de segurança que vigiava aquele portão. O meu
queixo despencou e os meus olhos dobraram de tamanho, automaticamente.
Meu Deus.
MEU DEUS.
Eu estava na companhia de selvagens!
Senti a pressão subir para a minha cabeça, enquanto a garota que estava ficando com a
Rayka apenas ria, como se aquilo não fosse nada demais, e os outros, animados, seguravam suas
garrafas de cerveja, já se preparando para escalar o portão gradeado.
Não aguentei.
Eu juro que não fui capaz de aguentar calada.
— Vocês estão ficando loucos...?! — exclamei entredentes. — Vão chamar a polícia, se
nos verem invadindo assim!
Porém...
Reparei quando a idiota da Rayka girou o rosto para mim e me encarou com aquele
semblante que me dava completa ojeriza. Sim. Aquele de quem puramente gostava de provocar e
só esperava a primeira oportunidade para isso.
— Tá com medinho, tantã? — sarcástica, sorriu. — Se for borrar as calças, é melhor que
fique aqui e não vá com a gente.
Ao redor, todos riram de mim, especialmente a garota com quem ela estava ficando.
Foi automático. As minhas bochechas arderam, enquanto o meu corpo inteirinho queimou.
Queimou de ódio. Eu detestava quando as pessoas debochavam de mim e, principalmente,
quando me subestimavam, como se eu fosse... Como se eu fosse uma palhaça.
Eu era Victoria Peterson.
Eu não era qualquer uma!
E, mesmo sem nem ter a completa dimensão ou noção do que eu estava dizendo, tamanha
raiva que eu sentia, apenas deixei o meu ego falar mais alto do que a razão, quando empinei o
nariz, pressionando a mandíbula e fechando os punhos, ao responder:
— Não, eu não estou com medo. Eu vou.
Meu Deus, se a minha avó soubesse que eu estava fazendo isso, ela ia me matar...
Foi o que a voz da minha consciência, lá no fundo, quis alertar.
Eu, porém, não dei ouvidos. As exclamações do meu orgulho e do meu ego ferido
pareciam ser muito maiores.
Vi quando os primeiros começaram a escalar o portão e a saltar, até chegar na minha vez.
Droga. Por um segundo, eu ainda quis vacilar. Um nervosismo repentino bateu, quase me
fazendo fraquejar, mas... Eu não ia amarelar... Eu não ia amarelar! Eu não ia dar de bandeja
mais uma oportunidade para aqueles otários rirem de mim.
De queixo erguido, passei na frente dos outros que ainda estavam esperando por ali, e logo
me posicionei nas grades do portão, para subir.
— Precisa de ajuda aí, Victoria? — ouvi Rayka perguntar.
Aquele seu tonzinho irritante.
Sem olhar para ela, apenas respondi um claro e sonoro:
— Não.
Coloquei as minhas mãos e os meus pés naquele troço. A imagem da minha avó dizendo
“uma Peterson de verdade não faria esse tipo de coisa”, ainda surgiu na minha cabeça. Fiz um
esforço para dispersá-la no momento. Sim, uma Peterson não invadiria um parque fechado em
plena dez horas da noite, mas uma Peterson também não permitiria ser chacota de idiotas.
Portanto, aproveitando a força da adrenalina e da raiva, por ter visto todos rindo de mim,
continuei.
Mesmo que eu estivesse fazendo isso da maneira mais desengonçada possível, pelo menos
eu estava fazendo, e, sozinha, sem ajuda de ninguém, para calar a boca daqueles miseráveis.
Escalei da maneira como eu pude, meio ofegante, meio atrapalhada. No fundo, havia um receio
de que eu fosse pega em flagrante por algum possível segurança. Só que aí, depois de alguns
instantes e algumas gotículas de suor que escorreram pela minha testa, consegui pular para o
outro lado.
Ainda me desequilibrei um pouco, caindo de joelhos e sujando as minhas mãos de areia.
Droga. Rapidamente, no entanto, me ergui, limpando a poeira e levantando o rosto, como se nem
tivesse sentido o impacto. Uma Peterson jamais baixava a cabeça.
Notei de relance o olhar aparente e curiosamente orgulhoso da Rayka para mim, ao me ver
já do outro lado. Dei de ombros. Eu jamais acreditaria na admiração de alguém que, há poucos
segundos, ria de mim por achar que eu não seria capaz de fazer aquilo. Apenas com o nariz
empinado, dei meia volta e acompanhei os outros que desciam das grades e abriam caminho pela
escuridão do parque.
As lanternas dos celulares foram ligadas, para iluminar parcamente o local. Olhei para o
céu, enquanto caminhava. Era possível ver um trilhão de estrelas. A noite estava bonita, apesar
de tudo. Pelo menos, de alguma coisa tinha que valer a pena aquele suor que provavelmente
estava estragando toda a minha maquiagem cara. Se eu soubesse que ia escalar portões como
uma criminosa, não teria passado a base da Fenty de trezentos dólares. Enfim, Rayka ainda ia me
pagar.
À medida que nos aproximávamos do espaço das docas, onde os barcos ficavam
amarrados, o leve vento frio da noite soprava de maneira mais fluida, felizmente, refrescando o
calor que eu sentia.
Foi quando eu vi o ponto de chegada. O destino final.
A beira do mar de North Beach.
Lindo.
Essa foi a primeira palavra que surgiu na minha cabeça, quando pus os meus olhos ali.
Mesmo que eu ainda estivesse indignada com a situação como um todo, eu não podia
deixar de admitir que aquele lugar era absolutamente lindo, sobretudo vazio como estava.
Apenas nós e o mar à nossa frente.
Pelo que notei, os aspirantes à bandidos nos guiaram para um dos locais mais afastados da
praia. Claro. Mesmo que parecessem mentalmente atrasados, por rirem de bobagens como se
ainda tivessem três anos de idade, eu sabia que eles também não queriam ser pegos e que tinham
cérebro o bastante para escolher estar em uma das partes mais reclusas de North Beach.
Vi quando alguns deles apareceram carregando pedaços de madeira. Em pouco tempo,
uma fogueira foi acesa entre nós. Naquela noite, o mar estava calmo e os ventos também. Apenas
uma brisa leve corria por ali. Por isso, o fogo não apagava, apenas iluminava.
E, assim, nos sentamos por ali.
Ainda torci o nariz por um segundo, confesso.
Nunca gostei da sensação de ter areia na minha bunda, mas... Que droga, não existia outro
lugar para eu me sentar. Era tudo breu, areia e mar. Enfim, tive que tirar as sandálias dos pés e
colocar debaixo do meu bumbum. Já era alguma coisa, pelo menos.
Alguns estavam bebendo e conversando, outros se beijavam, porém... Eu era a única que
não falava com ninguém. E, bem, eu não fazia a menor questão de me entrosar.
Pra quê que eu ia puxar conversa com aqueles idiotas que, além de babar por qualquer
bobagem que Rayka fizesse, ainda riram descaradamente de mim, há poucos minutos, como se
eu fosse algum tipo de piada?
Não, não.
Eu nem me esforçava para me enturmar.
Preferia mil vezes ficar calada, quieta, enquanto contava os minutos para voltar ao
motorhome e passar o relatório completo à tia Daisy. Seria delicioso dedurar que a sua filha
querida andava invadindo parques depois de estarem fechados ao público.
Assim, tudo o que eu fiz, para passar o tempo, foi tirar o celular do bolso e mexer
aleatoriamente nos aplicativos, como se não ligasse para qualquer um deles.
Porém...
Mesmo que eu não quisesse e fizesse um esforço ridículo para não me importar, era
impossível não olhar para ela... Ou melhor, para elas, que estavam sentadas na areia, alguns
passos à minha frente. Principalmente quando gargalhavam, para chamar a atenção de todos.
Revirei os olhos por um segundo.
Metidas.
Só queriam aparecer, se mostrar.
Rayka e a garota riam e sorriam uma para a outra, e se abraçavam, divertindo-se uma com
a outra, como se não tivessem trocado o primeiro “oi” há apenas três dias. Elas eram só beijos e
mãos-bobas. Uma coisa bem nojenta mesmo. Nam. Eu realmente não entendia como conseguiam
sentir prazer, sendo que elas tinham exatamente as mesmas coisas. Peitos e boceta. Não que eu
estivesse curiosa para saber como era. Óbvio que não. Só era estranho.
Torci o nariz, balançando a cabeça de leve.
Porém, entre um aplicativo e outro do celular, que eu fuçava aleatoriamente para não ficar
na cara que eu estava reparando demais nas duas, vi quando Rayka tirou um cigarro do bolso da
sua roupa, acendeu e começou a fumar com a garota.
Tragava a fumaça, soltava... Sorria.
Tragava de novo, olhava para menina e... Ria.
Brincava com a fumaça e metia o cigarro na boca de novo.
Seus lábios beijando os da garota mais uma vez.
Algo me cutucou, de repente. Quero dizer, não que eu já tivesse sentido alguns cutucões
esquisitos, desde que as vi juntas pela primeira vez. Só que, desta vez... Desta vez, era uma coisa
diferente. Algo que talvez fosse a primeira vez que eu sentia por ela.
Uma coisa bizarra e absurda, parecida com... Inveja.
Quero dizer...
Ah, inveja não, pelo amor da deusa!
Inveja da Rayka? Piada, né? Eu não bati a minha cabeça no meio-fio da estrada que
percorremos para chegar em Charleston.
Era só que... Argh, sei lá. Por um segundo, eu vi em Rayka uma menina... Livre. Uma
pessoa que não se importava, de maneira alguma, com as opiniões alheias. Uma pessoa que
estava nem um pouco preocupada em ganhar a admiração de alguém. Uma garota que sempre
fazia o que bem entendia, sem precisar dar satisfações de cada passo para absolutamente
ninguém. Uma pessoa que não precisava atingir expectativas alheias.
Um completo oposto de mim.
Sempre refém do que os outros queriam que eu fizesse.
Sempre tentando ser... Perfeita.
Suspirei.
Entre um trago e outro, Rayka beijava a menina. E parecia com tanta vontade, com tanto
desejo, que, por um instante, em vez de eu me sentir enojada com aquela pouca-vergonha, eu me
senti meio... Constrangida. Ou até... Instigada.
Argh, que droga!
Por que eu simplesmente não conseguia parar de reparar naquelas sapatonas?
Eu. Não. Sabia.
Ainda tentei baixar o olhar para o celular outras vezes, mas eu simplesmente não era capaz
de passar mais do que meio minuto sem checar o que estavam fazendo. Elas tinham a minha
atenção, mesmo que eu não quisesse.
Horrível.
Ridículo.
Mas...
Mãos que se encaixavam em lugares estratégicos. Lábios que deslizavam uns nos outros
com muita intimidade. Rayka sabia o que fazia. E como sabia. Chupava a língua da garota, sorria
contra a sua boca, deixava a menina ofegante com as bochechas avermelhadas, apertava a sua
cintura e... Que droga! Eu, estúpida, continuava observando aquilo, imersa, inerte, quase como
uma vagabunda hipnotizada.
Dentro da minha cabeça, eu ainda pude ouvir os sussurros abafados da minha consciência
ao me dizer para interromper aquela bizarrice enquanto era tempo... Ou melhor, enquanto Rayka
não reparava.
No entanto...
Eu, simplesmente, não fui capaz de parar.
Continuei olhando...
Até perceber um calorzinho repentino e assustador entre as minhas pernas.
Pera.
Calor?
Arqueei as sobrancelhas para mim mesma, sentindo o coração disparar naquele meu súbito
e apavorante momento de completa confusão mental. Porém, antes que eu fosse rápida o bastante
para desviar o olhar, Rayka simplesmente virou o rosto, ainda beijando a garota, abriu os olhos e
mirou bem em mim.
Em. Mim.
Suas íris escuras tão intensas e desinibidas.
Desgraçada.
Ela fez tudo aquilo de... Propósito?
Ela sabia que eu estava olhando o tempo todo.
Sim, sabia.
Ofegante, com o coração batendo na garganta, e ainda assustada pelas reações do meu
corpo, especialmente naquele ponto crítico entre as minhas pernas, consegui enfim, pela graça da
deusa, virar o rosto e olhar em outra direção onde ela não estava.
Segurei a porcaria do meu celular de novo, tentando acalmar o nervosismo ridículo, abri
os aplicativos e comecei a fazer contas sem sentido na calculadora. Foi quando, de súbito, ouvi
Rayka exclamar, chamando a atenção de todos:
— Que tal uma brincadeira?! Verdade ou desafio!
Verdade ou desafio?
Entortei as sobrancelhas, erguendo o rosto outra vez. Mesmo que eu não estivesse a fim de
olhar para ela pelos próximos cinquenta anos, foi impossível não fazer isso agora. Rayka não
dava um ponto sem nó. Alguma coisa ela estava planejando.
Prova disso foi o sorriso pequeno, mas sugestivo, que ela me deu.
Sagaz.
— Rá! Essa é boa!
— Bora.
— Vou adorar passar um desafio para o Tom. Se prepara.
— Cala a boca, Carol.
Foi o que disseram, entusiasmados, como sempre, com mais uma brilhante ideia da
abelha-rainha deles.
Eu, porém, enruguei ainda mais a testa. A certeza de que eu não iria participar daquela
bobagem crescendo em mim, de segundo em segundo. Eles tinham voltado ao jardim de
infância? Eu hein. Bem que eu desconfiei de que eram crianças crescidas.
Estava decidido, eu apenas iria os observar, de longe, passarem vergonha.
No entanto...
— Será que a patricinha vai topar? — um deles falou, sorrindo irônico e apontando com o
queixo para mim.
Por pouco não revirei os olhos.
Rayka, por sua vez, como se estivesse pronta para me subestimar, aproximou-se alguns
passos, com toda aquela marra de convencida que eu detestava, e...
— Não sei... — retrucou, me encarando de cima a baixo. — E aí, tem coragem, princesa?
Mais uma vez, as risadas foram automáticas e generalizadas.
Mais uma vez, eu fervi em puro ódio.
Que inferno.
Eu tinha mesmo me tornado uma piada ou sei lá? A mascote fresca e estranha da turma?
O alívio cômico da noite?
Imbecis.
— Ah, eu duvido. Duvido muito que ela participe. — sarcástica, disse a garota com quem
Rayka estava ficando.
Miserável.
Era por isso que deram certo logo de cara... Ela era igual à Rayka.
E mais risadas ecoaram por ali, enquanto apontavam e soltavam piadinhas idiotas para
mim, como se eu fosse uma espécie não conhecida de ser humano exótico e pitoresco.
Me enfureci. Nunca, nunca me trataram assim. Nem no colégio, nem na agência de
modelos que eu participava, e muito menos na faculdade. Sempre respeitavam Victoria Peterson.
Pelo menos, aqueles que sabiam o que isso significava. Tipo, quase todo mundo com quem eu
convivia. Só que ali, aparentemente, ninguém sabia o peso que esse sobrenome tinha. Para eles,
eu era só mais uma.
Mais uma estranha, careta. Deslocada.
E eu detestava ser vista assim.
Por isso, com o meu maldito ego gritando outra vez, só me dei conta do que eu estava
dizendo entredentes, quando, em meio ao nariz empinado e à cara de esnobe, aquilo já saía da
minha boca:
— Eu vou participar, seus imbecis.
Argh.
Que saco.
Eu deveria ser menos orgulhosa. Sim, deveria. Isso, com certeza, me pouparia de alguns
vexames e de algumas situações desagradáveis. Mas... Não dava. Eu juro que não dava. Mesmo
que eu tentasse ser menos orgulhosa, eu não conseguia, porque já era da minha natureza.
Ainda ouvi mais umas risadinhas abafadas e irritantes por ali.
Rayka, por sua vez, com um entusiasmo que eu não sabia se era genuíno ou só irônico,
disse:
— Opa! Então, se aproxima mais. Tenho certeza de que você vai adorar a brincadeira.
Respirei, reunindo todo o meu sangue de barata, pela milésima vez na noite.
Fizemos uma roda perto da fogueira. Rayka, eu não sabia se propositalmente, se sentou
bem de frente para mim. Seu olhar sagaz e seu sorriso sutil me deixavam desconfiada.
Desconsertada, até. Algo bem incomum para mim. Incômodo. Ainda assim, endireitei as costas e
ajeitei a compostura, jamais permitiria que ela me intimidasse por qualquer que fosse o motivo.
Pegaram uma das garrafas vazias de cerveja e começaram.
A cada vez que Rayka girava, ela me encarava. Abusada, eu sustentava o seu olhar, na
mesma altura. O que ela queria aprontar, eu ainda não sabia. Mas que ela queria algo, eu tinha
certeza. Desconfiada, meus dois pés se mantinham bem atrás com ela, muito embora o meu nariz
permanecesse muito empinado, sob um semblante puro de presunção e pouca simpatia.
Assim, a garrafa foi rodando, rodando, rodando, e a brincadeira acontecendo.
Verdades foram teoricamente reveladas. Desafios foram aceitos. Os idiotas que queriam se
aventurar, não escolhiam a verdade. Alguns tiraram a roupa, outros nadaram pelados no mar.
Alguns foram até a parte mais escura do parque, para pegar mais madeira. E ainda teve gente que
topou um “body shot”. Jogavam cerveja pelo corpo, enquanto alguém lambia. Uma nojeira.
A maioria deles, claro, optava muito mais pelo desafio do que pela verdade. Coisa de
adolescente sem-noção. Eu, porém, preferi evitar a fadiga. Óbvio que eu não iria topar o desafio
para fazer alguma daquelas besteiras. Eu era madura demais para isso. Em todas as vezes que a
garrafa parava com a boca apontada para mim, eu escolhia falar a verdade. Afinal, se eu dissesse
uma “verdade mentirosa”, ninguém ia saber mesmo.
Em nenhuma das vezes, Rayka foi a pessoa que me passou a verdade ou o desafio.
Agradeci à deusa das líderes de fraternidade mentalmente esgotadas. Ao menos essa sorte eu
precisava ter, depois de uma noite de tanto azar.
Ela, no entanto, continuava estranhamente esquisita, com aquele sorrisinho maldito e os
olhares astuciosos para mim. Eu ainda podia sentir que, de uma maneira ou de outra, Rayka
planejava alguma coisa, ainda que não soubesse o que era. Honestamente, eu nem fazia questão
de saber. Era melhor não.
Só Deus sabia o que se passava naquela mente perturbada.
Quanto mais a garrafa girasse sem cair, ao mesmo tempo, em mim e nela, melhor.
Porém...
Como se o destino estivesse rindo da minha cara e dizendo “eu sou mais poderoso do que
você”, depois de eu tanto me gabar, em silêncio, por estar fugindo da sapatona naquele jogo, em
uma das várias rodadas, a garrafa endemoniada parou exatamente com a boca virada para mim e
o fundo voltado para a Rayka.
O fundo ridiculamente voltado para ela, como se nas pontas dos seus dedos existisse
algum tipo de superpoder desgraçado.
Que inferno.
A garrafa poderia ter parado para qualquer outra pessoa, assim como aconteceu nas
cinquenta últimas rodadas, mas as probabilidades... Ah, as probabilidades estatísticas... De
alguma maneira, de um jeito ou de outro, em uma das cinquenta, sessenta ou setenta rodadas, era
bem provável que aquilo acontecesse. Ou, na verdade, não. Se fosse para ser, se fosse
predestinado, o que, no fundo, talvez era mesmo, por mais que eu não quisesse admitir, não
importava quantas rodadas precisassem acontecer, a porcaria da garrafa ia parar com a boca
virada para mim e o fundo apontado para ela.
E parou.
Eu ainda quis acreditar que aquilo não passava de um sonho. Ou melhor, um terrível
pesadelo. Sim, eu fiz de tudo para me enganar, me iludir, e me forçar a acordar, mas... Não, não
tinha como ser um pesadelo. Pelo menos, não quando o sorriso diabólico, que Rayka me deu,
parecia assustadoramente real.
Sua mente era fértil e maquiavélica.
Tremi por dentro, durante dois segundos, ainda que rapidamente eu tivesse feito um
esforço para me recompor. Ela definitivamente não podia saber do poder que exercia sobre mim.
Rayka precisava entender que ela e nada continuavam sendo as mesmas coisas.
No entanto...
— E aí, tantã, verdade ou desafio?
Tantã.
A infeliz me chamou de tantã de novo, na frente de todo mundo!
Para completar, aquelas criançonas tornaram a rir. De mim. Sim, risadinhas abafadas de
pura subestimação. Que coisa mais ridícula. Até parecia que Rayka era engraçada só por
respirar, ou só por existir. E não, ela não era engraçada, não era legal, não era maneira.
Ela não era nada!
Rolei os olhos, com ranço.
Entretanto, antes que eu pudesse responder qualquer coisa, Rayka disse mais uma vez,
com certas doses de ironia, como se tivesse certeza daquilo que falava:
— Claro que você vai escolher a verdade, porque tem medo do desafio, não é?
Fez questão de enfatizar a palavra “medo”, e, então, sorriu novamente, erguendo uma das
sobrancelhas para mim, sagaz.
Que menina mais endemoniada.
Rayka me conhecia. Sim. Ela sabia como eu funcionava. Ela tinha certeza do meu ego
imenso e do meu orgulho gigantesco, especialmente em uma situação incitada por ela, onde ela
me provocava. Rayka sabia que eu não aguentava quieta as provocações de ninguém, e muito
menos as suas.
Meu espírito era competitivo demais.
O meu ego era gigantesco, o meu orgulho monumental.
E Rayka sabia que eu não me aquietava enquanto eu não fizesse de tudo para eliminar
qualquer coisa que afetasse e mexesse o meu equilíbrio interno.
Ela mexia com o meu equilíbrio interno, ainda que não merecesse dez por cento da minha
atenção. Mas, ela mexia sim. E sabia usar esse fato ao seu favor.
Era isso, era tudo isso, que sempre me fazia tomar as piores decisões da minha vida,
exatamente como aquela que tomei agora, ao cerrar os olhos em sua direção e retrucar, com o
ego dilacerado das risadinhas irritantes e o orgulho ferido pela subestimação:
— Com quem pensa que está falando? — Eu sou Victoria Peterson, eu não tenho medo de
nada. — É claro que, de você, eu escolho o desafio.
E empinei o nariz, sustentando o seu olhar no meu.
Vi quando as sobrancelhas dela se ergueram automaticamente para mim. Admirada,
chocada, sei lá. Eu nem sabia descrever, ao certo. No fundo, por mais estranho que fosse, até
parecia felicidade. Não liguei. Dei de ombros.
Se ela era louca, que fosse louca sozinha.
— Uau... Bem corajosa — respondeu.
— Já era pra você saber disso — retruquei, sem simpatia.
Seus lábios, então, se abriram em um sorriso maior.
E, me fitando tão intensamente quanto antes, ela completou, levantando-se da areia e
ficando de pé:
— Então, o seu desafio é me beijar.
Comequié?
— Uhhhhhh... — ao redor, todos vibraram.
De repente, de uma das caixinhas de som que estavam por ali, ouvi quando um dos garotos
bobos trocou a música, e, então... “I’ve paid my dues (eu paguei minhas dívidas), time after time
(vez por vez). I’ve done my sentence (eu completei minha sentença), but committed no crime
(mas não cometi nenhum crime).”
Queen...
A voz do Freddie Mercury soou.
No entanto, nada, absolutamente nada, era capaz de tirar a minha atenção da garota
indecente e completamente louca, que estava parada de pé, bem na minha frente, com os braços
cruzados e a expressão de ousadia mais irritante da face da Terra.
— E aí... — tornou a dizer, me fitando sob orbes tão sagazes e provocantes. — Vai topar
ou vai arregar, princesa?
À nossa volta, todos nos encaravam em pura expectativa, como se estivessem assistindo a
uma final de Copa do Mundo, enquanto Rayka mantinha aquele sorrisinho presunçoso para mim.
Que inferno.
Que absurdo!
Que diabos essa menina tinha na cabeça?
Ou melhor, que diabos eu tinha na cabeça, quando decidi trocar a paz que eu teria sem a
Rayka dentro do motorhome, para ficar ao seu lado, praticamente grudada a ela?
Você é burra, Victoria. Você é idiota.
Bufei, estreitando os olhos em sua direção.
O ódio por ela aumentando de segundo em segundo.
— Você está usando essa brincadeira imbecil para fazer comigo o que sempre quis, não é?
— questionei eu, quase cuspindo fogo.
Ela, no entanto, sorriu e...
— Talvez... — convencida, deu de ombros, entoando, logo em seguida, a exatamente parte
da canção que saía pela caixinha de som. — Nooo time for loooosers, cause weeee are the
champions of the world (não tem vez para perdedores, pois nós somos os campeões do mundo).
E, como se não bastasse, sarcástica e presunçosa, com aquele sorriso que eu detestava, fez
o L de “losers” com os dedos, praticamente esfregando-os nas minhas fuças, enquanto eu
permanecia sentada.
Meu queixo despencou em pura indignação, quase sem conseguir acreditar. Minha boca se
abriu umas dez vezes seguidas, sem que eu pudesse vocalizar palavra alguma.
Essa inútil estava querendo me chamar de perdedora assim, na maior cara de pau?
Fervi. Queimei.
— Quer saber? Eu tô fora! Não sou obrigada a isso e você é uma maluca!
Foi tudo o que eu disse, me levantando bruscamente da areia e já dando meia volta para ir
embora daquele lugar.
No entanto...
Bastou eu caminhar alguns passos, intrépidos e seguros, para ouvir as típicas risadinhas
daqueles idiotas. Risadas de chacota. Comentários de gente infantil em um nível extremo.
Burburinhos que eu, óbvio, deveria ignorar por completo, se eu estivesse com a minha cabeça
totalmente no lugar.
O problema era esse.
Eu. Não. Estava. Com. A. Cabeça. No. Lugar.
Não estava mesmo.
E escutar aquilo só acabava ainda mais com a minha plena lucidez.
Fui inchando... Me irritando.
Como se os meus ouvidos estivessem aguçados apenas para o tom da sua voz, ainda que
eu já estivesse relativamente distante, consegui ouvir claramente o que Rayka falou:
— É... Ela é assim mesmo... Sempre amarelando. Uma medrosa.
Isso foi o limite
Ou pior, foi uma pequena gotinha d’água no meio de um copo já transbordando.
E realmente transbordou.
Não aguentei.
Perdendo a razão por completo e deixando que apenas as minhas emoções falassem por
mim, girei o corpo, sem nem saber direito o que eu estava fazendo. Com os olhos pegando fogo,
mirei nela, que logo me encarou de volta.
Percebi quando franziu o cenho, seu sorriso sagaz sumindo, ao notar meus ombros subindo
e descendo, ofegante.
Eu, no entanto, não pensei em mais nada, apenas caminhei a passos largos e rápidos em
sua direção, atravessando todo mundo, cruzando todos os idiotas que permaneciam sentados na
roda, perto da fogueira, e, então, quando cheguei perto o bastante, envolvi o seu pescoço com as
duas mãos, puxando-a para mim e beijando a sua boca.
Sem demora.
Sem língua.
Sem nada.
Apenas um beijo.
Rayka não reagiu, em um primeiro instante, tamanha surpresa com o que eu fiz. Ela
claramente não estava esperando.
Não me tocou, não colocou as mãos em mim.
Nada.
Apenas recebeu o beijo.
Eu, então, me afastando alguns centímetros, questionei contra os seus lábios:
— Satisfeita?
Meus olhos desafiadores, minha expressão fechada.
Foi quando ela enfim reagiu, respondendo:
— Não.
Dessa vez, fui eu que não esperei a sua atitude.
Rayka me envolveu repentinamente, com as suas mãos e os seus braços, sem que eu
pudesse ao menos raciocinar, e me beijou de novo.
Era bem provável que as pontas dos dedos daquela infeliz tivessem algum tipo de
superpoder mesmo, porque, antes que eu fosse capaz de pará-la, empurrá-la ou até xingá-la por
estar fazendo aquilo, quando os seus dedos passaram por baixo da blusa que eu usava e tocaram
a minha pele, apertando a cintura, eu me arrepiei e me desmontei.
Me desarmei inteira.
Baixei a guarda, involuntariamente.
Me desmontei como uma idiota, sem nem entender o que estava acontecendo comigo.
Com a gente.
Quando dei por mim, aquilo que não deveria ter sido nem um mísero selinho, já tinha
tomado proporções maiores. Rayka estava praticamente arrancando a minha alma pela boca, no
beijo mais sacana e pervertido da minha vida.
Suas mãos que passearam, seguras, em mim, colando ainda mais o meu corpo ao seu,
sabendo exatamente onde tocar, como tocar, o que fazer. Não era só impressão minha. Rayka
sabia mesmo o que fazer. Desgraçada. Sua língua deslizava sobre a minha, chupando, lambendo,
tão imoral.
Pude sentir a argola do seu piercing no cantinho do lábio inferior, e os seus dedos que
deslizavam pelos meus braços, indo na direção do meu pescoço e da minha nuca. Pude provar a
habilidade que aquela infeliz tinha com absolutamente tudo o que fazia. Pude notar os meus
pulmões perdendo o fôlego, enquanto ela arrancava cada pedaço da minha sanidade mental com
a própria boca.
Me perdendo e me encontrando... Me esquecendo de tudo, do mundo. Me esquecendo de
que eu não deveria ter ido até aquele lugar, de que não deveria ter pulado os portões do parque
fechado, de que nós estávamos no meio de uma “plateia”. Talvez até me esquecendo de que
Rayka era uma... Garota.
Senti aquele calor de mais cedo, entre as minhas pernas, voltar, pulsar... Senti... A
umidade escorrendo pela minha calcinha e... Os seus peitos... Os seus peitos roçando nos meus.
Espera...
Ofeguei, num susto.
Peitos?
Repentinamente, como em um piscar de olhos, fui arrastada de volta à realidade. A
consciência bateu. Forte e pesada. A voz da minha mãe, nos meus ouvidos, soou.
Da minha avó também...
Victoria, isso está longe da perfeição...
E aí, depois disso, tudo o que eu consegui dizer foi:
— Chega.
Me afastei dela, zonza, tentando não cair de cara na areia. Minhas pernas pareciam ter
perdido a força. Quase tropecei por ali. Foi quando ela me segurou pelo braço.
— Tá tudo bem, Vic?
E, dessa vez, não parecia existir sarcasmo, nem ironia, ou mesmo deboche, como em todas
as outras vezes que ela falava comigo. Pelo menos, eu não percebi. Por mais estranho que
parecesse, tudo o que eu notei foi o seu tom de... Preocupação.
Preocupação verdadeira.
Girei o rosto para ela de novo.
Suas bochechas tão coradas quanto as minhas provavelmente também estavam. Sua boca
tão vermelha dos beijos quanto a minha provavelmente também estava. Meus olhos nos seus. Os
seus nos meus, tão intensos, acesos. Tão... Tão bonitos.
Rayka era bonita. Completamente bonita.
Tão bonita que me confundia.
Confundia tudo o que eu acreditava sobre mim. Tudo o que pensava sobre a minha vida,
sobre o que eu gostava, sobre o que eu fui ensinada a fazer ou não fazer, sobre o que eu achava
que era certo ou errado.
Rayka me confundia.
Seu beijo me confundiu.
Que droga.
Balancei a cabeça de leve, tentando dispersar os pensamentos.
— Tá, tá tudo bem.
Foi só o que eu consegui dizer, puxando o meu braço e dando as costas, para ir embora
dali.
Obstinada, peguei as minhas sandálias e caminhei rapidamente de volta ao motorhome,
mesmo que fosse tarde da noite, que tudo estivesse fechado e que não existisse uma pessoa
sequer no meio da rua. A única certeza que eu tinha era de que, ao contrário do que eu falei, não,
não estava tudo bem, mas... Eu também não ia ficar ali para explicar isso à Rayka. Aliás,
simplesmente não existia explicação. Eu mesma não sabia dizer que diabos tinha acontecido na
beira daquela praia. Eu só precisava me distanciar daquilo o mais rápido possível.
E foi o que eu fiz.
Me distanciei fisicamente, mas a minha cabeça... A porcaria da minha cabeça continuava
completamente no que aconteceu.
Depois que a noite diabólica acabou, eu pensava vinte e quatro horas por dia no que
aconteceu em North Beach. Aquela terrorista da Rayka tinha comprado um lote de terras no meu
juízo. E o pior: eu não somente pensava, como também me excitava quando relembrava. Era
terrível.
Dentro do cubículo daquele motorhome, eu imaginava que, alguns poucos metros depois
do meu quarto, estava dormindo a dona da porcaria da boca mais gostosa que eu já tinha sentido,
e que, se eu quisesse, ela me faria sentir tudo de novo... Me beijaria daquele jeito mais uma vez,
deixaria a minha calcinha molhada outra vez, e até mais.
Absurdo.
Completamente absurdo!
E a minha excitação só não era maior, quando eu pensava naquilo, porque o meu medo era
gigante. Medo de estar excitada com a Rayka, ou por causa da Rayka. Medo de estar... Errada.
Sim, porque eu estava mesmo errada. As Peterson nunca erravam, afinal. Eu não podia ficar
sonhando com aquela menina, nem me excitando enquanto pensava nela. Era assustador.
Assustador demais pra mim.
Passei um tempo sem nem olhar direito na sua cara, ainda que estivéssemos dividindo o
espaço cúbico do motorhome. A minha cabeça ainda estava processando o beijo, processando as
sensações que eu tive, processando o fato de que não parava de pensar... Nela.
No entanto, ainda que eu fizesse o possível para evitá-la e não cair na tentação de cometer
mais uma grande besteira, quando estávamos quase indo embora de Charleston, para voltarmos a
Miami, Rayka me procurou, para o meu completo pesadelo.
Estávamos dentro do motorhome, sozinhas. Papai e Daisy tinham saído para a casa de um
dos parentes. Eram as últimas despedidas, antes de pegarmos a estrada de volta. Eu desenhava no
quarto, deitada de barriga para baixo, na cama, quando, empurrando a porta entreaberta, Rayka
se aproximou lentamente de mim e se sentou ao meu lado, querendo conversar.
Em um primeiro momento, eu não tive reação. Congelei. Simplesmente congelei, porque,
desde que aquilo aconteceu na praia, nós ainda não tínhamos ficado tão próximas assim, mesmo
que o motorhome não fosse tão grande.
Seus olhares passearam sobre mim... Tentadores, bonitos. Aquela desgraçada era mesmo
bonita. A personificação completa da minha passagem só ida para o inferno. Bom, antes do
beijo, mesmo que não gostasse de admitir, eu já pensava nisso, mas, agora, Rayka parecia ainda
mais atraente.
Droga.
E eu achei que estivesse sonhando, quando os seus lábios, tão naturalmente,
pronunciaram:
— Eu... Gostei de ficar com você... Queria poder fazer isso de novo...
Meu mundo parou.
Ela parecia tão, tão sincera.
Sincera de uma maneira como poucas vezes foi comigo.
Só que eu...
Eu me assustei ainda mais.
Me assustei comigo, com ela, com os meus sentimentos. Eu me assustei com tudo.
Fiquei ridiculamente nervosa.
Disse “não”.
Fugi.
Fugi como uma covarde.
E aí, como forma de me blindar de qualquer coisa, de qualquer erro, de qualquer situação
que me afastasse de quem eu sempre fui, fiz o possível para voltar a ser a garota intragável que
eu era. Talvez um pouco pior. Estabeleci ainda mais distância entre nós. Uma distância segura. E
dei graças à deusa quando chegamos em Miami e eu soube que ela tinha sido aprovada no
intercâmbio.
Rayka não faria o segundo ano de faculdade em Miami.
Nossa relação voltou a ser o que era, passivamente agressiva, ainda que sempre pairasse,
sobre as nossas cabeças, a sensação de que existia algo em aberto entre nós. Pontas soltas, laços
desatados.
Uma verdadeira bobagem.
Ela me provocava, irritante como sempre.
Eu revidava.
E a gente tentava se tolerar apenas em respeito ao relacionamento dos nossos pais.
Somente isso.
PRESENTE

Arrasada, acabada e enjoada do vômito de poucos minutos, caminhei do banheiro até a


cama, me arrastando. Enquanto a minha cabeça me traía com as lembranças do pesadelo de dois
anos atrás, me joguei sobre os lençóis, fazendo um esforço para manter, bem dentro do meu
estômago, qualquer coisa que ainda quisesse sair.
Se é que ainda tinha alguma coisa, porque botei quase as minhas tripas para fora.
O mundo girou frente aos meus olhos mais uma vez, quando encarei o teto.
Esfreguei uma das mãos no rosto, irritada, e puxei um dos travesseiros.
Sempre que eu me lembrava daquilo, em detalhes, eu me sentia completamente ridícula.
Uma grande idiota. Principalmente porque eu sabia, ainda que eu jamais admitisse isso em voz
alta, que nenhum dos caras com quem eu já fiquei, nenhum mesmo, nem o mais gato, nem o
mais rico, nem o mais famoso, nem o mais perfeito, me fez sentir o que só a porcaria do beijo
dela provocou em mim.
Foi o melhor beijo.
O melhor e o pior ao mesmo tempo.
O mais gostoso e o mais nojento, na mesma medida.
E a pior parte ainda não era isso...
A pior parte era que, mesmo depois de dois anos, de todos os beijos que eu já tinha sentido
até então, e de todas as minhas tentativas de achar o cara perfeito pra mim, aquele beijo
miserável ainda continuava sendo o melhor.
Era tão ridículo que o melhor beijo que eu recebi na vida tivesse sido da Rayka. Logo da
Rayka. Podia ter sido qualquer outro. Podia ter sido do Bruce... O cara mais gato com quem já
fiquei. Podia ter sido do Allan... O dono de uma rede de concessionárias em Nova Iorque. Podia
ter sido até do Finley... O infiel. Mas, não. Nenhum daqueles conseguiu. Nem antes da Rayka,
nem depois dela. Apenas aquela imbecil.
Passei os dois últimos anos tentando comparar e experimentar beijos melhores, mas
parecia impossível.
Ridiculamente impossível, como a droga de uma sina.
O melhor beijo ainda era dela.
Desgraçada.
Logo dela.
A garota tatuada que se vestia como um menino.
Isso era... Assustador.
Assustador num grau que eu nem conseguia explicar, porque... Eu era... Eu era hétero, né?
Lógico que eu era hétero. Eu era uma Peterson. Hétero, perfeita, o tipo de mulher que deveria se
relacionar com caras apenas à sua altura. Era o que a minha avó dizia.
Era o que a minha avó dizia...
Respirei fundo, aborrecida, confusa.
E, sem nem entender a razão para eu estar fazendo isso, já que, ultimamente, eu mal
pegava naquelas coisas, puxei os meus antigos cadernos de desenho, que ficavam escondidos em
um fundo falso do móvel ao lado da cama, para que ninguém os encontrasse.
Ao abri-los, foi como uma volta a um passado não muito distante.
Mas, também, foi como mais uma forma de cravar fundo, no meu peito, o punhal das
malditas lembranças.
Os quadrinhos de Law e Joy.
Law, a garota exemplar.
Joy, a skatista.
Eu não desenhava nada sobre elas, ou sobre a história delas, há séculos. Durante um
tempo, aquilo foi como uma espécie de válvula de escape para mim, uma tábua de salvação. Era
um jeito de colocar pra fora o que eu tinha vergonha de ter dentro do coração.
Só que...
Depois de North Beach e principalmente agora...
A cada vez que eu olhava para esses quadrinhos, eu só tinha vontade de voltar à beira da
praia e... Fazer tudo de novo.
Que droga.
Que inferno.
Você é burra mesmo, Victoria.
Fechei o caderno bruscamente, e, irritada, o empurrei para o chão.
Eu não podia ser a Law.
TÃO CONVENCIDA, TÃO
INTRAGÁVEL, TÃO CHARMOSA

“Vamos ao parque, eu quero te beijar debaixo das estrelas”


P.D.A (We Just Don’t Care) | John Legend

VICTORIA

Olha, definitivamente, isso não estava no Guinness Book de coisas mais legais do mundo:
pisar no Centro de Convivência da universidade, com uma enxaqueca desgraçada estourando os
meus miolos, depois de eu ter me tornado uma palhaça de circo no meio daqueles imbecis. Ah,
se eu não fosse tão perfeita e falasse palavrão! Já teria soltado uns quinhentos ali.
“Você não é perfeita, Victoria...”
Que inferno, a voz da minha avó ainda soava na minha consciência.
Rolei os olhos, bufando.
Se eu não era perfeita, então eu já poderia começar a berrar um monte de palavrões, como
uma garota sem classe e malcriada que eu nunca achei que um dia fosse me tornar: puta que
pariu, porra, caralho, eu não quero mais andar nessa universidade.
Respirei fundo.
Era uma tentativa de conter os ânimos.
Ok, Victoria. Ok. Você é forte, guerreira. Você consegue!
Fora os cem palavrões por segundo, que giravam na minha cabeça, essa era a positividade
tóxica que eu tentava manter, para ser capaz de caminhar por ali, durante os minutos que
faltavam para o início da primeira aula do dia.
A tal psicóloga até me disse para não absorver aquilo, não levar para o coração, et cetera e
tal. E, bem, esse era um dos motivos para eu não ir muito com a cara de psicólogos, além do fato
de que eu não gostava de me abrir com alguém. Claro que tinha todo aquele blábláblá da
importância da terapia, mas... Cara, geralmente, eles diziam coisas óbvias!
Tipo, claro que eu não ia enfiar o rabinho entre as pernas e abaixar a cabeça para todos
eles!
Bom... Tá... Talvez não tão claro assim.
Mas...
Mesmo que Victoria Peterson estivesse toda arrombada, ela continuaria seguindo em
frente, de cabeça erguida. Era isso o que uma Peterson deveria fazer, não era? Pelo menos, a
cabeça teria que ficar erguida, porque o corpo inteirinho estava só o cocô, e, claro, a alma
também.
Eu não precisava nem dizer a razão para a minha alma estar assim, não é?
Depois de ter me tornado uma chacota entre os idiotas que se diziam estudantes, não
existia uma partezinha sequer do meu ego que não estivesse ferida.
Claro que, após o discurso e as ameaças do meu pai, vulgo reitor daquele inferno, eles
estavam mais “pianinho” comigo. Não queriam perder a vaga de estudo em uma das melhores
universidades do país. Porém, no fundo, eu sabia que continuavam me julgando internamente a
cada passo que eu dava por ali, mesmo que nada pudessem fazer, nem soltar uma piada, nem dar
um risinho sequer. Nada.
Eu conseguia enxergar através dos olhares deles, disfarçados de indiferença. Sim, eu via as
piadas. A chacota. A estúpida vontade de rir da minha cara.
Era um saco.
Para completar o meu total estado de decadência naquela manhã patética, ainda tinha a dor
de cabeça diabólica que não me deixava em paz.
Tudo culpa dela, tudo culpa da Rayka!
Que ódio, viu?
“Ô, meu anjo, foi você quem decidiu pesar a mão na cerveja, mesmo sabendo que tem o
estômago mais fraco do que coice de grilo.”
Foi o que disse o imbecil do meu subconsciente.
Argh.
Girei as orbes.
Tudo bem, tudo bem! Eu tinha consciência de que eu (eu, eu, eu) decidi pesar a mão na
bebida e de que eu (eu, eu, eu) continuei bebendo, mesmo quando ela disse que era melhor eu
parar. Maaass, mesmo assim, a culpa ainda era dela! Toda dela! Eu não estaria com essa dor de
cabeça encomendada e preparada pelo diabo, se ela não tivesse chegado com a porcaria do
estoque inteirinho de cerveja ruim e barata, do supermercado.
Droga!
Massageando as têmporas, irritada, e fazendo a minha melhor cara de antipatia para
qualquer um que cruzava o meu caminho, me sentei na cadeira da primeira mesa mais reservada
que eu vi no Centro de Convivência.
Apesar dos pesares, eu tinha algo importante para fazer antes do início da aula... Quero
dizer, não, importante não... Também não vamos colocar importância onde não tem. Era, na
verdade, algo incomum, que estava mexendo com a minha curiosidade e que, por isso, eu tinha
que colocar logo em pratos limpos. Ou, então, cortar logo o mal pela raiz.
Tirei da minha bolsa, caderno, caneta e o tal bilhete misterioso que caiu nas minhas mãos
por causa do trabalho maluco da tia Daisy. O papel ainda estava amassado, por eu tê-lo enfiado
de qualquer jeito, no bolso da roupa, enquanto falava com a Rayka.
Suspirei, abrindo-o mais uma vez.
Sei lá, mais uma vez não. Pela milésima vez.
Eu já tinha lido aquela bobagem vezes sem conta, como uma idiota, sem nem saber o
motivo. Parecia que algo, dentro de mim, ridiculamente amolecia, a cada vez que eu relia aquilo
que nem era grande coisa.
Ora essa, o bilhete era só...
Duas verdades: a galera dessa universidade é idiota e você é linda pra caralho.
Ninguém pode fazer você se sentir inferior sem o seu consentimento. Ouvi essa frase uma
vez e achei irada. Acho que é da Eleanor Roosevelt. Ou sei lá.
O fato é que tu é foda, garota. E eu me sinto a pessoa mais sortuda por estar fazendo esse
trabalho com você.
Mesmo que eu tentasse me convencer de que não era grande coisa, ou de que não era
especial (meu subconsciente, porém, gritava: é especial sim!), eu não fazia ideia de quem
poderia ter escrito isso para mim. Afinal, não existia um cara decente naquela porcaria de
universidade, muito menos na minha turma de Literatura.
E aquilo ali, tinha cara de ter sido escrito por algum garoto.
Ainda ergui o rosto brevemente, observando os perdedores que caminhavam pelo Centro
de Convivência. Fitei cada um deles, mas, quanto mais eu olhava, menos parecia fazer sentido.
Embora fossem universitários, era impossível que, os mesmos que riram e fizeram piadinhas de
mim, tivessem a capacidade cognitiva de juntar palavras de bom tom.
E, bem, ainda que eu quisesse acreditar que aquele bilhete não era grande coisa, se eu
fosse realmente sincera comigo mesmo, poderia admitir que tinha um traço de gentileza nele. O
problema era que... Não existiam garotos gentis e interessantes ali.
Ou o cara que estava fazendo o trabalho comigo era um alienígena visitando Miami ou
isso era mais uma brincadeira de mau gosto.
Trinquei os dentes apenas por cogitar a possibilidade, muito plausível, de que fosse mais
alguém tirando onda com a minha cara, embora a tia Daisy tivesse me garantido que não mais
fariam isso no trabalho da sua disciplina.
Com a mão pesada, na mesma intensidade das minhas paranoias, abri o meu caderno e
escrevi uma resposta ao bilhete.
Arranquei o pedaço do papel, dobrei e, na frente, coloquei “para Maverick”.
Seja lá quem diabos fosse Maverick ou o que isso significava.
Porém, no instante em que abri a bolsa e fui colocar o meu material de volta, para ir ao
purgatório, digo, à sala de aula, Brittany surgiu ali, de repente.
— Ai, Vic, você sumiu! — foi a primeira coisa que ela disse, berrando e me fazendo dar
um pulo de susto. — Eu te liguei umas quatrocentas mil vezes, mandei um milhão de mensagens
e passei o dia inteiro batendo na porta do seu quarto, mas você simplesmente ficou enfurnada lá,
como um morcego numa caverna! — soprou. — Quê que cê tá precisando, benzinho? —
choramingando, ela se aproximou. Sentou-se ao meu lado e já foi logo me abraçando. — Um
chazinho detox? Uma manicure em Bal Harbour? Uma bota da Gucci? — e quanto mais falava,
mais me apertava.
Argh.
Revirei os olhos.
Nunca fui fã de muito contato físico.
— Sai pra lá, Britty! — retruquei, empurrando-a de leve. — Eu estou bem, estou bem!
Não, eu não estava bem, mas eu também não curtia aquele negócio pregado demais,
mesmo que ela fosse a minha melhor amiga.
A garota, por sua vez, afastando-se de mim, ergueu uma das sobrancelhas, me encarando
de um jeito meio atravessado, sisuda.
— É... Pelo visto, está bem mesmo... Não quer nem um abracinho, sua ingrata! —
dramatizou, fazendo bico. — Mas, enfim... — suspirou. — Já voltou mesmo a ser a Victoria
indestrutível e esnobe?
Empinei o nariz, orgulhosa.
— Não vou ficar gastando as minhas preciosas lágrimas com os idiotas daqui. Se for para
chorar, que seja por algo que realmente vale a pena.
Me encarando com admiração, ela balançou um sim com a cabeça.
— Ai, você é inspiradora, gata! Que mulher, meu Deus! Que mulher! Vem cá, me dá um
beijo! — e, brincalhona, fez que ia me agarrar.
— Sai fora...! — zoei, rindo.
Dando uma risadinha, ela replicou:
— Fico feliz que você não se deixa abater por esses fracassados. E, mesmo que já esteja
melhor, você sabe, né? Eu tô contigo pra tudo! Do seu pé, eu não saio.
Sorri.
— Eu sei, sim... Obrigada, Britty.
— Inclusive... Sabe quem me ligou ontem? A Keisha do SPA! — disse ela, toda
empolgada. — Parecia até que estava adivinhando a merda que aconteceu nessa universidade
ontem. Ela falou que estão com novidades por lá. Acho que a gente tá merecendo marcar um
SPA, hein? Não importa quantas milhares de vezes nós fomos no mês passado, estamos
precisando agora! Urgentemente.
Suspirei.
— Tem razão... Pode marcar. — respondi. — Vou pedir duas horas seguidas de massagem
tailandesa. Minhas costas estão me matando!
— Aaaai! — deu um gritinho entusiasmado. — Isso é tão rufus!
Franzi o cenho.
— Que diabo é rufus, Britty?
— É a minha nova gíria! Tipo, legal, demais, irado... Se liga? Ah, você sabe, né? Sempre
que eu invento essas coisas novas, o pessoal sai falando por aí... — soltou uma risadinha. —
Então, pode espalhar! Isso é tão rufus!
Pelo amor da deusa...
A Brittany não tinha mais com o que perder o seu tempo mesmo. Eu não sabia como ela
conseguia pensar nessas bobagens.
Porém, antes que eu pudesse perguntar se ela estava chapada com um dos baseados do seu
ex, quando inventou aquilo, Brittany, elétrica, já foi logo emendando outro assunto.
— Tá, olha só isso aqui... — puxou o celular da bolsa. — Você não vai acreditar, mas o
Bradley... Você sabe, né? O Bradley, que está quase se formando agora e que é filho do dono de
uma das melhores casas noturnas de Palm Beach, vai dar uma festa in-crí-vel lá, em
comemoração à sua formatura. Não é todo mundo daqui que foi convidado, óbvio. Apenas os
melhores dos melhores vão! Da nossa turma, ele convidou apenas você e eu... Esse aqui é o
convite... — apontou para o aparelho telefônico. — Vai ser daqui a dois dias. E a gente vai, não
vai, amiga...?! Por favorzinho...! — quase choramingou de novo, como uma criancinha que pede
aos pais para ir ao parque.
Entortando as sobrancelhas, encarei a tela que ela me mostrava.
Bom, eu conhecia o Bradley. Era um dos carinhas mais populares da universidade.
Estudava Artes Plásticas e realmente estava a um passo de concluir o curso. Nós já tínhamos
ficado uma vez, mas, felizmente, ele não era do tipo insistente. Quando eu disse que não estava
mais a fim, ele não me incomodou. Sendo sincera, ele até parecia legalzinho, pelo menos durante
o tempo que tivemos uma convivência mais próxima. Também não reparei se ele estava no
Centro de Convivência, quando tudo aconteceu, ou se era um dos imbecis que estavam rindo de
mim, mas...
— Ah, você vai, Brittany, eu não... — torci o nariz. — Não estou com a menor vontade de
ir para festas por enquanto. É só mais uma chance de cruzar com os idiotas que estudam aqui, e
já basta o horário de aulas em que eu preciso suportar a cara dessas pessoas.
Em choque, as sobrancelhas da garota arquearam.
— Como assim...?! Eu já falei que, da universidade, ele convidou pouquíssimas pessoas!
A maioria da galera que vai estar lá é desconhecida. Além do mais... — suspirou. — Não posso
acreditar que a grande Victoria Peterson está recusando uma festa. Você nunca recusa festas,
porque sabe que é uma presença ilustre!
“A grande Victoria Peterson”.
Brittany era uma safada... Ela sabia que o adjetivo “grande”, antes do meu nome, era um
ponto fraco para mim.
Suspirei e passei a língua entre os lábios.
— Olha só... Não adianta começar a me bajular, só para eu ir, porque não vai rolar. Já
disse, Britty. Não estou em clima de festa, depois do que houve. Preciso colocar a cabeça no
lugar, antes de qualquer interação social mais intensa. Sei que sou maravilhosa, não precisa
dizer, só que, dessa vez, a minha presença ilustre não vai aparecer por lá.
— Mas... — soprou o ar, quase indignada. — Onde está a garota que acabou de me falar
que está bem? Não foi você quem disse que não ia mais derramar as suas preciosas lágrimas com
os idiotas daqui? Tá na hora de dar a volta por cima, começando por essa festa! É uma ótima
oportunidade de você aparecer linda e poderosa, se divertir, e... — repentinamente, Brittany
parou, se perdendo nas palavras, ao olhar para determinado ponto atrás de mim. Enruguei a testa
sem entender. E eu já ia perguntando o que estava acontecendo, quando ela fez o favor de
completar. — Opa, opa, opa... Olha só quem tá chegando...! — mordeu o lábio inferior, sem nem
piscar os olhos, com uma incrível cara de safada.
Quando girei o rosto, na exata direção que ela observava, eu vi. Não precisei de mais que
meio segundo para entender ao que Brittany estava se referindo.
Acompanhada de uma garota loira com mechas cor de rosa no cabelo, uma tal de Alyssa
da turma de Literatura, ela entrou no Centro de Convivência. Vestindo uma camisa preta de
manga curta com os botões abertos, uma camiseta branca e justa por baixo, calça e botas de
combate que completavam o seu visual masculinizado, caminhava com uma das mãos no bolso e
a outra na alça da mochila de couro preta, enquanto conversava com a menina. Ora sorria para
ela, aquele sorrisinho de pretensão que sempre me dava nos nervos, ora jogava os cabelos curtos
para um lado exibindo a parte raspada por baixo.
Rayka.
Tão convencida, tão intragável, tão... Charmosa.
Não, pera.
Balancei a cabeça em negativo, rapidamente, franzindo o cenho para mim mesma.
Tão esquisita.
Sim, isso sim, Victoria.
Esquisita... Não se esqueça.
— Porra... — ouvi quando Brittany falou. — Eu me casava com essa menina.
Rolei os olhos, em puro ranço, girando o rosto de volta para Britty.
— É... Você tem o costume de pegar qualquer lixo mesmo, né...? Zero criteriosa.
— Ah não, calma aí...! Lixo?! — exclamou, me encarando, quase consternada. — Não,
amiga, você deve estar com o olho no cu para dizer isso a respeito da Rayka. A garota é um
evento. Você tem o dever de admitir que ela é, sim, a maior gata!
Maior gata...?
Pelo amor da deusa das líderes de fraternidade completamente femininas e
heterossexuais, da onde que a Rayka era a maior gata? Ela podia ser até bonitinha... Razoável.
Um sete, numa escala de zero a dez. Mas, “maior gata” não.
Dei uma bela careta para Brittany e, então, fazendo um esforço sobre-humano (porque,
obviamente, por vontade própria, eu não olharia assim para ela), fitei a caminhoneira do outro
lado do Centro de Convivência, em puro desdém.
Sinceramente... Eu não sabia de onde a Brittany tirava tantos adjetivos.
Só por causa daquelas combinações com roupas de garoto que ela fazia? Eu, certamente,
era muito mais estilosa do que ela. Ou por causa dos seus cabelos curtos, com um lado raspado
por baixo, que ela ficava jogando de um lado para o outro? Pelo amor da deusa, isso foi
tendência das sapatonas do verão passado. Já tinha saído de moda. Ou... Ou por causa dos
olhos escuros? Não. Nada demais. Eram castanhos. Nenhum atrativo.
No momento em que eu já ia virando o rosto, porém, Rayka de repente riu para a garota
com mechas cor de rosa, ao seu lado. E então... Eu vi. Eu vi algo que talvez não quisesse ver. Ou
que eu me forçasse a não ver por... Medo... Medo do que ia sentir. O rosto afilado, apesar do
queixo bem-marcado, o nariz empinado, os lábios cheios, o maldito piercing de argolinha no
cantinho inferior que, vez por outra ela passava a língua, e... A boca estupidamente bem
desenhada.
Foi quando o meu subconsciente sussurrou nos meus ouvidos...
“Você sabe que ela é linda, Victoria, e que continua tão linda quanto você achou, no
verão de dois anos atrás, em North Beach, depois do...”
Não!
Acordei.
Que droga.
Por quê, ultimamente, eu não parava de pensar nessa bobagem de North Beach?!
Bufei.
E, girando para Brittany, retruquei, aborrecida comigo mesma:
— Olha só, não tem nada demais, tá? É só uma sapatão que se veste de um jeito esquisito.
No mesmo segundo, porém...
— Hahahahahaha, até parece! — a garota gargalhou na minha cara. — Eu vi o jeito como
você olhou pra ela agora. Não precisa dizer mais nada! Só por essa sua cara de idiota, com a
babinha escorrendo no canto da boca, já deu pra perceber que você acha ela muito gata mesmo!
Limpa aqui ó... — zoou, tocando o meu queixo.
— Ai, sai pra lá... — ralhei, me afastando de súbito. — Para de viajar, garota. Eu tenho
mais o que fazer do que ficar achando bonita uma menina como a Rayka — e empinei o nariz,
como se isso não me afetasse de nenhuma forma.
Por dentro, porém, eu ainda revirava os olhos para mim mesma, pensando no quanto eu
estava me tornando uma vagabunda desmiolada, por deixar que os meus pensamentos me
traíssem tantas vezes seguidas, desde que aquela miserável voltou à Miami. Rayka não podia ter
tanto controle assim da minha mente.
Não. Podia.
— Unhum, sei, sei... — Brittany replicou com aquele sorrisinho de quem não acreditava
em absolutamente nenhuma palavra que eu dizia. — Se você quer dar uma de orgulhosa, eu só
lamento — balançou os ombros. — No meu caso, amiga, juro pra você que eu dava pra ela até
morrer desfalecida em cima de uma cama! E, depois de morrer, eu ressuscitava só para dar de
novo. Aliás, como é que pode eu estar com o ouro, dentro de casa, e ainda não ter falado direito
com ela? Precisamos fazer isso agora! — e, de supetão, sem qualquer aviso prévio, a maluca
simplesmente me puxou pelo braço, fazendo me levantar mesmo que eu não quisesse.
Quando dei por mim, nós já estávamos caminhando rumo à sapatão.
Minha boca ainda abriu e fechou por umas quinze vezes seguidas, sem que eu acreditasse
na capacidade absurda da Brittany de ser uma maníaca.
Não... Não, não, não, não!
— Brittany, sua cachorra, para de ser maluca! — berrei, enquanto tentava travar as minhas
pernas.
As minhas tentativas, porém, eram completamente frustradas, porque ela continuava me
arrastando, como se não houvesse amanhã, por entre os outros ao nosso redor. Para completar,
ainda devolveu:
— Você é chata demais, porra! Quem vai dar em cima dela sou eu, não é você, não. Então,
relaxa, Polly Pocket!
Argh, que droga.
Eu não sabia o que era pior.
No fundo, de alguma forma, ainda que isso fosse bizarro demais e completamente sem
nexo, quando Brittany mencionava qualquer coisa sobre dar em cima da Rayka, um negocinho
estranho pinicava nas pontas dos meus dedos, subia pelos braços, e parava no peito.
Era esquisito, era estranho. Era um saco!
Quando dei por mim, no entanto, antes que eu fizesse algo mais para impedi-la, fui
praticamente empurrada para cima da sapatão, dando de cara com ela quase literalmente.
Era oficial: eu ia matar a Brittany!
No mesmo instante, Rayka me fitou e, surpresa, ergueu as sobrancelhas. Claro, se nem eu
esperava por aquilo, quem diria a filha de satã. Mesmo assim, um sorriso logo brincou em seus
malditos lábios cheios.
— Hey...! E aí?! — disse ela, simpática, como se não percebesse a presença de mais
alguém além de mim, nem mesmo da Brittany que estava bem ao meu lado. Seus olhos cravaram
nos meus. — Como você tá? Tá melhor? Você... — franziu o cenho. — Você se trancou no
quarto e não saiu mais, depois que a gente se falou ontem. Tá tudo tranquilo?
Ah...
Suspirei, inconscientemente.
Ela estava preocupada mesmo...?
Por um segundo de breve lapso mental, eu quis sorrir que nem uma idiota.
Porém...
Logo caí na real, me dando conta de que só podia ter algo de muito errado mesmo comigo,
ultimamente. Pisquei os olhos algumas vezes, pigarreando a garganta. Para de ser imbecil,
Victoria, você é uma Peterson e a imbecilidade não faz parte de quem você é! Tentei repreender
mentalmente a mim mesma e, erguendo o queixo, sob o meu melhor e maior olhar de esnobe,
falei, como se não tivesse acabado de tremer nas bases por ela:
— É claro, né, idiota? Depois daquela cerveja horrível e podre que você me deu, eu
precisei de um tempo para me recuperar.
Na real, eu precisei de um tempo para me recuperar de North Beach.
Isso sim.
Droga.
— Eu falei pra você pegar leve, né?
Revirei as orbes, sem paciência para sermões, e...
— Que seja... — desconversei. — Tô aqui, porque...
— Oi, amor! E aí, tudo bem...?! — Brittany, de súbito, me interrompeu, praticamente me
enxotando para o lado, enquanto tomava a minha frente e o campo de visão da Rayka, que agora
finalmente percebia a sua presença. Óbvio, Brittany estava quase metendo uma melancia na
cabeça, para não passar despercebida. — Me disseram que você voltou em definitivo para
Miami. Eu adorei a notícia, sabia? Seja bem-vinda.
E eu percebi...
Eu percebi muito bem o instante em que a safada da Rayka, de uma vez por todas, notou
realmente que Britty estava bem ali. Aliás, não somente ela, mas também os seus peitos. Brittany
os empinou propositalmente, enquanto os olhos da sapatilha a encaravam de cima a baixo e, por
alguns instantes, se concentravam especificamente no volume da blusa.
Soltei o ar pelo nariz, quase balançando a cabeça, enquanto sentia um gosto amargo
subindo pela minha garganta.
Típico.
Essa idiota não perdia uma chance. Ela aproveitava qualquer mínima oportunidade de uma
garota dando mole.
— Gostou, foi? — sorridente, daquele jeitinho disfarçadamente sacana, que eu tão bem
conhecia, disse ela.
— Ah, sim, claro! Eu adorei...! — empinou ainda mais busto. Rayka olhando nessa
direção de novo. Dessa vez, não me segurei. Revirei mesmo as orbes. — A gente podia até
marcar uma saidinha pra, você sabe, se enturmar e tal — soltou uma risadinha. — Inclusive...
Vai ter uma festa ma-ra-vi-lho-sa, daqui a dois dias, em Palm Beach. Victoria e eu vamos. Quer
ir com a gente?
Não, pera aí.
Travei na mesma hora que ouvi isso.
Brittany estava mesmo convidando a Rayka para ir à festa... Com ela?!
— Ah, sério? — ridiculamente interessada, Rayka arqueou as sobrancelhas. — Em Palm
Beach? Que irado! Eu tô realmente a fim de uma festa.
— Pera aí, pera aí, pera aí... — sem pensar duas vezes, coloquei a mão entre elas e me
intrometi. — Querida... — forcei um sorriso para Brittany. Minha mandíbula, no entanto, estava
trincada. — Você sabe que a lista de convidados para essa festa é altamente restrita, não sabe?
Não é qualquer pessoa que vai poder entrar lá... — e, sem disfarçar, encarei Rayka de um jeito
meio atravessado.
Claro que quando eu dizia “qualquer um”, eu estava me referindo a ela.
— Ah, amiga, imagina! Que bobagem! O Bradley é milionário... Ele tranquilamente tem
dinheiro para bancar mais uma pessoa, além da lista de convidados — soltou uma risadinha
dando de ombros, como se o problema fosse apenas esse.
Que droga, eu merecia mesmo.
E o pior: era terrível ter que admitir a mim mesma que o meu incômodo não era com
outra coisa além do fato de que Rayka estava, claramente, recebendo um convite, bem debaixo
do meu nariz, para foder a minha amiga, sendo que não era para eu sentir nada além de uma
completa e imensa indiferença!
Afinal, era só a Rayka! Ninguém importante!
Mas...
Passei a língua entre os lábios, segurando o veneno que já queria escapar e...
— Querida... — falei entredentes. — Não é questão de dinheiro, é questão de amizade!
Acorda, Brittany. É uma festa em comemoração à formatura do Bradley, apenas para pessoas
próximas, amigos e familiares.
Brittany, por sua vez, gargalhou, como se eu tivesse dito alguma piada.
— Amiga, não é festa em buffet, é uma balada! — replicou ela, brincalhona. — Tenho
certeza de que, se eu falar com jeitinho, Bradley vai conseguir uma entrada para a Rayka... — e,
faceira, soltou uma piscadinha para ela, recebendo de volta um sorriso cheio de intenções.
Miseráveis.
Rayka, por sua vez, o demônio de tatuagem, percebendo que eu estava odiando aquela
ideia, sorriu sarcástica para mim, daquele jeitinho que ela tinha prazer em fazer porque sabia que
sempre me dava nos nervos.
— Poxa, Vic... — em um tom claramente irônico, retrucou ela. — Não vejo a hora de
sairmos juntas, para uma social à noite, como amigas, em nome dos velhos tempos.
Estreitei os olhos em sua direção, involuntariamente. A entonação que ela colocou
naquelas palavras e a ênfase em “como amigas” e “em nome dos velhos tempos”, não me fez
pensar em outra coisa a não ser naquilo.
Amigas.
Velhos tempos.
Ironia.
Eu sabia do que aquela safada estava falando, porque Rayka ainda se lembrava tanto
quanto eu.
North Beach.

RAYKA

Victoria me evitava.
Me evitava como se eu tivesse a porra de uma doença contagiosa.
Claro que eu ainda soltava uma brincadeirinha ou outra para encarar na esportiva. Era uma
forma de não levar para o coração o fato de que a garota preferia ter por perto o satanás de saia
em vez de mim. No fundo, bem no fundo (tá, tá legal, talvez não precisasse ir tão fundo assim),
porém, eu só queria que Victoria gostasse da minha companhia tanto quanto eu curtia a dela,
porque, cara, sei lá, a gente tinha tudo para se dar bem, mas... Talvez isso fosse sonhar alto
demais.
Depois do convite e dos flertes descarados da Brittany, Victoria balançou a cabeça em
negativo e saiu de perto de nós, como se fosse boa demais para escutar uma sapatão sendo
chamada para sair por uma das suas amigas patricinhas. Talvez, para ela, patricinhas e sapatões
fossem tipo dois planetas que nunca deveriam se chocar, porque ia contra a ordem e o regimento
do universo.
Uma grande besteira.
Até onde eu sabia, Brittany era bissexual. Pelo menos, não era como as hétero-curiosas da
fraternidade que só queriam experimentar como era ficar com uma desfem porque parecia “um
menino”.
Segui com Alyssa direto para a sala de aula, que já estava cheia. Alguns sentados, outros
de pé, conversando, enquanto a minha mãe não aparecia. Deixamos os nossos celulares no tal
baú, seguindo a regra sumariamente estipulada por John Ferris, e procuramos um lugar para
sentar.
Ainda dei mais uma olhada ao redor, enquanto colocava o meu material em cima da
carteira. A enjoadinha estava do outro lado da sala, na ponta oposta, junto com a amiga. Apesar
do seu olhar esnobe, misturado com o nariz empinado, como se ainda estivesse “meio
atravessada” com a amiga, Brittany a puxava e a cutucava, soltando brincadeiras e gracinhas que,
aos poucos, fizeram Victoria começar a rir.
Ela girava as orbes e sorria. Balançava a cabeça, tentando se fazer de difícil, mas, pouco
depois, já estava rindo para a outra garota de novo.
Victoria era dura na queda, mas, de alguma forma, que eu nem sabia explicar direito, ela
tinha, apesar dos pesares e do tanto que era chata, um bom coração. Sim, ela tinha. Mas,
escondia toda a parte boa atrás da máscara de autossuficiência e arrogância. Talvez fosse uma
forma de se proteger de alguma coisa que só ela sabia.
Ontem, foi um ponto fora da curva. Ela conversou comigo e, por alguns minutos, se abriu
de uma forma que raramente acontecia. A gente não conversava assim há muito tempo. Ou
melhor, a gente nunca tinha conversado assim, porque ela sempre fugia de qualquer
proximidade.
Mas…
Mesmo que Victoria tivesse fugido mais uma vez de mim, e se trancado no quarto pelo
resto do dia, ou mesmo que não tivesse ao menos me respondido, quando bati na sua porta para
saber se ainda estava viva, era bom vê-la voltar a sorrir depois do houve na universidade.
Victoria não era fraca. Nunca foi. Ela era uma fortaleza. Apesar de toda a coisa frescurenta
de mulher patricinha, cheia de firulas, eu nunca tive dúvidas de que ela era uma das garotas mais
valentes que eu já conheci. E se, às vezes, não baixar a cabeça para ninguém parecia um defeito
seu, era também uma qualidade.
Victoria era foda, no positivo e negativo sentido da palavra.
Era forte.
E, claro, linda.
Completamente linda.
— Nossa... A soldada foi baleada de novo... — ouvi Alyssa, ao meu lado, falar.
Foi quando pisquei repetidas vezes, acordando de repente e desviando o olhar.
Puxei o ar, passando uma das mãos nos cabelos, meio sem jeito, e mexendo nas coisas em
cima da minha carteira, para disfarçar.
— Quê... Quê o que...? — tentei desconversar. — A mãe tá demorando pra aparecer, né?
Estranho.
A loira riu.
— Não muda de assunto, gatinha... — ironizou. — Eu percebi, tá? Não para de viajar,
olhando para a princesinha do outro lado da sala. Aliás, você ficou meio aérea, desde que ela se
aproximou da gente no Centro de Convivência. Sei que pouco se importou com a Brittany.
Joguei o cabelo para um lado, como um reflexo da minha breve inquietação comigo
mesma. Ela tinha razão, porra. A menina me deixava meio lerda demais. Suspirei. Talvez eu só
ainda não estivesse acostumada a conviver com a Victoria todos os dias. Era só questão de
hábito.
Apenas isso.
Só isso.
— Nada a ver, pô... — me fiz de desentendida. — Impressão sua.
— Impressão minha? — ergueu as sobrancelhas. — Você não sabe nem mentir. Agora, se
tivesse um pau entre as pernas, teria mais chances — soltou uma risadinha. — Ainda é
apaixonada por ela, né?
Sério que a Alyssa queria entrar nesse assunto?
Rolei os olhos, já cansada do papo.
— Nunca fui.
— Nem depois que ela te beijou em North Beach e você passou dias chorando no meu
ombro, como uma otária, porque Victoria te deu um fora e você precisava ir embora para o
intercâmbio sem receber mais nem um beijinho dela?
Caralho.
Me irritei, apenas com a breve menção a essa merda. E, sem pensar duas vezes, parti para
cima da Alyssa, agarrando a sua blusa firmemente entre os meus dedos e cravando os olhos nos
seus.
— Não repete isso — retruquei, entredentes, quase pausadamente para que me fizesse
clara. — Se alguém daqui ouvir, eu acabo contigo, Alyssa!
Dessa vez, foi ela quem girou as orbes, suspirando.
— Tá legal, tá legal... Relaxa! — devolveu, empurrando a minha mão e ajeitando a blusa
amarrotada. — Não está mais aqui quem falou.
— Acho bom.
Filha da puta.
Depois disso, não demorou mais que meio segundo para que a minha mãe aparecesse ali,
carregando os seus livros e pincéis de lousa.
Amém.
— Bom dia, bom dia! Como estão? — disse ela, toda animada, aparentemente já
recuperada do último incidente na universidade. — Que manhã maravilhosa, não? Estou sentindo
ótimas vibrações!
Aquele jeitinho dela, espiritualizado até demais, arrancava risos da galera.
— Namastê, professora! — um dos engraçadinhos do fundão falou.
Ela sorriu para ele.
— Namastê, querido! — radiante, respondeu. — Já que você está tão comunicativo, que
tal começar lendo o texto da página 247 para todos nós? Vamos dar uma passeada pelas
principais obras de Shakespeare.
Ao longo das três horas de aula, lemos uma série de textos de Shakespeare que eu
honestamente amava. Ele foi um dos autores que me inspirou a cursar Literatura na universidade.
Ou seja, o tempo pareceu voar, naquela manhã. Isso sem falar no fato de que a minha mãe era
muito divertida, o que tornava a aula ainda mais leve e interessante.
Por isso, confesso, não foi difícil parar de reparar, como uma idiota, na existência da
Victoria. A garota também não abriu a boca para dizer nada durante a aula. Calada estava, calada
ficou. Ou seja, isso ajudou. Os textos, as explicações e as discussões mantiveram a minha
atenção, o que foi ótimo para evitar que Alyssa falasse mais besteiras.
Porém, como nem tudo na vida durava por muito tempo...
Lá pelo fim da aula, perto do intervalo, quando a explicação do conteúdo acabou e a
minha mãe entregou as notas do último teste que a turma fez, algo aconteceu.
Foi impossível não notar, porque, de todos os semblantes da Victoria, aquele eu quase
nunca vi. Não era exatamente tristeza, como quando espalharam a sua foto, estava mais para
frustração, decepção. Uma enorme frustração consigo mesma. Logo consigo mesma... Ela que
sempre parecia tão autossuficiente a respeito de tudo.
Foi exatamente o que estampou o seu rosto, no momento em que chegou a sua vez de
receber a nota.
Eu não tinha feito aquele teste, porque cheguei na universidade há dois dias, mas eu notei
o grande e vermelho C no cabeçalho da folha, quando ela ergueu a folha para mostrar à Brittany.
Porra...
Victoria era muito inteligente e muito estudiosa também. Ela sempre era o primeiro lugar
em tudo o que fazia, fosse nas notas das provas, nos cursos, ou nos concursos de Artes Plásticas.
Até nas coisas que, teoricamente, poderia ser ruim, ela ainda conseguia ser boa.
No entanto, não ironicamente, aquela parecia ser a sua fraqueza, Literatura, porque, claro,
ninguém nunca conseguia ser absolutamente bom em tudo. E não ser bom em tudo é
completamente normal. Eu até poderia imaginar que aquela nota era um caso isolado, uma infeliz
coincidência, mas... Pela sua cara, não era como se fosse algo pontual. Parecia ser frequente,
desde o início da disciplina.
E não precisou mamãe lhe dizer nada para que ela claramente se sentisse, na merda, só de
ver a nota.
A sua cara já dizia tudo.
Victoria era das Artes Plásticas, e, ainda que a literatura fosse um tipo de arte, eu não
duvidava de que ela se matriculou naquilo apenas para cumprir tabela e preencher os créditos que
precisava para se formar, mesmo que não tivesse afinidade alguma com a disciplina, iludida de
que se daria bem só porque era a matéria que a mulher do seu pai ensinava.
Depois disso, a garota passou todo o restante da aula meio cabisbaixa, por causa da nota.
E, mesmo que eu não tivesse obrigação nenhuma de me importar com isso ou de fazer qualquer
coisa por ela, eu ainda me senti, sei lá, impelida a ajudar. Sim, eu ainda era idiota o bastante para
sentir vontade de dizer ao menos “hey, eu posso te ajudar, sou boa nessa porra”.
O problema era que... No mundo real, Victoria não dava a mínima para o que eu falava.
Ela não aceitaria a minha ajuda, porque era muito orgulhosa para isso.
Mas, eu me lembrei...
Eu repentinamente me lembrei, como um sinal, um aceno do universo para que eu não me
esquecesse de que estava com a faca e o queijo na mão. Me lembrei de algo que fazia uma
intersecção entre o mundo real e o mundo paralelo, onde Victoria poderia conversar comigo sem
tentar fugir.
Os bilhetes.
Sim, a porra dos bilhetes.
Talvez aquela merda fizesse parte de um universo paralelo onde eu poderia me comunicar
livremente com ela. Sem receio, sem julgamentos, sem levar um fora.
Foi por isso que, quando a aula acabou e eu guardava minhas coisas na mochila, enquanto
Alyssa me esperava para sairmos juntas, falei displicentemente, para que ela não desconfiasse de
algo:
— Pode ir... Me encontro contigo lá fora.
A loira franziu o cenho.
— Não vai lanchar agora?
— Não, pode ir na frente... Vou falar com a minha mãe — aproveitei que ela ainda estava
organizando seu material na mesa, para soltar a desculpa. — Daqui a pouco eu chego lá no
Centro de Convivência.
— Tá bom então... A gente se vê — acenou com a mão, já se virando para caminhar para
fora da sala.
Não que aquilo fosse um segredo de Estado, porque realmente não era, desde que não se
espalhasse por aí a informação de quem era a minha dupla. Alyssa também era minha amiga e
sabia tudo sobre mim, só que… Eu queria que aquele momento de leitura e resposta dos bilhetes
fosse só meu e da Victoria, mesmo que a patricinha não soubesse disso, nem fizesse ideia de que
Maverick era eu.
Depois que a loira sumiu dali, tudo o que eu precisei fazer foi esperar.
Esperar para que todos dessem o fora.
Esperar para que a minha mãe fosse embora.
Esperar para que a própria Victoria saísse.
E, então, alguns minutos mais tarde, quando olhei ao redor, só havia eu ali.
Era a hora. Era agora.
Era meio ridículo que eu estivesse me sentindo assim, mas, sei lá, percebi o momento em
que as batidas do meu coração aumentaram numa espécie de ansiedade, quando pensei: “será
que ela já tinha me respondido?” e “que diabos será que ela me respondeu?”
Porra...
Estalei a língua no céu da boca, balançando a cabeça em negativo para mim mesma.
Era a Victoria, cara.
A Victoria.
Não crie qualquer tipo de expectativa, Rayka. Apenas não crie.
Assim, caminhei até a caixa de correspondências e abri. A quantidade de cartas e bilhetes
me surpreendeu. A galera da turma estava mesmo se engajando no trabalho. Por um segundo,
achei que não tinha nada para mim naquele bolo de papéis. Porém, ainda fucei por ali, buscando
alguma coisa que tivesse a ver comigo.
Foi quando eu vi... Travei. Subitamente travei por alguns segundos. O coração subindo
para a boca, mesmo que eu não quisesse.
Lá estava... Escrito com uma letra tão bonita e bem desenhada.
“Para Maverick”.
Puxei o ar, piscando e tentando retomar a compostura.
Não seja tão ridícula, Rayka... Pensei comigo mesma, enquanto fechava a caixinha e, sem
tirar as orbes cravadas no bilhete, voltava a passos largos e rápidos para o lugar onde fiquei
durante a aula.
Mais ansiosa do que eu gostaria de estar, me sentei na cadeira, desdobrei o papel e...
Ninguém nunca viu um sorriso tão grande no meu rosto, quanto aquele que apareceu
enquanto eu lia as suas palavras.

“Senhor desconhecido,
Eu juro que, se eu descobrir que você está de gracinha comigo, corto todos os dedos das
suas mãos e quebro em pedacinhos as suas pernas, quando souber quem você é.
Mas... Se as suas palavras forem mesmo verdadeiras, eu vou poupar a sua tortura e ficar
surpresa por ver que alguém se salva no meio de tantos idiotas nessa universidade. Não fique se
achando, porque isso não é algum tipo de elogio ou sei lá, tá legal? Porém, o que você escreveu
me deixou escapar alguns sorrisos que eu com certeza não ia dar, caso não tivesse lido o
bilhete.
Então, valeu.
Não sei se sou uma boa dupla de literatura, porque, aparentemente, quando a deusa me
criou, ela botou toda a minha inteligência em tudo o que você possa imaginar, mas não deixou
nada para os livros. Ou seja, estamos ferrados, no que depender de mim.
Mesmo assim, se você continuar sendo agradável comigo, farei o possível para que a
gente se dê bem nessa porcaria de disciplina, nem que eu precise transplantar um cérebro.
Beijo,
Victoria.”

Espera aí.
Victoria foi simpática o suficiente para colocar “beijo” no final do bilhete?
Sorri ainda mais, num tanto que eu sequer podia esperar de mim mesma. Parecia bizarro,
mas era tão real. Um sorriso tão largo quanto todos os outros que se grudaram na minha boca,
desde que eu li a primeira palavra da sua resposta.
Um sorriso misturado com vontade de rir feito besta.
E, mesmo que eu quisesse parar, não dava, porque a minha boca simplesmente não se
fechava nem com muito esforço. Sei lá, eu estava rindo até da sua passivo-agressividade nas
entrelinhas, que não deixava de ser cômica, apesar de tudo.
Aquelas palavras a deixavam tão diferente e, ao mesmo tempo, tão igual à garota que eu
conhecia há quase sete anos. A passivo-agressividade misturada com humor era toda dela, claro.
O jeitinho de reclamar fazendo piada com a própria desgraça também. Maluca. Uma figura.
Mas...
O traço de simpatia, mesmo que ainda meio arredia, a pequena e quase imperceptível
gentileza e, claro, o diálogo, eram completamente incomuns para mim.
Raros.
Eu sabia que era arriscado seguir com as conversas paralelas que em nada tinham a ver
com o trabalho, porque uma hora ela descobriria que Maverick era eu. Mas, mesmo que as
consequências disso pudessem foder comigo e com a nossa relação completamente, tinha algo,
uma coisinha inquieta e frenética, cutucando o meu peito e me incitando a ir em frente com isso.
Minha razão dizia para eu parar, mas todas as minhas emoções só me faziam continuar,
porque...
Pela primeira vez, a gente ia conversar de verdade.
Agitada, numa empolgação tão esquisita quanto aquela situação como um todo, puxei meu
caderno e comecei a escrever.

“Ora ora, querida Victoria, ouso dizer que você terá de guardar as suas facas bem
afiadas. Os meus dedos continuarão nos seus devidos lugares e as pernas também, porque eu
asseguro, ou melhor, eu juro solenemente que todas as palavras que eu lhe disser nessas cartas
e bilhetes sempre serão verdadeiras.
É sério.
Sempre.
Inclusive, aqui vai mais uma verdade.
Vou te contar uma história.
Uma vez, eu estava assistindo aquele programa de prêmios chamado A Roda da Vida.
Você sabe, né? Aquele que passava depois das dez da noite no canal local. Bem, eu comprei uma
das cartelas do bingo numa banquinha da cidade, mais cedo, e fui tentar completar, durante o
programa.
Você acredita que eu marquei todos os números da minha cartela?!
Não, sério, acredita?!
Cara, foi o primeiro prêmio que eu ganhei na vida! Peguei uma cesta de pretzels na
emissora e levei pra casa hahahaha.
Só que essa não é exatamente a parte mais legal. O mais foda de tudo é que, desde então,
eu me tornei uma pessoa muito mais sortuda.
Mas, sabe qual o segredo para isso?
Bem, eu tenho certeza absoluta, ABSOLUTA MESMO (não venha me dizer que estou
viajando ok?), que foi a minha caneta da sorte. Assim, antes desse bingo, ela não era a minha
caneta da sorte. Mas, depois que eu marquei todos os números da cartela com ela, acabou se
tornando. Isso porque, eu juro, comecei a usar ela pra fazer provas, simulados, todas as merdas
desse tipo, e as minhas notas passaram a ficar melhores. Muito melhores.
TE. JURO.
Eu não tô mentindo. É sério mesmo.
Foi a caneta. Eu tenho certeza.
Então, percebendo o quanto a sua carinha linda ficou desapontada, depois de receber a
nota do último teste de Literatura, resolvi te dar esse incrível e maravilhoso presente, que é a
minha caneta da sorte. Foi mal pelo envelope ridículo, que eu fiz com uma folha de caderno,
mas foi o melhor que eu consegui para colocar a caneta e a carta juntas.
Enfim, estude e faça as provas, de hoje em diante, com a minha caneta da sorte, porque
eu tenho certeza que você vai mandar ver!
Ah, e cuida bem dela, tá legal? Ela é tipo como uma filha pra mim.
Ou seja, saiba que você já se tornou especial só por eu estar dando ela a você. Eu não
daria a minha filha para qualquer pessoa, é claro. Eu não faria isso por qualquer pessoa.
Somente por aquelas que eu sei que valem a pena.
E você, Victoria, vale a pena.
Beijo,
Maverick.
P.S.: O beijo que você me mandou foi exatamente onde? Na bochecha mesmo? Ou...?”
GENTE BONITA TAMBÉM SOFRE

“Nos meus sonhos, eu estou com ciúmes o tempo todo”


Porcelain | Moby

VICTORIA

Caneta da sorte é...?


Até parece.
Estava eu sentada na sala do meu digníssimo pai, na reitoria, convocada por ele,
esperando-o chegar, enquanto ria, há meia hora, feito uma estúpida, lendo aquela carta idiota e
segurando a bendita caneta.
Há quantos milhares de anos eu não ria assim com um cara ou por causa de um cara?
Isso estava mais para milagre do que para coincidência. Ou sei lá, uma milagrosa
coincidência, porque, honestamente, pelo amor da deusa das líderes de fraternidade
orgulhosamente solteiras e desacompanhadas, os caras estavam se tornando cada vez mais
chatos, sem senso de humor e imbecis. Ultimamente, eles só se preocupavam com o quanto
pareciam bonitos e ricos para pegar o máximo de mulheres que conseguiam de uma só vez e
levá-las para a cama.
Juro.
Entediantes.
Cansativos.
Sem sal.
A maioria deles não conseguia se encaixar nem em pelo menos dois requisitos da minha
humilde listinha mental de “o tipo de homem certo e perfeito para namorar, casar e ter filhos”.
Era terrível que nenhum cara, até agora, tivesse conseguido contemplar por inteiro uma listinha
tão modesta quanto essa. Minha avó era quem se frustrava mais. Nenhum candidato em potencial
à altura de uma Peterson.
Não que eu estivesse criando expectativas sobre qualquer bobagem, porque, meu amor, eu
era difícil demais para cair no papinho besta de qualquer um, assim como também não estava
achando que o tal do Maverick fosse algum tipo de alienígena diferenciado, ou, sei lá, um ícone
para a salvação da raça masculina. Na verdade, ele estava mais para um stalker psicopata, já que
notou até a minha vergonhosa nota baixa no teste de Literatura.
Mas...
Ao menos, a ideia da caneta foi original.
Divertida.
Sorri, balançando a cabeça de leve, e olhei para ela pela milésima vez. De tamanho
normal, prateada, cor de tinta azul. Bem comum. Mas, segundo o sociopata do Maverick, era a
“caneta da sorte”.
O pior era que aquele sorriso estúpido não saía por nada do meu rosto. Ridículo. Não era
só pela caneta boba. Era também pela história engraçada do bingo, pelo prêmio em forma de
cesta de pretzels, pelo jeito divertido como escrevia sobre qualquer coisa, pela imensa, notória e
brilhante cara de pau (sim, claro, tinha que ser MUITO cara de pau para falar sobre beijo com
Victoria Peterson, sem nem ter intimidade para isso), e, bem, pelo...
“Você, Victoria, vale a pena”
Por um instante, suspirei.
Se eu buscasse bem na memória, apesar de todo o ego de ser uma Peterson, eu não
conseguiria me lembrar da última vez em que me disseram isso. Na verdade, a maioria das
pessoas colocava uma faixa de “sujeitinha desprezível” no meu pescoço.
Bom, talvez nem existisse uma última vez, porque não houve a primeira. Talvez nunca
tivessem dito isso sobre mim, para mim.
Era novo.
Era bom.
Diferente e especial.
Mas...
Ah, Victoria, pelo amor da deusa, não seja tão idiota.
Era só uma carta boba. Nada demais. Maverick era só um maluco. Um maluco com papo
bom? Sim. Um maluco com papo bom, mas, ainda assim, um maluco. Talvez até estivesse
mesmo tirando onda com a minha cara, ainda que não quisesse admitir. Não seria novidade para
mim, depois de ver dezenas de pessoas rindo de mim por causa de uma foto. Não existia um cara
completamente decente naquela universidade. Eles sempre pisavam na bola com alguma coisa.
Maldito ludibriador que tentava “conquistar” pelo falso bom humor.
Quem poderia ser esse idiota?
Eu nunca tinha parado para reparar por muito tempo nos caras da turma de Literatura,
porque nenhum deles me chamava atenção. E, bem, se não chamavam a minha atenção era
porque não faziam o meu tipo. Ou seja, era melhor eu já ir tirando o cavalinho da chuva, antes
mesmo de colocá-lo. Maverick só podia ser mais um dos fracassados que em nada me
interessavam.
A única coisa que me preocupava era que... Bom, de alguma forma, mesmo que ele
aparentasse ser um cara de pau, cuja lábia eu não poderia depositar a minha confiança nem aqui
nem na China, alguma coisa, alguma coisinha esquisita nas entrelinhas daquela carta e do outro
bilhete estavam começando a me fazer sentir... Empolgação.
Uma irracional e completamente estúpida empolgação, por mais incrível e bizarro que
parecesse.
Não, eu definitivamente não estava caindo no seu papinho. É ÓBVIO que não. Bom deixar
isso claro, para evitar desentendimentos e interpretações erradas sobre o meu caso. O cara tinha
que se esforçar muito para me fazer cair no seu papinho, sabe? Eu era orgulhosamente difícil.
Uma joia rara, claro, mesmo que nem todo mundo pensasse dessa forma sobre mim.
Amor-próprio era tudo.
Mas...
Sei lá, ele me instigava a respondê-lo.
De um jeito muito imbecil, aquele maluco estava me instigando.
Talvez fosse curiosidade minha. Afinal, nunca conheci uma pessoa mais curiosa que eu.
Isso era um problema. Um problemão. Ou talvez eu só quisesse conversar mais um pouco, para
ver até onde a sua cara de madeira ia, e, lógico, rir mais um pouco de um idiota que achava que
podia me convencer das suas palavras.
Diziam que rir fazia bem para a saúde e deixava a pele incrível. Era exatamente disso o
que eu estava precisando.
Talvez a ideia da tia Daisy, com esse trabalho, não tivesse sido completamente incoerente.
De alguma forma aquilo tinha que servir, afinal. Me recusava a acreditar que o único objetivo do
trabalho era acabar com a nossa sanidade mental.
Sorri de novo, fitando a carta pela quinquagésima vez.
Até que...
Repentinamente, a porta do escritório do meu pai se abriu e ele entrou. Na verdade, não
apenas ele, mas minha avó também. Ela surgiu logo atrás, acompanhando-o. A conselheira da
reitoria jamais deixaria de estar a par sobre tudo o que acontecia na universidade. Esse era o
objetivo do seu cargo, afinal. Sempre na cola do meu pai.
Séria, altiva, imponente, elegante, assim como Grace Peterson sempre foi. E para sempre
seria. Uma Peterson de verdade, jamais abandonaria a sua essência. Pelo menos, foi o que ela me
ensinou. Claramente, seguia à risca os seus próprios ensinamentos.
A sua presença, porém, funcionava quase como uma espécie de gatilho para mim. Sim, por
pior que fosse ter de admitir sentir isso pela sua própria avó. Eu podia estar tranquila, calma,
feliz, mas... Meu estado de espírito mudava sempre que ela aparecia com o olhar rígido, a
expressão fechada e a postura corporal sisuda. Isso porque eu sabia que ela estava assim não por
um motivo qualquer, mas por minha causa.
Por minha causa.
Meu coração foi na boca no mesmo minuto.
Nervosa.
Automaticamente, assim que ela entrou e me encarou, eu dobrei o papel, colocando-o
ligeiro na bolsa, junto com a caneta, e me levantei. Tudo em um piscar de olhos. Endireitei a
postura, erguendo o queixo. Uma boneca perfeita. Eu precisava parecer impecável para ela,
mesmo que, por dentro, as coisas não estivessem tão impecáveis assim.
— O-Oi papai... Oi vovó. — tentando segurar a gagueira, falei.
Papai logo me abraçou, dando um beijo carinhoso no meu rosto.
— Oi, meu amor — disse ele.
Minha avó, no entanto, nada fez, nem ao menos me respondeu. Apenas ainda me
observando, como se uma série de insultos disfarçados de conselhos estivessem girando sobre os
seus pensamentos, ficou calada, a certa distância de mim.
Ela ainda estava decepcionada pelo que aconteceu.
Decepcionada comigo.
E, ainda que, pelo bem da minha saúde mental, eu não devesse levar isso para o coração,
era impossível. Simplesmente impossível, porque, cara, ela era a minha avó. E eu amava a minha
avó. Ela representava toda a referência que eu tinha para a minha vida. Era a minha referência de
mulher, de comportamento, de pensamento, de tudo.
Era em quem eu me ancorava para ser quem eu era.
E, sem a minha âncora, eu poderia naufragar a qualquer momento.
Suspirei, sentindo o primeiro sinal de nó na garganta.
Droga.
Não.
Eu não podia desabar na sua frente outra vez, como naquele dia, que nem uma fracote.
Não. De jeito nenhum. As Peterson podiam ficar decepcionadas, mas nunca tristes por muito
tempo. Derramar lágrimas, então, pelo mesmo motivo, mais de uma vez? Estava totalmente fora
de questão.
Por isso, respirei fundo e juntei todo o meu equilíbrio interno, para continuar ali sem achar
que poderia começar a chorar, a qualquer momento, como uma perdedora.
— Por que me chamou aqui, papai? — fingi naturalidade.
— Querida, eu te chamei aqui porque as investigações precisam avançar.
— Até que enfim, não é? — vovó também replicou. — Já era tempo. Na verdade, sinto
que tudo está andando devagar demais, John. Contrate um perito particular. Será mais assertivo
na descoberta de quem revelou quem é a minha neta.
Como assim “de quem revelou quem é a minha neta?”.
Franzi o cenho para ela, sem entender.
Que tipo de pessoa ela pensava que eu me tornei? Para ela, existia alguma diferença
entre a garota de antes daquele absurdo no Centro de Convivência e a garota de agora?
— Grace... — papai suspirou. — Eu conheço o delegado Owen do décimo segundo
distrito policial de Miami. Sei que ele é extremamente profissional e capaz. Confio no seu
trabalho. Então, não se preocupe, porque essa situação será solucionada da melhor forma
possível.
— Claro que nada disso estaria acontecendo, se Victoria seguisse exatamente tudo o que
eu a ensinei desde que era uma criança. Certamente, não estaria em maus lençóis. Mas, bom, já
que ela decidiu agir como uma dessas garotas desclassificadas e sem raízes, agora deverá
aguentar as consequências.
Como eu decidi agir que nem uma dessas garotas desclassificadas e sem raízes, se eu nem
me lembrava de ter enviado uma foto seminua para alguém?!
Soprei o ar, quase indignada. Ainda assim, fiz o possível para não perder a razão e a
compostura. Isso seria mais uma das atitudes que ela reprovaria. Afinal, para a vovó, eu não
podia ser nada mais do que um objeto inanimado, que é carregado de um lugar para o outro, por
terceiros, sem vontade própria.
— Vó, eu sempre faço tudo da maneira como você quer — retruquei quase entredentes. A
cicatriz no meu ego se abrindo mais uma vez. — Eu nunca dou um passo, sem antes saber a sua
opinião. Sempre foi assim, vovó.
— Eu não me lembro de ter dito para você enviar fotos nua a homens. Ou seja, o seu
argumento está infundado.
Que droga.
Ela sempre tinha uma resposta afiada na ponta da língua.
— Tudo bem, Grace, tudo bem. Acho que não é hora para discussões, mas, sim, para
ações que resolvam a situação. — papai tentou apaziguar o momento e, então, virou o rosto para
mim. — Querida, eu vou precisar que você me dê o seu celular.
— Meu celular? — ergui brevemente uma das sobrancelhas.
— Sim, Victoria, o seu celular, por quê? — antes que papai pudesse falar, foi a minha avó
quem replicou. — Por acaso, tem outras coisas comprometedoras no seu aparelho?
E eu senti.
Senti a sua alfinetada.
Aquele tom absolutamente acusatório que me cansava.
Era como se eu estivesse errando apenas em respirar.
— Não, claro que não... — respondi, tentando ser comedida no tom e nas palavras. — É só
porque, sei lá... Acho que vou precisar de um novo, então, já que este vai ficar com a polícia.
— Sim, querida. Sabe que isso não é problema. Pode comprar um novo.
Ainda ouvi o suspiro profundo que a minha avó deu, seguido de uma quase revirada de
olhos. Era como se eu pudesse ler, em sua testa, que ela estava dizendo “sempre mimando essa
menina”.
Nas suas palavras, os erros que eu cometia eram em decorrência do quanto o meu pai tinha
me mimado em vez de ter me criado com o pulso firme, que nem ela fez. Ou, que nem ela
gostaria de fazer.
Um saco.
Mesmo que eu amasse a minha avó, eu não gostava quando se referia assim ao meu pai.
John era o melhor pai do mundo. Todo o amor que eu precisava, depois que mamãe morreu, eu
recebi dele.
Apesar de tudo, continuei tentando manter a linha e a postura, sem fazer qualquer tipo de
cena ali. Retirei, então, o celular da bolsa e entreguei a ele.
— Aqui está.
Eu não tinha culpa em cartório, não tinha nada a esconder deles. Minha avó e meu pai
sempre souberam de tudo sobre a minha vida. Exceto, algumas coisinhas que aconteceram em
North Beach, mas isso não vinha ao caso agora. Então, não havia problema algum em ceder o
meu celular para as investigações. Simplesmente o entreguei. Aliás, eu queria saber tanto quanto
eles quem foi o imbecil que armou aquilo para mim.
— Excelente, querida — respondeu o papai. — Eu vou repassar o aparelho ao Owen, o
delegado que está responsável pelo caso.
— Tudo bem, pai.
— Então, está liberada... Se não tiver mais nada para conversar comigo, querida, pode ir
para a fraternidade. Eu ainda tenho uma pilha de trabalhos para finalizar até o fim do expediente
— sorriu.
— Ah, tá bom então, vou lá... Obrigada por tudo, pai — o abracei. — Espero que
consigam encontrar algo.
— Eles vão conseguir sim, meu amor.
Quando me virei para a vovó, no entanto, retesei. Não soube ao certo o que fazer, porque o
seu olhar sério e totalmente acusatório me amedrontava. E era péssimo, péssimo não saber como
agir com a própria avó, uma pessoa que deveria estar inclusa na sua rede de apoio.
Eu estava louca para abraçá-la e receber o seu carinho que há tantos dias eu não sentia.
Sim, eu estava morrendo de saudade dela e do seu carinho, mas... Talvez o medo da rejeição que
eu sabia que sofreria, caso me aproximasse mais alguns passos dela, era o que me estagnava. E
não, eu não estava preparada para mais uma rejeição.
Ainda assim, me esforçando para contornar a situação e me reaproximar dela, pelo menos
aos poucos, falei a certa distância:
— Vovó? Será que podemos conversar?
Um fio de esperança perpassando o meu olhar.
Eu queria, enfim, me entender com ela.
Porém...
— Sobre o quê, Victoria? — questionou ela, rígida, fria, firme, daquele jeito que
desmontava todas as minhas expectativas.
Suspirei.
O nó na garganta querendo voltar.
Droga.
— Sobre o que aconteceu naquele dia... Eu... Eu... — arfei, ansiosa, querendo me
aproximar ainda mais, abrir os braços e suplicar para que ela me perdoasse. — Eu quero me
explicar, eu preci...
Entretanto, antes que eu pudesse completar, ela me interrompeu, pedante.
— Victoria, tudo o que eu tinha para falar sobre isso, eu já disse para você naquele dia.
Então, tudo o que ela tinha a me oferecer eram as pedras que jogou?
— Mas... — tentei novamente.
Porém...
— Detalhes da sua incompetência de não ser capaz de fazer ao menos o mínimo, que é se
dar ao respeito como uma mulher de verdade, não me importam. Pode guardar as suas desculpas
para você, Victoria. Eu não preciso disso.
Dura, afiada, cortante, foi tudo o que disse.
E, então, depois disso, simplesmente me deu as costas, saindo da sala, sem me oferecer um
mísero abraço ou qualquer chance de conversa. Ela nem mesmo se despediu. Quando dei por
mim, Grace já não estava mais ali.

✽ ✽ ✽

Saí do escritório do meu pai me sentindo um completo lixo outra vez, do mesmo jeito
como me senti naquele dia em que a minha avó, gentilmente, destilou todo o seu ódio e veneno,
em forma de palavras afiadas e conselhos arbitrários, numa das salas da universidade, depois do
terror no Centro de Convivência.
Sei lá.
Eu poderia ser tratada assim por qualquer pessoa, sim, por absolutamente qualquer pessoa,
e isso não me afetaria, mas, com a minha avó era diferente. Quero dizer... Tá, tá legal, também
não era por qualquer pessoa. A opinião alheia de qualquer um, ao meu respeito, ainda me
afetava de alguma maneira. Porém, não tanto quanto a opinião de Grace sobre mim.
O peso e o poder das suas palavras sempre seriam maiores do que de qualquer um. Afinal,
era a minha avó.
Arrasada, numa fossa podre e nojenta, já era fim de tarde, quando encontrei Brittany no
campus da universidade e, juntas no meu carro, seguimos de volta à fraternidade. Enquanto eu
me esforçava para blindar os meus pensamentos e me concentrava apenas no caminho, fazendo o
possível para não aumentar (ainda mais) a minha ridícula e já imensa lista de acidentes
automobilísticos, Britty tentava me acalmar.
— Amiga, não fica assim... — disse ela. — Pensa... É... Pensa... — passou a língua entre
os lábios, como se estivesse procurando as melhores palavras. — Pensa no quanto você é bonita!
Gente bonita não sofre!
Revirei os olhos, deixando uma maldita e teimosa lágrima escapar.
Pelo menos, agora a minha avó não estava ali e não poderia me julgar como frouxa.
— Ai, amiga, gente bonita também sofre! — retruquei. — Olha só, tem prova maior disso
do que eu? Sou bonita e estou sofrendo... — funguei, apertando o volante entre os dedos,
cansada de mim mesma. — A minha avó me acha frustrante. Sou uma decepção para a família. E
hoje ela me disse que eu ajo como uma garota desclassificada e sem raízes! Vê se pode?! —
exclamei, beirando a indignação. — Logo eu...! — e virei o rosto para Brittany, por alguns
instantes, voltando logo a minha atenção para a rua, no entanto, quando passei com o carro quase
por cima de uma lixeira na calçada.
Brittany suspirou.
— Tá, tudo bem, tudo bem... Eu sei que a Grace é uma lenda. Tipo, ela e a sua mãe. As
duas foram as maiores das maiores líderes de fraternidade que as Minervas já tiveram, mas...
Sinceramente? Com todo o respeito, amiga, a sua avó já tem sessenta anos. Ela nem sabe mais o
que diz.
— Ah, ela sabe sim! Ela sabe muito bem o que diz! — redargui nem um pouco feliz, ao
estacionar. — A minha avó é perfeitamente lúcida e cheia de botox na cara! Já viu como a
cintura dela está fina depois da última lipo?
— Eu vi... — respondeu Brittany ao sair comigo do carro. — Aquele doutor Dearing é
ótimo, né? Maravilhoso. Sua avó, tipo, rejuvenesceu uns dez anos, nas mãos dele. Incrível. —
suspirou. — Mas, mesmo assim, amiga! Não dá para fazer plástica no cérebro. Ela pode estar
muito bem variando das ideias. Eu não levaria para o coração as coisas que ela diz.
— Pois eu levo — respondi sem um pingo de empolgação, enquanto caminhávamos pela
calçada da Casa das Minervas.
Era impossível não levar, já que desde criança eu considerava tudo o que ela dizia.
— Ah, já sei! — repentinamente, Britty exclamou.
— Sabe o quê? — franzi o cenho.
— Que tal se a gente usar a hidro da fraternidade, hoje, hein?! — empolgada, sorriu
mostrando todos os dentes. — A gente coloca umas velas ao redor, com algum daqueles incensos
maravilhosos que a Daisy te deu. Eu ainda tenho aqueles sais de banho que você adora! E, ah!
Também podemos passar máscara facial uma na outra, enquanto tomamos um chazinho detox e
ficamos de molho. Vai ser incrível, amiga!
Sorri, mesmo que por dentro eu ainda estivesse me sentindo um lixo.
Brittany, apesar de completamente perturbada, era a melhor. A melhor amiga que eu já
tive. Sempre preocupada em me levantar. Era maluca e toda atrapalhada? Era. Mas, cuidava de
mim do seu jeitinho, da maneira como podia. E fazia isso muito bem.
— Você não é uma Peterson, mas é perfeita, Britty.
— Ah, eu sei disso! — respondeu ela, divertida.
Ri de leve.
— Tudo o que quero para agora é tirar essa roupa, entrar na hidro, tomar um chazinho
desses que você aprendeu a receita pelo YouTube, e ficar de molho na água até que todos os
meus dedos estejam completamente enrugados.
— É isso o que nós vamos fazer, amiga! Eu tenho certeza absoluta de que você vai
relaxar!
Sorri de novo. Dessa vez, uns cinco por cento menos desanimada. Talvez Brittany
estivesse certa. Talvez as coisas melhorassem por completo, depois de uma sessão de
hidromassagem com velas aromáticas e sais de banho. Tudo ia voltar para os trilhos. Tinha que
voltar.
Tocando a maçaneta da enorme porta da fraternidade, não consegui pensar em outra coisa
a não ser... Lar doce lar. Até que enfim, graças a deusa das líderes de fraternidades exaustas e
desiludidas, eu teria um tão merecido momento de paz, depois de um dia terrível de cão.
Quando respirei fundo, sentindo uma espécie de alívio começar a dar os primeiros sinais, e
abri a porta.
Porém...
Claro.
Claro que eu não deveria cantar vitória antes do tempo.
Argh, Vic, você sabe!
Tudo foi pelos ares, incluindo a minha esperança de que eu enfim ia relaxar. Infelizmente,
depois que aquele diabo de tatuagem se instalou ali, paz e fraternidade eram palavras que jamais
andariam juntas outra vez.
Nem a foto enorme da minha mãe, bem na entrada, nem o fato de que eu ainda era a
abelha-rainha daquelas miseráveis, nem a força que Brittany me dava, e muito menos a
expectativa de que eu ia me esquecer do mundo na hidromassagem, nada. Absolutamente nada
foi capaz de me impedir de abrir e fechar a boca, repetidas vezes, completamente em choque,
fazendo caretas e mais caretas, enquanto observava a palhaçada.
Não existia nada, nada de lar doce lar, ali. Na verdade, as coisas estavam salgadas. Ou
melhor, estavam gordurosas até demais!
O meu queixo caiu, por fim, praticamente sem acreditar no que eu estava acontecendo, ou
melhor, sem entender. E, então, a passos lentos, comedidos e incrédulos, eu me aproximei, para
ver um pouco mais de perto e ter a certeza de que tudo não passava de impressão minha. Uma
miragem. A porcaria de uma piada de mau gosto.
As garotas (todas da fraternidade) estavam simplesmente, SIMPLESMENTE ocupando
todo o espaço do andar de baixo da fraternidade, enquanto ao redor delas, espalhados por todos
os lados, em cima dos sofás, das poltronas, das cadeiras, abandonados no chão ou deixados sobre
mesas e estantes, havia vários, eu disse vários, hambúrgueres, gordurosos e oleosos.
Eu podia ver o sebo pingando a cada mordida, que nojo!
Para completar, Rayka estava cercada de garotas, quase como se todas estivessem à sua
disposição, ao seu bel-prazer. Duas estavam agarradas a ela, uma passando o braço pela sua
cintura, enquanto outra passava o braço pelo seu pescoço. Rayka ria e sorria, com a boca cheia
de pão e de hambúrguer, ao mesmo tempo que conversava com todas as meninas, soltando
piadinhas e fazendo brincadeiras, como se tivesse a certeza de que se tornou o centro das
atenções e a fonte dos desejos, em seu paraíso feminino particular.
Um verdadeiro céu para uma sapatão.
Argh!
Que safada!
Eu tremi.
Tremi de... Sei lá, ódio? Indignação? Raiva? Eu. Não. Sabia. Mas, notei o momento em
que a minha mandíbula trincou e os meus punhos se fecharam involuntariamente, enquanto eu
observava aquela pouca-vergonha não somente de comida, mas também faixas e itens de
decoração de festa que eu não fazia a menor ideia do que significavam.
Parecia até um bacanal de hambúrguer e balões!
Uma revolução.
Uma comemoração da qual a própria líder não foi convidada...!
E o pior de tudo, aquilo que me deixava mais irritada, era saber que, óbvio, a ideia não
tinha partido de outra pessoa, a não ser daquela...! Daquela...! Sapatão!
Brittany percebeu o meu estado, especialmente quando, de repente, ofegante, os meus
ombros começaram a subir e descer num ritmo acelerado.
Eu estava inchando. Eu estava sim.
— Calma, amiga, calma — disse ela, ao meu lado. — Fala as palavrinhas mágicas.
Respirei fundo, tentando realmente manter a calma, e...
— Gucci, Prada, Chanel... Rayka! — berrei, sem conseguir segurar.
Foi quando aquela terrorista finalmente virou o rosto e percebeu a minha presença ali.
Aliás, não somente ela, mas também todas as traidoras que estavam, até cinco segundos atrás,
enturmadas, entrosadas e entretidas demais ao ponto de não perceberem que:
1. A líder não foi convidada para a festinha;
2. A líder tinha chegado e entrou de penetra porque aparentemente não foi convidada!
— Eu posso saber o que está acontecendo aqui...?! — aborrecida, exclamei, me
aproximando. Meus olhos esbugalhados, quase saltando da caixa craniana. — Vocês, por acaso,
têm consciência da quantidade de calorias que tem nisso aqui? — e simplesmente agarrei um dos
hambúrgueres da mão de uma garota, dando uma mordida. Foi impossível evitar, fiz uma careta,
logo em seguida. — Péssimo! Eca!
Joguei-o pra lá.
Rayka, por sua vez, se aproximando, falou:
— Não sabia que você, em vez de artista, é nutricionista agora.
As outras soltaram risadinhas abafadas, como se não tivessem conseguido segurar, mesmo
com muito esforço. E, olha, isso nunca aconteceu comigo naquela fraternidade. Nunca riam da
presidenta, porque sabiam que era falta de respeito.
Por um segundo, vislumbrei North Beach, onde a engraçadinha fazia piadas sobre mim e
aqueles imbecis riam.
Maldita.
— Ah, Vic, a gente só tava comendo um pouquinho, nada demais, e organizando a
Cerimônia do Broche para amanhã! — uma das garotas soltou, empolgada. — Não é uma
maravilha? Estamos te ajudando e poupando o seu trabalho!
Pera aí?
Comequié?
O vinco na minha testa tornou-se ainda maior, e a irritação também.
— De onde vocês tiraram que tem o poder de decidir quando a Cerimônia do Broche vai
acontecer?! Nós já tivemos uma nesse ano e não precisamos de outra agora. Não há necessidade.
A Cerimônia do Broche era um evento típico da fraternidade, onde aspirantes a Irmãs
Minervas se tornavam oficialmente membras e recebiam um broche dourado, com o brasão em
forma de cabeça da deusa Minerva, depois de todo o ritual de iniciação que durava pelo menos
uma semana. Acontece que... Nós não tivemos uma nova seleção, não tínhamos passado por
nenhum ritual de iniciação, e muito menos tínhamos aspirantes a Irmãs Minervas.
Quero dizer...
Não tínhamos aspirantes a Irmãs Minervas, exceto a...
Exceto a...
Minha mandíbula trincou outra vez.
Rayka.
— A gente só queria te ajudar... — respondeu a garota
Numa mistura de confusão e irritação, retruquei:
— E quem disse que isso vai acontecer?
No instante em que me calei, outra daquelas infelizes que eu fiz a burrice de colocar para
dentro da fraternidade, disse:
— Ué, Vic, agora nós temos a Rayka... Ela é uma novata e precisa receber o broche. Isso
está no regulamento.
Queimei.
Automaticamente, queimei por dentro.
Sim, eu sabia que esse inferno estava descrito no regimento, porque eu fiz o favor de
decorá-lo de cor e salteado, desde que eu era uma criança.
No entanto...
— Não, ela não precisa! — nem um pouco simpática, retruquei. — Rayka não cumpriu
nenhum dos requisitos para entrar na fraternidade. Ela não participou da seleção, nem do ritual
de iniciação, e muito menos foi aceita por mim. Rayka foi apenas colocada arbitrariamente aqui,
sem o meu consentimento.
Deus, colocar isso para fora me relaxava alguns por cento.
Era algo entalado na minha garganta, desde que o meu pai decidiu fazer o favor de enfiá-
la ali.
Só que, claro, meu alívio sempre durava pouco, pouquíssimo, porque...
— Mas, mesmo assim, Vic... O regimento diz que quando uma garota não cumpre todo o
processo, porque foi indicada pelo reitor, a maior autoridade da universidade, ela deve fazer parte
da fraternidade e ser aceita como membra. Você sabe, né?
Que saaaco!
Sim, eu sabia disso sim, mas, de alguma forma, eu preferia não me lembrar, ou me sentiria
ainda mais irritada do que eu já estava.
— Logo você, a nossa presidenta, vai infringir o regimento? — outra questionou.
Sabe quando o feitiço vira contra o feiticeiro?
Pois bem, era exatamente isso o que estava acontecendo. Mesmo que sempre tivessem me
respeitado demais, elas também estavam aproveitando para me dar o troco, já que eu era a pessoa
dali que mais exigia delas o cumprimento assíduo de todos os pontos do regimento.
Miseráveis.
Para completar, ainda virei o rosto em direção à Rayka, que sorria cinicamente para mim,
daquele jeitinho que sempre me tirava do sério, e ouvi quando falou, repetindo a outra menina,
só que cheia de ironia:
— É, Vic... Logo você, a nossa presidenta, vai descumprir o regimento das Irmãs?
Des-gra-ça-da.
Ela nem se importava com o regimento.
Sempre o chamou de “um monte de baboseiras”.
— Não, ela não vai... A Victoria é perfeita! — e, toda empolgada, completou berrando. —
Vem aí, a Cerimônia do Broooche! Aeeee!
Gritos e palmas das outras estouraram os meus ouvidos, enquanto elas pulavam, se
abraçando com a Rayka, e eu me perguntava se tinha jogado pedra da cruz para merecer esse tipo
de coisa.
SERÁ QUE DÁ PRA PARAR DE
REPARAR NA SAPATÃO?

“Eu vejo seu rosto em todos os lugares que vou, não posso te esquecer”
Can’t Get Over You | KVSH

VICTORIA

Eu não pude fazer nada, absolutamente nada, a não ser ver aquela patifaria se tornando
realidade, sem que eu pudesse impedir. Claro que se eu fizesse qualquer coisa para evitar, a
errada seria eu. Eu estava provando do meu próprio veneno. Afinal, se as Irmãs não podiam
infringir qualquer uma das regras da fraternidade, a líder menos ainda. A líder devia dar exemplo
e blábláblá.
Que ódio!
Precisei engolir todo o meu veneno, que, obviamente, estava no ponto de ser destilado, e,
por causa disso, senti os efeitos colaterais. A dor de cabeça da irritação interna, que eu não podia
externar. O enjoo que embrulhava o meu estômago sempre que eu via as meninas aproveitando
qualquer oportunidade, para se jogar para a Rayka, enquanto organizavam a decoração. E as
náuseas que eu disfarçava para que a idiota da Rayka não pensasse que era importante o bastante
ao ponto de me afetar.
No dia seguinte, quando aconteceria a fatídica cerimônia, as garotas acordaram cedo e
logo puxaram Rayka para junto delas. Eu nunca tinha visto-as receber tão bem assim qualquer
novata que tivesse posto os pés ali. Malditas safadas curiosas. Davam todas as bandeiras
possíveis, na esperança de que Rayka as notassem, só para experimentar a sensação de ficar com
uma menina que se parecia com um menino. Tolice.
O pior era que não dava nem para confiar na Rayka. Aquela sapatão não podia ver uma
mulher bonita dando sopa. Foi expulsa do intercâmbio por causa de orgias, afinal. Eu não fazia
ideia de quanto tempo ela conseguiria aguentar sem transar com qualquer uma das meninas da
fraternidade. Poderia acontecer a qualquer momento.
Aliás, eu nem deveria estar pensando sobre isso.
Para mim, Rayka e nada eram exatamente as mesmas coisas, não eram?
Sim, claro que era.
Óbvio.
Eu não me importava com nada a respeito daquela caminhoneira, desde que ela não
transformasse a minha fraternidade em um cabaré.
Durante a manhã, logo nas primeiras horas, a imensa sala de estar da Casa das Minervas já
tinha se transformado em um salão de festas. As próprias garotas estavam organizando, porque,
claro, um dos pré-requisitos para ser uma Minerva era ter bom gosto. Mesmo assim, apesar de
estar aprovando internamente a maioria dos detalhes da decoração, não era exatamente isso o que
eu demonstrava por fora.
Com olhares clínicos, rígidos e atentos, eu fiscalizava tudo por ali, cada passo que davam,
desde a posição que colocavam cada guardanapo em cima das mesas até a disposição dos
arranjos de flores naturais ao redor do espaço. Claro que eu aproveitava qualquer mínima
oportunidade para criticar alguma coisinha e, assim, externar um pouco da minha indignação
com a situação, mesmo que disfarçada de “cuidado e preocupação com a cerimônia”.
Eu não estava nem um pouco preocupada com a beleza daquela porcaria.
Eu só queria reclamar mesmo.
Simples assim.
Vi, porém, o momento em que um andaime foi montado no meio da sala. Quero dizer,
aparentemente, foi Rayka quem o montou, pelo que pude perceber e pela forma como ela mexia
em sua estrutura. Enruguei a testa.
Que diabos essa garota estava pretendendo fazer agora? Uma arte para cair e quebrar o
pescoço?
Não que eu estivesse preocupada com ela, ou que fosse sentir a sua falta, caso ela
morresse de uma queda bem ali, mas eu também não queria que a minha fraternidade linda e
impecável fosse palco de uma morte. Nada me garantia que ela não pudesse retornar para puxar o
meu pé à noite, enquanto eu estivesse dormindo. Rayka era capaz de tudo.
Deusa me livre.
Se a Rayka já me perturbava em plena vida, imagina se ela se tornasse uma alma penada.
Credo.
Ainda assim, a besteira que ela estava fazendo prendeu a minha atenção. Observei
enquanto segurava o globo de espelhos e escalava o andaime.
Mesmo que as meninas cuidassem das decorações, sempre quando fazíamos festa na
fraternidade e era preciso pendurar alguma coisa no teto, a gente contratava algum cara,
especificamente para isso. Dessa vez, porém, não tinha cara nenhum, era a Rayka quem ia
colocar o globo de espelhos no teto, bem em cima da pista de dança. E não me restavam dúvidas
de que foi ela quem teve a ideia de subir naquele negócio, para colocar.
Claro que ela se achava boa demais, para deixar que um homem fizesse esse trabalho por
ela. Claro que ela sempre queria se passar de sabichona, de desenrolada. Aquela que fazia tudo e
que não precisava de um cara para nada.
Bobagem.
Balancei a cabeça de leve, cruzando os braços e fazendo pouco caso do seu tal “esforço”.
Ô besteirona, “grande coisa”. Isso não era nada. Era só alguém com uma espécie de “síndrome
do centro das atenções”, querendo se mostrar.
Soltei um “tsc”.
Notei, contudo, quando as otárias da fraternidade caíram feito patinhas na encenação.
Todas, eu disse todas, as garotas pararam tudo o que estavam fazendo, só para observarem, feito
idiotas, Rayka escalar aquele troço, enquanto cochichavam entre si sobre o quanto ela parecia
maravilhosa. Ficaram secando descaradamente a sapatão, lá em cima, e ainda suspiravam,
dizendo:
— Ela é linda, né?
— Ela é demais!
— E o corpo, então, perfeito.
Ai, minha deusa, os meus ouvidos ardiam!
Eu merecia mesmo.
Revirei os olhos, sem esconder o meu entojo, e, ao contrário das outras, não pude evitar de
soltar um comentário irônico:
— Tá querendo um troféu, é?
Foi quando ela baixou a cabeça, olhando para mim e devolvendo:
— Só se for um trofeuzinho dado por você, minha presida. Não aceito outro, não. —
piscou um dos olhos.
Minha presida...
Girei as orbes para ela.
Besta.
E eu já ia desviando completamente o rosto, para não dar mais palco a quem não merecia,
quando a vi esticar os braços, alcançando a parte mais alta do teto, para prender o globo de
espelhos. Involuntariamente, ao contrário do que eu, de fato, queria ou do que a minha razão me
mandava fazer, os meus olhos se fixaram no músculo levemente tonificado do seu tríceps, que
aparecia a cada vez que ela encaixava o globo onde ele tinha que ficar.
Para completar, as minhas orbes ainda desceram na direção certa da sua regata de mangas
muito cavadas, que deixava transparecer, por completo, o top preto que usava por baixo,
cobrindo os seus seios. As mangas eram tão cavadas que, a cada vez que ela se mexia, mais do
seu top e da lateral do seu seio, eu conseguia ver. Rayka não parecia se importar com isso, nem
com o fato de que aquela camiseta nos deixava ver o seu corpo mais do que deveria.
Como se não bastasse, meu olhar desceu ainda mais, quando ela se esticou para verificar
se o globo estava realmente preso, e percebeu a pele por baixo da barra da regata que balançava
conforme a garota se movimentava. Vi a sua barriga lisa, os gominhos suaves, o ligeiro contorno
da sua cintura, o vislumbre de uma pequena parte da maldita tatuagem de serpente e... Os ossos
que moldavam o início da sua pelve, aparecendo no cós baixo da sua calça e apontando para um
caminho certo entre as suas pernas.
Engoli seco.
Bonita...
A palavra passeou nítida, mas sutilmente pelos meus pensamentos.
Rayka era bonita.
Bonita demais.
Ela era bonita não somente de corpo, mas de tudo, mesmo que eu não gostasse de admitir
isso nem em pensamento, porque fazia eu me sentir meio... Vulnerável.
Quando dei por mim, eu já estava suspirando, que nem uma idiota, quase como as outras
garotas, sem nem saber por quê.
Droga.
Pisquei os olhos repetidas vezes, acordando.
Quanta estupidez.
Porém, no instante em que fui capaz de raciocinar o bastante para parar com a bobagem,
Rayka, estupidamente sagaz, como se estivesse lendo os meus pensamentos, baixou o rosto em
minha direção e, sarcástica, perguntou:
— Tá curtindo a vista?
— Cala a boca, sua idiota — retruquei, revirando as orbes.
No instante em que dei um passo para sair de perto, entretanto, Brittany, que estava
responsável pelo roteiro da cerimônia, apareceu de repente com outra garota da fraternidade e
exclamou:
— Ei, Rayka, desce aí! A gente precisa te passar umas informações! — girou o rosto para
mim e, então, completou. — Também preciso que você fique, amiga, mesmo que você já tenha
experiência com esse tipo de evento. Vai ser bom que escute, porque você vai conduzir a maior
parte da cerimônia.
Foi quando ela surgiu ali, pulando dos andaimes que nem uma selvagem, até alcançar o
chão e ficar do nosso lado. Torci o nariz, não curtindo muito a sua proximidade, mas também
não pude deixar de notar as gotinhas de suor que se formavam em sua testa e aquelas que
desciam pelo seu pescoço até escorrerem para baixo da sua blusa, entre os seus pei...
Ai, que saco.
Para com isso, Victoria!
Vai ficar reparando nessa sapatão por mais quanto tempo?
Bufei comigo mesma e fiz de tudo para focar a minha atenção apenas no que Brittany
tinha para falar.
— Bom, como é a sua primeira vez participando, Kate e eu vamos te passar o script do
que vai acontecer na cerimônia de mais tarde — disse ela à Rayka. — A festa em si vai durar a
mesma quantidade de tempo do que as outras. A diferença é que, como você será a única garota a
receber o broche, o tempo da cerimônia de entrega será menor. Estamos praticamente preparando
uma festa só para você. — soltando uma risadinha faceira, Brittany completou.
Claro que disso eu sabia sem que Britty precisasse comentar nada a respeito. Esse era um
dos muitos motivos, por eu não querer apoiar aquela palhaçada de ideia. Seria uma Cerimônia do
Broche totalmente atípica. Mas, obviamente, se eu fizesse qualquer coisa para evitar, iriam jogar
pedras em mim, berrando que a própria presidente estava infringindo o regimento.
Tem noção do quanto isso era ridículo?
Nunca, em toda a história da fraternidade, uma cerimônia, como aquela, foi realizada
única e exclusivamente para uma só pessoa. Uma pessoa que nem deveria estar ali, porque não
passou por nenhuma seleção, prova ou ritual de iniciação.
Apenas uma maldita privilegiada pelo meu pai.
Trinquei a mandíbula só de pensar nisso.
Rayka, por sua vez, com a sua maior e melhor cara de pau, respondeu entre risadinhas
sagazes e ligeiramente convencidas:
— Assim eu fico me achando, hein?
Safada, Britty, lhe ofereceu mais um sorrisinho arteiro, replicando:
— Você merece... — e, descarada, deslizou uma das mãos pelo braço da outra. Argh.
Desviei o olhar. Sério que eu tinha que ficar presenciando e ouvindo esse tipo de coisa? —
Bom, aqui está o roteiro... — entregou um papel a mim e à Rayka, retomando a minha atenção.
— Como vocês podem ver, a festa vai começar com a recepção dos convidados e as comidinhas
de entrada. Depois, cerca de uns quarenta a cinquenta minutos mais tarde, tem realmente a
cerimônia, onde a Victoria vai fazer um discurso e entregar a você um broche das Minervas,
oficializando, enfim, que agora você é uma de nós.
— Victoria vai fazer um discurso para mim? — numa mistura de surpresa com ironia,
Rayka interrompeu Brittany, sorrindo.
Rolei os olhos.
Sim, vou sim, sua miserável, vou fazer o discurso mostrando a todo mundo o quanto você
é insuportável.
Que inferno.
Esse discurso, com certeza, seria uma das piores partes da noite.
— Oh sim... — Brittany respondeu, dando-me um sorrisinho meio amarelo de quem sabia
o quanto eu estava odiando aquilo, farta de tudo e irritada com todas as garotas. — Isso é meio
que protocolo, sabe? A presidenta precisa fazer um discurso em todas as Cerimônias do Broche.
— explicou ela, ainda um tanto sem jeito. — Mas, assim, é coisa rápida. Será um discurso
ligeiro, eu tenho certeza, porque só tem você para receber o broche.
— Ah, com certeza, eu imagino — redarguiu a filha de satanás. — Se demorar mais um
pouco, capaz da Vic me entregar o broche com um punhado de merda junto — riu.
Não, sério, eu juro.
Por que aquela infeliz tinha que ser tão inconveniente?
Soprei o ar, absolutamente cansada, e apertei os olhos em sua direção.
— Só se for com a merda que sai da sua boca — retruquei. — Será que dá pra parar de
falar tanta besteira? Os meus ouvidos estão implorando por sossego.
Rayka apenas riu com o prazer que tinha em me perturbar.
Brittany, no entanto, soltando uma risadinha nervosa de quem já tentava apartar uma
briga, antes mesmo que acontecesse, falou:
— Tá legal, tá legal, meninas... Está tudo bem e vai dar tudo certo. Não vai doer em
ninguém. — sorriu. — E ah, claro! Eu também não posso me esquecer de uma das principais
partes da cerimônia, antes do jantar e do restante da festa.
— Ainda tem mais alguma besteira para fazer? — Rayka perguntou.
Besteira...
Argh.
Era assim como ela sempre pensava a respeito de qualquer coisa sobre a fraternidade.
Ela não merecia estar ali e ser uma de nós. Não merecia!
Que ódio.
— Com certeza! É uma das partes mais legais! A dança! — empolgada disse.
— Dança? — Rayka entortou as sobrancelhas. — Olha, gatinha, eu não sei dançar não,
hein?
Brittany soltou uma pequena risada e explicou:
— Não é exatamente uma dança difícil e coreografada. É só uma valsa simples. Depois da
entrega do broche é uma tradição que as Irmãs Minervas novatas façam uma dança com alguém.
No caso, dessa vez, vai ser você. A nova Minerva.
— Hum... — Rayka puxou o ar de leve, fazendo uma cara meio pensativa. — Tô
entendendo.
— E aí, já conseguiu imaginar alguém para convidar? — com um sorrisinho interesseiro,
que não escondia suas intenções, Brittany perguntou.
— Na verdade, ainda não, porque eu nem sabia que tinha essa dança para fazer.
Britty soltou uma risadinha e, faceira, empinou o busto, ao responder:
— Olha... Se você ainda não tem alguém em mente, você pode chamar qualquer uma das
meninas da fraternidade, para dançar com você, inclusive eu. Pode ter certeza que eu adoraria
dançar com você.
Ah, pelo amor da deusa.
É sério mesmo que a Brittany disse isso?
Como se não bastasse, a garota ao seu lado, que estava ajudando-a com a organização da
cerimônia, também falou:
— Onde eu posso me inscrever? — e, soltando uma risadinha safada, completou. —
Você não sabe o quanto eu danço bem.
Não consegui segurar.
Tive que rolar as orbes mesmo.
Eu não merecia ficar ouvindo aquelas garotas dando em cima descaradamente da Rayka.
Logo da Rayka! Que tipo de mau gosto era esse? Será que elas não percebiam que existiam
opções muito melhores de caminhoneiras, na própria universidade mesmo? Juro que eu não
conseguia entender a capacidade que essas malucas tinham de se interessarem pela Rayka, nem o
motivo de eu ficar, sei lá... Tão irritada só de imaginar a sapatão com alguma das meninas da
fraternidade.
Xinguei a mim mesma mentalmente, tentando me repreender e parar de ligar para algo
que, claramente, não tinha sequer uma única coisa a ver comigo. Só que aí, antes mesmo que eu
conseguisse ocupar os meus pensamentos com questões muito mais importantes, tipo a make, o
penteado e a roupa que me fariam aparecer maravilhosa na festa, eu vi... Eu vi o olhar que Rayka
me deu.
De repente, suas orbes se tornaram mais vivas do que normalmente eram, como se ela
estivesse imaginando, cogitando ou até… Devaneando sobre algo a respeito de mim. De nós. O
brilho das íris mudou, e a forma como ela me encarou também. Por mais estranho que parecesse,
não existia qualquer porcentagem de ironia, como na maioria das vezes. Nem mesmo qualquer ar
de brincadeira.
Só existia verdade.
Uma verdade que eu lia no seu rosto.
Uma verdade que, no fundo, me intimidava, porque, de alguma forma, era como se eu
soubesse exatamente o que ela estava pensando.
Franzi o cenho de leve, sentindo o negócio esquisito.
Ela não estava pensando em...?
Travei.
Não, não estava, Victoria.
Ela não estava pensando nisso que você tem medo de pensar, porque ela não era louca a
esse ponto.
Pelo menos, foi o que eu tentei acreditar.
Rayka, no entanto, sem parar de me encarar, respondeu:
— Tá legal, meninas, eu vou pensar em alguém para chamar.
Só que isso não foi o suficiente para me convencer de que eu estava errada sobre as
minhas impressões. Algo continuava me cutucando, algo ainda estava me deixando meio
inquieta a respeito daquilo e de todo o resto que envolvia Rayka Ferris na minha vida.
Bastava um pequeno gatilho para que tudo o que nos envolvia, desde que nos conhecemos,
viesse à tona, como uma maldição.
Era sempre assim.
Sempre.
Senti medo do que ela pensou. Senti medo do que eu mesma pensei. Senti medo de sentir
medo. Senti medo de voltar a sentir o que senti há dois anos. Senti medo de precisar sufocar tudo
outra vez. Senti medo de não ser capaz de parar dessa vez. Senti medo de não conseguir negar.
Senti medo de que ela ainda sentisse aquilo também. Senti medo de querer de novo. Ou
melhor… De querê-la de novo.
Por isso, com um pequeno fio de fôlego, pigarreei a garganta disse:
— Olha só, eu vou ali, tá? Podem terminar de passar as informações aí. Eu já sei de tudo
isso decorado mesmo.
E simplesmente dei as costas, saindo de perto.
Porque eu precisava sair.
Apenas precisava sair de perto dela sempre que eu não conseguia ludibriar a mim mesma,
com as minhas próprias palavras aparentemente inteligentes e afiadas, de que aquela cachorra
não me afetava. Quando eu não conseguia mentir para mim, nem me enganar ou me iludir, assim
como estava acontecendo nesse exato momento, eu simplesmente precisava sair de perto.
Para não pensar mais besteiras.
Para não fazer besteiras.
Rayka ainda me afetava, por mais que eu odiasse admitir isso. Ela ainda me afetava da
mesma forma como me afetou em North Beach, há dois anos. Aliás, mesmo que eu me
esforçasse para me cegar a isso, porque ia completamente de encontro a tudo o que eu julguei
como adequado para uma vida perfeita, aquela desgraçada me afetava desde o primeiro dia em
que pôs os seus malditos pés dentro da minha casa, há sete anos, quando os nossos pais
começaram a namorar.
De lá para cá, eu não tive mais paz, mesmo morando há quilômetros de distância, em
Nova Iorque, nos últimos anos do colegial.
Paz com os meus próprios pensamentos.
Um lado meu querendo evitar e o outro querendo ceder, por mais assustador que isso
pudesse parecer para mim.
E tudo se tornou ainda pior, depois de North Beach.
Uma droga.
Tive uma breve pausa para respirar quando ela viajou para o intercâmbio, depois do
primeiro ano de faculdade. E, durante esses dois últimos anos em que esteve fora, eu até cheguei
a pensar que toda aquela porcaria tinha sido superada, que eu jamais sentiria qualquer outro tipo
de confusão mental, que eu nunca mais me lembraria de nada a respeito dela e de nós.
Uma maldita ilusão.
Bastava ela voltar e colocar os pés nojentos aqui, perto de mim, para que as coisas
desandassem completamente outra vez. Só que agora parecia tudo ainda mais aterrorizante,
porque ela estava não somente de volta como também dentro da minha fraternidade, literalmente
dentro da minha vida, do meu cotidiano, e, como se tudo isso não bastasse, hoje ela ainda se
tornaria oficialmente mais uma de nós, para não me restar a menor dúvida de que o pesadelo de
tê-la por perto ainda me acompanharia pelo próximo um ano e meio, até nos formarmos na
universidade e, finalmente, cada uma seguir o seu caminho.
Um terrível tsunami que me afogava e me deixava sem ar, porque eu sabia… Eu sabia que
eu estava reparando nela demais, pensando nela demais, sentindo por ela coisa demais que não
era apenas ódio, quando, na verdade, eu deveria me policiar para que isso não estivesse
acontecendo porque ela não deveria causar nenhum efeito sobre mim. Nenhum.
Mas...
Era por tudo... Por absolutamente tudo. Pela certeza de que a partir de hoje eu
definitivamente não me livraria mais dela, já que se tornaria de fato uma Minerva. Pela forma
como os flertes das garotas nela me incomodavam, quando eu deveria ser absolutamente
indiferente a isso. E, claro, pela maneira como eu não parava de notar cada detalhe seu... Seus
olhos, sua boca, seu rosto, seu corpo inteiro. O quanto era bonita.
Era tudo demais para mim, quando, na verdade, deveria ser de menos.
Droga, droga, droga.
Meio estarrecida comigo mesma, enquanto aquele bolo de confusão mental, por tudo o que
vinha acontecendo ultimamente, não parecia ter fim, segui direto para a cozinha. Um lugar vazio,
sem qualquer pessoa. Um local onde talvez eu pudesse colocar a minha cabeça no lugar.
Aproveitando-me da minha solidão e de que ninguém estava me vendo naquele estado, me
sentei numa das cadeiras do balcão, ou melhor, me joguei, esfregando as mãos no rosto, ao
fechar os olhos e apoiar os cotovelos no tampo.
O que você tem na cabeça Victoria?
O que?!
Quando vai parar de ser tão idiota, por causa de uma garota?
Uma garota!
Ela é uma menina.
M-e-n-i-n-a.
E você também é uma menina.
Esse tipo de coisa não deve acontecer entre mulheres.
Se for para ficar assim, alucinada, que seja por um cara, Victoria!
Foi quando eu me lembrei. Repentinamente, me lembrei, como uma luz, uma graça divina,
uma válvula de escape, uma distração para a minha cabeça tão atordoada... Maverick.
Em outra situação, em outro momento, provavelmente eu não teria pensado nele, mas uma
coisa era fato: não dava para me esquecer de que ele me fez rir, por duas vezes, em dois bilhetes,
com as suas palavras idiotas.
Sim, eu sabia e continuava totalmente certa da decisão que tomei. Maverick era um
maluco. Um maluco que conversava bem, mas, ainda assim, um maluco. E eu não deveria cair
no seu papinho. Claro que não. Claro que eu não ia cair no seu papinho. E claro que eu não ia ler
por mais um milhão de vezes a sua última carta, mas... Não ali, não agora.
Talvez, por pelo menos mais uma vez, eu me desse ao luxo de ser uma idiota. A idiota que
não parava de ler uma carta. Isso porque eu sabia que, em todas as vezes que eu lia as suas
bobagens, eu sorria. E, bem, naquele momento, talvez eu estivesse mesmo precisando sorrir, me
distrair.
Eu precisava parar de pensar nela.
Por isso, fazendo o possível para me desligar dos problemas que me cercavam e esvaziar
tudo o que existia sobre Rayka na minha cabeça, puxei, do bolso da minha roupa, a última carta
que recebi. Eu nem fazia ideia da razão de estar carregando aquela carta estúpida comigo, para
cima e para baixo, como uma espécie de amuleto idiota. Era ridículo, não fazia sentido, mas...
Assim como aquele maluco esquisito me distraiu outras vezes, agora ela poderia me
distrair da... Rayka.
Desdobrei o papel e comecei a reler, de novo, mais uma vez, pela quinquagésima vez.
O bingo.
Os Pretzels.
A caneta sorte.
E o meu sorriso.
O meu sorriso... Ali estava ele mais uma vez. Automático. Bobo. Idiota. Imbecil.
Instantâneo. Mas, tão, tão verdadeiro, só por causa de uma besteira como aquela e também por
causa de...
“Saiba que você já se tornou especial só por eu estar dando ela a você. Eu não daria a
minha filha para qualquer pessoa, é claro. Eu não faria isso por qualquer pessoa. Somente por
aquelas que eu sei que valem a pena.
E você, Victoria, vale a pena.”
Você vale a pena...
Você vale a pena...
Você vale a pena...
A cada vez que eu repetia essas palavras, o meu sorriso idiota aumentava poderosamente,
como se eu até estivesse me tornando a garota otária e iludida que nunca fui. Ou que, pela
primeira vez, eu estava sendo.
Droga.
Ainda balancei a cabeça em negativo, para mim mesma, com aquele sorrisinho no rosto
que não saía por nada, alegre como uma idiota enquanto lia aquilo e preenchia a minha cabeça
com coisas que em nada tinham a ver com a Rayka, quando, repentinamente, eu ouvi:
— Hey, o que você tá fazendo aí? — Brittany apareceu bem na porta da cozinha,
franzindo o cenho para mim. — Nós estamos precisando de você aqui fora. — e se aproximou.
Como um reflexo puramente instintivo, baixei a carta e coloquei a mão bem em cima, para
que ela não visse o que tinha ali. No entanto, isso apenas foi o suficiente para ela erguer uma das
sobrancelhas, desconfiada, e, arteira, perguntar:
— O quê que é isso aí, hein, senhorita Peterson? Está escondendo o quê?
Droga.
Por mais que Brittany fosse a minha melhor amiga e que ela soubesse de praticamente
tudo ao meu respeito, eu queria que o conteúdo daquelas cartas e a maneira imbecil como eu
ficava sempre que as lia, fossem uma experiência pessoal, particular. Sem olhares curiosos de
alguém. Algo só meu, já que eram bilhetes endereçados somente a mim.
— Não é nada demais... — rapidamente, tentei desconversar. — É só uma bobagem.
— Hum... Bobagem, é? — ainda com um olharzinho travesso de quem não se convencia
do que eu dizia, replicou. — Eu nunca vi você sorrindo assim por causa de uma bobagem... —
soltou uma risadinha. — Bom, depois que terminar aí a sua “bobagem”, vem aqui fora, tá?
Foi tudo o que falou, saindo dali, enquanto eu subitamente pensativa sobre o que ela disse,
calada, a vi desaparecer.
Eu nunca vi você sorrindo assim por causa de uma bobagem...
Encarando fixamente a porta da cozinha, sem nem piscar, depois que ela foi embora, essas
palavras, de um jeito muito bizarro, se repetiram por um milhão de vezes dentro da minha cabeça
já tão perturbada.
De supetão, senti aquilo como um pequeno, mas poderoso choque.
Algo que, até então, eu ainda não tinha me dado conta. Ou talvez, quero dizer, eu tivesse
me forçado a não me dar conta.
Nas minhas tentativas de enxergar aqueles bilhetes como uma grande bobagem de um
louco, única e exclusivamente como forma de não me envolver de verdade com a situação e com
ele, eu me cegava.
Eu me cegava para a realidade.
Mas, no fundo, bem no fundo, eu sabia que Brittany tinha razão, ainda que ela nem
soubesse do que se tratava.
Se fosse uma grande bobagem mesmo, eu não estaria sorrindo.
Eu estava gostando daquilo, por mais dura e fria que eu fosse.
Eu estava gostando mesmo de conversar com o maluco do Maverick.
Ou até, quem sabe, começando a gostar... Dele.
Meu Deus, isso era loucura.
Girando a cabeça para os lados, como quem atravessava um momento de epifania, tentei
encontrar algum papel e caneta por ali.
Foi quando eu vi, enfim, um bloquinho de notas, perto de um telefone sem fio que ficava
na cozinha. Corri para ele, o peguei e voltei para a cadeira do balcão onde eu estava.
Sem nem saber direito o que eu estava fazendo, apenas seguindo os meus instintos e
satisfazendo as minhas emoções, comecei a escrever. Agora, diferente da outra vez, eu colocava
bem menos força na minha mão, enquanto escrevia, e menos rigidez em minhas palavras, na
esperança de que Maverick logo me enviasse uma resposta de volta.
RAYKA VÍRUS

“Não diga adeus essa noite, diga que você vai ser minha”
Save Room | John Legend

RAYKA

— AI, CUIDADO! VAI CAIR! VAI CAIR!


Uma das garotas berrou no meio da sala de estar já transformada em salão de festas.
Foi automático. No mesmo instante, todas olharam na mesma direção em que ela
observava assustada. Lá em cima, no teto, o globo de espelhos, sobre a pista de dança, balançava
mais do que a Beyoncé em dia de show. Exatamente o globo de espelhos que eu tinha colocado.
Porra...
— AAAA! — gritos e mais gritos femininos e histéricos soaram ao mesmo tempo, graças
à quantidade de garotas que estavam arrumando o espaço na pista de dança, bem embaixo do
globo, e agora corriam de um lado para o outro, na tentativa de se protegerem de uma iminente
bomba em forma de espelhos voadores.
O alvoroço foi generalizado.
E só deu tempo delas se protegerem mesmo.
Um estrondo absurdo estourou os nossos ouvidos, enquanto pedaços de vidro espatifados
saltavam por todos os lados.
Ai, caralho!
Engoli seco, sentindo um filete de nervosismo e preocupação descer pela minha testa em
forma de gotas de suor. Imagina se aquilo tivesse caído na cabeça de alguém? Eu poderia me
considerar uma assassina em pleno os vinte e um anos de idade. Droga, droga, droga.
Pelo menos, não houve um acidente, mas o estrago no meio do salão estava feio. Cacos de
vidro inundando o chão da sala, como um imenso campo minado onde ninguém poderia pisar
com os pés descalços, um dos sofás furado por um ferro que também se desprendeu do teto e...
Jarros de flores caríssimos, caídos e quebrados, graças ao impacto do globo em cima de dois
deles antes de se estraçalhar no piso.
Puta merda.
— Ah não... — escutei uma das garotas alarmadas lamentar.
Brittany, por sua vez, exclamou:
— Gente, que terrível, tombou comigo! — e, então, boquiaberta, simplesmente desabou
sobre uma das cadeiras, se abanando.
Ainda cocei a nuca, pensando em que porra eu poderia fazer para me livrar daquela
bagunça toda, enquanto era tempo e Victoria não aparecia com uma serra elétrica pronta para me
matar, porque, sim, cara, nossa, ela ia me assassinar muito. Ela ia me matar pra caralho. Capaz
de me matar e me fazer ressuscitar só para ter o prazer de me assassinar de novo.
Tá, Rayka, é melhor você agir logo.
Não fica pensando muito, sua filha da puta.
Vai logo e...
Porém, quando dei o primeiro passo em direção à cena do crime, para esconder qualquer
vestígio que me desse uma sentença morte, só ouvi a tão conhecida voz estridente exclamar:
— O que foi que vocês destruíram?!
Puta que pariu.
Com os olhos bem arregalados, atordoada, Victoria saiu praticamente correndo da
cozinha, onde estava, e nos alcançou.
No entanto, antes mesmo que qualquer uma de nós dissesse alguma coisa, suas próprias
orbes tiveram a resposta. Quando notou os milhares de cacos de vidro espalhados por todos os
lados, junto com o sofá furado e os jarros quebrados, soluçou, sem nem piscar, tamanho choque.
— Ah não... Não, não, não! Que diabos vocês fizeram?!
Meu Deus.
— O glo-globo... O globo simplesmente caiu, do nada, Vic — disse uma das garotas,
nervosa, tentando explicar.
— Sim, disso eu sei, sua idiota! Percebi que o globo caiu! — berrou, quase fora de si. —
O que eu quero saber é como aconteceu! — puxou o ar, como se estivesse sem fôlego, e, então,
repentinamente, parou, girando o rosto, de súbito, em minha direção. — Aliás... Eu até devo
imaginar... Não foi você quem teve a brilhante ideia de subir nos andaimes para colocar o
maldito globo?! — e, com ódio, cuspiu todas as palavras para mim, erguendo uma das
sobrancelhas e cruzando os braços.
Droga.
Pressionei a mandíbula, tentando pensar nas melhores desculpas, para não irritar ainda
mais a fera pronta para o ataque. Ela me comeria viva. E não, não seria no bom sentido da
palavra “comer”, infelizmente. O problema, no entanto, era que eu não conseguia imaginar uma
alternativa mais assertiva do que dizer a própria verdade.
— Olha só, Vic, eu juro que não sei o que houve... E-Eu... Eu me lembro de ter deixado o
globo bem preso lá em cima, sério! — estalei a língua no céu da boca. — Foi uma fatalidade.
Ela, por sua vez, começou a gargalhar, feito uma louca, como se estivesse delirando.
— Ah, você não sabe o que aconteceu...? Own, que gracinha! — continuou rindo, até
subitamente parar e me encarar com os olhos pegando fogo de ira. Uma mudança tão repentina
de humor que me fez vincar a testa. — Pois eu sei, sim, o que houve! — retrucou entredentes. —
O que houve foi o seu enorme e monumental ego que não nos deixou contratar nenhuma pessoa
especializada para fazer esse trabalho!
Como é?
Franzi o cenho, sem entender.
— Nã-Não, Vic, espera aí... — tentei me explicar. — Não foi isso, não. Eu só quis ajudar.
— Não! Nananinanão! — balançou a cabeça em negativo freneticamente, ainda feito
louca. — Você não quis ajudar, você quis aparecer! Isso sim!
Quê?
Aparecer?
— Eu não quis aparecer não, garota. Para de viajar. Foi só para ajudar.
— Foi para aparecer sim! — tornou a dizer. — Ou você acha que eu não notei o seu
sorrisinho de convencida, lá em cima, enquanto as garotas babavam por você aqui embaixo,
hein?
Calma aí.
Enruguei a testa de novo, só que, dessa vez, sorrindo sem conseguir segurar.
Victoria estava mesmo falando isso?
Não, não podia ser.
— Quer dizer que, enquanto eu estava lá em cima, você ficou toda se mordendo aqui
embaixo, por causa da maneira como as meninas estavam me olhando? — e, cara de pau, ergui
uma das sobrancelhas para ela. — Toda essa briga, então, é rancor? — ironizei de leve.
Victoria, por sua vez, parou por dois segundos, como se eu tivesse atingido um ponto seu
muito específico. Me encarou, ligeiramente sem jeito, e, então, logo depois, bufou consigo
mesma, retrucando para mim:
— Ai, cala a boca, Rayka, não mude de assunto! O foco central disso aqui é o tamanho do
seu ego! Esse globo nos custou uma fortuna, assim como os jarros e... Ah, minha deusa... —
choramingou observando o sofá furado. — Esse sofá é como uma relíquia para a fraternidade,
sua miserável! Se não fosse você querendo ser a porcaria de uma autossuficiente isso não estaria
acontecendo agora!
Eu tinha certeza de que a maior razão para o seu berreiro não era a preocupação com a
festa, nem mesmo com o sofá que teoricamente era uma relíquia para a fraternidade. Na verdade,
Victoria só estava querendo aproveitar a oportunidade para soltar os cachorros em mim, assim
como sempre acontecia quando ela tinha qualquer mínima chance.
— Uuuuhhh... — ironizei outra vez, erguendo as mãos. — Então, você quer mesmo falar
de autossuficiência, Victoria? Por que não comenta sobre não ter deixado as meninas
contratarem uma decoradora profissional, uma vez que você se acha a dona de todo o bom gosto
da face da Terra? Hum? Ou por que não menciona sobre o fato estúpido de que não deixou
nenhuma das outras garotas escolher vestidos de cor vinho, já que você quer ser a única com essa
cor de roupa na festa, só para aparecer? O nome disso é ego! Tudo o que você vê em mim,
gatinha, está em você!
Foi automático, Victoria bufou ainda mais, estreitando os olhos em minha direção e
fechando os punhos.
Eu poderia jurar que ela seria capaz de partir para cima de mim, a qualquer momento. E,
confesso, eu ia adorar uma gostosa dessa indo para cima de mim, mesmo que fosse para me dar
um tapa na cara.
— Ah, sua imbecil, eu... — retrucou ela, se inchando gradativamente, até…
— Êêê, vamos parar, vamos parar por aqui... — Brittany, enfim, acordou do seu marasmo
de abanação depois do choque e se levantou da cadeira para apaziguar a situação. — Chega de
discussão que não vai resultar em nada relevante, além de rugas criadas antes do tempo. Você,
meu benzinho... — virou-se para mim. — Cai fora daqui, sei lá, vai beber uma água para acalmar
os ânimos. E você, gata... — girou o rosto para Victoria. — Vem pra cá, nós vamos fazer uma
sessão de respiração orientada, para que você relaxe e não tenha um AVC com apenas vinte e um
anos.
Brittany já ia saindo com a Victoria, quando...
— Ei, espera aí, eu tenho que terminar um negócio aqui na sala e... — tentei falar.
Britty, no entanto, me interrompeu.
— Não, não, meu bem, sai daqui por enquanto, ou a Victoria não vai pensar em outra
coisa além de quebrar a sua cara com um pedaço desses jarros de flores. Sei lá, vai pra cozinha,
gata, bebe uma água, e só volta aqui depois de uma meia hora.
E, então, dando dois toquezinhos de leve em mim, já foi me empurrando para lá.
Droga.
Suspirei.
No mesmo instante, Brittany já caminhava para longe, com a Victoria, enquanto as outras
garotas ajeitavam a bagunça na sala. Todas muito bem treinadas, como se soubessem que um dos
seus papéis, naquela fraternidade, era servir. Servir a Rainha Victoria. Balancei a cabeça de leve
para mim mesma e, com os ombros curvados, dei as costas, caminhando para a cozinha, assim
como a outra patricinha me disse para fazer. Talvez eu estivesse mesmo precisando de uma água
para engolir toda aquela estupidez de Cerimônia do Broche.
Honestamente, eu nem fazia questão daquilo. Para mim, ser Minerva e nada eram as
mesmas coisas.
Na noite anterior, quando cheguei do meu primeiro dia de trabalho na lanchonete e
encontrei as garotas conversando animadas sobre a ideia dessa cerimônia, eu neguei. Eu disse
que não precisava. Só que elas, meu Deus, já tinham dado como certo que aconteceria, porque
estava na merda do regimento. E, se estava na merda do regimento, era uma regra a ser
cumprida. Compramos um monte de hambúrgueres (ideia minha, claro) e ficamos papeando
enquanto eu tentava convencê-las de que essa cerimônia era uma grande perca de tempo.
Mas, Victoria chegou...
Victoria chegou com aquela carinha tão linda e tão gostosa de indignação, ao me ver com
as suas garotas, que eu me senti incitada a... Provocá-la. Sério, juro. E, bem, isso até abre
margem para que você, caro leitor, me julgue, mas, puta que pariu, pode me julgar, caralho. Me
julgando ou não, a minha opinião sobre a carinha de irritação, dela para mim, ser estupidamente
fenomenal, não iria mudar.
Que a Victoria ficava uma puta de uma gostosa quando estava irritada comigo, ah, isso ela
ficava sim!
Aliás, ela era gostosa de qualquer jeito, obviamente, mas com raivinha, tinha um tempero
todo especial. Inclusive, caro leitor, você precisa admitir que ela estava, sim, gata para um cacete
enorme, naquela sala de estar, há poucos minutos, com os bracinhos cruzados, a sobrancelha
arqueada e a cara de entojo para mim. A mulher era um monumento, no meio daquele piso cheio
de cacos de vidros, enquanto tentava me acertar com um dos pedaços de jarro quebrado. Gostosa.
Fenomenalmente gostosa.
E, ontem, não foi diferente.
Fenomenalmente gostosa, com aquela carinha linda de... sei lá, ciúmes(?), enquanto me
via entrosada com as garotas.
Bom, se era realmente ciúmes, eu não sabia, mas de uma coisa eu tinha certeza absoluta:
aquela carinha me instigou. Me instigou a ver mais daquilo, a atormentá-la para receber de volta
o biquinho que só ela sabia fazer com a sua boca sensacional.
Certo... Podia ser infantilidade minha? Sim, claro, podia.
Na verdade, talvez fosse isso mesmo. Talvez fosse infantilidade de uma desgraçada que
não tinha um por cento de juízo quando se tratava de uma mulher bonita e gostosa cujo nome era
Victoria.
Mas, foda-se.
Eu que não ia perder a oportunidade de ver aquela princesa linda, maravilhosa e gostosa
cheia de raiva por mim, mais uma vez.
Então, fingi que eu estava muito satisfeita com a história da Cerimônia. E o resultado foi
exatamente esse: um globo de espelhos estraçalhado, dois jarros quebrados e um sofá furado.
Suspirei, caçando um copo por ali, enquanto avaliava que as minhas tentativas de ganhar
um por cento daquele olharzinho gostoso e irritado estavam se tornando cada vez mais perigosas
e caras. Aquele globo devia custar uma fortuna mesmo e o sofá, então, caríssimo... Mas... Ah,
bobagem. Dei de ombros. O PIB de Miami inteira estava praticamente todo dentro daquela
fraternidade. Todas aquelas garotas nasceram com a bunda virada para a lua, riquinhas. Elas
tinham pais milionários.
Um globo ou um sofá a menos ou mais, não faria diferença.
Balancei a cabeça de leve e, então, abri a geladeira, enchi um copo d'água e,
displicentemente, tomei alguns goles.
Quando girei o pescoço para um lado, quase desatenta e entediada, ainda com o copo na
boca, vi algo.
Estava praticamente piscando para mim, com luzes neons e glitter de festinha. Em cima do
balcão. Sim, bem ali, como se tivesse sido largada por acaso. Quero dizer, como se não tivesse
sido deixada propositalmente ali. Esquecida.
Parei tudo o que eu estava fazendo.
Aquele nome.
Aquela letra.
“Maverick” com uma escrita tão bonita e bem desenhada...
A porra do meu coração acelerou em uma certeza.
Victoria.
Era a resposta da Victoria à minha última carta.
Sim, claro que era.
Entre folhas espalhadas, algumas em branco, outras amassadas, e uma caneta jogada de
lado, estava a carta dela, em resposta a mim.
Engoli seco, sentindo o coração acelerando de ansiedade para descobrir o que tinha ali.
Era como se estivesse se tornando um vício. A merda de um vício onde eu desistia de qualquer
coisa que eu pudesse estar fazendo, ainda que fosse importantíssima, só para respondê-la e, claro,
saber o que Victoria tinha a dizer para mim. Ou melhor, para o Maverick.
Tensa, ainda ergui brevemente as orbes, olhando na direção da porta da cozinha, para
observar o movimento lá fora e garantir que eu não estava sendo espionada.
Concentradas na arrumação da bagunça e na desorganização da sala, as garotas pareciam
muito entretidas, andando de um lado para o outro, conversando entre si, e atentas aos mais
diversos pontos da sala que em nada tinha a ver com a cozinha onde eu estava. Victoria e
Brittany também não estavam por ali. Aliás, não havia qualquer sinal delas.
Esse poderia ser o momento ideal para agir.
Ainda ergui brevemente a mão, para pegar o papel.
Só que...
Droga.
Droga, droga, droga.
Peidei pra dentro, por um instante.
Eu não deveria pegar naquela carta agora.
Eu deveria esperar até o dia seguinte, na aula, quando Victoria, enfim, colocasse a carta na
caixinha e me permitisse ler, mesmo que aquele troço, em cima do balcão, estivesse me
chamando como o canto de uma sereia que enfeitiçava.
E se a Victoria chegasse do nada e me visse lendo isso?
O que eu ia dizer?
Que porra de desculpa eu ia dar?
Victoria ia me assassinar, me esquartejar e me colocar em praça pública, com todos os
pedaços separados, para que as pessoas vissem o que acontecia com quem não conseguia
controlar a curiosidade.
Por outro lado...
Ah, puta que pariu, estava na cara que eu não seria capaz de controlar a ansiedade e a
curiosidade. Eu não teria a menor capacidade de esperar até o dia seguinte, para que ela
colocasse a carta no correio e, assim, eu finalmente pudesse ler.
Que merda.
Eu estava parecendo uma viciada.
Uma viciada nas drogas das cartas da Victoria.
Foda-se.
Com o coração acelerado, numa mistura de tensão pelo risco iminente de ser pega no
flagra com curiosidade para saber o que ela me disse dessa vez, eu me certifiquei novamente de
que não tinha ninguém me observando e puxei a carta em um piscar de olhos.
Fiquei meio de lado. Nem totalmente de frente, nem totalmente de costas, mas numa
posição adequada para que eu visse se alguém entrasse ali e, ao mesmo tempo, para que essa
hipotética pessoa não percebesse de cara o que eu estava segurando.
Engolindo seco, larguei o copo no balcão, desdobrei o papel rapidamente e li.

“Olá, Joe Goldberg!


Ou será que devo chamar de Paul Spector?
Ah, sei lá, os dois não prestam. Não sei qual o mais maluco. Ambos perseguem e matam
mulheres. Você, por acaso, está querendo me matar, Maverick? Olha só, eu já fiz dois anos de
kickboxing, tá legal? Ou seja, eu sei muito bem como me defender de um psicopata. Se eu fosse
você, tomaria muito cuidado comigo.
A partir de agora, estarei observando, com olhares muito atentos, quem fica me
encarando durante a aula de Literatura. Se eu notar algum doido-psicopata, com cara de
perturbado, já vou saber que é você. Acho que vou matar essa charada rapidinho.
Bom, creio que você percebeu que a minha inteligência artística não é nenhum pouco
apurada para a Literatura. Pois é, eu tenho certeza de que a deusa me fez assim para me dar, sei
lá, uma grama de modéstia, sabe? Talvez ela tenha pensado ‘nossa, essa garota já está perfeita
demais, vou deixar ela um pouquinho burra em alguma coisa’. Pronto. A coisa escolhida foi a
Literatura.
Só me matriculei nessa porcaria porque eu estou realmente precisando completar alguns
créditos de disciplinas optativas para me formar. A disciplina da tia Daisy foi a opção menos
ruim. E eu ainda achei que ela me daria alguma ajudinha por eu ser a filha do marido dela.
Kkkk, ai, como eu sou muito iludida. Sério, às vezes dá até vontade de rir.
O fato é que, a cada nota baixa que eu tiro nessa disciplina, uma fadinha dos romances
contemporâneos morre. Juro pra ti. Vi até no jornal, a notícia. Posso ler uns cinquenta
romances desses autores independentes que publicam na Amazon, mas não me faça ler uma
linha sequer de Shakespeare, porque eu devo ter algum tipo de falha cognitiva no raciocínio.
Não consigo entender ou interpretar praticamente nada do que existe naquelas ‘entrelinhas’.
Que droga, qual a dificuldade de ser direito?! De dizer o que realmente está sentido? Pra
que florear as coisas e deixar tudo muito cheio de firulas? Um saco.
Olha só: ‘Não chame o meu amor de idolatria, nem de ídolo você a quem eu amo. Sei que
não posso exigir seu amor, assim como proclamo meu amor galante. Dou-lhe apenas algumas
razões para que goste de mim.’
Sério.
Será que o tal do Shakespeare não podia resumir tudo isso em algo como: ‘Cara, sou
louco por você e te amo pra caramba, mas não me acha um sociopata por causa disso, tá?
Beijo.’
Pronto. Melhor. Muito melhor.
Se fosse assim, eu não estaria com a corda no pescoço em uma disciplina que nem faz
parte realmente do meu curso de origem.
Mas, enfim...
Valeu pela sua caneta da sorte. Você é muito gentil, meu bom senhor. Vou guardá-la com
a minha vida. Já deu para perceber o quanto ela é importante para você e o quanto eu sou
especial por tê-la recebido.
Quem entregaria sua própria filha a uma estranha, não é mesmo?
Inclusive, acho que vou escrever o nosso trabalho com ela. Vai que dá sorte mesmo. Estou
apelando para todas as alternativas que me façam tirar nota boa em Literatura.
Até a próxima, Senhor Desconhecido.
Um beijo na sua cara de pau,
Victoria
Re.P.S.: Olha só, eu realmente não sou de me interessar por caras malucos-perturbados
que me espionam durante a aula e não merecem cinco por cento da minha confiança. Aliás,
fique sabendo que os caras precisam ralar muuuito para conseguir qualquer coisa comigo.
Mesmo que tenha a porcaria de uma foto minha circulando por aí, eu não sou nem um pouco
fácil, sabe? Por isso, não vou responder onde seria o (hipotético, bem hipotético mesmo, não
crie esperanças) beijo que te mandei na última carta, maaas… O meu cachorro tá aqui
querendo saber onde você acha que poderia ser :)
Ele não para de me perguntar. Sério.
P.S.: Inclusive, será que dá para me dar uma pista de quem você é ANTES QUE EU, QUE
SACO, MORRA DE CURIOSIDADE? Obrigada.
P.P.S.: Eu não tenho cachorro :)”

Caralho, a Victoria era foda.


Foda.
Foda.
Foda.
Ah, não era para eu criar esperanças?
Sinto muito, gatinha, mas eu JÁ CRIEI TODAS.
Que merda.
Além de linda e gostosa, ela também tinha humor. Por que essa beldade resolvia esconder
isso de mim? Seria tão maneiro, se ela agisse assim comigo na vida real também. Sim, Victoria
tinha um humor seletivo, quase passivo-agressivo. Ela te fazia rir, mas, nas entrelinhas, sempre
dava a entender que poderia te assassinar a qualquer momento. Era incrível. Maravilhoso.
E eu não parava de sorrir feito uma imbecil.
Era como se, a cada carta dela, aquele meu sorriso de coringa se tornasse três vezes maior.
Eu não queria nem ver como eu estaria na última carta do trabalho. Talvez completamente
perturbada, realmente do jeitinho como ela dizia que Maverick era.
Soltei uma risadinha de novo, balancei a cabeça de leve, enquanto relembrava as suas
palavras sutilmente agressivas, sempre que me chamava de “maluco”, mas também
significativamente engraçadas.
E, para completar...
Onde você acha que poderia ser?
Onde você acha que poderia ser?
Onde. Você. Acha. Que. Poderia ser?
Parecia inacreditável que Victoria Peterson, aquela garota que faltava não pisar no chão e
era evidentemente difícil tanto quanto assumia ser, poderia perguntar isso para alguém.
Perguntar isso para mim.
Victoria estava gradativamente se abrindo para mim, mesmo que não quisesse enxergar
isso ou mesmo que fosse orgulhosa o bastante para não querer admitir que estava curtindo o
papo. Quero dizer, ela estava se abrindo para o Maverick. E o problema era exatamente esse. Ela
estava se abrindo para o Maverick.
Puta que pariu, Rayka, você sabe que está fodida, né?

✽ ✽ ✽

Sim, eu sabia que estava realmente fodida, muito fodida, fodidaça, não somente pela carta,
pelo que aquela menina insuportável me fazia sentir com apenas palavras escritas, pelo risco que
eu estava correndo, e pela forma como tudo isso poderia acabar em uma grande merda, mas
também por ter passado o dia inteirinho pensando nisso tudo e, claro, nela. No seu rosto bonito,
nos seus olhos castanhos e bem arredondados, no seu sorriso de coelho, no seu corpo... As pernas
bem torneadas, a bunda grande.
Que bosta, hein, Rayka?
Durante aquele dia, depois de ler a carta, por vezes senti que tivesse regredido ao colegial,
como quando a gente gosta de alguém pela primeira vez na vida e passa o dia inteiro vegetando
por causa disso.
Só que tudo se tornava pior quando ela estava por perto e olhava na minha cara. Eu
reparava em todos os seus detalhes com muito mais atenção do que deveria, e também me
lembrava de todas as merdas que me preocupavam e passeavam pela minha cabeça desde que
essa história com as cartas começou.
Agora mesmo, ainda que eu estivesse na frente do espelho do meu quarto, terminando de
me arrumar, enquanto a Casa das Minervas lá fora estava completamente pronta para a festa e a
música rolava, os meus pensamentos continuavam nela, na carta, naquilo que me encucava.
Era um inferno.
E o inferno maior ainda era saber onde eu estava me metendo.
Victoria só estava respondendo as cartas daquele jeito, e se abrindo gradativamente para
alguém, ainda que não admitisse isso, porque pensava que Maverick era um cara. Ou melhor,
porque a última coisa que ela iria imaginar era que Maverick era eu.
Felicidade e paz de mulher lésbica pareciam durar pouco.
Era um saco.
Talvez isso tivesse acontecido por causa do pseudônimo que eu usava, ou da maneira
como eu falava. Sei lá. Contudo, também existia a possibilidade dela pensar que eu era um cara,
independente de qualquer coisa, do meu pseudônimo, do meu jeito de falar, ou de qualquer
porra. Na verdade, era uma possibilidade muito provável, considerando o quanto Victoria se
achava hétero.
Victoria nunca esteve acostumada com a ideia de uma garota flertar com ela. Provável que
os únicos casais que ela conseguia enxergar eram aqueles formados por um homem e uma
mulher.
E o pior é que não era como algo que eu simplesmente conseguia parar. Aliás, a verdade
era que, por mais louco que fosse assumir isso, eu não queria parar. Mesmo com todos os riscos,
eu não queria parar com as cartas, nem com a forma como eu me sentia livre para ser eu mesma
através delas. Sim, isso era como uma droga. Um enorme risco.
Eu sabia que, provavelmente, estava nesse exato momento sendo xingada por uma
população inteira de lésbicas que já se deram mal com meninas hétero, mas a verdade era essa:
eu não queria parar. Pelo menos, não por enquanto, ainda que eu soubesse que, evidentemente,
uma hora, eu teria que parar, cortar uma parte da simpatia do Maverick, focar no trabalho (que
era o real motivo para estarmos trocando as cartas), reduzir os flertes. Eu só não queria que isso
acontecesse agora.
Porque era bom ser com ela quem eu realmente era, e falar com ela do jeito como eu
realmente queria falar.
Sim, para completar a minha grande cagada, ainda existia um jeito... Um jeitinho muito
específico com o qual a porra do meu coração queria respondê-la. Pois é. Não bastava consolá-la
das merdas que aconteciam na sua vida, nem falar apenas sobre o trabalho da disciplina, eu
também tinha que ser idiota o bastante para não me aguentar e começar a flertar.
Puxei o ar, balançando a cabeça, contrariada comigo mesma.
Era melhor eu tentar me concentrar em outras coisas, pelo menos por agora, antes de
decidir sobre o que eu iria fazer da minha vida. Eram oito horas da noite, e eu já não aguentava
mais ter passado quase dez horas seguidas pensando nas mesmas coisas. Se eu continuasse
assim, eu realmente iria enlouquecer.
Passei uma das mãos nos cabelos, terminando de me arrumar, ajustei o terninho que eu
usava e, enfiando o celular no bolso interno, resolvi enfim sair do quarto.
A casa já estava lotada e a enorme sala de estar, que tinha se transformado em salão de
festas, abarrotada de pessoas. A música alta de festa não deixava ninguém parado e, por ali, as
garotas da fraternidade, junto com os seus muitos convidados, já dançavam.
Depois de todo o estresse, conseguimos um globo de espelhos intacto e jarros novos para
as rosas ornamentais. Quanto ao sofá, bem, um novo seria entregue à fraternidade em breve.
Mesmo assim, a sala já tinha tantos móveis e outros sofás, que, honestamente, não faria falta para
a festa. Victoria, porém, ainda estava bufando comigo. A cada vez que cruzava o meu caminho,
durante o dia, fazia uma cara linda de abusada. O problema era esse: linda. Quanto mais ela me
encarava com ódio, mais eu a achava gata pra caralho.
Pelo amor de Deus.
Inclusive, Victoria aparentemente ainda não estava por ali. Pelo menos, nos lugares onde
eu caminhei por entre as pessoas, eu não a vi. Ainda assim, tentei me concentrar em coisas que
não tinham a ver com a garota. Já me parecia o bastante ter passado o dia inteiro pensando nela,
depois daquela carta.
Puxei uma taça de champanhe de um dos garçons que passava servindo, quando...
— Ai, meu Deus, como você está linda! — ouvi uma voz falar bem atrás de mim.
Mamãe.
Quando me virei, já sorrindo, dei uma voltinha com os braços abertos, faceira e divertida,
na sua frente, falando:
— E aí, curtiu mesmo, senhora Ferris?
— Eu adorei, querida! — disse, quase choramingando como se estivesse falando com um
bebê, e me abraçou. — Eu estou tão orgulhosa de você e da Victoria! Finalmente estão se dando
bem!
Franzi o cenho de leve, enquanto a soltava do abraço por alguns centímetros.
— Se dando bem? — ergui uma das sobrancelhas.
De onde a minha mãe tirou isso?
No que dependesse da Victoria, eu já estaria enterrada e sepultada no cemitério de
Miami, bem longe da sua fraternidade e da possibilidade de ser uma Minerva.
— Claro, meu amor...! — respondeu ela, ainda tão contente. — Victoria não faria uma
Cerimônia dessa, maravilhosa, para te receber oficialmente como Minerva, se vocês não
estivessem se dando bem.
Quê?
Por alguns segundos, ainda tentei processar as suas palavras, buscando algum sentido
entre elas, já que Victoria preferia ter o demônio por perto do que eu, até que…
Soltei uma risadinha meio forçada, enfim reagindo.
Eu acho que não, hein?
Mas, tenho que dizer que sim, para gerar uma energia boa.
— Oh sim, mamãe, claro! — sorri amarelo. — Está sendo perfeito esse momento aqui,
nunca estive tão em paz com a Victoria! E, para completar, ela ainda fez questão de organizar
essa... — besteira. — Maravilha de festa para me receber. Não é o máximo?!
— Com certeza! Bem que eu falei que essa decisão de vir morar na fraternidade era muito
acertada! Viu só?
— Unhum... — sorri forçado de novo. — Estou vendo, mamãe. Estou vendo. — e
suspirei, tentando recuperar parcialmente o fôlego, porque só de fingir aquilo, por breves três
minutos, me cansava.
Repentinamente, porém, antes que mamãe respondesse algo mais que faria reduzir
drasticamente a minha bateria social, para aguentar a tal cerimônia até o final, escutei falarem
pertinho de nós:
— Ora ora, olha só quem está aqui! A nova patricinha do pedaço!
Quando me virei, lá estava a maluca com mechas cor de rosa no cabelo. Alyssa,
acompanhada do Jeff. Os convidei, porque não suportaria permanecer a noite inteira, sem algum
alívio cômico, naquela festa estúpida, onde a competição feminina reinava e as garotas, com os
seus vestidos, só se preocupavam em parecer mais bonitas do que as outras, como se pudessem
ganhar algum prêmio por isso.
Alyssa, no entanto, obviamente não perderia a oportunidade de zoar com o fato de que eu,
logo eu, a sapatão mais caminhoneira que ela conhecia, estava se tornando uma Minerva.
— E aí, tia! Tudo bem? Tudo em cima? — cumprimentou a minha mãe, que
simpaticíssima sorriu de volta para ela, assim como Jeff também o fez, dando um beijinho em
cada lado do seu rosto. — Essa menina daqui a pouco deixa o cabelo crescer e faz uma
lipoaspiração, né, tia?
Mamãe riu, e Jeff também.
— Bom, eu espero que não... Rayka já está linda assim — respondeu ela, bem-humorada.
— Ah, eu também acho que ela é a maior gata assim, mas, sei lá, esse negócio de cabelo
grande, loiro, e lipoaspiração não faz parte das regras do regimento das bonecas de plástico
daqui? — franziu o cenho, fingindo estar confusa.
Foi automático. Todos riram de novo.
— Para de ser idiota, Alyssa... — repliquei, balançando de leve a cabeça, displicente.
Quando me calei, porém, só ouvi Jeff sibilar, boquiaberto, olhando para alguma coisa, sem
nem piscar:
— Uau...
Enrugando a testa, sem entender o que estava acontecendo, meu sorriso até titubeou.
Bastou, no entanto, eu virar o rosto na mesma direção que ele observava, para que eu entendesse
do que se tratava. Não precisei de mais que meio segundo para perceber. Estava claro,
chamativo... Estonteante.
De súbito, toda a minha atenção se concentrou nela, apenas nela, como se a casa
repentinamente tivesse esvaziado, para restar, ali, somente nós duas.
Victoria.
— Porra... A patricinha tá a maior gostosa. Caralho. — Alyssa assobiou.
— Linda... — Jeff, com a baba quase escorrendo, também falou.
E eu… Eu talvez não quisesse olhar para mais nenhuma outra pessoa daquela festa que
não fosse ela. Aparentemente, os meus olhos achavam que apenas a Victoria valia a pena. Até
endireitei a coluna, enquanto a observava no topo da escada, como uma Cinderela, descendo
degrau por degrau.
Os seus longos cabelos estavam presos em um coque, deixando ainda mais vistoso o
decote elegante, em “v”, cavado, que emoldurava seu busto. O vestido de seda na cor vinho, com
alças bem fininhas, cujas costas eram nuas, deixava a sua aparência ainda mais monumental do
que normalmente já era.
No pescoço, uma gargantilha prateada e brilhante.
No rosto, um olhar que me faria reencarnar umas dez mil vezes e viver umas dez mil vidas
só para ter o prazer de vê-la de novo, durante todo esse tempo.
Victoria estava realmente... Perfeita.
Perfeita como sempre foi.
— Ficou de pau duro, né, vadia? — Alyssa zoou, sussurrando no meu ouvido.
Estalei a língua no céu da boca, sem tirar os olhos da garota que descia as escadas.
— Cala a boca.
Só que o pior não foi o comentário irônico da Alyssa, nem o quanto eu evidentemente
estava parecendo uma idiota, mas, sim, o pensamento que passeou sorrateiro pela minha cabeça,
enquanto eu não tirava os olhos da menina, quase hipnotizada. Uma certeza assustadora, mas tão
real. Tão possível. Um breve momento em que eu, enfim, caía na real, apesar de todas as minhas
brincadeiras e provocações bobas que tinham como único objetivo conseguir a sua carinha linda
de raiva.
Ou melhor, a sua atenção.
Eu nunca parei de gostar da Victoria.
Era isso.
Simples assim.
Uma verdade que custei a admitir para mim mesma, mas que era tão clara e cristalina
quanto água.
Mesmo com o fora no motorhome há dois anos, mesmo com todas as suas patadas em
mim, mesmo que ela fosse chata pra caralho e convencida à beça, mesmo com o tempão que
passamos longe uma da outra, mesmo que eu tivesse ficado com dezenas de meninas no
intercâmbio… Eu nunca parei de gostar da Victoria.
E, naquela noite, uma coisa era certa: ela não ia sair da minha cabeça, nem com uma reza
muito braba.

VICTORIA

Enquanto eu descia as escadas, a Casa das Minervas parecia impecável. Linda. Claro, para
ser uma Minerva, o bom gosto era imprescindível. Mesmo depois do pisão na bola absurdo que a
imbecil da Rayka deu mais cedo, as garotas felizmente conseguiram recuperar a decoração a
tempo dos convidados chegarem. Fizeram valer o benefício de estarem naquela fraternidade.
Sim, estar ali era um baita benefício.
E elas precisavam ser úteis, para se considerarem Minervas.
Porém, não importava o quanto o tudo estivesse aparentemente tão perfeito na exata forma
como eu também deveria ser, eu só queria sumir. Isso mesmo, sumir daquela palhaçada enorme e
ridícula. Por fora, eu não era nada mais do que a garota educada, classuda e exemplar que eu fui
ensinada a ser. Por dentro, tudo o que eu mais desejava era arrancar bruscamente a porcaria
daquele vestido, subir correndo para o meu quarto e fugir daquilo, fingindo que tudo não passava
de um sonho ruim.
Poderia ser um dramalhão enorme meu? Poderia.
Mas...
Nada, absolutamente nada era capaz de me convencer de que eu deveria estar sentindo
qualquer coisa diferente da minha indignação interna e da imensa vontade de que todos, que
tiveram aquela ideia absurda de fazer uma Cerimônia do Broche exclusiva para a Rayka,
explodissem.
Eu juro que não sabia de onde tiraria tanto controle emocional, para colocar um sorriso no
rosto e parecer satisfeita, enquanto estivesse entregando o broche para o motivo dos meus
maiores pesadelos. A garota que eu mais evitava e que eu mais afastava, para que alguma
bobagem não acontecesse, agora moraria oficialmente debaixo do mesmo teto que eu, até o fim
da faculdade.
Ou, quem sabe, até o meu fim.
A fraternidade sempre foi o meu único lugar seguro, depois que voltei de Nova Iorque e
passei a estudar na Universidade de Miami. Enquanto ela estava na casa do meu pai, com a sua
mãe, eu estava nas Minervas. Enquanto eu estivesse na fraternidade, longe dela, eu não faria
besteiras, nem cogitaria besteiras. Eu não me comprometeria com nada além dos meus próprios
planos para mim mesma.
Não imaginaria.
Não sonharia.
Eu não faria nada com ela.
Só que agora... Droga. Agora, as portas do inferno simplesmente foram abertas. Na
verdade, estavam abertas desde o dia em que o meu pai me comunicou (sim, ele não pediu, ele
apenas comunicou como se a minha opinião e nada fossem a mesma coisa) de que ela ficaria ali.
A partir de então, a minha mente pipocava um monte de bobagens a respeito dela. Não existia
mais lugar seguro para mim. Simplesmente não existia, porque Rayka estava em todas as partes.
Isso era aterrorizante.
Se eu falasse palavrão, com certeza seria um ótimo momento para dizer “puta que pariu,
que merda!”, mas eu era perfeita demais para isso.
Respirei fundo, enquanto olhava ao redor.
Eu sabia que a maior palhaçada de todas estava prestes a acontecer. Meu pai já estava ali,
conversando com alguns conhecidos. Ele seria o primeiro a fazer um discurso. Logo depois, seria
eu, seguida da entrega do broche. E eu não podia nem, sei lá, cortar os fios da casa para acabar
com energia e evitar que aquilo acontecesse, porque era motivo de deposição, quando uma
presidenta não seguia o próprio regimento da fraternidade.
E eu definitivamente não podia ser deposta.
A minha avó me queimaria com ferro em brasa.
Inferno.
Aliás, Brittany, como a organizadora-chefe da Cerimônia, se aproximando de mim, fez o
favor, ou melhor, o desfavor de me lembrar do meu destino iminente e deplorável.
— Faltam três minutos.
— Ai, que ódio — ralhei. — Será que dá para me poupar disso? Existe alguma saída?
Uma luz no fim do túnel? Algum lugar por onde eu possa sair correndo sem que alguém me veja,
pelo amor da deusa...?!
— Coloque um sorriso no rosto, querida... — disse ela, quase sussurrando entredentes para
mim. — Ou as pessoas vão perceber.
Que saco.
— Todo mundo sabe que eu prefiro ter o capeta por perto do que a Rayka. Ela consegue
ser pior do que o satã.
Quando fiz que ia revirar os olhos, porém, parei no meio do caminho. A ação foi
totalmente interrompida pelo meu corpo que retesou involuntária e estupidamente. Na verdade,
eu nem sabia por que tinha reagido assim. Ou, na verdade... Ou, na verdade, eu até soubesse,
mas não quisesse admitir.
Rayka.
A própria encapetada.
Foi como ver tudo em câmera lenta, os passos que dava, as piscadas dos seus olhos, a
forma como os braços se movia à medida que caminhava, ou como seus ombros subiam e
desciam sutilmente a cada vez que respirava. Mas, acima de tudo, o seu rosto, o semblante que
me dava, a forma como me observava, a maneira como estava chegando perto de mim, vestindo
um blazer preto aberto, com pedrarias igualmente escuras, mas brilhantes, gravata, suspensório,
calça slim e sapato social.
A única aspirante à Minerva da história da fraternidade que não usava vestido para a
Cerimônia do Broche. A única garota da fraternidade que, naquele momento, estava usando um
blazer para a festa.
Ainda assim, a palavra “estilosa” passeou pelos meus pensamentos.
E, bem, a palavra “linda” também.
Malditamente linda.
Seus olhos, para mim, estavam intensos de uma maneira como nunca estiveram. Quero
dizer, talvez, a última vez que eu tivesse visto aqueles olhos me encarando assim foi em… North
Beach. Engoli seco, só de me lembrar. Por um segundo, achei que ela era capaz de enxergar por
baixo da minha roupa, por dentro do meu corpo.
Uma intensidade que me causava furor no peito. Uma inquietação em mim tão ruim, mas,
ao mesmo tempo, tão... Boa. Era até difícil descrever com exatidão o que eu sentia quando
Rayka me olhava desse jeito, tão segura e cheia de si, como se pudesse conseguir tudo o que
queria.
Como se fosse capaz de ter tudo o que desejava.
Tudo o que desejava até de mim.
Seus olhos permaneceram cravados em mim, durante todo o espaço que ela cruzou até
parar bem na minha frente, assim como os meus também continuaram grudados nela, por mais
que eu tivesse a certeza de que, para o meu próprio bem e, principalmente, para o bem da minha
saúde mental, eu deveria mudar a direção. A vontade de observá-la, no entanto, era mais forte
que eu.
Ela não se parecia com nenhuma das outras garotas. Ela não era como nenhuma menina ou
mulher que eu já tivesse conhecido. Rayka era singular, diferente. E eu até poderia dizer
“esquisita”, mas eu não deveria ser tão hipócrita comigo mesma. Já bastavam todas as vezes em
que eu optava por ser hipócrita na frente dos outros, quando não a elogiava verbalmente, mesmo
sabendo que ela merecia todos os elogios.
Agora, no entanto, eu podia falar, em pensamento, o que eu achava dela, porque Rayka
não me ouviria.
Graças à deusa, ela não me ouviria.
E, honestamente, eu achava aquela desgraçada linda pra caramba.
Linda demais.
Estupidamente linda.
Suas orbes não desviaram de mim por nada, para nada, nem mesmo quando chegou perto
o bastante e Brittany, entusiasmada, falou:
— Ah, que bom que você apareceu, eu já ia te chamar! Precisamos começar a cerimônia!
Rayka, por sua vez, apenas deu um sorrisinho rápido para Brittany e, então, como se
estivesse pouco se importando com o ritual da cerimônia ou com qualquer coisa ao nosso redor,
simplesmente parou e disse bem pertinho de mim:
— Você está maravilhosa.
E não parecia existir ironia, brincadeira. Nada disso que sempre estava presente em tudo o
que Rayka falava para mim. Apenas verdade e... Admiração.
Estremeci.
Estúpida e inutilmente estremeci, olhando nos seus olhos.
Que droga.
Por que eu sempre ficava assim quando ela me elogiava de verdade?
Apenas, pare de imbecilidade, Victoria, e aja como sempre agiu.
Suspirei, tentando (só tentando mesmo, porque eu sabia que estava falhando
miseravelmente nisso) dar-lhe um olhar blasé, e, então, respondi como se o seu elogio não
tivesse feito tudo se revirar em um zilhão de borboletas idiotas no meu estômago:
— Obrigada, eu sei.
Ela sorriu para mim.
A porcaria de um sorriso tão lindo e charmoso, que, entre outras coisas, me dizia em
silêncio “garota, você pode disfarçar o quanto for, mas eu te conheço tão bem”.
E só isso, apenas isso, foi o suficiente para que eu me sentisse ainda mais nervosa.
— Vamos? — Brittany falou.
E, mais uma vez, Rayka agiu como se só eu existisse ali.
— Você primeiro... — disse ela, erguendo uma das mãos para que eu passasse à sua
frente.
Por que ela estava agindo comigo daquele jeito?
Por que estava me olhando daquela maneira?
Aliás...
Suspirei de leve, confusa.
Confusa com tudo.
Porque diabos eu não parava de parecer uma menininha estúpida e... “emocionada”
perto dela?
O que estava acontecendo comigo na porcaria daquela noite?
Balançando a cabeça para mim mesma, passei a sua frente, tentando não fazer mais
contatos visuais que só me deixariam ainda mais idiota. As minhas tentativas, porém, pararam
por aí mesmo. Durante a cerimônia, ainda que eu fizesse o maior esforço para fingir que ela e
nada eram as mesmas coisas, eu não conseguia. Eu parecia já estar contaminada pelo Rayka
Vírus desde o momento em que ela se aproximou de mim.
Fomos para o tablado, posicionado no meio do salão, e, enquanto o meu pai, como Reitor
da Universidade, fazia o seu discurso, a gente não parava de se olhar. Droga. A gente
simplesmente não parava. Eu só queria entender o que estava acontecendo.
Era como um ímã.
A porcaria de um ímã.
— Boa noite a todos! É com uma enorme satisfação, que abro mais uma Cerimônia do
Broche da Fraternidade das Minervas. A Fraternidade das Minervas está entre as cinco mais
reconhecidas e conceituadas dos Estados Unidos da América e tem uma tradição de...
Ainda que aquele discurso sempre tivesse sido absolutamente importante para mim,
porque eu o escutava com prazer e atenção, sempre que o meu pai o fazia, tudo aquilo, de
repente, se tornou nada mais do que um blábláblá sem sentido, enquanto eu reparava naquela
miserável, como uma verdadeira idiota, da mesma forma que ela continuava reparando em mim.
Os fios curtos que caíam sobre a sua testa, de um jeito charmoso, quando ela jogava o
cabelo para um lado, o olhar sério e sexy ao mesmo tempo, a postura corporal, cujas pernas
ficavam separadas e as mãos juntas e posicionadas na frente do corpo. Tudo. Absolutamente tudo
era como um convite para que eu permanecesse olhando, como se não soubesse mais enxergar
qualquer outra coisa.
Um inferno.
Sei lá.
Só podia ser aquela sua maldita roupa idiota, que a deixava mais bonita do que
normalmente já era, ou... Que saco. Tá, tá legal! Não era a porcaria da roupa. Era ela mesma.
Bonita, charmosa, chamava atenção.
A minha atenção.
E eu sabia, eu tinha certeza (ainda que eu tivesse medo de assumir isso para mim mesma),
naquele instante, alguma coisa estava acontecendo comigo. Alguma coisa estava mudando em
mim, se transformando. Ou, sei lá, mesmo que não fosse uma espécie de transformação, algo
estava vindo à tona. Algo que sempre existiu. Era como um pano sendo retirado da minha
cabeça, revelando tudo o que existia por baixo, ou… Dentro do meu coração.
Eu só não sabia exatamente o que isso significava.
Ou apenas me fazia de besta, fingindo não entender, quando, na verdade, eu sabia sim. Eu
sabia exatamente o que significava.
E, bem, a minha situação de imbecilidade estava tão séria, que eu nem percebi o instante
em que o meu pai finalizou o seu discurso. Precisou que Brittany, ao meu lado, me desse um
empurrãozinho para que eu enfim acordasse do meu marasmo causado pelo Rayka Vírus e me
desse conta de que era a minha hora de falar.
Ainda pisquei repetidas vezes e, um pouco sem jeito, enquanto desviava o meu olhar da
garota endiabrada, caminhei até o púlpito no tablado, onde o meu pai antes estava.
Respirei fundo, meio sem saber como eu faria aquilo ou como aquilo aconteceria, mesmo
que eu já tivesse absoluta experiência com outras dezenas de Cerimônias do Broche. Nenhuma
delas, porém, se pareciam com aquela, porque em nenhuma delas eu precisei receber uma garota
que não tinha aceitado.
Rayka.
Ela tinha que ser sempre diferente em tudo.
Ainda que o meu corpo inteiro gritasse que não, eu permanecia ali, de pé, em frente ao
microfone, sustentada apenas pela minha razão e pelo meu compromisso de seguir com a
porcaria do regimento. Engoli seco e, reunindo todo o meu sangue de barata, para engolir o meu
veneno e parecer a menina educada e classuda que fui ensinada a ser, comecei a falar.
— Como presidenta desta fraternidade, é com prazer que recebo todos em mais uma
Cerimônia do Broche. Dessa vez, extraordinária e exclusiva para a recepção de Rayka Ferris. —
à medida que eu falava, tudo dentro de mim se revirava. — Rayka se mostrou adequada o
suficiente para se tornar uma Minerva, segundo ordem expressa do Reitor, e foi aceita nesta
fraternidade, conforme o inciso dois, parágrafo terceiro, do artigo trinta e oito, que consta no
nosso regimento. — disse eu, quase entredentes, ainda me esforçando para segurar o veneno,
porque eu odiava ter que estar falando essas palavras. — Agora, seguindo o rito, peço a
aspirante à Minerva, que leia o juramento.
Quando me calei, enquanto deixava o microfone de lado, para me aproximar dela e dar
prosseguimento naquilo que o meu coração não pedia, apertei a mandíbula involuntariamente,
ainda tentando assimilar que aquela cerimônia estava mesmo acontecendo. Parecia maluco
demais que o meu maior medo estivesse se materializando: Rayka debaixo do mesmo teto que eu,
até o fim da faculdade.
O que poderia dar errado?
Tudo.
Só vi o momento em que Brittany, como minha auxiliar, lhe entregou o juramento e um
microfone.
Rayka começou a ler.
E eu tinha certeza absoluta de que ela estava achando tudo aquilo uma grande bobagem.
Porque Rayka era Rayka. Ela não se importava com nada disso, não merecia uma vaga nas
Minervas e só estava ali por pura birra.
Mas...
Bastou sua voz rouca e bonita soar pelas caixas de som, para que toda aquela confusão
mental, de poucos minutos atrás, voltasse com força e vigor. Era como se eu estivesse, mesmo,
contaminada pelo Rayka Vírus. Tão contaminada ao ponto de não conseguir agir de outra forma,
a não ser reparar nela, que nem uma idiota, enquanto a ouvia pronunciar, palavra por palavra, e
via as suas mechas charmosas deslizarem umas nas outras, até caírem sobre a testa.
— Juro ser fiel a esta fraternidade e às Irmãs Minervas, com honestidade, consciência e
dedicação. Prometo utilizar todos os meus conhecimentos e habilidades, para ajudar no que for
preciso, dentro dos rituais, cerimônias, eventos e situações corriqueiras do dia a dia, a fim de nos
tornarmos mais fortes. Com respeito, ei de me diligenciar para manter a paz, nas dependências da
fraternidade e com minhas irmãs, a fim de harmonizar interesses e superar diferenças. E, no que
depender de mim, irei preservar os princípios e ideais das Irmãs Minervas que foram passados de
geração em geração. Assim juro.
Uma salva de palmas estrondosa rompeu o ar sobre as nossas cabeças, fazendo todos os
pelinhos dos meus braços se arrepiarem.
No entanto, tudo se tornou ainda pior, quando, ao finalizar a leitura e Brittany tirar o
microfone da sua mão, Rayka ergueu seus olhos e mirou exatamente em mim. Mais uma vez, ela
agiu como se não existissem quaisquer outras pessoas naquele salão lotado, além de nós duas. A
garota não olhou para ninguém, não prestou atenção em nenhum outro ponto ao redor. Apenas
em mim.
E, novamente, aquele seu olhar, me causou furor no peito, inquietação.
Uma agonia esquisita e, ao mesmo tempo, boa, como quando...Você sabe que gosta de
alguém.
Droga.
Passei a língua entre os lábios e me aproximei. Apesar de tudo, aquele rito precisava
acabar, e eu tinha de fazer o que esperavam que eu fizesse.
Me aproximei ainda mais dela, sentindo o coração latejar na minha goela e as mãos
suarem de frieza. O calor do rubor no meu rosto, porém, era inversamente proporcional ao que o
nervosismo me causava nas pontas dos meus dedos. Infelizmente, eu não conseguia agir de outra
forma sob o seu olhar estranho e bonito.
E, então, engolindo seco, me virei para Brittany que abria uma caixinha de jóias, peguei o
broche dourado que milhares de garotas se matariam para ter, e olhei para Rayka de novo.
Eu sabia, sabia que eu não deveria estar pensando outra coisa além de “ela não merece
estar aqui, ela não merece esse broche”, mas, enquanto eu fixava as minhas orbes nas suas, com
o rosto tão próximo ao seu, de uma maneira como poucas vezes esteve, a única coisa que eu
conseguia pensar ali, naquele exato momento, era que... Talvez não fosse tão ruim quanto eu
imaginava tê-la definitivamente por perto.
Franzi o cenho por um segundo.
Que diabos estava acontecendo comigo?
Eu. Não. Fazia. Ideia.
Ainda balancei a cabeça de leve para mim mesma e, colocando o broche na sua roupa,
sussurrei quase sem fôlego, tamanha confusão mental que ela me provocava com aquela cara
sacana e a postura de quem sabia que me tinha na palma da mão:
— Seja oficialmente bem-vinda à Fraternidade das Minervas...
Mais uma salva de palmas estrondosa rompeu ali, quase me assustando.
E, então, Brittany entusiasmada, ao nosso lado, exclamou no microfone:
— Agora, como manda a tradição, teremos a primeira dança da nova Minerva!
Suspirei, tentando me recompor minimamente, se é que isso de fato era possível, e fiz que
ia me afastar, porque, obviamente, Rayka teria mais um momento só seu. Eu não fazia ideia de
quem dançaria com ela, não sabia nem se ela tinha convidado alguém, mas, honestamente,
naquela altura, depois de tudo o que aconteceu e de todas as coisas que eu estava sentindo, eu só
precisava era sair dali, tomar um copo d'água e colocar os meus pensamentos confusos no lugar.
Quando eu ia dar as costas, porém, ela segurou o meu braço.
Estremeci.
Eu juro que estremeci tanto quanto na hora em que ela parou bem na minha frente e disse
que eu estava maravilhosa.
Sentindo o coração voltar a latejar bem na minha goela, virei lentamente o rosto em sua
direção, temendo o que ela faria, porque, no fundo, bem no fundo, talvez eu soubesse o que
Rayka queria.
Eu suspeitava desde mais cedo, quando Brittany repassou roteiro da cerimônia e lhe falou
sobre a dança. O olhar que a garota me deu. O gatilho que aquilo me causou. O gatilho que
aquilo estava me causando de novo.
Puxei o ar.
— O que foi? — ainda tive coragem o bastante para perguntar.
— Dança comigo, Vic?
Dessa vez, eu nem estremeci, eu simplesmente travei.
Meu corpo inteirinho retesou com a confirmação daquilo que suspeitei mais cedo. Rayka
realmente queria dançar... Comigo. E mesmo que isso parecesse real o bastante para não me
deixar com a menor das menores dúvidas, eu ainda gaguejei, perguntando, sem nem piscar:
— E-Eu...?
— Sim, você... — respondeu simplesmente, como se fosse a coisa mais natural do mundo.
— Adoraria dançar com você, Victoria.
Adoraria dançar com você, Victoria.
Adoraria dançar com você, Victoria.
Adoraria dançar com você, Victoria.
Adoraria dançar com você, Victoria.
A sinceridade que escorria por cada letra. O tom que ela usou comigo.
Essa desgraçada sempre sabia escolher o jeito mais adequado de falar e as palavras certas
para me desestabilizar. Que droga. Eu sabia que nós estávamos praticamente fazendo uma cena
na frente de todo mudo, só que, por incrível que pareça, isso em nada me preocupava. O que
realmente me inquietava era como tudo se revirava dentro de mim, pela milésima vez na noite,
por causa dela, de uma forma que eu nem sabia explicar.
A única coisa que eu tinha plena certeza era de que estava com... Medo.
Sim, medo.
Medo de mim.
Medo dela.
Medo de querer.
Medo de dançar.
Medo de desejar muito mais que uma dança, se eu assim aceitasse fazer aquilo.
Por isso, com medo, covarde, travada, simplesmente empurrei, goela abaixo, um nó
incômodo que me subia e balbuciei:
— Nã-Não...
Foi tudo o que eu consegui dizer.
Sua testa enrugou de leve.
— Por que não?
Meus olhos cintilaram, arderam, ainda que isso fosse estúpido demais. Ou pior, ainda que
eu estivesse parecendo uma grande imbecil na frente de dezenas de pessoas.
Eu sabia que era só uma dança idiota.
Nada demais.
Mas, o meu medo de que algo maior do que a dança acontecesse, falava mais alto. Muito
mais alto. Ainda que a dança fosse inofensiva, eu sabia que ela poderia abrir margem para que eu
acessasse um lado meu que deveria ficar escondido. Ou melhor, um lado meu que deveria ter
morrido.
Assim como mais cedo a suspeita desse convite me provocou certo gatilho, agora me
provocava de novo.
O medo e a covardia gritando dentro de mim.
— Porque não — repliquei.
Charmosa, inclinou a cabeça para um lado, pensando, mas ainda me fitando.
Que saco.
Por que ela tinha que ser tão bonita assim?
— Mas, se eu fosse um cara, você aceitaria, não aceitaria?
Sim.
— Não.
Menti.
Talvez eu realmente aceitasse, se ela fosse um homem.
Mas... isso não vinha ao caso agora.
Só percebi quando Rayka puxou o ar de leve. Mesmo que tentasse disfarçar, eu notei. Eu
notei, por alguns instantes, o seu semblante refletir ligeiramente desapontamento e decepção.
Notei tanto quanto os seus olhos que, há poucos minutos, me pareceram expectantes para que eu
aceitasse.
Soprei, meio cansada, meio confusa.
O que ela esperava, afinal?
Que a gente dançasse como o casal que não éramos e nunca fomos?
Rayka e eu ainda éramos Rayka e eu: dois planetas que nunca ficavam com as suas
órbitas alinhadas.
— Tudo bem... — disse ela, soltando o meu braço, ainda que, no fundo, eu tivesse a
impressão de que as coisas não estavam tão bem quanto ela tentava demonstrar. E, então,
colocando um sorrisinho no rosto, que não me parecia completamente verdadeiro, virou o rosto
para Brittany, que permanecia ao meu lado, e perguntou. — Aceita me fazer companhia e dançar
comigo, Brittany?
Foi quando o mundo parou.
Simples assim.
Parou.
Tanto as pessoas ao redor, quanto Rayka e Brittany.
Exatamente no intervalo de tempo entre o sorriso que Brittany lhe deu como resposta e a
sua mão facilmente erguida para que Rayka a segurasse, o mundo parou frente aos meus olhos.
Inclusive eu paralisei. A única coisa que funcionava freneticamente em mim, sem sossego, eram
os meus pensamentos confusos.
Esses desgraçados não paravam, nem que eu fizesse uma lavagem cerebral em mim, e
pareceram ainda piores quando vi aquela cena se desenhar bem na minha frente.
Rayka e Brittany se olhando.
Rayka quase segurando a mão já estendida da Brittany e saindo para o meio do salão.
Eu não sei o que me deu. Eu juro que não sei o que me deu, enquanto os meus olhos,
cintilando, se focavam apenas naquilo. Nos seus dedos prestes a se encostarem. Parecia uma
mistura, uma absurda e estranha mistura de tudo o que existisse de mais confuso na face da
Terra, só que dentro de mim.
Era como se toda a confusão mental, que eu já sentia por ela, desde que colocou os pés de
novo em Miami e agora na minha fraternidade, estivesse potencializada e viesse à tona, como
uma avalanche sobre a minha cabeça.
Talvez eu...
Droga.
Isso não fazia o menor sentido.
Mas...
Talvez eu não estivesse preparada para vê-la com outra garota.
Certamente, isso era uma das maiores imbecilidades da minha vida, mas, cinco segundos
antes dos seus dedos tocarem a Brittany, eu falei algo que só me dei conta depois que já tinha
saído da minha boca:
— Espera... — ofeguei. O coração latejando tão alto, que eu estava com vergonha de que
ela pudesse ouvir e perceber o tamanho do meu nervosismo. — Dança comigo.
Minha deusa, que diabos eu estava fazendo?
Eu mal podia acreditar que pronunciei essas palavras.
Mas...
Como se estivesse tão incrédula quanto eu, vi suas sobrancelhas arquearem, durante um
momento. Rayka parecia estar assimilando. Assimilando, semelhante a mim, uma coisa que
nenhuma de nós estava esperando.
Ainda assim, aparentemente mais recuperada, puxou o ar e mostrou todos os dentes para
mim, em sorriso enorme e tão verdadeiro, seguido de uma rápida e compreensiva conversa
silenciosa que Brittany e ela tiveram apenas com o olhar, por alguns segundos.
Acenando um sim para nós, Brittany sorriu e se afastou.
Dessa vez, os dedos tocados pelos da Rayka foram os meus. E, enquanto o meu coração
quase saía pela boca, ela me guiou para o centro do tablado, onde abriam espaço no meio do
salão para que a gente dançasse na frente de todo mundo.
Respirei fundo, ainda sem acreditar que eu realmente estava fazendo aquilo, sob os olhares
de dezenas de pessoas que, provavelmente, passariam o resto da semana falando sobre isso.
Parecia um sonho.
Ou o sonho de um sonho.
Segurando uma das minhas mãos e passando o seu outro braço ao redor do meu corpo, os
seus dedos tocaram as minhas costas nuas do vestido. Senti como se uma descarga elétrica
tivesse perpassado nós duas, ao mesmo tempo, apenas com o seu maldito toque.
Seu corpo se grudou ao meu, enquanto Rayka me guiava numa dança lenta e eu diria que
até... Envolvente. Eu não fazia ideia de que essa idiota dançava tão bem. Aliás, eu a achava boa
em mais coisas do que gostaria. E o pior ainda não era exatamente isso, mas, sim, o calor que me
dava somente com a sua mão encaixada no final da minha lombar, ali, quase em cima do
bumbum, ou com as besteiras que eu queria pensar só por causa do seu olhar fixo e inteiramente
cravado em mim.
Se antes da dança, ela já não parava de olhar para mim, agora, então, isso estava elevado à
potência máxima. Elevado de uma forma que me deixava quase inerte, quase hipnotizada,
absorta nos seus olhos de um castanho tão escuro.
E eu até poderia estar, sim, morrendo de vergonha de dançar com ela na frente de tantas
pessoas, algo que jamais me imaginei fazendo, mas... Aqueles olhos, os seus, estavam mesmo
me deixando inerte. O meu juízo estava inerte, anestesiado, tão involuntário que, por vezes,
precisei me concentrar para não deixar os meus pensamentos voarem para longe do que era
seguro.
Eu tentei, juro que tentei, minutos a fio, segurar as asas da minha imaginação, para que eu
não fosse traída por mim mesma, mas... Isso me pareceu impossível, tão impossível quanto o
que, no fundo, eu desejava fazer com aquela menina esquisita.
Era impossível não me lembrar que a última vez em que estivemos tão grudadas assim foi
em Charleston, há dois anos.
E era impossível também negar a mim mesma que, depois de todo esse tempo, Rayka
estava mais estupidamente bonita, mais ridiculamente atraente, porque, sim, ela parecia ainda
melhor e mais linda do que eu já achava, há dois anos.
O rosto.
Os olhos.
A boca.
A boca.
Era para ela que eu olhava mais do que para qualquer outro ponto.
Inferno.
Só que de todas as coisas mais impossíveis de esquecer ou de não admitir, existia uma que
era a principal. Ela estava exatamente relacionada à parte mais infernal do seu rosto. Seu maldito
beijo combinava com a sua boca bonita. Mesmo que eu parecesse estúpida demais por pensar
nisso, eu não conseguia evitar. Pelo menos, não ali, não agora, com a porcaria da sua mão na
minha lombar e o seu corpo grudado no meu.
E, assim como todas as outras coisas que me pareciam impossíveis, também era
impossível não sentir vontade de beijá-la de novo, do jeito como eu estava sentindo agora.
ALERGIA HÉTERO

“Eu disse que estava tudo bem, mas eu não acho que esteja, mudei de ideia,
retiro o que disse”
Erase/Rewind | The Cardigans

RAYKA

Sério.
Por dois centímetros.
DOIS. CENTÍMETROS.
Pelo caralho de dois centímetros a gente não se beijou, e a gente estava quase beijando,
caramba!
Gritar isso em pensamento, enquanto eu usava uma farda cor de rosa e um boné
estampado com uma panqueca sorridente, foi o suficiente para me fazer estrompar o enorme
sachê de maionese que eu despejava em um depósito, na cozinha da Esquina das Panquecas.
Tinha maionese espalhada por todos os lados, no balcão, no chão, na minha roupa e até na
minha cara.
Que merda!
A minha cabeça simplesmente não me dava descanso e pipocava, a todo instante,
memórias da noite anterior sobre a porcaria da dança e o quanto a boca da Victoria esteve tão
perto da minha sem que eu pudesse beijá-la.
Claro que eu era iludida o bastante para jogar a culpa nos dois centímetros que não fui
capaz de romper, mas eu também sabia que existiam muitos outros fatores. Tipo, absolutamente
tudo o que nos envolvia, tudo o que nos cercava e, principalmente, o fato de que Victoria tinha
quase a porra de uma “alergia hétero” de mim. Se eu, ao menos, sonhasse em chegar ainda mais
perto da sua boca, sobretudo na frente de todas aquelas pessoas, o tapão na minha cara era certo.
Uma grande bosta.
Tudo isso era uma grande bosta.
Sibilei uma série de palavrões, baixinho, só comigo mesma, enquanto tentava me limpar
na pia da cozinha.
— Êêê, quê que é isso, hein? — ouvi uma voz falar por ali. — Veio pra cá com o pé
esquerdo?
Quando virei o rosto para trás, vi Stacy, bem na porta, se aproximando de mim com o seu
sorriso faceiro. Ainda soltei um pequeno risinho fraco, pelo nariz, tentando parecer minimamente
simpática com a minha “quase-chefa”, mas a verdade era que eu ainda estava meio puta mesmo.
Não apenas com a maionese, mas com tudo.
— Acho que sim... — respondi, sorrindo de leve. — Olha, me desculpa pela bagunça por
aqui, foi sem querer. Eu juro. Me dá só um minuto que eu arrumo tudo isso.
Ela soltou mais uma risadinha e, caminhando como uma gata que adorava marcar
território, chegou mais perto, escorando-se com os braços sobre o balcão e (bem, se não fosse
impressão minha) empinando ligeiramente a bunda.
— Imagina... — balançou a cabeça de leve. — Não se preocupe. O Jeff chega daqui a
pouco por aqui, e aí eu mando ele limpar a cozinha. Pode fazer outras coisas.
Franzi o cenho de leve.
Ou eu estava convivendo com muitas pessoas que se chamavam Jefferson, cujo apelido
era Jeff, ou, então, era o próprio Jeff mesmo, amigo da Alyssa, que trabalhava aqui também.
— Jeff? — curiosa, perguntei. — Tá falando do Jeff da universidade que também cursa
Literatura?
— Sim, esse mesmo. Ele já trabalha aqui há um tempinho.
Porra... O mundo era realmente pequeno. Ou melhor, Miami era um ovo, ainda que as
pessoas tivessem a ilusão de que era uma grande metrópole. Sim, era uma grande metrópole, mas
quase todo mundo se conhecia. Bom, pelo menos ali, no sul de Miami.
— Hum… Que irado. Não sabia que ele trabalhava aqui também.
Ela sorriu.
— Pois é... Vários alunos da universidade estão aqui ou já passaram por aqui. Você sabe, a
Esquina das Panquecas é uma lanchonete de referência na região. — quase convencida,
completou. — Mas, me conta sobre você, está me parecendo estressada com alguma coisa.
Pensei que a festa de ontem tinha sido boa o bastante.
Festa?
Franzi o cenho de leve.
— Ah, tá falando da tal “Cerimônia do Broche”? — fiz aspas com os dedos, levemente
surpresa com sua menção àquilo.
Stacy soltou uma risadinha.
— Isso mesmo... Pensei que você gostasse desse tipo de coisa, mas só por ter falado da
cerimônia como a “tal” Cerimônia do Broche, já saquei que eu estava enganada.
— Ah… — ri de leve, meio sem jeito. — Não, tipo... Quero dizer… — acho esses
negócios de fraternidade a maior bobagem... Pensei, mas não falei. Pigarrei a garganta. — Foi
legal. Eu gostei. Eu gosto.
Nem eu me convencia disso.
Bem, tirando a parte de que eu fiquei colada na Victoria, completamente doida para beijá-
la, mas sem poder fazer isso, porque ela jamais me permitiria e ainda meteria uma faca afiada no
meu pescoço se eu ao menos tentasse, sim, foi boa.
— Hum... Eu vi as fotos circulando nas redes sociais... — me encarou de cima a baixo,
ainda encostada ao balcão, com a bunda empinada e o olhar de safada. — Você estava a maior
gata.
Por que eu sempre tinha a impressão de que essa menina seria capaz de me engolir com
os olhos?
— Pois é... — forcei um meio sorriso, abrindo a torneira de novo, para continuar limpando
a merda da roupa cheia de maionese. — Agora sou uma Minerva... Imagina só.
— A melhor de todas elas... — replicou, faceira. — Inclusive, ouvi boatos de que você
dançou bem agarradinha com a abelha-rainha.
Foi quando, subitamente, a minha atenção arrastou-se de volta para a loira peituda. Não
que ela, de fato, chamasse a minha atenção, por mais bonita que fosse. Na verdade, tinha a ver
com o que ela falou. Qualquer menção à Victoria, já era o suficiente para me fazer parar o que eu
estivesse fazendo.
Sim, eu era idiota demais.
Ergui uma das sobrancelhas, girando o rosto para ela outra vez.
— Ouviu foi?
— Ouvi sim... — desencostou-se do balcão, caminhando, sorrateira, até ficar bem pertinho
de mim. — Vocês, por acaso, têm alguma coisa?
Se dependesse exclusivamente de mim, a gente teria sim.
Difícil mesmo era a Victoria querer.
— Não — respondi.
Infelizmente.
— Ah, que bom, eu ficaria chateada, se vocês tivessem alguma coisa — e, provocante,
envolveu o meu pescoço com seu braço, descarada, aparentemente pouco se importando em se
sujar com a maionese também.
Franzi o cenho, sem entender.
— Por que ficaria chateada?
— Porque seria um desperdício, se você ficasse com alguém como ela.
— Desperdício? — ainda mais confusa, questionei.
— Sim, você merece alguém muito, muito melhor do que ela — sorriu, mordendo de leve
seu próprio lábio inferior, enquanto alternava a atenção entre os meus olhos e a minha boca. —
Victoria é só uma mimadinha, convencida e cansativa. Ela não chega aos pés da garota que você
é.
Foi automático.
A minha mandíbula pressionou de súbito.
Sempre detestei quem queria fazer escolhas por mim, mesmo que indiretamente. Se a
minha própria mãe sempre me deixou livre para que eu decidisse sobre tudo a respeito da minha
vida, não era qualquer pessoa que eu permitiria fazer isso por mim. Eu sabia o que era bom ou
não para mim, e não precisava de ninguém para me falar ou me mostrar qual era o “melhor”
caminho.
Aliás, eu também odiava quando faziam deliberadamente qualquer comentário mesquinho
sobre a Victoria.
Por isso, não me esforçando nem um pouco para ser simpática ou agradável, me desfiz dos
seus braços, afastando-me dela, e encarei bem os seus olhos, respondendo-a com a maior certeza
da minha vida:
— Victoria é maravilhosa, Stacy. Desperdício mesmo é eu não ficar com ela.

VICTORIA

Depois de uma manhã inteira de aulas sobre esculturas em gelo e de uma tarde quase toda
tentando pensar em coisas que não tinham a ver com a imbecil da Rayka ou com o psicopata do
Maverick, ali estava eu, nos meus aposentos palacianos, digo, no meu quarto da fraternidade,
fazendo o possível para modelar um vaso de argila, no torno elétrico, sem surtar.
Sim, o meu maior esforço não era nem em fazer o vaso em si, mas, sim, em não ficar
completamente louca por não estar conseguindo fazê-lo. É isso aí. Eu não estava conseguindo
fazer um vaso idiota de argila, sendo que isso sempre foi a coisa mais fácil do mundo para mim!
Eu praticamente nasci sabendo modelar vasos em tornos elétricos, mas, agora, eu simplesmente
não estava conseguindo.
Respirei fundo e tentei mais uma vez.
Vamos lá.
Você consegue, Victoria.
Você é muito maior do que um estúpido vaso de argila.
Era só pegar a quantidade de argila suficiente para o vaso, que eu já tinha separado,
posicionar no centro do torno elétrico já ligado, começar a esticar para cima, depois apertar para
baixo, criando o centro de abertura do vaso, modelando as paredes para não ter rachaduras, e...
Não, não, não, não!
Estava ficando uma porcaria!
De novo!
Torto.
Pela milésima vez, torto, argh!
Enfurecida, desliguei o torno e simplesmente esmaguei a argila entre as minhas mãos,
como se, de alguma forma, aquilo pudesse me desestressar. Ledo engano. Eu só conseguia ficar
ainda mais estressada por ver a peça destruída.
Eu estava assinando o meu atestado de incompetência.
Logo eu!
O primeiro lugar no último concurso de Artes Plásticas de Miami.
Que diabos estava acontecendo comigo? Não bastava eu ser burra em literatura, agora
eu também tinha que estar perdendo as minhas habilidades com artes plásticas?
Valia nota, inferno!
A porcaria daquele vaso valia uma nota de trabalho que eu não podia perder!
Devastada, taquei uma das mãos no rosto, sujando minha cara de argila derretida sem
querer. Que droga. Puxei o ar, quase desesperada, esfreguei as mãos para limpá-las em um pano
que deixei por ali, e corri direto para a cama, me jogando, com uma única certeza.
E a certeza que eu tinha era que o nome do meu completo azar, naquele dia, era “falta de
concentração”.
Sim, uma estúpida e extrema falta de concentração.
Claro, desde ontem à noite, depois daquela dança e de toda a minha confusão mental, os
meus pensamentos pareciam preenchidos por... Mãos na minha lombar, olhos nos meus lábios e
aquela ridícula e enorme vontade de beijar a sua boca. Rayka! A desgraçada montou um
acampamento na minha cabeça.
Quero dizer... Não somente ela. Como se não bastasse, quando eu não estava me
lembrando dela, eu estava pensando no maluco do Maverick e no fato de que ele ainda não tinha
respondido a minha última carta. Pois é, isso parecia ridículo, não é? Tão ridículo que, às vezes,
eu sentia vontade de rir, para não chorar de desgosto com a minha total falta de juízo.
Tão sem noção. Tão sem sentido.
Para completar, ainda tinha isso. Ainda tinha ele.
Para completar, eu tinha perdido o senso do ridículo para me importar com as suas
respostas e esperar ansiosamente por elas, sendo que só fazia pouco mais de uma semana que
estávamos nos falando.
Para completar, eu sentia que poderia estar começando a sentir a sua falta, sendo que eu
nem sabia quem ele era, como ele era, ou que tipo de pessoa ele era.
Cara, eu dificilmente me apegava a alguém.
O que estava dando em mim?!
Era como se eu estivesse estúpida e estranhamente dividida entre Rayka e Maverick,
mesmo que isso não tivesse a menor lógica. Afinal, eles deveriam ser as duas últimas pessoas do
mundo a despertar o meu interesse. Primeiro, Rayka era uma sapatão. Uma sapatão, argh. Uma
mulher! E eu era uma mulher também. Ou seja, isso era muito nojento da minha parte. Segundo,
Maverick era um estranho, com traços de stalker psicopata, que não merecia cinco por cento da
minha confiança. Eu nem sabia de qual inferno ele tinha saído.
Ainda assim, com todos os motivos racionais, que se esfregavam na minha cara, para que
eu não pensasse em um nem no outro, eu continuava pensando.
Sim.
Porque, aparentemente, dentro da minha cabecinha de vento, uma coisa não tinha nada a
ver com a outra.
Que saco.
O que isso significava?!
Era carência ou algo do tipo?
Eu nunca fui carente por alguém!
Eu era Victoria Peterson, afinal!
Nada, nem ninguém, poderia me...
AAAATCHIM!
Droga.
Ainda tinha aquela alergia que não me deixava em paz desde a hora que eu acordei. Eu
não parava de espirrar. E eu odiava espirrar.
Só podia ser contaminação do Rayka Vírus.
Não existia outra explicação!
Absolutamente irritada, soquei um travesseiro no rosto, como se, de alguma forma, isso
pudesse me fazer desaparecer do mundo, até que...
— Vic?
Ouvi Brittany me chamar, quando a porta do meu quarto se abriu repentinamente.
— O QUE É?! — berrei, tirando bruscamente o travesseiro da cara, ainda agoniada com
meus pensamentos e aquele estado de confusão mental que parecia não ter mais fim desde que a
sapatona apareceu por aqui.
Miserável.
— Nossa, amiga... — soltou uma risadinha. — Que bicho te mordeu?
O Rayka Vírus.
Rolei os olhos, já exausta, e puxei o ar, tentando me acalmar minimamente, se é que isso
era possível.
— Nada, Brittany, nada... — balançando a cabeça de leve e me sentando na cama,
desconversei. — O que tá fazendo aqui?
Toda empolgada, ela se aproximou, quase saltitando, e se sentou ao meu lado.
— Eu vim te arrastar para a festa do Bradley em Palm Beach! Você lembra, né? É hoje! —
sorriu de orelha a orelha. — Sei que sem o meu empurrãozinho, você não vai.
— Ah, então você veio aqui só pra isso? — torci o nariz. — Sinto lhe informar, mas nem
com o seu empurrãozinho eu vou sair desta fraternidade hoje. Estou zero a fim de festas. Ontem
já teve a Cerimônia do Broche, que me cansou pra caramba. Ainda não me recuperei totalmente.
Minha bateria social está lá embaixo. — e, então, praticamente me esparramando, me deitei na
cama de novo.
— Qual é, Victoria? — choramingou. — Para de ser chata! Você sabe que as festas do
Bradley são incríveis e que a casa noturna do pai dele, em Palm Beach, é maravilhosa!
Rolei os olhos outra vez, pouco me importando com as suas tentativas de convencimento.
Nada do que ela estava dizendo me interessava mesmo.
— O que vai ter de tão interessante nessa festa idiota, hein?! — questionei, desaforada. —
Eu já participei de várias festas do Bradley, e todas são a mesma coisa. Não tem nada de
diferente!
Se fosse para ver mais do mesmo, eu preferia poupar a fadiga e ficar na fraternidade.
— Bom, além do fato de que eu não concordo com você sobre as festas do Bradley serem
iguais, porque, na minha opinião, elas sempre ficam melhores, vai ter também a Rayka! — sorriu
ainda mais, super empolgada, como quem já tinha bolado um plano com não apenas segundas,
mas também terceiras, quartas e quintas intenções. — Eu consegui um convite extra e combinei
com ela agorinha, quando chegou aqui há pouco tempo. Rayka vai me levar de carro!
Foi aí que as minhas orelhas ficaram subitamente de pé, sem que eu precisasse fazer o
menor esforço para isso. Meu semblante entediado logo foi substituído por uma expressão de
puro estado de alerta. E, mesmo que eu não quisesse parecer tão interessada nessa informação,
até me sentei na cama de novo.
— Espera aí... A Rayka vai te levar de carro?
— Unhum! Vai sim! Isso não é o máximo? — vibrou como uma garotinha boba. — Bom,
ela pediu para a mãe. Daisy vai emprestar o carro pra gente ir. Ai, sério, a Daisy é tudo de bom!
Ela vai ser uma ótima sogra pra mim!
Calma aí, calma aí, calma aí.
Sogra?
Esbocei o meu melhor e mais forçado sorriso amarelo, tentando disfarçar não somente
para Brittany, mas também para mim, que eu não estava gostando nem um pouco do rumo que a
conversa estava tomando.
— Você não acha que está indo pouco... Rápido demais, Brittany? — fiz o possível para
não dar a entender que aquilo me atingiu de alguma forma, só que, do meio para o final da frase,
eu já estava falando entredentes.
— Rápido?! — ela gargalhou. — Amiga, por mim a gente já teria transado! Ontem, na
Cerimônia do Broche, não deu certo, mas de hoje não passa. Eu não vou perder essa
oportunidade. Hoje, eu vou ficar com a Rayka!
Foi automático.
Quase me engasguei com a minha própria saliva.
— Va-Vai ficar? — até gaguejei.
Um bolo tão repentino no meu peito, que eu nem sabia explicar.
Brittany parecia tão decidida.
— Unhum... É o que eu pretendo... Por quê? — franziu o cenho, desconfiada, por um
instante, até que, segundos depois, sua expressão suavizou em sorriso travesso para mim. — Está
sentindo algum tipo de ciuminho da Rayka? Hã? Eu vi o jeito como você estava olhando para
ela, enquanto dançavam ontem.
Foi quando caí em mim, de repente.
Tipo num piscar de olhos.
Ai, caramba, eu realmente estava dando muita bandeira.
Em um milésimo, pigarreei a garganta, ajeitando a postura, e retruquei:
— Nada a ver, Brittany. Para de falar besteira aqui perto de mim!
Ela riu, dando de ombros.
— Então, tá bom... Se você diz que é besteira, sinal de que não vai se importar com o fato
de ficarmos hoje, não é? — sorriu, arteira, mordendo o lábio inferior. — Se tudo der certo, eu
durmo com ela.
Hã?
Quê?
Como?
— Você tá falando de fazer sexo? — inevitavelmente boquiaberta, perguntei.
Era um saco não conseguir disfarçar do jeito como eu queria, mas, droga, eu tinha certeza
de que fiquei azul, bege, vermelha, todas as cores.
— É, meu amor, isso mesmo. Transar, fazer sexo, dar a minha boceta, comer a dela. Tipo
isso. Algum problema?
TODOS.
Argh, Victoria, sua estúpida!
Fervi por dentro, irritada comigo mesma por estar me importando tanto com essa... Essa
palhaçada!
Pressionando a mandíbula, me levantei da cama. Uma sensação de inquietude triplicando.
Talvez andar por ali me ajudasse a não explodir comigo mesma. Tentando seguir pelo caminho
que eu menos me sentia desconfortável naquela conversa, falei:
— Não, Brittany, o problema não é você fazer essa pouca-vergonha com ela. O problema
é que... — pigarreei a garganta, virando novamente o rosto para ela, enquanto tentava disfarçar o
quanto eu estava sem jeito. Sem jeito porque, no fundo, eu sabia que o problema realmente era a
pouca-vergonha que Brittany estava planejando. — O problema é que... Poxa! A Rayka é muito
estranha, sério! Nossa, como vai ter coragem de transar com essa garota? Eca. Se eu fosse você,
ia atrás de coisa melhor.
Falei a primeira bobagem que apareceu na minha cabeça.
— Pouca-vergonha? — gargalhou. — Nossa, que você é certinha demais, eu sei, só que,
agora, você pareceu a minha avó. Sério. — riu de novo. — Olha só, eu não vou pedir a garota em
casamento, tá legal? Mas, para mim, a Rayka é a melhor, e eu não estou a fim de transar com
outra pessoa, hoje, que não seja ela. Pelo menos, não hoje. Se a Rayka não me der um fora, passo
a noite inteirinha com ela.
A noite inteirinha?
Ai, minha deusa, isso só piorava.
O cutucão que eu senti no peito foi forte. A imagem mentalmente formada, na minha
cabeça, da Brittany beijando a Rayka, ou, pior, transando, não era boa. Não era nada boa. Aliás,
por mais absurdo e sem noção que isso fosse, no fundo, eu sentia que ia ficar incomodada, se eu
visse a Rayka ficando com qualquer garota. Qualquer uma. Não era só a Brittany, eram todas!
Argh!
Que karma!
Me incomodava.
Me incomodava de verdade.
Ainda assim, tentando não passar ainda mais vergonha na frente da Brittany, pigarreei a
garganta, cutucando as minhas unhas das mãos, como se não estivesse me importando com nada,
e perguntei:
— Mas, fora a Rayka, o que vai ter mesmo nessa festa? — fiz o possível para não dar tanta
ênfase no nome da garota, mas não deu. Aquele negocinho cutucando no meu peito me
incomodava de tal forma, que não conseguia agir completamente normal.
Queria eu fingir que estava interessada em outras coisas, quando, na verdade, o que me
interessava, ou pior, o que não me interessava era a boca da Brittany na boca da Rayka.
— Tudo, meu amor! Bebida, música boa, pegação, gente bonita! Você sabe que o Bradley
escolhe os convidados à dedo, para as festas dele. Ou seja, espere encontrar muita gente
interessante! Será que ainda precisa de mais algum motivo para aceitar ir? — sorriu, empolgada.
Honestamente, nenhum daqueles motivos me deixavam animada. Talvez, em outros
tempos, alguma coisa naquela festa pudesse chamar a minha atenção. Tipo quando a minha
cabeça era oca e não existia uma certa garota morando no quarto ao lado do meu. Só que, agora,
eu não conseguia sentir outra coisa, a não ser uma crise de consciência desgraçada, por ter a
certeza de que a minha motivação para ir não era nenhuma daquelas coisas que Brittany falou.
Era a Rayka. A Rayka e a seu maldito rosto bonito que instigava minha própria melhor amiga a
lhe beijar.
Era isso.
Talvez, se eu estivesse por lá, a Brittany desistisse daquela ideia estúpida. Bom, era o que
achava, por mais ridícula que eu estivesse me sentindo, quando, na verdade, eu nem deveria me
importar com quem aquela sapatão ficava ou deixava de ficar.
— Hum... Tá... — meio desanimada comigo mesma, respondi. — Acho que eu vou.
Foi tudo o que eu precisei dizer para Brittany vibrar.
— Uhuuul! É assim que se fala, Vic! É disso que eu gosto!

✽ ✽ ✽

E lá estava eu, rumo a Palm Beach, sentada no banco de trás da BMW da tia Daisy,
enquanto as duas miseráveis iam na frente. Elas não paravam de conversar e rir juntas, como se
fossem, sei lá, amigas de anos. Um nojo, sério. Um nojo. A sapatão, então, piadista por natureza,
não perdia uma oportunidade sequer de soltar suas brincadeiras ou seus comentários idiotas,
fazendo a imbecil da Brittany gargalhar.
Brittany sempre foi besta para rir mesmo.
Enquanto isso, eu não desperdiçava qualquer mínima chance de revirar os olhos, bem
Wandinha da Família Addams mesmo. Coloquei uma cara de entojo, típica de quem tinha
pouquíssimos amigos, e fiz questão de permanecer assim, durante todo o percurso.
Rayka, no entanto, vez por outra, me olhava pelo espelho retrovisor. Aliás, quase num
intervalo de cinco em cinco minutos, ou sempre que contava uma das suas piadinhas idiotas,
esperando que eu risse também. Claro que eu não lhe dava o gostinho de mostrar o meu precioso
sorriso, e claro que eu também não estava reparando muito nela.
Contar a quantidade de vezes que ela me olhava pelo espelho e a frequência com a qual
esperava que eu sorrisse para os seus comentários, não era reparar demais. Nah... Claro que não!
Talvez só um pouco... Só um... Tá, tá legal! Eu estava reparando nela pra caramba sim!
Mas...
Argh, que droga.
O que eu podia fazer?
A desgraçada também não colaborava. Ela estava particularmente bonita naquela noite.
Aliás, ela sempre estava bonita assim. E essa era uma das minhas maiores raivas. Bem que ela
poderia aparecer toda horrorosa, pelo menos uma vez na vida, só para ver se eu desencanava e
deixava de olhar para ela que nem uma otária nojenta.
Sim, nojenta.
Eu era uma nojenta.
Rayka era uma mulher, pelo amor da deusa. E eu não deveria olhar para uma mulher do
jeito como eu olhava para ela. No máximo elogiar como eu elogiava uma “amiga”. Isso era
comum entre mulheres, afinal. Com a Rayka, porém, eu sabia que não tinha nada de amigável na
forma como eu a observava. E isso era péssimo.
Claro que aquela miserável sempre tinha que aparecer usando suas roupas estranhas e
estilosas, deixando à mostra seus braços tatuados, e penteando os cabelos de modo que os seus
fios curtos caíam sobre a testa de um jeito muito, muito charmoso, só para tirar completamente a
minha paz.
Ridícula.
Suspirei, tentando me desviar desses pensamentos, o máximo que eu podia, e obviamente
dos seus olhos intensos, através do retrovisor, que me deixavam desconcertada em certa medida.
Cerca de uma hora depois, chegamos em Palm Beach.
Não que eu nunca tivesse participado de uma festa assim, ou que nunca tivesse pisado na
casa noturna do pai do Bradley, mas, naquela noite em especial, eu precisava concordar com a
Brittany, pelo menos em pensamento, que o lugar estava mesmo diferente. Eu não sabia se
tinham feito alguma reforma, ou sei lá. Estava diferente, melhor, maior, mais... Chique.
Realmente uma casa noturna que poucas pessoas tinham acesso por causa do preço de tudo.
Era provável que, até para respirar ali, era preciso pagar alguns dólares.
Ainda assim, pelo menos na comemoração do Bradley, ouvi falar que todas as despesas
estavam sendo custeadas por ele. Sendo verdadeira ou falsa essa informação, não me importava.
Eu tinha dinheiro suficiente para pagar por qualquer porcaria que consumisse, antes de voltar
para o meu maravilhoso quarto de onde eu nunca deveria ter saído. Isso porque eu, com certeza,
preferiria mil vezes estar deitada na minha cama colossal do que vendo Brittany puxar Rayka
para andarem de mãos dadas.
Sério.
Era ridículo.
Enquanto eu caminhava alguns passos um pouco mais atrás, tinha a visão desprivilegiada,
quase como se estivesse assistindo de camarote a ceninha. E a minha cara de entojo, com aquela
expressãozinha blasé, que eu tipicamente carregava comigo para qualquer lugar, parecia ter
triplicado. Ou melhor, parecia ter se tornado vinte vezes maior. O entojo, porém, era não
somente por vê-las assim, mas por estar me importando com essa palhaçada, quando, na verdade,
eu nem deveria estar observando-as.
Eu estava praticamente de “vela”.
Logo eu... Uma vela!
Vê se pode?
Péssima ideia de ter ido a essa festa idiota, Victoria.
Péssima ideia.
Eu ainda era Victoria Peterson.
Eu ainda chamava atenção por onde eu passava, assim como estava chamando agora,
enquanto atravessava o caminho de dezenas de caras que não paravam de olhar. Nesse momento,
isso deveria ser o meu único e exclusivo motivo de preocupação, em vez de com quem uma
sapatão safada e desclassificada ficava ou deixava de ficar.
Mas...
Ai não.
Choraminguei internamente, em silêncio.
Eu me preocupava sim.
Me preocupava com aquela miserável mais do que deveria.
Que droga.
Bufei, ultrapassando-as, ao apressar o passo, e segui direto para o balcão de drinques. Pedi
um drinque de frutas com baixo teor de álcool. Eu não queria passar a mesma vergonha de
quando bebi aquela cerveja barata da Rayka. A verdade era que o meu estômago era fraco para
bebidas ricas ou pobres. No fim das contas, ele não conseguia distinguir o preço que paguei e
jogava tudo para fora.
Por isso, o teor de álcool era baixo. A única coisa que eu queria era empurrar aquele gosto
amargo que subia pela minha garganta, em vez de passar o resto da noite vomitando em um vaso
sanitário de uma boate, como uma desqualificada.
O barman era rápido. Quando menos esperei, a bebida de cor azul neon já estava na minha
frente. Tomei um gole, enquanto com um dos cotovelos apoiados sobre o balcão, me virei para
observar a festa. O drinque felizmente não desceu rasgando, como no dia em que bebi as cervejas
ruins da Rayka. O gosto desse era bom, talvez pelo pouco álcool.
Enquanto olhava em volta e tomava alguns goles, percebi que ele combinava com as cores
da boate. Tudo era azul, com leves tons de verde e rosa. Uma típica casa noturna da Flórida. A
melhor de Palm Beach provavelmente. Pessoas dançavam e se divertiam por ali. Muitas pessoas.
Conversavam, riam, sorriam e se beijavam, enquanto a música alta zunia nos ouvidos e a luz
baixa, junto com a atmosfera de fumaça e neon, deixavam tudo muito mais envolvente.
Por um segundo, mesmo que eu não estivesse plenamente satisfeita por estar ali, confesso,
me senti confortável em apenas observar o que os outros faziam, sem me envolver. Durante o
pouco tempo que fiquei sozinha, uns quatro ou cinco caras ainda apareceram, tentando se
aproximar, puxar conversa, flertar. Só que eu, claro, dei o fora em todos com o maior prazer.
Eu não estava a fim de conversar, nem de ficar com qualquer pessoa. Não era porque eu
estava incomodada com o caso ridículo entre Rayka e Brittany, que eu ia dar uma de louca e sair
beijando nas bocas de quem eu nem sabia da procedência. Isso era nojento. A minha boca
perfeita poderia pegar sapinho. Eca.
Aliás, eu ainda me perguntava o que diabos deu na minha cabeça para ter ido ali. Eu só
podia estar muito contaminada pelo Rayka Vírus mesmo. Era a única explicação. Uma
explicação não tão plausível, mas, ainda assim, uma explicação.
Os meus breves instantes de relativa “paz”, sem dar de cara com uma sapatão prestes a
ficar com a minha melhor amiga, porém, foram interrompidos quando as “pombinhas”
apareceram no meu campo de visão e se aproximaram.
— Ahhh, já tá bebendo, hein, safada? É assim que eu gosto! — sorrindo, empolgadíssima,
Brittany soltou para mim.
Eu apenas lhe dei um sorrisinho meio forçado, mais amargo do que verdadeiro, erguendo
brevemente a taça em um cumprimento a ela, enquanto a via seguir direto para um barman.
Em menos de um minuto, as bebidas das duas já estavam postas em cima do balcão. Vi,
porém, quando um grupinho acenou para Brittany, que super entusiasmada balançou a mão de
volta para eles. Falou alguma coisa no ouvido da Rayka, que meneou brevemente um sim com a
cabeça. Brittany se afastou para falar com eles. Conhecidos dela, não meus.
A verdade era que eu conhecia poucas pessoas daquela festa. Britty tinha razão mesmo
quando disse que Bradley tinha convidado pouquíssimas pessoas da universidade. Até então, eu
não tinha visto nenhum dos fracassados que costumavam cruzar o meu caminho pelo campus.
Para mim, todos ali eram desconhecidos.
Porém, para a minha completa infelicidade, vi quando Rayka pegou seu copo de sei lá o
quê e se aproximou de mim, dançando de leve, com aquele ar ridiculamente brincalhão e aquela
carinha irônica e sarcástica da qual eu tinha verdadeira aversão. Relaxada, descontraída, como
quem não se preocupava com absolutamente nada na vida. Não aguentei, rolei os olhos antes
mesmo de ouvi-la dizer a primeira palavra.
Eu queria dar um tapa na sua cara, por ser tão irritante, na mesma intensidade que também
sentia vontade de dar um beijo na sua boca, pelo mesmo motivo. Era terrível. Suspirei, tentando
manter a postura de Wandinha, quando ela parou ao meu lado.
Por que, minha deusa das líderes de fraternidade completamente femininas e
heterossexuais? Por que não tira de perto de mim as tentações?!
— Aceita...? — perguntou ela, com um sorrisinho de canto de boca, ao erguer seu copo
para mim.
— Não.
Foi tudo o que eu respondi, curta e fria.
Ela soltou uma risadinha.
Sabe aquela risadinha de quem não liga para nada? Pois foi essa mesma.
— Oh, sim, me lembrei... Melhor não aceitar mesmo. Isso daqui é vodca pura. Da outra
vez, você ficou tonta só com cerveja e passou o resto do dia vomitando.
Argh.
Eu merecia.
Apertei as orbes em sua direção.
— Por que você saiu do seu lugar e veio até aqui para me encher o saco?
— E você, por que veio à festa sem querer estar aqui?
Rolei os olhos.
— Te interessa?
Ela sorriu de leve, como se nem importasse com o meu tom.
Ou melhor, como se até gostasse da maneira nem um pouco amigável como eu lhe
respondia. Era como uma diversão para ela. Me importunar era como uma diversão. Rayka era
doente. Completamente doente.
Como se não bastasse, vi quando colocou o seu copo com a bebida sobre o balcão, tirou
um cigarro de dentro do bolso da calça, acendeu e começou a fumar... Na minha cara.
Tragava e soltava a fumaça, presunçosa.
NA.
MINHA.
CARA.
Trinquei a mandíbula, bufando.
— Será que dá pra parar de baforar esse troço nojento no meu rosto?! — praticamente
berrei, desaforada. — Os meus cabelos vão ficar podres! E eu lavei hoje, que saco!
Ela sorriu, balançando a cabeça de leve, como se fizesse pouco caso.
— Poxa, você é muito rígida, hein? Tensa, travada. Sempre foi. Precisa levar as coisas
menos a sério, se divertir mais, rir mais, se importar menos com bobagem. Eu tô até vendo uma
ruga nascendo aqui na sua testa — apontou.
HÃ?
Suei frio no mesmo segundo, arregalando os olhos.
— Quê?! Como?! — exclamei, desesperada. — Tem uma ruga na minha testa?! Ai, minha
deusa, tem uma ruga na minha testa…! — choraminguei. — Preciso de um espelho! Preciso já
de um espelho! — e, feito louca, comecei a fuçar a minha bolsa.
Só ouvi, porém, a gargalhada alta e repentina da Rayka.
Parei tudo o que eu estava fazendo, ainda ofegante, e, franzindo o cenho, a encarei como
se ela tivesse três cabeças em cima do pescoço.
— Para de ser boba — disse ela, entre risos. — Eu tô só tirando onda com você.
— Ah, sua filha da...!
— Ei... — me interrompeu. — Não é você que é perfeita demais para falar palavrão?
Bufei, me contendo.
Meus punhos ainda fechados de irritação.
— Você é um saco.
— E você não sabe levar nada na brincadeira, eu hein... Tem prazer em ser azeda comigo,
né? — soltou uma risadinha de leve, balançando a cabeça, ao tragar a fumaça do cigarro mais
uma vez.
“Da mesma forma como você tem prazer em ser irritante comigo e me tirar do sério”,
pensei, mas não disse. Não queria lhe dar o gostinho de dizer que o meu azedume era única e
exclusivamente seu, para que não se sentisse “especial”.
— Eu sou azeda com todo mundo, querida.
— Naaahh... — brincou. — Comigo tem um tempero todo especial que eu sei.
Rolei os olhos.
Era incrível como ela conseguia ser convencida até com isso.
— Deve ser porque você é especialmente mais insuportável do que a maioria das pessoas.
Charmosa ao ponto de parecer ridícula, soltou uma risadinha, encarando-me nos olhos, e,
então, disse:
— Você me ama, Victoria, confessa.
Por favor...
Senti uma súbita vontade de rir.
Até parece, eu jamais...
Antes que eu pudesse retrucar, porém, reparei no momento em que Rayka, com o cigarro
numa mão, resgatou o copo em cima do balcão, com a outra, e levou à boca. Foi impossível,
humanamente impossível evitar. Com a mesma força que tentei desviar os meus olhos, eles
simplesmente se fixaram lá, naquela região em específico.
Sua boca.
Era como se eu estivesse vendo tudo bem lentamente. A forma como os seus lábios cheios
e bem desenhados se encostavam à borda do corpo, bebendo o que tinha ali, enquanto ela o fazia
sem parar de me encarar por nem um segundo.
Engoli a seco.
Cara, o quê que tava acontecendo comigo?
Suspirei, percebendo o quanto eu poderia estar me passando por louca, ao observar
fixamente, sem nenhum motivo aparente, a sua maldita boca grudada no copo idiota.
Eu precisava de um exorcismo.
Pigarrei a garganta e, piscando repetidas vezes, tentei fazer parecer que nenhuma situação
sem sentido tinha acabado de acontecer comigo.
— Co-Como é? O quê que você disse? Eu não ouvi direito.
A verdade mesmo era que eu tinha me perdido, depois de reparar, que nem uma otária, na
sua boca se encostando ao copo. Nem me lembrava mais de qual besteira ela estava falando.
Rayka soltou uma das suas risadinhas sarcásticas.
— Eu disse que você me ama, Victoria.
— Eu... Eu te amo? — forcei uma risada cínica, muito embora, por dentro, eu ainda
estivesse tentando me recompor do que vi, senti e pensei, no último minuto. — Só nos seus
sonhos, bebê — e puxei o meu drinque para mais um gole.
Era uma tentativa de colocar os meus pensamentos no lugar, de uma vez por todas. Talvez
aquela bebida pudesse esfriar a minha cabeça quente e insuportavelmente confusa.
Foi quando ouvi, porém, uma voz, mais alta do que todas as outras, falar perto de nós:
— Olha aí, quem é vivo sempre aparece! Chega aqui!
Bastou eu virar o rosto para o lado. Vi uma garota alta e loira, com mechas cor de rosa nos
cabelos, e roupas de garoto muito semelhantes às que Rayka usava. Ao seu lado, um garoto
musculoso, mas meio esquisitinho, fazia companhia e... Bem, ele não parava de olhar na direção
que eu estava.
Bizarro.
Um leve vinco de nojinho se formou na minha testa.
Rayka, por sua vez, logo abriu os braços para a garota recém-chegada, com sorriso de
orelha a orelha. As duas se cumprimentaram feito dois machos, com aqueles toques de mãos e
abraços tipicamente masculinizados. Um terror.
Vamo ser sapatão, mas vamo ser direito.
Precisa agir como homem?
Eu hein.
Torci o nariz.
Quando ia desviando o olhar da ceninha estranha, porém, ouvi um comentário da loira
relacionado a mim.
— Ah, então, você está de babá da patricinha? — perguntou ela à Rayka, enquanto me
fitava. — Cadê a gostosa da Brittany com quem você me disse que ia sair?
Babá?
Não fiz nem questão de disfarçar a minha cara de entojo para a garota metida a
engraçadinha.
— Ela foi falar com uns amigos, gente conhecida dela — Rayka respondeu. — Mas disse
que volta já.
— Hum, me ligo... E aí, Victoria! Suave? — ergueu a mão, daquele mesmo jeito bem
masculinizado, para me cumprimentar.
Foi quando eu me dei conta, porém.
Espera aí.
Essa menina estranha de mechas cor de rosa e seu colega esquisito não eram os amigos
de faculdade da Rayka?
Não que eu prestasse muita atenção em quem tinha aula comigo, mas eu me lembrava
vagamente de tê-los visto na disciplina de Literatura da Tia Daisy, e também andando pelo
campus, para cima e para baixo, com a Rayka.
Alyssa e Jeff...
Sim, claro!
Alyssa e Jeff!
Ou Jefferson, sei lá. Tanto faz. Eu não me importava mesmo.
Dois esquisitões. Tinham que ser amigos da Rayka. Ela só se acompanhava com gente
assim mesmo.
Eu, no entanto, apenas levantei brevemente a mão, acenando para ela e deixando a sua no
vácuo, com o meu sorriso mais falso, enquanto sugava a minha bebida pelo canudinho.
— O-Oi, querida... — falei. — Não achei que encontraria... — gente estranha por aqui. —
Vocês por aqui.
Finalizei com a minha melhor risadinha forçada.
Tentei controlar o veneno, mas tive que fazer um esforço a mais para isso.
Foi quase impossível.
— Meu pai é advogado do pai do Bradley — explicou ela. — Consegui entradas pra mim
e pro Jeff. A gente veio no carro dele. — sorrindo de orelha a orelha, deu dois toques no ombro
do garoto que não parava de me olhar feito um bobalhão.
— Oh, sim... — Advogado, é? Surpreendente. Arqueei de leve as sobrancelhas, passando
um Raio-X nela, de cima a baixo, enquanto refletia sobre aquela estranha estar bem inserida na
sociedade. — Entendi.
O garoto bobo e bombado, por sua vez, aparentemente acanhado, ainda teve coragem o
suficiente para se aproximar um pouco de mim e...
— Oi, Vic... — disse ele, de maneira mais contida e particular que a loira.
Seus olhos, porém, pareciam mais expressivos e interessados em mim do que eu gostaria
de acreditar.
Enquanto isso, Rayka e a garota com mechas cor de rosa engataram em uma conversa que,
sinceramente, deixaram-nas entretidas ao ponto de não perceberem que o garoto estava chegando
junto demais de mim.
Até parecia um típico “come-quieto”.
Engoli seco, me remexendo por ali, ao trocar o peso do corpo para a outra perna e tomar
mais um golinho do drinque, meio desconfortável com a sua proximidade.
— Oi — respondi apenas.
Apesar de bonitinho, ele nunca chamou a minha atenção. Nunca mesmo.
— Você está linda hoje, Vic. Aliás, você sempre está linda.
Ah não, minha deusa... Não me diga que ele era um dos típicos caras babões e sem-noção
que eu geralmente passava as festas inteiras tentando fugir?
Não, não, não.
Pelo amor da deusa, não.
Eu tinha péssimas lembranças de todas as vezes em que precisei escapar de caras “pé no
saco”. Tudo o que eu mais queria era paz e tranquilidade.
Porém...
— AAAA, VOLTEI! — Brittany berrou nos nossos ouvidos, aparecendo ali, de repente,
empolgadíssima.
Minha deusa.
Essa garota só podia ter fumado alguma coisa na sua “conversa com os amigos”.
Aparentemente, paz e tranquilidade eram as últimas coisas que eu teria naquela noite,
porque, como se não bastasse, Brittany louca, completou, gritando:
— VEM, GENTE! Vem pra pista! Me disseram que o melhor da noite vai começar agora!
E, simplesmente, arrastou Rayka e eu, ao mesmo tempo, uma em cada braço na direção da
pista de dança. Alyssa e Jeff nos acompanharam logo atrás.
Que diabos essa menina bebeu?!
Ainda tentei relutar, travando os meus pés e fazendo o possível para puxar meu braço. Em
vão. Completamente em vão. Ela continuava nos arrastando para o meio do inferno de gente.
— Espera aí, sua maluca! — exclamei. — Eu não... Eu não quero dançar!
A música e as luzes da boate, porém, mudaram de repente, e eu fui completamente calada
quando, depois de chegarmos bem ao centro de onde dezenas de pessoas já estavam se
enroscando umas nas outras, Brittany começou a dançar. Ou melhor, ela começou a se esfregar
na Rayka, em uma dança muito, muito cara de pau.
E não, eu não queria isso. Na verdade, era a última coisa que eu queria sentir ali, mas,
percebi o exato instante em que o meu couro cabeludo começou a pinicar, só de observar aquilo.
O ritmo não era devagar, mas também não era agitado demais. Era o suficiente para que
Brittany rebolasse a bunda por cima da calça da Rayka, enquanto as suas costas se colavam no
peito da outra que, por sua vez, a segurava pela cintura. O gosto amargo de mais cedo, quando as
vi caminhando de mãos dadas, subiu pela minha garganta outra vez. Só que, agora, com força
total.
Droga.
Ainda tentei desviar o olhar, mas, quando dei por mim, eu já estava parecendo uma idiota,
parada no meio de uma pista de dança cheia de gente, observando duas garotas claramente se
enroscando. Até Alyssa, rápida no gatilho, já tinha conseguido uma garota por ali. E, agora...
Agora, só restava Jeff e eu.
Ai não.
Eu sabia, sabia que não deveria continuar ali, olhando aquela palhaçada.
Eu sabia que deveria dar o fora e fingir que aquela noite nunca aconteceu.
Eu sabia que me importar com elas, ou melhor, com a Rayka, não fazia parte de mim, não
representava a pessoa que eu era. Ou, pelo menos, não representava a pessoa que eu sempre lutei
para ser.
Mas...
Que inferno.
Talvez eu tivesse alguma “veia sadomasoquista”, porque eu simplesmente não conseguia
tirar os meus pés dali, mesmo que eu tivesse quase uma obrigação, comigo mesma, de fazer isso.
Ao contrário do que a minha razão gritava, eu só era capaz de, naquele momento, fazer o que
todas as emoções mandavam.
Me aproximei do Jeff, para não parecer ainda mais idiota, no meio daquela pista, sozinha,
e comecei a dançar “com ele”, ou pelo menos eu fingia que estava dançando com ele, só para
continuar olhando e me torturando mais um pouco.
O garoto, por sua vez, colocou as mãos na minha cintura e perguntou:
— Você costuma vir muito por aqui?
Ah não.
Sério que ele estava tentando me passar essa cantada de três séculos atrás?
Não respondi.
Apenas ainda fingindo que estava dançando com ele, desviei discretamente o meu olhar
para elas. Única e exclusivamente para elas, como a porcaria de um karma. Um karma do qual eu
não tinha escapatória. Um karma que me perseguia. Era como o que aconteceu em Charleston, há
dois anos, quando Rayka estava ficando com uma garota na praia. Eu não conseguia parar de
olhar.
Eu simplesmente não conseguia.
E a certeza disso era tão assustadora que, de repente, senti um medo me tomar.
Um medo muito, muito irracional de mim.
Da Rayka.
Delas duas.
De que algo acontecesse ali.
Que droga.
Eu estava com medo dos meus próprios sentimentos.
Pensamentos.
Como uma bola de neve.
Uma bola de neve que formava uma avalanche.
E, então, como se não bastasse, Rayka girou o rosto para mim e me encarou fixamente,
enquanto ainda dançava com Brittany. Dessa vez, foi uma sensação de déjà vu que me tomou.
Charleston, dois anos atrás, Rayka beijando uma garota e me lançando um olhar provocativo.
Agora, porém, era diferente.
Era diferente, porque, dessa vez, Rayka não estava beijando alguém, pelo menos por
enquanto, e também não era como se quisesse me atingir de alguma forma. Não era aquele olhar
lascivo de quem queria provocar. Não, não era.
Era outra coisa.
Outra coisa talvez eu não conseguisse explicar.
Ou talvez... Ou talvez eu estivesse com medo de explicar a mim mesma, porque, no fundo,
eu sabia.
Parecia... Preocupação.
Comigo?
Rayka estava preocupada... Comigo?
Com a gente?
Era como se ela estivesse sentindo algum desconforto, ainda que tentasse mascarar isso
quando sorria para Brittany e fazia um esforço para seguir no ritmo da música, ou... Sei lá.
Ai, cara.
Nada disso fazia sentido.
Não fazia o menor sentido.
Não tinha a menor lógica.
Eu não sabia... Eu... Eu deveria parar de ser estúpida.
Eu deveria parar de olhar.
Mas...
Quando realmente pensei em virar o meu rosto ou mesmo cair fora dali de uma vez por
todas, as luzes da boate pareceram se apagar apenas na minha cabeça e tudo escureceu ao meu
redor, no instante em que Brittany girou o corpo, ficando de frente para a Rayka, e, ao pousar
suas duas mãos no rosto da garota, a fez desviar os olhos de mim, para, enfim, encostar os lábios
nos seus e... Beijá-la.
O mundo, de repente, parou.
As pessoas ao nosso redor também.
Eu mesma parei.
E já não conseguia mais nem distinguir qual música estava tocando na boate.
A única coisa que eu via, ouvia e sentia era aquele beijo.
Os lábios das duas que deslizavam uns pelos outros.
As mãos da Brittany que seguravam Rayka firmemente no mesmo lugar.
Um nó, na verdade um bolo imenso, me subiu pela garganta, sem que eu pudesse evitar.
Engoli seco, tentando, a muito custo, empurrá-lo para baixo. Parecia impossível, no entanto.
Impossível de segurá-lo.
Eu não sabia o que eu estava sentindo.
Eu não era capaz de dar significado ao que diabos era isso.
Mas...
Eu tinha uma única certeza.
E a minha certeza era de que eu nunca, nunca senti algo tão ruim quanto estava sentindo
naquele momento.
O bolo imenso na minha garganta quis se transformar em lágrimas. Lágrimas imparáveis,
irremediáveis, que, nem se eu fizesse um pacto com o diabo, eu não conseguiria pará-las.
E eu me odiei.
Eu me odiei infinitamente por isso.
Se eu já odiava chorar em circunstâncias “normais”, por causa da Rayka, então, a sensação
de imbecilidade parecia se tornar trinta vezes maior. As Peterson não choravam. As Peterson
nunca choravam, mas... Sem aguentar aqueles malditos olhos cheios d’água, porque eu sabia que
era só questão de um segundo para que desabassem, dei meia volta e saí dali, a passos rápidos e
largos.
Eu não queria que alguém me visse chorar, eu não queria que alguém me perguntasse o
motivo das lágrimas.
Ainda escutei Jeff exclamar:
— Vic! Ei, Vic, o que foi? Espera!
Mas, eu não lhe dei ouvidos.
Eu só queria ir embora dali.
ATESTADO DE BOIOLICE

“Ah, querida, eu estou apaixonada”


West Coast | Lana Del Rey

RAYKA

Fui tragada de volta quando ouvi a voz do Jeff gritar “Vic! Ei, Vic, o que foi? Espera!”.
Qualquer coisa, absolutamente qualquer coisa relacionada à Victoria sempre seria capaz de me
fazer parar tudo o que eu estivesse fazendo. Interrompi o repentino beijo, olhando para o lado. E
franzi o cenho quando percebi a forma como Jeff parecia preocupado, enquanto esticava o
pescoço por entre as pessoas e procurava por algo especificamente na direção da saída da boate.
Ainda girei o rosto, tentando achar a Victoria ao nosso redor, na pista de dança, mas o
lugar estava limpo. Não havia sinal algum dela. Apenas Alyssa ficando com uma garota
desconhecida e as dezenas de pessoas, que já estavam dançando, continuavam ali.
— Desculpa, Brittany... — sibilei para ela que, acenando um sim, compreensiva e
aparentemente também já preocupada, me acompanhou até o Jeff. — O que foi que aconteceu?
Cadê a Victoria? Por que ela foi embora? — perguntei a ele por cima da música alta e das luzes
que não paravam de piscar.
— Eu não faço ideia... — soprou, confuso, coçando a nuca. — A gente tava dançando e...
De repente, ela parou. Do nada. Sei lá. — enrugou a testa. — Olhou pra vocês duas se beijando e
simplesmente saiu sem dizer nada.
Ah não.
Droga.
Jeff não precisou pronunciar mais nenhuma palavra para que eu sacasse.
— Eu tenho que encontrar ela — retruquei, decidida, e, então, me virando para Brittany
completei. — Desculpa, desculpa mesmo, mas não vai dar continuar aqui com você. Eu preciso
encontrar a Victoria para saber o que realmente houve. Além do mais, é perigoso que ela vá
embora sozinha daqui, sem algum conhecido.
— Tudo bem, tudo bem — balançou a cabeça em um rápido sim e logo se prontificou. —
Quer que eu vá com você? Talvez eu possa te ajudar a encontrá-la logo.
Melhor não.
Pelo pouco que eu tinha sacado, algo me dizia que isso era uma coisa só entre Victoria e
eu.
— Deixa comigo. Depois que encontrá-la, eu aviso. Vai ficar tudo bem. Não se preocupe.
Foi tudo o que eu respondi, já dando as costas e, obstinada, caminhando ligeiro por entre a
multidão que dançava.
Ainda ouvi quando Brittany exclamou:
— Cuida bem dela, Rayka!
Era o que eu pretendia fazer.
Continuei andando rapidamente, enquanto olhava para todos os lados e os ângulos que eu
era capaz, buscando por uma garota de cabelos longos, castanho-escuros e ondulados, vestido na
altura do joelho e sandálias de salto fino. Uma princesa.
Ela era quem eu realmente gostaria de ter beijado naquela noite.
Brittany era maravilhosa, claro. Linda demais e gente boa pra caramba. Bissexual, do vale,
não era mais uma curiosa querendo descobrir a sensação de ficar com uma mulher cujos trejeitos
pareciam de “masculinos”. No entanto... Sinceramente, mesmo que eu tivesse aceitado o seu
convite para irmos a festa e percebido as suas segundas intenções implícitas, não estava nos
meus planos ficar com ela naquela noite. Ou melhor, nunca.
Brittany era a melhor amiga da Victoria. E não me parecia nem um pouco honesto, comigo
mesma, me envolver com uma menina tão próxima da garota por quem eu sempre fui uma
completa idiota.
Sim, idiota mesmo. Esse era o meu atestado de boiolice. Eu não podia mentir pra mim e
dizer que não era verdade que eu babava pela líder de fraternidade mais nojenta de todos os
tempos. Era verdade sim. Eu ainda gostava dela. Sempre gostei e nunca parei de gostar, mesmo
com as suas patadas, os seus foras e o seu temperamento nada agradável. Gostei daquela peste
desde o primeiro dia em que pus os pés na casa de praia dos Peterson em Jacksonville, há sete
anos, quando nossos pais começaram a namorar.
E, durante a maior parte do tempo, Victoria foi platônica para mim.
A garota inatingível.
A hétero que nunca me daria uma chance.
Bom, inatingível até o dia em que viajamos para Charleston e nos beijamos pela primeira e
única vez.
De lá pra cá, por mais bizarro e milagroso que isso pudesse parecer, mesmo com o fora
que levei no motorhome, com todas as suas tentativas de disfarçar o que sentia de verdade e com
os seus típicos desaforos, comecei a achar que poderia haver alguma possibilidade dela
realmente se interessar por mim. Sim, por mais estranho que isso pudesse parecer, já que, pelo
amor de Deus, Victoria era Victoria, eu passei a enxergar alguma coisa nos seus olhos, um
negócio diferente quando ela me observava.
E, hoje, naquela pista de dança, eu percebi isso mais uma vez... Eu notei a maneira como
ela estava olhando para Brittany e eu dançando.
Victoria era foda.
Era osso.
Ela me enxotava, me xingava, se dizia hétero e afirmava com todas as letras que a última
coisa que faria na vida seria se interessar por uma mulher, mas, no fundo... Bem no fundo, os
seus olhos me diziam outra coisa. Na pista de dança, o seu corpo inteiro me dizia outra coisa. E
não, não era alguma espécie de “convencimento” meu. Eu vi.
Eu vi o medo estampado no seu rosto, a tensão de que algo pudesse acontecer, o
sentimento escancarado. Eu vi e eu senti, porque eu também me preocupei. De alguma forma, eu
não sabia como, eu me preocupei com ela. Com a gente, ainda que isso não fizesse muito
sentido. Me preocupei que o seu medo se transformasse em outra coisa. Em realidade. Eu sabia
da merda que poderia acontecer ali.
E era com isso que eu me preocupava agora, com a maneira como ela estava se sentindo
depois do que aconteceu, mesmo que, na real, eu não devesse me preocupar, porque eu não
duvidava nada de que, pela milésima vez, Victoria iria negar tudo, dizer que eu estava viajando e
me mandar pastar.
Ainda assim, continuei procurando-a por todas as partes, por todos os lados, em cada canto
da festa, dentro e fora da boate. A garota parecia ter sumido da face da Terra. E, quanto mais
tempo passava, sem que eu a visse, mais eu me sentia inquieta, perturbada. Ainda tentei ligar
para o seu número, mas sempre chamava até cair. Victoria não me atenderia, isso era um fato.
Quando cogitei a possibilidade de pegar o carro para procurá-la pelas ruas e avenidas de
Palm Beach, porém, escutei uma confusão. Sei lá, parecia uma briga, uma gritaria próxima a um
dos portões da casa noturna. Só que tudo ficou ainda pior, no instante repentino em que
identifiquei uma das vozes.
Gelei.
Me agitei ainda mais.
Não, não podia ser.
Já do lado de fora, corri por entre os carros do estacionamento e, ofegante, vi... Na parte
mais escura de um dos portões da boate.
Cabelos longos, castanho-escuros, ondulados. Vestido na altura dos joelhos e sandálias de
salto fino.
Victoria.
A minha Victoria.
Com um filho da puta que a segurava firmemente em um dos braços.
— Vem cá, gatinha... — disse ele com a língua enrolada. Parecia bêbado. — Você vai
gostar de ficar comigo.
— Não! Eu já disse que eu não quero! — Victoria berrava e se debatia, enquanto tentava
se soltar do brutamontes que era duas vezes maior do que ela. — Me larga!
Sua luta, porém, parecia quase em vão, porque o desgraçado não a soltava. Muito pelo
contrário, como se não estivesse escutando os seus gritos, já arrastava a garota, com toda a
brutalidade, para sabe-se lá onde.
Meu sangue inteiro subiu para a cabeça, e toda a minha ira, por ver aquilo, não me deixou
fazer outra coisa a não ser, extremamente puta, chegar lá rasgando o cara. E foi o que eu fiz. Sem
pensar duas vezes, ainda enxergando-os com os meus olhos pegando fogo, cruzei rapidamente
toda a extensão que nos separava e, com uma das pernas, chutei forte as suas costelas,
empurrando-o para longe da garota.
Ainda vi o olhar de susto que Victoria me deu, quando o homem a soltou. Ela não
esperava que eu aparecesse ali. Mas, não deu tempo de falar nada com ela, porque eu ainda tinha
que terminar de me livrar do desgraçado que, agora, grunhia de dor, depois de quase ter caído no
chão com o impacto.
— Filha da puta! Qual o seu problema?! — exclamou ele, ainda com uma das mãos na
costela, fazendo uma careta.
Provavelmente não partiu para cima de mim, porque estava lidando com a própria dor.
— Acho melhor você dar logo o fora daqui, antes que eu chame a polícia! — disse eu,
protegendo Victoria atrás do meu corpo. Era uma vantagem ser alguns centímetros mais alta do
que ela.
— Quem vai chamar a polícia sou eu! Quem você pensa que é para fazer isso comigo?
Sabe quem eu sou?!
— Eu sou a namorada dela! — exclamei, puta, a primeira loucura que surgiu na minha
cabeça. — Quanto a você, eu não sei e nem quero saber quem é. Não me faz diferença. Vaza
logo daqui!
— Ahhh, são namoradas? — arqueou as sobrancelhas, quando um sorriso nojento e
irônico estampou seu rosto. — Duas sapatonas…! — riu. — Deviam tomar cuidado em sair por
aí desse jeito, dando bandeira de quem são. Qualquer hora dessas, vocês podem levar um pau.
E o seu tom pareceu ameaçador em certa medida.
Mas, de nenhuma forma me colocava medo.
— Pau é o que tu vai levar, se não vazar daqui agora, homofóbico filho da puta!
Foi quando um dos seguranças da boate repentinamente chegou ali.
— O que está havendo aqui? — perguntou ele, virando-se para o cara. Foi quando, de
súbito, parou. Todo o seu estado de alerta se dissipando, como se, aparentemente, já conhecesse
o canalha. — Ah, é você de novo, Elijah? — balançou a cabeça em negativo, balbuciando
alguma coisa no seu rádio. Virou-se, então, para nós e completou. — Eu sinto muito, garotas.
Elijah sempre está por aqui aprontando confusão. Aqui, ele não entra mais. Não se preocupem.
— Aproveita e leva o Elijah pra polícia! — disse eu, bem desaforada. — Ele cometeu dois
crimes aqui. Assédio e homofobia.
— Vamos dar um jeito nisso — respondeu o segurança de mais de dois metros de altura e,
então, bruscamente, pegou o desgraçado por um dos braços e o arrastou dali.
— Me solta! Me solta! — ainda o ouvi exclamar. — Você não tem o direito de me segurar
assim!
Ah, claro, mas ele tinha o direito de segurar a Victoria da maneira como fez.
Desequilibrado mental.
Soprei o ar pesado dos pulmões, enquanto tentava acalmar minimamente os ânimos. Eu só
conseguiria colocar a minha cabeça completamente no lugar, no entanto, quando soubesse que
Victoria estava bem. Por isso, ainda preocupada, me virei para ela.
Foi quando encontrei uma garota ainda meio trêmula e assustada. Eram raras as vezes em
que a via desse jeito, tão vulnerável. Porém, bastou que as suas orbes cruzassem as minhas por
dois segundos, para que o seu semblante mudasse. O temor se transformou em irritação.
Balançando a cabeça em negativo para mim, virou o rosto, sem que eu nem conseguisse encará-
la direito, e, a passos rápidos, se afastou.
Ah não.
Por quê?
Por que você é tão complicada?
— Ei, Vic! — apressando o passo, tentei acompanhá-la.
Ela, no entanto, continuou caminhando.
Ainda assim, rebateu, enfurecida:
— Namorada? Você está completamente fora da realidade?!
— Eu estava tentando te proteger! Sabe Deus o que aquele louco faria com você, se eu não
tivesse chegado a tempo!
— E se alguém conhecido tiver te ouvido falar que eu sou tua namorada? Hã?! —
retrucou, ainda andando ligeiro por ali. — Isso é um absurdo!
Absurdo?
Eu não podia acreditar no que estava ouvindo.
— Depois de ter quase acontecido o pior com você, a sua maior preocupação é com
alguém ter ouvido isso? — arqueei as sobrancelhas.
Ela, por sua vez, soltou um “tsc”, numa pequena e leve risada sem humor, enquanto
balançava a cabeça em negativo.
— É impressionante. Não dá mesmo para conversar com você.
— Victoria, espera...
Eu tinha certeza que, depois de morrer, eu iria pro céu por ter tido tanta paciência com ela.
A garota não parava de andar.
— O que você ainda está fazendo aqui, hein? — bufou. — Por que não volta para dentro
da boate e se pendura na boca da Brittany de novo?!
Droga.
Esse era o ponto.
Talvez as minhas suspeitas estivessem realmente certas.
O problema só podia ser o beijo.
— Eu estava preocupada com você... Eu... Eu queria saber como você está e o motivo de
ter saído da festa do nada. O que houve?
— Não é da sua conta! — e simplesmente apressou o passo.
Merda.
Menina enfezada do cacete.
Não consegui me conter.
— Vic! — segurei-a pelo braço.
— Me solta! — irritada, finalmente girou o rosto para mim, me encarando.
Foi quando eu pude vê-la com mais atenção. Seu rosto vermelho, sua maquiagem borrada.
O fundo das íris opacas, mesmo que os olhos estivessem marejados e prontos para arrebentar de
novo. Sim, de novo, nada seria capaz de me convencer do contrário, nem as suas possíveis
mentiras e os seus disfarces.
— Seus olhos... — sibilei, ainda mais preocupada. — Você estava chorando, né? Por que
você estava chorando?
— Eu já disse que não é da sua conta! — e tentou sair, mas eu continuei a segurando.
Eu queria saber mais.
Eu precisava saber mais.
— Foi por causa do beijo?
Victoria estremeceu, de repente.
Estremeceu com apenas aquela simples e pequena menção.
Foi como ver uma máscara caindo. Uma coberta sendo lentamente retirada de cima da sua
cabeça, um véu que a descobria e revelava a verdade. A mais pura verdade. Ainda vislumbrei
toda a sua guarda baixando de maneira gradativa, o ego descendo pelo ralo, as amarras de
repente se desprendendo, a chance de ser honesta consigo mesma aparecendo, até que...
Simplesmente, como uma bolha de sabão, frágil e delicada, que se desfazia com o próprio
vento, a bolha da Victoria foi furada por ela mesma.
Piscou os olhos repetidas vezes, voltando ao mundo real e tentando se recompor, para
impedir que aquela lágrima, sim, exatamente aquela que eu estava vendo, não caísse bem na
minha frente. Passou a língua entre os lábios e me encarou dando o seu melhor para disfarçar.
— Eu não quero falar sobre isso.
O problema era que nem se ela usasse todo o disfarce do mundo eu seria convencida
dessa vez. Não dessa vez.
— Victoria... — em um tom baixo, mas incisivo, a encarei fixamente, insistindo nas
entrelinhas para que fosse sincera.
Pelo menos uma vez na vida.
— Meu Deus... — ela sibilou e fechou os olhos, como se estivesse exausta.
Até mesmo o seu braço cedeu. Não fazia mais qualquer força para que eu a deixasse ir.
Baixou a cabeça e ficou alguns instantes assim. Instantes suficientes para que eu me sentisse
confusa, absolutamente confusa a respeito do que estava acontecendo. Eu nunca tinha visto-a
desse jeito. Era perturbador. Quando pensei, porém, em perguntar o que estava acontecendo,
ela, enfim, ergueu o rosto para mim de novo.
Dessa vez, fui eu quem estremeci. Lágrimas já escorriam e banhavam o seu rosto,
enquanto os seus olhos tão expressivos me fitavam com tanto, tanto ressentimento. Um
ressentimento que não parecia ser apenas pelo que houve há meia hora na boate, mas por tudo o
que aconteceu entre nós, desde que nos conhecemos.
— Você é um karma na minha vida... — disse ela compassadamente, entredentes, com a
voz embargada e o tom cheio de rancor. — Você é tudo o que de pior já aconteceu comigo.
Quando eu penso que não existe mais nada de você em mim, a vida esfrega na minha cara que
estou completamente enganada. Você é como erva daninha. Mesmo que eu te corte pela raiz,
você sempre dá um jeito de nascer em mim de novo. E, se é isso que quer saber, sim, o seu mal é
tão grande em mim, que eu continuo me importando com as suas idiotices. Me importei com
aquele beijo estúpido, sendo que eu nem sei o motivo disso! — elevou o tom de repente, com a
voz ainda mais trêmula, num desespero iminente. — Eu nem sei a porcaria do motivo, que saco!
Eu me importo com coisas que não deveria me importar! — e simplesmente começou a chorar.
Ah, meu Deus...
Meu Deus, meu Deus, meu Deus.
Eu não sabia se ficava preocupada por vê-la chorar copiosamente ou se ficava contente por
ela ter me falado coisas que achei que nunca seria capaz de dizer.
— Victoria... — tentei abraçá-la, com tanto afeto, tanto carinho.
Eu a queria pra mim.
Mas...
— Me larga! — exclamou, transtornada, escapando dos meus braços.
— Eu não quis ter ficado com ela, Victoria! Eu juro. Quando eu vi, a boca dela já tava na
minha!
Soltou um “tsc”, seguido de um sorrisinho falso e sem humor, balançando a cabeça.
— Você é uma safada! Sempre foi. Você fica com a primeira que aparece pela frente!
— Vic... — tentei falar, dando alguns passos para me aproximar.
No entanto...
— Eu sou muito idiota mesmo! — riu de si mesma, amarga, e, então, de repente, parou,
me fitando ainda com tanta raiva. Seus olhos absolutamente lindos e molhados. — Eu nem
deveria estar aqui, agora, falando tantas idiotices com você! Nada disso faz sentido. Eu não
deveria me importar, porque você e nada deveriam significar as mesmas coisas pra mim!
Foi tudo o que disse, ao esfregar bruscamente uma das mãos nos olhos, dando meia volta
para se afastar dali. De mim. A vi caminhar, obstinada, não sabia para onde, a passos largos,
rápidos, intrépidos.
Porém, enquanto eu tentava processar toda a carga de informações e, ainda sem reação, a
observava ir embora, suas últimas palavras pairavam pelo ar. Ressoavam, como em um eco
infinito dentro da minha cabeça. Se repetiam freneticamente na minha memória, ao ponto de me
inquietar.
Porque você e nada deveriam significar as mesmas coisas para mim.
Deveriam.
Deveriam...
Ou seja...
Eu significava.
Sim, eu significava
Se eu deveria significar nada, era porque alguma coisa eu significava. Sim, eu significava,
ainda que ela não gostasse de admitir isso. Eu significava para ela do mesmo jeito que ela
também significava para mim. Sorri. Simplesmente sorri como uma imbecil. E não apenas isso.
Me dar conta de que eu tinha algum significado, fez eu me encher de uma força sem igual,
subitamente.
Uma determinação que há muito, muito tempo, eu não sentia.
Uma vontade.
Um desejo.
Por ela.
Ainda vi a sua silhueta bonita e bem desenhada sumindo no final do estacionamento. Seus
quadris que balançavam de um lado para o outro. Foi quando decidi, guiada por puro instinto
irracional. Decidi sem nem saber ao certo o que eu estava decidindo. Apenas, meio cega,
caminhei rapidamente em sua direção, atravessando todo o espaço que nos separava quase
correndo, até alcançá-la.
Olhos tão determinados, coração quase saindo pela boca, desejo a flor da pele.
E, então, quando eu estava a um passo e notei que ela percebeu alguém às suas costas,
segurei-a por um dos braços e a virei bruscamente para mim, colando o meu corpo no seu. Foi só
o tempo de eu sussurrar, roçando os meus lábios nos seus:
— Será que não percebe que a pessoa de quem eu realmente gosto é você?
E a beijei.
Simplesmente a beijei.
Por um segundo, ela se assustou. Olhos arregalados, mãos nos meus ombros prontas para
me afastar, cada centímetro do seu corpo em puro estado de alerta.
No entanto, assim que um dos meus braços a envolveu pela cintura, aproximando-nos
ainda mais, percebi Victoria, enfim, amolecendo. Inacreditável, completamente inacreditável,
mas excepcional. Soltou pelo nariz o ar que prendia e fechou os olhos, revelando uma parte de si
que há muito, muito tempo eu não provava.
Seus lábios deslizaram sobre os meus.
Os meus deslizaram sobre os seus.
Macios.
Gostosos.
Um tesão do caralho.
Foi como alcançar um pedaço do céu, por alguns instantes.
Porém, no momento em que a minha língua, esperta e atrevida demais, pediu para entrar
na sua boca, eu quis me crucificar por ter ido com tanta sede ao pote. Bastou um movimento
diferente, um único movimento diferente, para que todo encanto se quebrasse.
A princesa acordou.
Ou melhor, as doze badaladas da Cinderela soaram bem nos meus ouvidos.
Victoria me empurrou, de súbito, ofegante, transtornada, atordoada, e, como se não
bastasse, ainda atingiu o meu rosto com um tapa certeiro.
Mão forte, pesada, intensa, ao ponto de girar a minha cara completamente para um lado.
Meu ouvido zuniu, e uma leve tontura bateu.
— Você enlouqueceu completamente?! — berrou comigo. — Nunca, nunca mais faça isso
comigo! Está me escutando?! Nunca mais faça isso! Eu nunca mais vou olhar sua cara, sua
maluca!
E simplesmente me deu as costas, saindo de perto de mim quase correndo.

VICTORIA

Eu me sentia anestesiada. Absolutamente anestesiada. Aérea, inerte. Ainda que as minhas


pernas estivessem se movimentando, era como se fizessem isso por si só, involuntariamente. A
sensação era de que a minha alma tinha saído do corpo, enquanto eu observava a mim mesma de
longe, como uma espectadora, caminhando por entre as pessoas da festa, sem rumo, sem nem
piscar os olhos, igual a um zumbi desorientado.
Ainda sentindo a textura da sua boca na minha, eu tocava os meus lábios sem acreditar,
em choque. Apertava na tentativa de saber se aquilo tinha sido real ou se tudo não fazia parte de
apenas um sonho. Um sonho muito, muito louco. Mas, não. Não podia ser um sonho. A calcinha
molhada entre as minhas pernas era real demais. Real pra caramba. Era mais real do que eu
gostaria de acreditar.
Minha deusa.
Estremeci pela milésima vez, só de me lembrar.
Seus lábios nos meus, seu braço me envolvendo pela cintura. Uma saudade explodindo no
peito, assim que provei o seu gosto de novo, depois de dois anos. Um maldito desejo também.
Sina incontrolável. Peso na consciência de quem sabia do quanto aquilo era perigoso.
E, como se não bastasse a imensa e terrível confusão mental pela qual ela estava me
fazendo passar desde o primeiro dia em que colocou os pés de volta em Miami, ainda teve a
pachorra de dizer:
“Será que não percebe que a pessoa de quem eu realmente gosto é você?”
A desgraçada queria acabar com a minha vida.
Sim, ela queria sim. Eu não tinha a menor dúvida disso, considerando o quanto ela já
estava obtendo sucesso na sua estratégia sórdida e muito bem arquitetada. Só podia ser um
maldito plano maquiavélico seu. Sim, não existia outra explicação para o fato de que ela Rayka
era capaz de me matar apenas com o poder da sua mente.
Simplesmente não existia.
Eu estava tão fora de mim, que tinha a impressão de que, se não tomasse cuidado, eu
poderia desmaiar a qualquer momento. E não, isso não era algum tipo de drama meu. Era a mais
pura verdade. Eu sentia a minha cabeça meio pesada e as pontas dos meus dedos formigando.
Puxei o ar profundamente, fazendo o possível para não passar completamente mal ali, no
meio de dezenas de pessoas desconhecidas.
O problema era que, a cada vez que eu eu tentava dissipar os meus pensamentos, imaginar
outras coisas, me lembrar de detalhes que não tinham absolutamente nada a ver com ela, aquele
karma voltava com toda a força e intensidade para a minha consciência, repetindo
freneticamente, como uma criança teimosa, a mesma frase sempre. A todo instante. A todo
momento.
Rayka me beijou.
Rayka me beijou.
Rayka me beijou.
Sim, ela me beijou.
Nós nos beijamos.
E, minha deusa, foi tão...
Bom.
Ai, foi tão bom.
Tão gostoso.
Tão assustadoramente bom, que agora eu só queria...
Não, não, não, não!
Para, Victoria.
Para com isso, sua imbecil!
Isso não estava certo. Não tinha absolutamente nada de correto, em nenhuma parte desta
história. Ou melhor, deste absurdo. Era a coisa mais ridícula e errada de toda a minha vida. A
coisa mais idiota que eu poderia querer e desejar. Nunca estive tão fora de mim quanto agora.
Eu… Eu nem me reconhecia.
Bufei, enquanto os meus olhos pegavam fogo e derramavam lágrimas de ódio. Isso só
fazia eu me sentir ainda mais incrivelmente irritada comigo mesma, com a Rayka, com tudo,
com a vida. Era a centésima vez que eu chorava, naquela noite, por causa de uma estupidez que
não merecia cinco por cento da minha atenção.
Mas, as lágrimas rolavam, como se esfregassem na minha cara que vovó estava realmente
certa quando me disse que eu não era uma verdadeira Peterson. Isso porque as Peterson nunca
choravam. Nunca derramavam suas preciosas lágrimas por causa de bobagem. Nunca
derramavam suas preciosas lágrimas, mais de uma vez, por causa da mesma coisa.
Você não é perfeita, Victoria.
Você não é perfeita, Victoria.
Você não é perfeita.
Você nunca vai conseguir ser o que a sua mãe e a sua avó foram um dia.
Que inferno.
Completamente desnorteada e sem juízo, enquanto ainda caminhava sem rumo pela festa,
esfreguei de maneira brusca uma das mãos no rosto, tentando limpar, com ódio, toda a imundície
de lágrimas do meu rosto, quando, repentinamente... Esbarrei com toda a força em alguém. O
impacto foi tão intenso que o meu corpo girou, fazendo eu quase me desequilibrar.
Droga!
Parecia que eu bati em um muro, tamanha dor no meu ombro e altura da pessoa.
Xinguei mentalmente até a décima terceira geração, mesmo que eu nem falasse palavrão,
e, absolutamente irada, berrei para o lesado:
— Olha por onde anda, seu imbecil!
No fundo, eu sabia que parte da culpa tinha sido minha (ou quase toda), mas, que droga,
eu só queria despejar em alguém todo meu desprazer.
— A-Ah, Vic? O-oi! — todo atrapalhado, sem jeito, falou. — De-Desculpa, eu estava
mesmo te procurando.
Hã?
Enrugando com a testa, com a minha melhor cara de poucos amigos, pisquei os olhos e
encarei com mais atenção a pessoa. Foi quando eu me dei conta. Jeff. Era o esquisito, amigo da
Rayka. Naquele meu completo estado de lapso mental, eu não tinha nem reparado de início.
Soprei o ar pesado dos meus pulmões, como se isso, de alguma forma, pudesse me ajudar
a retomar o equilíbrio interno. Minha irritação, no entanto, continuava ali. Firme e forte.
Inabalável.
Ele, por sua vez, se aproximou um pouco mais e, com seus olhos cheios de receio e
preocupação, perguntou:
— Você está bem?
— Não! — respondi de pronto, sem nem pensar duas vezes.
O vinco em sua testa se tornou ainda maior.
— Te-Tem alguma coisa que eu possa fazer por você? — gaguejando, como se apenas o
fato de estar perto de mim fosse o suficiente para ficar nervoso, ele perguntou outra vez. — Quer
ir embora? E-Eu te levo para casa, se quiser.
E, então, pela primeira vez na noite, eu enfim parei, sentindo o meu corpo dar leves
indícios de que ia relaxar. Era como se alguém estivesse falando a mesma língua que eu, ou
lendo os meus pensamentos. Era tudo o que eu mais queria, desde a hora em que eu saí da boate
e caminhei, obstinada, para fora, tentando achar um Uber.
Infelizmente, aquele imbecil maluco me interrompeu, tentando me agarrar.
E, depois, Rayka apareceu, me tirando completamente do sério.
Bufei, balançando de leve a cabeça, enquanto o fitava.
Jeff era esquisitão, e eu também nunca tinha falado com ele, a não ser as breves palavras
que trocamos naquela noite. Porém, eu não ia perder a oportunidade de dar o fora daquele
inferno. Era isso ou sair dali nem que fosse caminhando, por mais de duzentas horas, até chegar
em Miami.
— Quer saber? — respondi. — Essa festa tá um saco! Me leva embora, por favor.
E não demorou mais do que dez minutos para que eu já estivesse dentro do carro popular
(e antigo) do Jeff.
Graças a deusa.
Eu nunca estive tão feliz em entrar em um carro popular, caindo aos pedaços, quanto
agora. O troço fazia todos os barulhos possíveis, como se estivesse cheio de grilos, e o motor,
então, roncava mais do que uma pessoa com desvio de septo.
Era uma lata velha, por assim dizer, mas, pelo menos, eu estava voltando para casa e
confiava que Jeff não era nem um louco pronto para me sequestrar. Podia ser esquisito, mas
louco ele não era. Agora, com a cabeça dois por cento mais tranquila, longe de toda a bagunça,
da música alta e de um certo alguém cuja boca mais parecia um convite para um passeio
completo no inferno, eu me sentia levemente mais leve.
Jeff me disse que Alyssa ia sair com uma garota que conheceu na boate. Lê-se transar com
uma garota que conheceu na boate. E, bem, Brittany eu tinha certeza absoluta de que voltaria
com a Rayka na BMW emprestada pela tia Daisy. Quem sabe, até iriam dormir juntas. Eu não
duvidava nada. A única coisa que eu realmente esperava era que não fizessem isso logo no
quarto onde a Rayka dormia, bem ao lado do meu.
Seria como pagar por todos os meus pecados, se eu tivesse que ouvi-las transando a noite
inteira. Mesmo que a regra no regimento fosse clara sobre não fazer barulho, quando se estava
transando na fraternidade, eu não iria me iludir de que elas não seriam capazes de parecerem
duas gatas no cio.
Só de pensar o meu estômago embrulhava.
Aliás, só de pensar nelas transando em qualquer parte do planeta Terra, ainda que não
fosse ao lado do meu quarto, me dava um embrulho no estômago.
Era um saco.
Um verdadeiro saco.
Até quando eu ia continuar me importando com isso?
Eu. Não. Fazia. Ideia.
Suspirei, ainda assim, tentando, pela milésima vez, esvaziar os meus pensamentos de tudo
o que tinha a ver com a sapatão desclassificada.
Enquanto o carro barulhento percorria a estrada que ligava Palm Beach a Miami, eu
permanecia calada, apenas observando o fluxo das tranquilas e desertas vias, enquanto
aproveitava, pela primeira vez na noite, um breve momento de paz no meu juízo.
Vez por outra, no entanto, Jeff tentava puxar conversa, à sua maneira esquisita. Eu, claro,
respondia apenas monossilabicamente. Tipo, “hum”, “sim”, “não”. Afinal, eu não estava ali para
fazer amizade, eu estava ali para chegar o quanto antes na porcaria do meu quarto de onde eu
nunca deveria ter saído.
— Como você está se sentindo agora? — perguntou ele, em mais uma tentativa de
diálogo.
— Bem.
Foi tudo o que eu respondi.
Não, eu ainda não estava completamente bem, mas também não queria gastar o resto de
energia que eu ainda tinha. O silêncio estava tão bom, e era tão bem-vindo. Depois de todo o
barulho infernal, que eu tive de suportar apenas dentro da minha cabeça, tudo o que eu precisava
agora era de silêncio.
Ele, no entanto, continuou, enquanto dirigia.
— Pode se abrir comigo, Vic. Sério.
Pelo amor da deusa.
Soprei, balançando a cabeça de leve, e sibilei:
— Não acredito que tô passando por isso.
— O q-que foi? — gaguejou, quase preocupado, desviando a atenção da estrada para mim.
— É o carro, né? Eu sei que é o carro. Ele é antigo. Pode se esconder, se quiser. Eu não vou ficar
ofendido.
Antes fosse o carro.
— Não é sobre você e o seu carro. É sobre tudo, mas, principalmente, sobre o quão bizarra
uma noite consegue ser.
Ainda consegui ter força o bastante para pronunciar duas frases maiores do que uma
palavra só.
— Então, fala pra mim, eu sou um ótimo ouvinte — sorriu.
Ai, cara.
Puxei o ar, tentando conservar o pouco da paciência que consegui criar, desde que saí da
festa, mas que, agora, já estava querendo sumir, graças à “hospitalidade” exacerbada do garoto.
— Olha só, Jeff — encarei-o seriamente. — Obrigada pela sua disposição em me ajudar,
mas, sério, tudo o que eu menos quero agora é falar sobre os meus problemas. Então, só continue
dirigindo o mais rápido que você conseguir, porque é o melhor que pode fazer por mim, no
momento.
Eu só queria ficar quieta...!
Porém...
Enquanto em mim faltava simpatia, no Jeff faltava noção. Era como se ele tivesse
entendido algo como “ah, ela não quer falar dos problemas, então a gente pode falar sobre
outras coisas”. Pelo amor da deusa. Talvez eu tivesse que dizer, como todas as letras, que eu não
estava a fim de abrir a minha boca para falar sobre absolutamente nada.
— Então... — tentou mudar de assunto. — O carro tem umas paradas novas, sabe? Tipo,
eu botei aquela lâmpada ali... — dobrou o braço, flexionando o bíceps bem nas minhas fuças. —
E aí, ela reflete a luz direto no globo — completou, apontando e mexendo o músculo. — Legal,
né?
Franzi o cenho de leve.
Era impressão minha ou ele estava se esforçando, de um jeito muito desengonçado, para
chamar a minha atenção com o tamanho do seu braço bombado de academia?
Juro que, por um instante, mesmo com o meu humor seriamente afetado pelos últimos
acontecimentos, eu senti vontade de rir. Seus modos completamente atrapalhados, enquanto
tentava despertar o meu interesse, eram cômicos. Tadinho.
— Hummm... Legal — me segurando para não achar graça da sua cara, respondi.
No instante em que me calei, porém, foi automático. O carro, que já era barulhento por
natureza, estourou os nossos ouvidos e quase me matou do coração, com o susto que levei,
graças ao estrondo poderoso em alto e bom som.
Como se não bastasse, uma quantidade absurda de fumaça começou a sair pelo capô, onde
ficava o motor, à medida que o acelerador parava de reagir.
Assustada, berrei:
— Ah, não! O que tá acontecendo? O carro tá pegando fogo?! A gente vai morrer?!
— Que merda! — xingou ele, enquanto girava a chave na ignição e apertava os pedais
umas trezentas vezes, na ilusão de que isso pudesse resolver as coisas. — O carro é velho... Tá
com muito problema...
E, então, no meio de uma estrada escura e deserta, onde só tinha mato de um lado e do
outro, ainda fumaçando, o carro morreu. Sim, MORREU. Estancou. Se acabou. Desmaiou.
Desfaleceu.
Perfeito.
PERFEITO!
Era só isso, somente isso, o que estava faltando para encerrar, de forma magnífica, aquela
noite que já estava extraordinária.
Olhei de um lado para o outro, num iminente desespero, por não ver um pé de pessoa em
lugar algum.
— E agora? O quê que a gente faz?
Ele suspirou, sem jeito, passando as mãos pelos cabelos.
— Agora... — era como se estivesse escolhendo as palavras certas, para não me irritar
ainda mais. — Agora, a gente vai ter que empurrar.
Hã?
Abri e fechei a boca, umas dez vezes seguidas, fazendo uma careta absurda de choque e
indignação.
— Empurrar?!
Ele engoliu seco, me encarando nervoso.
— M-Me de-desculpa, Vic... — até gaguejou. Uma gota de suor já descendo pela sua
testa. — E-Eu não imaginava que isso ia acontecer.
— E você quer me fazer empurrar essa lata-velha com um salto de quinze centímetros?!
Um sorriso bem amarelo estampou os seus lábios.
— Encara como um exercício...
Hã?
— Que exercício o quê?! — ralhei, desaforada. — Eu vou é dar o fora dessa joça! — e
toda desgrenhada, nada delicada, com sandálias, vestido e bolsa, simplesmente abri a porta,
como se estivesse fazendo um salto para lua, e saí.
O lugar, porém, visto do lado de fora, parecia ainda pior do que quando eu estava dentro
do carro. Tudo, eu disse tudo, escuro de um lado e do outro, com matas e folhagens estendendo-
se por toda a extensão de quilômetros de distância que os meus olhos não eram capazes de ver o
final. Os postes de luz, alocados nas laterais da pista, iluminavam parcamente o local. E a
sensação era de que eu estava presa em um filme de terror, onde um espantalho possuído pelo
capiroto poderia sair a qualquer momento do meio do matagal.
Que inferno...!
Pensa, Victoria, pensa no que você pode fazer.
Agoniada para sair dali, comecei a cogitar as possibilidades, caminhando de um lado para
o outro. E, claro, a primeira ideia que eu tive não poderia ser outra coisa. Tirei o celular da bolsa
e abri o aplicativo de viagens.
Foi quando Jeff saiu do carro e perguntou:
— O que você vai fazer?
— Vou chamar um Uber, né? E você, acho melhor chamar um reboque para tirar do meio
da pista esse troço que chama de carro.
Pela graça da deusa, o aplicativo estava funcionando. Ao menos isso! Seria ainda mais
sacanagem do universo comigo, se nem sinal de celular eu tivesse. Era melhor desistir logo de
tudo e pedir para ser arrebatada.
Porém...
Aparentemente, a alegria de ter uma rede telefônica e de internet não foi feita para durar
muito. À medida que o tempo passava, todos, eu disse todos, os Ubers cancelaram a corrida,
porque eu estava literalmente no meio DO NADA, e os únicos pontos de referência que eu tinha
era o enorme matagal do Freddy Krueger e uma noção muito imprecisa da altura da I-95 N que o
carro tinha parado.
Claro que a vida não poderia ter feito aquela carroça dar o prego em um lugar melhor.
Não, claro que não. Isso seria pedir demais obviamente. Lógico que eu tinha que ficar empacada
onde JUDAS PERDEU AS BOTAS.
Um.
Dois.
Três.
QUATRO motoristas cancelaram a corrida. E eu tinha certeza de que, se eu continuasse
pedindo, eles também continuariam cancelando.
Argh!
Se eu soubesse que ia dar nisso, eu teria tirado o meu lindo e maravilhoso Porsche da
garagem, mesmo com o trauma de já ter batido a Lamborghini novíssima do meu pai na volta de
uma festa, quando eu tinha, sei lá, dezessete anos. Aliás, melhor, muito melhor... Eu nem teria
saído da fraternidade!
Sério, deusa, o que eu fiz para merecer?
Bufei.
Tá bom, tá bom! Não precisa dizer. Eu sei que a lista é grande.
Jeff, no entanto, percebendo o meu estado, se aproximou, perguntando:
— O que foi? Não conseguiu um carro?
— Não! — revoltada, respondi. — Porque a porcaria do seu carro fez o favor de dar o
prego em um lugar inóspito e longe da civilização!
— Droga... — estalou a língua no céu da boca. — Também tentei ligar para um reboque,
mas a chamada não completa.
Ah não!
Eu só queria chegar na minha fraternidade, tirar a roupa e o salto alto, entrar na
hidromassagem e fingir que essa noite nunca aconteceu.
Será que era pedir demais?!
Pensa, Victoria, pensa.
Você tem que dar um jeito nisso, garota.
Já coçando a cabeça de inquietação, tornei a caminhar freneticamente de um lado para o
outro. Existiam outras possibilidades, além do Uber, claro. Tipo, voltar a pé, pedir carona para
algum desconhecido e correr o risco de terminar a noite em um terreno baldio, ou tentar ligar
para alguém.
Brittany, meu pai e... Rayka.
Não.
No mesmo segundo, todos os meus pensamentos negaram isso. Seria como assinar a
minha sentença de imbecilidade.
Não, Rayka, não.
Não, não, não.
Definitivamente não.
Nem imagine isso, porque não vai acontecer.
Eu jamais pediria a ajuda dela para voltar pra casa!
Jamais!
Nunca!
Nunquinha mesmo!
Preferia dormir no meio da rua.
Porém...
Quinze minutos depois de tentativas frustradas, cinquenta ligações perdidas para o meu pai
(que provavelmente estava no seu décimo terceiro sono), setecentas e quarenta e oito ligações
perdidas para a safada da Brittany, um iPhone quase sendo arremessado no meio da Interestadual
e um iminente AVC, passei a língua entre os lábios, me preparando psicologicamente e me
odiando daqui até a eternidade.
Liguei para a única pessoa que eu tinha certeza que me atenderia.
A única pessoa que me buscaria até na lua.
Que ódio.
A vida só podia estar tirando onda com a minha cara, do mesmo jeitinho como a sapatona
gostava de fazer.
Dito e feito.
No segundo toque, atendeu.
— Oi? Vic? — parecia preocupada. Ridiculamente preocupada. — O que foi?
Minha deusa, eu nem acreditava que estava fazendo isso.
Rolei os olhos, tentando segurar a raiva que eu sentia de mim mesma.
Toda a minha dignidade escorrendo para o fundo do poço, por estar claramente pedindo a
sua ajuda.
— É-É... — gaguejei, minha voz embargada de vergonha de estar me prestando a esse
papel, principalmente depois de tudo o que rolou na festa. Eu queria me assassinar. — Será
que... — Não... Não, não, não. — Será que você pode me levar pra fraternidade? Eu tô no meio
do mato.
DO JEITINHO QUE A CLÍNICA
PSIQUIÁTRICA GOSTA

“Mesmo quando o céu estiver caindo, mesmo quando o sol não brilhar,
eu tenho fé em você e eu”
Sure Thing | Miguel

VICTORIA

— Sabe o que é engraçado? — perguntou ela, quase cantarolando, enquanto dirigia,


madrugada adentro, pela Interestadual, já atravessando a entrada de Miami.
Rayka não demorou mais que vinte minutos para nos encontrar parados no acostamento
daquela via deserta. Logo resolveu a situação. Me disse que Brittany ia voltar de táxi com a
Alyssa, o que eu achei bem estranho, considerando que Jeff me falou que a loira sapatão ia sair
com uma garota que conheceu na festa. A não ser que a garota, de quem ele estava se referindo,
fosse a Brittany. Só que isso não deixava de ser estranho do mesmo jeito. Brittany e Alyssa
nunca nem se falaram.
Depois, Rayka ainda conseguiu chamar um reboque para levar o carro enguiçado e o
garoto esquisitão. Na verdade, ela chegou junto com o reboque, como uma super-heroína
falsificada. E, agora, depois de tudo acertado, estávamos voltando sozinhas, no carro da sua mãe,
para a fraternidade. Impressionante como a infeliz conseguia ser ágil e eficiente na mesma
proporção que também era insuportável.
Suspirei, rolando os olhos.
Vindo da Rayka, naquela altura, depois de tudo o que aconteceu em uma única noite, boa
coisa eu não podia esperar que ela dissesse.
— Não estou a fim de saber — respondi.
— Mas, eu vou falar mesmo assim... — sem tirar os olhos da estrada, sorriu, sagaz, como
se estivesse achando a situação muito divertida. Idiota. — Eu me lembro perfeitamente de você
ter me dito, depois de me dar um tapão no rosto, que nunca mais ia olhar na minha cara. Só que,
agora, você está aqui, dentro deste carro, comigo, precisando de mim. Engraçado, né?
Pressionei a mandíbula.
— Vai ficar passando isso na minha cara agora?
Soltou uma risadinha, respondendo:
— Pode ter certeza de que a sua mão no meu rosto foi mais pesada.
Bufei.
— Você me beijou, sua desgraçada!
Ela queria que eu tivesse reagido como?!
— E beijaria de novo, se você deixasse — respondeu de pronto, como se fosse a coisa
mais natural do mundo.
Minha boca se abriu, em puro choque, com o tamanho da sua cara de pau e do seu
atrevimento.
— E, por acaso, você achou que tinha o direito de fazer isso?!
— Bom, “direito” não. Mas, depois de você ter praticamente se declarado para mim, no
meio de um estacionamento, eu fiquei com vontade, confesso. Aliás, eu tenho vontade de te
beijar toda hora, mas ali foi o ponto alto da noite. Juro.
Eu estava estupefata!
Absolutamente estupefata.
Rayka conseguia ser o pior tipo de ser humano da face da Terra. Sua capacidade de ser
presunçosa transcendia o potencial de qualquer outra pessoa.
— Me declarando?! Sério, a sua autoestima deveria ser encapsulada e vendida em
farmácias. Muita gente iria comprar.
Ela riu.
— Como assim, Victoria? Não foi você quem disse que se importava comigo? Você falou
que se importou com o beijo que a Brittany me deu.
Argh, que ódio!
Ouvir esse absurdo saindo da sua boca era ainda pior do que quando eu mesma falei.
— Para de me lembrar disso! — ofeguei, tentando me controlar, e, então, em um
resmungo, completei. — Eu só podia estar fora de mim.
Balançando a cabeça de leve, ao soltar mais uma risadinha, ela respondeu:
— Isso quer dizer que eu posso ficar de boa com a Brittany, outra vez?
Cara, essa menina estava testando a minha paciência.
Sim, estava.
Eu tinha certeza de que ela veio ao mundo com o único objetivo de encher o meu saco.
— Faz o que você quiser da sua vida, eu não tô nem aí! — disse eu, bem desaforada,
quando, no fundo, toda a minha imbecilidade interna berrava suplicando: “Ai, não, por favor,
não! Não fica de novo com ela, não!”.
Que raiva de mim, viu? Que raiva!
— Ah, é? — mesmo ainda dirigindo, ergueu brevemente uma das sobrancelhas para mim,
me fitando. — Beleza, então. Acho até que vou começar a pegar as outras garotas da
fraternidade, que ficam me dando mole. Um monte de gatinha daquela, morando comigo, e eu
ainda não fiz nada... Tô perdendo meu tempo.
Hã?
Apenas a menção a isso me fez ferver, de repente. Em um piscar de olhos. E eu sabia, eu
sabia mais do que gostaria de admitir, que o meu rosto ficou estupidamente vermelho, só de
imaginar aquela pilantra miserável desfilando com as meninas, bem debaixo das minhas fuças.
— Se você ousar transformar a minha fraternidade em um cabaré, eu vou... — fui
aumentando o tom gradativamente, entredentes, até que...
Ela gargalhou, na minha cara, me interrompendo.
— E, pra você, isso não se chama ciúmes?
Ci-Ciúmes?
Por um segundo, eu, inconscientemente, travei, como se aquela palavra, que a canalha até
fez questão de dar ênfase, tivesse atingido alguma parte muito específica de mim. Muito
específica mesmo. Era uma palavra perigosa, poderosa e bastante... Argh, droga. Não, Victoria,
apenas não. Chega de paranoias. Bufei.
— Você é um nojo.
Foi tudo o que eu disse.
Ela, por sua vez, balançando a cabeça de leve, como se dissesse em silêncio “você é tantã
mesmo, garota”, deu mais uma daquelas suas risadinhas irritantes e tornou a prestar totalmente
atenção na estrada, calando-se.
Puxei o ar, tentando restabelecer o meu equilíbrio interno pela milésima vez naquela noite.
Todas as minhas outras tentativas foram frustradas. Eu ainda estava indignada com o rumo que
as coisas tomaram. Tudo escapou por completo do meu controle. Era como se o universo
estivesse me fazendo pagar com a língua, quando eu disse que nunca mais olharia na cara dela ou
quando repeti, umas quinhentas vezes para mim mesma, que jamais pediria uma carona sua.
Aliás, pior, era como se o universo estivesse deliberadamente me jogando para cima
daquela miserável, de todas as formas possíveis.
Tipo, “Ah, você não quer ela, né? Pois, agora, só de mau, você vai ter! Toma! Uma surra
de Rayka na sua vida!”.
Terrível.
Balancei a cabeça de leve, enquanto o carro, já em Miami, atravessava ruas e avenidas a
caminho da fraternidade. Por um momento, me recostei mais ao banco, encarando a paisagem
através da janela ao meu lado, enquanto tentava preencher os meus pensamentos com coisas que
não tinham a ver com a sapatilha ao meu lado.
O milagroso silêncio, que agora nos abraçava dentro do carro, era bem-vindo. Muito bem-
vindo, para que eu aquietasse o meu juízo tão perturbado. Ainda assim, mesmo que eu não
quisesse, Rayka continuava ali, não apenas dirigindo a trinta centímetros de mim, mas também
dentro do meu corpo, debaixo da minha da pele, entranhada na minha cabeça.
Maldita.
Era mesmo como uma maldição.
E o pior: isso só me confirmava o que eu não tinha conseguido segurar, bem dentro de
mim, no estacionamento. Rayka, de fato, era como uma erva daninha. Não importava o quanto eu
tentasse cortar o mal pela raiz. Ela sempre daria um jeito de crescer em mim de novo,
preenchendo cada espaço, se apossando de tudo o que encontrasse pela frente, mas,
principalmente... Do meu coração.
Meu Deus.
Fechei os olhos por alguns segundos, puxando o ar para refrigerar os meus pulmões em
chamas.
Eu estava ferrada.
Eu estava muito ferrada, e tinha plena consciência disso.
O que eu poderia fazer para reverter o fato de que eu estava seriamente maluca com (por)
ela e evitar que o pior acontecesse?
Eu não fazia ideia.
A palavra “ciúmes” ainda pairava pelos meus pensamentos, me inquietando. Eu não podia
sentir ciúmes dela, podia? Pelo amor da deusa, era a Rayka. Só a Rayka.
Uma MULHER.
Que droga.
As minhas paranoias não me deixavam.
Era tão estupidamente confuso.
Tão confuso quanto o fato de que eu, mesmo sem querer, deslizava os meus olhos da
janela para ela, sutilmente, a cada dois minutos. Parecia uma força maligna, imparável, me
levando para a beira de um abismo. Sobretudo, quando ela estava tão perto de mim, tão perto
assim como agora. Impossível não reparar, ainda que eu tentasse me manter com o rosto virado
para fora e me odiasse por não conseguir isso.
A infeliz tinha uma coisa. Ela tinha um negócio. Eu nem sabia explicar o que era, mas eu
sabia que ela tinha. Uns poderiam chamar de… Charme? Outros, sei lá, diriam que era
borogodó. Mas, para mim, não passava de uma clara estratégia de satanás para me fazer perder a
cabeça.
Depois que ela se calou e nós não trocamos mais palavras, tudo o que restou foram
olhares. Olhares meus. De mim para ela. Eu juro que, por alguns instantes, eu nem vi o tempo
passar, enquanto ela dirigia, apenas observando pelo cantinho das orbes, notando, percebendo,
suspirando, me amaldiçoando, a cada dois minutos.
As mãos e os braços cheios de tatuagens. Os dedos longos e finos, cobertos de anéis
prateados, que seguravam o volante de uma maneira tão... Despretensiosa. O rosto afilado,
mesmo com o queixo marcado e tantos trejeitos masculinizados. Os olhos escuros e levemente
puxados nas laterais. O nariz arrebitado com um piercing de septo. Os fios de cabelos curtos e
bagunçados que caíam sobre a sua testa de um jeito ridiculamente charmoso. Aquela parte
raspadinha e cafona que ficava por baixo de um lado. Os lábios... Cheios, corados sem depender
de maquiagens. Bonita.
Engoli seco, atarantada comigo mesma.
Pensamentos inoportunos, traidores, odiosos, preenchendo cada centímetro do meu juízo.
Coração inquieto, cabeça extremamente perturbada. Lembranças nem um pouco distantes, ainda
daquela mesma noite, poucas horas atrás, quando, depois de dois anos, eu senti novamente os
seus lábios. Eu ainda era capaz de sentir a textura deles na minha boca e...
— Por que você tá me olhando desse jeito?
Foi automático.
Eu exclamei de susto, de repente.
Droga, droga, droga.
Era como se a minha cabeça estivesse viajando por lugares tão afastados do mundo real,
que, apenas a sua voz, foi o suficiente para me arrastar bruscamente de volta à realidade.
O rosto quente e vermelho como uma pimenta era real, assim como também o semblante
todo desconsertado, que eu não conseguia disfarçar nem se vendesse a minha alma para o
demônio. Me senti como uma criança que faz travessuras e é pega no flagra.
— Vic? — tornou a falar, erguendo uma das sobrancelhas para mim, enquanto ainda
dirigia.
Foi só quando eu percebi que tínhamos acabado de dobrar na rua universitária da
fraternidade. A Casa das Minervas já era logo ali.
Minha deusa, eu “dormi” quanto tempo naquele carro?
Pigarreei a garganta, ainda toda atrapalhada.
— Quê? O quê? — torci o nariz, me fazendo de desentendida.
— Você estava viajando... O que foi?
— Na-Nada, sua idiota... — passei a língua entre os lábios, puxando o ar em seguida, na
tentativa de me recompor e parar de gaguejar. — Eu tô normal.
Normalzinha... Do jeitinho que a clínica psiquiátrica gosta.
Ela, por sua vez, suspirou, como se não estivesse convencida da minha resposta. E, então,
estacionou o carro na frente da fraternidade, virando o rosto para mim. Desde o nosso momento
no estacionamento da boate, era a primeira vez que a via tão séria. Diferente de quase noventa
por cento das vezes em que eu olhava para a Rayka, agora não havia qualquer sinal de sorriso, de
brincadeiras, de ironias ou de sarcasmos.
A garota estava realmente sisuda.
Algo no ar, entre nós, mudou. Eu não sabia se era por causa dela, do seu olhar sério para
mim, ou por causa do meu próprio repentino nervosismo, que bateu desde o susto e não me
deixava mais, nem se eu fizesse uma novena para a deusa das líderes de fraternidade
psicologicamente abaladas.
— Não, Victoria, você não está normal — respondeu ela, cravando os seus olhos
fixamente nos meus. — Aliás, você nunca foi. Mas, está pior nos últimos dois anos.
Nos últimos dois anos...
As palavras passearam lentamente até os meus ouvidos. De súbito, o meu corpo retesou,
quando decodificou a informação.
O assunto intocável entre nós.
Eu sabia... Eu sabia o que ela estava querendo dizer.
E, honestamente, eu não estava preparada para falar sobre isso. Não agora. Não hoje. Não
com toda aquela carga de vulnerabilidade sobre as minhas costas que me deixava absolutamente
confusa e perturbada por ela.
Engoli seco, me inquietando.
Bruscamente, tentei abrir a porta, forçando a tranca repetidas vezes seguidas. No entanto,
enruguei a testa e ofeguei, ao perceber que não liberava de jeito nenhum.
— Destrava essa porta, Rayka — virei-me para ela, retrucando entredentes, numa mistura
de ansiedade e temor. — Eu quero sair.
— Para fugir, como sempre faz? — ela devolveu.
Meu olhar vacilou.
Vergonha.
Medo.
Sei lá.
Ainda assim, fiz um esforço para manter a postura. Uma tentativa muito falha, por sinal.
— Eu não tenho nada para fazer aqui, agora. Já chegamos na fraternidade. Estou cansada e
quero subir para o meu quarto.
— E eu quero conversar com você.
Minhas mãos congelaram.
Que droga.
Por que eu simplesmente não conseguia agir como a Victoria desprezível e insolente,
quando essa imbecil praticamente me colocava contra a parede?
Era só eu dar uma de vadia esnobe e estava tudo certo.
Mas, não, eu simplesmente não conseguia fazer isso, quando Rayka agia com seriedade e
ficava quase em cima de mim.
— E-Eu não quero conversar...
Minha voz estava vergonhosamente trêmula.
— Por que você é assim, hein? — ainda cravando os olhos nos meus, perguntou. — Por
que você sempre preferiu a mentira à sinceridade? Você fala que eu não levo nada a sério. Mas,
na real, Victoria, é você que não se leva a sério. Você não leva a sério os seus próprios
sentimentos, e sempre, sempre se escondeu atrás de uma máscara estúpida, porque isso é mais
cômodo pra você do que enfrentar a si mesma e assumir quem realmente é. Seria tão menos
doloroso para você, se você fosse honesta não apenas comigo, mas, principalmente, consigo
mesma.
Suas palavras entraram pelos meus ouvidos como facas afiadas, poderosas, pontiagudas,
cortando tudo por dentro até se enfiarem por completo na minha alma e no meu coração. Ela
nunca tinha falado algo assim para mim. E eu nunca tinha ouvido, de qualquer pessoa, coisas
que me assombravam na mesma intensidade que me davam a impressão de que eu estava
despida.
Sim, despida.
Nem as palavras rígidas da minha avó.
Nem o último pedido da minha mãe.
Nada.
Nada nunca fez eu me sentir assim, porque eu sabia... Eu sabia que Rayka não estava
apenas conversando comigo, com a minha casca. Ela estava falando também com a minha alma.
Uma parte da Victoria que ninguém conhecia. Apenas ela.
Meus olhos se encheram d’água.
A sensação foi sufocante.
E eu juro, juro que tudo o que mais queria era sair dali.
— N-Não faço ideia do que você está falando... — disse eu com a voz completamente
embargada. — Vai, me deixe sair logo da porcaria desse carro.
Não faz ideia, mas está a ponto de chorar, não é?
Realmente, isso tem muita lógica, Victoria.
Ela, no entanto, como se nem tivesse ouvido o que acabei de dizer, continuou:
— Me desculpe por ter te beijado hoje, sem perguntar antes se podia fazer... Eu sei que
brinco, sou cara de pau e falo um monte de merda, mas, a real, Victoria... — seus olhos tão
expressivos nos meus. — A real é que... Eu sinto que você quer a mesma coisa que eu. Sinto
quando você me olha, sinto quando estamos perto uma da outra, eu sinto até... Até quando você
discute comigo, por mais maluco que isso possa parecer. Eu sinto isso, há dois anos, Victoria,
desde que nos beijamos pela primeira vez. E, agora, os seus olhos cheios de lágrimas só me
confirmam que estou certa. Você quer, mas você tem medo. A única coisa que eu quero saber é:
do que você tem medo?
De tudo.
De absolutamente tudo o que me envolve, da minha vida, das pessoas que estão ao meu
redor, mas, principalmente, de você.
A resposta veio bem na minha garganta… Porém, morreu antes que pudesse escapar pela
minha boca.
Ofeguei, quase em agonia.
— Eu... Eu não sei de nada... — sem norte, balancei a cabeça, tateando por ali, enquanto
tentava mais uma vez abrir a porta. — Só me deixa sair daqui.
Rayka, no entanto, sem quaisquer anúncios ou avisos prévios, simplesmente se desprendeu
do seu cinto de segurança, em um piscar de olhos, e deslizou sobre o seu banco, em minha
direção. Me segurou, de repente, pelo queixo, fazendo-me encará-la. Seu rosto, agora, tão perto,
mas tão perto do meu, que parecia pecado.
Ela me encarava com tanto afeto, tanto... Carinho.
Seu olhar saudoso era como o de alguém que queria há muito tempo fazer isso.
Senti, então, quando os seus dedos, sutil e delicadamente, subiram pelo meu rosto,
alcançando a minha bochecha, passeando pela minha pele e... Me fazendo fechar os olhos. Sim,
involuntariamente, mesmo que toda a minha razão gritasse para eu não me entregar ao momento,
os meus olhos, como se tivessem vida própria, se fecharam. E, assim que o fiz, uma lágrima
escorreu.
Seu toque era... Bom.
Doce e delicado, mas, ao mesmo tempo, seguro e firme.
Por que você voltou, garota?
Por que você voltou para a minha vida?
Era o que os meus pensamentos sussurravam.
— Você é linda, Victoria... — ouvi quando ela disse, tão perto de mim. — Será que um
dia vai se dar conta de que nada de errado existe em ficar com uma mulher? — e, então, deslizou
o polegar pelos meus lábios. — Eu tenho certeza de que, quando a gente se beija, você percebe,
assim como eu, que nós somos perfeitas juntas.
Perfeitas juntas.
Perfeitas.
Juntas.
Perfeitas juntas.
Perfeitas.
Perfeita.
Essa palavra... Viajou pelos meus ouvidos, atravessou os meus neurônios e se infiltrou lá
dentro do meu juízo como uma espécie de... Gatilho. Foi quando abri os olhos subitamente, me
assustando com a proximidade dos nossos rostos. Aquela palavra era, sim, como um gatilho para
mim.
“Seja perfeita, Victoria, como uma Peterson.”
“Nunca aceite nada menos do que a perfeição.”
“Você não é perfeita, Victoria, e vai continuar não sendo, enquanto permanecer tomando
atitudes que envergonham e mancham a imagem da família.”
Envergonham e mancham a imagem da família...
Ofeguei, me inquietando com as lembranças que só aquela palavra poderia me provocar.
Lembranças da minha mãe. Da minha avó. Lembranças que embrulhavam o meu estômago.
Rayka enrugou a testa de leve, percebendo.
— O que foi? — perguntou ela, preocupada. — É por causa dos nossos pais? Você tem
medo de que eles descubram? Acho que eles não vão reclamar, se ficarem sabendo. Não somos
irmãs. A gente só está na mesma família, porque, por acaso, os nossos pais se casaram. Só isso.
O problema não era esse, que saco...!
Antes fossem os nossos pais, o problema.
Era algo muito maior do que isso.
O problema era quem eu era.
Ou… Quem eu deveria ser.
Deveria.
Engoli seco, fazendo o possível para empurrar aquele nó absurdo que subia, com força
total, pela minha garganta.
— O problema são tantas coisas, e você... — encarei-a com os olhos cintilando. Na
verdade, quase arrebentando, enquanto alternava as orbes entre as suas e os seus lábios. — Você
me assusta, Rayka — soltei em um sopro, por pouco sem fôlego. — Você me assusta demais.
E, então, agilmente passando por cima dela, consegui destrancar a trava ao lado do seu
banco. Voltei para o meu e, sem ao menos olhar nos seus olhos outra vez, abri a porta ao meu
lado e saí do carro.
Tentei fazer o maior esforço possível, para que isso não acontecesse, mas as lágrimas
despencaram com força total dos meus olhos, antes mesmo que eu cruzasse a porta da
fraternidade. Lágrimas de confusão mental, de medo, de fúria, mas, principalmente, de ódio de
mim mesma.
Eu me odiava tanto, tanto.
Eu me odiava por ter chorado, em duas semanas, depois que ela voltou, mais do que chorei
nos dois últimos anos em que esteve longe.
Era inacreditável a sua capacidade de me deixar longe de mim mesma, em todos os
mínimos detalhes. Todos. Por um momento, enquanto subia as escadas, correndo direto para o
meu quarto, eu não me reconheci. Eu não sabia quem eu era. Apenas uma vaga lembrança
distante da garota que fui um dia.
Aquela que não chorava.
Aquela que não se abalava por nada.
Aquela que... Não gostava de mulher.
Pelo amor de Deus.
Um soluço escapou da minha garganta, quando realmente me dei conta de que eu estava
me perdendo. Eu estava simplesmente me perdendo de quem era, dos meus propósitos, dos meus
planos, e das coisas que, um dia, sonharam para mim. Se eu vacilasse ou baixasse muito a
guarda, eu sabia que corria um tremendo risco de me perder para sempre.
E eu não estava preparada para me perder de mim mesma, pelo resto da vida.
A sala e as escadas estavam vazias, pelo menos, quando passei correndo. Era melhor
assim. Eu não queria que qualquer uma das garotas me visse naquele estado deplorável.
Agoniada, entrei no meu quarto rapidamente, tranquei a porta e me joguei na cama. Minha
cabeça zuniu em um zilhão de pensamentos.
O medo transbordando de mim em forma de um choro ridículo, estúpido.
Medo de mim.
Medo dela.
Medo dos meus e dos seus sentimentos.
Medo do que nós poderíamos fazer juntas.
Medo da certeza que eu tinha de que nós éramos capazes de trocar muito mais do que
apenas beijos. E, sobretudo, medo de saber que, no fundo, era isso o que eu realmente queria.
Era tudo o que eu mais queria.
Eu queria...
Eu queria ser... A Law.
A Law era corajosa. Ou, pelo menos, se tornou corajosa com o tempo.
Soprei o ar, cansada, balançando a cabeça em negativo. Ultimamente, eu estava me
lembrando das minhas bobagens de adolescente idiota com muito mais frequência do que
gostaria. No entanto, como uma força imparável que me levou a fazer imbecilidades nas últimas
semanas, não pude evitar. Novamente, assim como na outra vez em que entrei no meu quarto
sem ar, por causa dela, puxei a gaveta do fundo falso do móvel que ficava ao lado da cama.
Meus cadernos antigos de desenho.
Os quadrinhos de Law e Joy.
Mais lágrimas escorreram dos meus olhos, sem que eu pudesse pará-las, enquanto
folheava a história que eu mesma fiz. Law, a garota exemplar, se tornava corajosa e, depois de
todo o medo, ficava com a Joy.
Law e Joy...
Sorri sem nem perceber, deslizando os meus dedos sobre os desenhos no papel.
Elas eram... Perfeitas.
“Eu tenho certeza de que, quando a gente se beija, você percebe, assim como eu, que nós
somos perfeitas juntas.”
Sua voz soou repentinamente, nas minhas lembranças.
Engoli seco, nervosa, como se ela estivesse bem ao meu lado falando isso outra vez. E,
então, negando a mim mesma novamente, arremessei os cadernos, com toda a força no chão,
para longe de onde eu estava.
Para de ser tão imbecil, Victoria.
Law e Joy não existem no mundo real, apenas na sua cabeça.
Você não pode ser a Law.
Rayka não é a Joy.
Você tem que ser perfeita.
E a Law não é perfeita.
A Law largou tudo o que ela acreditava, para ficar com uma mulher. E, gostar de mulher,
nunca me soou exatamente como perfeição. Pelo menos, foi isso o que eu passei a minha vida
inteira escutando. Eu ainda podia ouvir a voz da Grace, claramente nos meus ouvidos, há sete
anos, logo quando Daisy e Rayka apareceram pela primeira vez.

...

Era um feriado de Ação de Graças, quando a família decidiu fazer uma viagem para uma
casa de praia em Jacksonville, na Flórida. A ideia era passarmos o fim de semana por lá, com
alguns tios e primos meus. E, bem, eu estava superanimada, porque fazia pouco mais de dois
dias que o meu pai tinha me apresentado a sua nova namorada. Na verdade, eu tinha certeza de
que papai teve a ideia de fazermos essa viagem, em um final de semana, como uma forma de
aproximá-la mais da nossa família.
Ele finalmente estava sorrindo de novo. Digo, sorrindo de verdade. Papai levou alguns
anos de luto, desde que mamãe se foi. Ele foi forte, ainda assim. Eu sabia que sim. Cuidou de
mim, me criou, me deu amor e continuou sendo o melhor pai que eu poderia ter. Ele sorria e
sempre tentava me passar a impressão de que estava tudo bem. Porém, nem todos os sorrisos
eram tão verdadeiros quanto todos que ele passou a dar e oferecer, desde que me falou que
estava apaixonado por uma mulher. Uma professora recém-chegada à Universidade de Miami,
onde ele era professor e coordenador do curso de Direito.
Daisy era ótima, simpática e maravilhosa. Eu a adorei, logo de cara. Nós nos demos bem,
desde a primeira conversa. Seu jeitinho meio hippie e espiritualizado até demais, era incrível.
Eu diria até que engraçado. Ela era cheia de plantinhas, pedras energéticas e óleos essenciais.
Completamente diferente da minha mãe. Mas, o principal de tudo era que eu percebia que
estava fazendo muito bem ao meu pai. Isso era o que realmente importava. E, claro, eu estava
muito feliz por eles.
Ela também tinha uma filha. Rayka era o seu nome. Assim como eu, a sua idade era de
catorze anos. E, bem, ela era muito... Muito legal. Sim, ela era. A garota era superdivertida,
engraçada, e ainda soltava umas piadinhas bobas que me faziam rir. Estávamos nos dando bem.
Conversamos por horas, na última noite, à beira de uma fogueira na praia, enquanto nossos
pais assavam marshmallows e faziam planos para a próxima viagem.
Ela era diferente... Não era como as minhas amigas da escola, por exemplo. Todas as
garotas que eu conhecia e que tinham a nossa idade, só falavam de garotos e maquiagens. A
Rayka não. Além de não usar vestidos e saias, ela falava sobre tudo menos meninos, marcas de
blush e roupas da última estação. Conversamos sobre seriados, filmes, clipes de música e ela
ainda me explicou por que foi para a casa de praia com um plástico enrolado no braço. Rayka
tinha feito a sua primeira tatuagem.
Detalhe: aos catorze anos, sem a sua mãe saber.
Eu ri quando ela me contou a história. Daisy completou dizendo, à beira da fogueira, que
faltou morrer do coração, quando chegou em casa e viu a “obra de arte” no braço da garota.
Eu ri ainda mais. Papai também.
Rayka era uma figura.
Eu curtia.
Ainda assim, porém, de vez em quando, bem sutilmente, eu notava algumas coisas meio
esquisitas. Rayka tinha, sei lá, um jeitinho diferente de olhar para mim. Podia ser só coisa da
minha cabeça, claro. Mas, se eu reparasse bem, ela não olhava para os meus primos e minhas
primas da mesma maneira como fazia comigo. Aliás, nenhuma garota que eu conhecia me
olhava assim. Talvez, só os... Garotos.
Eu não sabia bem como definir isso.
Era meio estranho, confesso, mas também não quebrei muito a minha cabeça, tentando
entender o que significava. Dei de ombros. Em nada afetou a nossa amizade. Ou, pelo menos, o
início de uma amizade. Continuei agindo normalmente. No fim das contas, havia uma grande
possibilidade de ser só impressão minha mesmo.
Na tarde do domingo, um dia antes de nós voltarmos para Miami, porém, algo aconteceu.
Eu estava escorada no balcão da cozinha da casa de praia, tomando um copo d’água, quando
Rayka apareceu. Sorridente e empolgada, como sempre, ela parou ao meu lado e falou:
— E aí, Vic! Tô organizando uma partida de vôlei com os seus primos. Bora?!
Oh sim, claro, Rayka era extrovertida ao ponto de ter feito amizade com os meus primos
logo no primeiro dia que chegou ali. Naquele domingo à tarde, então, era como se já se
conhecessem há anos. Rayka era assim, falava com todo mundo, tirava onda com todo mundo e
parecia ser... Uma boa amiga.
— Nossa... — soltei uma risadinha. — Eu vou, mas já aviso logo que sou péssima em
vôlei. Mesmo.
— Ah não... — suas sobrancelhas arquearam, divertida. — Não acredito que você está me
dizendo que não sabe jogar vôlei. Você dança Ballet, toca piano e saxofone, fala francês, e já foi
até escoteira, mas não sabe jogar vôlei? Como assim isso não estava incluso no programa de
princesa?
Eu ri de novo. Leve.
Rayka era engraçada.
— Você conseguiu decorar mesmo tudo isso sobre mim, em apenas três dias?
— Claro... Eu presto atenção em tudo o que você fala.
E, então, eu percebi, sutil, bem sutil... Percebi que aquele seu olharzinho, para mim,
estava ali de novo. Suspirei. Tudo bem, talvez não fosse só impressão minha. Mas, eu também
não conseguia descrevê-lo. A única coisa que eu tinha certeza, mesmo que não fizesse muito
sentido, era de que isso fazia eu me sentir especial.
Meio envergonhada com algo que eu também não sabia explicar, lhe dei um sorrisinho,
encaixando uma mecha de cabelo atrás da orelha, e respondi:
— É sério, eu sou péssima... Quando a bola vem na minha direção, em vez de rebater, eu
corro saindo de perto — brinquei. — Mas, tudo bem, eu posso ir. Vou passar uma vergonha
enorme, mas posso ir.
— Nah... Vai passar vergonha não. Qualquer coisa, eu posso te ensinar.
E piscou um dos olhos para mim.
Foi quando eu senti... Senti um negocinho esquisito no peito. Parecia algo borbulhando
em um entusiasmo estranho. Um entusiasmo exultante, que eu nem fazia ideia do motivo, mas,
ainda assim, bom. Muito bom. Uma sensação nova, que experimentei pela primeira vez naquele
feriado, depois que a conheci.
De repente, também reparei no seu sorriso.
Era charmoso.
Puxei o ar de leve, tentando estabilizar meu fôlego.
— Então, vamos — respondi, sorrindo para ela mais uma vez.
Feliz e empolgada, me apressei para acompanhá-la. Quase correndo, saímos feito duas
garotinhas indo para um parque de diversões. Sorrimos de novo, uma para a outra. Um sorriso
tão cheio de cumplicidade, amizade... Afeto.
E ela segurou a minha mão, puxando-me na direção dos fundos da casa, exatamente onde
ficava a areia da beira do mar.
Seu toque era bom.
Me dava a sensação de... Lar.
Porém...
Toda a magia pareceu se desfazer lentamente, quando, a um passo de cruzarmos as
portas corrediças de vidro, que davam para a praia bem à nossa frente, eu ouvi:
— Victoria?
Minha avó.
A sua voz rígida e firme, típica de quando queria me repreender por alguma coisa, fez o
meu corpo retesar. Travei, ainda que eu nem soubesse a razão por ela estar falando comigo
naquele tom.
Engolindo seco, soltei a mão da Rayka e me virei para trás. Foi quando eu a vi. Alguns
metros mais afastada, perto da escada que dava para o andar dos quartos, ela me observava, de
cima a baixo. Seu rosto era pura reprovação. E o seu olhar, cerceador de liberdade.
Era incrível a capacidade que a minha avó tinha de despertar a minha ansiedade, apenas
por me encarar daquele jeito.
Suspirei.
E, tentando disfarçar o nervosismo, falei para a Rayka:
— E-Eu... Vou ver o que ela quer.
— Tudo bem, Vic... — gentil, respondeu. — Te espero aqui.
Ainda ensaiei um pequeno sorrisinho para lhe dar, mas este não alcançou nem os meus
olhos.
Receosa, me afastei dela e me aproximei de Grace, que não parou de me encarar por um
só segundo, até me ver parada diante de si. Quanto mais perto eu chegava, mais eu tinha a
impressão de que eu só podia ter feito uma besteira muito grande, para que ela estivesse assim.
E eu não gostava, nem um pouco, quando a vovó me tratava desse jeito. Era como se seu
coração estivesse longe do meu. A sensação era péssima.
Puxei o ar de leve.
— O que foi, vovó?
Antes de me responder, ainda percebi o seu olhar meio esquisito em direção à Rayka, que
continuava me esperando na porta corrediça, perto do mar.
— Venha cá.
E me puxou para mais dentro de casa, muito embora, dali, eu ainda conseguisse enxergar
o rosto bonito da garota, os seus cabelos curtos que balançavam com o vento da praia e o
sorriso expectante para mim, como se aguardasse ansiosamente para que eu voltasse logo e me
aproximasse outra vez.
Vovó, no entanto, me encarou seriamente, sob suas orbes duras, e falou:
— Não quero que fique muito perto dessa menina.
Franzi o cenho, de súbito, confusa, sem entender.
— Por que, vovó? O que houve? A Rayka é tão legal! Ela...
Grace, contudo, suspirou, quase rolando os olhos, e me interrompeu, dizendo:
— Você já é uma mocinha, Victoria. Então, creio que não preciso mais medir certas
palavras na sua frente. Sei que já tem idade o suficiente para saber como o mundo funciona.
— Do que está falando?
Seu olhar se tornou ainda mais rígido.
— Eu tenho observado essa garota, durante os dias que estamos aqui. Eu percebo a forma
como ela olha para você, a maneira como fala com você, o jeito como se porta quando vocês
estão perto uma da outra. Victoria, essa garota é lésbica. Ela não é uma menina normal. Ela é
lésbica. E é uma péssima influência para você.
Lésbica?
Rayka era lésbica?
Eu não tinha parado para pensar sobre isso.
Aliás, essa palavra nunca passou pela minha cabeça, enquanto eu estive com ela ou com
qualquer outra pessoa.
Era uma palavra quase... Nova.
Ainda tentando assimilar aquilo, com a testa enrugada, perguntei:
— Péssima influência?
— Sim. Estar perto dela e ser amiga dela, pode passar uma falsa impressão de que você é
alguém como ela. Uma lésbica. E você não é lésbica, Victoria. Você é uma Peterson.
Foi tudo o que ela precisou dizer.
Confusa, ainda tentando digerir todas essas informações, senti quando me segurou pelos
ombros e me fez caminhar lentamente, rumo ao andar de cima. Enquanto isso, como se nada
tivesse acontecido ou como se não tivesse jogado um balde de água em cima de mim, ela, já
mudando de assunto, alegremente comentava, sobre o professor da Rhode Island School, uma
das melhores escolares de artes dos Estados Unidos, que me daria aulas particulares de
desenho e pintura.
Girei o rosto para a garota, sentindo um aperto no peito, como se algo me dissesse que
aquele momento não era um até logo, mas, sim, um adeus. Porém, tudo se tornou ainda pior,
quando, ao me ver se afastar dali com a minha avó, caminhando na direção contrária de onde
estava, notei, em câmera lenta, o seu olhar de entusiasmo se desmanchar e o seu sorriso
diminuir até desaparecer completamente.

...

Depois disso, entrei numa espécie de inércia mental e não me esforcei para pensar em
outra coisa ao seu respeito.
Porque...
A minha avó sempre estava certa, não estava?
Ela sempre sabia de tudo, assim como minha mãe me falou, antes de ir embora, que a
minha avó sempre me mostraria o melhor e o mais correto caminho a seguir. Por isso, eu deveria
ouvi-la.
Então, eu a ouvi.
E continuei ouvindo, durante todos esses anos.
ATROPELADA PELA SCANIA RAYKA

“Gostaria de nunca ter te conhecido, comecei a me arrepender de você”


Fire For You | Cannons

VICTORIA

Acordei com o meu próprio ronco, tossindo engasgada com a saliva, graças ao susto que
levei. E o susto comigo mesma e com a altura da roncada foi tão grande que eu, já na ponta da
cama, me desequilibrei, rolando no lençol e caindo de cara no chão.
Au!
Gemi.
Minha testa bateu certinha na cerâmica branca e gelada de porcelanato, ao lado dos meus
cadernos antigos de desenho que, com toda a fúria, os atirei por ali.
Aaaarrgh!
Arquejei, cheia de dor pelo corpo. A sensação era de que eu tinha sido atropelada por um
trator, sendo que nem exagerei na bebida ou fiz grandes coisas naquela festa idiota, além de ser
uma completa otária por uma sapatão. Talvez a vida tivesse passado a madrugada inteira me
batendo. Ou talvez fosse o peso das besteiras que eu vinha pensando ultimamente.
Tentei abrir os olhos, mas eles estavam completamente grudados de remelas, graças ao
tanto que chorei. Ai, que nojo. Com dificuldade, ainda no chão, estiquei meus braços, me
esgueirando pela cama somente o suficiente para ver o estado da minha cara no reflexo do
espelho.
Minha deusa do céu!
Quase gritei comigo mesma.
Eu parecia a Samara! Sim, a Samara do Chamado. Arrasada, acabada. Olhos inchados e
cheios de remelas grudentas, bolsas de olheiras de quem não via vitamina C há três séculos, testa
roxa da queda, cabelos desgrenhados e mastigados.
E, claro, como se não bastasse todo o cheiro de cocô da fossa em que eu me encontrava, eu
estava completamente maluca por uma mulher.
UMA MULHER.
Que diabos estava acontecendo comigo?!
Choraminguei comigo mesma só de me lembrar que a Rayka me beijou no estacionamento
e que, pior, eu mesma queria beijá-la de novo.
— Ai, não! Eu não quero gostar de mulher... Eu não quero! Me recuso! Aaaahh! —
lágrimas dramáticas começaram a escorrer, enquanto eu me largava de vez no chão do quarto,
que nem uma criança sem-noção, rolando na minha própria merda e encarando o teto.
Funguei.
Eu estava no fundo do poço.
Era isso.
O meu fim.
Falência declarada: eu estava mesmo no fundo do poço das mulheres completamente
femininas e heterossexuais (sim, heterossexuais, muito importante lembrar disso, eu ainda era
hétero, não deixei de ser), que se interessavam por garotas super esquisitas.
Aaaah!
E o pior, se a minha avó ao menos sonhasse com o que estava acontecendo, ela iria me
queimar com ferro em brasa. Sim, cara, e, depois de me queimar, me jogaria lá no inferno e me
deserdaria da família.
Ela nunca mais olharia na minha cara.
Uma decepção.
A vergonha da família Peterson.
Um fracasso total!
— Que ódio de mim! — berrei, batendo com os punhos no chão.
Foi no exato instante em que a porta do meu quarto se abriu.
E, quando isso acontecia, eu já podia imaginar quem era, sem ao menos olhar para a
pessoa. A única garota maluca da fraternidade que se sentia no direito de abrir a porta do meu
quarto, sem nem bater, era a Brittany.
— Nossa, amiga... — disse ela. — Quê que aconteceu com você?
Ainda estatelada no chão, virei o rosto para o lado, vendo-a em pé bem ali, com as mãos
na cintura e um vinco profundo na testa.
— Vem... Deixa eu te ajudar a se levantar — aproximou-se de mim, erguendo uma das
mãos. — Ouvi falar que a noite de ontem foi puxada, mas não sabia que tinha sido tanto assim.
Você está com uma cara péssima. Essas olheiras estão piores do que aquelas de quando você
passou a noite em claro, preparando as esculturas do último concurso.
Rolei as orbes para ela, erguendo uma das mãos para que parasse ali mesmo, antes de
chegar perto o bastante.
— Não precisa, pode deixar que eu me levanto daqui sozinha — retruquei, meio
desaforada. — E você, o que veio fazer aqui às...? — franzi o cenho, puxando o celular em cima
do móvel ao lado da cama. Certamente, devia ser umas sete da manhã, praticamente de
madrugada. Quando afirmei minha visão na tela, porém, quase dei um pulo. — Já são meio-dia e
meia?! Minha deusa do céu, eu dormi isso tudo?!
Assustada, me sentei rapidamente, mesmo com todas as dores, e, ainda no chão, escorei as
minhas costas na cama, coçando o cabelo esgadanhado.
Ela, por sua vez, sorrindo, se agachou, ficando na mesma altura do meu olhar.
— Pois é... Por isso que eu vim aqui. Queria saber se você ainda estava respirando. —
soltou uma risadinha. — Confesso que, quando a Rayka me disse que ia socorrer você e o Jeff na
estrada, eu fiquei mais tranquila. Sabia que, com ela, você estaria em boas mãos. Mas, mesmo
assim, amiga, nossa... — enrugou a testa para mim outra vez, balançando a cabeça de leve. —
Você está que nem uma mendiga. O que houve?
Cerrei os olhos em sua direção, pressionando a mandíbula.
— Quer parar de falar esse tipo de coisa que não ajuda em nada?!
Ela suspirou, sentando-se no chão comigo, de uma vez.
— Tá bem, tá bem, me desculpa... Não está mais aqui quem falou — respondeu ela. —
Mas, me diz. Como foi ontem? Deu tudo certo no socorro que a Rayka te deu? Conseguiram
chegar logo aqui na fraternidade?
Eu preferia nem me lembrar daquela catástrofe da natureza.
Balancei a cabeça de leve, desviando ligeiramente o olhar e tentando desconversar.
— Foi normal. Ela apareceu lá com um reboque para o Jeff, me botou dentro do carro e
me trouxe pra cá. Fim de história. Mas, e você? — encarei-a revertendo o jogo. — Como voltou
para cá? Achei muito estranho quando a Rayka me disse que você ia voltar com a Alyssa. Você
nunca nem falou com aquela menina.
Foi quando a garota à minha frente, de súbito, se derreteu por inteira. Um sorriso bobo,
que eu não via há muito tempo, estampou os seus lábios e pareceu aumentar de segundo a
segundo. Enruguei a testa, achando esquisitíssimo. Porém, tudo se tornou ainda mais confuso,
quando, toda empolgada, ela respondeu, cheia de dentes:
— A gente transou!
E deu gritinho de felicidade, como uma menina inexperiente que ela definitivamente não
era.
Meu queixo despencou.
Bateu no chão.
Eu juro.
— Vocês o quê?!
Nem pisquei os olhos, porque não conseguia.
— Unhum... É isso mesmo! — balançando a cabeça freneticamente, confirmou ela, super
empolgada. — A gente transou! E foi tãaaao bom! — encheu a boca para pronunciar aquele
“tão”. — Fazia séculos que eu não transava tão bem assim!
Senti minhas bochechas esquentarem e ficarem vermelhas de vergonha, sem que eu nem
soubesse o motivo.
Abismada, perguntei:
— Vo-Você tá falando de se-sexo? Sexo com uma garota? Tipo... — pigarreei a garganta,
ainda observando-a fixamente, sem nem piscar os olhos, e, então, inclinei o corpo de leve em sua
direção, sussurrando como se estivesse falando sobre algum crime. — Tipo briga de aranha?
— Briga de aranha! Xana com xana! — berrou, super entusiasmada e nem um pouco
envergonhada de dizer isso. — Uma delícia, meu amor, eu recomendo! Faz com a Rayka!
Não foi preciso mais que meio segundo.
De súbito, me engasguei com a minha própria saliva, pela segunda vez, naquela manhã.
Brittany gargalhou, deslizando para o meu lado e batendo com a mão nas minhas costas.
— Eu sei que você fica nervosa só de pensar nisso — brincou.
— Cala a boca — resmunguei, rolando os olhos, enquanto tentava recuperar o fôlego.
— Mas, sobre a parte de ter sido um sexo monumental, eu não estava brincando, amiga —
sorriu arteira, mordendo o lábio inferior. — A menina é um furacão na cama. Muito gostosa!
Torci o nariz, ainda achando tudo aquilo muito sem-noção.
— Como foi isso? Do nada? Eu nem vi você conversando com ela lá na festa.
— Precisa de algum ritual, é? — riu. — Depois que você e a Rayka desapareceram,
começamos a dançar juntas e rolou. Simples assim. Desde o primeiro beijo, eu não consegui
largar mais.
Soltei um “tsc” de leve.
— Você é uma safada, Brittany.
— Sou mesmo! — respondeu com orgulho, sorrindo. — E quanto mais sexo gostoso eu
faço, mais inspirada eu fico. Eu poderia passar horas aqui, contando detalhes da nossa transa a
você. Vai que te inspira também. — soltou uma risadinha.
Eca.
Enruguei a testa, fazendo uma careta.
— Não, valeu. Quero ouvir nada disso não. Todas as informações que você já me deu são
o bastante.
Riu de novo.
— Você é muito boba.
De repente, porém, eu me dei conta de algo. Foi como se uma luzinha subitamente se
acendesse bem em cima da minha cabeça, iluminando todos os meus pensamentos mais sórdidos
e ridículos. Meu corpo inteiro retesou em uma curiosidade muito, muito inoportuna, mas
impossível de segurá-la.
Ergui uma das sobrancelhas, meio sem jeito, e passei uma das mãos na nuca, numa
mistura de felicidade e tristeza. Confuso? Sim, demais. Nos últimos tempos, porém, não existia
uma parte de mim sequer que não fosse pura confusão. E, tudo por causa dela, daquela sapatão
miserável.
Suspirei.
Não queria perguntar, para não dar muita bandeira, mas (que inferno, que droga), eu
também não conseguia evitar. Por isso, futricando as minhas unhas, como se não estivesse nem
um pouco interessada na resposta, pigarreei a garganta de leve, e falei sem nem me dignar a olhar
para a Brittany:
— Então... Isso quer dizer que... — passei a língua entre os lábios, ainda mexendo nas
minhas unhas como se as minhas cutículas fossem as coisas mais importantes do mundo. —
Quer dizer que você desencanou da idiota da Rayka?
Mesmo com toda a minha tentativa de parecer absolutamente indiferente, a garota ao meu
lado gargalhou.
— Você tá querendo saber se o caminho tá livre, né?
Ca-Caminho livre...?
Meu coração batucou de ansiedade, no topo da garganta, apenas com essa menção.
Me empertiguei.
Argh, que menina mais insuportável.
— Para de falar besteira, Brittany!
— Aham, ta bom, eu vou parar... — respondeu ela, ainda com aquele sorrisinho arteiro,
para o meu lado, de quem parecia estar sacando tudo. — Mas, já que você perguntou, se isso te
acalmar de alguma forma, o caminho está totalmente livre para você e a Rayka. A única coisa
que estou pensando no momento é em transar com Alyssa de novo, e de novo, e de novo, porque,
meu Deus, que sexo bom da porra!
— Hum... Entendi... — repliquei, meio sem saber como reagir.
Por fora, eu não demonstrava nada mais do que um olhar blasé. Por dentro, eu estava
pulando, gritando, dando cambalhotas e saltos mortais. E eu me sentia tão, mas tão imbecil por
estar feliz com o fato de que, segundo a Brittany, a porcaria do caminho estava livre.
Incrivelmente imbecil.
Minha deusa do céu, que diabos estava acontecendo comigo?
— Pode ser feliz com a Rayka, amiga.
Ai, que ódio.
Revirei os olhos.
— Deixa de idiotice. Eu só perguntei, porque.. Porque... — porque eu tô ficando maluca
por aquela caminhoneira do demônio! Pensei, mas não disse. Pigarreei a garganta outra vez,
tentando dar de ombros. — Porque... Ah, você é minha amiga! E é claro que eu sempre vou
desejar coisas melhores a você do que a Rayka, né?
— Desejar coisas melhores a mim? — ergueu uma das sobrancelhas, com aquele
sorrisinho de quem não se convencia.
— Sim… — respondi com obviedade, encarando-a. — Quê que foi?
— Você não está desejando coisas melhores a mim, meu bem, você está desejando é dar
para ela. Isso sim. — riu.
Que saaaco.
— Olha só, não tá dando para conversar com você hoje! — irritada, me levantei
bruscamente do chão. Porém... — Au! — grunhi, ainda com as dores no corpo, da vida ter
passado a madrugada inteira me batendo.
Droga.
Eu continuava me sentindo atropelada por um caminhão.
A Scania Rayka.
— Nossa, você tá muito mal-humorada hoje, sério. Fora que tá arrasada, hein? Os cabelos,
o rosto. Não sei o que houve durante a noite com você, mas o negócio deve ter sido feio. Sabe
qual é o meu conselho? — levantou-se do chão também. — Vai ao shopping, gasta dinheiro,
compra umas roupinhas novas, marca um horário naquele salão maravilhoso que abriu agora no
Bal Harbour. Sério. Você vai melhorar na mesma hora. É tiro e queda.
Suspirei e, dando meia volta, me encarei no reflexo do espelho outra vez.
Mesmo que eu odiasse ter que admitir que estava acabada, eu realmente estava. Destruída,
acabada, completamente horrorosa. E precisava concordar com certas coisas que Brittany falava,
ainda que ela fosse maluca.
Os meus cabelos mastigados falavam por si só, enquanto as minhas olheiras gritavam.
Meu rosto inchado de tanto chorar na madrugada também não ajudava em nada. Fui totalmente
nocauteada pela vida.
Puxei o ar de novo, curvando os ombros, quase desanimada e nem um pouco satisfeita
com a minha cara.
Logo eu!
Victoria Peterson, a perfeição em pessoa, agora derrotada.
Tudo culpa daquela sapatão de quinta categoria!
Argh, que droga.
Pressionei a mandíbula, já movida pela força do ódio em querer reverter a minha situação.
Um olhar determinado cruzou as minhas orbes ainda pregadas de remela. E, então, decidida,
falei:
— Acho que você tem razão. Vou me dar a tarde de folga. Preciso de um tratamento
completo!
— É isso aí, amiga! — entusiasmada, Brittany bateu palminhas. — É assim que se fala!
Coloca pra fora a Victoria Peterson que está escondida debaixo dos cabelos esgadanhados e
desse roxo horrível na testa.
Ai, minha deusa, eu estava muito acabada.
— Vou ao shopping! — decretei.
✽ ✽ ✽

Não demorou mais de quinze minutos para que eu colocasse o meu Porsche no meio da
rua e seguisse direto para o Bal Harbour, um dos melhores shoppings de Miami. Só pus uma
blusa larga, uma calça de moletom, meias e um chinelo de enfiar. Prendi os cabelos num bolo de
coque e fui. Péssima. Um total de zero senso de moda.
Sério.
Por um segundo, eu até me vi no mesmo estilo esquisito da Rayka.
Mas...
Não.
Rayka não!
Definitivamente não.
Eu me recusava a preencher os meus pensamentos com aquela sapatona outra vez.
Miserável. Me recusava. Eu ainda me sentia um completo lixo, depois de ter perdido um tempo
precioso do meu sono de beleza, para ficar chorando, durante horas malditas, por causa dela e da
sua boca ridiculamente gostosa.
Tudo culpa dela!
Respirei fundo, apertando os dedos ao redor do volante, determinada, enquanto saía do
campus da universidade e seguia pelas ruas de Miami. Aproveitei para ligar o som e colocar uma
música no último volume. Uma música bem agitada e completamente diferente do meu estado de
espírito.
De alguma forma, eu precisava sair daquela bad ridícula. Se não fosse de um jeito, seria de
outro. E aquela música tinha que me ajudar, pelo menos, a não chegar com tanta cara de morta
no salão de beleza.
Baixei o teto do carro conversível e comecei a cantar alto, feito louca. Já dizia o velho
ditado: “quem canta seus males espanta”. Berrando e aproveitando as regalias de um motor
automático, eu pulava sobre o banco e me esquecia por alguns instantes de que já tinha um total
de quatro acidentes de trânsito na minha humilde bagagem.
Mentalizei as melhores e mais ridículas palavras motivacionais para mim mesma, quase
como numa daquelas sessões de positividade tóxica, enquanto, determinada, decidida e
absolutamente certa de que eu estava tomando as decisões mais corretas da minha vida, eu
gritava a música e sentia o vento bagunçando os meus cabelos no coque mais feio que eu já tinha
feito em toda a minha vida.
Era um novo dia!
Sim!
Claro que era.
Um novo dia, com novas oportunidades.
Novos pensamentos.
Nova cabeça.
Jamais me deixaria ser confundida outra vez.
Jamais!
Eu até já me sentia como uma nova mulher.
Sim!
Uma nova mulher completamente certa e segura da sua heterossexualidade, do quanto era
feminina, do tanto que estava decidida a continuar sendo perfeita e...
Quê que é aquilo?
Franzi o cenho, retesando o corpo de automático.
Bastou o carro parar no sinal de um cruzamento, para que eu travasse junto com ele, ao ter
aquela visão. Engoli seco. Eu só podia estar ficando muito louca mesmo, ou, então, aquela
caminhoneira de uma figa estava realmente cumprindo a sua missão na Terra, que era nada mais,
nada menos, do que atazanar a minha cabeça.
Que diabos...
A Rayka?
Do outro lado da avenida, bem ali, na calçada da lanchonete, enquanto limpava mesas e
cadeiras, de frente para a Esquina das Panquecas.
Meu coração acelerou, porque era assim que eu sempre ficava ultimamente quando a via.
Uma completa idiota. Pelo amor da deusa, eu era um caso perdido. Droga! Minhas batidas
cardíacas aceleraram na mesma velocidade que coloquei o carro para andar novamente, assim
que o sinal abriu.
Feito uma perturbada, sem tirar os olhos de lá, me aproximei gradativamente da
lanchonete, atravessando o cruzamento da avenida na exata faixa que ficava rente à Esquina das
Panquecas. Uma curiosidade filha da mãe para saber se eu realmente estava vendo a garota, ou se
tudo não passava de mais uma grande loucura da minha cabeça.
Eu precisava constatar se Rayka estava mesmo fazendo morada no meu juízo, se eu estava
vendo miragens, ou melhor, visagens. Eu precisava confirmar o tamanho da loucura na minha
cabeça. Se fosse apenas fruto da minha imaginação, eu mesma me internaria em uma clínica
psiquiátrica ainda naquele dia, porque isso seria, no mínimo, bem preocupante.
Porém...
Como se não bastasse o meu coração já acelerado apenas com a possibilidade de estar
ficando, de fato, muito mais doida do que eu achava que era possível, tudo se tornou ainda pior
quando eu vi... Aquela... Aquela vagabunda loira! Simplesmente apareceu ali, saindo de dentro
da lanchonete, e, descarada, se jogou nos braços da Rayka, fingindo que tinha acabado de torcer
o pé na calçada.
Cínica!
Aquela era a vadia da Stacy Hinkhouse?!
A desgraçada que sempre tentou tirar a presidência da fraternidade de mim?
Seus braços se pendurando no pescoço da Rayka me fizeram ferver.
Toda a minha pele esquentou com a sua ceninha de sem-vergonhice para a sapatão que,
ontem, tinha praticamente se declarado para mim. PARA MIM. Não para Stacy Hinkhouse, mas
para mim!
Vagabunda.
Minha mandíbula trincou, meus dedos se apertaram ainda mais ao redor do volante, meu
coração, dessa vez, acelerou de raiva e, sem que eu percebesse, o meu pé no pedal do acelerador
também.
Quando dei por mim, eu já estava em cima da calçada.
Ai, caramba!
No susto, toda atrapalhada, sem saber mais nem como era o meu nome ou a razão de eu ter
sido tão estúpida ao ponto de subir com o meu Porsche na Esquina das Panquecas, em vez de
apertar o freio, eu apertei com TUDO o acelerador.
BUUUUM!
Cadeiras e mesas voaram pelos ares, junto com os milhares de cacos de vidro da porta
corrediça que o carro, nada sutilmente, quebrou. E, ah, claro, os tijolos da parede ao lado
também. Como um choque de realidade, fazendo-me, de uma vez por todas, ter a noção de que o
fundo do poço para mim era real, o airbag se abriu praticamente chicoteando a minha cara.
Au.
Grunhi de dor com o impacto.
Aliás, de dor e de perda total da minha dignidade.
Uma hora dessas, ela já estava enterrada e sepultada no cemitério de Miami.
Ai, não.
Não, não, não.
Minha quinta batida de carro, não!
— Meu Deus... Victoria...? — com o tom de voz preocupado e surpreso, ouvi Rayka.
Pela maneira como ela falava, era como se não estivesse acreditando no que houve. Seja
bem-vinda ao clube, querida. Nem eu mesma acreditava que essa catástrofe tinha acontecido. A
onda de azar que estava me afogando, dia após dia, era muito clara e visível. Eu precisava de um
banho de sal grosso!
Se antes eu já estava me sentindo inteiramente arrasada, acabada e destruída, agora, então,
era só comprar um caixão, abrir, me colocar dentro e fechar. Voilà, perfeito. Embalada e
empacotada perfeitamente para descer de tobogã rumo ao quinto dos infernos.
Suspirei, me preparando para mais uma sessão de muito constrangimento na frente dela, e,
então, já morrendo de vergonha, desgrudei lentamente a cara do airbag e a fitei.
Aquela sapatão do meu ódio.
O motivo da minha batida.
A causa da minha total falta de juízo.
Maldita gostosa.
— Oi...
Lhe dei um sorriso muito, muito amarelo.
Eu nem sabia onde enfiar a porcaria da minha cara. A única coisa que eu tinha certeza
absoluta era de que o meu estado estava infinitas vezes pior do que quando acordei. Nem o coque
dava jeito nos cabelos arrepiados.
— O que foi isso...? — com os olhos bem arregalados para mim, ela perguntou sem nem
piscar. — Vo-Você tá bem? Consegue se mexer?
— A-Acho que sim... — ainda totalmente sem jeito, repliquei, tentando movimentar
braços e pernas, ali mesmo, dentro do carro tão destruído quanto a própria lanchonete.
Olhei para os lados, tomando real consciência da situação. E, para o meu completo
desespero, o cenário da entrada da Esquina das Panquecas era de destruição total. A impressão
que eu tinha era de que um míssil caiu ali. O meu carro, então, parecia uma bolinha de papel
amassada.
Engoli seco, embasbacada.
É, Victoria, dessa vez, você foi longe demais.
Droga.
Bufei comigo mesma.
A culpa era toooda da Rayka!
TODA!
Se ela não estivesse me deixando tão perturbada assim ultimamente, nada disso teria
acontecido! Nada disso mesmo! Eu ainda estaria com o meu Porsche intacto e não teria feito essa
entrada “triunfal” na Esquina das Panquecas. Que ódio!
— Vem... Me deixa te ajudar a sair daí — ridiculamente prestativa, como sempre, a
sapatão falou.
E eu juro, juro mesmo, que eu ainda quis dizer que eu não precisava de ajuda nenhuma.
Na verdade, a minha vontade real era de soltar os cachorros em cima dela e despejar todo o meu
desprazer por ela estar alugando um lote de mais de setecentos metros quadrados na minha
cabeça.
Porém...
Agindo de maneira muito mais rápida do que o meu próprio raciocínio, antes mesmo que
eu fosse capaz de pronunciar qualquer palavra, Rayka já estava abrindo a porta amassada do
carro e me puxando pela cintura. Firmemente me segurou, tirando-me dali com total habilidade.
Seu maldito corpo se colou ao meu no momento em que, num solavanco, eu enfim saí por
completo. Quando dei por mim, seu rosto já estava bem perto do meu e os seus olhos lindos,
horrorosos e preocupados, também. Minha respiração travou, e, confesso, por um segundo eu até
me esqueci de que ela era o maior motivo do meu atual estado de completo fracasso.
Boca bonita, olhar de quem enxergava apenas a mim, mesmo com todo o cenário de
guerra ao nosso redor, e aquele cheiro… Cheiro de perfume de sapatão safada que ainda me faria
morder a língua com um monte de coisas, se eu não tomasse muito cuidado.
— Tudo bem? — pertinho de mim, com o braço envolta da minha cintura e o corpo no
meu, ela perguntou.
Antes que eu pudesse balbuciar qualquer porcaria sem sentido, porém, ouvi:
— Que... Que porra é essa?! Você ficou maluca?!
Stacy Hinkhouse.
A pior vadia da face da Terra.
Trinquei a mandíbula em puro ranço, só de ouvir a sua voz nojenta e irritante, e, então,
desviando o meu olhar da Rayka para ela, a encarei.
Empinei o nariz, me afastando da garota que ainda mantinha seu braço na minha cintura, e
ergui o queixo, tentando agir como a Victoria Peterson inabalável de sempre, muito embora eu
soubesse que estava parecendo um galo de briga, depois da briga. Acabada, ferrada, roxa e toda
descabelada.
— Foi só um... — suspirei, ensaiando o meu esnobismo, como se a situação não fosse
nada. — Um pequeno erro de percurso, sabe?
— Erro de percurso? — enrugou a testa, indignada, ao cruzar os braços. — Você tá
bêbada, garota?! Já viu o estrago que fez aqui?!
— Calma, Stacy... — Rayka falou. — A gente vai dar um jeito nisso.
— Ah, mas é claro que nós vamos! — exclamou ela, com seu melhor sorriso de deboche.
— Você vai pagar muito caro por isso, Victoria!
— Meu amor, eu tenho dinheiro para pagar! Isso vai ser um trocado pra mim — dei de
ombros, fazendo pouco caso.
Por dentro, no entanto, eu me tremia inteirinha.
Minha deusa do céu, aquilo ia custar uma fortuna!
E o pior: depois de cinco acidentes, dezenas de consertos de carros e horas a fio de
sermões intermináveis, eu não fazia ideia se o meu pai ia me dar dinheiro.
Só vi quando James, o pai da Stacy, boquiaberto, apareceu ali. Com os olhos arregalados e
a expressão de pura aflição, tirou o chapéu rosa, estampado de panquecas sorridentes, e...
— O que... — ofegou. — O que vocês fizeram com a minha lanchonete?
Ele nem ao menos piscava, barbarizado.
— Foi a Victoria, papai! A culpa é toda dela!
Foi a Victoria, papai, a culpa é toda dela, blábláblá.
Argh!
Revirei os olhos, com ranço.
Menina chata do caramba!
Pressionei a mandíbula, já absolutamente irritada com tudo (tudo mesmo, incluindo aquela
maré de azar que não me deixava mais em paz), e, então, enchendo o peito, bradei como se
tivesse alguma certeza do que dizia:
— Meu pai vai pagar o conserto! É claro que vai!

✽ ✽ ✽

— Nananinanão — balançou a cabeça em negativo, me deixando na iminência de um


ataque cardíaco. — Pagar? — encarou-me com o seu melhor semblante de despreocupação. —
Eu não vou dar um centavo para isso, desta vez, Victoria.
Eu nunca, nunca me senti com tanta vergonha em toda a minha vida. Claro que eu não
poderia falar a sós com o meu querido pai, e passar por constrangimentos apenas na frente dele.
Não, claro que não. Tinha que vir aquela corja inteira, junto comigo, para dentro da sala do meu
pai, na reitoria da universidade.
James, Stacy, Rayka e eu.
Todos juntinhos, enquanto assistiam, de camarote, a minha ruína.
Soprei o ar pesado dos meus pulmões, enquanto fazia caras e bocas para o coroa à minha
frente, quase sem acreditar no absurdo que eu ouvia.
— Papai... — dei-lhe um sorrisinho bem amarelo, num misto de nervosismo com
desespero. — Como assim não vai pagar? Co-Como eu vou arrumar aquela... — porcaria de...
— Lanchonete? Aliás, como eu vou consertar o meu Porsche lindo e maravilhoso?!
Além de tudo, agora eu estava a pé, como um daqueles assalariados que não tinham
dinheiro nem para comprar um carro popular dos mais baratinhos.
Que humilhação!
— Você já se esqueceu das outras quatro vezes em que me fez torrar milhares de dólares
para encobrir as suas barbeiragens no trânsito? Não está se lembrando de quando tinha catorze
anos, estava aprendendo a dirigir, e bateu a minha Lamborghini? Ou se esqueceu de quando
pegou o meu carro escondido, outra vez, para fazer compras no shopping, e o bateu em um poste
de alta tensão? Hum?! Ou daquele outro dia em que causou um acidente com o carro do instrutor
da autoescola? Ou de quando...
Argh, que saaaco!
— Tá bom, tá bom, pai! — empertigada, o interrompi. Eu já estava cansada de passar
vergonha na frente de todo mundo. Especialmente, de Stacy Hinkhouse. — Eu me lembro
perfeitamente de tudo o que já aconteceu.
Me lembrava mais do que gostaria, na verdade.
— Ah, que bom! É ótimo que a sua memória esteja fresquinha, porque agora, princesinha
linda do papai, você vai ter que arcar com as consequências dos seus atos e se virar para dar um
jeito nisso.
Eu só podia estar dentro de um pesadelo eterno do qual eu não acordava nunca mais.
Que inferno!
Ainda pude ouvir a risadinha que Stacy fez um esforço para segurar.
Miserável.
Ela devia estar adorando ver eu me ferrar.
— Bom, eu só quero saber quem vai pagar pelo prejuízo na minha lanchonete, porque eu
não vou tirar um dólar do meu bolso — James, por sua vez, replicou, cruzando os braços. —
Victoria é a culpada.
Rolei os olhos, encarando-o já com verdadeiro cansaço daquela palhaçada.
— Será que o senhor não ouviu o que meu pai disse? — retruquei, não me esforçando
nenhum pouco para não parecer desaforada. — Eu não tenho um centavo! Se ele não pagar, eu
não sei o que pode ser feito! É isso! Sou uma ferrada na vida que depende do dinheiro do pai!
Pronto, falei!
Se eu já estava passando uma tremenda vergonha ali, chutar o pau da barraca, de uma
vez por todas, não faria a menor diferença.
Pedir ajuda à minha avó, então, estava totalmente fora de questão. Ela ia me matar.
Depois, ia me ressuscitar só para ter o prazer de me jogar em um oceano cheio de tubarões, para
que eu fosse devorada viva. E, por fim, me tiraria definitivamente da família, por não ser perfeita
o bastante ao ponto de não conseguir evitar um desastre como aquele.
— Quem tem que achar alguma solução, mocinha, é você, não eu — James devolveu,
seriamente. — O que eu não posso aceitar é que a minha lanchonete permaneça do jeito que está,
por tempo indeterminado.
Argh, eu merecia mesmo!
E eu não tinha a menor dúvida de que o estado da minha cara estava ainda mais deplorável
do que quando acordei. Sério. Só ladeira abaixo. Eu parecia uma louca. Na verdade, eu me sentia
como uma louca. Os cabelos arrepiados de maluca, eu já tinha, pelo menos.
Nem mesmo direito de ir a um salão de beleza, sem que nenhuma bomba caísse em cima
de mim, eu tinha!
Vida desgraçada!
— E o senhor quer que eu faça o quê?! — retruquei, sem a menor paciência. — Quer que
rode a bolsinha no meio da rua para pagar pelo prejuízo? É isso?!
Ouvi, porém, quando Rayka suspirou, dizendo:
— Eu posso pagar. Repasso uma parte do meu salário, para ajudar no pagamento das
despesas. Se for preciso, eu repasso até integralmente o valor.
Por um segundo, travei.
Eu não sabia se tinha escutado aquilo certo, ou se era mais uma das muitas insanidades da
minha cabeça, mas... Rayka queria mesmo dar uma parte do seu dinheiro, para livrar o meu
rabo daquilo?
Não que eu fosse aceitar a ideia, mas, de repente, um calorzinho idiota esquentou o meu
peito, junto com uma estúpida vontade de sorrir feito uma boba para ela.
James, no entanto, logo retrucou, acabando com o meu encantamento de dois milésimos:
— Pode ir tirando o seu cavalinho da chuva, Rayka. O que você recebe não dá nem para o
começo do que precisa ser feito ali.
A garota ainda balbuciou um palavrão baixinho.
Porém, tudo pareceu se tornar um pesadelo ainda maior e mais estressante, quando a vaca
da Stacy teve uma brilhante ideia e fez o favor de dizer:
— Já sei! Victoria pode trabalhar na Esquina das Panquecas e pagar pelo prejuízo com o
próprio trabalho, não é, pai? — sorriu de orelha a orelha, como se tivesse encontrado a solução
para todos os problemas da humanidade, quando, na verdade, eu sabia, sabia muito bem, que
aquela vagabunda só queria mesmo era ver eu me ferrar e limpar pratos na porqueira daquela
lanchonete.
Ainda abri e fechei a minha boca umas trezentas vezes, dentro de apenas cinco segundos,
atônita e já indignada, fazendo as minhas melhores e mais expressivas caretas de aversão para
Stacy e sua imbecil ideia.
Trabalhar?!
De onde já se viu Victoria Peterson trabalhando em uma lanchonete?
Meu pai, por sua vez, querendo colapsar, de vez por todas, com o meu sistema nervoso,
ainda replicou animado:
— Olha só, James! Acredito que temos uma solução. O que acha da ideia?
Solução?!
— É... Eu acho que posso considerar. Claro que não terá direito às gorjetas dos clientes.
Tudo deverá ser destinado à lanchonete.
O mundo inteiro só podia estar ficando maluco!
— Excelente! — papai, entusiasmado, logo se levantou da sua cadeira, com um sorriso
imenso. — Então, resolvemos o problema. Victoria vai pagar com trabalho!
— Pera aí, pera aí, pera aí! — ergui uma das mãos, tentando interromper aquela festinha
de sanatório. — Eu não vou trabalhar lá, não!
— E eu não vou pagar nem pelos reparos na lanchonete, nem pelo conserto do seu carro...
— retrucou ele. — Escolha, querida... Lanchonete ou andar a pé até que você se forme, consiga
um trabalho na sua área e compre um carro novo. Está nas suas mãos. — sorriu, sádico.
Que ódio.
Eu queria assassinar alguém.
Como se não bastasse, ainda ouvi quando Stacy falou:
— Ah, mas vai ser ótimo ter a Victoria trabalhando para mim! Digo, para a lanchonete —
soltou uma risadinha.
Maldita!

✽ ✽ ✽

A vadia da Stacy já estava se sentindo a minha chefe. Eu tinha certeza de que ela não via a
hora de me colocar para lavar pratos, esfregar o chão e servir os clientes como uma boa
empregada faria. Que inferno, viu? Que inferno. Eu não sabia como conseguiria aguentar a voz
enjoativa daquela menina, por sabe-se lá quanto tempo. Afinal, eu não fazia a menor ideia de
quantas décadas precisaria trabalhar para cobrir todo dinheiro do prejuízo, considerando a
provável miséria do salário e das gorjetas.
Fora o meu Porsche... Ainda tinha o meu lindo, amado e maravilhoso Porsche! Agora, tão
quebrado, amassado e destruído quanto a sua própria dona. Me dava vontade de chorar, só de me
lembrar. Eu não tinha noção de como conseguiria juntar dinheiro para consertá-lo. Papai, claro,
cortou até a possibilidade do seguro, como forma de me convencer, por livre e espontânea
pressão, a vestir uma roupa estampada de panquecas sorridentes e carregar bandejas por todos os
lados.
O prejuízo da lanchonete, certamente, levaria embora tudo o que eu ganhasse. E, com a
minha avó, eu sabia que não podia contar. Seria ainda pior, se ela descobrisse o que aconteceu.
Eu só esperava que, pelo bem do resto da sanidade mental que eu milagrosamente ainda tinha, o
meu pai não contasse nada a ela. Já bastava eu ter que lidar com panquecas todos os dias e, claro,
me acostumar a andar a pé para todos os lugares.
Uma droga.
Quem diria que Victoria Peterson, a grande Victoria Peterson, líder da fraternidade e
filha do reitor, alcançaria a parte mais profunda de uma fossa fedorenta e cheia de cocô?
Argh.
Depois do infeliz decreto, totalmente arbitrário do meu pai, de que eu iria trabalhar na
lanchonete, saí como um furacão da sua sala na reitoria. Não me dignei a olhar para a cara de
nenhum deles, tamanho ódio que eu sentia. Era melhor sair logo daquele lugar, antes que alguma
veia estourasse na minha cabeça.
Usufruindo do meu mais recente e maravilhoso benefício, que era andar a pé para qualquer
lugar que eu tivesse que ir, caminhei a passos firmes e pesados, na mesma intensidade da minha
irritação, pelo campus, indo em direção às zonas residenciais da universidade, onde ficava a
fraternidade.
Tudo culpa da Rayka!
Tudo culpa dela!
Tudo culpa dela e da sua boca horrorosa que me deixava perturbada e me fazia pensar
em um monte de besteiras ultimamente. Se não fosse aquela sapatão metida a gostosona, eu não
teria batido na Esquina das Panquecas sorridentes e esquisitas!
Ódio.
Muito ódio!
Eu não conseguia parar de resmungar e praguejar, enquanto andava.
Simplesmente não conseguia!
A vontade de reclamar era muito maior e mais forte do que eu.
Porém...
Do nada, eu disse do nada, o meu pé entortou, ao passar por cima de um buraco que eu
nem vi no meio da rua.
— Ai, porra! — exclamei, ao cair no chão, como uma miserável.
Droga, droga, droga.
Eu tinha falado palavrão?
Me assustei comigo mesma.
Ai, eu falei sim.
Que saco.
Às vezes, eu nem me reconhecia mais, tamanha maré de azar que me afogava.
A calça de moletom quase rasgou nos joelhos e as minhas mãos ralaram com o impacto no
asfalto.
Perfeito.
Absolutamente perfeito!
Se eu queria ser perfeita e ter uma vida perfeita, olha só, eu realmente estava conseguindo.
Será que existia algo mais perfeito do que ter fotos íntimas espalhadas por aí, se tornar uma
chacota na universidade, lidar com pensamentos confusos, ter ciúmes de uma garota, acordar de
ressaca depois tanto chorar, bater o carro em uma lanchonete, trabalhar como garçonete, cair no
asfalto, machucar as mãos e ainda estar COMPLETAMENTE MALUCA por uma mulher?
UMA MULHER!
Ai, minha deusa.
Rolei os olhos para mim mesma, puxando o ar, enquanto minhas pernas tentavam reagir e
os meus dedos se arrastavam pelo meio da rua.
Era como se eu estivesse me tornando o Rei Midas ao contrário: tudo o que chegava perto
virava lixo ou desmoronava.
Bufei.
Eu estava cansada.
Absolutamente cansada.
Balancei a cabeça de leve para mim mesma, erguendo o meu rosto arrasado e sentindo o
peso da minha vida sobre os meus ombros. Foi quando avistei, displicentemente, o outro lado da
rua. Era a bifurcação... A bifurcação que desembocava na sala de aula da disciplina de
Literatura.
Engoli seco.
Algo me cutucou, de repente.
E eu me lembrei.
Me lembrei de algo que talvez não merecesse tanto a minha atenção.
Maverick.
Ou melhor, a caixinha de correspondências.
Aquele idiota perseguidor e psicopata... Aquele idiota perseguidor, psicopata e divertido,
ridiculamente divertido, que já estava há uns três dias sem me responder, sem mandar nada, sem
ao menos fazer um sinal de fumaça. Maldito cara de pau. Piadista imbecil.
Um sorriso milagroso quis brincar nos meus lábios, por me lembrar das suas palavras nas
cartas. E, então, de maneira ainda mais bizarra, senti quando o meu peito acelerou em batidas
exultantes. Uma breve esperança. Uma empolgação cafona. Uma sensação de que eu tinha
voltado ao colegial e estava, pela primeira vez, flertando com alguém.
Droga.
Quanta estupidez.
Eu não sabia o que era pior: estar seriamente perturbada por uma menina ou ligeiramente
interessada por um stalker estranho que eu não fazia ideia de quem poderia ser.
Entretanto...
Ainda que, mentalmente, eu me esforçasse muito para sair dali e apenas seguir direto para
a fraternidade, o infeliz do Maverick já tinha se agarrado aos meus pensamentos de uma forma
que não me restava a menor dúvida de que eu só conseguiria me erguer dali se fosse para ir
direto para a sala de aula.
Será que o maluco finalmente tinha deixado alguma coisa para mim?
Eu não sabia exatamente o que isso significava para mim, em meio à imensa confusão
mental na qual eu me afogava há vários dias, semanas. Mas, talvez, só talvez, Maverick estivesse
mesmo funcionando como uma pequena válvula de escape para mim, uma tábua de salvação
onde eu poderia me segurar, para me esquecer, por pelo menos alguns minutos, de toda a
desordem que a Rayka me causava.
Assim, meio cega demais para o tamanho da minha imbecilidade, me levantei do asfalto,
ainda acabada do jeitinho como eu estava, e segui no rumo certo da sala de aula de Literatura.
Quase ansiosa em um nível ridículo, caminhei a passos largos e rápidos por ali, dobrando no lado
esquerdo da bifurcação.
Para a minha felicidade, quando abri a porta, o local estava vazio. Por alguma razão, que
eu não sabia qual, queria privacidade ao ler sua carta. Quero dizer, se é que aquele infeliz tinha
mesmo deixado alguma para mim, depois de três dias de sumiço.
Com o coração acelerado mais do que eu gostaria, abri a caixinha de correspondências e
fucei por ali uma quantidade absurda de cartas. Os miseráveis da turma estavam mesmo
empenhados no trabalho. Por um instante, achei que Maverick talvez tivesse até desistido de
conversar com a garota fútil e insuportável da turma. Era o que costumavam falar sobre mim,
afinal.
Mas...
Um sorriso absurdo, bobo e idiota apareceu nos meus lábios, quando eu vi.
Lá estava, escrito com aquela letra de fôrma que eu já conhecia:
“Para Victoria”
Sabe o frio na barriga?
Minha deusa, que frio na barriga mais ridículo.
Rapidamente, me sentei em uma das cadeiras. Abri a carta num misto de esperança e
ansiedade, para me desligar de tudo o que estava bagunçado dentro da minha cabeça, e...
Enquanto lia as suas palavras, eu só tinha duas certezas:
1 Eu era otária demais;
2 Aquele sorriso, que não saía por nada do meu rosto, era ainda mais imbecil do que eu
mesma.

“Querida Love...
Digo... Rsrsrs.
Querida Victoria,
Não que eu queira te transformar na próxima protagonista de You ou de The Fall, mas é
difícil não te ‘espionar’, durante as aulas, quando você consegue ser a garota mais bonita que
eu já vi em toda a minha vida. Sério. Como pode nascer só uma vez e vir ao mundo tão gata
assim? Rsrsrs. Eu sei, você provavelmente deve ter achado essa cantada péssima. Mas, o que eu
posso fazer se é a mais pura verdade? Cara, você dá de mil a zero em todas as outras garotas
que já cruzaram o meu caminho. E não, eu não estou tentando puxar o seu saco. Só estou
literalmente babando mesmo por você.
Será que assim fica bom?
Você disse que gosta de pessoas e declarações bem diretas e claras, não é?
Olha só, eu disse, com todas as letras, o que acho sobre você, sem precisar florear ou
deixar tudo muito cheio de firulas como Shakespeare faria. Gostou? Eu adorei. Pretendo fazer
isso muitas outras vezes rsrs.
Mas, de verdade, tentar enxergar o que existe nas entrelinhas, às vezes, pode ser legal. Às
vezes, você só precisa de um pouco de treino para começar a perceber o que há por trás. Veja
bem, nem sempre as coisas são como parecem. O que você acha sobre algo ou alguém, depois
de uma primeira e pequena vista superficial, pode ser totalmente o contrário do que realmente é.
Por exemplo, uma pessoa que você talvez considere desagradável, pode ser aquela que faria
qualquer coisa por você.
E, às vezes, quando você pensa que a sua dupla do trabalho é determinada pessoa, na
verdade, pode ser alguém totalmente diferente. Uma pessoa que você nem imaginaria.
Por isso, enxergar as entrelinhas é tão legal rsrsrs.
Enfim, é melhor eu dar uma pausa nos meus “discursos filosóficos”, ou eu corro o risco
de nunca mais parar de tagarelar e ainda fazer você ficar viajando por horas nas minhas
besteiras.
A questão é que eu sei que, além de linda, você também é uma garota muito, muito esperta
e inteligente. Tenho certeza absoluta de que vai conseguir se sair bem nos próximos testes,
principalmente se usar a minha caneta da sorte. Daqui pra frente, vai ser só ‘A’! A própria
especialista em Literatura Clássica!
Quanto à sua curiosidade em saber quem eu sou, eu entendo. No seu lugar, eu também
ficaria assim. Afinal, se fosse você dando em cima de mim, desse jeito, eu certamente nem
estaria aqui. Provavelmente, eu estaria sonhando rsrs.
Bom, uma das regras do trabalho maluco é que eu não conte a você quem eu sou. Pelo
menos, não por enquanto. Mas, não vejo mal algum em nos conhecermos melhor. Aposto que a
Daisy não vai nos castigar por causa disso. Ou talvez sim. Mas, vai, é só um segredinho nosso
rsrs. O que acha de contarmos três curiosidades sobre nós? Hã? Vou começar!
A primeira é que eu escrevo. Noooossa, que novidade para quem estuda Literatura, hein?
Rsrs. Acontece que... Ninguém sabe o que exatamente eu escrevo rs. Mas, calma, calma, calma.
Não adianta ir ao Google agora e pesquisar sobre fanfics escritas por Maverick, porque você
não vai encontrar, espertinha. Pelo menos, minhas histórias não. Eu uso um pseudônimo. Os
meus leitores não me conhecem nem por Maverick, nem pelo meu nome real. Também não
costumo comentar sobre isso com amigos próximos. Sei lá. Não ligo para muitas coisas na vida,
nem sinto vergonha de qualquer bobagem, mas os meus textos... Os meus textos são como um
espelho do que existe dentro da porcaria do meu coração. Quem lê, sabe exatamente o que
acontece comigo. Talvez, por causa disso, eu sinta um pouco de insegurança em relação a eles,
mesmo que eu tenha uma quantidade significativa de leitores. Pelo menos, eles não sabem quem
eu sou. Isso facilita bastante as coisas para mim rsrs.
Enfim, talvez seja algo para eu trabalhar junto com algum psicólogo rsrs.
A segunda curiosidade é...
Olha só, não vai rir de mim, hein?
Você vai ter que me prometer que isso não vai ser motivo para zoar comigo pelo resto da
vida. Vou até dar um tempo para você fazer aí a sua promessa.
Não vale roubar! Tem que prometer mesmo. Bora lá.
Valendo!
Tempooooo…
.
.
.
E aí, prometeu? Espero que sim, dona Victoria!
Vou confiar rs.
Bem, a segunda curiosidade é que uma vez eu bebi muito, muito mesmo. Bebi pra caralho.
E achei que fosse uma boa ideia tatuar um ‘smile’ bem na minha bunda. Eu sei, isso não é nem
um pouco excitante. Na verdade, eu posso, agora mesmo, estar acabando com todas as chances
que eu poderia ter com você. Maaasss... Eu jurei solenemente falar apenas a verdade, não é?
Então, a real é que eu tenho mesmo, literalmente, uma pequena carinha sorrindo na minha
bunda. Só percebi no outro dia, quando eu acordei com uma ressaca fodida.
Pelo menos, eu acredito que, depois dessa revelação, vai ficar mais fácil de você aguentar
qualquer coisa que vier rsrsrs. Em especial, a terceira curiosidade. Ou melhor, a terceira
revelação, que é...
Tchan-tchan-ran-ran!
Que rufem os tambores!
A terceira e última curiosidade, mas não menos importante, muito pelo contrário, a mais
importante (porque eu deixei o melhor para o final, claro), é que eu sou muito a fim de uma
certa garota de cabelos longos, castanho-escuros e lindos, coxas grossas, cintura fina e rosto de
princesa. Você sabe quem é ela, não sabe? É impossível não saber. Todo mundo da
Universidade de Miami conhece, porque ela chama atenção em todo lugar que vai.
E, bom, eu sei que não sou a única pessoa no mundo a fim dela. Mas, não faz mal eu me
iludir um pouquinho, né? Rs. Não sou de prometer muitas coisas, nem de fazer propaganda das
minhas habilidades, só que eu tenho a impressão de que ela teria muitos momentos felizes (e
gostosos) comigo.
Espero que essa mensagem chegue a ela de alguma forma rs.
Muitos beijos pra você,
Maverick
Re.P.S.: Adorei o seu cachorro imaginário! Rsrs. Se fosse para eu escolher um lugar...
Hum... Já sei! O beijo seria no pé. Eu tenho fetiches com pé, sabe...? Kkkk. Tô brincando, tô
brincando. Bom, falando sério, o beijo seria na minha boca. Mas, será que posso sonhar tão alto
assim?”
PRÊMIO NOBEL DE JEGUE DO ANO

“Qual o seu problema, amor? Bem, talvez eu esteja apaixonada,


não consigo parar de pensar nisso
Counting Cross | Accidentally In Love

VICTORIA

Desgraçado.
Filho da mãe.
Como ele tinha a capacidade de me fazer de trouxa só com aquelas palavrinhas medíocres
que encheram duas páginas e meia de uma carta idiota? Sério, como? Que direito aquele
salafrário achava que tinha de me fazer sorrir feito uma ordinária, desde ontem à tarde até agora
de manhã, no Centro de Convivência da universidade, considerando que ainda teve uma noite no
meio?
Uma. Noite. No. Meio!
Vê se pode?
Eu poderia muito bem ter dormido e voltado ao normal.
Mas, não.
Claro que não.
Não era dessa forma que o universo queria facilitar a minha vida.
Quando eu não estava perturbada por uma mulher (uma mulher!!!), eu estava perturbada
por um cara que eu nem fazia ideia de quem poderia ser.
Logo eu...
Victoria Peterson!
Exigente ao extremo e quase totalmente desprovida de amor no coração.
Rayka e Maverick só podiam ter se unido em um complô para jogar algum tipo de feitiço
em mim. Ou, então, o meu juízo só podia estar muito afetado mesmo nos últimos tempos. Algo,
no entanto, me dizia que a resposta correta era a segunda opção, não importava o quanto eu
tentasse me cegar para os fatos.
Eu merecia o Prêmio Nobel de Jegue do Ano por estar dividida entre duas pessoas tão
improváveis e completamente fora da minha realidade. Era como ficar em dúvida entre o
hipopótamo e a girafa. O cúmulo! E eu realmente me sentia como uma maluca, enquanto,
sentada em uma das mesas do Centro de Convivência, continuava encarando, desde o dia
anterior, aquela carta, como uma psicótica perturbada e sonhadora que nunca foi cantada por
alguém.
O problema era que...
“Não que eu queira te transformar na próxima protagonista de You ou de The Fall, mas é
difícil não te ‘espionar’, durante as aulas, quando você consegue ser a garota mais bonita que
eu já vi em toda a minha vida.”
“Cara, você dá de mil a zero em todas as outras garotas que já cruzaram o meu caminho.
E não, eu não estou tentando puxar o seu saco. Só estou literalmente babando mesmo por você.”
“Sou muito a fim de uma certa garota de cabelos longos, castanho-escuros e lindos, coxas
grossas, cintura fina e rosto de princesa. Você sabe quem é ela, não sabe?”
“Não sou de prometer muitas coisas, nem de fazer propaganda das minhas habilidades,
só que eu tenho a impressão de que ela teria muitos momentos felizes (e gostosos) comigo.”
“Falando sério, o beijo seria na minha boca. Mas, será que posso sonhar tão alto
assim?”
Que inferno!
Não que eu nunca tivesse sido cantada por alguém, porque, sim, eu já fui cantada por
centenas de caras, mas... Em nenhuma das vezes foi desse jeito. Quero dizer, tinha... Tinha
alguma coisa diferente. Sei lá. Nem eu mesma sabia dizer o que era. A única coisa de que eu
tinha certeza era de que, dessa vez, existia, sim, algo diferente.
O desgraçado sabia escrever tão bem essas lorotas. Não era para menos que cursava
Literatura. E só podia ser um escritor mesmo. Não que todo mundo que cursasse Literatura
necessariamente escrevesse, mas, aquele ali, parecia ser escritor nato. Ele usava as palavras
certas e escolhia as melhores para me transformar na garotinha iludida que eu nunca fui.
Maverick podia ser pobre, feio, estranho, esquisito, psicopata e maluco, mas era realmente
bom de papo, de palavras, de escritas, e de cantadas também. Isso era uma verdade incontestável.
Uma verdade sórdida, mas realmente incontestável.
Uma verdade que me deixava frustrada comigo mesma, por ter a certeza de que eu só
queria continuar com a nossa conversa, porque, de alguma forma, as suas cartas me faziam...
Bem.
— Você é tão burra, Victoria... — resmunguei comigo mesma, entredentes, enquanto
apertava o papel, como se estivesse esganando o pescoço do Maverick por despertar em mim
aquele interesse fajuto.
Foi quando ouvi, porém, uma voz repentinamente falar bem atrás de mim.
— Victoria?
Franzindo o cenho de leve, virei o rosto e me desconectei parcialmente dos meus
devaneios insanos.
E aí, eu vi.
Eu vi a mulher parada, me olhando. Óculos de grau, cabelos cacheados, pele preta, por
volta dos trinta e cinco anos, e aquele sorriso imensamente simpático no rosto. Era a psicóloga da
universidade, que conversou comigo no dia do pesadelo.
— Ah, o-oi...! — meio surpresa, ainda atarantada com os meus próprios pensamentos,
ergui as sobrancelhas, sorrindo de volta para ela.
— Oi, querida!
— Você é a... Giii... — apertei os olhos, tentando buscar na minha memória tão
conturbada. — Gina? Não. Acho que não. Gilda? Ah, já sei! — exclamei, empolgada. — Gena!
Sim! É Gena, né?
Ela soltou uma risadinha divertida para mim, ajustando os óculos no rosto.
— Giselle.
— Oh! Oh, sim! Me desculpe, Giselle... A minha cabeça anda tão... — perturbada. —
Cheia ultimamente — sorri um tanto sem graça.
— Não tem problema, querida. Vim comprar um café e te vi aqui. Não apareceu mais lá
na minha sala, depois daquele dia. Como estão as coisas? Tudo bem? Como você está se
sentindo?
Horrível?
Péssima?
Maluca?
Confusa?
— Ah, eu tô bem! — respondi simplesmente, fingindo naturalidade.
Por um instante, no entanto, percebi o meu tom saindo mais agudo do que o normal, quase
revelando a minha mentira.
Era a típica resposta que eu sempre dava para todos, mesmo que tudo ao meu redor
estivesse desmoronando. Eu já estava acostumada a fingir tantas coisas, afinal. Uma mais, ou
uma a menos, quase não fazia tanta diferença.
O sorriso da psicóloga, porém, vacilou um pouco, ao franzir o cenho leve.
— Tem certeza?
Não.
Ai, não!
Choraminguei em pensamento.
Eu não tenho certeza de mais nada na minha vida.
— Tenho sim! — sorri brilhantemente outra vez.
Minhas bochechas estavam a ponto de doer, tamanha força que eu fazia para manter o
sorriso falso intacto.
A mulher, por sua vez, suspirou.
No fundo, não era como se estivesse muito convencida do que eu dizia.
— Bem... Agora eu já estou com horário marcado com uma aluna, por isso preciso ir,
mas... Passa lá na minha sala depois, pra gente conversar, tá? Vai ser ótimo, Victoria. Eu tenho
certeza. — amigável, tocou de leve um dos meus ombros. — Quero saber melhor como você
está.
Puxei ligeiramente o ar.
Eu tinha um problema com psicólogos.
Quero dizer... Na verdade, eu tinha problemas com “me abrir”. Cara, eu era muito
fechada. Sempre fui. E me tornei pior ainda, nesse quesito, quando minha mãe foi embora.
Tentando ser perfeita e não perturbar ninguém com as minhas bobagens, eu fazia de tudo para
não ter que pedir nada a alguém, nem mesmo conselhos. Já bastava ser sustentada pelo meu pai e
depender do seu dinheiro para uma porção de coisas.
As Peterson sempre davam um jeito em tudo, afinal.
As Peterson eram superpoderosas.
Pelo menos, foi o que me ensinaram.
Soltei uma risadinha pequena e forçada, contudo.
— Ah, pode deixar! — respondi, mesmo sabendo que essa seria a última coisa que eu
faria. — Depois eu dou uma passadinha por lá, viu...?
— Perfeito, Victoria! Não deixe de fazer isso. Será um prazer te atender. Estarei te
esperando!
E, sorridente, segurando o seu cafezinho, ela acenou para mim com a outra mão, já se
afastando.
Suspirei.
Uma certa sensação de incômodo, comigo mesma, borbulhando no meu peito. Incômodo
por sempre ter tentado ser autossuficiente. Incômodo por não ser autossuficiente. E incômodo
por me sentir incomodada com isso.
Para mim, era inconcebível a ideia de contar sobre os meus problemas para alguém que eu
nunca tive o mínimo de contato. Aliás, para mim, era inconcebível que uma pessoa
desconhecida, um ser humano que não tinha nada a ver comigo e com a minha vida, pudesse e
tivesse real interesse em me ajudar, mesmo sendo psicólogo.
No fundo, bem no fundo, contudo, ainda que eu tentasse negar para mim mesma e fingir
que não precisava disso, eu sabia que a vida que eu levava era insustentável. A forma como eu
encarava as coisas, sempre tentando resolver tudo sozinha, guardando os problemas dentro de
mim e mentindo ao dizer que sempre estava tudo bem, era insubsistente, finita. Uma hora ou
outra, a corda ia arrebentar.
E ia arrebentar em cima de mim.
Eu só esperava que isso não acontecesse logo.
Balancei a cabeça de leve, quase desanimada, e, então, quando pensei em baixar o rosto de
novo, para me conectar outra vez com as minhas insanidades e escrever, de uma vez por todas,
uma resposta para a bendita carta...
Travei no ato.
Na verdade, foram calças jeans folgadas, blusa largada e um boné virado com a aba para
trás que me pararam.
Rayka.
A minha sentença de morte.
Caminhava por ali, arrancando os olhares de todos, principalmente das garotas que
mordiam o lábio inferior, passavam os dedos nos cabelos e empinavam o busto para ela, mesmo
que Rayka não parecesse se importar o bastante. Milagrosamente, não parecia se importar. Bem
milagrosamente mesmo. Isso ainda era novidade, considerando o seu histórico de quem não
podia ver uma mulher dando mole.
O andar meio marrento, típico de alguém que não tinha a menor pretensão em se parecer
com mais uma das bonecas padronizadas da fraternidade, a mochila preta de couro pendurada
sobre apenas um dos ombros, as mãos enfiadas nos bolsos da calça, e, para completar... O olhar
mais sério e, ao mesmo tempo, mais sexy do mundo inteiro.
Gata.
Um inferno de gata.
Droga.
Bufei comigo mesma.
Eu só podia estar precisando de um sério e intensivo choque de realidade, para parar, de
uma vez por todas, com essa babação ridícula e infundada pela Rayka. Pelo amor da deusa, ela
era uma garota! Uma garota, com peitos e boceta. Exatamente tudo o que eu também tinha.
Exatamente tudo o que eu não procurava em outra pessoa.
Que nojo.
Torci o nariz sem dó.
E, então, na mesma intensidade que sentia raiva dos meus próprios sentimentos, baixei o
rosto outra vez. Com força, segurei a carta do maluco do Maverick. Repentinamente
determinada, eu a fitei com a certeza absoluta do que eu queria.
Não, eu não queria a Rayka.
Claro que não.
O que eu queria era voltar ao normal!
Maverick era, sim, cara de pau, e eu não fazia ideia de qual garoto da turma ele era. Ainda
existia a chance de ser um pobre, feio e fracassado, mas... Maverick não era Rayka, Rayka não
era Maverick, e eu poderia ficar absolutamente tranquila porque sabia que não estava flertando
com uma mulher.
Por isso, peguei caderno e caneta de dentro da minha bolsa, e...
Tire, de uma vez por todas, a Rayka da minha cabeça, Maverick.
Obstinada, comecei a escrever uma resposta para ele, certa de que iria colocar a carta na
caixinha do correio, assim que entrasse na sala de aula.

RAYKA

Victoria e a Esquina das Panquecas, definitivamente, não combinavam.


Era óbvio que ela deixava o lugar lindo, muito mais lindo. Disso, eu não tinha a menor
dúvida. Era como um enfeite caro, maravilhoso, gostoso (gostosa pra caralho), no meio de ovos
e farinhas de trigo, patins cor de rosa e fardas estampadas de panquecas sorridentes. Mas, ainda
assim, não combinava. A mesma coisa de colocar chifre na cabeça de um cavalo. Não encaixava.
Juro que, durante a aula, eu ainda me perguntei, várias vezes, como aquilo seria, como
Victoria faria o papel de “funcionária” da Esquina das Panquecas, sendo que ela nunca lavou
sequer um prato de casa, para não “ressecar”, com o detergente, as suas mãozinhas de princesa.
Depois que a dona Daisy encerrou suas explicações sobre Charles Dickens e eu desci para a
lanchonete, porém, todas as minhas dúvidas foram respondidas.
Lá estava a garota, cheia de presunção, enquanto trocava suas peças de roupas da Gucci
pela adorável e digníssima farda cor de rosa da lanchonete. A blusa, então, com um enorme e
vistoso “posso ajudar?”, contrastando com a sua cara de poucos amigos, era o melhor. Muito
prestativa. Eu quis rir.
John Peterson ainda foi bonzinho o bastante para dar, pelo menos, um pagamento inicial, a
fim de organizar a bagunça, para que a lanchonete não tivesse que fechar enquanto os reparos
não fossem finalizados. Ainda assim, foi um dinheiro irrisório, frente à destruição causada pelo
Porsche da garota. Victoria não conseguiria se livrar dos serviços. A maior parte do valor do
prejuízo, ela teria de pagar com lágrimas e suor do seu trabalho.
Enquanto esperava eu terminar de me arrumar, numa das salas dos fundos da lanchonete,
que funcionava como despesa/vestiário/guarda-volumes (tudo ao mesmo tempo), e aguardava
pelas primeiras orientações que eu daria, questionou de um jeito nem um pouco simpático, ao
perceber a forma como um certo sorrisinho não saía do meu rosto:
— Quê que foi? — braços cruzados, olhar atravessado, cara enjoada e pose de quem não
estava com a menor paciência para atender clientes e carregar bandejas. — Por que tá me
olhando com essa cara e esse sorriso idiota? Nunca viu não, foi? Por acaso, virei uma palhaça?
Como ela era doce.
Um amor.
Soltei uma risadinha, enquanto colocava as minhas luvas.
— Nunca te vi aqui, tantã — especifiquei. — Aliás, nunca imaginei te ver com um chapéu
estampado de panquecas sorridentes. Ficou perfeito nesse seu rostinho amargo. Combinou muito.
Não resisti em não brincar.
Ela rolou os olhos.
— Tá querendo transformar a minha vida em um inferno de propósito, né?
— Ué, por quê? Vai dizer que a culpa foi minha de você ter entrado em “grande estilo”,
aqui lanchonete, ontem? — zoei.
Victoria, por sua vez, bufou, quase como se tivesse segurado uma resposta na ponta da
língua. E, então, apertou os olhos em minha direção, mudando o foco do assunto:
— Será que dá para você parar de se lamber e acelerar o passo? Quero saber que porcaria
vou fazer por aqui e já não aguento mais olhar para a sua cara.
— Por que a pressa, amor? — sorri. — Ficaremos juntinhas aqui, até às dezenove horas,
hoje. Não é maravilhoso?
— Argh — girou as orbes outra vez. — Por favor, nem me lembre disso.
Eu ri, balançando a cabeça de leve.
— Vem, vamos... — passando por ela, apontei com o queixo para fora. — Seu
treinamento começa agora. Vou te ensinar a atender os clientes.
— Como você adivinhou? Esse sempre foi o meu sonho! — sorriu sarcástica,
ironicamente empolgada, até que... — Uma delícia — com desgosto, soprou e, de ombros
curvados em puro desânimo, me ultrapassou, caminhando por entre os corredores, até atravessar
as portas vaivém da cozinha e alcançar o salão onde os clientes ficavam.
Por volta das catorze horas, exatamente o horário que o relógio marcava agora, o
movimento era tranquilo. As coisas começavam a esquentar mais lá para as dezesseis ou
dezessete horas, quando acabava o horário de aulas do período da tarde, na universidade, e os
alunos saíam famintos por panquecas. Ainda assim, já havia alguns clientes por ali. Inclusive, um
especificamente se aproximando do balcão de frios, naquele mesmo instante.
— Olha só — falei. — Tem um cliente ali. Sua hora de atender é agora. — e, de leve, a
empurrei por um dos ombros, pegando-a de surpresa pela forma meio desengonçada com a qual
os seus pés “patinaram” por ali.
Quase se desequilibrando, suas mãos foram parar no tampo do balcão. Eu pude sentir o
ódio exalar por cada poro do seu corpo, quando pressionou a mandíbula e virou o rosto para
mim, já de frente para o cliente e nem um pouco esforçada em esconder sua indignação.
— Espera aí — arqueou as sobrancelhas, me fitando num iminente desespero misturado
com irritação. — É desse jeito que você quer me ensinar?!
Tudo bem, eu sabia que estava parecendo um daqueles pais que iam ensinar a criança a
nadar e simplesmente jogavam-na dentro da piscina com apenas uma bóia e uma ínfima
esperança de que não iria se afogar.
Mas...
— Sim, é sim, pode começar — e, sorrindo para o cliente, completei. — Olá, boa tarde!
Nossa nova funcionária em treinamento vai atendê-lo. Ela é muito dedicada. Um amor de pessoa.
Nasceu para fazer esse tipo de trabalho.
Victoria, por sua vez, bufou.
Eu podia sentir a quentura do fogo que os seus olhos lançavam em minha direção.
Ainda assim, suspirou e, então, como se estivesse quase desfalecendo internamente, por
ter que engolir todo o seu veneno, virou-se para o homem e lhe ofereceu o sorriso mais forçado
da história da humanidade.
— Olá, querido… — a falsidade escorrendo por cada palavra. — O que você deseja?
— Um hambúrguer completo. Ah, e coloca também bastante presunto. — apontou para o
mostruário de frios. — Vai demorar quanto tempo para ficar pronto?
— Presunto...? — franziu o cenho, visivelmente perdida, ao baixar o rosto para o
mostruário, quase como se estivesse resolvendo uma expressão algébrica. Olhou pra lá e pra cá.
Foi e voltou, coçando a nuca, até que, simplesmente, arrematou. — Tá legal, olha, acho que o
presunto acabou hoje.
O homem, de automático, enrugou a testa.
— Tem uns dez tipos de presuntos diferentes aí.
— Hã... — travou por um segundo. — D-Dez? — sem nem piscar os olhos, com o rosto
vermelho como uma pimenta, sorriu verdadeiramente envergonhada.
Eu quis rir.
Juro.
Tudo bem, tudo bem, eu sabia que provavelmente devia ser pecado rir da desgraça alheia,
mas eu juro que a vontade era mais forte do que eu.
Ainda assim, fazendo um esforço para me segurar, logo intervi na situação.
— Presunto de peru ou suíno, senhor? — perguntei.
— Peru.
Abri a porta corrediça de vidro do mostruário e retirei a peça completa do presunto,
mostrando a ela.
— Presunto de peru, esta é a Victoria. Victoria, este é o presunto de peru. Agora, podem
se cumprimentar, por favor.
Ela rolou os olhos.
— Engraçadinha.
— Eu sei que você gosta das minhas brincadeiras — ri de leve pelo nariz.
— Nossa, eu amo — ironizou.
— Vem, vou te ensinar a fatiar o presunto — repliquei, já seguindo para a outra ponta do
balcão, onde ficava a máquina.
Victoria me acompanhou, mas, claro, não desistiu do seu sarcasmo por um só segundo.
— Calma aí — disse ela, quando paramos de frente para o negócio. — Você vai mesmo
me ensinar, ou vai esperar que eu faça primeiro, perca um pedaço do dedo e só então resolva me
explicar como faz?
Ri de novo.
— Pensando bem, acho que vou deixar, sim, você cortar o dedo primeiro — zoei.
— O seu humor me causa ânsia. É sério.
— Quem precisa de amor, quando se tem tanto ódio? — sorri. — Olha só, você vai fazer
assim… — encaixei a peça inteira de presunto no local adequado, liguei no botão e toquei a
máquina, demonstrando como ela deveria segurar. — Sua mão direita fica na alça e desliza pra
frente e pra trás. Está vendo? — continuei. — E, a menos que realmente queira um sanduíche de
presunto com dedo, não ponha a outra mão perto da lâmina em movimento. Sua vez. — saindo
de perto, ergui as mãos, apontando e deixando o caminho livre para ela.
A garota suspirou.
Apesar de sempre arredia e autossuficiente em tudo o que se propunha a fazer, eu vi
quando a insegurança perpassou o seu olhar, à medida que ela se aproximava da máquina.
Passou a língua entre os lábios, tão concentrada (e linda), e, então, posicionou as mãos da
mesma maneira como as minhas estavam há um minuto. A forma como ela começou a fatiar,
porém, estava errada. Victoria estava indo muito rápido. Isso poderia causar um acidente, se ela
não prestasse atenção.
— Calma, calma, assim não. Devagar.
Bufou, balançando a cabeça em negativo.
— É sério, essa situação toda... Só pode ser algum tipo de teste. Um experimento social no
qual fui inserida sem que alguém se dignasse em, ao menos, me avisar, só para ver até onde eu
sou capaz de aguentar. Deve ser coisa da Johns Hopkins, um estudo para saber até que ponto
líderes de fraternidade aguentam a pressão. — resmungou. — E, olha, eu tô quase cedendo.
Soltei uma risadinha de leve.
— Para de drama, garota — retruquei, sorrindo. — Isso não é o fim do mundo. — e me
aproximei dela, ficando às suas costas. Quando coloquei minha mão direita sobre a sua, no
entanto, percebi o seu corpo se enrijecer de leve. Sua coluna, já tão ereta, ficou ainda mais. —
Faz assim… — tentei ditar o movimento, com a mão por cima da sua, demonstrando a ela o
ritmo certo para que não houvesse acidentes. De início, seu braço parecia mais tenso que o
normal. Aos poucos, porém, à medida que eu movimentava, a percebi amolecer de maneira
gradativa. — Isso… Assim… Desse jeito. Bem suave.
Ainda vi o momento em que ela tremulou de leve, ao me escutar falar pertinho do seu
ouvido. De repente, girou suavemente o rosto para trás, mirando em mim. Suas orbes se
encontrando com as minhas, numa proximidade muito rara.
A última vez foi no estacionamento.
E, depois, no carro.
A um passo de beijá-la.
Era um gatilho me lembrar disso.
Puxei ligeiramente o ar, tentando segurar alguma coisa que nascia no meu peito e queria
subir pela minha garganta. Desejo. Era o que a Victoria me provocava só por existir. Isso e mais
um pouco.
Olhos escuros que me encaravam sob cílios longos, arrebitados e bonitos.
Pele com cheiro de baunilha e morango.
Sorri, meio imbecil demais.
— Ótima aluna.
Foi tudo o que a minha boca conseguiu pronunciar, no momento.
E, então, como se não bastasse, seus lábios cheios e bem desenhados se curvaram em um
milagroso, pequeno e instigante sorriso. Milagroso mesmo. Por um momento, achei que fosse
coisa da minha imaginação. Poucas foram as vezes, durante os últimos sete anos, em que
Victoria sorriu de verdade para mim. No máximo, sorrisos irônicos. Dificilmente verdadeiros.
Mas, eu vi. Eu vi claramente os seus dentes perfeitos e retinhos, mesmo que os dois de
cima e da frente parecessem ligeiramente maiores do que os outros. Sorrisinho de coelho. Era um
charme. Resultado dos anos com aparelho ortodôntico, durante a pré-adolescência.
Linda.
Linda demais.
E eu seria capaz de passar cinquenta milhões de séculos só olhando para ela, desse jeito,
imaginando um universo paralelo onde eu poderia ter aquele mesmo sorriso todos os dias só pra
mim.
Porém...
— RAN-RAN — um pigarro em alto e bom som soou por ali, preenchendo todo o espaço
entre nós.
Foi quando Victoria acordou.
Repentinamente, acordou.
Piscou os olhos repetidas vezes e me empurrou.
Me empurrou centímetros de distância para longe dela, como se, há menos de meio
minuto, nós não estivéssemos sorrindo feito imbecis uma para a outra.
Meio atrapalhada, perdida nos meus próprios pensamentos e nas inúmeras possibilidades
completamente irracionais que surgiram na minha cabeça, olhei para quem tinha chegado ali.
Stacy.
Confesso que eu praticamente não prestei atenção nela, nem em qualquer outra coisa que
pudesse estar acontecendo ao nosso redor. Mesmo que eu estivesse de corpo presente na
situação, meu juízo continuava inteiramente concentrado na Victoria, no seu sorriso de
coelhinha, no seu cheiro de chiclete que me fazia pensar em diferentes formas de colocá-la na
minha boca, e, sobretudo, na forma como os seus olhos grudaram nos meus.
— Será que eu estou atrapalhando o casalzinho aí? — cruzou os braços.
— Ca-Casal? — Victoria gaguejou.
— Sim, vocês estavam quase se beijando! Saibam que é terminantemente proibido
qualquer namorico entre funcionários, dentro das dependências da minha lanchonete. Digo, da
lanchonete do papai.
Ainda viajando por outro mundo, meio aérea, consegui perceber, pelo menos, quando os
olhos da Victoria vacilaram ligeiramente. Desconcertou-se, por alguns segundos, com as
acusações da Stacy, até que...
— Para de falar bobagem. O seu cérebro deve estar contaminado com a quantidade de
tintura que você passa para platinar o cabelo. Aliás, está péssimo, querida. Se quiser, te indico
uns produtinhos ótimos para hidratação.
Stacy bufou.
— Se eu fosse você, tomaria muito cuidado com a maneira como fala com a sua chefe.
— Chefe? — Victoria gargalhou.
Hinkhouse trincou a mandíbula, ainda de braços cruzados.
— Olha só, você tem muito chão para esfregar, sabia?
— Chão? — a outra ergueu uma das sobrancelhas.
— Sim — respondeu e virou brevemente o rosto para mim. — Pode continuar aí, linda,
preparando o sanduíche. Vou levar Victoria a um trabalho mais apropriado para ela.
Estalou os dedos, autoritária, e, então, empurrou Victoria pelas costas, fazendo-a caminhar
para fora dali. Ainda vi o olhar de ódio que a garota deu. Mas, eu sabia que ela sabia que, depois
de ter se colocado nessa posição, justamente por causa do acidente, não existia muito mais o que
fazer, a não ser trabalhar pra caramba, para que logo pudesse cobrir o prejuízo e se livrar da
lanchonete. E, claro, algo me dizia que da Stacy também.
Por um instante, observei-as se distanciar, até que desaparecessem dali.
Victoria tinha acordado.
Mas, eu não.
Eu ainda estava dormindo.
Ou melhor, sonhando feito uma idiota, enquanto a imagem do seu rosto tão perto do meu
se repetia por infinitas vezes na minha cabeça.
O sorriso, os dentinhos, o olhar tão bonito.
Desgraçada gostosa.
Inquieta para ter mais um pouco dela, preparei rapidamente o sanduíche do cara, o
entreguei e fui direto para a sala dos fundos, onde eu costumava deixar a minha mochila. Dessa
vez, eu guardei algo importante nela. Algo que eu prometi a mim mesma que só leria depois que
chegasse ao meu quarto da fraternidade, porque era mais seguro.
Porém...
Eu não seria capaz de esperar até às oito da noite, sendo que o relógio ainda marcava três
da tarde. Pelo menos, não depois do gatilho que rosto da Victoria tão perto do meu me causou.
Sim, eu sabia que a minha situação com aquela menina estava cada vez pior.
Cada vez mais precária.
Porém, era inevitável.
Tão inevitável quanto o fato de que eu queria continuar respondendo-a, mesmo sabendo
que a minha morte seria certa, quando ela descobrisse.
Eu já poderia encomendar o meu caixão.
Droga.
Respirei fundo.
Ainda olhei para todos os lados, especialmente para a porta da salinha, me certificando de
que eu estava completamente sozinha, e, assim, abri ligeiro a minha mochila, tirando a carta de
lá.
A resposta à última carta que mandei a ela.
Coração acelerado em pura curiosidade e ansiedade.
“Para Maverick”.
Lá estava, com a letra de artista tão bem desenhada.
Me sentei no chão, escondida atrás de uma mesa que tinha ali, segurando tão firmemente a
carta, como se dependesse disso para continuar a porra da minha vida, e comecei a ler.

“E aí, Don Juan de Meia Tigela...


Pensei que tinha desistido de me passar o seu papinho ordinário, considerando o quanto
demorou para responder. Mas, confesso, ainda bem que não, apesar de você ser muito esquisito,
cara de pau e absolutamente desinteressante. Suas cartas são ótimas para me fazer rir de algum
imbecil. Obrigada por ser um alívio cômico nos meus dias, querido.
Olha só, pelo menos, as coisas estão melhorando para o seu lado. No espaço de tempo de
uma carta para outra, você conseguiu ocupar um lugar na interseção entre serial killer de
mulheres e Don Juan. Está quase transacionando. Isso que eu chamo de evolução. Continue
assim e, quem sabe, logo você consegue ocupar um lugar ainda melhor na minha vida. Não
disse qual rs.
Mesmo assim, espertinho, vou repetir o que disse na primeira carta. Se o seu papinho for
algum tipo de brincadeira com a minha cara, eu juro, juro que acabo com a sua existência, sem
dó nem piedade, quando souber quem você é. Eu sou perigosa, querido. Tome muito cuidado
comigo. Eu fiz kickboxing.
Dito isto e dado os devidos avisos, agora posso prosseguir com a carta, como se nada
tivesse acontecido, e, claro, zoar com a sua cara o quanto eu quiser. Sim, você não está
autorizado a brincar comigo, mas eu posso contigo. Isso aqui não é uma democracia. É uma
monarquia, onde eu sou a princesa e posso rir o quanto eu quiser do garoto metido a
engraçadinho.
E, não.
Não, não, não, não.
Como assim você tem um ‘smile’ tatuado na bunda?
Kkkkkkkkkk.
Cara, eu não consigo imaginar você com um ‘smile’ tatuado na bunda.
Digo…
Posso ver?
Kkkkkk.
Estou brincando!
Não fique com expectativas de que quero ver a sua bunda feia rs.
Quanto aos textos que você escreve, não me admira, considerando o quanto você
consegue ser ludibriador nas cartas. Usa bem as palavras, como um estelionatário de corações.
Pelo menos, sorte eu tenho, né? Estou fazendo um trabalho de Literatura, para criar uma
história de amor, literalmente com um escritor. Até que enfim o universo decidiu colaborar um
pouco com a minha vida, porque, sério, a maré de azar ultimamente está grande.
Sobre a ideia das três curiosidades, eu gostei.
Está sendo maravilhoso para me deixar ainda mais curiosa sobre você.
Que ódio.
Vou te matar de qualquer jeito, quando te conhecer rs.
Juro que pensei bastante sobre o que eu ia dizer ao meu respeito. Por incrível que pareça,
às vezes tenho um pouco de dificuldade de falar sobre mim mesma, para além do que todo
mundo da universidade já conhece. Seria muito fácil se eu dissesse: ‘ah, sou filha do reitor e
líder da Fraternidade das Minervas’. Esse tipo de informação já é de domínio público.
Então, sinta-se muito honrado por saber do que eu vou dizer aqui.
Não é todo mundo que tem esse privilégio, meu anjo.
A minha primeira ‘grande revelação’ é que, enquanto você escreve histórias, eu desenho
quadrinhos... Ou, pelo menos, desenhava. Eu tenho um romance inteiro em forma de
quadrinhos, que eu mesma fiz durante a adolescência. E não, não me peça para ver, quando nos
conhecermos pessoalmente, porque eu nunca, nunca vou mostrar isso a alguém. Provavelmente
é a coisa mais ridícula de toda a minha vida. Aliás, nem sei porque estou contando isso a você.
Próximo ponto!
Já ganhei uma competição de quem conseguia comer mais fatias de pizza. Sim, acredite se
quiser. Escondida da minha avó, claro. Se ela soubesse disso, me mataria e me deserdaria da
família, porque as Peterson são ‘perfeitas’ demais para comer que nem neandertais em
competições de pizza. Foi na minha pré-adolescência, em um dos meus acampamentos do grupo
de escoteiras. Sei que não pareço, nem um pouco, o tipo de pessoa que faria isso, mas sou
competitiva obviamente.
Fiquei bem orgulhosa de mim mesma e também um pouco enjoada. Apesar do trofeuzinho
que eu recebi e que está, até hoje, enfeitando uma das prateleiras do meu quarto, nunca mais
farei isso na minha vida. Foi uma decisão terminantemente tomada, depois de eu ter passado o
dia seguinte inteirinho vomitando na privada do meu banheiro. E não, eu não vou entrar em
mais detalhes sobre isso, porque, dessa parte em diante, é tudo muito nojento.
Bom, sobre a terceira curiosidade...
Não, eu não deixei o melhor para o final. Não fique se achando.
Mas...
Talvez, só TALVEZ (continue sem criar muitas esperanças), eu esteja começando a ficar
interessada por um cara desinteressante. Irônico, não? Eu também acho. Ele vem me mandando
umas cartas ridículas e me passando uma conversinha meio miserável. Aposto que você não o
conhece.
Aliás, não sei se você está a fim de saber disso, mas, depois que eu passei o recado para a
tal garota azarada de quem você gosta, digamos que ela ficou bastante curiosa para saber como
seriam os tais momentos felizes (e gostosos). Você disse que não é de fazer propaganda das suas
habilidades, mas as palavras ‘felizes’ e ‘gostosos’ me pareceram um tanto persuasivas. Será que
você poderia me dar algum spoiler? Eu prometo repassar todas as informações a ela.
Um beijo absolutamente hipotético no cantinho da sua boca,
Victoria”

Um beijo absolutamente hipotético no cantinho da sua boca...


Cara...
Soprei todo o ar dos meus pulmões, apoiando os cotovelos nos joelhos e esfregando as
mãos no rosto. Uma mistura de tantas sensações dentro de mim.
Sabe quando você tem a certeza absoluta de que deve obrigatoriamente parar com algo,
porque, se continuar, a merda vai ser grande, mas simplesmente não consegue? Não consegue
porque o proibido é mais gostoso?
Era exatamente assim que eu me sentia.
Victoria ainda era a garota que me evitava.
Ainda era aquela que me deu um tapa na cara quando eu a beijei, há dois dias.
Ainda era a mesma que me disse no carro, com todas as letras, que eu a assustava.
Mas, era também aquela menina das cartas.
Era aquela que confessou estar interessada por Maverick, apenas pelo que Maverick tinha
dentro de si e colocava para fora através de palavras, mesmo que ela nem tivesse certeza de
como era a cara dele, se era bonito ou feio, rico ou pobre.
Homem ou mulher.
Apenas Maverick e as suas palavras.
E, ainda que isso parecesse fora demais da realidade, eu só queria que ela, em algum
momento, fosse capaz de ser comigo do mesmo jeito que era com Maverick.
QUE INFERNO PRA TER CÃO

“Nós nunca vamos sobreviver, a menos que sejamos um pouco loucos”


Crazy | Seal

VICTORIA

“Querida garota que está me matando lentamente a cada palavra escrita,


Ora ora, quem é a criminosa agora?
Estou perdendo a sanidade mental a cada carta que você me manda, e a culpa é
inteiramente sua, senhorita Peterson. Isso é crime de tortura. Uma tortura tão gostosa quanto a
própria torturadora rs.
Leio e releio as suas cartas milhares de vezes, durante o dia, e até já entrei no banheiro
com algumas delas. Ou seja, você já me acompanhou enquanto eu estive fazendo o número dois.
Isso, minha cara, é intimidade demais. Demais! Não é todo mundo que entra no banheiro
comigo, enquanto eu estou fazendo o número dois.
Quase coisa de casal, sabe? Rsrs.
Se você já está me acompanhando ao banheiro, com uma semana de troca de cartas, fico
pensando a que ponto nós chegaremos com meses de relação.
Victoria, Victoria, Victoria... O que você está fazendo comigo?
Bom, o que quer que você esteja fazendo, pelo amor de Deus, não pare.
Aliás...
O que eu preciso fazer para que acredite na sinceridade das minhas palavras? Tudo o que
eu digo aqui é a mais pura verdade, e, óbvio, tudo fica entre nós. Confie em mim. Sinta-se
completamente à vontade para falar comigo sobre o que quiser e como quiser. Eu entendo sobre
sentimentos, pensamentos, desejos e necessidades de mulheres muito mais do que você possa
imaginar. Essas cartas são um mundinho só nosso, Victoria.
E, tem mais, se, por um acaso, existir qualquer mentira da minha parte, eu te dou o direito
de realmente me matar, quando souber quem sou eu. Isso não vai acontecer, claro, porque eu
jurei solenemente falar apenas a verdade a você. Mas, saiba que, como princesa de Miami e
futura rainha da minha vida, você tem o poder de fazer comigo o que bem entender.
Especialmente... Coisas prazerosas.
Lembre-se disso, Victoria.
E lembre-se com carinho rsrs.
Inclusive, confesse, Victoria, está mesmo pensando na minha bunda?
Isso é bem excitante.
Até que enfim eu encontrei a vantagem de ter feito essa tatuagem no meio de uma
bebedeira rs.
E digo mais: está autorizada a vê-la sempre que quiser.
Posso mostrá-la hoje mesmo a você rs.
Sobre as suas curiosidades, é incrível o quanto você consegue parecer ainda mais
maravilhosa pra mim. Eu adoraria ver os seus quadrinhos. Adoraria mesmo. Sei que a criatura
deve ser tão linda quanto a própria criadora. Não, não precisa ter vergonha, claro que não...
Disse a pessoa que esconde seus textos kkk. Mas, sério, eu adoraria mesmo ver os seus
quadrinhos. Seria um enorme prazer admirar a arte da futura artista plástica mais famosa desse
país.
E, como assim, você já ganhou um prêmio de quem consegue comer mais fatias de pizza?
Não tenho dúvidas de que tudo foi parar nas suas coxas e na sua bunda, para ser tão gostosa
desse jeito rsrs. Sinto lhe informar, mas pode esquecer essa ideia de que nunca mais vai
participar de outra competição assim. Pode esquecer mesmo, dona Victoria. Ainda faremos uma
competição só nossa. A partir de agora, está me devendo isso. E eu costumo cobrar quem me
deve rs.
Bom... Sobre a última curiosidade...
Ou melhor, a última revelação...
Que cara desinteressante mais sortudo do caralho!
Aliás, depois que eu soube que a tal garota está a fim de saber melhor sobre as minhas
habilidades, alguns paramédicos apareceram aqui, mais cedo, para me reanimar. Morri, mas
passo bem.
Vou parecer ainda mais ‘psico’, se eu disser que essa informação me excitou? Rs.
Passei horas pensando no que responder a você sobre isso.
A cada vez que eu pensava e imaginava, na prática, o que eu poderia fazer, eu me
excitava ainda mais. Não, eu não sou uma pessoa maníaca. EU JURO PRA VOCÊ, VICTORIA.
Não saia correndo agora, para nunca mais me responder. Sério. Não quero te assustar, nem
parecer alguém que nunca transou na vida.
Mas...
Imaginar intimamente a garota dos meus sonhos, foi demais para mim e para o controle
dos meus hormônios. Se é que me entende.
E você pediu um spoiler, não pediu?
Agora, vai ter que aguentar rsrs.
Bem, o que posso dizer?
Soaria ousado demais, se eu dissesse que começaria te beijando devagarzinho, tocando os
seus lábios, deslizando a minha língua na sua, chupando a sua também e, depois, sussurrando
no seu ouvido o quanto você é gostosa?
Soaria descarado demais, se eu dissesse que viajaria com as minhas mãos, por cima dos
vestidinhos fininhos de verão, que você costuma usar, até estimular os seus mamilos e deixá-los
durinhos e prontos para colocá-los na minha boca?
Soaria indecente demais, se eu falasse que, depois de chupar os seus peitos, fazendo você
se sentir a garota mais desejada, gata e gostosa do mundo (porque é isso o que você realmente
é), eu subiria a sua roupa e enfiaria a minha mão dentro da sua calcinha, só pra te deixar ainda
mais molhada do que, provavelmente, você já deveria estar?
Enfim... Melhor eu parar.
Vou deixar que descubra todo o restante, quando estiver comigo.
Enquanto isso, continuarei sonhando por aqui.
Um beijo desse, que acabei de descrever, na sua boca,
Maverick”

Que inferno pra ter cão.


Maverick era o próprio demônio.
Sim, era sim. Eu não tinha a menor dúvida disso. O cara estava sendo usado para me
deixar fora de si. Era estranho. Sim, era estranho demais. Mas... Em todas as vinte milhões de
vezes que eu li e reli aquela carta, não teve uma única vez em que eu não me senti
completamente... Molhada.
Tá legal, tá legal, eu sabia que tinha pedido detalhes a ele, mas...
Ah, que droga!
Eu estava molhada, inclusive, agora. No meio da rua, início de noite, enquanto voltava a
pé, da Esquina das Panquecas, direto para a casa do meu pai, e continuava com a porcaria
daquele papel nas mãos, sem conseguir largá-lo. Que decadência, minha deusa...! Molhada no
meio da rua. No. Meio. Da. Rua. Até que ponto você chegou, Vitoria? Bufei, balançando a
cabeça.
Será que era porque eu nem me lembrava da última vez que transei?
Ou será que era porque eu não tinha um orgasmo há três séculos?
Eu estava enlouquecendo mesmo?
Era normal sentir vontade de transar com um psicopata? Um cara que eu nem fazia ideia
de quem poderia ser?
Aaaargh, que desgraçado!
Ninguém tinha o direito de provocar isso em Victoria Peterson. Ninguém!
O fato era que, mesmo que o meu pai tivesse me convocado solenemente para um jantar
na sua casa, que estivesse fazendo um mistério miserável, porque, segundo ele, havia uma coisa
muito importante para falar à Rayka e eu, e que eu fosse curiosa demais, confesso que não parei
para pensar por muito tempo sobre o que ele tinha a dizer. Maverick e suas palavras
deploravelmente sacanas fizeram o favor de preencher cada espaço do meu juízo, naquele dia.
Rayka ainda quis me acompanhar no caminho de volta. Afinal, ela também iria para o tal
jantar. Mas, eu obviamente neguei. Logo que terminei de esfregar a porcaria do último prato, caí
fora. Primeiro, eu não era obrigada a caminhar com ela por dois quilômetros e correr o risco de
ficar ainda mais dividida e perturbada do que eu já estava. Segundo, eu queria privacidade para
ler a maldita carta, pela milésima e uma vez, durante o percurso.
Eu já estava quase decorando a droga das suas palavras.
E sim, eu continuava sem a menor ideia de que loucura estava acontecendo comigo.
Minha calcinha estava ensopada, meu coração acelerado e meu juízo confuso demais. Eu nunca,
nunca fui de ficar excitada facilmente com qualquer bobagem. Para eu realmente ficar com
tesão, às vezes era preciso todo um ritual. Aliás, eu geralmente dava o fora em caras safados
demais, em homens que falavam primeiro com os meus peitos do que com a minha cara.
Afinal, eu era Victoria Peterson, uma mulher de valor, de respeito! Uma mulher que não
caía facilmente na lábia de alguém, nem permitia que qualquer homem falasse de qualquer jeito.
Perfeita demais, ou teoricamente perfeita demais, para aturar caras que pensavam mais com o
pau do que com a cabeça.
Mas...
Awn! Maverick!
Dei gritinhos internos, entusiasmados e absolutamente idiotas, sem conseguir me conter.
Era uma mistura de sorrisos com tesão. Provavelmente a coisa mais ridícula do mundo. E, ainda
assim, sem-noção como fosse, eu não conseguia evitar.
Se a minha avó, ao menos, sonhasse que eu estava conversando baixarias com um cara e
que justamente por causa disso eu me sentia completamente excitada, aí sim ela me chamaria de
vagabunda com todas as letras. E teria respaldo para isso.
Era como se eu estivesse cada vez mais distante do que Grace me ensinou.
Um processo completamente involuntário.
Eu juro que não queria isso.
Porém...
Inevitável.
Droga.
Maverick era, sim, um cara de pau, estranho, psicopata, maluco. Ainda tinha o “bônus” de
ser sacana. Mas, era também engraçado, romântico, babão, muito babão, e, claro, safado.
Ridiculamente safado. O pacote completo.
Não que aqueles fossem os requisitos da listinha do homem perfeito para uma Peterson.
Essa listinha foi passada de geração em geração. Não foi exatamente eu quem a criou. Eu só a
guardava na cabeça, porque fui ensinada a isso.
Maverick, porém, parecia completar a minha lista pessoal.
Aquela que eu deixava enterrada nas gavetas mais profundas da minha consciência.
Desgraçado.
Filho da mãe.
Algo no fundo da minha cabeça, no entanto, sussurrou...
...Perfeito.
E, acima de todas as coisas, o mais importante de tudo era que... Alguém enfim estava
começando a ocupar o lugar da Rayka nos meus pensamentos.
Um lugar que nunca deveria ter sido dela.
Só nisso, Maverick já valia a pena.
Ainda sem conseguir tirar o sorriso idiota do rosto, mesmo com o incômodo da calcinha
toda molhada, cruzei os portões da casa do meu pai e, quase saltitante, atravessei a imensa sala
de estar.
Tão feliz.
Tão confusa.
Tão perturbada.
Tão... Entusiasmada.
Até que...
Quando dobrei na sala de jantar, vi todos já sentados à mesa. Papai, Daisy e até a Rayka.
Por um segundo, quis estranhar a velocidade com a qual ela chegou ali. Ou Rayka tinha pegado
um jatinho ou eu caminhei devagar demais porque não fui capaz de parar de ler a carta.
Provavelmente, a resposta correta era a segunda opção.
Mesmo assim, não passei mais do que meio segundo reparando nisso. A minha estúpida
cabeça ainda estava em Maverick, assim como o meu sorriso continuava grudado nos lábios sem
qualquer previsão de ir embora.
— Ah, meu amor, que bom que chegou! — papai foi o primeiro a falar. — Venha, sente-
se. Estávamos só esperando você aparecer, para começarmos a comer.
— E esse sorrisão bonito, hã? — Daisy perguntou. — Que energia boa fluindo de você
hoje, querida! É maravilhoso vê-la assim.
— Acho que depois de tanta maré de azar, eu preciso de um pouquinho de alegria, né, tia?
— respondi, me aproximando dali, ao puxar uma cadeira para me sentar.
Pela disposição das cadeiras, fiquei de frente para Rayka.
Percebi quando seu olhar se fixou na minha mão que ainda segurava a carta. Senti certo ar
de curiosidade vindo dela, ou até de atenção maior do que parecia normal para quem não sabia
do que se tratava. Por um instante, quase achei esquisito, mas... Ah! Dei de ombros. Aquela
idiota jamais saberia o que tinha ali.
Apenas dobrei a carta e guardei dentro da minha bolsa, começando a me servir com o
jantar, logo em seguida.
— Será que pode nos contar o que aconteceu? — simpático, papai completou, ao tomar
um gole do seu suco. — Quem sabe até façamos um brinde em comemoração — brincou.
Por mais que eu soubesse que deveria me certificar de que aquela relação tinha algum
futuro, antes de contar isso para a minha família ou para alguma amiga, eu me sentia tão... Tão
esperançosa. Esperançosa, porque, apesar da minha confusão mental por ainda não saber quem
ele era, pelo menos, de uma coisa eu tinha certeza, ele não era uma mulher. Maverick não era a
Rayka. Eu não estava flertando com uma mulher, eu não estava interessada em uma mulher.
Todo aquele pesadelo da Rayka, na minha vida, parecia estar com os dias contados,
especialmente se Maverick continuasse ocupando cada pedaço dos meus pensamentos, assim
como estava começando a fazer.
Era exatamente disso, o que eu precisava, desde que ela pôs os pés em Miami outra vez:
alguém que me fizesse esquecer da sua existência.
Sem conseguir conter as minhas reações, praticamente me derreti feito uma idiota, em
cima da mesa, ao falar:
— Maverick aconteceu...! — meus olhos estavam brilhando, eu tinha certeza. — Estou
recebendo cartas de amor.
No mesmo instante em que me calei, foi automático.
Rayka se engasgou com o suco.
— Nossa, calma... — preocupada, Daisy, ao seu lado, começou a dar batidinhas em suas
costas. — Entrou no buraco errado, meu amor. Levanta os braços! Levanta os braços que
melhora!
Enruguei a testa.
— T-Tá tu-tudo bem...! — balbuciou a garota com o seu rosto vermelho como uma
pimenta. — Vai dar certo.
— Está tudo bem mesmo, Ray? — papai perguntou, enquanto Daisy a abanava com as
mãos. — Consegue respirar?
— Tá, tá... — sibilou ela. O fôlego ainda meio capenga, mas voltando ao normal. — Pode
parar mãe. Obrigada. — e, meio sem jeito, abaixou as mãos da tia.
Ciente, papai girou o rosto para mim mais uma vez.
— Então, querida... Cartas de amor, é? — sorriu. — Uau! Que galanteador à moda
antiga... Como são essas cartas?
— Ah, papai, Daisy passou um trabalho pra gente. Precisamos nos comunicar
praticamente às cegas com a nossa dupla. Maverick e eu começamos a conversar através das
cartas do trabalho, estamos trocando ideias e... Eu acho que tá rolando... — mordi o lábio
inferior, tentando impedir o sorriso de ficar ainda maior, para não parecer tão imbecil quanto eu
já estava sendo.
— Ahhh... Então, a sua dupla está enviando cartas de amor para você...? — dando ênfase
na palavra “dupla”, Daisy repentinamente falou, sorrindo, e, então, após tomar um gole do seu
suco, virou brevemente o rosto em direção à Rayka, que se encolheu um pouco sobre a cadeira,
ajeitando a aba do boné que usava e baixando o olhar para o seu prato, enquanto mastigava.
Franzi o cenho de leve, sem entender a reação, mas não dei muita atenção. Continuei sorrindo.
— Conte mais sobre isso, querida... Como é o Maverick? — curiosa, ela pediu.
— Um ridículo maravilhoso! Ele é meio cara de pau, sabe? Mas, tem um ótimo senso de
humor. E, bem, diferente da maioria dos garotos da universidade, por mais que eu fique zoando
com ele, o cara é gentil. Simpático, bobão, ridículo... — soltei uma risadinha, balançando a
cabeça de leve. — Mas, ainda assim, muito legal. Uma figura. A verdade é essa.
— É um cavalheiro, então! — papai brincou, colocando um pedaço de bife na boca.
— É o que parece ser... — respondi, quase cantarolando, mas... — Às vezes, eu penso que,
talvez, exista alguma coisa de errado com o Mister Maravilha.
Daisy franziu o cenho.
— Por que, meu amor? — e perguntou.
— Ele é bom demais pra ser de verdade, sabe? Os caras da universidade são uma negação.
Um bando de imprestáveis.
— Ah, querida, pode ter certeza de que ele é real. Você não estaria trocando cartas com
um fantasma — soltou uma risadinha. — Além do mais, você se lembra da regra do trabalho,
não é? Então, paciência. Ao final, todos vocês, curiosos, vão descobrir quem são os seus
parceiros. Fique tranquila. Eu não duvido de que a sua dupla seja muito especial — e, tomando
mais um gole do seu suco, soltou uma piscadela rápida para a Rayka, que se remexeu sobre a
cadeira, ainda estranhamente calada, enquanto comia sua refeição. Ela nunca ficava calada
daquele jeito.
Suspirei.
— É... Ainda faltam o quê? Umas três ou quatro semanas para o fim da disciplina, não é?
Preciso segurar essa curiosidade idiota até lá — torci o nariz e baixei a cabeça para o prato,
tentando me concentrar na comida.
— Eu tenho certeza de que essas semanas que faltam, vão passar em um piscar de olhos
— papai replicou. — Principalmente porque temos um feriado no meio do caminho. Já
perceberam como as semanas parecem mais curtas, quando se tem um feriado? — sorriu. —
Aliás, Daisy e eu, temos um comunicado para fazer, a respeito disso. Foi justamente por isso que
chamamos Rayka e você aqui, hoje. Decidimos fazer uma viagem de motorhome à Charleston,
para aproveitar esse feriadão de Ação de Graças, depois de amanhã! — exclamou, todo
entusiasmado.
Foi automático, a sapatão e eu levantamos a cabeça ao mesmo tempo.
— Charleston? — e, juntas, falamos.
Senti minhas bochechas subitamente queimarem em vermelhidão, ao me dar conta disso.
— É-É... — papai franziu o cenho, meio confuso, soltando uma breve risadinha. — Não
gostaram da notícia? Vai ser como nas férias! — empolgado novamente, continuou. — Vamos
pegar o motorhome e ter altas aventuras pelas estradas! Não é ótimo? Fora que os Ferris, lá em
Charleston, já estão contando com a nossa presença na confraternização do Dia de Ação de
Graças. Sei que eles não vão abrir mão da nossa presença.
Daisy, porém, alternando seu olhar atencioso, entre Rayka e eu, perguntou:
— Algum problema sobre isso? Alguma objeção?
Foi involuntário, irracional e mais rápido do que a minha consciência conseguiu assimilar,
quando dei por mim, Rayka e eu, simplesmente, já estávamos nos entreolhando. E isso pareceu
durar bem mais tempo do que os breves segundos que se passaram.
Não eram apenas problemas que existiam, mas, sim, lembranças.
Muitas lembranças.
Por mais difícil que, admitir isso, parecesse, eu sabia exatamente o que ela estava
pensando. Sabia que era o mesmo que eu. E tinha certeza de que ela sabia que eu também estava
pensando exatamente aquilo. Ou melhor, me lembrando exatamente daquilo.
Por três segundos, fomos sugadas de volta à beira do mar de North Beach.
Até que...
— E então...? — dessa vez, foi papai quem perguntou.
Isso fez com que abruptamente voltássemos à realidade.
Desviei o olhar.
Rayka, no entanto, pareceu aterrissar mais rápido do que eu, no Planeta Terra. Colocando
no rosto o seu melhor olhar de paisagem, já foi logo respondendo:
— Ah, não, não, imagina... Nenhum problema — sorriu. — Acho que vai ser irado!
Puxei o ar para bem dentro dos meus pulmões.
Tudo bem, tudo bem, Victoria. Relaxa. Isso não é uma situação de crise. Coisas do
passado ficam apenas no passado. Elas não se repetem. Nunca.
E, pigarreando a garganta, tentei realmente voltar ao normal.
— É... Também acho... — dessa vez, fui eu que falei. Contudo, em um tom mais baixo e
menos empolgado que o da Rayka.
— Bom, eu vou indo para a fraternidade... — ela, por sua vez, emendou em outro assunto,
se levantando da cadeira. — Preciso me arrumar. Já terminei o jantar e vou sair agora à noite.
Antes que desse o primeiro passo, porém, Daisy replicou, chamando a sua atenção:
— Ah, querida, espere...! Vamos comigo ao meu quarto? Fui em uma loja hoje e achei um
moletom a sua cara. Vou te mostrar.
Rayka, por sua vez, estranhamente travou e ainda ficou calada por alguns segundos, como
se estivesse processando a informação, até que, pouco depois, gaguejando, respondeu:
— C-Claro, mãe...

RAYKA

Não existia moletom algum. O que a minha mãe queria era outra coisa.
Depois de borrifar, na minha cara, uma tal de água da proteção, para, segundo ela,
purificar o meu espírito, perguntou, assim que entramos no seu quarto:
— Está mesmo mandando cartas de amor para a Victoria?
Ai, que merda.
Mesmo que a minha mãe fosse um amor de pessoa, espiritualizada demais, e mesmo que
eu achasse que não seria exatamente um problema quando John e ela soubessem do hipotético
envolvimento entre Victoria e eu; eu só não sabia se queria que eles descobrissem logo agora,
antes mesmo da garota ter consciência de que Maverick era eu.
Aliás, ainda que eu quisesse acreditar que seriam compreensivos, porque, afinal, Victoria e
eu não tínhamos nenhum parentesco, além do casamento dos nossos pais, eu tinha certo medo de
que minha mãe cortasse o meu barato.
E eu já estava envolvida demais naquela teia, para parar logo agora.
Sentindo o coração meio acelerado, puxei o ar e me virei, caminhando pelo quarto.
Pensa em alguma merda boa para dizer, Rayka, pensa...
No entanto...
— Querida...? — quase cantarolando, ela chamou.
Puxei o ar.
Eu não tinha alternativa. Era isso ou isso. Mamãe estava dentro do quarto, eu não tinha
para onde fugir. Além do mais, ela era a professora da disciplina. Foi ela quem passou o
trabalho, era ela quem tinha o controle das duplas.
Ainda ridiculamente receosa, virei de volta para ela. Meu olhar tão inquieto.
— É... Po-Pois é, mãe... Eu... Eu tô... — e, sorrindo meio amarelo para ela, confessei.
Daisy, por sua vez, suspirando, deu meia volta e se sentou na cama. Até então, eu não fui
capaz de identificar nada do que ela pudesse estar pensando. E isso me deixava ainda mais
ansiosa. Vi, porém, quando deu duas batidinhas no espaço vazio ao seu lado, na cama.
Droga.
Ela queria ter uma conversa mesmo.
Sem escolha, fiz o que indicava, me sentando ao seu lado.
Depois disso, foi automático. Seu rosto relaxou e um sorriso apareceu.
Automaticamente, franzi o cenho, sem entender.
— Querida, eu sempre soube... — soltou uma risadinha.
Hã?
— Sempre soube o que, mãe?
— Eu sempre soube que você gosta da Victoria... Acho que formariam um casal lindo.
Além do mais, meu amor, você definitivamente precisa de alguém para se aquietar. Chega de
orgias em banheiros de universidades, pelo amor de Ganesha.
Isso... Isso era mesmo real?
O vinco na minha testa se tornou ainda maior.
— Tá falando sério, mãe? — ainda desconfiada, perguntei.
— É claro Rayka. A Victoria é uma menina ótima. Você pensou o quê? Que eu fosse te
castigar ou te fazer parar com o que quer que esteja acontecendo entre vocês? — soltou uma
risadinha, balançando a cabeça de leve. — Até parece que não me conhece.
— Não, eu não achei isso. É só que... — puxei o ar, processando as informações. Me
faltavam algumas palavras. — Então, realmente não tem problema, se eu continuar dando em
cima da Victoria?
— Bom, não para mim, mas... E para ela? Já se perguntou isso?
Que merda.
Um tapa na cara doeria menos.
Baixei o olhar brevemente, esfregando as mãos no rosto, meio inquieta.
— Victoria vai me assassinar, né?
— Olha, eu sei que, depois de todo aquele problema terrível na universidade, com a foto e
tudo mais, deve estar sendo maravilhoso, para ela, ter alguém que a acolha de verdade. Eu vi, nos
olhos dela, o quanto Victoria ficou realmente abalada. Ela precisava se sentir bem outra vez, e
sorrir do jeitinho como está fazendo agora, mas, meu amor... — respirou fundo, me encarando
um pouco mais séria. — Tive a impressão de que ela está se envolvendo bastante com essas
cartas. Eu só peço que tome cuidado com isso, porque... Você sabe, não é? Ela pensa que é
algum rapaz da turma, e eu não quero que nenhuma de vocês duas se machuque com
expectativas frustradas.
Porra.
Esse era o meu receio.
Tirei o boné, coçando a cabeça.
Por enquanto, nós estávamos vivendo no mundo paralelo e perfeito das cartas. Mas, e
depois? E quando ela descobrisse que Maverick era eu?
— Você sabe que ela vai me matar, né? — torci o nariz.
Isso foi mais do que uma pergunta. Foi uma afirmação.
— Matar não... — me deu um sorrisinho meio fraco. — Mas, acho que você precisa de
cuidado. Até o momento, pelo que eu sei, a Victoria se relaciona apenas com rapazes. Então, ela
pensa que seja algum homem. Matar você, ela com certeza não vai. Só que eu também não posso
garantir que ela vai reagir bem, quando descobrir que é você quem manda as cartas. Então, tome
cuidado, meu amor.

VICTORIA

Depois do jantar, ainda suada da maldita caminhada de dois quilômetros, que precisei
fazer da Esquina das Panquecas até a casa do meu pai, porque (vejam só que absurdo) Victoria
Peterson não tinha mais carro, fui tomar um banho no meu antigo quarto. Papai, colaborando
minimamente com a mínima dignidade, disse que me daria uma carona de volta à fraternidade.
E eu até poderia ter chorado as minhas pitangas no chuveiro, só de pensar no meu bebê
todo destruído, acabado e amassado como uma bolinha de papel, sem qualquer previsão de
conserto, ou só de imaginar todos os sapos que eu teria de engolir naquela viagem dos infernos
que o meu pai inventou e indiretamente me obrigou a ir; mas, honestamente, naquela noite, eu
não conseguia passar mais do que um minuto me lembrando dos problemas.
Tudo porque o idiota do Maverick, no fim das contas, não parecia ser tão idiota quanto eu
imaginava. Enfim, eu me dei conta de que ele estava operando um milagre. Sim, claro, um
grande e absurdo milagre. Enquanto ele começava a preencher cada cantinho dos meus
pensamentos, os pesadelos que me atormentavam, há semanas, ou melhor, há anos, estavam
gradativamente esmaecendo na minha memória.
Isso não era demais?!
Minha deusa das líderes ex-loucas e complexadas de fraternidade, eu estava tão feliz!
Tão de bom humor e tão feliz, que não tinha nem tempo de me preocupar com todo o
resto. Apenas subi as escadas, quase flutuando como uma imbecil, e, ainda com aquele sorriso
bobo demais, tomei um banho. Não me dei ao trabalho de pensar em nada que não tivesse a ver
com aquele salafrário. Tirando o fato de que eu me sentia cada vez mais curiosa para saber quem
ele realmente era, tudo estava perfeito!
Perfeito do jeitinho que sempre era para ser.
Sorridente, saí do banheiro enrolada na toalha, me joguei na cama e catei sua última carta
que eu havia deixado por cima dos lençóis.
Eu estava começando a ficar obcecada.
Passava oitenta por cento do tempo pensando nas palavras daquele psicopata, e, nos
outros vinte, eu torcia para que ele escrevesse mais uma carta, para eu continuar pensando.
Era caso de psiquiatra.
Desdobrei o papel, que nem uma louca, e tornei a ler as minhas partes favoritas.
Tudo bem, tudo bem, eu sabia que deveria me envergonhar disso. Sim, deveria. Mas, pelo
menos, não tinha ninguém olhando. Ninguém ficaria sabendo que Victoria Peterson foi atingida
por uma metralhadora.
Respirando profundamente, passei meus olhos, outra vez, pelas suas palavras.
“Imaginar intimamente a garota dos meus sonhos, foi demais para mim e para o controle
dos meus hormônios. Se é que me entende.”
E mais...
“Soaria ousado demais, se eu dissesse que começaria te beijando devagarzinho, tocando
os seus lábios, deslizando a minha língua na sua, chupando a sua também, e, depois,
sussurrando no seu ouvido o quanto você é gostosa?”
Não se dando por satisfeito...
“Soaria indecente demais, se eu falasse que, depois de chupar os seus peitos, fazendo
você se sentir a garota mais desejada, gata e gostosa do mundo (porque é isso o que você
realmente é), eu subiria a sua roupa e enfiaria a minha mão dentro da sua calcinha, só pra te
deixar ainda mais molhada do que, provavelmente, você já deveria estar?”
Minha deusa.
Puxei o ar outra vez, tentando controlar as reações do meu corpo estúpido. Era automático.
Um saco. Bastava eu ler aquilo, para minha cabeça de vento viajar e eu ficar inutilmente...
Excitada. Quanta decadência, quanta depravação da minha parte! Logo eu, que nunca gemia dois
tons mais alto, durante o sexo, porque não achava elegante do jeito como eu deveria ser.
Só existia uma explicação para isso.
Apenas uma:
Eu só podia estar muito na seca.
Sim, claro!
Só podia ser isso.
Aliás, não que eu fosse do tipo sedenta por sexo. Juro que eu era capaz de passar meses
sem sentir falta, assim como estava até esse criminoso aparecer. Eu nem me lembrava mais da
última vez que transei ou tive um orgasmo. Mas, agora, justo agora, com as palavras do
Maverick, eu decidi dar uma de tarada.
Pelo amor da deusa.
Que absurdo.
Ao mesmo tempo, porém...
Argh, que droga!
Mordi o lábio inferior, me empertigando sobre a cama.
Que vontade de...
Bufei.
Não, Victoria.
Não.
Você é muito perfeita para isso!
Ou melhor, você tem o dever de ser perfeita ao ponto de não se permitir fazer isso! É sujo,
esquisito e bizarro!
Sujo.
Absolutamente sujo!
Argh.
Eu queria me masturbar!
Sim, eu queria.
Pronto, falei!
O fundo do poço era mesmo real.
Foram poucas as vezes em que eu realmente me rendi à masturbação. Talvez na
puberdade, com os hormônios à flor da pele. Ou então, em uma ou outra situação perdida,
durante a adolescência, quando não conseguia me controlar. No entanto, logo me dei conta de
que isso não era nenhum pouco classudo para uma Peterson. Geralmente, eu queria gritar muito
mais do que quando estava transando com algum cara. Sim, terrível. Uma cena lamentável.
Aliás, se eu bem parasse para pensar, talvez eu nunca tivesse realmente sentido vontade de
gritar enquanto transava com qualquer cara. Eu só não sabia se era porque não sentia prazer, ou
se eu simplesmente já tinha me acostumado com o fato de ser uma Peterson elegante.
Mas, agora...
Agora tinha o psicopata do Maverick, com a sua conversa que misturava palavras bonitas
e safadas, sua cara de pau, seu bom-humor questionável, e, principalmente, com a porcaria de
uma energia. Uma energia que parecia atravessar o papel e as letras escritas nas cartas, ao ponto
de entrar na minha pele, cruzar todas as terminações nervosas e encher de sangue um ponto
muito específico entre as minhas pernas.
Inferno.
Mesmo me odiando por isso, abri a toalha que enrolava o meu corpo e desci ligeiramente
uma das mãos na direção certa da minha boceta.
Ah!
Exclamei baixinho em pura surpresa e medo comigo mesma.
Eu estava molhadíssima.
Muito molhada mesmo.
Que estrago aquele miserável conseguia fazer com uma única carta!
Imagina do que ele seria capaz ao vivo e em cores...
Meu subconsciente repentinamente sussurrou.
Que saco, Victoria!
Fechei os olhos, apertando-os.
Era por isso, por causa de tudo isso que, mesmo querendo me matar e me jogar nas
labaredas do inferno, eu... Continuei.
Sim.
Simplesmente continuei com a mão lá, me tocando.
Morrendo de vergonha por ser a maníaca da carta, um lado meu berrava para que eu não
enfiasse o dedo na prexeca e o outro suplicava para que eu fizesse isso. A vergonha era enorme,
mas o desejo parecia muito maior.
Não precisei me esforçar para sentir a minha boceta ficando gradativamente mais inchada
do que já estava. Em movimentos circulares, eu me tocava, indo e voltando, pegando e...
“Beijando devagarzinho, tocando os seus lábios...” e “deslizando a minha língua na sua,
chupando a sua também, e, depois, sussurrando no seu ouvido o quanto você é gostosa”.
Sem soltar a carta, subi uma das mãos para o meu peito, estimulando o mamilo e...
“Depois de chupar os seus peitos, fazendo você se sentir a garota mais desejada, gata e gostosa
do mundo (porque é isso o que você realmente é), eu subiria a sua roupa e enfiaria a minha mão
dentro da sua calcinha”. Pressionei a carta entre os dedos, amassando, quando senti minha
boceta pulsar pela primeira vez.
Tentei formar uma imagem dele. Tentei pensar em um garoto. Um garoto gato. Gostoso.
Um dos rapazes da universidade, que não fosse imbecil como a maioria me parecia ser. Quem
sabe um dos atletas titulares, ou um daqueles quase formados, ricos, com dois metros de altura e
bíceps muito bem desenvolvidos.
Mas...
Por mais bizarro que fosse, a única imagem que a minha mente foi capaz de desenhar era
completamente diferente disso. Tudo o que eu conseguia enxergar era... Cabelos curtos e
castanho-escuros, uma boca desenhada e olhos escuros, nariz afilado, rosto bem delineado.
Aqueles cílios longos. O piercing no cantinho do lábio inferior. E a maior cara de sacana que
ela normalmente já tinha, sem fazer qualquer esforço para isso.
Rayka.
Exclamei de susto, subitamente. E, ofegante, abri os olhos. Só não sabia se a falta de ar era
de pavor ou de excitação. A única coisa que eu tinha certeza era de que isso não estava certo.
Nem um pouco certo.
E, então, como se não bastasse o pesadelo de ver a Rayka invadindo os meus pensamentos
no meio daquela sujeira de masturbação, a porta do meu quarto foi aberta num solavanco.
— Ei, tantã, o seu pai pediu pra avisar que...
A sua voz chegou primeiro do que a sua imagem no meu campo de visão.
Quando olhou para mim, no entanto, simplesmente travou, assim como eu também travei
da cabeça aos pés. Não parecia real, mas era. Era muito real. Tão real quanto o fato de que eu
estava completamente nua, em cima da cama, com uma mão na carta e a outra na boceta,
enquanto Rayka me encarava paralisada na porta.
Só ouvi quando os lábios dela sibilaram:
— Eita porra...
Fiquei pálida, enquanto aquela desgraçada, sem-vergonha, nem se mexia ou fazia qualquer
esforço para dar o fora dali. Sua boca se abriu de maneira bem breve, em puro choque ou até...
Admiração. Ao mesmo tempo, seus olhos se cravaram no meu corpo, como se não existisse mais
nada ao redor. Suas orbes passearam de cima a baixo. No fundo, por mais sutil que tentasse
parecer, existia fascínio ali... Uma veneração palpável para alguém como eu, que conhecia muito
bem a Rayka e sabia exatamente como ela ficava quando desejava algo.
E ainda que, por fora, eu estivesse assustada, com a surpresa, e absolutamente irritada, por
ela ter simplesmente aberto a porta do meu quarto sem qualquer cuidado, ainda existia alguma
coisa confusa dentro de mim. Uma sensação diferente, mesmo que fosse absurdo demais ou
demasiadamente embaraçoso, porque, naquele momento, tudo o que eu deveria fazer era
expulsá-la por estar me observando daquele jeito. De alguma maneira, que eu não sabia explicar
como, o seu olhar, na real, na real, fez eu me sentir... Adorável.
Quê?
Franzi o cenho para mim mesma.
Acorda, Victoria!
Tentei me mexer, tentei puxar a toalha para cima do meu corpo, mas, naquele meu
completo estado de imbecilidade, até a minha respiração tinha parado. A única coisa que se
movimentava, em mim, dentro dos primeiros segundos de choque, era o coração batendo muito
forte na boca da minha garganta.
Isso, até ela balbuciar, dizendo...
— Nossa, m-me des-desculpa... E-Eu... — e se perdeu no meio das palavras.
Foi como um disparo para mim, um gatilho, um jorro de adrenalina para que eu, enfim,
fosse arrastada de volta para a realidade. Abruptamente, consegui puxar a toalha e, em um piscar
de olhos, me levantei da cama. Ainda meio atrapalhada, ainda meio ofegante do susto e de todos
os meus pensamentos e sentimentos confusos.
Mesmo assim, me ergui e não me demorei em exclamar:
— Será que você não sabe bater na porta antes de ter certeza se PODE abrir?!
Tudo bem que eu já tinha entrado assim, uma vez, no quarto dela da fraternidade, mas
isso não vinha ao caso agora.
Senti meus olhos quase saltarem na caixa craniana.
E percebi também que não somente as minhas palavras, mas a intensidade que eu coloquei
em cada uma delas, fez com que Rayka fosse puxada ao mundo real e aterrissasse o seu olhar no
meu rosto e não mais no meu corpo.
Notei quando ela enrugou a testa, mais para si do que para mim, e, balançando a cabeça
levemente em negativo, soprou o ar.
— Poxa, foi mal, Victoria. Não sabia que você estava... — gesticulou com as mãos, na
minha direção, como se não soubesse a melhor maneira de dizer aquilo. — A culpa não é minha
se você se masturba com a porta destrancada, pô.
Ela falou isso em voz alta?!
Ela percebeu que eu estava mesmo me tocando?
Claro, Victoria, claro que ela percebeu. Qualquer pessoa perceberia.
AHHHH, QUE INFERNO.
Senti as minhas bochechas queimarem de vergonha.
— Cala essa boca, Rayka...! — exclamei, entredentes, e, abanando as mãos, fui em sua
direção, fazendo-a caminhar de costas até passar pela porta e alcançar o corredor. — Sai, sai, sai
daqui…!
Ela, no entanto, ainda tentou dizer.
— Espera, Victoria! Eu vim aqui, porque seu pai tá avisando que o carro da carona já está
lá embaixo, esperando.
— Tá, tá bom, o recado já tá dado! — desconversei, abanando com as mãos, sem
paciência.
E, tão logo me calei, fechei a porta bem nas suas fuças.
Foi automático. No mesmo instante em que me vi sozinha, tentei respirar fundo e, com
uma mão no peito e outra na testa, comecei a caminhar aleatoriamente dentro do quarto, ainda
inquieta. Meu coração quase escapando pela boca.
Desgraçada.
Além de invadir os meus pensamentos no meio de uma masturbação, ela invadia o meu
quarto também.
E, por incrível que pudesse parecer, o pior mesmo ainda não era isso.
O pior era...
Por que não foi um homem quem eu imaginei?
Por quê?!
MEU PEDACINHO DE ESTRESSE

“O sentimento é um Senhor que vem te encontrar”


Lord It’s a Feeling | London Grammar

RAYKA

Que filha da puta gostosa do caralho.


Cara, ela se masturbou com a minha carta.
Com. A. Minha. Carta.
Eu vi. Eu vi perfeitamente, claro e cristalino como água. Sem dúvidas, a melhor visão de
todos os tempos. Uma obra de arte ainda mais linda do que todas as outras que ela mesma já
tinha feito. A mão esquerda na carta que eu escrevi e outra na boceta. Toda abertinha em cima da
cama, sem roupas, nua, se tocando. Os mamilos excitados, o corpo molhado do pós-banho.
Surreal.
Foi a primeira vez em que tive a certeza de que a garota certinha demais também enfiava o
dedo na boceta e se masturbava. A primeira vez que eu a vi nua, depois de já ter imaginado,
inúmeras vezes, o quanto ela, com certeza, era impressionante sem roupas tanto quanto vestida.
Linda.
Completamente sensacional.
As minhas palavras realmente surtiram efeito.
Aliás, nunca, na face da Terra ou em qualquer outro lugar do universo inteirinho, eu
poderia imaginar que o tal efeito seria exatamente esse. Eu jamais cogitaria a possibilidade de
que a Victoria faria isso.
Precisei de umas duas horas, ou mais, para me recuperar do que eu vi e colocar todos os
meus ânimos nos seus devidos lugares. Na verdade, se eu fosse bem sincera comigo mesma,
mesmo depois de uma noite toda de sono e de uma manhã de aulas na universidade, até agora eu
ainda não estava plenamente certa do meu juízo.
Não consegui nem falar com ela na fraternidade à noite, para tentar me desculpar outra
vez. Fomos o caminho inteiro em silêncio, no carro do John. Um certo clima pairando sobre nós.
A única coisa que eu fui capaz de fazer, até conseguir pregar os olhos e dormir, foi deitar na
cama do meu quarto e encarar o teto, enquanto sentia a calcinha ensopar sem parar, a cada
minuto em que a minha cabeça involuntariamente repetia em um looping infinito a cena da
garota nua, se tocando.
Droga.
Eu deveria parar de pensar como uma doente sexual.
Mas...
Eu simplesmente não conseguia.
Era uma merda.
Uma merda ser tão perturbada por uma garota que nunca me deu dois por cento do que eu
sempre desejei fazer com ela.
Depois do que houve, Victoria não me olhou uma vez sequer. Ela ainda estava puta pelo
flagra. Claramente puta. E, bem, honestamente, de fato não foi o momento mais adequado para
eu aparecer. Vi o quanto as suas bochechas adoráveis ficaram vermelhas de vergonha. Agora, ela
empinava o nariz e passava por mim como se eu nem existisse.
Ainda assim, mesmo sabendo que isso seria como uma nova sessão de humilhação
gratuita, porque eu não tinha a menor dúvida de que ela iria me enxotar para bem longe, algo me
dizia que a situação ainda merecia uma nova tentativa de retratação. Não custava nada tentar.
Assim... Talvez me custasse um pouco de dignidade ferida, mas isso era coisa básica,
nada demais. Eu já estava calejada de Victoria Peterson.
Por isso, respirando fundo e me preparando para mais um provável diálogo nada delicado,
como sempre acontecia entre nós, terminei de atender um cliente que apareceu no balcão e,
aproveitando que a tarde estava tranquila na Esquina das Panquecas, fui atrás do meu pedacinho
de estresse.
Victoria estava sumida. Eu praticamente não a vi, desde que o expediente da tarde
começou na lanchonete. Porém, até onde os meus ouvidos aguçados puderam escutar, Stacy
tinha dado a maravilhosa tarefa à garota de limpar um enorme e antigo fogão industrial, que
ficava numa cozinha nos fundos da lanchonete.
Caminhando por toda a extensão restrita e exclusiva dos funcionários, eu segui para lá.
Enquanto passava por ali, ainda visualizei sutilmente os demais cômodos, me certificando de que
ela não estava em outro lugar. Com cuidado, tentei não fazer barulho, para atrasar, por pelo
menos alguns minutos, a fúria da fera.
E, então, quando parei de frente para a porta da cozinha dos fundos, lá estava ela. A
princesa do Shrek. De cabeça baixa e olhos fixamente direcionados para um livro, que eu logo
identifiquei como um dos nossos de Literatura, ela parecia absolutamente concentrada.
Porém, pela sua testa enrugada e pela força com qual parecia ler, eu só podia acreditar que
Victoria não estava entendendo porra nenhuma daquilo. Foi impossível não notar até o seu
desespero silencioso, enquanto folheava as páginas do livro, como se tentasse encontrar respostas
que claramente não existiam.
Ainda assim, o biquinho de atenção, desenhado nos seus lábios, enquanto lia, era mais
convidativo do que deveria ser.
Linda.
Eu arrancaria aquela boca e roubaria pra mim, só para passar o dia beijando.
Ah, Rayka, sua idiota.
Você ainda vai quebrar a cara com essa menina.
Balancei a cabeça de leve para mim mesma e puxando o ar mais uma vez, dei duas
batidinhas na porta, para que ela soubesse que eu estava ali. Porém, nem todo o meu esforço de
chegar com jeitinho foi o suficiente para amansar aquela onça. Bastou ela ouvir os dois toques
baixinhos e…
— Aaahh! — soltou uma exclamação de susto, de repente, fechando ligeiros os cadernos e
livros, como se quisesse esconder alguma coisa. — Ai, que droga, Rayka! Pensei que fosse a
idiota da Stacy!
— Tava estudando escondida para o teste de Literatura de hoje?
Mamãe ainda foi boazinha o suficiente com os imbecis da turma, para lhes conceder o
benefício de passar o teste de Literatura no período noturno da universidade e, assim, lhes dar um
tempo maior de preparação e de estudos. Pelo que eu soube, era uma das últimas chances de
garantir nota, para não reprovar, antes da apresentação do trabalho final da disciplina.
— Sim, aparentemente sim. — desaforada, replicou. — Isso até você chegar e fazer o
desfavor de me desconcentrar. O que foi? Quê que você veio fazer aqui, além de me assustar?
Sem paciência, desviou o olhar do meu, enquanto guardava o seu material na bolsa.
Sempre tão arredia.
Pigarreei a garganta de leve e, dando alguns passos comedidos na direção da leoa, fiz o
possível para me aproximar sem correr o risco de ser engolida viva.
— Bom, eu sei que você já me deu todos os sinais de que não quer conversar sobre o que
aconteceu, mas...
— Está falando sobre ontem? — de súbito, me interrompeu, parando até de guardar os
livros dentro da bolsa.
Seu olhar foi de puro cansaço.
— Sim, estou, mas...
— Ah, me poupe — interrompeu-me de novo. — Quero me esquecer de que aquilo foi
mesmo real. Então, por gentileza, me faça o favor de nem ao menos mencionar. — e, claramente
irritada, tornou a arrumar as coisas, sem delicadeza alguma.
Suspirei.
Garota complicada demais.
— Victoria, eu só queria esclarecer que eu não...
— Esclarecer o quê...?! — dessa vez, ela falou dois tons mais altos, largando tudo sobre o
balcão. Aproximou-se de mim com ímpeto. Olhos firmes, sérios e cravados nos meus.
Mandíbula pressionada. Seu corpo, de repente, exalando toda a tensão que provavelmente
guardava desde a noite anterior. Por alguns instantes, o silêncio pairou entre nós, até que ela
continuou. — Que você é inconveniente o bastante para achar que pode entrar e sair de qualquer
lugar, sem qualquer problema? Ou que você é como uma praga, um karma que não desaparece
nunca, nem quando eu estou em um momento a sós? Ou que eu vou ter que infelizmente aguentar
a sua presença inútil pelo resto da minha vida, porque os nossos pais são casados?! Você me
cansa, Rayka.
Como uma força mais rígida do que eu era capaz de conter, as suas palavras ácidas e
cortantes reverberaram intensamente na minha cabeça. Imparáveis, irremediáveis, irrefutáveis,
elas não pediram permissão para ecoar nos meus pensamentos e hospedar o meu cérebro,
mexendo com a porra de tudo o que existia dentro de mim.
Você é como uma praga, um karma que não desaparece nunca.
Vou ter que infelizmente aguentar a sua presença inútil pelo resto da minha vida.
Você me cansa, Rayka.
Você me cansa.
Você me cansa.
Você me cansa.
Nunca fui de me afetar com qualquer bobagem que a Victoria falava para mim. Aliás, eu
sentia como se já estivesse acostumada mesmo. Ela sempre disse muita merda pra mim, muita
coisa que eu sabia que jamais deveria dar ouvidos. Sem-noção demais. Por isso, eu tentava levar
na brincadeira, zoando com a sua cara. Era uma forma de não poluir o coração.
E, agora, todas essas suas palavras talvez nem fossem grande coisa, comparado ao tanto
que ela já me disse, nos últimos sete anos. Mas, ainda assim, apesar de tudo e de todo o histórico
que a boca suja de Victoria Peterson tinha, dessa vez, foi diferente. Foi diferente, porque, de
repente, tudo pareceu como uma grande gota d’água transbordando um copo que já estava cheio
há muito, muito tempo.
Nem todas as minhas brincadeiras eram verdadeiras.
Às vezes, elas eram só um jeito de eu não me machucar.
Dessa vez, pareceu impossível me blindar. Pareceu inverossímil demais sorrir, soltar
alguma risadinha irônica ou falar uma piadinha, como eu sempre fazia. O momento pareceu
muito insustentável, ou melhor, o meu estado de espírito estava muito insustentável, para que eu
não levasse tudo aquilo ao pé da letra ou, pior, para que eu não levasse tudo aquilo para o
coração. Era tarde demais. Eu já tinha levado, mesmo sem querer.
Talvez eu estivesse gradativamente enfraquecendo na postura de ser sempre inabalável às
grosserias da Victoria, porque...
Agora, eu não tinha a menor dúvida do sentimento que precisei sufocar, depois que
voltamos de Charleston, quando chorei feito uma imbecil no colo da Alyssa, porque eu sabia que
ia embora para intercâmbio e não queria deixar a Victoria sem ao menos tentar ficar com ela
mais uma vez. Me deitei com dezenas de garotas na Europa, esperando esquecê-la. Nunca me
esqueci.
Agora, eu também tinha a certeza dos olhares dela, que não escondiam os seus
sentimentos, ainda que tentasse disfarçar. Eu tinha a certeza dos seus desejos, das suas vontades,
de que ela queria tanto quanto eu. Eu vi a sua vulnerabilidade, no estacionamento daquela festa e
dentro do carro, quando eu disse que nós éramos perfeitas juntas. Eu vi. Vi sim, mesmo que ela
fosse covarde demais para admitir.
E, acima de tudo, agora também existia Maverick. Existia Maverick e tudo o que ele foi
capaz de fazer. Resgatou do fundo da alma uma Victoria que raramente se mostrava para alguém.
Mas, ela se mostrou para ele, através das minhas palavras. Se mostrou para o Maverick.
Se mostrou para mim.
E era por causa disso, de tudo isso, que eu estava enfraquecendo. A Rayka irônica estava
gradativamente desaparecendo para dar lugar aquela que já não conseguia mais mascarar o que
sentia, fosse amor, desejo ou… Frustração. Decepção.
Até então, eu estava bem, normal. Fui até ela com a melhor das intenções, na tentativa de
estabelecer um mínimo diálogo qualquer, que não fosse carregado de paus e pedras. Mas,
honestamente, tudo o que sentia agora, depois de ouvir a sua dureza, era um nó idiota subindo
bem para a beira da minha garganta e... Ah, que droga, a porra daqueles meus olhos ardendo,
mesmo que eu não estivesse dando qualquer permissão para isso.
— Por que você é tão... — ofeguei e passei a língua entre os lábios, me esforçando para
não parecer ainda mais imbecil ao ponto de deixar as lágrimas arrebentarem de uma vez. — Tão
difícil de lidar?
Seu semblante, no entanto, tornando-se ainda pior, pareceu se enrijecer mais.
— E você? Por que não some da minha frente e da minha vida?
Parecia um soco. Um soco, mais forte e mais certeiro, na minha cara. Doeu. Doeu, mesmo
que eu não devesse me permitir sentir isso. Doeu, mesmo sabendo que Victoria não merecia
qualquer tipo de sentimento meu, nem bom nem ruim, apenas uma total indiferença.
Como num piscar de olhos, o meu corpo inteiro se revestiu de uma ira misturada com mais
dezenas de outras coisas, ao me dar conta, enfim, de que essa menina estava me fazendo
gratuitamente jogar no lixo a minha dignidade inteira, completa. E, então, cega de monte de
sensações confusas, que nem eu conseguia decifrá-las, separá-las e nomeá-las, apenas percebi o
que eu disse quando, de fato, já tinha saído da minha boca.
— Beleza. Seu desejo foi concedido, princesa. Só não esquece de uma coisa. — Encarei o
fundo das suas orbes densas. — No teste de hoje, usa a caneta da sorte.
Foi automático.
Bastou as palavras entrarem nos seus ouvidos.
A garota travou.
Subitamente, travou.
E a vulnerabilidade, aquela vulnerabilidade que ela só mostrava para mim, pintou o seu
semblante. Ao mesmo tempo, seus olhos se encheram d’água sem quaisquer pretendentes. Se há
um segundo, ela parecia completamente dura e cheia de si, agora não era nada mais do que uma
garota perdida.
— Do que... — ofegou, sem nem piscar. Suas íris cravadas em mim, tornando-se cada vez
mais molhadas. — Do que você está falando...?
Só que eu não fiquei ali para me explicar.
Decepcionada com tudo, mas especialmente comigo mesma, apenas dei meia volta e saí
daquela cozinha.
Ainda escutei quando a garota gritou:
— Rayka! Volta aqui!
Mas, eu não lhe dei ouvidos. Continuei caminhando a passos largos e rápidos para fora.
Tirei minha farda, o avental, e falei para a Stacy que não estava me sentindo bem. Ela, claro,
sempre gentil até demais comigo, não pensou duas vezes em me liberar do trabalho.
Fui embora, sem ver a Victoria de novo.
E passei o resto da tarde deitada na areia de South Point Píer, olhando para o céu e
fumando, até dar a hora do tal teste de Literatura.

VICTORIA

Congelei da cabeça aos pés, enquanto lentamente via todo o castelo de areia, que eu tinha
construído com muito cuidado, a cada carta, desmoronar. Foi como uma magia quebrada, um
encantamento perdido, uma esperança acabada. A sensação de ilusão, ou melhor, de desilusão
era maior do que eu, maior do que eu conseguia suportar, mesmo que eu ainda nem soubesse da
explicação que Rayka claramente tinha o dever de me dar.
Como...?
Como ela sabia? Como Rayka sabia da caneta da sorte? Ela fuçou as minhas coisas?
Fuçou o meu quarto, as minhas cartas que eu deixei muito bem guardadas em um pequeno baú
na última gaveta da minha escrivaninha? Ela leu? E estava tirando onda com a minha cara
como sempre fazia?
Quem aquela desgraçada pensava que era para jogar uma bomba nas minhas mãos e
simplesmente sair?
Eu não consegui me concentrar em mais nada, depois daquilo. Nem nos meus estudos,
nem no trabalho, e muito menos na porcaria do teste de Literatura. Honestamente, eu não fui
capaz nem de somar letra com letra e palavra com palavra, para entender de maneira correta o
que cada enunciado pedia. E não fazia ideia de quantas besteiras escrevi naquela folha, antes de
entregar para a Daisy. Já era comum que eu não tivesse inteligência para interpretar Shakespeare,
só que, naquele dia, tudo parecia ainda pior.
Era isso, eu estava claramente ferrada.
Se antes, eu já estava com a corda no pescoço, com esse teste, então, não me restou a
menor dúvida de que eu reprovaria a disciplina.
Foi a prova mais fracassada de toda a minha vida.
E eu até poderia estar desesperada por ter a certeza de que Victoria Peterson, aquela que
sempre era o primeiro lugar em tudo, reprovaria pela primeira vez em uma disciplina da
faculdade, se eu já não estivesse com a minha cabeça completamente cheia de Rayka, o tempo
inteiro.
Eu a vi na sala, fazendo a prova junto com a turma. Ela estava lá. E eu não consegui parar
de olhá-la, a cada meio minuto, enquanto as minhas lembranças repetiam freneticamente “no
teste de hoje, usa a caneta da sorte”.
No teste de hoje, usa a caneta da sorte.
No teste de hoje, usa a caneta da sorte.
No teste de hoje, usa a caneta da sorte.
Inferno!
Rayka, por sua vez, não me olhou uma única vez. Nem antes, durante ou depois. Nem
mesmo quando, por acaso, ela cruzou o meu caminho no Centro de Convivência, ao final da
prova. Era como se eu não estivesse ali. Era como se eu não existisse. Era como se eu e nada
fôssemos a mesma coisa.
Miserável.
Só que o seu total estado de indiferença não me fazia esquecer do que houve.
Não, claro que não.
Muito pelo contrário.
Enquanto eu tentava juntar as peças, unir as evidências e buscar por mais pistas que
pudessem resolver a minha imensa e intensa confusão mental, a curiosidade só aumentava. E a
tensão também. O receio. O medo. A sensação de que tudo, absolutamente tudo, não passou de
uma grande mentira.
Depois do teste, fui para a fraternidade o mais rápido que pude, e, correndo, subi as
escadas rumo ao meu quarto. Coração na mão, cabeça agitada, sentimento à flor da pele. Sem
nem falar com qualquer uma das meninas, fechei a porta e me tranquei. Nervosa de uma maneira
como jamais estive, me larguei no chão, para alcançar a última gaveta da minha escrivaninha.
Era como se eu dependesse disso para recuperar o meu equilíbrio.
Quando puxei a alça, porém...
A minha respiração travou, do mesmo jeito como congelei ao ouvir o que Rayka me disse,
antes de ir embora da lanchonete.
As cartas estavam intactas dentro do baú, na gaveta, exatamente da maneira como eu tinha
deixado-as pela última vez. Sem diferença alguma. Era como se ninguém, além de mim, tivesse
as tocado.
Absolutamente intactas.
E, então, um frio na barriga absurdo me tomou, no instante em que o meu subconsciente
sussurrou uma resposta para todos os meus questionamentos. Não foi a primeira vez que ele quis
me dizer isso. Desde que Rayka pronunciou aquelas palavras na lanchonete, eu tentei negar a
lógica. Só que, agora, o sussurro foi tão claro e em bom som, que era impossível não escutar.
Os meus olhos arderam, se encheram d’água e arrebentaram em lágrimas silenciosas, por
não ter sido capaz de me cegar para os fatos, dessa vez.
A resposta surgiu óbvia demais.
E assustadora na mesma medida.
Rayka não tinha entrado no meu quarto.
Rayka não fuçou as minhas coisas.
Ela sabia do conteúdo das cartas, porque... Rayka era Maverick.
OU EU BEIJO OU EU MATO

“Eu estava completamente sozinha com o amor da minha vida”


Golden Hour | JVKE

VICTORIA

Foi uma das piores noites da minha vida.


Sono da beleza das Irmãs Minervas?
Que nada.
Naquela noite, definitivamente descumpri essa regra do regulamento.
Eu estava arrasada, acabada e cheia de olheiras. Talvez nem na madrugada da última festa
infernal, com todo o meu chororô ridículo e os cadernos de desenhos atirados ao chão, eu tivesse
passado uma noite tão ruim assim.
Era como se o gosto amargo da decepção misturada com mentiras estivesse o tempo
inteiro ruminando dentro da minha boca, enquanto eu, inutilmente, ainda tentava acreditar que
tudo não passava de um pesadelo do qual eu logo acordaria. Ou sei lá, um grande mal-entendido.
Mesmo que toda a minha razão gritasse sobre eu já ter a resposta certa, nas palmas das minhas
mãos, eu não queria aceitar isso tão facilmente.
Eu queria provas.
Provas contundentes.
E não apenas achismos.
Eu queria ter a certeza absoluta de que Rayka foi capaz de ser tão mais baixa e vil do que
eu já julguei que ela fosse, ao ponto de me enganar assim.
Ela não podia ter feito isso comigo.
Não podia!
Ela não podia criar expectativas em mim, das quais jamais teria a capacidade de alcançar.
Ela não tinha o direito de se passar por um homem, para me fazer acreditar que eu finalmente
teria a chance remota e milagrosa de dar certo com alguém.
Rayka não tinha o direito de brincar com os meus sentimentos assim!
Os meus olhos estúpidos se enchiam d’água, a cada vez que eu pensava nas coisas por esse
ângulo.
A mentira era uma das piores pragas do universo.
Para completar, Rayka não pôs os pés na fraternidade, naquela noite. Procurei-a, várias
vezes, em seu quarto, na expectativa de que ela finalmente aparecesse para que eu pudesse tirar
aquela história a limpo. Ainda ordenei que as garotas ficassem de vigia, mas o lugar permaneceu
do mesmo jeito a madrugada inteira.
Nem sinal.
Era como se estivesse fugindo de alguma coisa.
Evitando alguma coisa.
Ou melhor, me evitando.
Como se não bastasse, liguei milhares de vezes para o celular da meliante e ainda enviei
umas trezentas e cinquenta mil mensagens, mas, pela primeira vez na vida, ela não me atendeu,
nem ao menos me respondeu no aplicativo de mensagens.
Sumiu.
E eu não consegui pregar os meus olhos a noite inteira, só pensando e repetindo umas mil
vezes o que ela tinha me dito na lanchonete “no teste de hoje, usa a caneta da sorte”, enquanto
imaginava em qual vala pública eu a enterraria, se todas as minhas suposições fossem
confirmadas como verdadeiras.
Na manhã do dia seguinte, eu não tinha a menor dúvida de que estava parecendo um
zumbi. A minha cara, com certeza, estava péssima, graças às olheiras infernais da madrugada
maldormida. Talvez eu tivesse conseguido cochilar por umas duas horas, antes do amanhecer, e
só.
Honestamente, eu não sabia nem como consegui arrumar as minhas coisas em uma mala,
para cair na estrada. Aliás, eu ainda me perguntava por que diabos aceitei aquela ideia absurda
de viajar de motorhome até Charleston, “relembrando os velhos tempos”, quando, na verdade,
por dois anos, aquele foi o lugar que eu mais tentei apagar da minha memória.
Eu juro que não sabia o que tinha dado na minha cabeça.
Era só eu ter, sei lá, dado uma desculpa qualquer, mentido, proferido algum dos meus
costumeiros discursos nojentinhos sobre ter coisas melhores para fazer do que ir à Charleston. Eu
não tinha tanta certeza se o meu pai aceitaria o papo, mas não custaria tentar. Aliás,
aparentemente custava sim, porque nem isso eu fui capaz de fazer.
Eu era uma negação mesmo, viu?
Completamente perdida na minha vidinha de porcaria.
Quando ainda pensei em desistir de tudo, abrir a mala e jogar todas as minhas coisas de
volta ao guarda-roupa, escutei a buzina do motorhome, em alto e bom som, bem nos meus
ouvidos, em plena sete horas da manhã.
Era o fim da linha para mim.
Logo, Papai e Daisy apareceram super empolgados, sorrindo e acenando para mim,
enquanto pulavam para fora do carro e pegavam as minhas bolsas. Sério, eu não fazia ideia de
como eles conseguiam se manter tão alegres e empolgados naquela hora da madrugada.
Eu não tinha mais para onde fugir.
Droga.
Respirei fundo e tentei juntar todo o meu sangue de barata para aguentar aqueles dias de
feriado. Se eu me mantivesse inerte, quase anestesiada diante de tudo o que aconteceria ao meu
redor, naquela viagem absurda e maluca, talvez eu sofresse menos até retornarmos à Miami.
Porém...
Como o universo absolutamente nunca colaborava comigo, ele decidiu cooperar menos
ainda com a minha decisão de permanecer indiferente a tudo. Talvez fosse uma forma da vida
brincar com a minha cara. Afinal, todos adoravam mesmo tirar onda comigo, até a porcaria do
destino.
Bastou eu entrar no motorhome e ver a desgraçada filha da mãe, sentada em uma poltrona
bem na entrada, para que borboletas idiotas dessem piruetas e saltos mortais no meu estômago.
Reações assim, em mim, estavam se tornando cada vez mais frequentes, sempre que ela estava
por perto.
Das duas uma: ou eu estava, de fato, me tornando uma imbecil de primeira categoria por
aquela menina ou aquilo era sinal de uma bela diarreia.
Para falar a verdade, eu preferia ter uma diarreia monumental a ter que admitir que Rayka
realmente mexia comigo.
Ainda que eu tentasse barrar os efeitos colaterais que a sua presença causava internamente
a mim, era impossível. Especialmente porque, depois de tudo o que ela me falou na lanchonete e
de uma noite de sumiço, eu enfim estava vendo aquela infeliz de novo.
Lá estava ela.
Um inferno de linda.
Lia um livro, sentada daquela maneira, tão habitual, toda desregrada sobre a poltrona, com
as pernas largadas e a sua melhor e mais rara cara blasé para mim. Poucas foram as vezes, nesses
sete anos, em que eu vi esse semblante nela. E, bem, talvez fosse a primeira vez que ela o
direcionava para mim.
A real era que Rayka me olhou como se eu não fosse nada, ou pior, como se eu fosse um
insetinho insignificante. E, então, simplesmente voltou suas orbes para a leitura. Eu percebi.
E percebi tão bem que foi difícil segurar uma sensação involuntária e um tanto ruim
subindo pela minha garganta.
Que saco.
Puxei o ar.
Tá legal, Victoria.
Tá legal.
Está tudo bem.
Está tudo sob controle.
Apenas faça o possível para ver essa garota de maneira completamente irrelevante, como
você sempre fez. Não invente de pirar mais do que você já está maluca… Por ela.
Repentinamente, porém, papai me acordou daquele marasmo de imbecilidade, ao dizer:
— Meu amor, venha... Daisy e eu vamos mostrar onde as suas coisas vão ficar.
Ele já segurava a minha mala mais pesada, enquanto Daisy carregava uma das minhas
bolsas de mão e eu outra. Claro que eu, Victoria Peterson, precisava estar preparada para
qualquer situação e, por isso, jamais viajava com pouca bagagem, mesmo que fosse para aquele
fim de mundo, também chamado de Charleston.
Pelo menos, no quesito hidratante, eu havia colocado uns seis de diferentes tipos, apenas
em uma das bolsas de mão. Isso sem falar das outras coisas nas demais malas. Sabe-se lá quantos
mosquitinhos malditos iriam querer arrancar a minha pele por lá.
Ainda assim, franzi o cenho de leve, estranhando algo.
Aquele motorhome era do tipo Classe A, tamanho gigante, com dois andares. Havia dois
“quartos” embaixo e dois em cima. Ou, pelo menos, dois espaços embaixo que se convertiam em
dormitório e dois espaços em cima também.
Eu já tinha o costume de ficar embaixo, perto do quarto do final do corredor, onde papai e
Daisy dormiam. Já a Rayka sempre ficava em cima, com o andar praticamente todo para ela.
Mesmo que eu tivesse certa mania de grandeza e conforto, nunca fiz questão de competir pelo
andar de cima com ela. Quanto mais longe nós ficássemos, melhor. Um motorhome grande,
como aquele, ainda era “pequeno” para o tanto que eu necessitava de um espaço seguro e
distante dela.
E eu já ia caminhando para o local que eu tinha o hábito de ficar, quando ouvi tia Daisy
falar, me parando:
— Ah, não, querida. Aqui não. Vamos para o andar de cima. Desta vez, vou ter que fazer
desse espaço o meu escritório. Sei que é péssimo trazer trabalho para o lazer, isso desalinha
todos os meus chakras, mas foi inevitável.
Não.
Eu ia ficar lá em cima com a Rayka?
Engoli seco, tentando forçar um pequeno sorriso, enquanto a minha tentativa de parecer
natural saía completamente pela culatra.
— M-Mas... E-Eu sempre fico aqui, tia.
Não me coloque perto da Rayka, no estado em que eu estou.
Por favor, não me coloque.
Ou eu beijo ou eu mato.
Das duas uma.
Ou todas as duas.
— Eu sei, meu amorzinho... — toda carinhosa, como sempre, respondeu ela. — Sei que
esse lugar já é a sua marca registrada — soltou uma pequena risada. — Mas, sabe como é a vida
de professora, não é? Você sai da sala de aula, mas a sala de aula não sai de você. Vou aproveitar
esses dias de feriado para adiantar algumas coisas. Estou completamente cheia de provas e
trabalhos de vocês para corrigir.
Estou completamente cheia de provas e trabalhos de vocês para corrigir...
As palavras ondularam gradativamente rumo aos meus ouvidos, penetrando, alcançando o
meu juízo.
Foi quando, de súbito e sem qualquer aviso prévio, uma luz forte e poderosa se acendeu
sobre a minha cabeça. Me dei conta de todo o seu material de trabalho que já estava ali. As
pastas, os livros, os bolos de provas, os testes que fizemos no dia anterior e... A chave de todas as
respostas que eu precisava.
O controle das duplas do infeliz trabalho.
Sim, o controle das duplas, onde tinha o meu nome e o nome do meu parceiro.
Será que estava ali?
Será que ela levou?
Dentro de um nanossegundo, eu viajei em inúmeras possibilidades das quais, todas elas,
me faziam chegar perto do seu material, de algum modo, sem que ela soubesse. Eu precisava de
respostas.
Sim.
Precisava.
Da mesma forma como o meu coração acelerou na noite anterior, ao me dar conta de que
as minhas cartas estavam intactas, ele faltou saltar pela garganta agora.
E Daisy, atenta, percebeu.
— Está tudo bem, meu amor?
Sugada, repentinamente, de volta à sala do motorhome, pisquei os olhos repetidas vezes e
pigarreei, me forçando a parecer normal.
— O-Oh, si-sim, tia Daisy! Tudo perfeito!
E sorri brilhantemente.
Por dentro, no entanto, a minha cabeça continuava trabalhando sem parar.
— Ótimo! — entusiasmada, replicou. — Então, vamos subir!
— Rayka, querida... — papai a chamou. — Pegue aquela outra mala da Victoria e nos
ajude a subir.
Confesso que, perdida entre tantas ideias súbitas e refém da necessidade de fingir que
estava tudo bem, não pude fazer objeções ao fato de que o meu destino seria passar aqueles dias
de feriado dividindo o andar de cima do motorhome com a Rayka. Porém, quando aquela
imprestável se aproximou de nós e, claro, consequentemente, de mim, a pedido do meu pai, nem
mesmo os meus planos maquiavélicos conseguiram sobreviver por muito tempo.
No fim das contas, assim como sempre acontecia, Rayka preencheu cada espaço dos meus
pensamentos.
Era só ela.
Tudo era ela.
Tudo sempre foi ela.
Aquela miserável que me virava de cabeça pra baixo.
E, então, quando ela passou por mim, sem nem me encarar nos olhos, segurando a minha
outra mala e fazendo o seu perfume tão cheiroso se entranhar pelo meu nariz, a sensação confusa
entre atração e repulsa foi enorme.
Com ela, eu sempre, sempre, sempre estava no limite entre o querer e o dever.
De repente, toda a angústia, o medo e a frustração da madrugada voltaram com força total,
incluindo a sensação de ilusão, de perda.
Traição.
Tudo se embolando dentro de mim, criando um nó na boca da minha garganta.
E, então, sem que eu pudesse evitar, me segurar ou conter as reações involuntárias do meu
corpo, só me dei conta do que eu estava fazendo, quando os meus lábios, perto do seu ouvido,
sussurraram firme:
— Eu preciso conversar sério com você.
Rayka, por sua vez, virou-se para mim. Olhos sisudos, boca fechada em uma fina linha de
tensão, mandíbula pressionada. Tão linda e tão assustadora, ao mesmo tempo.
Diferente de noventa por cento das vezes, não havia um traço sequer de brincadeira em
seu semblante, não existia a menor simpatia. Apenas uma tremenda e amedrontadora seriedade.
— É uma pena, porque, agora, sou eu que não tenho nada para falar com você.
Fria, séria, dura.
Foi tudo o que me disse, subindo as escadas do motorhome logo em seguida e me
deixando parada com a maior cara de idiota no meio da sala.
E ali, do jeito como eu estava, paralisada, com os pés fincados no chão, sem qualquer
reação, enquanto os via se afastar para o andar de cima, algo muito estranho aconteceu.
Por mais bizarro que isso pudesse parecer, eu não senti raiva pela forma como ela falou
comigo.
Não.
Não foi isso o que eu senti.
Na real, eu senti... Tristeza. Uma profunda tristeza.
E uma absurda vontade de chorar, que nem uma imbecil, por estar consciente de que
Rayka, durante todos os sete anos que nos conhecíamos, nunca tinha falado comigo daquele
jeito. Nunca.

✽ ✽ ✽
Ela se fechou.
Pelo menos, para mim, se fechou.
Para o meu pai e para a sua mãe, não. Claro que não. Ela jamais se fecharia para eles.
Mas, para mim, sim.
Não me deu abertura para absolutamente nada.
Passamos cerca de nove horas na estrada, com algumas pequenas pausas para comer e
visitar lugares, mas a desgraçada estava me matando na unha. Entre músicas que soavam pelas
caixas de som do motorhome, conversas, piadas, paisagens litorâneas, praias e vento forte na
nossa cara, enquanto o carro deslizava pela estrada que delineava a costa dos Estados Unidos,
seus risos e sorrisos em nenhum momento foram direcionados a mim. Sua simpatia se restringia
à John e Daisy, e, sempre que cruzava o meu caminho, agia como se eu estivesse invisível.
Eu tinha completa certeza de que não deveria me importar nem um por cento com essa
imbecilidade. Afinal, Rayka não merecia de mim nada mais do que uma completa indiferença,
exatamente da forma como ela estava agindo comigo, apesar de todas as questões em aberto que
ainda borbulhavam na minha cabeça.
Porém...
Argh!
Que droga.
Eu também sabia que o meu incômodo não era apenas pelas perguntas sem respostas, ou
pela sua falta de diálogo comigo, era especialmente pela maneira como Rayka estava me
tratando. Eu não estava acostumada com isso. Nunca estive. No geral, eu era a escrota da
história. Não ela. Ou seja, algo de errado não estava certo.
Eu quem tinha o direito de ser esnobe, e não ela, que droga!
Essa era a ordem certa do universo, e não o contrário.
Aquela sensação idiota de tristeza, desde o momento em que Rayka friamente disse que
não tinha nada para falar comigo, perdurou durante todo o tempo em que estivemos na estrada,
mesmo que eu tentasse disfarçar. Papai e Daisy até me perguntaram, algumas vezes, se estava
tudo bem, mas eu sempre fazia um esforço para sorrir brilhantemente e fingir que estava normal.
Eu era mesmo boba demais.
Por volta das quatro ou cinco horas da tarde, depois de muito asfalto deixado para trás e
hipocrisias de que tudo estava absolutamente tranquilo comigo, nós chegamos em Charleston.
Pacata e pequena, como sempre. Uma cidade de pouquíssimos habitantes, cujas casas de
subúrbio eram daquelas com gramados na frente e cercadinhos em volta.
Porém, foi quando o motorhome estacionou na casa dos Ferris, parentes da tia Daisy e da
Rayka, que uma sensação absurda de nostalgia me tomou. Impossível de segurar. Foi como se eu
tivesse voltado dois anos da minha vida. As coisas estavam exatamente iguais. O lugar e as
pessoas. Ou melhor, as dezenas de pessoas. Mais uma vez, a casa estava lotada de familiares e
amigos, como uma grande festa de boas-vindas junto com a comemoração do Dia de Ação de
Graças.
Eu não me admirava, na verdade. Isso parecia uma tradição dos Ferris. Nunca vi gente
mais festeira. Eles adoravam ter a casa abarrotada de pessoas.
Com mesas, cadeiras, músicas e tablado no jardim da frente, dançavam e conversavam,
enquanto o jantar era servido. Sim, eles tinham o costume de jantar cedo. Tipo, cinco ou seis
horas, já estavam fazendo a refeição. Naquele Dia de Ação de Graças, então, a farra devia ter
começado ainda mais cedo do que o normal.
Logo visualizei as tias e os tios da Rayka, e... Claro, os seus malditos primos e amigos de
vizinhança. Aqueles diabinhos de dois anos atrás, que não paravam de rir da minha cara. Assim
como Rayka e eu, eles também estavam naturalmente um pouco mais velhos. Por um segundo, o
meu coração acelerou ligeiramente, ao me sentir de novo como a garota deslocada no meio de
todas aquelas pessoas que, na época, eu não fazia questão de realmente criar amizade. Talvez,
nem agora eu fizesse.
— Aaahh, que bom que vocês chegaram! Sejam muito bem-vindos! — uma das tias da
família Ferris se aproximou de nós, junto com os outros coroas que também eram irmãos da
Daisy.
— Pensei que não vinham mais! — sorrindo, o marido dela falou.
— Que nada! Ainda chegamos aqui mais rápido do que a gente tinha imaginado,
considerando a quantidade de pausas que fizemos pelo caminho — papai soltou uma risadinha.
— E essas duas garotas, hein? — a mulher tornou a falar. — Estão cada dia mais lindas!
— Olha quem fala... Uma gata dessa! — Rayka, com aquela simpatia que ela oferecia a
todos, menos a mim, respondeu, fazendo a mulher rir.
Eu apenas lhe ofereci um sorrisinho pequeno, me esforçando para não parecer tão enjoada
quanto normalmente eu já era. Tudo o que eu mais queria era me sentar em algum lugar e torcer
para que aqueles dias de “folga” passassem o mais rápido possível.
— Devem estar famintos, não é? — outra irmã da tia Daisy falou.
— Olha, se você tiver feito aquela macarronada que eu adoro, eu como agora mesmo —
divertida, Daisy respondeu.
— Então, considere que hoje é o seu dia de sorte — brincalhona, replicou. — Eu fiz uma
travessa cheinha só para você!
— Oba! — Daisy bateu palminhas. — Mal posso esperar!
— Venham, venham! — acenou com as mãos. — O jantar já está posto. Fiquem à
vontade, a casa é toda de vocês!
Com a música zunindo nos ouvidos, e pessoas dançando, conversando e gargalhando ao
nosso redor, nós nos aproximamos e seguimos direto para o balcão onde as comidas estavam
colocadas. Ali, cada um pegava o seu prato e servia-se.
Eu, como não estava com muita fome, coloquei uma colherzinha pequena de cada coisa
que tinha por ali e me sentei na primeira cadeira que eu vi pela frente. Felizmente, afastada de
onde o furdunço era maior, eu fiquei. O papai e a tia Daisy, claro, ainda me chamaram para
chegar mais perto e ir para a mesa onde se sentaram com uma boa parte dos Ferris, irmãos e
irmãs da Daisy, mas eu apenas balancei a cabeça de leve, me utilizando dos meus mais
poderosos dotes de atuação, para fingir, pela milésima vez, que estava tudo bem e que logo eu
iria para lá.
Balela.
No que dependesse de mim, eu faria o possível para me tornar o mais invisível que eu
pudesse. Diferente da universidade, ali eu não precisava me forçar a ser legal com ninguém,
porque nenhum deles votaria em mim e me reelegeria como presidenta da fraternidade. Ou seja,
eu não tinha a obrigação de gastar a minha bateria social. Preferia ficar quieta, comendo devagar
e pedindo à deusa para que essa palhaçada de viagem acabasse logo.
Já bastavam as dezenas de pares de olhos, que disfarçadamente se voltavam para mim a
cada minuto e que realmente me deixavam ligeiramente irritada. Não, eu não estava me referindo
aos mais velhos. Não mesmo. Esses pareciam estar se divertindo e se esbaldando muito mais que
os jovens, especialmente a velha guarda sentada na mesa junto com o papai e a tia Daisy.
Eu me referia mesmo era aos idiotas que não sabiam ser sutis. Sim, eles mesmos. Os
primos da Rayka e os seus amigos de vizinhança. Justamente aqueles que, há dois anos, me
colocaram na posição de chacota, várias vezes, em North Beach. Eu não me esquecia. Eu jamais
esqueceria da cara deles, e eu tinha certeza de que eles também não tinham esquecido da minha.
Dessa vez, não havia aquelas risadinhas irônicas que eu tanto odiava. Eles estavam
comportados em certa medida. Mas, me olhavam bastante, provavelmente me reconhecendo, a
tal “patricinha esnobe que quase não pisava no chão”. Vez por outra, cochichavam, entre si,
coisas que eu não era capaz de ouvir.
Dei de ombros.
Eu não estava nem aí.
Não me importava e não fazia questão de saber o que falavam sobre mim.
A única coisa que a minha cabeça estupidamente idiota não parava de pensar, desde o dia
anterior, era na exata pessoa de todo aquele espaço que não tinha olhado para mim de jeito
nenhum, por nem uma única vez. E isso já não era mais nem novidade. Rayka. Sim, mesmo ali,
parada e quietinha, o meu juízo continuava trabalhando ativamente nas respostas que eu ainda
buscava.
Além da tristeza que aquela criminosa me causou ao longo do dia, a cada vez que eu a via
ali, rindo e sorrindo, fazendo bobagens e soltando as suas típicas piadinhas para todos que
estavam por perto, uma raiva me subia por todos os poros do corpo. Me subia, porque era claro e
evidente que ela estava agindo como se nada estivesse acontecendo, como se as suas palavras do
dia anterior, na lanchonete, fossem insignificantes, como se ela não me devesse explicações,
como se eu não tivesse passado a porcaria da madrugada inteirinha ligando e mandando
mensagens que nem uma puta.
Argh.
Ridícula.
Rayka ridícula!
Bufei, mastigando e empurrando o bolo de comida, com a força do ódio, pela garganta.
Indignada, ainda balancei a cabeça em negativo, imaginando, mais uma vez, as trezentas e
cinquenta mil formas diferentes pelas quais eu poderia matá-la e esquartejar o seu corpo.
Com o movimento, porém, os meus olhos recaíram displicentemente sobre o motorhome
estacionado bem ali, do outro lado, rente à calçada. Um pouco afastado de onde nós estávamos,
mas, ainda assim, tão perto.
Foi quando, de súbito, eu parei. Meu corpo retesou, ao me lembrar de algo. Uma coisa
muito, muito importante da qual eu jamais deveria me permitir esquecer. Não, nunca. Eu não
poderia me esquecer daquilo. Não até que eu soubesse da verdade por completo. Eu não podia
perder a oportunidade.
Sim, eu tinha quase certeza absoluta de que a chave para todas as respostas que eu
precisava não estava somente na Rayka, mas, também ali, dentro daquele ônibus gigante.
O meu pote de ouro no fim do arco-íris.
Mais uma vez, a minha cabeça começou a trabalhar em um milhão de possibilidades. O
detalhe era que todas elas findavam comigo fugindo dali, entrando no motorhome e, enfim,
fuçando o material de trabalho da tia Daisy.
— Olá, boa noite a todos! — repentinamente, a música baixou e uma voz estridente soou
através das caixas de som espalhadas pelo jardim. Tão imersa nos meus próprios pensamentos,
quase pulei da cadeira quando ouvi. — É um enorme prazer receber vocês aqui, amigos e
familiares, neste Dia de Ação de Graças!
Uma salva de palmas, de súbito, rompeu o ar por ali, seguida de assobios.
Ao olhar para o tablado, vi que quem falava ao microfone era uma das irmãs da tia Daisy.
A anfitriã da casa.
— Como vocês sabem, a família Ferris tem uma tradição em todas as festas de datas
comemorativas... — ela continuou. — Além do nosso típico jantar, também adoramos presentear
vocês, como forma de demonstrar o nosso carinho. E hoje não será diferente! Temos muuuitos
presentinhos para dar!
Foi automático.
Todos vibraram, gritando “aaaeeee” e batendo palmas.
Rolei as orbes de leve.
Era incrível o quanto gente pobre se animava com pouca coisa.
— Mas, para isso, vocês já sabem, não é? Nada vem totalmente de graça... — brincalhão,
o seu marido, ao lado, falou. — De acordo com a tradição dos Ferris, todos precisam participar
dos jogos! E a primeira brincadeira será... Tchan tchan ran ran... O famoso cabo de guerra!
Mais uma vez, a galera empolgada riu, assobiando e batendo palmas.
O furdunço ali estava posto.
E eu sabia, sim, dessa tal tradição.
Da última vez em que estivemos ali, nas férias de verão, fui obrigada a participar de um
monte dessas brincadeiras bobas, só para ganhar um par de chinelos de dez dólares no final.
Mas, não agora.
Dessa vez, eu faria algo infinitamente mais importante.
Ainda observei atentamente ao meu redor, me certificando.
Pela primeira vez, eu tinha a certeza de que ninguém, absolutamente ninguém estava
olhando para mim, nem mesmo os primos idiotas da Rayka que, agora, graças à deusa estavam
completamente entretidos naquilo.
Tia Daisy e o meu pai conversavam, rindo e se divertindo.
Rayka idiota se preparava para o cabo de guerra.
E todos os outros estavam mais atentos às suas próprias vidinhas do que ao fato de que
havia uma patricinha esnobe, sentada na ponta da mesa mais afastada, quase escapando dali.
Era o meu momento.
Eu precisava aproveitar, antes que essa oportunidade única escapasse das minhas mãos.
Com o coração já acelerado pelo que eu estava prestes a fazer, e, claro, me valendo da
escuridão da noite que já estava caindo em Charleston, respirei fundo, me levantei, em um piscar
de olhos, e me esgueirei por ali, embaixo da sombra das árvores do imenso jardim, caminhando a
passos largos, rápidos e leves rumo ao motorhome, fazendo de tudo para passar completamente
despercebida.
A porcaria daquele carro nunca pareceu tão longe e tão perto, ao mesmo tempo. Era como
se quanto mais próximo eu chegava, mais distante ele ficava. Talvez fosse a minha tensão,
ansiedade, ou sei lá. E, à medida que eu deixava a festa para trás, o som das músicas também ia
diminuindo. Mesmo que a comemoração estivesse acontecendo no jardim da frente da casa, bem
na rua onde o próprio motorhome estava estacionado, havia uma boa distância que os separava.
Eu sabia que isso era arriscado demais, mas, depois que me levantei da cadeira,
simplesmente não consegui mais olhar para trás, a fim de garantir que eu realmente não estava
sendo observada. Foi o medo que me travou. O medo, o receio de que qualquer movimento
diferente seria o suficiente para que eu fosse flagrada. Era isso que não me deixava fazer outra
coisa, a não ser caminhar, obstinada, rumo ao meu destino final.
Quando finalmente o alcancei, do outro lado, rente à calçada, não pensei duas vezes em
abrir a sua porta. Me enfiei lá dentro, com um impulso que assustou até a mim mesma. Estava
escuro, muito escuro. Mas, eu também não podia ligar as luzes internas, porque isso, com
certeza, chamaria muita atenção. Apenas puxei o meu celular do bolso e tentei fazer o possível
para que a luz da sua lanterna não ultrapassasse as janelas.
Me guiando por ali, segui direto para o compartimento daquele mesmo andar, onde eu
costumava dormir e, agora, Daisy usava como uma espécie de escritório. Não ficava muito
distante da porta de entrada. Na verdade, ficava bem pertinho. Ou seja, esse era outro agravante.
Eu precisava ser rápida. Todo cuidado era pouco. Se eu vacilasse, alguém poderia dar de cara
comigo, bem ali, fuçando o material de trabalho.
Me larguei no chão mesmo, puxando para mim tudo o que eu via pela frente. Era mais
seguro que eu ficasse abaixada do que de pé. Não queria correr o risco de alguém ver a minha
sombra pelas janelas. Com uma das mãos, eu segurava o celular para iluminar, com a outra eu
folheava seus papéis, livros, cadernos, e, principalmente, abria as suas pastas.
Fucei absolutamente tudo o que eu conseguia enxergar, tomando o maior cuidado do
mundo para não bagunçar as coisas dela e deixar evidente que alguém mexeu ali.
Passei um tempo... Um tempo considerável, indo e voltando nos seus documentos. Vi as
provas, vi os testes. Até encontrei aquela porcaria que eu tinha feito no dia anterior. As minhas
respostas mais burras e incoerentes sobre os poemas de Shakespeare, a minha reprovação
naquela disciplina. E eu poderia muito bem ter aproveitado para revisar as respostas e, quem
sabe, tentar melhorar aquilo, se eu não estivesse tão maluca com outra coisa.
Revirei tudo ao ponto de cansar.
Droga.
Respirei fundo, tentando recuperar o fôlego, naquela mistura de tensão com sentimentos à
flor da pele.
Será que ela não tinha levado a porcaria do papel com os nomes das duplas?
Balancei a cabeça comigo mesma, quase desacreditada.
Não seja tão estúpida, Victoria. Claro que esse maldito papel não está aqui.
Afinal, por que diabos ela traria isso sem necessidade?
Ainda tentei dar mais uma olhada rápida, da maneira como eu conseguia, em meio àquela
escuridão e ao meu total nervosismo.
E, então, depois de alguns minutos que mais me pareceram décadas, quando eu já estava a
ponto de desistir e entregar nas mãos da deusa o fato de que eu levaria pelo menos mais três
semanas para descobrir a verdade, tipo o dia da apresentação do trabalho, algo praticamente
brilhou bem na frente dos meus olhos.
Inconscientemente, prendi a respiração, tamanha ansiedade.
Em uma das pastas mais escondidas do compartimento, lá estava… Na penúltima aba de
plástico... “Controle de duplas - Desenvolvimento de história de amor”.
As letras quase piscaram em tons neon.
Meu queixo despencou e, sem que eu pudesse evitar, a minha mão começou a tremer.
Era um medo.
Um medo completamente irracional.
Na verdade, medo e desejo caminhando lado a lado, mais uma vez, dentro de mim. Desejo
por finalmente descobrir a verdade e medo pelo mesmo motivo. Medo de ter acreditado em uma
mentira, medo de ter sido alvo de mais uma chacota, medo de me decepcionar com a ilusão de
que eu, hipotética e finalmente, poderia dar certo com alguém.
Medo do Maverick não ser quem eu imaginei que fosse.
Quando enfim tomei coragem para deslizar a folha e procurar pelo meu nome...
— O que está fazendo aí, querida?
Eu juro que eu nunca, nunca pensava ou falava palavrões, porque Victoria Peterson
deveria ser perfeita demais para isso, só que...
Puta que pariu.
Caralho.
Que merda!
Dessa vez, não deu. Foi mais forte que eu.
Não que eu tivesse pronunciado essas palavras, mas elas explodiram dentro de mim e por
pouco, muito pouco, não escaparam pela minha boca.
Fiquei vermelha, azul, bege, roxa, todas as cores.
Era a tia Daisy.
Eu fui do céu ao inferno, em menos de dois segundos. E, sem pensar em mais nada, a não
ser na besteira grande que aquilo poderia dar, simplesmente soltei os papéis por ali, para longe
do seu campo de visão, tentando disfarçar, ligeiro, que eu estava procurando outra coisa.
— A-Ah, tia, oi! É que eu... E-Eu... Eu tava... — PENSA SUA IDIOTA! PENSA LOGO!
— Eu tava só... Procurando a tachinha do meu brinco que caiu aqui! — despejei rapidamente a
primeira desculpa esfarrapada que me surgiu na cabeça.
Ela, por sua vez, ainda com o cenho franzido, sorriu, meio confusa.
— E por que não ligou as luzes, meu amor? — disse ela, fazendo isso logo em seguida. —
Está muito escuro aqui.
Meus olhos se apertaram com a claridade repentina e...
— A-Ah, obrigada, tia... Olha só! Achei! — fingi que estava realmente pegando uma
tachinha do chão, enquanto soltava a risadinha mais desconcertada da face da Terra.
— Ótimo! Venha, querida! — me segurou pelo braço, ajudando-me a levantar do chão. —
Estamos só esperando você para começar a próxima brincadeira! — completou, empolgada.
Calma aí.
Dessa vez, fui eu que enruguei a testa.
— Brincadeira?
— Sim! Essa será superdivertida! — respondeu, enquanto eu, ainda aérea e nervosa com
tudo o que tinha acontecido, me deixava ser levada por ela, para fora do motorhome. — A dança
das cadeiras!
Ah não.
Não, não, não.
— T-Tia, sabe o quê que é...? — falei, tentando forçar mais uma vez aquela risadinha que
só sabia sair desconcertada. — Acho que não estou muito na vibe dessas brincadeiras, entende?
— Como assim, querida? O prêmio é ótimo! — replicou, ainda mais entusiasmada. — Um
hidratante da Ruby Rose!
Ruby Rose?
Era só que me faltava.
Suspirei, sem saber se ria ou se chorava.

✽ ✽ ✽

Algumas horas mais tarde, voltei ao motorhome com as mãos cheias de sacolas da Ruby
Rose. Hidratantes, bases, batons e todo tipo de maquiagem que, provavelmente, não chegava
perto da minha coleção cara da Fenty. Fui obrigada, mais uma vez, a participar das trocentas
brincadeiras dos Ferris. E, bem, sabe-se lá como, eu ganhei a maioria delas. Nem eu mesma fazia
ideia de como explicar isso. Talvez fosse graças à força do ódio de estar participando daquilo.
Enquanto passávamos pela porta de entrada, caminhando para dentro do ônibus gigante,
papai, Daisy e Rayka gargalhavam atrás de mim, relembrando os “melhores” momentos das
brincadeiras. Quero dizer, relembrando aqueles que eu não classificaria como melhores, mas,
sim, vergonhosos.
Apesar dos pesares, algum ponto em mim, ali, por dentro do meu peito, aquecia sempre
que eu ouvia as risadas verdadeiras dela tão perto. Um ponto bem idiota, por assim dizer. Mas,
real. Impossível evitar, impossível deixar de gostar, mesmo com toda a raiva que ela também
estava me fazendo passar.
Seus risos, quase grudados nos meus ouvidos, enquanto conversava com nossos pais,
colada atrás de mim, eram como músicas. Um pequeno conforto em meio a todo o ódio que eu
ainda sentia por estar deliberadamente me deixando curiosa.
Sim, eu era uma imbecil.
Imbecil demais por causa dela.
Por ela.
Mas...
Talvez eu só... Estivesse sentindo falta da sua natural leveza.
— Oficialmente, temos como filhas as duas melhores competidoras dos tradicionais jogos
dos Ferris! — dizia o papai entre risos. — Foram as estrelas da noite!
Dando um pequeno sorrisinho para ele, girei brevemente o rosto para trás.
Foi quando ouvi Rayka falar:
— Acho que tenho uma adversária à minha altura, não é?
E, então... Milagrosamente sorriu para mim.
Ela sorriu para mim, olhando finalmente nos meus olhos, depois de um dia inteiro.
Juro que eu, boba demais, quase travei no meio do caminho, por um segundo. Meu
coração estúpido bateu de um jeito diferente. Era como ver uma miragem. Um sonho. Algo que,
no fundo, bem no fundo mesmo, eu sabia que, ainda que jamais admitisse, desejei ardentemente
ver outra vez. Seus dentinhos bonitos para mim.
Rayka também estava com as mãos abarrotadas de prêmios.
— Para quem disse que não gostava de dança das cadeiras, hein...? — tia Daisy, divertida,
também comentou. — Foi bem até demais!
— Essa cinturinha fina dela faz milagres na brincadeira — Rayka replicou. — Consegue
se enfiar em qualquer lugar, melhor do que todo mundo — e sorriu para mim de novo.
Ela. Sorriu. Para. Mim. De. Novo.
Todas as borboletas adormecidas na minha barriga voaram outra vez, à medida que eu
sentia as minhas bochechas corarem, mesmo que eu nem soubesse a exata razão para isso. Não
consegui reagir, para além de um olhar surpreso e cravado nela. E isso não foi de propósito.
Talvez eu só não estivesse esperando por essa atitude, considerando que, durante todo o dia, eu
não fui nada mais do que um pequeno insetinho insignificante para ela.
As suas mudanças de humor estavam acabando comigo.
Droga.
Entre risos e mais brincadeiras, papai falou:
— Bom, acho que vamos para o nosso quarto, não é, querida?
— Ah, sim, com certeza! — tia Daisy respondeu. — Depois de horas de estrada e jogos
dos Ferris, preciso me recuperar.
Esse foi o nosso sinal. Nos despedimos deles, com beijos e abraços de boa noite.
E, pela primeira vez, Rayka e eu subimos para dormirmos juntas no andar de cima do
motorhome. De novo, o meu ritmo cardíaco acelerou. Eu só não sabia se era de tensão por estar
dividindo com ela, pela primeira vez, o mesmo local de dormir, ou se era pela ínfima esperança
de finalmente conseguir alguma abertura com ela.
Seus risos e sorrisos para mim não poderiam ser em vão, afinal.
Havia, sim, algum entusiasmo em mim, por achar que, dessa vez, ela teria a honestidade
de me esclarecer tudo o que eu queria saber.
Quando alcançamos o andar superior, porém, eu não sabia dizer exatamente o que houve,
o que deu naquela sua cabeça de vento, ou sei lá, mas... Como uma magia que se quebrava
depois das doze badaladas da meia-noite, tudo se transformou. Subitamente, se transformou. E as
minhas esperanças, aquelas que estavam deixando os meus olhos estupidamente brilhantes,
foram por água abaixo.
O sorriso dela sumiu, no instante em que passou por mim, largou os presentes no pé da
mala e foi direto para a sua cama.
Inconscientemente, até a minha respiração parou por um segundo, quando me vi travada
no meio do motorhome, confusa, sem entender a razão das suas mudanças e sem saber o que seu
comportamento significava. Em um minuto ela sorria para mim, no outro seu semblante se
fechava.
Será que o seu objetivo era realmente me deixar mais maluca do que ela mesma já era?
Suspirando, coloquei meus presentes sobre a cama e arrumei, em silêncio, as coisas por
ali. O silêncio, no entanto, era apenas por fora. Por dentro, o caos de inúmeras vozes, falando na
minha consciência, era gigante. Enquanto um lado meu gritava para que eu não fizesse nada, o
outro suplicava para que eu continuasse buscando respostas.
Eu só não sabia como me aproximar.
Era como se o muro que Rayka construiu a sua volta fosse impenetrável demais. E eu,
claro, provavelmente era a última pessoa que ela deixaria atravessar.
Ainda assim, eu tentei.
Tomando coragem, eu tentei, mesmo que, dois segundos depois de receber a sua resposta,
igualmente fria como pela manhã, eu rapidamente tivesse chegado à conclusão de que talvez
fosse melhor nem ter tentado.
Me virei para ela e...
— Rayka...
— Boa noite, Victoria.
Foi tudo o que ela disse.
Apenas isso.
Somente isso.
Não me deixou nem continuar.
Tirou os seus coturnos, a calça jeans e puxou a camisa de Black Sabbath pela cabeça.
Como se não fosse nada demais, ficou apenas de calcinha boxer e top na minha frente,
arrancando inteiramente o fôlego dos meus pulmões.
Que inferno.
Sem me dar mais nem uma palavra, e eu, claro, naquele meu estado de total inutilidade
apenas em observá-la seminua, com todas as tatuagens à mostra pelo corpo, só vi quando se
jogou na cama e, calada, virou-se para o lado oposto, quebrando por completo o contato visual
comigo.
A GENTE PARECIA UM CASAL MEIO
TORTO

“Eu não vou dormir, eu não posso respirar, até que você esteja
descansando aqui comigo”
Here With Me | Dido

VICTORIA

Eu não consegui dormir. Para variar, não consegui. Que novidade. Como um relógio
biológico, a cada meia hora que se passava, vendo apenas a parca luz alaranjada do poste da rua
que atravessava as janelas, eu encarava o celular, me certificando de que eu realmente estava
ferrada.
Fui me deitar meia noite e meia. Porém, para o meu total fracasso, às três da madrugada,
eu permanecia sem conseguir pregar os olhos. E, bem, por mais estranho que isso fosse, algo me
dizia que Rayka estava na mesma situação. Eu ainda a escutei dormir por breves minutos, graças
aos seus roncos leves e baixos, mas... Logo se acordou de novo e, desde então, não parou de se
revirar, como se tentasse encontrar, sem sucesso, uma boa posição para dormir.
Éramos nós duas, uma em cada lado do motorhome, no meio do silêncio e da escuridão da
madrugada, se debruçando, a cada dois minutos, em todas as possíveis posições.
Bufei, já irritada por não ser capaz de calar os meus pensamentos nem na hora em que eu
deveria descansar. As horas passavam com pressa. O meu medo era de que o dia chegasse e essa
se tornasse a minha segunda madrugada seguida em claro. Eu estava exausta. Exausta de tudo.
Dos pensamentos que não me abandonavam, das preocupações, da viagem, da longa estrada. De
tudo. Mas, nem a exaustão parecia suficiente ao ponto de me fazer aquietar a cabeça e fechar os
olhos.
Uma verdadeira droga.
Talvez, se eu me levantasse, descesse, bebesse um copo d’água e respirasse um pouco, eu
pudesse dar um jeito nessa insônia.
Quem sabe...
Era mais uma tentativa dentre tantas outras, afinal.
Quando pensei em fazer isso, porém, foi Rayka quem se levantou primeiro. Com o susto,
sem esperar por aquilo, travei na cama. Era provável que ela nem tivesse percebido que eu
também estava acordada. Ou sei lá, talvez até tivesse notado, mas fingiu que não.
Eu, no entanto, permaneci quieta, apenas observando os seus passos. E franzi o cenho
quando, só de calcinha boxer, top e tatuagens, vestiu bruscamente uma roupa, como se estivesse
irritada com alguma coisa. Não era uma roupa de dormir, mas de sair. Uma calça de moletom,
uma camisa qualquer e um casaco por cima.
Ainda a ouvi sibilar, baixinho, alguns palavrões consigo mesma. E, então, sem nem olhar
na direção da minha cama, ela saiu dali e desceu as escadas.
Estática, permaneci parada na cama, encarando o teto e pensando no que fazer. As únicas
coisas que se mexiam em mim eram o meu coração acelerado e a minha respiração ofegante.
Eu sabia, sabia que não deveria ir atrás, sabia que precisava enterrar, de uma vez, todas as
sensações que Rayka me provocava, fosse raiva, tristeza, ódio, ou... Sei lá, qualquer coisa.
Qualquer bobagem que eu pudesse sentir. Nada além de uma total indiferença. Especialmente,
considerando o gelo que ela estava me dando.
Mas...
Assim como eu sempre fui uma tola idiota por ela, algo parecia me impelir a sair dali.
Talvez fosse a curiosidade para saber o que ela pretendia fazer, ou algo mais que, agora, eu não
era capaz de definir. No entanto, certamente era uma coisa muito maior e mais forte do que a
minha inútil e pequena vontade de permanecer naquela cama.
Aproveitando que eu sempre dormia vestida, apenas me levantei, sem conseguir me
segurar, e, devagar, tentando fazer o mínimo de barulho possível, desci as escadas, pé ante pé.
Olhei de um lado para o outro. A cozinha estava vazia e a porta do quarto dos nossos pais
estava fechada.
Porém...
A porta principal de entrada do motorhome estava aberta.
Enruguei ainda mais a testa.
Que diabos essa garota estava fazendo?
Me aproximei o bastante, ao ponto de vê-la parada nas escadinhas, praticamente do lado
de fora, olhando para a rua. Suas costas subiam e desciam como em uma respiração pesada.
Algo, em certo ponto dentro do meu peito, quis se preocupar, ainda que eu me esforçasse a
nunca admitir, para mim mesma, que realmente me preocupava com ela. Não era normal que se
levantasse, assim, no meio da noite.
— Rayka?
Foi quando ela girou brevemente o rosto para trás, encarando-me por cima do ombro.
Ofeguei de leve, ao me deparar com o seu semblante. A linha das suas pálpebras inferiores
estava cheia d’água. Uma boa quantidade de lágrimas prestes a desabar. E eu vi. Eu vi
claramente a pura vulnerabilidade refletida no seu olhar.
Uma vulnerabilidade que me dizia tanto, mesmo em silêncio.
Eu nunca tinha visto-a desse jeito.
A não ser... A não ser no fatídico dia, há dois anos, em que ela me encontrou no
motorhome e disse: “Eu... Gostei de ficar com você... Queria poder fazer isso de novo...”. A
vulnerabilidade que eu vi no seu olhar, naquele dia, há dois anos, era exatamente essa que eu via
agora.
Exatamente essa.
Passei a língua entre os lábios, engolindo seco, e, com cuidado, tentei me aproximar mais
um pouco, para entender o que estava acontecendo.
— Rayka...
Dessa vez, no entanto, a minha voz pareceu funcionar como uma espécie de gatilho,
porque bastou me ouvir para que ela, enfim, “acordasse”. Puxou o ar, piscando os olhos para que
as lágrimas não caíssem, e, então, sem me responder absolutamente nada, apenas me deu as
costas e saiu caminhando pela rua escura, em plena madrugada, a passos rápidos e largos.
Tudo pareceu ainda mais estranho do que já estava.
O vinco na minha testa se tornou maior.
Ela estava mesmo ficando maluca?
Ligeiro, fechei a porta do motorhome e me apressei, tentando acompanhá-la, madrugada
afora, pelas ruas desertas de Charleston.
— Ei! Rayka! — meio atrapalhada, com as minhas próprias pernas, exclamei. — Pra onde
você tá indo a essa hora?
— Não te interessa.
Vacilei um pouco ao ouvir a sua resposta e o tom que usou.
Aquele mesmo timbre frio e duro de ontem, quando disse que não tinha nada para falar
comigo. Era uma droga me deixar levar pelas suas antipatias. Talvez eu nunca me acostumasse
com essa sua versão.
Uma versão tão nova e, ao mesmo tempo, tão desagradável.
Ainda assim, tentei não me afetar e continuei.
Só tentei, porque conseguir era outra história.
— Você tá ficando louca? São três da manhã. Não tem ninguém nas ruas desse fim de
mundo, além de nós.
— Volta para o motorhome, Victoria. — ríspida, sem nem se dar ao trabalho de virar o
rosto para mim, foi tudo o que ela falou, ainda caminhando.
— Eu não vou voltar pra porcaria de motorhome nenhum — retruquei. — Você não é a
única sortuda. Eu também não estava conseguindo pregar os meus olhos.
Foi quando ela subitamente parou no meio do caminho. Seus pés cravados no chão e seu
corpo tensionado em minha direção só me fizeram acreditar que o que eu falei a acertou em um
algum ponto muito específico. Finalmente, virou o rosto para mim. Semblante sério, mandíbula
pressionada, respiração pesada.
Suas orbes passearam por todo o meu rosto, mas se fixou especificamente nos meus olhos.
Não piscou nenhuma vez, mas pareceu encontrar uma entrada, ali, em mim. Me encarou tão
firme e tão atentamente que eu tive a impressão de que era capaz de enxergar todos os meus
sentimentos por dentro da alma e de saber de tudo, absolutamente tudo o que eu senti, desde o
dia anterior.
A tristeza, a raiva, a decepção, o medo, tudo.
Apesar da tensão que cada poro do seu corpo exalava, ao ponto de alcançar intensamente o
meu, não fui capaz de identificar o que ela estava pensando. Entretanto, depois de alguns
instantes que mais me pareceram décadas, quando achei que ela não poderia me deixar ainda
mais perturbada, percebi que eu estava completamente enganada.
Rayka simplesmente deslizou a sua mão sobre a minha, entrelaçando os nossos dedos.
O seu toque era bom.
A sua temperatura me esquentava.
E a gente...
A gente....
...Parecia um casal.
Sim, um casal meio “torto”.
Mas, ainda assim, um casal.
Os meus olhos nem piscavam.
Não consegui reagir normalmente à sua mão junto da minha, de uma maneira como nunca,
nunca esteve. Era demais pra porcaria do meu equilíbrio mental, demais para o meu juízo já tão
confuso por todas as coisas que estavam acontecendo na minha vida ultimamente.
Confuso.
Bom.
Errado.
Gostoso.
Tudo isso junto, só por causa da sua mão na minha.
Quase completamente inútil, e sem entender como as minhas pernas, mesmo parecendo
geleias, ainda conseguiam caminhar naquela altura do campeonato, apenas me deixei levar,
concentrando-me somente na curiosidade de saber para onde estávamos indo e o que ela
pretendia com isso.
Rayka me guiou pelas ruas vazias de Charleston, enquanto o vento forte e absolutamente
frio da madrugada soprava. Nuvens pesadas e escuras se aproximavam de nós e indicavam o
prelúdio de uma tempestade no céu. Uma chuva ia desabar a qualquer momento, eu tinha certeza.
Talvez fosse melhor voltarmos logo para o motorhome, ou íamos ficar completamente
encharcadas. Ainda assim, porém, não fui capaz de impedi-la de continuar. Eu já era curiosa por
natureza, e, com a Rayka de volta à minha vida, depois de dois anos, eu parecia estar me
tornando muito mais.
A passos rápidos e largos, mãos dadas e respirações ofegantes, atravessamos toda a
extensão de uma parte da cidade que, ora parecia familiar ora parecia desconhecida, para mim.
Era como se eu conhecesse e, ao mesmo tempo, não me lembrasse. Talvez fosse resultado do
tanto que eu tentei me esquecer de cada detalhe daquele lugar e ainda assim, com todo o meu
esforço, tudo permanecia guardado em uma parte muito escondida da minha memória.
Passamos por uma região de residências, por casas e lojas que logo ficaram para trás, até
alcançarmos uma área aberta, no meio da escuridão, cujos postes de luz das ruas pouco
iluminavam. No entanto, foi quando eu comecei a enxergar areia, a sentir os grãos sob os meus
pés, e a ouvir o som de ondas revoltas e furiosas, que eu não pude conter a pergunta que já
saltava dos meus lábios.
— Pra onde você tá me levando, Rayka?
Percebi os meus batimentos cardíacos acelerarem como um aviso do que estava prestes a
acontecer.
E, antes que ela pudesse me falar qualquer coisa, a resposta se desenhou clara, bem na
minha frente.
North Beach.
Dessa vez, não havia portões a serem escalados, nem parques fechados a serem invadidos,
nem adolescentes em busca de uma diversão desnecessária. Dessa vez, estávamos cara a cara
com a área aberta do mar, aonde provavelmente os turistas iam para aproveitar a praia
livremente. Às quatro horas da madrugada, porém, estava completamente vazia. Era só North
Beach, Rayka e eu.
E, claro, as infinitas lembranças que durante dois anos tentei apagar.
A sensação de nostalgia, agora, foi muito, muito mais forte do que quando pus os pés na
casa da família Ferris. Sim, foi sim. Claro que foi. Era ali, exatamente ali, naquela praia, onde eu
a senti pela primeira vez e tive a certeza absoluta de que, se não tomasse muito cuidado, poderia
me ferrar pelo resto da vida.
Nos encaramos por um segundo, quando ela parou há poucos metros do mar. Meus olhos
se encheram d’água, sem que eu fosse capaz de evitar. E os dela também.
Miserável.
Rayka não tinha o direito de mexer comigo assim.
Não tinha!
Mas...
Era inevitável.
Tão inevitável quanto o fato de que, mesmo sabendo que era errado, arriscado demais,
voltar àquele lugar, eu só queria continuar ali, com ela.
Existia uma energia naquela praia. Uma energia diferente de qualquer outro lugar onde
pudéssemos estar. Uma vibração só nossa, que talvez mais ninguém entendesse. Apenas a idiota
da Rayka e eu.
Ainda absurdamente imbecil, com os meus dedos entrelaçados nos seus, me permiti ser
levada mais uma vez por ela. Nuvens pesadas ainda sobrevoavam as nossas cabeças, enquanto o
vento forte bagunçava completamente os nossos cabelos. As ondas estavam furiosas, à medida
que a chuva se aproximava no horizonte da praia escura. Bastou nos protegermos embaixo de
uma coberta para que o dilúvio caísse do céu.
Era como uma barraca, montada na praia.
Introspectiva, Rayka soltou a minha mão, sentou-se na areia e, bem parada, quase sem
piscar os olhos, passou a observar, silenciosamente, as gotas pesadas que misturavam com o mar.
No fundo, porém, era como se nem a chuva ela estivesse enxergando. Era como se, na real,
estivesse vendo os seus pensamentos passarem como um filme à sua frente.
Pensamentos esses que eu não fazia ideia de quais eram.
Ela viajava.
E, confesso, eu também.
Ainda confusa a respeito de um zilhão de coisas, incluindo o fato de estarmos ali, me
sentei ao seu lado, alguns centímetros mais afastada. Uma distância segura para que eu não
fizesse nenhuma besteira, como enfiar a mão na sua cara ou a língua na sua boca. Nessa altura,
talvez eu fosse capaz de coisas que me arrependeria por muito, muito tempo.
Mesmo debaixo da coberta, porém, era impossível fugir dos respingos da chuva forte.
Com o vento e a maldita tensão que eu não parava de sentir, todo o meu inútil corpo começou a
tremer de frio e de algo mais. Uma droga. Olhei para frente, tentando disfarçar e manter o
mínimo de contato visual com ela, na esperança de que isso me ajudaria a não parecer uma
imbecil medrosa, mas aparentemente não dava para evitar.
Quanto mais eu tentava parar os tremeliques, pior a minha situação ficava.
Vi, no entanto, quando, sem nem me olhar, Rayka tirou o casaco e o empurrou para mim.
A forma brusca com a qual fez isso e a frieza em cada mínimo detalhe dos seus atos, me fizeram
retesar.
Pressionei a mandíbula, tanto quanto a sua já estava trincada, e, abraçando as minhas
pernas, para me aquecer, enruguei a testa em sua direção, quase contrariada. Em um minuto ela
sorria para mim, no outro fechava o semblante. Uma hora segurava a minha mão, na outra agia
como se estivesse com raiva de eu estar ali.
Que inferno era esse?
Pior que o meu ódio das suas atitudes não era apenas das atitudes propriamente ditas, mas
do quanto elas me atormentavam, quando, na verdade, era aquela velha indiferença, utópica e
sempre impossível entre nós, que eu deveria sentir.
Rayka deveria ser um completo nada.
Mas, no fim das contas, ela era tudo.
Talvez eu sentisse mais raiva de mim do que dela, por causa disso. E olha que eu sentia
muita raiva dela.
— O que tá acontecendo? — sem segurar o casaco, cuspi as palavras, irritada.
Ela, por sua vez, nem um pouco disposta a insistir, abaixou a mão no mesmo segundo,
ainda olhando para frente, pouco se importando de esfregar a roupa na areia. Ou melhor, pouco
se importando em me responder.
Calada ficou.
Era como se, nos dois últimos dias, ela tivesse adotado deliberadamente uma política
infantil de zero diálogo.
Tudo bem que eu nunca fui a pessoa mais disposta a conversar com ela, só que... Argh,
que saco. A sua postura já estava me deixando ainda mais perturbada do que naturalmente eu já
era.
Longos minutos de silêncio se passaram, entre nós, enquanto eu ouvia apenas o barulho da
chuva e do mar.
— Rayka... — entredentes, tornei a falar. — Será que dá para você parar de agir feito uma
otária e me responder? Eu estou bem aqui.
Só escutei quando ela liberou, pelo nariz, o ar dos pulmões e, absolutamente séria, virou o
rosto bem devagar. O seu olhar era uma confusa mistura de melancolia com austeridade. A linha
das pálpebras de baixo continuava úmida, revelando muito mais do que Rayka gostaria que eu
percebesse.
— O que está acontecendo com você? — perguntei outra vez, compassadamente.
Pegando-me quase de surpresa, ela sorriu de leve, sem um pingo de humor, enquanto
balançava a cabeça em negativo.
— Quê que foi? Vai dar uma de preocupada agora, Victoria? Você nunca se preocupou
comigo.
E, mais uma vez, o seu semblante se fechou.
Que inferno.
Estava impossível estabelecer qualquer diálogo.
Quando Rayka queria ser insuportável, ela conseguia isso com maestria. Muito melhor do
que eu.
— Sabia que eu estou tentando conversar com você?
Foi então que o seu olhar, repentinamente, se tornou ainda mais áspero, rígido, se é que
isso realmente era possível, porque, antes, já estava demais. Deslizou sobre a areia, diminuindo a
distância entre nós, e, firme, retrucou:
— Victoria, faz sete anos que eu tento conversar com você. Fiz de tudo para dialogar
durante todo esse tempo, só que você nunca quis me ouvir.
Isso me pegou.
Ainda que eu não quisesse, ou que eu tentasse me manter firme, isso realmente alcançou
uma parte de mim que eu mesma ainda não era familiarizada. Por alguns segundos, foi como se
tirasse um véu da minha cabeça. Ou melhor, a roupa do meu corpo. Me senti nua, com uma
verdade socada no meio da cara.
Meu olhar vacilou por um instante e até o ritmo da minha respiração mudou.
Desgraçada.
Por que conseguia me deixar sem chão?
— Agora eu estou aqui.
Foi tudo o que fui capaz de dizer, tentando prezar pelo mínimo de dignidade no meu tom
de voz.
— A que custo? — retrucou.
— Me responda — devolvi.
Ela bufou.
— Não está acontecendo nada, Victoria.
— Ah, por favor, garota... Você sai no meio da madrugada, em plena três da manhã, e vem
me dizer que não está acontecendo nada?
Se quiser me fazer de idiota, faz, só não exagera.
— O que você tem a ver com isso? — quase desaforada, revidou. — Não finja que se
importa com alguma coisa a respeito de mim, Victoria, porque eu sei que nunca se importou.
— Por que tão ríspida? — o vinco na minha testa se tornando maior. — Não precisa me
dar patadas. Não estou aqui para dar patadas em você.
— Até que enfim, né? — ironizou. — Depois de todos esses anos só me dando coice, deve
ter se cansado agora. Já era tempo.
Rolei os olhos.
— Só não brinca muito com a minha boa vontade, porque eu também não me tornei uma
santa para aguentar, calada, todos os seus sarcasmos.
Ela, por sua vez, soltou um pequeno e fraco riso pelo nariz, meneando a cabeça.
— Que conversa mais idiota. Estamos andando em círculos e não vamos chegar a lugar
algum. Nunca chegamos. Você sabe disso.
— Sim, principalmente se você continuar agindo como uma Neandertal.
— Olha, eu não sei nem o que você está fazendo aqui. Não sei por que foi atrás de mim,
quando eu saí do motorhome. Não sei por que insistiu em me acompanhar, se você nunca quis
ficar perto de mim. Eu só queria respirar, caminhar um pouco. Mas, e você? O que você quer,
Victoria, além de me perturbar?
“Não sei porque insistiu em me acompanhar, se você nunca quis ficar perto de mim.”
“O que você quer, Victoria, além de me perturbar?”
Havia tanto, tanto rancor escondido nas suas palavras, que, por um segundo, a minha
própria fala travou. Eu era idiota demais. Pigarreei a garganta, tentando retomar minimamente a
minha postura, mesmo sabendo que jamais conseguiria isso naquele momento, nem em North
Beach, nem na China.
— Quero falar sobre nós.
Não soube nem como pronunciei essas palavras.
Elas simplesmente saíram.
Foi quando Rayka pressionou ainda mais a sua mandíbula, erguendo uma das sobrancelhas
para mim.
— E, por acaso, existe “nós”?
Palavras cortantes, afiadas.
Engoli seco.
— Por que está me tratando assim? Você nunca foi desse jeito.
Eu sou a nojenta da história, não você.
Percebi um por cento da minha vulnerabilidade ser revelada através da pergunta, mesmo
que eu tivesse feito um esforço para evitar. Enquanto isso, ela só se preparava para mais um tiro
ao alvo. E o alvo era justamente a minha cara. Outra vez.
— Não era isso o que você queria, Victoria? Não foi isso que me pediu, lá na lanchonete?
— estreitou os seus olhos escuros em minha direção. Palavras ardilosas, sutis, emboladas numa
teia absurda de seriedade. — Eu me lembro perfeitamente de você ter me dito para sumir da sua
frente e da sua vida. Aliás, sendo bem sincera, você me pede isso desde que eu pus os pés na
casa de praia dos Peterson, em Jacksonville, há sete anos.
O tiro que eu pensei que ela me daria, no entanto, pareceu mais como um soco forte, bem
no meu nariz. Pude ouvir e sentir, só na minha imaginação, o som dos ossos se quebrando, o
sangue escorrendo feito uma torneira.
E doeu.
Doeu na alma.
Mesmo que eu me odiasse infinitamente, por me permitir sentir isso, doeu lá no fundo,
porque eu sabia que as suas palavras, novamente, eram a mais pura verdade.
Eu nem precisava fechar os olhos para me transportar de volta à lanchonete, dois dias
atrás, e me lembrar do que lhe disse. A lembrança estava fresca na minha memória. Tão recente
quanto a própria sensação daquele soco imaginário que levei.
Eu me lembrava do que disse.
E Rayka, aparentemente, seguiu o pedido ao pé da letra.
“E você? Por que não some da minha frente e da minha vida?”
“E você? Por que não some da minha frente e da minha vida?”
“E você? Por que não some da minha frente e da minha vida?”
“E você? Por que não some da minha frente e da minha vida?”
Essas palavras se repetiram tantas, tantas vezes na minha cabeça, que eu precisei enfiar as
minhas mãos na areia, para me segurar. Uma sensação terrível de tontura. Um mal-estar infernal.
Uma vontade de nascer de novo, só para virar gente de verdade.
Meu coração acelerou.
Tudo por dentro se revirou.
Desgraçada.
Eu a odiava tanto por me fazer sentir coisas que jamais imaginei.
Meus olhos se encheram d’água outra vez. Só que, agora, com força total.
E, como forma de me defender, ou, sei lá, defender um por cento da minha dignidade já
inexistente, retruquei num tom mais agoniado do que eu gostaria de demonstrar, por saber que a
minha resposta não convencia nem a mim mesma.
— Eu só não me lembro de ter pedido para você se tornar uma estúpida com humor
instável! Uma hora você tá aqui, outra tá ali. Em um minuto você sorri para mim, e no outro você
age como se não suportasse a minha presença. Num segundo você segura a minha mão, e no
outro parece que nem me enxerga. Isso tá acabando comigo! — e eu nem acreditava que estava
lhe dizendo isso tudo. — Eu não pedi pra você se tornar uma maluca!
— Cai na real, Victoria! — sem nem dar espaço direito, ela, de súbito, exclamou de volta,
segurando o meu rosto por baixo do queixo e encarando firmemente os meus olhos. — Será que
não percebe? Eu só estou fazendo isso para tentar me proteger, porque sou louca, completamente
louca por você!
Eu travei.
Simplesmente travei, enquanto encarava o fundo das suas orbes.
Estática, paralisada, eu quase precisei me lembrar de como fazia para respirar.
Rayka era irritantemente engraçadinha. Muitas vezes, ela “dava em cima de mim” só para
me tirar do sério. Claro que devia existir algum fundo de verdade nas suas brincadeiras. Eu
nunca descartei essa possibilidade. Mas, exceto pela forma como ela falou comigo no
estacionamento da festa e, em seguida, dentro do carro, quando me deu carona depois de Palm
Beach, essa era a primeira vez que eu via e ouvia tanta sinceridade vindo dela, a respeito do que
sentia por mim.
E eu sabia, sabia que a minha atitude mais certa era fugir dali, me afastar como eu sempre
fazia, antes que acontecesse alguma besteira, mas... Eu só consegui pensar no quanto Rayka
ficava ainda mais linda me dizendo que era louca por mim.
Ela, por sua vez, continuou em um tom mais baixo, ainda encarando os meus olhos:
— Gosto de você, Victoria, mas sei que não posso continuar gostando, porque o que eu
sinto nunca foi e nunca vai ser correspondido.
Eu me quebrei.
Simples assim.
Ou não tão simples assim.
Eu me quebrei em infinitas partes. Tantas que eu não era nem capaz de contar. Me senti,
subitamente, fragmentada e dividida em um monte de Victoria’s que eu era ou que eu deveria
ser. Eu vi a Victoria ensinada a ser perfeita, vi aquela que gostava de rapazes. Vi também aquela
que deveria seguir a tradição das Peterson e se casar com um bom homem, porque uma Peterson
não deveria se envolver com qualquer pessoa. Vi a garota que sempre foi referência em tudo o
que fez na vida, inclusive na faculdade. Vi aquela que era o primeiro lugar em todos os
concursos. A filha do reitor da Universidade de Miami e da aclamada Madelyn Peterson. Neta de
Grace Peterson. A líder da Fraternidade das Minervas. A Victoria que se interessou por
Maverick.
O meu próprio nome falava por si só.
Eu era uma vitória.
Mas...
Para além de tudo, eu também vi...
Bem escondidinha, ali no canto, na última gaveta da minha consciência. Envergonhada,
acanhada, medrosa. Era uma Victoria. A Victoria que gostou do beijo de dois anos atrás, naquela
mesma praia. A Victoria que, em vez de dar um tapa, continuaria o beijo no estacionamento da
festa. A Victoria que achava a coisa mais gostosa do mundo a boca de uma tal garota chamada
Rayka. A Victoria que, se pudesse, experimentaria os seus lábios outra vez.
A Victoria que, se pudesse, nasceria de novo, mas como um homem, só para poder ficar
livremente com ela, sem que qualquer pessoa lhe apontasse o dedo na cara dizendo que...
“Você não é perfeita, Victoria, e vai continuar não sendo, enquanto permanecer tomando
atitudes que envergonham e mancham a imagem da família.”
De repente, vozes, infinitas e inquietantes, soaram no fundo da minha consciência.
No fundo da minha alma.
Grace.
Grace.
Grace.
A minha referência, o meu maior exemplo de vida. O último pedaço que tinha restado da
minha mãe.
“Victoria, essa garota é lésbica. Ela não é uma menina normal.”
“E é uma péssima influência para você.”
“Estar perto dela e ser amiga dela, pode passar uma falsa impressão de que você é
alguém como ela. Uma lésbica. E você não é lésbica, Victoria. Você é uma Peterson.”
O choro alcançou a boca da minha garganta e se transformou em lágrimas que
transbordaram profundamente pelos meus olhos.
A chuva, na praia, se tornou ainda mais intensa.
— Isso é loucura... — totalmente confusa da minha cabeça, eu tentava dizer, em meio aos
soluços. — Eu... Eu não... — eu nem sabia direito o que falar. Eu não sabia como reagir. — Eu
não posso.
“Não posso.”
Enfim, foi a frase que conseguiu sair da minha boca, no meio de toda a bagunça que se
revirava por dentro do meu corpo.
Talvez fosse o mais fácil a dizer.
Talvez fosse mais cômodo.
Eu fui doutrinada a falar isso, afinal.
Mas, eu vi. Eu vi a forma como os seus olhos me encararam depois disso. Eu percebi a
tristeza e a frustração estampadas. A decepção no seu semblante era tão palpável que eu achava
que podia tocá-la.
Com os olhos absolutamente marejados, ela disse:
— É claro que não pode... Victoria Peterson é perfeita demais para gostar de mulher. — e,
então, soltou o meu rosto, completando em um tom baixo, mas igualmente firme e doloroso. —
Não posso continuar com isso, Victoria, porque esperar para ser correspondida por você, é como
esperar por chuva no deserto. Inútil e decepcionante.
Como se não bastasse e como se não quisesse que eu a visse chorar, quando uma lágrima
escapou dos seus olhos, ela se levantou bruscamente da areia, me deu as costas e saiu dali,
entrando na tempestade, para ir embora.
Tremendo, eu a observei caminhar pela areia, enquanto a sua roupa se encharcava por
completo e os seus ombros subiam e desciam numa respiração descompassada.
Eu também estava ofegante, sem ar, com medo, confusa.
Eu ainda não sabia direito o que pensar, eu ainda não sabia ao certo como agir. Algumas
partes fragmentadas de mim só queriam seguir as palavras de Grace e respeitar a vontade da
minha mãe, quando ela me disse que a minha avó sempre saberia o que era melhor para mim.
Porém, aquela última parte da Victoria, bem escondidinha no final da minha consciência,
não queria ser perfeita, só queria fazer o que estava com vontade.
E, mesmo absolutamente consternada, quanto mais Rayka ficava distante, mais claro um
sentimento absurdo se tornava para mim.
Por mais bizarro que pudesse parecer para a Victoria Peterson que todos conheciam, eu a
queria outra vez.
Ali.
Agora.
Era loucura, sim era.
Eu não estava pensando direito. Eu sabia que não estava.
Mas, eu queria.
Sem cogitar as consequências, sem imaginar o tamanho do erro que eu estava cometendo.
Sem pensar que eu, uma mulher, estava realmente desejando outra.
Eu só queria... Ficar.
Como se North Beach fosse uma espécie de sonho onde tudo era possível.
Atarantada, me levantei bruscamente da areia e gritei:
— Rayka! Volta aqui!
Ela não me ouviu. Ou fingiu que não me ouviu. Apenas continuou andando a passos
largos e rápidos.
E eu...
Eu corri pela praia em sua direção, completamente guiada pelas emoções.
Não tinha sequer um pingo de razão ali.
Coração na mão, sentimentos à flor da pele.
Corri até alcançá-la no meio da praia que já começava a se iluminar com a luz do dia,
mesmo o céu estando ainda nublado. Raios de sol surgiam por entre as nuvens pesadas.
Com a roupa completamente encharcada de chuva, eu a segurei pelo braço e a virei para
mim. Rayka, sem entender, ainda enrugou a testa. Mas, eu, ofegante, sem ar, colei o meu corpo
ao dela e pousei as minhas duas mãos no seu rosto, dizendo:
— Não estamos em um deserto. Estamos em uma praia. Com chuva.
Simplesmente, a beijei.
Ainda senti o seu corpo retesar por um instante, provavelmente surpresa com o que eu
estava fazendo. Ela não esperava por isso. Na verdade, nem eu mesma estava esperando. Não saí
do motorhome com isso em mente. A minha cabeça trabalhava de um jeito estranho e diferente
da maioria das pessoas.
Aos poucos, entretanto, nós nos deixamos levar. Não apenas ela, mas eu também. Nos
entregamos, assim, de bandeja, uma para a outra. E o beijo, que começou devagar, logo tomou
proporções maiores. Muito maiores.
Sentir os seus lábios daquele jeito, outra vez, com vontade, com desejo, sem querer parar,
sem pensar em lhe dar um tapa no rosto a qualquer momento, era realmente como estar
sonhando. Não parecia real. Mas, era.
Graças a Deus, era real.
Se fosse um sonho, eu ficaria completamente chateada, por não ter experimentado isso de
verdade.
A sua boca era boa demais para não ser beijada... Por mim.
Não foi como o selinho no estacionamento da festa. Não foi mesmo. Foi quase como o
beijo de dois anos atrás, só que melhor. Muito melhor. Naquele, ainda existia raiva, ódio. Agora,
porém, não havia nada mais do que pura vontade. Não nos beijamos por causa de uma
brincadeira. Nos beijamos porque já não aguentávamos passar mais nem um minuto sem fazer
isso.
Eu não aguentava.
Dois anos depois, tentando esquecer do quanto eu gostei de sentir a sua língua molhada
passando por cima da minha, lá estava ela outra vez, me deixando perturbada. Excitada.
Quase sem chão.
Mesmo no meio de uma tempestade e de uma ventania furiosa, não existia frio que desse
jeito no calor que eu sentia. Eram lábios e língua que se misturavam com gotas do temporal.
No entanto, foi quando eu senti a minha calcinha molhar com algo que não era chuva, que
um pequeno e ínfimo lapso de sanidade ainda quis me tomar. Pausei por um segundo, ofegante,
assustada, perdida, separando os nossos lábios por breves centímetros, somente para sussurrar:
— O quê que eu tô fazendo?
Rayka não me respondeu com palavras. Ela estava tão sem ar quanto eu. Suas bochechas
vermelhas de tesão pareciam adoráveis. E, então, sem me dizer nada, apenas olhando fixamente
para a minha boca, como se dependesse dela para viver, passou os braços pela minha cintura,
apertando o fecho ao redor do meu corpo, e tornou a me beijar.
Eu me sentia tão fraca, tão absurdamente fraca por ela, que os seus lábios pareciam
justificativa o suficiente para que eu me esquecesse de que aquilo poderia ser uma grande
loucura. Mais uma vez, não pude impedir a mim mesma. Ainda que fosse o maior erro da minha
vida, eu simplesmente não conseguia parar.
Não, dessa vez.
Não, agora.
Enquanto a perfeição das Peterson, naquele momento, tornava-se apenas um murmúrio
quase inaudível, lá no fundo da consciência, eu era incapaz de fazer qualquer outra coisa, a não
ser continuar beijando a sua boca. Pelo menos, naquele momento.
Seu beijo tinha gosto de saudade.
De lembranças.
— Que merda, Victoria... — disse ela, entre lábios e línguas, puxando os meus cabelos da
nuca, inclinando a minha cabeça para trás e chupando o meu pescoço. — Tão gostosa. Por que
tão gostosa?
Eu não era a única, e não precisava ir tão fundo para admitir a mim mesma que ela
também era uma desgraçada gostosa.
Miserável que me fazia beijar a boca de uma mulher.
— Você é um karma na minha vida — devolvi. — Mas um karma que beija bem, muito
bem.
Enfiei as mãos por baixo da sua blusa e continuei beijando a sua boca. Toquei a sua
barriga lisa e bem definida, a cintura perfeitamente delineada, enquanto sentia a sua respiração se
tornar cada vez mais irregular à medida que os meus dedos deslizavam sobre a sua pele.
Eu estive no céu.
Eu juro que estive no céu por alguns minutos.
Depois disso, voltamos correndo na chuva, rindo uma para a outra, feito duas idiotas,
completamente molhadas. Quando chegamos ao andar de cima do motorhome, o dia já tinha
amanhecido, mas nós nos deitamos. Cada uma em sua cama, para finalmente dormirmos.
Dessa vez, Rayka deixou o seu rosto virado em minha direção. Mesmo estando no lado
oposto ao que ela dormia, eu me permiti observá-la. Ela sorriu para mim, eu para ela, e, então,
fechou os olhos.
Tão linda.
BOMBA COLORIDONA DE VITAMINA
LGBTQIAPN+

“Envie seus sonhos para onde ninguém vê”


Wait | M83

VICTORIA

O som de um passarinho, cantarolando na janela do motorhome, foi o que fez as minhas


pálpebras pesadas se abrirem. De repente, eu tive a impressão de que colocaram duas toneladas
sobre os meus olhos, durante a madrugada. E, a minha cabeça, então, latejava de dor.
Pelo amor da deusa, que barbaridade fizeram comigo?
Tentei abrir a boca, para balbuciar qualquer besteira, fazendo o possível para desvendar o
mistério da caçamba que passou por cima de mim. Ou melhor, do caminhão que acabou com a
minha raça. Mas, a minha voz parecia mais rouca do que a dubladora da Yzma de A Nova Onda
do Imperador. A minha garganta arranhava.
Espera aí.
Caminhão?
Pisquei os olhos repetidas vezes, mesmo com dificuldade, quando, subitamente, flashes da
madrugada bombardearam os meus pensamentos. Me lembrei de tudo. De tudo. Da Rayka se
levantando às três da manhã, dos seus dedos entrelaçados nos meus, da praia, da chuva
torrencial, e do beijão, no melhor estilo desentupidor de pia, que eu dei na boca dela.
Puta que pariu.
Ai, não.
Calma.
Eu pensei mesmo em “puta que pariu”?
Arqueei as sobrancelhas para mim mesma, assustada com o meu novo vocabulário. Algo
de errado não estava certo. Que diabos eu estava me tornando? Isso só podia ser obra do
demônio da Rayka na minha vida. Eu estava me tornando outra pessoa.
Ai, Victoria, que vexame.
Meio grogue, com o nariz escorrendo e uma baita vontade de tossir como nunca, fiz um
esforço para me levantar da cama. Quando me ergui, no entanto, as minhas pernas, trezentas
vezes mais pesadas do que os meus olhos, me traíram, e a minha cabeça girou um pouco.
Argh, que droga, será que eu ia mesmo adoecer por causa da porcaria daquela
tempestade tropical?
Quase me desequilibrei, por pouco não caí no chão.
— Hey, o que houve? — foi quando uma mão me segurou pelo braço. — Tudo bem? Tá
sentindo alguma coisa?
Rayka.
Eu não tinha nem me dado conta de que ela não estava mais deitada, quando eu acordei.
Retesei um pouco, involuntariamente, ao sentir o seu toque e perceber o seu rosto tão
atencioso direcionado para o meu. Os olhinhos levemente puxados nas laterais, a boca bem
desenhada, o queixo marcado, os cabelos lisos, castanho-escuros e curtos que caíam sobre a sua
testa de um jeito tão charmoso.
Desgraçada linda, que inferno!
Meu coração até errava uma batida com essa beleza terrível e horrorosa.
Por um segundo, me lembrei do momento em que eu estava colada nela. As suas mãos me
segurando firmemente pela cintura, os meus dedos deslizando sobre a pele tatuada da sua
barriga. A serpente. Impossível esquecer. Um calorzinho entre as minhas pernas molengas de
gripe, agorinha, também foi inevitável. Socorro.
Era como se eu já não conseguisse mais olhar para aquela imbecil, sem me lembrar do seu
beijo. Ou pior, sem querer experimentá-lo outra vez. Sim, eu queria de novo. Eu queria muito.
Deusa, me salva.
— A-Ah, o-oi... — engoli seco, sorrindo meio amarelo, meio sem jeito. — Acho que vou
pegar um resfriado.
— Sério? Resfriado? — ela se preocupou. E, nossa, ela ficava tão pitiquinha, quando
estava preocupada. Aaaa, que saco! — Você estava boazinha até, sei lá, de madrugada.
A fatídica madrugada.
— Pois é, eu sei, uma droga. Deve ter sido da chuva.
Por um milésimo, percebi um leve sorrisinho brincar nos seus lábios.
A chuva...
Rayka provavelmente estava pensando sobre ela e sobre o que aconteceu debaixo dela.
— Claro que a implacável Victoria Peterson não vai se deixar vencer por causa de um
mísero resfriadinho de meia tigela — disse ela, divertida. — Vamos dar um jeito nisso agora
mesmo!
Ah, ela estava de bom-humor...
E, confesso, era maravilhoso vê-la assim, especialmente depois de dois dias da sua política
de zero diálogo. Enfim, um avanço. Aparentemente, um beijo bem-dado fazia milagres ao seu
estado de espírito.
Soltei uma risadinha de leve, mesmo sentindo dores pelo corpo todo.
— O que você quer dizer com isso?
— Vem comigo, madame? — empinou o nariz, brincalhona, me oferecendo o seu braço,
para que eu pudesse passar o meu.
Ri outra vez.
Até eu estava de bom-humor, e nem sabia exatamente o porquê.
“Foi o beijo, sua idiota, o beijo”, disse o intrometido do meu subconsciente.
— Promete que isso não é um plano seu para me matar?
— Ahhh, imagina, o meu nome não é Victoria Peterson e o seu não é Rayka Ferris. Ou
seja, pode ficar tranquila. — zoou. — Além do mais, seria muito prejudicial para a saúde dos
meus olhos, se eu deixasse de ver uma gata dessa todos os dias.
Juro que, por um segundo, senti as minhas bochechas queimarem de vermelhidão, em pura
vergonha pelo seu elogio. O meu caso estava se tornando cada vez mais sério. Sim, eu sabia que
estava. Victoria Peterson estava se tornando molenga por uma mulher.
Uma mulher!
Que absurdo.
Ainda assim, puxei o ar para bem dentro dos meus pulmões e, fazendo uma das milhares
de coisas que jamais imaginei fazer, passei o meu braço pelo seu, me deixando ser levada por
ela. A cada dia, eu queimava mais a minha língua. Daqui a pouco, ela estaria só o carvão.
Descemos as escadas do motorhome, juntas, desse jeitinho.
Isso ainda era esquisito pra mim. Diferente. Num dia, eu queria assassiná-la, no outro eu a
beijava. E, então, agora já estávamos assim, de braços dados, como se o nosso maior objetivo de
vida, nos últimos sete anos, não tivesse sido esquartejar uma à outra.
Eu ainda tinha muita coisa para processar.
Mas, tudo a seu tempo.
— O que você vai fazer? — perguntei, quando Rayka nos fez parar na cozinha.
Minha curiosidade super aflorada, como sempre. Especialmente, se a situação tivesse a ver
com ela.
— A minha incrível bomba coloridona de vitamina LGBTQIAPN+ — riu consigo mesma,
balançando a cabeça de leve. — Não, tô brincando. É a minha bomba coloridona de vitamina A,
B, C, D, Etc pra fortalecer o seu corpinho e deixá-lo pronto pra outra. Aprendi a fazer lá no
intercâmbio.
O vinco que se formou na minha testa foi automático.
— Bomba coloridona de quê? — retorci as sobrancelhas.
— É isso mesmo que você ouviu — sorriu, simplesmente.
Rolei os olhos.
— Você só pode tá zoando com a minha cara, como sempre.
— Confie em mim. Jamais mataria a garota que quero dar milhares de outros beijos que
nem aquele dessa madrugada. — ainda sorrindo, piscou um dos olhos.
Senti um frio na barriga só de ouvi-la mencionar isso. Sim, eu sabia o que eu tinha feito.
Tinha consciência de que tudo o que rolou na praia foi real. Mas, as coisas pareciam ainda mais
loucas e confusas quando ela falava sobre o assunto. Eu certamente precisava de um tempo para
digerir tudo.
Mesmo assim, suspirando e tentando manter a postura para não parecer tão imbecil quanto
eu já estava, retruquei como se o meu coração não tivesse parado de bater há meio minuto:
— E o que vai ter nessa gororoba?
— Segredo da chefe.
Apertei os olhos em sua direção.
— Não vou beber nada que eu não saiba a exata procedência de tudo o que tem dentro.
— Nossa, como você é chata, hein? — soltou mais uma risadinha de leve, pelo nariz. —
Relaxa.
Liberei o ar, quase aceitando o prenúncio da minha derrota, e me escorei no balcão
observando os seus passos, enquanto preparava seja lá o que fosse.
Em silêncio, enquanto ela andava de um lado para o outro, preparando tudo tão
atenciosamente, talvez fosse eu que estivesse atenta até demais, só que a detalhes que não tinham
a ver com a gororoba, mas a ela mesma. Detalhes que, antes, não pareciam fazer a menor lógica
para mim, e, agora, tinham tanto sentido.
Tipo, a forma como a calça de moletom se pendurava nos seus quadris, ou o jeito como a
sua bunda preenchia perfeitamente bem o traseiro da roupa. Os fios de cabelos finos, lisos e
curtos, que caíam sobre a sua testa e se mexiam, frente aos meus olhos, quase em câmera lenta, a
cada vez que ela se movia.
Eu não parava de reparar.
Que merda.
O impropério cruzou os meus pensamentos com tanta rapidez, que eu só me dei conta
segundos depois.
Ah não.
Estalei a língua no céu da boca, comigo mesma.
Segundo palavrão em menos de vinte e quatro horas.
Suspirei, em pura frustração.
Victoria Peterson já não era mais a mesma.
— O que foi? — perguntou ela, provavelmente depois de ouvir a minha breve lamúria.
— Nada... — desconversei, quase desapontada. E eu já ia desviando o olhar, para tentar
pensar em outras coisas que não me fizessem ter tanto medo de quem eu estava me tornando,
quando, de repente, me dei conta dos ingredientes muito, muito esquisitos que ela tirava de
dentro da geladeira. — Espera aí… — franzi o cenho. — Você tá querendo me dizer que ovo,
cenoura, laranja, tangerina, beterraba, repolho e gérmen de trigo, com mais um monte de outras
coisas que não faço nem ideia do que seja, vai ser bom? Só de olhar isso, o meu estômago está
embrulhando.
— Você não está acostumada com esses sucos detox? — ergueu uma das sobrancelhas. —
É quase a mesma coisa.
— Ah, não é não, viu?
— É sim! Confie em mim. Antes do dia acabar, você já vai estar novinha em folha!
Revirei os olhos, balançando a cabeça de leve.
— Esse negócio tem que ser muito bom mesmo.
Assim que ela se calou, porém, e ligou o liquidificador para passar toda aquela porcaria, a
tia Daisy de repente apareceu por ali.
— Ora ora, dormiram bem, hein? Quase meio-dia!
— Meio-dia? — arregalei os olhos.
— Sim! Deviam estar cansadas da estrada, não é, meus amores? — sorriu afetuosamente
para nós.
Mal sabia ela que acordei meio-dia, porque fiquei até cinco e meia da manhã beijando a
sua filha.
Rayka soltou uma risadinha, enquanto despejava a gosma amarela em um copo.
— É isso aí, mamãe, estávamos exaustas.
Só alguém que entendia o real motivo por termos acordado tarde, conseguia reconhecer o
leve sarcasmo por trás da forma como ela falou a palavra “exaustas”.
Alguém tipo eu.
— Ah, eu imagino, querida! — respondeu ela. — Bom, vim aqui só para pegar um pouco
da minha carne de soja. Sabem como é, né? Vegana não se rende nem numa festinha de
família… — riu de leve, já abrindo a geladeira e tirando o que queria. — John e os outros estão
preparando um churrasco lá no jardim! Venham, venham! Não demorem, hein?
— A gente chega já lá, mãe — respondeu Rayka.
Em pouco tempo, tia Daisy já tinha caído fora dali e a garota empurrava o copo coloridão
na minha direção.
Engoli seco.
Mesmo que ela pudesse estar com a melhor das intenções em me ajudar, eu ainda tinha
medo do tiro sair pela culatra e eu passar mal com aquilo. Meu estômago era burguesinho demais
para certos alimentos.
— Agora, bebe, vai...
Droga.
O fitei sobre o balcão, com a minha melhor cara de desconfiança, e, tomando coragem,
não sabia de onde, o puxei, segurando-o com uma das mãos.
Cheirei e...
Engoiei.
Argh!
— Que nojo, Rayka! O cheiro é horrível! Você só pode tá me trollando!
Ela, por sua vez, cerrou os olhos para mim.
— Não estou, Victoria. Foi preparado com muito carinho. Beba.
Bufei e, como uma criancinha mimada, fiz um bico, cruzando os braços.
— Só se você beber comigo.
Rolou os olhos.
Um sorrisinho nascendo nos cantinhos da sua boca.
Desgraçada bonita dos infernos.
— É você que está doente, não eu.
— Mas, você tem que me dar um apoio moral, poxa! Afinal, a ideia dessa gororoba foi
sua!
Rayka, então, quase me assustando, ergueu uma das sobrancelhas para mim, desafiadora, e
perguntou:
— Se eu beber, você promete que bebe?
Pela milésima vez naquela manhã, engoli seco.
Eu meio que não tinha escolha, né?
— Prometo.
A palavra quase não saiu, mas respondi.
Dessa vez, sorrindo ainda mais largo, ela balançou a cabeça de leve e, enquanto pegava
um copo, enchendo-o de gosma também, sibilou:
— O que eu não faço por você, hein?
— Foi você que inventou, ora.
Riu.
— Tá, vamos lá. No três, bebemos juntas, ok?
Ai, minha deusa.
— Ok.
Eu estava suando frio.
— Um, dois, três.
Foi automático. Rayka, a bonitona, virou o copo daquela coisa ruim como se estivesse
bebendo água, enquanto eu, enjoada, mesmo tapando o nariz para não sentir o cheiro, ainda tive
ânsia umas três vezes até conseguir virar tudo por completo.
Argh, que nojo!
Larguei o copo em cima do balcão, respirando fundo para não colocar tudo pra fora.
No fim, Rayka ainda bateu palminhas para mim.
— Olha só... Estou muito orgulhosa de você!
— Vai se ferrar. Eu posso vomitar a qualquer momento.
Ela riu.
— Veja pelo lado bom, logo estará recuperada do resfriado!
Suspirei.
— Assim espero.
Percebi, no entanto, quando o seu sorriso diminuiu um pouco e o seu olhar se tornou, de
repente, um tantinho mais intenso. Ela deu a volta no balcão e se aproximou ainda mais de mim.
Porém, foi quando os seus dedos tocaram o meu rosto, que a minha respiração travou um pouco,
e eu até me esqueci do enjoo por alguns instantes.
Cada parte de mim, em um súbito estado de alerta.
Deslizando sobre a minha bochecha até alcançar o meu pescoço, Rayka fez um carinho ao
ponto de todos os pelinhos dos meus braços se eriçarem. E, então, com a voz comedida, calma e
absolutamente macia, ela falou:
— Sobre o que aconteceu de madrugada, eu queria dizer que...
— Rayka, meu amor! — tia Daisy, subitamente berrou ali, ao abrir a porta e enfiar sua
cara para dentro, só para dizer. — Vem logo pra cá e arrasta a Victoria! Estamos só esperando
vocês para o almoço! E saiba que estamos morrendo de fome!
Quase pulei de susto, com a sua voz repentina.
Meu coração, que já estava acelerado, faltou saltar pela garganta.
Ainda ouvi, porém, a garota sibilar baixinho um “merda”, ao revirar os olhos.
— Um segundo, mãe! — gritou de volta.
— Nem um segundo! Agora!
— Droga... — suspirou, em puro desânimo, e, então, virou o olhar novamente para mim.
— Depois a gente conversa com calma, tá? Vamos?
Puxei o ar, tentando recuperar minimamente o fôlego.
— Vai lá... Diz pra eles que podem ir almoçando... Eu vou só... — tentar colocar a cabeça
no lugar. — Trocar de roupa.
Na verdade, eu só precisava de um pouco de espaço para respirar. Enquanto a bomba
coloridona tirou o meu estômago do lugar, Rayka tirou o meu juízo dos eixos.
Aliás, não somente ela, mas o beijo dela, a forma como estava me tratando agora, e,
principalmente, a maneira involuntariamente amigável como eu estava lidando com ela, desde o
que aconteceu. Eu nunca fui voluntária ou involuntariamente simpática com a Rayka. Isso, pra
mim, também era novo tanto quanto era esquisito. Contudo, um esquisito aparentemente
inevitável. De alguma forma, parecia haver uma força maior do que eu, me impelindo a ser legal.
Confuso demais.
Algo dentro de mim parecia querer mudar, ainda que eu não soubesse identificar
exatamente o que era. A única certeza que eu tinha era de que existia uma tonelada de coisas que
eu precisava processar e pensar com muita calma.
— Tudo bem... — sorriu de leve, mas, antes de ir embora, eu ainda vi. Vi perfeitamente a
olhada que ela deu na direção da minha boca, como se, no fundo, bem no fundo, esperasse por
algo. Algo de mim. — Te vejo lá fora.
Passando a língua entre os lábios, no entanto, ela completou e saiu.
Quando me vi, enfim, sozinha ali, permiti me desmanchar um pouco. Soltei tudo o que eu
estava prendendo e respirei fundo, apoiando as mãos sobre o balcão, ao baixar a minha cabeça.
Eu me sentia zonza, aérea, sempre que me lembrava do beijo. Eu não tinha um manual de
como agir com ela dali pra frente.
Rayka ia querer mais beijos.
E o pior: eu sabia que eu também ia querer.
Só que... A que custo?
Não que eu gostasse de admitir isso, mas existia muita coisa em jogo. A minha vida
inteira estava em jogo, e tudo o que eu pensei, imaginei e idealizei sobre mim um dia. Se a
minha avó soubesse do que tinha acontecido, ela ia me queimar viva.
E ainda tinha...
Ainda tinha o tal do Maverick.

✽ ✽ ✽

Bom, eu não sabia se era realmente pela bomba da Rayka ou se a vida só estava querendo
enfim, depois de tanta humilhação, me dar uma mãozinha. À tarde, lá pelas quatro horas, bem
depois do almoço, eu realmente estava me sentindo melhor do resfriado. Quase completamente
bem mesmo.
As dores no meu corpo melhoraram e o meu nariz tinha decidido parar de querer fazer
cosplay de cachoeira.
No jardim dos Ferris, os coroas ainda faziam churrasco, enquanto a galera mais jovem
jogava vôlei. Quanto a mim, eu permanecia sentadinha em uma cadeira de praia, tomando um
suquinho de laranja na sombra. Era o melhor que eu podia fazer, afinal, depois de uma manhã
cheia de indisposição viral.
Eu não fazia ideia de onde aquela gente conseguia enfiar tanta carne, mas, desde cedo, a
churrasqueira permanecia ligada. E detalhe: sem previsão de encerramento. Tia Daisy era a única
com as suas águas medicinais e alimentos veganos. Rayka... Brincava, correndo e pulando, feito
uma criança, com os seus primos pelo jardim. Os diabinhos que, felizmente, já não pareciam tão
diabinhos quanto no Dia de Ação de Graças de dois anos atrás.
Até cheguei a pensar que em nada eles tinham mudado, mas, aparentemente, os seus
olhares de ontem à noite para mim eram apenas de pura curiosidade. Nada como uma tarde
inteira de jogos, churrasco e água de mangueira que refrescava o calor, para perceber que, graças
à deusa, assim como se esperava do sentido natural da vida, eles pareciam ter evoluído
mentalmente.
— Hey, querida! — papai exclamou para mim, a certa distância. Ele não saía do lado da
churrasqueira. — Está gostando?!
Sorri.
— Está maravilhoso, papai! — e ergui o meu copo de suco, como um aceno para ele.
Dessa vez, por incrível que pudesse parecer, não foi como uma das minhas respostas pré-
prontas e politicamente corretas, em que eu nunca falava a verdade por pura educação. Não. Era
estranho reconhecer isso, mas eu realmente estava curtindo ficar ali. Quero dizer, só de eu não
estar mais resfriada, era ótimo. Fora isso, porém, tinha mais alguma coisa. Charleston tinha mais
alguma coisa.
Uma energia diferente.
Algo parecido com liberdade.
De repente, a minha atenção foi completamente atraída para um vendaval caótico que se
posicionou bem ao meu lado.
Rayka.
Ofegante, empolgada, divertida, livre, leve.
Solta.
Ela exclamou:
— Ei! Se levanta daí! Bora jogar?! — e, então, começou a me cutucar com os dedinhos
frenéticos por todas as partes das minhas costelas, irritantemente brincalhona.
Rayka parecia tão estranhamente à vontade comigo. À vontade de um jeito como jamais
esteve. Diferente da maioria das vezes em que a sua tentativa de intimidade comigo era
puramente cara de pau, com o único objetivo de me tirar do sério, agora não parecia nada mais
do que natural. Natural tanto de mim quanto dela.
No fundo, por mais esquisito e novo que fosse, tinha um certo cheiro de início de...
Amizade.
— Ai, para! Tá fazendo cócegas! — comecei a gargalhar.
Ela, no entanto, ainda continuou mais um pouco, se divertindo.
— Sua idiota! — entre risos incontroláveis e mãos que tentavam impedi-la, exclamei.
— Adoro quando me chama de idiota, é tão fofo — zoou, enfim desistindo das cócegas.
— Vem jogar com a gente?! Você já está ótima! Eu disse que a minha receita era boa!
Soltei uma risadinha, balançando a cabeça de leve.
— É... Mas não fique se achando.
— Ih, tarde demais, já tô mó convencida... — respondeu ela, sorrindo feito imbecil.
— Boba...
— Vem... — e tentou me puxar pela mão.
— Não, pode ir, eu fico aqui olhando. Ainda não estou completamente cem por cento. É
melhor não forçar.
— Ahhh, já sei. Saquei. Você quer ficar me olhando, né? — ironizou, cara de pau. —
Entendi.
Rolei as orbes para ela, que já se afastava, caminhando de costas, estupidamente
charmosa, enquanto não parava de me fitar.
— Como se você fosse grande coisa.
— Então, é assim? — ergueu uma das sobrancelhas para mim, quase desafiadora, ao passo
que um sorrisinho arteiro se desenhava em seus lábios.
Ridiculamente linda.
Virando-se para os seus primos que faziam parte do seu time, bateu palmas, chamando a
atenção deles, e, então, formou uma rodinha como se estivesse combinando alguma coisa a
respeito do jogo.
Quando menos esperei, porém, depois de alguns minutos, a rodinha se desfez e Rayka
simplesmente tirou a camisa que vestia, jogando-a para mim. Ficou apenas top, enquanto a roupa
caía bem no meu colo.
Meu queixo despencou, ainda que eu tentasse disfarçar.
Fiquei vermelha de surpresa, enquanto os outros riam da sua ousadia e da minha total
timidez, incluindo o meu pai e a tia Daisy. Seus primos também acharam graça, mas logo se
concentraram no jogo. Ela, por sua vez, faceira, soltou uma piscadinha de olhos para mim e,
então, charmosa, ajustou o elástico do short sobre os seus quadris bem desenhados e sacou a bola
de vôlei.
Mesmo ainda tentando não parecer uma completa idiota avoada, só por ela ter jogado sua
camisa suada nas minhas pernas, não pude deixar de observá-la. Eu não queria deixá-la ainda
mais convencida do que já era, mas, inevitavelmente, todos os seus detalhes não me deixavam
olhar para nenhum outro ponto, daquele jardim enorme e cheio de gente, que não fosse ela.
Era tudo. O pacote inteiro.
O seu sorriso fácil e absolutamente bonito. A simpatia e a gentileza que eu sempre tive
ranço, mas que, agora, estranhamente não despertavam em mim nada mais do que admiração. As
brincadeiras que ela tirava com todo mundo. O jeito leve como agia. Os high-five sempre que o
time marcava pontos. Os risos que soltava junto com os primos, a cada vez que alguém fazia um
lance engraçado.
De vez em quando, eu até me pegava sorrindo, sem querer, com as suas risadas.
Droga.
Eu estava me tornando tão frouxa.
E, ainda que eu fizesse um esforço para parar, eu continuava olhando. Sorrindo.
O jeito como pulava para defender a bola. Os seus cabelos curtos que voavam junto com
ela e com o vento. Os fios que se agarravam à sua testa, graças ao suor que escorria. As gotículas
que deslizavam pelo seu pescoço, seguindo pela clavícula, e se depositavam bem dentro do top.
Engoli seco.
O top. Os peitos pequenos e bonitos que o preenchiam. As tatuagens pelo corpo. A maldita
serpente cuja cabeça eu nunca conseguia ver o final, porque sempre ficava depois dos limites do
cós da frente de qualquer roupa que vestia. As pernas que se moviam dentro do short curto e
frouxo de praia. A forma como a roupa pendia sexy sobre os seus quadris.
Suspirei.
Viajando.
Viajando por um universo paralelo onde, no meio daquele jardim enorme, só existia eu,
sentada na cadeira de praia, observando-a jogar, e mais ninguém.
Ninguém.
Por um segundo, um breve, rápido e ínfimo segundo, eu até pude ouvir algum sussurro na
minha consciência. Um sussurro quase inaudível e impossível de discernir, mas que no fundo,
quem sabe bem no fundo, estivesse me dizendo que eu era, sim, capaz de reconhecer que estava
gostando de...
TRIIIM!
Quase caí da cadeira.
Juro que quase caí, dura, de susto com o toque do meu celular, avisando que uma
mensagem tinha chegado.
Por um instante, senti como se eu tivesse sido pega no flagra de um crime.
O crime de secar a Rayka.
Droga. Era nisso que dava uma hétero ficar secando mulher.
Respirei fundo, balançando a cabeça em negativo para mim mesma. O meu coração, tão
acelerado, quase saindo pela boca. Tentando recuperar, pelo menos, um por cento do meu
equilíbrio, puxei o celular para mim, visualizando a sua tela.
Porém...
Havia realmente um grande porém.
Nem todas as minhas tentativas de manter a calma ou de fazer eu me desligar do resto do
mundo, enquanto vivia aquele sonho utópico demais de Charleston, seriam capazes de me
preparar previamente para aquilo.
Era a minha avó.
Grace.
Os meus batimentos cardíacos aceleram outra vez, com um gatilho. Ela era como um
gatilho para o meu nervosismo. Sempre foi. Bastava qualquer mínima menção direta ou indireta
a ela, para que o meu estado de espírito já não fosse mais o mesmo. Sobretudo, nos últimos
tempos. A nossa relação não era das melhores, desde o episódio da minha foto seminua. Eu sabia
que ela ainda não tinha engolido isso. Grace, que nunca foi a pessoa mais carinhosa do mundo,
parecia ainda pior.
E eu senti, senti perfeitamente, antes mesmo de ler o que ela tinha escrito na mensagem,
todo o castelo de areia que eu tinha construído, a muito custo, para acreditar que em Charleston
eu estava em um lugar onde tudo era possível, onde eu podia errar sem pensar nas
consequências, onde eu podia gostar do que não me cabia, onde eu podia admirar uma mulher
sem peso na consciência, começar gradativamente a ruir.
Grão por grão de areia, ele foi caindo.
Os meus olhos arderam e se encheram d’água, sem eu nem mesmo saber da sua primeira
palavra. Talvez porque eu já tivesse uma noção do que podia esperar. Afinal, eu sabia quem era
Grace. Eu a conhecia desde que abri os meus olhos pela primeira vez, ao sair da barriga da minha
mãe. As histórias que me contaram eram de que ela foi realmente a primeira pessoa que eu vi.
Nem o meu pai, nem a minha mãe. Mas, Grace. Eu estava nos seus braços, recém-nascida,
quando os meus olhos se abriram.
E eu tive a confirmação do que já esperava, quando li a sua mensagem. Ou melhor, o seu
textão:

“Eu não concordei com essa viagem fora do período de férias, mas o seu pai é tão
teimoso quanto você. Espero que não faça nenhuma besteira por aí. Já bastam todas as outras
das últimas semanas, que eu ainda estou digerindo.
Bom, falei com o Duncan Bailey, o reitor da Rhode Island School, e ele me disse que pode
conseguir uma vaga para você ministrar aulas numa das disciplinas de escultura
contemporânea e também se tornar uma restauradora sênior no grupo seleto deles de
restauração de obras de arte raras.
Inclusive, ele até abriu a possibilidade de você se transferir da Universidade de Miami e
concluir os estudos lá, antes de assumir os trabalhos, o que eu acho uma ótima ideia. Afinal, a
Rhode School é uma das escolas de artes mais renomadas dos Estados Unidos. Estar lá vai te
fazer crescer ainda mais profissionalmente.
Com certeza, isso seria o que a sua mãe faria. Aliás, esse é o seu sonho, não é, Victoria?
Então, espero que faça por merecer. Você sabe que a Rhode School não aceita qualquer um
para ser aluno e muito menos para trabalhar lá. Cuide da sua imagem e do nome que carrega.
Lembre-se de quem você é, Victoria.”

Quando terminei de ler, senti como se o peso do mundo inteiro tivesse caído sobre os
meus ombros.
“Espero que não faça nenhuma besteira por aí. Já basta todas as outras das últimas
semanas, que eu ainda estou digerindo.”
“Com certeza, isso seria o que a sua mãe faria.”
“Esse é o seu sonho, não é, Victoria?”
“Cuide da sua imagem e do nome que carrega.”
“Lembre-se de quem você é, Victoria.”
A Rhode School esteve na minha vida desde o início da minha adolescência. Aliás, da
minha infância. Ainda no colegial, passei a ter aulas particulares de artes com professores de lá,
que a minha avó contratou, para que eu me tornasse mais uma artista da família.
Trabalhar na Rhode School era um sonho da minha mãe. Um sonho que ela teria seguido
se, uma semana antes de se mudar para Providence com o meu pai e eu, ela não tivesse
descoberto o câncer de mama. Agora, acho que era o meu sonho também.
Pelo menos, eu o tomei para mim, quando me dei conta de que o certo seria seguir todos
os passos que a minha mãe não conseguiu dar.
Eu precisava dar esse orgulho a ela.
Eu precisava fazer isso por ela, por nós.
Eu precisava ser... Victoria Peterson.
Quase sem conseguir me controlar, como se as palavras da minha avó tivessem me feito
enxergar tudo o que eu deliberadamente decidi parar de ver desde a madrugada, passei uma das
mãos nos olhos e empurrei o nó que me subia pela garganta, tentando, ao máximo, fingir que
lágrimas estúpidas já não estavam caindo.
Foi como um soco de realidade, duro e forte. Grace tinha a capacidade de me bater a
quilômetros de distância, mesmo sem encostar um dedo sequer em mim. Bateu na minha alma,
me lembrando de coisas que não deveria me dar ao luxo de esquecer.
Suspirando, quando consegui erguer novamente o rosto para o jogo, Rayka já não me
parecia mais a mesma. Aliás, nada parecia como antes. Quero dizer, o vôlei era o mesmo, os
garotos continuavam correndo de um lado para o outro, os mais velhos ainda se divertiam no
churrasco, mas... De repente, o sol não parecia tão brilhante quanto estava até um minuto atrás, o
jardim não estava mais tão verde, e Charleston já não tinha mais o mesmo cheiro de liberdade.
Era como se eu tivesse subitamente caído na real.
Não que a Rayka tivesse mudado, de fato. Ela continuava exatamente do mesmo jeitinho.
Rindo, se divertindo, pulando para defender a bola com o short sexy que pendia sobre o seu
quadril. Linda. Era o meu olhar sobre ela que tinha mudado. As minhas orbes estavam cobertas
de realidade. Uma infeliz realidade. Ao mesmo tempo que eu ainda a achava tão bonita, eu me
perguntava “o que você está fazendo da sua vida, Victoria?”.
Eu tinha que parar com isso.
Sim, por mais que eu só quisesse continuar, eu tinha que parar.
Era loucura me deixar ser envolvida por ela. Uma completa loucura.
Rayka era um erro.
Rayka me distanciava de quem eu era, de quem eu deveria ser.
Rayka colocava para fora uma Victoria que não deveria existir. Pelo bem de tudo o que a
minha família esperava de mim, não deveria existir.
Rayka fazia eu me esquecer de mim, dos meus princípios, das coisas que eu aprendi, de
tudo o que eu deveria ser e fazer, e de todos os objetivos que já tinham traçado para mim.
Rayka...
“É uma péssima influência para você.”
Pude ouvir claramente a voz da minha avó, me dizendo isso, há sete anos, quando Rayka
tinha acabado de pôr os pés na nossa casa de praia.
De repente, os meus batimentos cardíacos tomaram um ritmo ainda maior, as minhas mãos
congelaram, os meus pulmões quase se fecharam sem ar. Parecia um súbito ataque de ansiedade.
Pânico. E, então, a minha memória foi bombardeada por inúmeros outros terríveis comentários
seus:
“Ela não é uma menina normal, ela é lésbica.”
“Estar perto dela e ser amiga dela, pode passar uma falsa impressão de que você é
alguém como ela. Uma lésbica.”
“Você não é lésbica, Victoria. Você é uma Peterson.”
Um soluço rompeu a minha garganta, sem precedentes, e eu simplesmente não pude
continuar ali. Com um impulso fugaz, me levantei da cadeira de praia e, sem olhar para ninguém
ou ao menos me certificar de que eu realmente estava passando despercebida, a passos rápidos e
largos saí daquele lugar.
Fugi na mesma velocidade com que as lágrimas malditas começaram a cair.
Eu não queria que alguém me visse naquele estado.
Eu não queria chorar na frente das pessoas.
Aliás, eu não queria chorar de jeito nenhum, mesmo que a vontade estivesse forte demais
para segurar.
As Peterson nunca choravam, afinal.
Corri para o motorhome em busca de ar.
Eu só precisava... Respirar.
Eu só precisava de fôlego, ainda que estivesse difícil demais puxar o ar para dentro dos
meus pulmões.
Quando abri a porta e me vi, enfim, sozinha, ao contrário do que eu esperava, o choro não
parou, muito pelo contrário, ele só desceu com ainda mais intensidade. Chorei copiosamente,
como uma criança. Um bebê recém-nascido, que não tinha a menor noção do quanto o seu
escândalo poderia chamar a atenção das pessoas.
Chorei por tudo, por absolutamente tudo.
Chorei por mim, por ela. Chorei pelas vontades que eu tinha e não deveria ter. Chorei pela
minha família, pela minha avó. Chorei pela minha mãe. Chorei pela pessoa que eu tinha certeza
que ela gostaria que eu fosse. Chorei por estar me tornando alguém completamente diferente.
Chorei por ser mulher. Chorei por não ter nascido homem. Chorei por saber que, se eu fosse
homem, a maioria daquelas coisas seria mais fácil pra mim. Chorei por não ter sido capaz de
segurar a porcaria dos meus desejos naquela praia. Chorei por me importar com ela, por sentir
atração por ela. E chorei, principalmente, por estar me sentindo inteiramente confusa por causa
dela.
Confusa da cabeça aos pés.
Apenas chorei.
Chorei.
Chorei.
Chorei até achar que já não existia mais água suficiente para sair, e, ainda assim, continuei
chorando.
Só que aí, em meio às milhares de lágrimas, eu vi... Quando olhei para onde eu dormia
antigamente, bem ali, perto da sala de estar, eu vi o local onde o material de trabalho da tia Daisy
estava e me lembrei.
Me lembrei de mais uma coisa que eu não deveria ter me esquecido.
A pergunta que ainda estava sem resposta.
A questão em aberto.
O ponto sem nó.
A conversa inacabada.
A promessa de que algo diferente, enfim, aconteceria na minha vida.
A minha derradeira esperança de que eu pudesse dar certo com alguém que não era uma
mulher.
Maverick.
Sim, Maverick.
Maverick tinha que ser um cara.
Um homem.
Um bom homem, daquele exato tipo que a minha avó vivia falando.
Um homem que me valorizasse diferente da maioria de todos os outros que já cruzaram o
meu caminho.
Sim, Maverick.
Ele precisava ser alguém possível pra mim.
Alguém que me fizesse esquecer dela.
Alguém que me fizesse esquecer dela.
Respirei fundo, decidida, e, então, esfregando as costas das mãos no rosto, para limpar
todas as lágrimas estúpidas e impertinentes, caminhei, obstinada, a passos largos e rápidos, até o
cômodo que a tia Daisy havia transformado em escritório.
Dessa vez, eu estava cega, completamente cega de medo, de receio que alguém me
encontrasse. Eu só queria uma resposta. Apenas uma resposta que me salvasse de todo o
pesadelo. Sem pensar na possibilidade da Daisy me encontrar de novo ali, sem nem cogitar
quaisquer outras possibilidades, a não ser, enfim, saber a verdade, fui direto no local que eu tinha
certeza de que o papel estava.
A justa pasta que eu peguei na noite anterior.
Eu nem me dei ao trabalho de olhar em outros lugares. Fui exatamente nela, como quem já
conhecia aquilo assim como a palma da própria mão.
Com o coração acelerado, a respiração completamente ofegante, e a maior vontade de toda
a minha vida de conhecer alguém, abri a pasta na penúltima aba de plástico, onde estava a folha,
cujo título era “Controle de duplas - Desenvolvimento de história de amor”.
Quando deslizei o papel e busquei pelo meu nome, porém...
Foi tão rápido quanto assustador, o chão se abriu sob os meus pés, em um breve e simples
piscar de olhos. Se antes, com a mensagem da minha avó, as coisas ao meu redor já pareciam ter
ruído, agora, então, não restou mais nada. Nada. Tudo, à minha volta, só pareceu, de repente,
nada mais do que uma grande e absurda mentira.
Com os ombros subindo e descendo, num ritmo frenético, enquanto, em silêncio, eu pedia
aos seus céus para que isso não passasse de um enorme engano, um mal-entendido, os meus
olhos se cobriram de lágrimas outra vez e, então, eu ouvi:
— Hey, Vic? Eu te vi correndo pra cá. Parecia estranha. Fiquei preocupada. Aconteceu
alguma coisa?
Era ela.
Era a sua voz.
Sua voz macia e... Traiçoeira.
Mentirosa.
Tantas, tantas, tantas coisas, ainda mais confusas do que antes, passavam tão rápido pela
minha cabeça, que eu não era nem capaz de distingui-las.
Parecia tudo um bolo de decepção.
Decepção com tudo, mas, principalmente, comigo.
Decepção por ser tão burra.
Apenas, com os olhos banhados em lágrimas, levantei o meu rosto lentamente para ela,
ergui o papel, com as mãos absolutamente trêmulas, e, sem ao menos saber como fui capaz de
pronunciar aquelas palavras, questionei:
— Será que pode me explicar o que significa isso?
PESSOAS PERFEITAS NÃO SÃO
PRECONCEITUOSAS

“Eu amo e odeio ao mesmo tempo, você e eu bebemos o veneno da mesma vinha”
Daylight | David Kushner

VICTORIA

Rayka segurou a folha. Seu semblante parecia curioso e confuso, ao mesmo tempo. Porém,
eu vi... Eu vi, apesar dos olhos cheios d’água, o exato instante em que o vinco na sua testa se
formou e o seu rosto empalideceu. Ela se deu conta do que era aquilo. Eu sabia que sim.
Miserável. A única palavra que rompia agora os meus pensamentos, a respeito dela, não era
outra, era apenas essa: miserável.
Eu, que já estava chorando por absolutamente tudo, até um minuto atrás, não fui capaz de
segurar mais um soluço. Lágrimas incansáveis escorreram enquanto uma das minhas mãos foi à
boca, na tentativa de impedir a mim mesma de continuar aquele show. Uma tentativa totalmente
frustrada.
Me senti enganada.
Feita de palhaça, depois de ter acreditado em algo que não existia.
Quase traída.
E, então, fiz o que eu mais odiava: chorei na sua frente.
Fui fraca, fui tola. Deixei que aquela gota d’água terminasse de derrubar o copo que já
estava transbordando. Eu fui tudo, menos a Victoria Peterson que eu deveria ser. Aliás, há
semanas, desde que ela colocou os pés em Miami, eu já não estava mesmo cumprindo o meu
papel.
Uma vergonha. Uma completa vergonha.
Chorei por tudo. Chorei por todas as outras coisas que eu já estava chorando, e, agora, por
mais. Era como se tudo o que eu tivesse segurado bem dentro de mim, durante os últimos dois
anos, aliás, durante os últimos sete anos, tivesse encontrado uma rota de saída fugaz, veloz.
Apenas lágrimas que sempre quiseram liberdade.
Chorei por não ser um grande mal-entendido, como eu tentei imaginar. Chorei por não ser
impressão minha. Chorei por entender a razão dela saber sobre a caneta da sorte. Chorei porque,
agora, eu não tinha mais uma distração, uma tábua de salvação. Eu não tinha mais quem tirasse
ela da minha cabeça. Chorei porque, no fim das contas, a única pessoa que conseguiu chegar
perto de preencher os meus pensamentos com coisas não relacionadas a ela, era ela mesma.
Chorei por ter sido burra.
Completamente burra.
Mesmo com a quantidade de pensamentos que se embolavam na minha cabeça, se eu bem
parasse para juntar todas as peças agora, encaixando evidência por evidência, coincidência por
coincidência, a minha frustração comigo mesma se tornava ainda maior, porque Maverick, ainda
que apenas por palavras escritas, era inteiramente a Rayka.
Sim.
O jeito de falar.
A conversa.
Até a maldita cara de pau.
Tudo.
A burra fui eu.
Eu quis me cegar para algo que estava tão claro e cristalino, bem na frente dos meus olhos.
Eu quis me iludir. Sim, eu quis. Eu quis acreditar que Maverick, apesar de louco, podia ser o
príncipe, no cavalo branco, pronto para me salvar de mim mesma.
Burra.
Só que, ainda assim, mesmo que eu já estivesse me sentindo um completo lixo, acima de
tudo eu chorei por ter a certeza absoluta de que nunca escaparia dela, porque…
Eu sempre, sempre, sempre me apaixonaria por ela, até quando ela não era ela.
Até quando ela não era ela.
E me sentia tão, tão, tão confusa por isso, por tudo. Confusa com os meus próprios
sentimentos, com as minhas ações. Eu não sabia mais o que pensar, eu não sabia o que fazer.
Talvez eu estivesse agindo apenas instintivamente.
Puro instinto de alguém que só queria sobreviver.
— Vic, pelo amor de Deus, não fica assim — tentou se aproximar rapidamente, tocando o
meu rosto com uma das mãos. — Eu posso explicar.
No entanto, mais uma vez, instintivamente, empurrei o seu braço, me afastando. E, então,
colocando para fora, agora com palavras verbalizadas, a minha frustração, disse:
— Você me enganou? — enruguei a testa, encarando-a completa e profundamente
magoada. Uma mágoa que talvez eu nunca tivesse sentido em toda a minha vida. — Você é o
Maverick e me enganou durante todo esse tempo?
Ela suspirou.
Seu olhar vacilando em uma preocupação que não me convencia.
— Eu não enganei você, Victoria. Eu juro que não te enganei.
— Como não? — ofegante, com a voz embargada, devolvi.
E, então, tensa, aturdida, ela tentou se aproximar novamente. Eu, no entanto, dei dois
passos para trás, deixando muito claro que não queria que ela encostasse um só dedo em mim.
Não suportaria senti-la, no estado em que eu estava.
— Eu juro, Victoria. — encarou o fundo dos meus olhos. Suas orbes brilhavam, úmidas,
densas. — Eu juro pra você, do fundo do meu coração, que eu não te enganei. Eu jamais te
enganaria. Tudo, TUDO o que eu falei para você, naquelas cartas, é a mais pura verdade. Não
existe uma só palavra minha que não tenha sido verdadeira, Victoria!
Dessa vez, não aguentei, o bolo de pura confusão que subia pela minha garganta, junto
com o choro, explodiu.
— Você se aproveitou! — exclamei, com tantos sentimentos se revirando, dentro mim,
que eu não era capaz de distingui-los. — Se aproveitou do trabalho, se aproveitou daquele
péssimo momento da minha vida, para brincar com a minha cara mais uma vez. Você sempre
brinca com a minha cara! — e, em um tom mais baixo e decepcionado, sustentando seriamente o
seu olhar, completei. — Típico de você.
— Não foi brincadeira nenhuma, Victoria! Escuta o que eu tô dizendo. Confia em mim,
pelo menos uma vez! — repentinamente, me segurou pelos ombros. Lágrimas também
ameaçavam descer dos seus olhos. — Eu só disse tudo o que eu realmente sinto por você. Tudo o
que eu sempre quis ter a oportunidade de dizer a você. Tudo o que você nunca me deixou falar.
Tudo o que você nunca me deixou falar...
Por um segundo, eu senti. Algo dentro do meu peito estúpido se contraiu. Mais lágrimas
brotaram dos meus olhos, ao ter um pequeno e ínfimo vislumbre de sinceridade. Uma
sinceridade um tanto… Dolorosa de ouvir, de saber, de entender. Algo perigoso. Algo que
poderia baixar a minha guarda bem ali.
Entretanto...
Não.
Pressionei a mandíbula, fechando os meus punhos e me revestindo de toda a força que
precisava para não cair nos seus pés outra vez. Eu não podia me deixar levar pela sua conversa,
pelo jeito manso com o qual tocava o meu coração, pela sua teia pegajosa e difícil de escapar. Já
bastava o quanto me deixei ser envolvida de todas as formas por ela. A minha vida estava uma
completa bagunça por causa dela.
— Me solta! — empurrei-a mais uma vez, me desvencilhando das suas mãos. — Não me
importa o quanto você tente, Rayka. — entredentes, completei. — Nada do que você me diga vai
mudar o fato de que eu fui enganada. Eu me abri pra você! — lágrimas escorriam só de eu
mencionar isso. — Eu te contei coisas! Contei coisas que eu não falo para ninguém e que
certamente não teria dito, se eu soubesse que era você!
— Victoria... — puxou o ar, insatisfeita, inconformada. — Você sabe... Era a regra do
trabalho! Eu não podia te falar que Maverick sou eu!
Ah, por favor!
— Mas eu não me lembro da Daisy ter dito que “dar em cima do seu colega de dupla”
também era uma maldita regra desse trabalho!
Nesse momento, o corpo dela retesou. Rayka, enfim, se calou ao me encarar. Na verdade,
comprimida, ela ainda tentou balbuciar algo, mas logo suspirou, como se tivesse perdido as
palavras na ponta da sua língua.
Tudo o que tinha a dizer, pareceu evaporar bem na sua frente.
E, então, quando lágrimas silenciosas desabrocharam, ela baixou o rosto.
Ela sabia que eu tinha um ponto.
Ela sabia que eu poderia estar errada sobre muitas outras coisas, mas, sobre isso, eu estava
certa.
Passei a língua entre os lábios, levando as mãos à cabeça e girando sobre os meus pés,
completamente sem rumo. Depois de alguns segundos sem qualquer resposta sua, porém, ainda
que eu estivesse tateando a situação e descobrindo pouco a pouco o que fazer, aquela coisa que
se revirava dentro de mim, inquieta, não me permitiu deixar de jogar na sua cara:
— Viu? O seu silêncio é a resposta. Você sabe, Rayka. Você sabe que errou! — apontei o
dedo. — O que você estava esperando? Que eu fosse cair nos seus braços completamente
apaixonada pelas suas palavras, quando descobrisse, no fim do trabalho, que Maverick é você?
Pelo amor de Deus!
Com o rosto abaixado, ainda calada, ela passou os dedos sobre os olhos, como se estivesse
enxugando algo. E, então, quando ergueu as orbes para mim de novo, fui eu que
involuntariamente estremeci. Dessa vez, era ela que estava carregada de ressentimento.
— Você me beijou na praia, Victoria — sussurrou, tão cheia de mágoa.
Engoli seco, vacilando por um instante.
— Não sei onde eu estava com a minha cabeça quando eu fiz isso.
A resposta simplesmente saiu dos meus lábios, como se tivesse vida própria.
No entanto, eu vi. Ao escutar a minha voz pronunciar isso, eu vi o exato momento em que
os seus olhos se tornaram oceanos profundos de pura decepção. Mesmo que eu não quisesse,
alguma parte de mim, que não era completamente formada pelo meu lado racional, quis vacilar
outra vez.
Era por tudo, mas principalmente pela tristeza, pela mágoa, e por tantas outras coisas
juntas, que nunca vi nas suas íris voltadas para mim.
Algo me dizia que eu a feri.
Suguei o ar, tentando me revestir de força novamente, ainda que agora estivesse um pouco
mais difícil.
— Você vai negar que queria? Vai negar que estava com vontade de me beijar? —
estreitou os olhos cheios d’água em minha direção. — Em nenhum momento eu te forcei. Você
fez porque quis. Você fez porque se sente atraída por mim, Victoria. — e, gradativamente, a sua
voz foi aumentando de tom.
Mas, isso, só me deixava ainda mais agoniada, porque, no fim das contas...
Eu sabia que era verdade.
— Cala a boca!
Ela, no entanto, continuou, entredentes.
A fúria absolutamente comedida, mas assustadora.
— Você se sente atraída por mim, sim, Victoria. E o problema disso tudo, não é eu ter te
“enganado” — fez aspas com os dedos. — Nem ter te feito acreditar que o Maverick era outra
pessoa. O problema é outro. E é um só. O problema é que eu não sou um homem. Não é? O
problema é que eu não tenho um pau.
Que inferno.
Agoniada, com o coração começando a latejar na minha garganta, me virei, desviando o
olhar, desviando o meu corpo, desviando tudo o que estivesse direcionado a ela. Comecei a
caminhar freneticamente, dentro do motorhome. Eu precisava de ar. Eu precisava respirar.
— Fala, Victoria! — exclamou, me fazendo tremer. — O problema é que o Maverick não
é um cara. Se ele tivesse um pau entre as pernas, eu tenho certeza absoluta de que você, agora,
não pensaria duas vezes em ficar com ele! Porque você está muito mais preocupada com a sua
imagem do que com o que realmente quer. O problema é que eu não tenho a porra de um pau
para que você possa encher a boca, por aí, dizendo que está com um cara! Pega mal ficar com
mulher, né?
Eu não aguentei.
Era demais pra mim.
— Para de falar! Eu não quero mais ouvir isso! — explodi, me virando subitamente para
ela, no meio do motorhome, com o rosto banhado e os olhos vermelhos. — Quer saber, Rayka?
Num universo muito paralelo, você até poderia conseguir alguma coisa de mim, se fosse honesta!
Juro que, nessa altura, eu já nem sabia direito o que estava falando.
— E você, Victoria? — cerrou os olhos em minha direção. — Por acaso, você é honesta
consigo mesma?
Por que essa desgraçada sempre conseguia me pegar com as calças abaixadas?
— Eu já disse que não menti em uma palavra sequer daquelas cartas e tenho a minha
consciência tranquila sobre isso — continuou ela. — Mas, se você realmente quer honestidade,
comece por si mesma! Comece aceitando que nega a si, todos os dias, quando deseja uma
mulher, mas se recusa a isso em nome de uma perfeição que não existe! Seja sincera consigo
mesma ao ponto de cair na real de que ser uma garota exemplar e ter o cara dos sonhos não é
sinônimo de perfeição. Sabe por que, Victoria? — apertou os olhos para mim outra vez. —
Porque pessoas perfeitas não são preconceituosas! Enquanto você continuar sendo podre por
dentro, nunca vai chegar perto de nem um por cento da perfeição que tanto almeja!
Foi como mais um soco na minha cara.
Só que, dessa vez, não era a minha avó quem me dava. Era a Rayka.
Na verdade, parecia uma ordem natural na minha vida: quando não era uma, era a outra.
Quando não era a minha avó, era a Rayka. Cada uma de um lado, lapeando a minha alma à sua
maneira. Elas não tinham os mesmos pensamentos, a mesma cabeça, mas sabiam usar as
palavras certas para me sovar em tentativas de me convencer de qual era o lado certo da história.
No meio das duas, porém, estava eu, só recebendo as bordoadas.
Pessoas perfeitas não são preconceituosas...
Enquanto você continuar sendo podre por dentro, nunca vai chegar perto de nem um por
cento da perfeição que tanto almeja...
Suas palavras duras e ríspidas não paravam de se repetir freneticamente na minha
memória. Eu quis desmoronar outra vez. Mas, com mais uma dose de choro entalada na
garganta, pressionei a mandíbula e tudo o que existia por dentro de mim, me forçando a não
derramar mais uma lágrima sequer na sua frente.
Bastava.
Eu já estava cansada.
Cansada daquilo.
Cansada de ouvi-la.
Exausta de ser jogada de um lado para o outro, sem saber o que realmente fazer da minha
vida.
Eu só queria ficar em paz.
Sozinha.
Subitamente, me virei, sem dizer mais nada, e, quase correndo, subi as escadas do
motorhome. Ainda ouvi, porém, quando ela estalou a língua no céu da boca e sibilou, consigo
mesma, algo como “que merda”. Não demorou mais que meio segundo para que ela fosse atrás
de mim, exclamando:
— Vic! Espera... Vamos conversar direito. Espera, Victoria!
Segurou-me pelo braço.
No mesmo segundo, entretanto...
— Me solta! — em um sopapo, me libertei da sua mão.
Ela engoliu seco, como se tentasse empurrar algo difícil pela garganta. Me observava com
tanta contrição. Seus olhos quase tão molhados quanto os meus.
— A gente tá só se machucando — sussurrou.
E, pela primeira vez, eu fui capaz de concordar com ela.
Nós estávamos apenas nos machucando mesmo.
— Por favor, não venha atrás de mim — retruquei. — Eu preciso ficar sozinha. Eu preciso
pensar sobre tudo isso, sozinha.
Foi só o que eu disse, subindo para o segundo andar do motorhome e deixando-a no meio
das escadas.

RAYKA

Eu sempre achei que Victoria e eu não tínhamos uma boa relação. Nunca tivemos, na
verdade, a não ser nos três primeiros dias em que nos conhecemos. Ela foi legal comigo,
simpática, e aí, depois disso, eu não sei o que houve, Victoria mudou completamente e se tornou
a garota intragável que, até hoje, ela era.
Ainda assim, mesmo com todo o histórico nem um pouco favorável que nós tínhamos,
nada, absolutamente nada chegava perto daquela tarde no motorhome.
Foi o nosso pior momento.
E não me restava a menor dúvida disso.
Parecia que eu estava prevendo isso, quando me martirizei umas dez milhões de vezes,
com a consciência totalmente pesada, por não conseguir parar de flertar com ela, enquanto
mandava as cartas como Maverick. Aliás, eu não precisava ser nenhuma adivinha para saber que
essa seria exatamente a reação da Victoria. Exceto pelo milagre da praia, que eu realmente ainda
não sabia como ela teve a capacidade de criar coragem para me beijar, considerando o quanto era
covarde para admitir que sentia vontade, a garota sempre me tratou como se eu tivesse uma
espécie de doença contagiosa.
Entretanto, apesar de todos os pesares, durante aquelas últimas semanas, pareceu mais
forte do que a minha própria razão, a vontade de finalmente poder conversar com ela, do jeito
que eu sempre quis, e lhe falar coisas que eu sempre desejei. Mesmo tentando impedir a mim
mesma e me convencer de que eu estava arriscando demais o meu rabo, não fui capaz de parar.
Cada resposta sua, bem desenhada com uma letra tão bonita, era como um jorro de motivação
para que eu continuasse lhe escrevendo, na expectativa de repetir a sensação fascinante de
receber uma carta sua de volta.
Na verdade, eu me sentia mesmo arrasada.
Estúpida.
Fraca por não ser capaz de controlar os meus próprios instintos.
Eu tinha uma política de não me envolver com garotas hétero-curiosas exatamente por
causa disso. Era uma maneira de me proteger de dores de cabeça, de possíveis frustrações. Mas,
a pior de todas era exatamente aquela que eu nunca fui capaz de tirar dos meus pensamentos,
nem durante sete anos, nem depois de dois anos em um intercâmbio cheio de europeias querendo
transar comigo.
A única hétero-curiosa de quem eu mais deveria me proteger, era justamente aquela de
quem eu não conseguia fugir, desapegar, esquecer.
E o resultado da minha teimosia, agora, era esse.
Victoria passou todo o restante da viagem sem falar comigo. Aquele ínfimo e breve
vislumbre, pela manhã, depois do beijo, de que poderíamos finalmente começar uma relação
saudável e amistosa, evaporou por completo. Isso era uma das coisas que mais me doía. Eu não
me arrependia das palavras que lhe escrevi, todas foram absolutamente verdadeiras, mas me
sentia frustrada por não poder segurar a sua mão outra vez, como fizemos ao descer para a
cozinha, ou por não ver mais os seus sorrisos bonitos e sinceros para mim, como no jogo de
vôlei.
Era como se, a cada passo que a gente avançava, algo sempre nos fizesse retroceder três.
Talvez esse fosse, na real, o karma a que Victoria se referia.
Ela só não estava agindo como se eu não existisse, porque eu via, eu percebia claramente o
jeito inquieto e atrapalhado sempre que eu estava perto. Ela me sentia, me notava. Não estava
indiferente a mim. Mas, me odiava. Sim, inegavelmente estava enfurecida comigo.
E, confesso, eu também não podia negar que não fiquei aborrecida com certas acusações
suas, sobretudo com as palavras pesadas que usou, como quem literalmente cuspia no prato que
tinha acabado de comer.
Não me descia a sua audácia de dizer que não sabia onde estava com a cabeça quando me
beijou na praia. Foi, sim, inegavelmente surpreendente, mas ela queria. Ela queria sim. A forma
como os seus braços se arrepiou ou como os seus mamilos se eriçou, a cada vez que eu deslizava
os dedos sobre a sua pele, não era por causa da chuva ou do frio. O jeito como me olhava, cheia
de tesão, também não. Era porque queria, porque estava com vontade.
Ainda assim, não fomos capazes de passar vinte e quatro horas em paz, uma com a outra,
conseguimos a façanha de nos machucar, quando eu tinha certeza de que tudo o que a gente mais
queria era transar.
Victoria falou palavras duras a mim.
E eu sabia que também tinha falado palavras duras para ela.
Mesmo que a minha intenção terminantemente não fosse feri-la, acabamos nos
machucando.
Não apenas ela destilou a sua decepção. Eu também não fiquei isenta disso.
Talvez eu pudesse ter medido as palavras, dito certas coisas de uma maneira menos
ofensiva, mas... Ah, que droga. Eu não era exatamente capaz de agir como a pessoa mais racional
do mundo quando, mesmo com a sua cara estampando todo o seu desejo, ela simplesmente
mentia e agia como se realmente fosse a garota mais hétero do mundo, como se nunca tivesse
sentido vontade de me beijar.
E isso, nem de longe, era o tipo de relação saudável que eu tanto almejei viver com
alguém um dia.
Eu gostava, sim, da Victoria.
Na verdade, eu era louca por ela.
E eu seria até capaz de... Ah, meu Deus. Eu seria capaz de namorá-la se ela se permitisse a
isso e deixasse de ser tão complicada.
No entanto...
Antes de qualquer coisa, a gente tinha que consertar a nossa relação, porque não dava para
se viver em pé de guerra com alguém por quem se era apaixonado.
O que a gente vivia não era, e nunca foi, nem um pouco saudável.
Por isso, para evitar que nós disséssemos ainda mais palavras desnecessárias com a cabeça
quente, no calor do momento, deixei que ela realmente ficasse sozinha. E ela ficou. Sozinha, na
dela. Pelo menos, enquanto os nossos pais não estavam por perto. Sempre que eles apareciam, eu
percebia que Victoria tentava fingir que estava tudo bem, ainda que não direcionasse o seu olhar
para mim uma única vez. E, então, quando eles se afastavam outra vez, ela voltava à sua redoma
de silêncio.
Nós permanecemos assim até voltarmos, um dia depois, para a fraternidade.
O clima estranho, entre nós, permaneceu o mesmo, ou, na verdade, até piorou, depois que
pusemos os pés na Casa das Minervas e retornamos às nossas “posições sociais” de origem.
Tudo em seu devido lugar outra vez. Menos o meu coração. Esse ainda estava machucado,
preocupado, enquanto o que aconteceu às cinco horas da manhã, em North Beach, naquele
feriado, parecia, cada vez mais, se tornar apenas um sonho distante, muito distante.
Nós chegamos depois de meio-dia. Victoria passou por mim com o seu típico nariz
empinado, se trancou no seu quarto, e lá ficou por tempo indeterminado. Ainda ouvi quando ela
disse para as garotas que queria descansar, pois estava exausta da estrada, mas eu sabia que ela
só não estava bem pelo que tinha acontecido na viagem.
Confesso que também fiquei o dia inteiro no meu quarto, tentando colocar a cabeça no
lugar. Só tentando mesmo, porque conseguir era outra história. Meus pensamentos voaram a
todo instante, indo e voltando, repetindo por um milhão de vezes todas as cenas do feriado em
que estivemos juntas, especialmente o beijo na praia, a briga no motorhome, e o intervalo de
tempo entre esses dois momentos.
O intervalo de tempo em que, por algumas horas, eu, tola, achei que as coisas poderiam
começar a ser diferentes entre nós.
Burra.
Você é tão burra, Rayka.
E deveria parar de pensar nessa menina.
Ela é só problema para a sua vida.
Só problema.
Mas...
Ah, que caralho!
Me empertiguei sobre a cama, pela milésima vez naquele dia, bagunçando todos os
lençóis, enquanto, feito louca, eu simplesmente não conseguia parar, a cada vez que virava o
meu rosto, assim como estava fazendo agora, e olhava fixamente para a parede conjugada dos
nossos quartos, imaginando como ela poderia estar do outro lado, ou, pior, sonhando em poder
conversar com ela, em beijá-la de novo.
Isso não era saudável para mim. Eu sabia que não.
Eu precisava parar com isso.
Era questão de necessidade. De dignidade.
Eu tinha que deixar de ser uma otária por ela.
Eu precisava de...
Repentinamente, o meu celular tocou bem nos meus ouvidos, sobre o travesseiro. Quase
dei um pulo de susto, tão imersa nos meus pensamentos como eu estava. Mas, suspirando e
voltando ao mundo real, nem que fosse na marra, por causa da ligação, peguei o celular e atendi,
sem nem olhar o nome que aparecia na tela.
— Fala.
— Oi, vagabunda. Por que volta de viagem e não avisa aos amigos, hein? Só soube que
vocês já tinham chegado porque a Brittany me disse.
Era a Alyssa.
Puxei o ar, esfregando uma das mãos no rosto, para tentar raciocinar sobre algo que não
tivesse a ver com a garota mais complicada de toda a face da Terra.
— Foi mal, gata — repliquei, me esforçando para parecer irônica como eu naturalmente
era. Se eu agisse assim, talvez ela não desconfiasse que eu estava numa fossa podre e imunda. —
Eu tava meio cansada, se liga? Muita estrada. Passei a tarde deitada.
— Ai, pelo amor de Deus, reage — disse ela. — Já dormiu demais. São oito horas da
noite. Bora dar um rolê? Brittany falou que abriu um pub irado na Ocean Drive.
Oito horas da noite?
Arqueei as sobrancelhas e só então olhei para a janela, me dando conta de que realmente já
tinha escurecido e de que passei o dia inteiro vegetando por causa de uma filha da puta. Que
merda.
— Não se cansou de comer a Brittany? Que milagre. Você sempre se cansa das garotas.
— Não tem como se cansar daquela menina, Rayka.
— Hummm, surpreendente... Deve ser boa de cama mesmo — zoei de leve.
— A melhor com quem já transei, na verdade — respondeu ela. — Agora, presta atenção,
escuta. Estamos indo para o novo pub. Jeff também vai com uma menina aí que ele começou a
ficar. Acredite se quiser. Sim, tem uma doida ficando com o Jeff. E Brittany me falou que vai
chamar a Victoria também. Não que eu faça questão de que aquela garota fresca venha com a
gente, mas já que elas são melhores amigas, eu meio que não tenho “lugar de fala” para
discordar.
É... Aparentemente, todo mundo estava conseguindo alguém.
Até que seria bom sair para esquecer dos meus problemas, SE o maior problema de todos
não fosse junto. Aliás, eu duvidava muito que a Victoria aceitasse ir. Eu conhecia aquela garota
mais do que gostaria. Porém, pelo sim ou pelo não, era melhor que eu nem pensasse em colocar
o meu cavalinho na chuva. Não queria correr o risco de entrar em mais alguma confusão com
ela, como acontecia na maioria das vezes em que estávamos perto uma da outra. Já bastava.
Além do mais, eu não estava com a menor vibe para festas.
— Valeu pelo convite, Alyssa. Mas, sério, eu ainda estou exausta da viagem. Foram nove
horas de estrada, a gente saiu de madrugada de lá. Tô morrendo de sono e pretendo dormir até o
horário que eu tiver que ir pra aula amanhã.
Não, eu não estava com sono, porque a merda dos meus pensamentos não me deixava nem
descansar, mas essa foi a melhor desculpa que eu consegui.
— Ah, como você é chata, vai se foder! Eu nunca te pedi nada, Rayka... Vamo com a
gente.
— Tô falando pra ti... Os meus olhos estão pesando. Capaz de eu dormir no rolê.
— Deixa de ser filha da puta.
Suspirei.
Eu também já conhecia bem demais a Alyssa e sabia que, se eu continuasse negando, ela
iria insistir até que eu fosse obrigada a aceitar. Por isso, eu precisava usar outra estratégia.
— Tudo bem, eu vou dar uma pensada aqui e te aviso.
Só ouvi a respiração pesada dela, do outro lado.
— Acho bom que essa pensada termine com você indo ao pub. Senão, vou invadir essa
fraternidade de bonequinhas plastificadas e arrastar você pelos cabelos até lá.
Soltei uma risadinha de leve.
— Beleza. Vai lá. Depois te ligo.
Quando desliguei o celular e olhei para os lados, me percebendo sozinha outra vez, senti o
meu pequeno sorriso gradativamente desaparecer. Ainda que eu não quisesse sair para uma festa
ou que Alyssa fosse irritantemente insistente, era bom ter alguém com quem falar. Pelo menos,
funcionava como uma distração para que eu não encarasse fixamente aquela bendita parede
conjugada outra vez, assim como eu já estava fazendo agora, e imaginasse o que existia do outro
lado.
Como ela estava.
O que fazia.
Ou se estava pensando em mim do mesmo jeito como eu não parava de pensar nela.
Que merda.
Balancei a cabeça em negativo, fechando os olhos e esfregando-os com uma das mãos.
Quando os abri novamente, porém, a sensação de vazio ao meu redor, naquele maldito quarto,
parecia ainda maior.
Era real: eu precisava de alguém.
Eu tinha que conversar com alguém, antes que realmente enlouquecesse. Uma pessoa
madura. Alguém com quem eu pudesse expor aquilo, sabendo que receberia de volta bons
conselhos. Alguém que não fosse me julgar.
Honestamente, eu nem precisava pensar muito para ter a certeza de quem seria essa
pessoa, mesmo que eu corresse o risco de levar umas boas bofetadas na cara, quando revelasse o
que tinha acontecido.

✽ ✽ ✽

Peguei o meu skate e fui. E não, eu não estava no tal novo pub da Ocean Drive, assim
como também não iria atender as outras quinhentas ligações da Alyssa, ainda que ela me
assassinasse no dia seguinte, por causa disso. Na verdade, era por volta das nove horas da noite e
eu estava de frente para a mansão dos Peterson.
Respirando fundo, certa do que eu queria, percorri todo o enorme jardim da frente e
apertei a campainha da porta gigante de pé direito duplo. No segundo toque, fui atendida. Dessa
vez, não foi Bernardine quem me recebeu, foi exatamente ela. Exatamente quem eu queria.
Minha mãe.
Às vezes, eu tinha mesmo a impressão de que ela adivinhava tudo sobre mim. Era como se
sentisse o meu cheiro de longe, ou como se soubesse quando eu estava precisando de alguma
coisa. Uma espécie de sexto sentido maternal.
— Ah, querida, que surpresa te ver aqui! — seu sorriso foi enorme. — Nem um dia se
passou, desde que chegamos, e você já está com saudade da mamãe? — soltou uma risadinha. —
Venha, entre!
Abriu ainda mais a porta, liberando o caminho para mim.
Cruzando o seu caminho, me forcei a sorrir de volta, mesmo que este não alcançasse os
meus olhos do mesmo jeito que os dela alcançavam.
— Oi, mãe.
Ainda que eu tentasse, não estava conseguindo ser tão simpática quanto ela.
— A que devo a honra da sua visitinha, meu amor? Aconteceu alguma coisa? Esqueceu
algo no motorhome?
— Não, eu não me esqueci de nada... — a não ser do meu juízo, que certamente foi
perdido em alguma parte da estrada entre Miami e Charleston. — John está em casa?
Foi quando eu vi que o seu cenho franziu de leve, provavelmente estranhando a minha
pergunta.
— Sim, mas está no escritório... Por quê?
Porque eu queria uma conversa a sós.
— Será que a gente pode conversar no seu quarto?
O vinco na sua testa se tornou maior.
Mesmo assim, ainda respondeu, solícita:
— Claro, vamos.
Subimos as longas escadarias, rumo ao seu quarto, enquanto eu pensava na melhor forma
de dizer aquilo. Não que eu achasse que ela fosse fazer uma tempestade em copo d’água por
causa do que houve, mas eu não descartava a possibilidade das bofetadas, considerando o quanto
ela deixou claro, na última vez, que eu deveria tomar muito cuidado para não machucar a
Victoria.
E, bem, talvez eu realmente tivesse machucado-a.
Estávamos as duas feridas, na verdade.
Eu e ela. Ninguém saiu ileso da situação.
— Você está me preocupando, amor — soltou uma risadinha, ao abrir e fechar a porta,
mantendo a discrição que ela, com certeza, tinha sacado que eu queria. — Venha, sente-se aqui...
— apontou para o lado vazio na cama, onde ela já estava.
Assim o fiz.
Calada, ainda imaginando como contaria o que tinha acontecido, eu estava quase
chegando à conclusão de que não existia uma maneira melhor do que, de fato, ser direta. Claro
que eu não diria sobre a parte da Victoria ter descoberto que o Maverick era eu. Isso apenas
tornaria as coisas mais complicadas, já que não restaria a menor dúvida à minha mãe de que
infringimos uma regra do trabalho. Ou seja, eu não queria mais essa preocupação na cabeça
agora.
Era melhor que ela ficasse sem saber sobre a parte do Maverick.
— Será que dá para me dizer o que está havendo? — perguntou ela. Um leve tom de
impaciência no ar. — Está querendo matar a sua mãe do coração? Sei que faço meditação três
vezes ao dia, mas infelizmente não estou livre de paradas cardíacas.
Puxei o ar e, encarando o fundo dos seus olhos, enfim, falei:
— Preciso de algum conselho.
— Conselho? Sobre o que?
Mordi o lábio inferior, um tanto apreensiva.
— Promete que não vai me matar?
Seu olhar, no entanto, tornou-se ligeiramente sério.
— O que você aprontou dessa vez, Rayka?
Droga.
— Promete, mãe? — fiz uma forcinha para insistir.
Ela suspirou.
— Me diga logo, Rayka.
Ai, era agora.
Quase fechei os olhos, apenas esperando o seu tapa na minha cara. E, então, como quem
tirava um Band-Aid de uma só vez, esperando que, assim, doesse menos, simplesmente despejei
as palavras numa velocidade que eu mesma me assustei:
— Victoria e eu nos beijamos.
A bomba foi lançada.
— Vocês... — sibilou, boquiaberta. — Vocês se beijaram?
— Unhum... — balancei um sim com a cabeça, meio apreensiva. — Vai me matar por
causa disso?
— Aaaaahhhh, que LINDAAASS! — ela berrou.
Espera aí.
Pisquei os olhos repetidas vezes.
Lindas?
— Então... Não vai me matar?
— É claro que não, meu amor! Pelo amor de Ganesha, eu jamais faria isso! — riu. —
Quero que me conte tudo! Onde foi, quando foi, como foi. Vamos! Quero todos os detalhes! —
empolgada, só faltou bater palminhas.
— Mamãe... — tentei falar.
Porém...
— Ai, vocês são lindas demais! — ela não parava de falar, completamente entusiasmada.
— E formam um casal tão maravilhoso! Jamais imaginei que Victoria também ficasse com
garotas, mas que bela surpresa!
Suspirei.
— Pois é, mamãe, o problema está aí… Ela não fica. — sorri amarelo. — Eu sou tipo um
experimento pra ela, sabe?
Dessa vez, vi quando o seu sorriso alegre vacilou.
— Experimento? — confusa, perguntou.
— Sim... — era péssimo definir a si mesma dessa forma, mas, no fim das contas, essa era
a verdade. Eu era um experimento para a Victoria. — Não se lembra quando me falou, nesse
mesmo quarto, antes da viagem, para eu ter cuidado com a Victoria? Pois é. Ela ficou meio
surtada por causa do beijo, sabe? — e por causa do Maverick também, mas isso não vinha ao
caso agora. — Sério, mãe, ela está pior do que sempre foi comigo, e eu não sei mais o que fazer.
Agora, mais comedida e cautelosa, ela me encarou e perguntou:
— Como foi isso, querida?
— Nós nos beijamos na praia, em North Beach. Na verdade, foi ela quem tomou a
iniciativa do beijo. A Victoria realmente parecia estar com vontade. Ela me puxou e
simplesmente tascou a boca na minha, mas... — soprei o ar pesado dos meus pulmões, cansada.
— Acho que ela não soube lidar tão bem com a realidade, depois que a ficha caiu e se deu conta
de que tinha beijado uma garota.
Mamãe suspirou, analisando atenciosamente o caso.
— Então, ela quis te beijar e depois ficou com peso na consciência?
— Tipo isso... — respondi em total desânimo. — Agora, não está mais nem falando
comigo. Disse que precisava ficar sozinha, que tinha que pensar. Sei que tenho que respeitar o
momento dela, mas... Ah, que droga! — estalei a língua no céu da boca. — O silêncio dela é
ensurdecedor. Eu sinto a merda de uma ansiedade o tempo inteiro. Ansiedade para falar com ela,
ansiedade para me entender com ela, ansiedade para saber como ela está. Eu... Eu gosto dela,
mãe. Você sabe.
— E ela também gosta de você. — um sorrisinho ameaçou cruzar os seus lábios outra vez.
— Gosta? — enruguei a testa, pouco certa disso.
Desejo ela até poderia sentir, mas, sobre “gostar”, eu tinha as minhas dúvidas.
— Gosta sim, querida. Nunca percebeu que o problema da Victoria é a avó que tem?
Victoria é uma ótima menina e tenho certeza de que ela seria um doce, se a avó não estragasse.
Sei que tento manter a cortesia com a Grace, mas não posso me cegar ao fato de que ela tem um
ideal de educação terrível. Victoria cresceu e foi ensinada com noções muito deturpadas sobre a
vida. E eu tenho certeza absoluta de que a situação seria ainda pior, se ela não tivesse o John para
dar um equilíbrio a todos os absurdos da avó.
Meu cenho continuava franzido.
— Tem certeza, mãe? Tem certeza de que o único problema da Victoria é a avó que tem?
Não será que é porque ela realmente é complicada demais? Ou o pior tipo de pessoa por quem eu
poderia me apaixonar? Se a Victoria realmente gostasse de mim, mãe, se ela gostasse de verdade,
eu tenho certeza de que não teria Grace no mundo que a fizesse mudar de ideia. Ela ficaria
comigo independente de qualquer coisa.
— Você aprendeu isso aonde, querida? Nos filmes? — soltou uma risadinha de leve,
balançando a cabeça.
O vinco na minha testa, porém, se tornou ainda maior.
— O que está querendo dizer com isso?
— Acorda, meu amor. Isso aqui é a vida real. Não tente romantizar algo que não é
exatamente romântico. Imagine só se você tivesse passado a vida inteira sendo ensinada e
principalmente cobrada a fazer determinada coisa, enquanto pessoas esperam que você
realmente cumpra com o esperado. E, então, de repente, você percebe que as coisas não são bem
assim e que o que você quer, de verdade, é algo completamente diferente do que os outros
querem pra você. Como lidar com o fato de negar tudo o que você foi ensinada e deixar para trás
coisas e pessoas que, até então, eram absolutamente importantes para você?
Senti um leve baque surdo na minha cara, com as palavras da minha mãe.
Era como se, pela primeira vez, desde que Victoria e eu começamos aquele rolo há dois
anos, ou melhor, há sete anos, os meus olhos estivessem se abrindo.
— Você experimentou um mínimo disso, durante a pré-adolescência, com a família do seu
pai — continuou ela. — Me lembro das inúmeras vezes em que você chegou em casa chorando e
me perguntando por que não conseguia ser igual às suas primas, que adoravam se maquiar e usar
seus vestidos floridos para impressionar os garotos, enquanto eu tentava te explicar que você não
precisava ser igual a ninguém. Você não era como elas, nunca foi e nunca vai ser. Mas, tentaram
te enfiar numa caixinha que não te cabia. Felizmente, você logo entendeu que não veio ao mundo
para cumprir com as expectativas de ninguém, além das suas. Mas, a Victoria... A Victoria está
presa em uma caixinha muito dura e engessada, desde que nasceu. Consegue perceber isso,
Rayka?
Baixei a cabeça involuntariamente, esfregando uma das mãos nos olhos e respirando
fundo. Uma sensação ruim e esquisita demais começou a me subir pela garganta. Me parecia
remorso. Remorso de mim mesma, do que eu fiz. No fundo, eu já sabia de tudo isso o que a
minha mãe estava falando, mas as coisas pareciam ainda mais claras e cruéis com a sua voz.
Eu me lembrava perfeitamente da sensação de vazio que eu senti, e de solidão também,
mesmo que eu estivesse rodeada de pessoas. Não importava a quantidade de gente que estivesse
comigo, eu continuava me sentindo sozinha naquela época, porque a real era que eu estava
distante da pessoa mais importante pra mim: eu mesma.
Talvez a Victoria estivesse passando, agora, pelo mesmo que eu passei há quase dez anos.
— Estou sendo estúpida, não é? — ergui novamente o rosto para ela.
— Não exatamente... Você e a Victoria não estão isentas. As duas estão errando, enquanto
tentam achar o caminho de fazer a coisa certa. E o pior é que a vida é exatamente assim.
Só que eu não queria continuar errando...
— O que eu devo fazer agora, mãe?
— Ter paciência e esperar. Esse é o melhor conselho que eu posso te dar. Se a Victoria te
pediu um tempo, dê esse tempo a ela, meu amor. Dê espaço para que ela possa pensar. Sei que
você deve ter ficado meio magoada com toda a situação. Mas, tente imaginar como está a cabeça
dela agora. Victoria está precisando lidar com muitas questões ao mesmo tempo. Existe você de
um lado, existe a avó do outro. E ela está bem no meio, como um cabo de guerra. Victoria só
precisa colocar a cabeça no lugar. Logo ela vai tomar a decisão correta do que fazer.
Suspirei, tentando engolir aquele bolo que ainda queria subir pela minha garganta.
— Talvez me manter quieta e esperar pelo tempo dela seja tão complicado quanto a
própria situação, mas eu vou fazer o possível.
Mamãe, por sua vez, segurou as minhas mãos, carinhosa.
— Fique tranquila, meu amor, é só questão de tempo. Algo me diz que logo vocês vão se
acertar.
ENERGIA SAPATÔNICA

“Meu coração escolheu você”


You’re The One That I Want | Lo-Fang

VICTORIA

Depois que eu me acordei de uma longa noite de sono repleta de pesadelos, onde uma
canibal miserável, comedora de mulheres, cujos braços eram completamente tatuados, enfiava a
boca entre as minhas pernas (foi terrível, ter-rí-vel, juro que não me acordei toda molhada), eu
quis sumir, ao me dar conta de que não poderia passar mais um dia enfurnada entre os lençóis,
apenas vegetando.
E o meu sonho realmente era passar mais um dia inteirinho vegetando na cama, em vez de
me levantar, vestir a minha falsa capa de Peterson inabalável e ir para uma sala de aula onde eu
teria que dar de cara com a razão do meu colapso. Talvez eu ainda não estivesse preparada para
olhar na sua cara, depois de tudo o que houve no mundo paralelo de Charleston.
Tudo o que aconteceu naquele lugar, nos últimos dias, era como um borrão bizarro e
estressante para mim. Às vezes, nem parecia real. Eu juro. Mesmo me esforçando, eu não tinha
processado todas as informações. Pelo menos, não por enquanto. Havia muito o que engolir.
Especialmente o meu veneno.
Ainda assim, respirando fundo e fazendo o que eu fazia de melhor, ou seja, fingir que tudo
estava absolutamente bem e que eu nunca tive problema algum na vida, reuni todos os meus
melhores ângulos de nariz empinado e saí da fraternidade, caminhando de queixo erguido por
todo o campus da universidade, sob os meus saltos de oito centímetros. Mesmo que o meu
Porsche ainda estivesse amassado e destruído no fundo do quintal ridículo de um mecânico
qualquer, eu jamais desceria dos meus Louboutin.
Afinal, era o que diziam: pensamentos positivos atraem coisas positivas.
Provavelmente, esse ditado era a maior balela da face da Terra, mas eu precisava de
qualquer besteira que fizesse eu me iludir e não parecer uma completa fracassada do jeitinho
como eu fiquei no meu quarto da fraternidade, durante as últimas vinte e quatro horas.
Mentalizando todas as positividades mais tóxicas do mundo coaching, coloquei um sorriso
no rosto, como se eu fosse a pessoa mais simpática do universo, e fui.
A vida era linda.
A vida era bela!
A vida era ma-ra-vi-lho-sa.
Aquele era um novo dia.
E eu estava preparada para uma nova fase, longe de qualquer sapatão metida a gostosa,
mentirosa e traiçoeira!
Eu era praticamente uma nova mulher!
Porém...
Quando eu estava depositando o meu celular no baú, bem na entrada da sala de aula,
conforme regra sumariamente estipulada pelo papai...
— E aí, bebê, finalmente decidiu sair do túmulo e dar as caras na universidade? — em um
solavanco, Brittany interceptou o meu caminho, quase me fazendo tropeçar sobre ela, ao esticar o
braço e alcançar a caixinha de correio ao lado do baú. — Já pegou a sua cartinha de hoje? Essa
tua madrasta inventa cada coisa. — riu de leve, balançando a cabeça.
Bufei, por ter quase largado a cara no chão, graças ao encontrão nada sútil da garota. E eu
já ia lhe dando uma resposta muito malcriada, quando fui subitamente parada pela minha própria
estupidez. Bastou eu vê-la puxar o bilhete da sua dupla, para o meu corpo retesar.
E eu não precisei me esforçar para isso. Ou melhor, o meu esforço, na real, foi para barrar
os meus pensamentos. Não consegui, óbvio. Parecia mais forte que a minha razão o fato de que
eu, em menos de meio minuto, apenas com a visão da sua mão enfiada na maldita caixa de
correspondências, fui bombardeada com um zilhão de lembranças, ao mesmo tempo.
Os bilhetes.
Os meus bilhetes.
As nossas conversas.
“Você vale a pena, Victoria.”
“Cara, você dá de mil a zero em todas as outras garotas que já cruzaram o meu caminho.
E não, eu não estou tentando puxar o seu saco. Só estou literalmente babando mesmo por você.”
“A terceira e última curiosidade, mas não menos importante, muito pelo contrário, a mais
importante, é que eu sou muito a fim de uma certa garota de cabelos longos, castanho-escuros e
lindos, coxas grossas, cintura fina e rosto de princesa. Você sabe quem é ela, não sabe?”
“Não sou de prometer muitas coisas, nem de ficar fazendo propaganda das minhas
habilidades, só que eu tenho a impressão de que ela teria muitos momentos felizes (e gostosos)
comigo.”
Maverick.
Rayka.
Droga, droga, droga.
Pressionei a mandíbula, irritada comigo mesma. Irritada pela mistura de raiva que eu ainda
sentia dela com... Com... Sei lá, mais alguma coisa. A merda de alguma coisa que me causava
uma sensação de vazio no peito, sempre que eu me dava conta de que provavelmente não
receberia mais as suas cartas.
Merda...
Merda, merda, merda.
Eu não parava de pensar em palavrões ultimamente.
Que diabos estava acontecendo comigo e com o meu vocabulário impecável e
maravilhoso?!
Isso só podia ser obra maligna da Rayka na minha vida.
Bufei.
O fato era que, por mais que eu odiasse admitir esse tipo de coisa, nada no mundo
conseguiria apagar o quanto aquela desgraçada me fez rir e sorrir, apenas com aquela sua
conversinha miserável de meia tigela. De algum modo (eu só podia estar muito carente
ultimamente, era a única explicação), ainda que agora isso me parecesse mentiroso demais, ela
fez eu me sentir... Especial. Ridiculamente especial.
Eu ficava esperando pelas suas respostas.
E me sentia ansiosa por causa disso.
Então, agora, mesmo que isso fosse completamente estúpido e não fizesse sentido (sim,
não fazia o menor sentido), algo lá dentro, bem no finalzinho do meu peito, quase dobrando na
última esquina da minha alma, sentia o início de uma... Falta.
Em vez de eu ficar feliz porque a desmascarei e não seria mais enganada e feita de otária
pelos seus planos sujos e desprezíveis, a real era que existia um vazio totalmente ridículo e
irracional em mim, por saber que tudo aquilo provavelmente tinha acabado.
Eu só podia estar muito maluca mesmo.
Balancei a cabeça em negativo.
Porém...
Quando assim o fiz, a minha consciência, de repente, estalou. Uma questão absurda
sobreveio os meus pensamentos, e o vinco que se formou na minha testa foi enorme, tanto por
pensar nisso quanto por me importar com isso.
Será...?
Será que acabou mesmo?
Será que ela...?
Era como se os meus pensamentos, sem autorização, tivessem criado vida própria. E,
então, uma curiosidade impertinente cresceu dentro de mim.
— Iiiihh, o que foi? — ainda ouvi quando, desconfiada, Brittany falou ao meu lado. — Tá
olhando como se tivesse ouro nessa caixinha idiota de jardim de infância.
Sua voz, porém, parecia tão distante, enquanto a minha cabeça não parava de formular
possibilidades.
Suspirei.
Não se importe com bobagens, Victoria.
Não se importe com bobagens.
Não se importe com bobagens.
Repeti isso por um milhão de vezes, em silêncio, me forçando a apenas seguir direto para
dentro da sala de aula, me sentar em uma das cadeiras e agir como se nunca tivesse existido, na
face da Terra, qualquer Maverick idiota que mandava cartas idiotas e fazia garotas idiotas rirem.
Porém...
Quando dei por mim, eu já estava empinando o nariz e tentando disfarçar, de alguma
mísera forma, a minha gigantesca e irracional ansiedade, para saber se ainda tinha algo para
mim, se ela ainda havia deixado alguma carta. Puxei o ar, como se, por dentro, eu não estivesse
surtando feito uma miserável ansiosa, ou como se a coisa mais banal do mundo fosse abrir
aquela caixinha, e, então, enfiei a minha mão lá dentro, sem saber se pedia à deusa para me
deixar menos imbecil ou mais hétero.
Olhei carta por carta.
Fucei.
Revirei.
Tentei achar qualquer porcaria que tivesse a ver com “Victoria”.
Mas...
No fim das contas, não tinha nada.
Nada para mim.
Fechei a caixa em um solavanco, pressionando a minha mandíbula, enquanto uma
sensação incontrolável de irritação e desapontamento me descia pela goela. Era até válido que eu
ficasse aborrecida comigo mesma, por não conseguir largar essa minha fase tenebrosa de
imbecilidade por causa de uma sapatão. No entanto, jamais concordaria em ficar desapontada por
não ver mais uma das suas cartas mentirosas ali para mim.
Não concordaria.
Mas, fiquei.
Involuntariamente, fiquei.
Que saco!
Por que eu tinha que sentir falta de alguém que não merecia?
Me empertiguei, estalando a língua no céu da boca.
— Você tá estranha hoje... — Brittany resmungou. — Aliás, não só hoje. Você tá estranha
desde que voltou. Ficou o dia todo enfurnada no quarto. Sério que a viagem foi tão cansativa
assim?
— Cala a boca, Brittany — sem paciência, não com ela, mas comigo mesma e com aquele
bolo de coisas confusas dentro de mim, a puxei pelo braço, para enfim nos sentarmos em alguma
cadeira. — Acho que estou de tpm.
— Que novidade, amiga... Você vive em uma eterna tpm.
E eu já ia revirando os olhos para dar a resposta malcriada que ela merecia desde que
esbarrou em mim, quase me fazendo cair no chão, quando, subitamente, travei outra vez.
Digo, os meus pés milagrosamente continuaram caminhando, mas todos os meus
pensamentos pararam só para vê-la. A sapatão canibal. Bem ali, sentada no lado esquerdo da
sala, enquanto sorria e conversava com a Alyssa, tão despreocupada e tranquila, como se não
tivesse acabado comigo há dois dias.
Tentei desviar o olhar e virar o rosto em outra direção. Eu quis até ter dado um tapa na
minha cara, para ver se eu acordava, de uma vez por todas, daquela energia sapatônica, e deixava
de ser tão otária, mas não deu. Não rolou. Assinei o meu atestado de incompetência.
A minha consciência ainda quis gritar coisas como:
Ela é uma mentirosa!
Men-ti-ro-sa!
Te enganou, brincou com a sua cara e com os seus sentimentos.
Mas...
No fundo, bem no fundo, eu só conseguia reparar, que nem uma imbecil, no quanto ela
parecia ainda mais bonita que o normal, naquela manhã, e no quanto eu continuava
completamente doente por ela.
Era como se pisar no meu coração fizesse bem para o viço da sua pele.
Maldita.
Eu, definitivamente, ainda não estava preparada para vê-la de novo. E não me enganei no
momento em que pensei sobre isso, antes de sair do quarto da fraternidade. Minha cabeça não
estava em pleno funcionamento para lidar com ela e com o seu ridículo sorriso bonito. Não
mesmo.
Porém, foi quando ela, ainda conversando com a Alyssa, displicentemente virou o rosto na
direção onde eu estava e me viu, que eu senti como se a minha barriga estivesse se contorcendo
em um milhão de voltas. Cara, o frio foi grande. Gigantesco, gelado. Uma sensação de
nervosismo que só aquela terrorista conseguia causar em mim.
E o pior: eu nem sabia por que diabos estava me sentindo assim, se eu tecnicamente não
devia nada a ela.
Porém, Rayka, cujos sorrisos pareciam leves até um segundo atrás, bastou me ver para
mudar o semblante. E a minha respiração vacilou quando os seus olhos escuros, sérios e
charmosos em um grau estúpido atravessaram os meus. Dessa vez, eu passei muito perto de
realmente travar por completo, até as pernas, que nem uma idiota no meio da sala, se Brittany,
dois segundos depois, não tivesse estalado os dedos bem nas minhas fuças, me acordando.
— Mas que cacete, hein? — balançou a cabeça em negativo. — Quê que deu em você
hoje? Parece até que viu um fantasma.
E vi mesmo.
Droga.
Droga, droga, droga.
Pisquei os olhos repetidas vezes, tentando não parecer ainda mais otária do que eu já
estava. Tudo por causa de uma sapatão. Quanta decadência.
— É só tpm, Brittany...! — disse entredentes, ainda mais irritada comigo mesma por
continuar sendo tão fraca. — Vem, vamos sentar logo.
E a puxei outra vez, tentando desconversar.
Ela, no entanto, continuou, um tanto desconfiada.
— Sei... Você nem foi pra festa ontem, sua vadia. O novo pub na Ocean Drive é
maravilhoso. Juro. Você perdeu a noite do ano!
— Eu não estava na vibe de festas, Brittany — resmunguei, me sentando em uma das
cadeiras, enquanto ela pegava outra ao meu lado.
— Na real, você parece não estar na vibe para nada... — resmungou de volta. — Eu hein...
Quê que você tem?
O quê que eu tinha?
Ah, muito simples!
Loucura.
Perturbação mental.
Descontrole emocional.
Coisas leves.
Só coisas leves.
E eu já estava tentando pensar em alguma maneira de mudar o rumo daquela conversa e
dar um jeito de parar com a irritante inquisição da Brittany, quando Daisy repentinamente
apareceu na sala, com aquela sua energia radiante demais para alguém com um estado de espírito
como o meu, no melhor estilo Wandinha da Família Addams.
Pelo menos, eu fiz o possível para sair assim da fraternidade, com esse sorrisão de quem
tinha feito três meditações antes de pôr os pés para fora de casa, mas, honestamente, me pareceu
meio impossível.
Nem mesmo toda a positividade tóxica do mundo deu jeito no fato de que eu ainda estava
arrasada.
— Bom dia! Bom dia! — exclamou, empolgada, enquanto alguns ainda bocejavam. —
Como estamos?
Péssimos.
— Com sono, professora — um dos garotos respondeu.
A turma riu.
— Nossa... Dormiram a noite toda e ainda estão com sono?
— Teve uma festa irada na Ocean Drive, professora — outra falou. — Todo mundo daqui
tava lá.
— Ahh, agora está explicada a razão de vocês estarem parecendo zumbis — soltou uma
risadinha e, então, suspirando, empinou o nariz e mirou em mim, de repente. — E você, Vic,
como está? Tudo bem?
Seu olhar foi atencioso até demais.
Estranhando, não pude evitar o involuntário e automático vinco que se formou de leve na
minha testa. Por um instante, senti como se ela soubesse algo sobre mim que nem eu mesma
sabia.
— Tu-tudo, tia... — forcei um sorriso meio amarelo.
— Que ótimo, querida! — respondeu ela, já organizando o seu material sobre a mesa. —
Bom, eu vou passar um trabalho em dupla, e, enquanto vocês fazem, vou chamando de um por
um, para entregar a nota do último teste. Tudo bem? Charles, por favor, querido, entregue as
folhas do trabalho aos colegas — pediu ela a um dos alunos.
E, assim, o garoto fez, repassando o tal trabalho para todo mundo.
Mas, eu juro, juro que depois ela mencionou o termo “nota do último teste”, eu me tornei
tão imprestável quanto já estava. Os meus batimentos cardíacos aceleraram, mesmo que eu
tentasse me segurar, as minhas mãos suaram frio, e eu não tinha a menor dúvida do motivo de
estar tão claramente nervosa dessa vez. Daisy ia entregar o teste. O maldito teste que eu até
gostaria de me esquecer que um dia ele existiu. A minha completa vergonha. Sério, eu nunca
escrevi tanta besteira sem sentido em uma só prova.
Era a minha declaração de falência.
A minha possível reprovação.
E Victoria Peterson nunca, nunca reprovou em nada do que se propôs a fazer na vida.
Victoria Peterson era pura excelência em tudo. Menos agora, que inferno.
Tudo por causa daquela sapatão!
Tudo por causa dela!
Ainda que eu fosse burra em Literatura, se Rayka não tivesse me atormentado na
lanchonete, com aquela história desgraçada de caneta da sorte, e construído um triplex na minha
cabeça graças a isso, talvez eu tivesse feito menos besteira no teste.
Droga.
Tensa, eu não fui capaz de raciocinar completamente sobre as questões, quando Britty
recebeu a folha do trabalho e juntou as nossas cadeiras, para começarmos a fazer. Eu não estava
acostumada a receber notas baixas. Eu só tinha o costume de ser perfeita. Ou de, pelo menos,
tentar ser perfeita. Logo, eu tinha um total de zero estruturas psicológicas para reprovação (e
para um monte de outras coisas também).
Se a minha avó soubesse...
Suspirei.
Era melhor nem pensar sobre Grace Peterson no momento.
E, então, enquanto Brittany lia a folha do teste e eu balbuciava qualquer coisa sem sentido
sobre a resposta das questões, era na tia Daisy que eu, nervosa, realmente reparava.
Gradativamente, ela foi chamando aluno por aluno. Com alguns, ela conversava por breves
instantes. Com outros, o diálogo era um pouco mais longo. E eu notava, eu notava perfeitamente
que a sua conversa era mais prolongada com aqueles que tiravam notas baixas. Tipo eu.
Saco.
Sem saber se preferia sumir para não ver a nota ou se, na verdade, só queria que ela me
chamasse logo e acabasse de uma vez por todas com essa minha ansiedade insuportável, ouvi
quando a sua voz, enfim, pronunciou o meu nome.
Foi automático, o frio na barriga me tomou outra vez.
Não foi como o frio na barriga que a Rayka me causava, mas foi poderoso na mesma
medida.
Era a minha reputação, como aluna mais destacada na universidade, que estava em jogo.
Era o meu primeiro lugar, em notas, que corria o risco de desaparecer. Era a vergonha de
reprovar, pela primeira vez na vida, batendo na minha cara.
Isso ia totalmente de encontro com a pessoa que eu era. Ou, pelo menos, com a pessoa que
eu deveria ser. Uma Peterson jamais reprovava em qualquer coisa. Uma Peterson tinha o dever
de ser imbatível, de ser um exemplo.
Porém...
Se eu bem parasse para pensar comigo mesma, ainda que eu fizesse muito esforço para
evitar, eu já não era mais a mesma Victoria Peterson de sempre.
As coisas estavam mudando.
Eu sentia.
Daisy olhou para mim, ainda sentada na sua cadeira de professora, de frente para a turma,
e, com um breve aceno de cabeça, indicou para que eu me aproximasse. Respirando fundo e já
me martirizando, em silêncio, enquanto não parava de cogitar a possibilidade de uma reprovação,
eu fui.
Quando parei bem na sua frente, suando ainda mais frio, Daisy deslizou o teste em minha
direção e eu trepidei. Instantaneamente, trepidei da cabeça aos pés e precisei me segurar na ponta
da sua mesa, para não cair durinha no chão.
Era o F mais vermelho e mais gigantesco que eu já tinha visto. E o pior: esse F era meu e
eu nunca recebi um F em toda a minha vida. Era a primeira vez. O primeiro F. Mas não o
primeiro azar. Na real, eu sentia como se, ultimamente, eu tivesse me tornado o Rei Midas ao
contrário, e tudo o que eu tocava virava lixo.
Com os olhos cheios d’água de vergonha, trêmula, segurei a porcaria do papel e ouvi
quando ela, um tanto preocupada, me perguntou:
— O que está acontecendo com você em Literatura, querida? A sua foi a nota mais baixa
da turma.
A sua foi a nota mais baixa da turma...
Suas palavras passearam sutilmente pelo ar, mas se enfiaram nos meus ouvidos com força
total. Pisquei os olhos repetidas vezes, quase sem acreditar no que eu tinha acabado de escutar.
Victoria Peterson, aquela que era sempre o primeiro lugar em tudo o que fazia na vida,
conseguiu tirar a nota mais baixa da turma.
Eu queria desaparecer!
Provavelmente, não era a sua intenção, mas o que Daisy me disse foi o suficiente para
dilacerar, ainda mais, o meu ego já tão ferido nos últimos tempos.
— Eu vou reprovar?!
Foi a primeira coisa que eu, desesperada, quase sem respirar e sem piscar os olhos,
consegui falar.
— Se continuar assim, vai.
Ah, não!
Não, não, não.
Um filete de suor escorreu pela minha testa.
Por que a deusa das líderes inteligentes e privilegiadas de fraternidade parecia ter se
esquecido de mim?!
— Está tudo perdido? — ofeguei, quase gaguejando de nervosismo. — O que... O q-que e-
eu posso fazer para mudar isso? Juro, tia. Juro que não sei mais o que eu faço! Não é por falta de
estudo. Eu estudo sim! Mas, eu não consigo interpretar direito porcaria nenhuma dessas coisas de
Shakespeare e sei lá o quê mais! — choraminguei.
Ela suspirou.
— Olha, eu vou dar mais uma chance a vocês. E essa chance será especialmente para
aqueles que tiraram nota baixa nesse teste e estão a um passo de reprovar a disciplina, como
você.
— Vai...? — surpresa, sem esperar por isso, senti quando um mísero e quase imperceptível
sorriso de esperança quis aparecer.
— Sim. Eu vou marcar mais um teste, antes da apresentação do trabalho final, e vou
considerar a nota mais alta entre esse e o outro. Se você conseguir tirar uma nota melhor no
próximo, eu descarto essa. Mas, querida, você precisa estar preparada. Não adianta que eu passe
outro teste, se você continuar com a mesma estratégia de estudo.
— Sim, tem razão... — cabisbaixa e frustrada comigo mesma por ser tão inteligente em
tudo e tão burra em Literatura, respondi. — Talvez se eu...
Porém...
— Sabe do que você precisa? — interrompeu-me, perguntando.
— De um transplante de cérebro?
— Aulas particulares! — estranhamente empolgada, replicou.
Franzi o cenho, meio confusa com o seu ponto.
— Aulas particulares?
— Sim! — ainda super empolgada confirmou, e, então, quando eu menos esperei, antes
mesmo que eu conseguisse raciocinar sobre aquilo, ela exclamou. — Rayka, querida, venha aqui
por favor!
Eu congelei automaticamente.
Que diabos a tia Daisy ia fazer?!
— E-Espera, tia. O que você quer dizer com “aulas particulares”?
Antes que eu fosse capaz de perguntar algo mais ou de, pelo menos, ouvir alguma resposta
sua, eu apenas senti. Senti a presença que se aproximava de mim. O seu cheiro, o cheiro do seu
perfume marcante e amadeirado, chegou primeiro do que ela. E o meu corpo retesou, sem que os
nossos olhos nem mesmo tivessem se cruzado.
Era o poder que aquela palhaça tinha sobre mim.
— O que foi, mãe? — perguntou ela.
Como se não bastasse, a sua voz ainda tinha que ser rouca, sexy e convidativa, mesmo que
ela não fizesse o menor esforço para isso. A típica voz de uma safada.
Pressionei a mandíbula, tentando conter qualquer reação irracional minha. Me mantive
parada, estática, sem contato visual com ela. A situação, porém, se tornou fora de controle,
quando Daisy, como se estivesse falando a coisa mais natural e banal do mundo, respondeu:
— Querida, será que você poderia fazer a gentileza de dar aulas particulares de Literatura
para a Victoria? Ela está precisando muito.
O QUÊ?
Ela falou isso mesmo?
Pera aí, pera aí, pera aí.
— Tia...! — tentando disfarçar a iminente agonia, exclamei. — Você... — enlouqueceu?!
— Não está achando que isso pode dar certo, está? Isso não faz o menor sentido. Não existem
justificativas plausíveis para que eu tenha aulas particulares com a Rayka. — e forcei o sorriso
mais nervoso do mundo.
— Meu amor, é claro que existe uma justificativa plausível para isso. A Rayka tirou a nota
mais alta da turma e você a mais baixa. Tenho certeza absoluta de que ela pode te ajudar.
A Rayka tirou a nota mais alta da turma e você a mais baixa... Blábláblá.
Argh, que ódio!
Miserável inteligente.
Será que não tinha como a tia Daisy me deixar ainda mais envergonhada?!
Porque eu acho que tava pouco!
— Você pode fazer isso, não pode, Rayka? — perguntou ela.
Com os batimentos cardíacos acelerados, sem saber se era de nervosismo, indignação, ou
das duas coisas juntas, me permiti virar o rosto em direção à garota. A tensão, que já rolava por
ali, triplicou em mim, ao percebê-la tão perto, desde a última vez em que estivemos juntas em
Charleston.
Rayka estava com o cenho franzido para a mãe, como quem tentava entender as reais
intenções da Daisy com aquilo. Mas, ao notar que eu estava olhando, também girou as orbes para
mim e me encarou. Séria. Ela continuava séria, do mesmo jeito como me observou ao entrar na
sala de aula.
Por um segundo, mesmo em meio à minha confusão mental de notas baixas, reprovação e
aulas particulares com o motivo dos meus surtos, no fundo da minha consciência algo quis se
importar. Algo quis se preocupar, por não ver qualquer típico traço de sorriso no seu rosto.
Aquele sorriso tão bonito...
Será que ela ainda estava com raiva pelo que houve no motorhome?
A pergunta passeou rapidamente pelos meus pensamentos, mas...
Ah, pelo amor da deusa, Victoria!
Vai ficar se preocupando agora com quem não teve o mínimo de preocupação, quando
decidiu enganar você?
Estalei a língua no céu da boca de leve, balançando a cabeça.
Só ouvi, porém, quando ela, sem parar de me encarar com os seus olhos tão sérios,
respondeu:
— Posso, mãe.
Ah, não.
Não, não, não.
— Mas... — ainda tentei falar.
Porém...
— Sem “mas”, querida — incisiva, tia Daisy me interrompeu, não me deixando qualquer
espaço para continuar. — É a sua aprovação nesta disciplina que está em jogo. Ou vai querer
atrasar a sua formatura no curso? — ergueu uma das sobrancelhas para mim, já sabendo que a
minha resposta seria “não”. Eu jamais deixaria atrasar a minha formatura. — Faça essas aulas
com a Rayka e esteja preparada para o próximo teste. É a sua última chance.

✽ ✽ ✽

Eu odiava ter que admitir que estava fodida.


E odiava estar falando palavrões em pensamento, pelo menos umas três vezes ao dia. Isso
me assustava. Me assustava muito.
Onde a Victoria Peterson, a grande Victoria Peterson, que todos conheciam, foi parar?
Eu. Não. Fazia. Ideia.
Bufei, indignada com tudo, com absolutamente tudo a respeito da minha vida e de todas as
coisas que me rodeavam, enquanto esfregava o chão encardido de óleo, no pé de uma das chapas
de panquecas da lanchonete, e me lamentava por ter chegado tão ao fundo do poço que, agora,
dependia daquela salafrária para livrar o meu rabo de uma reprovação.
Eu odiava precisar da sua ajuda.
A verdade era essa.
Sério.
Como eu perdi o controle da minha vida?
Estava tudo uma bagunça!
Puxei o ar profundamente para os meus pulmões, fazendo o possível para não surtar de
uma vez por todas bem ali, com a mão imunda de tanto esfregar a porcaria de um chão. Apesar
do meu destino não ser nem um pouco promissor, eu também não precisava morrer por
antecipação. Bastava que eu morresse só no dia da aula particular com a Rayka mesmo. Estava
de bom tamanho. No momento, eu tinha que lidar com o fato de que nada no mundo me salvaria
daquela lanchonete e do trabalho ridículo que eu precisava aguentar por tempo indeterminado.
Que ódio.
Ódio, ódio, ódio.
Esfreguei o chão com ainda mais raiva, como se isso, de alguma forma, me ajudasse a
despejar todo o meu desprazer. E, mesmo com o ranço alcançando níveis alarmantes dentro de
mim, continuei de joelhos sobre o piso, enquanto uma das minhas mãos, já cansada, ainda
friccionava o óleo incrustado daquela imundície.
O trabalho mais degradante de toda a minha vida. Inferno.
Em dado instante, porém, ouvi o meu celular tocar no bolso da calça. Atirei o pano no
chão, com nenhuma delicadeza, e, sem ao menos olhar o nome que aparecia na tela, atendi, curta
e grossa, quase revirando os olhos por ter que interagir socialmente, quando tudo o que eu mais
queria era ficar isolada, debaixo de umas trezentas cobertas da minha cama.
— Oi.
— Oi, meu amorzinho. Tudo bem? Como você está?
Ah, era o meu pai.
— Com a mão enfiada no chão imundo e encardido de uma cozinha, graças a você —
retruquei, cagando para a simpatia. — Será que não dá para fazer a mínima gentileza de pagar
pela porcaria do prejuízo e me livrar dessa merda?
— Primeiro, quem é você e o que você fez com a minha filha? Nunca ouvi Victoria
Peterson falando palavrões — soltou uma risadinha. — Segundo, querida, você sabia que fazer
faxina é bom para o ego? Sério. Estudos comprovaram. Varreu e passou pano, o espírito já
evoluiu uns dez por cento.
Rolei os olhos.
— Sim, pai, isso vai fazer o meu espírito evoluir sim... Eu vou transcender de uma pessoa
normal para uma completa perturbada, pai, pelo amor da deusa, socorro! Não aguento mais
esfregar chão!
Ele apenas riu, me deixando ainda mais colapsada, como se a minha agonia não fosse
nada.
— Deixa de drama, Victoria... — desconversou. — Olha só, estou te ligando para avisar
que o delegado Owen, que está a frente do seu caso, vai passar hoje à noite na fraternidade,
depois que você chegar da lanchonete, para te fazer mais algumas perguntas e seguir com as
investigações.
Droga.
Além de todo o caos ao meu redor, ainda tinha a porcaria daquela foto.
Sempre que eu pensava nela, e no fato de que jamais seria capaz de acessar os arquivos
dos celulares de todo mundo, para que nunca mais me vissem seminua, eu me sentia péssima e
impotente.
— Ainda não descobriram nada?
— Apenas indícios inconclusivos. Quando foi a última vez que você trocou de celular,
antes dessas investigações?
— Ano passado. Sabe que eu troco o celular quase todo ano, papai.
— E onde está o antigo?
— Não faço a menor ideia. Provavelmente está com algum pobre que não tem dinheiro
para comprar um iPhone de última geração. Sabe que eu tenho uma alma caridosa e sempre faço
doações, aos necessitados, do que não quero mais.
Caridosa demais...
— Aí está o problema, querida. Só temos acesso aos seus arquivos e conversas do ano
passado para cá. Nem mesmo o seu iCloud está atualizado com o histórico dos seus antigos
celulares. Sua conta registrou apenas os dados do ano passado para cá, justamente de quando
você comprou o celular até agora.
Girei as orbes.
— Pai, eu não entendo nada disso, sabe? A minha formação é em Artes Plásticas, não em
Tecnologia da Informação. Nunca me importei com essas coisas de iCloud e tudo mais. A única
coisa com que me preocupo é se estou com um celular bom ou não. Só isso.
Ele suspirou.
— E é exatamente isso o que está dificultando as investigações. Os arquivos do ano
passado pra cá não apresentam qualquer indício.
— Sou uma mulher de valor, papai. Já disse.
— Querida, passar ou não fotos íntimas, não define o valor de alguém. Você não perde o
seu valor por mandar fotos íntimas. Entenda isso. O que define valor é a atitude da pessoa que
recebeu a foto. Não o seu valor, mas o valor de quem recebeu e espalhou sem o seu
consentimento. Ou seja, a pessoa que fez isso com você é que não tem valor algum.
Suspirei, cansada.
Cansada de tudo.
— Não aguento mais não saber quem é o responsável.
— Owen está trabalhando no reconhecimento do número desconhecido. Depois disso, com
o número em mãos, ele vai entrar com um pedido judicial de quebra de sigilo de dados da
operadora. A ideia é acessar, direto na fonte, as informações de quem comprou o número do
chip.
Quase desanimada, balancei a cabeça de leve.
— Quando isso vai acabar, pai?
— Logo.
Foi quando eu subitamente ouvi uma voz enjoativa e tediosa soar bem atrás de mim.
— Ô, Victoria, vem aqui! É hora de trabalhar, não de ficar de conversinha no celular!
Sem que eu fizesse esforço algum para isso, todo o meu desânimo logo se converteu em
puro ranço. E eu nem precisava ver para saber quem era. Ainda assim, com a mandíbula já
pressionada, porque apenas a sua presença era o suficiente para me estressar, virei o rosto para
trás e a vi.
Stacy Vagabunda Hinkhouse.
Que ódio.
Talvez a pior parte de trabalhar na Esquina das Panquecas não fosse nem o chão encardido
que, quase todos os dias, eu precisava esfregar. O pior mesmo era ela.
Rolando os olhos, não me esforçando nem um pouco para disfarçar o meu entojo em vê-la
bem ali, quase de frente para mim, finalizei a ligação.
— Papai, me desculpa, eu vou precisar desligar. Depois a gente se fala. — e, então,
virando o meu rosto completamente para ela, não por vontade, mas por obrigação, completei. —
O que é, Stacy?
— Você sabe que não pode ficar mexendo muito no celular durante o trabalho, não sabe?
— empinou o nariz, autoritária.
Insuportável.
— Era o meu pai, garota.
— Não interessa — cruzou os braços. — Vem, levanta logo daí, antes que eu perca a
paciência contigo. Você tem muito trabalho a fazer ainda hoje.
Na real, era eu quem estava perdendo a minha paciência.
Eu nunca fui barraqueira, porque Victoria Peterson tinha muita classe para isso, mas,
levando em consideração o quanto a minha vida estava de cabeça para baixo, se Stacy
continuasse enchendo o meu saco, era ela quem ficaria literalmente de cabeça para baixo, pelas
minhas mãos.
Definitivamente, Victoria Peterson já não era mais a mesma.
Fazendo o possível para conter os ânimos e não cometer a loucura de enfiar a minha mão
na cara daquela menina, puxei o ar, larguei o pano sobre o chão encardido, pouco me importando
se eu ainda não tinha terminado aquilo, e me levantei. Reunindo todo o meu sangue de barata
para segui-la e ver o que ela iria me mandar fazer agora, eu fui.
Caminhamos por toda a extensão da área administrativa da lanchonete e passamos pelas
várias salas dos fundos, até chegarmos à bendita cozinha industrial. Porém, quando pus os pés lá,
percebi que o lugar não estava vazio. Na verdade, estava enfeitado com cabelos curtos,
bagunçados, e braços tatuados, cujas mãos organizavam mantimentos que aparentemente tinham
acabado de chegar do supermercado.
Rayka.
Não que eu tivesse travado, assim como aconteceu de manhã, quando cheguei para a aula,
mas era como se a minha energia mudasse sempre que ela estava por perto. E foi exatamente o
que eu senti, no momento em que a vi ali.
Percebendo que alguém tinha chegado, Rayka se virou para nós e me viu. Nem se deu ao
trabalho de olhar para a Stacy. Suas orbes miraram bem em mim. Séria. Não tão séria quanto
pela manhã, mas, ainda assim, aquele típico semblante leve e despreocupado, que ela carregava
em noventa por cento do tempo, eu não o via direcionado a mim, desde a nossa discussão no
motorhome.
A tensão pelo ar era sempre palpável em qualquer lugar que a gente estivesse.
Stacy, nojenta, por sua vez, se aproximou dela e...
— Oi, meu bem, está precisando de alguma coisa? — oferecida, perguntou, esfregando
uma das mãos pelo braço da Rayka.
Dessa vez, eu me segurei para não revirar os olhos.
Não queria parecer uma idiota ciumenta.
Porque é claro que eu não era.
— Não, valeu — respondeu a sapatão. — Só tô terminando de organizar essas coisas que
o James acabou de trazer.
— Ótimo! — sorrindo daquela maneira que embrulhava o estômago até da pessoa mais
gente boa da face da Terra, ela replicou e virou-se para mim. Dessa vez, sua arrogância
começava a falar mais alto. — Queridinha, eu acho que você não limpou direito o fogão da
última vez que eu pedi, porque ele continua entupido. Não tá dando para usar. Limpe e conserte.
Limpe e conserte?
Como assim “limpe e conserte”?
Eu, que já não estava nos meus melhores dias, só consegui me irritar ainda mais com o seu
tonzinho soberbo e autoritário. A menina era um grande monte de bosta que ninguém aguentava,
muito menos eu.
— Por acaso, você tá me achando com cara de técnico de eletrodomésticos? —
desaforada, falei, cruzando os braços pra ela. — Eu não sei consertar essa porcaria, não. Tudo o
que eu sabia fazer, eu já fiz.
— Ah, meu bem, pois você vai ter que dar um jeito... — debochada, replicou. — Hoje,
você só volta para o seu troninho da fraternidade, depois que esse fogão estiver funcionando.
Ah, é?!
Quem ela achava que era para me dizer a hora de ir embora?
Meu amor, eu ia embora na hora que desse o meu horário, independente da porcaria do
fogão estar funcionando ou não! Eu era Victoria Peterson, e não o capacho de uma vadia
qualquer!
Bufei, me esforçando para não querer enfiar a mão na cara dela, de uma vez por todas, já
que era exatamente isso o que Stacy merecia, não apenas agora, mas desde que entrou na
faculdade e fez de tudo para tirar a presidência da fraternidade de mim.
Nossa, o meu espírito animal sempre quis arrancar os seus cabelos. Fio por fio.
Não consegui me conter.
— Quer saber, Stacy? — o volume da minha voz foi aumentando gradativamente. — Por
que você não vai pra casa do caral...
E eu já ia me aproximando dela, com os olhos cravados nos seus, a mandíbula trincada e
os punhos fechados, quando fui interrompida, ao sentir o meu braço repentinamente ser segurado
pela mão dela.
Rayka.
— Ei ei, tá legal, calma... Relaxa aí. Relaxem vocês duas. Eu posso ajudar.
E eu poderia até imaginar que ela fez isso, já pensando que o pior pudesse acontecer a
qualquer momento (tipo a cara da Stacy amassada no meu punho), ou até me assustar comigo
mesma por ter passado muito perto de proferir o maior palavrão de toda a minha vida, se o meu
raciocínio não estivesse completamente focado no fato de que a sua mão (aquela mesma mão
que me pegou pela cintura na praia), quente e macia, me segurava pelo braço.
Meu corpo retesou, como sempre acontecia quando ela tocava em mim.
Droga.
As minhas reações estúpidas, em relação a ela, sempre eram mais fortes do que eu era
capaz de controlar.
— Hã?! — só ouvi quando Stacy exclamou. — Você vai ajudar ela? — e encarou a Rayka
como se ela tivesse três cabeças em cima do pescoço.
A insuportável pareceu não ter gostado nem um pouco da ideia, enquanto eu, ainda meio
imbecil e aérea, só por causa da sua maldita mão, definitivamente não sabia o que pensar sobre
isso. A sensação de nostalgia e as lembranças de um feriado muito recente me alcançaram com
muita força.
Era como se eu estivesse voltando a sentir toda a tensão da praia.
Aquele negócio esquisito que só a infeliz da Rayka me causava.
Que inferno.
— Sim, é melhor. Eu já limpei esses fogões daqui algumas vezes. Posso mostrar a ela
como se faz. Na próxima, a Victoria consegue sozinha.
Stacy, no entanto, ainda tentou rebater.
— Mas... — ofegou, quase indignada. — É o trabalho dela. Deixa ela se virar!
— Bom... Eu posso perguntar ao James o que ele pensa sobre isso — retrucou Rayka. —
Tenho certeza de que ele não vai se opor. Na verdade, quando Victoria entrou aqui, ele mesmo
tinha me dito que eu poderia ensinar a ela o que fosse preciso.
Stacy bufou, encarando a garota.
Ela sabia que, por mais que tentasse cantar de galo e impor as suas vontades, era o seu pai
quem dava a última palavra em tudo.
Claramente insatisfeita com a resposta da outra, mas igualmente impotente, Stacy passou a
língua entre os lábios, como se tentasse sugar de volta para o corpo todo seu veneno. E, ainda
que não estivesse de acordo, respondeu, curta e grossa:
— Tá. Mas, eu vou voltar daqui a pouco, para supervisionar o que vocês estão fazendo.
— Fique à vontade. — Rayka devolveu.
Erguendo uma das sobrancelhas, ela nos fitou, desconfiada. E, então, com uma rabissaca,
metida, deu as costas e foi embora.
Intragável.
Suspirei, quase aliviada por aquela infeliz ter saído de perto.
Porém, quando me virei e me vi sozinha com a Rayka, pela primeira vez, desde a nossa
discussão, foi... Esquisito.
Eu não sabia exatamente como agir, o que fazer, ou mesmo o que pensar. A real era que eu
continuava absolutamente confusa a respeito de tudo o que aconteceu entre nós. Mesmo depois
de um dia inteiro enfurnada no quarto da fraternidade, refletindo, não consegui chegar à
conclusão alguma que não fosse a mais óbvia e assustadora: Rayka era uma filha da mãe
enganadora e eu era uma desgraçada idiota, porque mesmo completamente irritada e
decepcionada com ela, nada, absolutamente nada, conseguia parar a atração que eu sentia.
Minha deusa, eu era tão inútil.
Droga.
E o pior era que aquela tensão palpável, que sempre existia entre nós, só aumentava a cada
segundo, sobretudo depois que virei o rosto de leve e, meio sem jeito, a encarei pelo canto do
olho. Ela continuava séria. Aliás, quase indiferente. Não me observava com simpatia, nem com
raiva, apenas com orbes intensas, vivas, e, por vezes, até indecifráveis.
Eu nem fazia ideia da razão dela ter se oferecido para me ajudar. Ou melhor, talvez eu não
quisesse me dar ao trabalho de descobrir. Apenas tentando fugir um pouco daquela carga de
tensão entre nós, me aproximei do fogão, fazendo o possível para agir com o mínimo de
naturalidade. Pigarreei a garganta, me esforçando para não gaguejar pateticamente, tentei ser a
Victoria de sempre e...
— Como... Como faz essa porcaria? — apontei com o queixo para o fogão, me referindo
ao problema.
Porém, abrir a boca e falar com ela, parecia ainda mais estranho do que estarmos sozinhas
naquele lugar. Era como se, mesmo sem nos referirmos a nada sobre o que aconteceu, houvesse
um fantasma do nosso lado. Um fantasma que me lembrava o tempo inteiro de que havia pontos
em aberto entre nós. Pontos que precisavam ser conversados e fechados, em vez de um diálogo
ridículo sobre um fogão industrial entupido.
Balancei a cabeça de leve para mim mesma, no entanto.
Não seja ainda mais tola, Victoria.
Deixa de bobagem.
Por que se importar com alguém que não se importou com você?
— Deixe-me ver aqui, com licença — disse ela, aproximando-se e ficando quase ao meu
lado.
Séria, falando comigo de uma maneira quase respeitosa até demais, nenhum sinal das suas
ironias ou implicâncias disfarçadas de brincadeiras, ela atentamente fuçou o imenso fogão,
mexendo nas mangueiras, válvulas e reguladores, como se realmente fosse familiarizada com
isso.
O problema, porém, não era só a sua proximidade ou o cheiro do seu irresistível perfume
amadeirado que, mais uma vez, se entranhou no meu nariz, mas também a forma ridícula com a
qual eu não conseguia deixar de reparar no biquinho horroroso de atenção que ela fazia, a cada
vez que inspecionava o fogão, e nos seus dedos longos, de unhas pequenas, que deslizavam sobre
as peças e as tocavam com tanta segurança.
Os mesmos dedos que puxaram os meus cabelos pela nuca, para que os seus lábios
chupassem o meu pescoço...
A lembrança subitamente surgiu, sem que eu conseguisse segurá-la a tempo.
Ah não.
Pelo amor da deusa, eu tinha que parar com esse tipo de coisa.
Assustada com a velocidade dos meus pensamentos, me engasguei com a minha própria
saliva e tossi. Tossi sem conseguir segurar. Coração acelerado, cabeça confusa demais. E uma
única certeza: aquela proximidade entre nós estava me deixando meio perturbada. Vermelha de
vergonha e irritada comigo mesma, me afastei, tentando me manter a uma certa distância segura.
Todo cuidado era pouco.
Só ouvi quando ela perguntou:
— O que foi? Tá tudo bem?
— Tá, tá tudo bem — respondi ligeiro, desconversando e fazendo o possível para
estabelecer pouco contato visual com ela.
— Hum, tá legal. Olha só, pelo que eu já conheço desses fogões daqui, acho que, na
verdade, o problema não é nem no fogão em si, mas no duto de óleo dessa chapa que fica ao lado
— apontou. — É por onde o excesso de óleo das comidas feitas na chapa, desce. Precisamos
arrastar um pouco o fogão, para liberar o caminho e desconectar o duto da parede. Acho que,
assim, vai dar para limpar o sujo que está entupindo.
Espera aí.
Precisamos?
Ergui uma das sobrancelhas.
— Você não está querendo me fazer arrastar esse fogão enorme de trezentas toneladas,
está? Chama um dos caras da lanchonete para fazer isso. É melhor.
Ela suspirou, pressionando um pouco a mandíbula.
— Não precisamos de um cara.
Então, tirando o avental sobre o corpo e ficando apenas com a camisa e a calça da farda, se
posicionou.
Franzi o cenho.
Toda a minha tentativa de não manter contato visual indo por água abaixo. Dessa vez,
porém, era por pura curiosidade. Aquele negócio parecia pesado demais para que uma só garota
conseguisse movê-lo.
Ela não ia conseguir, ia?
Instantes depois, porém, as minhas dúvidas foram caladas pelas suas próprias ações.
Rayka, sozinha, arrastou o fogão e, como se não bastasse, pareceu muito gata fazendo isso. Ai,
que droga, a tal da energia sapatônica que não me largava e estava pior naquele dia. Eu diria
que o meu queixo inclinou levemente para baixo, confesso. E, uma coisa esquisita deu alguns
saltos mortais, dentro do meu peito, a cada vez que eu percebia os músculos dos braços tatuados
se definindo com os movimentos que fazia.
Victoria, você está completamente perdida na vida.
Será que dá pra parar de secar a menina que enganou você?!
Ainda tentei desviar a minha atenção e agir como se eu não tivesse morrido umas mil
vezes por dentro, só com aquela visão. Mas, foi quando ela se aproximou do tal duto de óleo, que
eu não consegui mesmo parar de olhar. Especialmente porque, dessa vez, as coisas não pareciam
estar saindo como o esperado. Para quem tinha conseguido arrastar um fogão de trezentas
toneladas, era estranho que não estivesse conseguindo tirar o duto encaixado na parede.
Minha testa enrugou. Dessa vez, de puro estranhamento. E o vinco se tornou ainda maior
quando, no momento em que, depois forçar milhares de vezes para um lado e para o outro, sem
sucesso, ela olhou para mim e perguntou:
— Será que dá pra vir me ajudar aqui?
Hã?
Encarei-a como se ela tivesse três cabeças em cima do pescoço.
— E o quê que você acha que eu vou conseguir fazer aí?
Rayka quase revirou os olhos.
— Não precisa de nenhuma habilidade para isso, Victoria. É só segurar a mangueira do
duto e puxar. Apenas isso.
Apenas isso? Aham.
Tentando esconder o certo temor, para não parecer uma fracote na sua frente, ergui uma
das sobrancelhas e fiz o possível para não transmitir medo no meu tom de voz.
— E vem cá... — passei a língua entre os lábios. — Será que não vai ser pior se a gente
ficar forçando, não? Se não tá saindo, é porque deve tá com problema.
— Não tem problema algum. Deixa de ser medrosa e vem logo aqui, Victoria.
Medrosa?!
Eu por acaso tinha lhe dado a liberdade de falar assim comigo?
Nada passava despercebido por essa canalha.
Bufei.
E, apertando os olhos em sua direção, nem um pouco satisfeita com o seu comentário, me
aproximei dela, mesmo indignada. Essa desgraçada sabia como trabalhar com a psicologia
reversa comigo.
— Pega aqui, tá vendo? — me mostrou o local onde eu deveria segurar a mangueira.
— Tá, tá bom — meio sem paciência, repliquei um tanto apressada.
— Ok, lá vai. No três, a gente puxa.
— Nossa, não vejo a hora — rolei as orbes.
— Um... Dois... Três!
Forcei o máximo que pude, e provavelmente Rayka também.
Mas...
Não deu.
Argh.
— Vamos lá, mais força, Victoria. Um, dois, três!
Tentamos novamente, mas o negócio não queria ceder.
— Só pode estar com problema, Rayka!
Ela soprou o ar e virou o rosto, me encarando.
— Não está com problema. Sei que pode fazer mais força do que isso, Victoria. Vamos.
Girei os olhos outra vez, balançando a cabeça em negativo.
— Se a gente quebrar alguma coisa aqui, eu juro que te mato.
— Não vamos quebrar nada. Bora. No três. Preparada?
— Não. — propositalmente irritante, respondi.
— Victoria... — em tom de repreensão, devolveu.
Suspirei, impaciente.
— Tá, vai.
— Um... Dois...
Porém...
Tão logo ela mencionou o “três”, foi automático. No mesmo instante, um incrível jorro de
óleo escuro e fedorento espirrou sobre nós duas com toda a força, nos sujando inteiramente da
cabeça aos pés.
Por três segundos, eu juro, juro que o meu queixo despencou e os meus olhos nem
piscaram. Eu me esforçava, me esforçava para acreditar que aquilo não era verdade. Porém, foi
impossível me cegar aos terríveis e podres fatos. Literalmente podres.
Simplesmente, berrei, agoniada, sentindo como se tivesse mergulhado em uma fossa.
— Aaaaaa, eu vou MATAR você! Que ódio!!!
— Puta que pariu! — ela também exclamou. Suas orbes quase saltando da caixa craniana,
ao ver a zona em volta e principalmente em nós. — Você está bem?
Bem?!
— Você acha que estou bem?! Eu estou fedendo a óleo de cozinha estragado e a culpa é
toda sua, que saco! Argh!
Até então, eu não tinha nem conseguido tocar em mim mesma, tamanho nojo.
— Droga, vem cá, deixa eu te ajudar...
Pegou o seu avental, que tinha largado ali por cima antes de começar o serviço, a única
peça de roupa milagrosamente limpa, e já ia o levando em direção ao meu rosto, para me limpar,
quando eu subitamente a impedi.
— Não, não! Sai, sai, sai! — e o puxei da sua mão. — Deixa que eu mesma faço isso. —
bufando, completei.
Não estava com a menor paciência para aturar as suas mãozinhas sobre mim.
Ela, por sua vez, quase sem reação, me deixou fazer o que bem entendesse com a peça de
roupa sem a sua ajuda. E eu ainda pude ouvir quando ela, baixando o olhar para si mesma,
sibilou:
— Porra, tá tudo sujo... Vou trocar de roupa. — olhou para mim, completando. — Sei que
James guarda fardas extras nos armários por aqui. Vou procurar.
Só que tudo parou, inclusive eu, no momento em que, assim que disse a última palavra, ela
simplesmente arrancou a blusa pela cabeça, ficando só de top na minha frente.
Bem na minha frente.
Travei.
Travei, mesmo que não quisesse. Travei, mesmo que fosse estúpido demais. E fiz
exatamente tudo o que eu não deveria fazer: olhei. Olhei muito. Olhei pra caramba. Olhei como
se não estivesse cometendo a maior bobagem do mundo.
E me xinguei em silêncio, umas trinta mil vezes, por causa disso e por ser inútil ao ponto
de não conseguir desviar a minha atenção.
Que saco.
Eu só podia ser muito imprestável mesmo.
Se, há poucos minutos, tudo o que eu sentia era raiva, agora eu só era capaz de sentir...
Te... Tesã... Ai, não!
Os meus hormônios certamente estavam uma loucura dentro do corpo.
Mesmo que ela continuasse com a calça, na parte de baixo, a sua seminudez em cima era o
suficiente para reter a minha atenção. Especialmente, a forma como a sua cintura fazia curvas
sobre os quadris, a maneira como a aquela tatuagem miserável de serpente parecia cada vez mais
convidativa e... O jeito como os seus peitos preenchiam tão bem todo o espaço do top.
Peitos.
De repente, a boca se encheu d’água.
Engoli seco, meio assustada, mas impossibilitada de parar.
Por ali e principalmente em mim, havia uma sensação esquisita de temperatura mais alta.
— Você vai querer se trocar também, né? — displicente, ainda sem perceber o meu
estado, ela perguntou ao abrir um dos armários.
Só que a sua voz parecia tão, tão distante, enquanto as únicas coisas que eu conseguia
pensar era no quanto ela era gostosa e no quanto eu era imbecil.
Rayka, porém, continuou. Dessa vez, começando a perceber que “algo de errado não
estava certo”.
— Victoria? Ei? Alô? — estalou os dedos.
E, então, se aproximou.
Mesmo assim, sua voz continuava tão longe. Seus quadris, por outro lado, estavam mais
perto. E os peitos... Os seus peitos bonitos também.
— Victoria! — ela me chacoalhou, já preocupada. — Tá tudo bem?!
Tá tudo bem?!
Tá tudo bem?!
Tá tudo bem?!
Sua voz reverberou na minha consciência subitamente.
Ai, inferno.
Respirei fundo, de repente, piscando os olhos repetidas vezes, como quem acordava de um
sonho. Droga. Balancei a cabeça em negativo para mim mesma, e me afastei. Minha cabeça
ainda mais confusa do que já estava em todas as últimas semanas.
— O que houve? — perguntou ela. — Você tava meio paralisada e...
— Ai, cala a boca. Não foi nada.
Isso era tudo o que eu fui capaz de responder, meio agoniada, sem saber se o “cala a boca”
era realmente para ela ou para os meus próprios pensamentos imparáveis e incansáveis.
Havia uma voz, uma voz agonizante no fundo da minha consciência, me dizendo algo.
Uma coisa terrível.
Na verdade, ela berrava.
Ela berrava e dizia que...
Eu nunca, nunca ia conseguir superar essa garota, não importava o quão errado isso fosse
e o quão eu estivesse irritada, decepcionada ou assustada com os meus próprios sentimentos e
pensamentos. Não havia bom senso no mundo o suficiente para mim, nem razão que falasse mais
alto do que as minhas próprias emoções.
Eu nunca seria capaz de superá-la.
O TESÃO NÃO MATA, MAS HUMILHA

“Você não sabe que não sou boa pra você?”


When The Party’s Over | Billie Eilish

VICTORIA

Peitos.
Havia peitos.
Peitos pequenos, gostosos e lindos bem na frente da minha cara. Mamilos eriçados de
tesão, tão perfeitos, apontados para mim, quase esfregando-se no meu rosto. O rabo da serpente
tatuado no vale entre os dois montes só me fazia sentir um desejo incontrolável de passar a
minha mão por ali, em tudo o que era meu. E, pela primeira vez, eu já não me assustava com o
fato de que a minha boca estava salivando de vontade de chupar tudo, cada parte dos seus peitos,
do seu corpo.
Ergui as orbes para ela. Seu olhar sacana estava ali, como sempre esteve. E também aquele
sorrisinho de canto de boca, charmoso e cheio de intenções, que acabava comigo. Sempre
acabava comigo. A sua mão passeou para debaixo da minha saia e os seus dedos empurraram a
minha calcinha para o lado, quando ela falou:
— Me chupa, Victoria. Me chupa, por favor.
A porcaria da voz mais rouca e mais sexy do mundo inteiro.
Bastou ela me dizer isso para que eu morresse de tesão. Minha deusa, eu estava tão
molhada, a minha calcinha ensopada, e os seus dedos brincando na entrada da minha vagina
também. Ofegante e vermelha de tanta vontade de gozar, abri ainda mais as pernas, deixando-a
livre para fazer o que quisesse, e suguei os seus peitos com fome.
Enquanto eu lambia e salivava sobre os seus mamilos, deixando-os ainda mais duros e
gostosos do que já estavam, ela me comia uma das mãos. E me comia tão incrivelmente bem,
enfiando os dedos em mim e depois os esfregando no meu grelo inchado. Cheia de vontade de
explodir de prazer, os meus gemidos pareciam impossíveis de controlar.
E eu gemi tanto pra ela.
Gemi como uma vagabunda nos seus ouvidos, enquanto as palavras já saltavam da minha
boca, como se vida própria elas tivessem:
— Isso, vai... Continua. Não para, não.
Eu nem acreditava que estava falando esse tipo de coisa.
Porém, quanto mais ela metia, enquanto eu chupava os seus peitos, mais eu rebolava pra
ela, me sentindo uma puta tão gostosa.
E era bom.
Inacreditavelmente bom.
Tão bom que... Quando dei por mim, o suor já escorria pelo meu pescoço, os meus
gemidos pareciam cada vez mais altos, os espasmos na minha boceta mais frequentes, e eu...
Eu só queria...
Eu só queria gozar!
Pulei, de repente, sobre a cama, e abri os olhos. Ofegante, confusa, atordoada. Olhei para
os lados, tentando entender o que estava acontecendo. Quarto. Eu estava no meu quarto da
fraternidade. Sozinha. Completamente sozinha. Mas, nem mesmo a minha solidão era capaz de
aplacar o nervosismo que me corroía pelo corpo inteiro.
Agitada, com calor, a única coisa que parecia úmida em mim era minha calcinha.
Ah não, a minha calcinha!
Os meus olhos, já arregalados, dobraram de tamanho e as minhas mãos foram direto à
boca, em choque, ao me dar conta, finalmente, da realidade sórdida e terrivelmente sapatônica
que me envolvia.
Eu... Eu... Eu sonhei com putaria?
Eu sonhei com putaria de novo?!
— Minha deusa, eu sonhei com putaria...! — exclamei, choramingando comigo mesma.
Não bastasse, ontem, o sonho, ou melhor, o pesadelo com a canibal, cuja boca estava entre
as minhas pernas, agora eu chupava os seus peitos e gozava que nem uma cadela. Sim, uma
cadela no cio, terrível! As minhas noites de sono estavam cada vez piores. Assustadoras.
Tipo assim, eu... eu gemi e gozei!
Sempre tive dificuldade de gozar e, agora, simplesmente queria fazer isso em sonho. Em
sonho! Vê se pode? Fora que eu gemi tão alto naquele pesadelo, que estava com medo de que a
minha boca tivesse transmitido sons esquisitos, mesmo eu estando dormindo. Minhas bochechas
ardiam de vergonha, só de pensar nessa possibilidade.
Não, não, não. Deusa me livre!
Eu me mataria, se alguma das meninas da fraternidade tivesse escutado qualquer barulho
suspeito.
Quanta humilhação!
Victoria Peterson era perfeita demais para agir feito uma cadela. Gemer alto, que nem uma
vagabunda, era tão deselegante. Pelo menos, foi o que me ensinaram.
Aquela desgraçada estava acabando com a minha paz. Nem direito a dormir quieta, eu
tinha mais, porque ela, agora, estava invadindo até os meus sonhos e me incitando a fazer coisas
que eu nunca, nunca fiz na vida nem com um homem!
Aquela história de vê-la de top, ontem, com aqueles peitos lindos e aquela cinturinha
maravilhosa, na porcaria da cozinha da Esquina das Panquecas, provavelmente tirou mais um
parafuso de um juízo já tão prejudicado como o meu. Aliás, tudo, absolutamente tudo o que a
envolvia, era prejudicial ao meu estado psicótico de loucura, desde que ela voltou para Miami.
Inferno!
— Tão gostosa... — choraminguei só comigo, outra vez.
E, então, puxei o ar, empinando o nariz. Era uma mísera tentativa de recuperar
minimamente a minha dignidade, ainda que eu soubesse que isso era impossível. Eu já estava
ferrada demais na vida.
— Não, Victoria. Gostosa não, já chega.
Só que dizer isso a mim mesma e dizer nada eram basicamente as mesmas coisas. Não
fazia diferença, porque não importava o quanto eu me esforçasse ou tentasse me disciplinar a não
pensar nela como uma grande gostosa, nada, absolutamente nada, era capaz de me parar, nem
mesmo a raiva que eu ainda sentia daquela desgraçada, por me enganar com o Maverick, ou
mesmo o peso na consciência por ela ser uma mulher.
No fundo, por mais que eu odiasse admitir isso, eu sabia que tudo, tudo o que estava
acontecendo comigo agora, incluindo a minha imensa confusão mental, não era por outro
motivo, senão: a falta.
Eu acho que estava sentindo falta dela.
Droga.
Falta do seu sorriso verdadeiro, das suas piadas idiotas, das suas brincadeiras de mau-
gosto e... De North Beach. Do que fizemos em North Beach, alguns dias atrás. Da sua boca, das
suas mãos, do jeito como ela me olhava quando o seu rosto estava perto do meu, da maneira
como ela me segurava pela cintura. Eu acho que estava sentindo falta até das suas malditas cartas
mentirosas!
Do Maverick.
E o pior era que, para a minha completa loucura...
Algo me dizia que eu não ia conseguir resistir por muito tempo.
TRIM!
Repentinamente, o meu celular berrou, me fazendo dar outro pulo sobre a cama. Saco. Eu
precisava mudar aquele toque brega e estridente de mensagem, já bastava de sustos. Bufei,
balançando a cabeça em negativo, e, então, o puxei para ver o que tinha na tela.
Era uma mensagem da tia Daisy.

“Querida, a sua primeira aula com a Rayka é daqui a pouco. Não se esqueça. Isso vai ser
importante para que você não perca a disciplina e não atrase o curso. Depois me diga como foi.
Beijos.”

Ai, não.
Não, não, não.
Eu não queria ter aulas com aquela canibal comedora de mulheres!
Isso ia completamente de encontro à minha política de segurança e distanciamento.
Quanto mais perto dela eu estivesse, pior. Do jeito que o meu juízo não estava em perfeito
funcionamento, eu não duvidava de que a qualquer momento poderia acontecer uma besteira das
grandes. Não importava o tamanho do ranço que eu tivesse dela, era perigoso demais ficar
sozinha com ela em um lugar particular, mais de uma hora seguida.
Perigoso demais para fazer o que eu tinha vontade e não devia.
E, bem, a minha vontade ia muito além do que enfiar a mão na sua cara, pelas raivas que
me fez passar.
Saco.
Por outro lado...
Argh, o que eu podia fazer, inferno?!
Eu já tinha tentado de tudo, todos os métodos possíveis e impossíveis de estudos,
tradicionais e não tradicionais, incluindo aqueles que o pessoal ensina no Instagram e no
YouTube. Comprei até um curso de “Literatura para leigos”. Só que eu aparentemente era burra
demais até nisso, porque nem uma explicação para leigos eu conseguia entender.
Era o cúmulo!
Tentei de tudo, absolutamente tudo, mas nada foi capaz de evitar o meu belo, enorme,
vermelho e vergonhoso F no último teste, muito menos a minha iminente reprovação.
A aula com a canibal tatuada seria a minha cartada final, a minha última tentativa de tirar
uma nota boa naquela porcaria de disciplina que, até agora, eu não sabia onde estava com a
cabeça quando decidi me matricular. Era o meu grito de socorro, ainda que eu estivesse entre a
cruz e a espada.
E eu estava, sim, entre a cruz e a espada.
Se eu caísse na tentação de fazer qualquer besteira com ela, por não saber lidar com a
proximidade forçada dessas aulas, eu não seria a Victoria Peterson que fui ensinada a ser. Porém,
se eu reprovasse em algo, pela primeira vez na vida, eu também passaria longe de ser aquela
Victoria Peterson que queriam que eu fosse.
Porque Victoria Peterson deveria ser perfeita demais para não reprovar, para não falhar,
para não deixar de ser um exemplo.
Droga.
Droga, droga, droga.
Eu não tinha escolha. Eu simplesmente não tinha escolha. O máximo que eu poderia fazer
era pedir aos céus para que a deusa me livrasse de todas as tentações durante essas aulas, e só. Só
isso.
Argh.
Me empertiguei, já sabendo que o meu destino estava traçado de um jeito que eu não
poderia evitar.
E, então, quando fiz que eu ia tomar um impulso, para, enfim, me levantar da cama e atirar
para bem longe aquela calcinha toda molhada, que incomodava a minha boceta, a porta do meu
quarto foi repentinamente aberta.
E eu quase me assustei no momento em que eu vi quem era.
Não foi exatamente um susto, mas eu travei um pouco.
Travei, porque, primeiro, ela era a última pessoa que eu esperava ver no meu quarto da
fraternidade e, segundo, a sua presença ali nunca era de graça. Sempre existia alguma intenção
por trás. Algum tipo de interesse que nem sempre tinha a ver com os meus próprios interesses.
Grace Peterson.
Em toda a sua postura altiva, elegante e firme, ela me encarou sob orbes tipicamente
criteriosas, como quem não aprovava qualquer fio de cabelo fora do lugar.
E ela não aprovava mesmo.
— O-Oi, vovó... — até gaguejei. Eu nunca conseguia agir plenamente natural com ela. —
Q-Que surpresa ver você aqui.
Ela, por sua vez, se aproximou, caminhando lentamente, enquanto me observava com os
seus olhares clínicos e analíticos até demais. A boca em uma fina linha de tensão, as
sobrancelhas levemente arqueadas e o semblante de quem já estava pensando na primeira crítica.
Sim, eu tinha certeza que sim.
— Ainda na cama? — viu só? Ela estava começando. — Não sabia que tinha se esquecido
de que não é adequado dormir até tarde, feito uma desocupada, principalmente para você que é a
presidenta desta fraternidade. Isso não passa uma boa impressão.
Não é adequado...
Isso não passa uma boa impressão...
Tudo para ela se resumia a isso “não é adequado” e “não passa uma boa impressão”.
Puxei o ar, tentando pensar em alguma desculpa que soasse “apropriada” para ela, ainda
que certamente não houvesse algo que a convencesse. Eu sempre tive um total de zero
criatividades em mentir para Grace, porque ela era esperta demais. Ela me conhecia melhor do
que qualquer outra pessoa, para saber quando eu não estava falando a verdade. Era um saco.
— A-Ah, vovó... Eu estava só... É-É... Só... — pigarreei a garganta, enquanto mexia a
cabeça e olhava meio desorientada sobre os lençóis. — Eu estava só resolvendo... É... — pensa,
filha da mãe. — Estava só... Resolvendo pendências da fraternidade, aqui pelo celular mesmo,
antes de sair do quarto! — enfim, despejei as palavras, puxando o celular e sorrindo
forçadamente para ela, como se eu só estivesse sendo responsável demais em começar os
trabalhos ainda na cama.
— Hum... — foi o único som que ela emitiu, ainda me encarando, como quem analisava
milimetricamente cada poro do meu corpo.
E, pela sua cara, eu sabia que não tinha engolido a minha resposta. Ainda assim, porém,
ela também não parecia a fim de discutir sobre as minhas irresponsabilidades em me levantar
tarde da cama. Isso porque, segundos depois, apenas sentou-se sobre lençóis, perto de mim, em
vez de destilar alguns mililitros do seu veneno.
— O que veio fazer aqui, vovó?
Uma das suas sobrancelhas arqueou.
— Não posso vir aqui para ver como está a minha neta e a minha antiga fraternidade,
quando quero?
Poder até que podia, mas...
Grace Peterson nunca dava um ponto sem nó. A sua presença ali nunca era de graça, ela
sempre aparecia com alguma intenção, boa ou ruim. Eu não podia achar que ela estava ali só
porque sentia a minha falta e queria me visitar. Ainda assim, me forcei a lhe dar um sorrisinho de
leve, respondendo:
— Sim, pode. Claro que pode, vovó.
— Muito bem. Você se lembra daquela mensagem que enviei, enquanto estava naquela
loucura de viagem que o seu pai inventou?
Aquela em que ela disse para eu me comportar em Charleston, como se adivinhasse que
eu já tinha feito muita besteira na madrugada em North Beach e estava na beira de fazer muitas
outras?
— Sim, eu me lembro.
Foi a mensagem antes do caos no motorhome.
— Eu vou dar um jantar em minha casa, na próxima semana, para comemorar o meu
aniversário. Você sabe que fazemos isso todos os anos. Só que, dessa vez, vai ser diferente,
porque eu convidarei ainda mais pessoas importantes do que o normal. Teremos muitas
presenças ilustres, incluindo Duncan Bailey, o reitor da Rhode School, que eu mencionei na
mensagem a você.
Viu?
Ela nunca dava ponto sem nó.
— Hum... E o que a senhora quer exatamente com isso?
— Ora ora, Victoria... — soltou uma risadinha leve e irônica para mim. — Isso não é
óbvio para você? O jantar será uma ótima oportunidade para estreitarmos os laços com ele e
agilizarmos o seu processo de transferência para a Rhode.
Será uma ótima oportunidade para agilizarmos o seu processo de transferência para a
Rhode...
Sua voz dizendo isso reverberou na minha cabeça mais do que era natural. Me pegou. Me
pegou de um jeito que eu não era capaz de definir.
Eu sabia... Eu sabia que, há muitos anos, desde a minha pré-adolescência, como quem já
tinha um roteiro previamente escrito sobre o que faria da vida, esse foi o plano traçado para mim.
Não por mim, mas para mim.
Parte da minha formação seria em Miami, principalmente para eu seguir a tradição da
família em presidir a fraternidade. E a outra parte, se tudo desse certo seria na Rhode School.
Caso os planos não saíssem como o esperado, pelo menos eu tinha a Universidade de Miami e a
Fraternidade, que já eram dois símbolos de vitória para uma Peterson. Afinal, terminar o curso
ali e ser uma Minerva era motivo de destaque.
Ainda assim, porém, nunca desistiram da ideia de uma transferência para Rhode. Pelo
menos, a minha avó nunca desistiu. Segundo ela, era a minha chance de ouro de conseguir bons
trabalhos e crescer profissionalmente. Além disso, eu também sabia que essa era uma atitude que
a minha mãe tomaria, se ainda estivesse ali. Eu sabia que era o sonho dela. E agora, em respeito a
ela, também era meu.
Eu o tomei para mim, não apenas em homenagem à minha mãe, mas também porque,
como uma Peterson, eu sempre tinha que fazer o que era certo. E a minha avó sempre me disse
que o certo era esse plano.
Ainda assim, porém, algo esquisito aconteceu comigo naquele minuto, depois que a ouvi
falar sobre “agilizar o meu processo de transferência”. De repente, por mais sentido que isso
sempre tivesse feito para mim, agora simplesmente já não parecia causar o mesmo fervor no meu
coração. Era como se a ideia, subitamente, não tivesse o mesmo brilho que sempre pareceu ter.
Eu não conseguia explicar isso. Eu juro que não conseguia explicar isso nem para mim
mesma. Mas, de alguma forma, o meu coração parecia dizer que o meu lugar não era em Rhode,
mas aqui.
Estranho.
Estranho demais.
Uma sensação tão estranha que a única coisa que eu consegui responder a ela foi:
— Entendi.
Grace, no entanto, não deixou passar batido.
— O que foi? É o seu sonho que está se tornando realidade. — ergueu uma das
sobrancelhas, quase em reprovação por eu não ter vibrado e feito uma festa ao ouvi-la falar sobre
isso. — Por acaso, você não gostou?
Por acaso, você não gostou?
Sua pergunta era praticamente retórica. O típico questionamento que já vinha com a
resposta implícita. E ai de mim, se dissesse o contrário do que ela queria ouvir.
— Nã-não, eu adorei. Adorei, vovó! — me forcei a sorrir outra vez.
A última coisa que eu desejava era começar o dia recebendo mais um dos sermões ácidos
e rígidos de Grace Peterson, só porque não lhe mostrei todos os dentes ao saber que teria a
oportunidade de falar com o reitor da Rhode.
— Ótimo — continuou ela. — Quero que esteja impecável, Victoria... — provavelmente
tão impecável quanto a sua dicção ao pronunciar isso. — Além do reitor, eu também quero
apresentar você a um rapaz.
Foi aí que um vinco automático se formou na minha testa.
— Rapaz?
— Sim, ele é um rapaz ótimo. Tenho certeza de que ele é muito apropriado para você.
Continuei confusa.
Em outros tempos, eu adoraria conhecer qualquer cara que cumprisse com os requisitos
extremamente exigentes de Grace Peterson. Afinal, como ela sempre dizia, as Peterson nunca se
envolviam com qualquer pessoa. Mas, agora, honestamente, eu não sabia se estava com cabeça
para me relacionar ou mesmo só flertar com alguém. Talvez eu precisasse antes organizar a
bagunça dentro de mim.
— Vovó, eu sei que você deve estar com a melhor das intenções e também sei que, para
ter a sua aprovação, esse rapaz deve ser muito bom mesmo, mas...
— Mas o quê, Victoria? — subitamente, me interrompeu, não me deixando espaço para
continuar. Seu tom foi de rígido para autoritário, em segundos. E tudo o que eu menos queria
aconteceu... Ela começou a destilar o seu veneno. — Olha, depois do seu papelão por causa
daquela foto terrível, que circulou pelos celulares não apenas da universidade, mas,
provavelmente, de Miami inteira, você precisa dar graças a Deus que algum homem decente
ainda se interesse por você e te queira. Homens decentes não costumam ficar com mulheres que
espalham fotos nuas por aí. Então, aproveite.
Eu não queria fazer drama, nem aumentar a proporção das coisas, mas as suas palavras
realmente me acertaram como um soco na cara. Um soco forte, certeiro e doloroso, muito
doloroso, especialmente depois de eu ter passado a vida inteira ouvindo as suas cobranças e as
suas humilhações desse tipo.
Eu estava meio... Cansada, sabe?
“Você precisa dar graças a Deus que algum homem decente ainda se interesse por você e
te queira.”
Por um instante, os meus olhos estúpidos quiseram arder e lacrimejar, não apenas pelas
suas palavras, mas também pelo tom nem um pouco gentil que ela usou. Era como se Grace
achasse que realmente tinha razão no que dizia. Nada no mundo a faria tirar da cabeça a ideia de
que eu era a culpada pela foto, não a vítima. E eu tinha certeza de que, enquanto eu não fizesse
exatamente tudo o que ela queria para a minha vida, a minha imagem, com ela, não iria se
limpar.
Puxei o ar, engolindo seco e fazendo de tudo para não parecer fraca na sua frente.
Empurrei para bem dentro da minha goela o nó que já se formava. Eu não queria lhe dar mais um
motivo para abrir a boca e dizer que eu não era como uma Peterson.
Afinal, as Peterson nunca choravam.
— Eu entendo.
Foi tudo o que eu consegui dizer.
E não, eu não entendia. Mas, também não queria argumentar e correr o risco de começar a
chorar no meio do processo, porque eu sabia que ela conseguia ser mais dura do que isso,
enquanto eu não tinha a certeza se seria capaz de aguentar.
Preferi me calar.
Ela, no entanto, completou, sorrindo como se não tivesse acabado de me atingir com a pia
do banheiro:
— Ele é de uma excelente família. É sobrinho do reitor da Rhode, e eu não tenho dúvidas
de que um relacionamento com ele vai te abrir ainda mais portas. Pense na sua carreira, querida.
As Peterson nunca ficam com qualquer pessoa. Ele é um ótimo partido para você!
As Peterson nunca ficam com qualquer pessoa...
Ele é um ótimo partido para você...
As Peterson nunca ficam com qualquer pessoa.
As Peterson nunca ficam com qualquer pessoa.

✽ ✽ ✽

De alguma forma, as palavras da Grace grudaram na minha consciência, sem que eu


pudesse evitar. Elas ficaram se repetindo em um looping infinito, do momento em que a minha
avó saiu do meu quarto até agora, enquanto eu caminhava pelo campus, rumo à bendita aula
particular. Eu juro que não fazia ideia de como pude me arrumar, vestir uma roupa e estar indo
me encontrar com a pessoa que deixava a minha consciência ainda mais pesada, depois de tudo o
que Grace me fez escutar.
Talvez fosse em nome da tal perfeição que sempre me perseguia ou mesmo do medo de
reprovar pela primeira vez e a minha avó descobrir que eu definitivamente não era perfeita como
uma Peterson deveria ser. As Peterson nunca reprovavam em nada, afinal. E eu... Eu só podia ter
perdido mesmo o controle sobre a minha vida, porque nada no mundo parecia ser o suficiente
para organizar toda a bagunça ao redor.
Quando não era a minha avó, era a Rayka. Quando não eram as ideias da Grace sobre o
meu futuro, era uma reprovação batendo bem na minha porta e me fazendo recorrer à última
pessoa que eu deveria me aproximar.
Tentando me forçar, pela milésima vez, a pensar em algum lado positivo nessa história, eu
caminhava. Quase como uma lavagem cerebral em mim mesma.
A disciplina está acabando.
Só faltam duas semanas e meia para o final.
Logo você estará livre, pelo menos, da Literatura.
E da Rayka.
Suspirei.
Por mensagem, a tia Daisy me avisou que Rayka tinha escolhido uma das salas do bloco
do Curso de Literatura, para aquela aula. E, mesmo que a última coisa que eu quisesse fosse me
apressar, tão imersa na minha própria desorganização mental, não percebi o quanto os meus pés
andaram rápido. Quando dei por mim, eu já estava de frente para o lugar onde ela,
provavelmente, já me esperava.
Sem alternativa ou qualquer mísera ideia que me fizesse ser aprovada na porcaria daquela
disciplina sem que eu precisasse da ajuda do maior dos meus pecados, quis me certificar de que
ela realmente já estava ali.
Por um segundo, desejei que Rayka tivesse esquecido da aula.
Porém...
Com o coração meio acelerado, não sabia se da caminhada ligeira, de algum nervosismo
estúpido, ou das duas coisas, discretamente olhei para dentro da sala.
E não demorei mais que meio segundo para vê-la.
Rayka não notou que eu estava espiando, mas eu a vi. E a vi perfeitamente bem, melhor
até do que realmente deveria. Estava sentada em uma das cadeiras, toda largada. As pernas
abertas do jeito como a minha avó jamais me ensinaria a sentar, um dos braços apoiados sobre o
encosto da cadeira, e a cabeça inclinada para cima, encarando o teto e fumando.
Tragava e soltava a fumaça, viajando em seus pensamentos, claramente despreocupada
com o fato de estar segurando um cigarro aceso bem ali, dentro de uma sala de aula.
Jaqueta preta, coturnos, uma calça jeans surrada. Aquela postura irritantemente instigante
de quem não ligava para muitas coisas.
Mordi o lábio inferior, mesmo sem querer e...
Me chupa, Victoria. Me chupa, por favor.
Sua voz rouca soou repentinamente nos meus ouvidos.
Ah, minha deusa!
Tomei um susto comigo mesma, quase dando um pulo ali. Meu coração voou para a boca
e eu me desconcertei completamente.
Para com isso, Victoria.
Para com isso.
Você... Você se lembra de quem você é, não se lembra?
Toda atrapalhada, eu tentava recuperar o fôlego.
Essas aulas são extremamente impessoais, Victoria. Não leve para o coração. Esqueça
todas as besteiras imundas que você pensa a respeito de chupar essa garota. E, pelo amor da
deusa, cria vergonha na cara, em vez de fazer alguma coisa que você vai se arrepender dois
segundos depois!
Por um instante, ainda tentei pensar em qualquer rota de fuga, uma saída, uma luz no fim
do túnel que, obviamente, não existia. Mas... É agora, Victoria. Você não tem por onde escapar.
Coloquei uma das mãos sobre o peito e puxei o ar, tentando criar coragem e me preparando para
não fazer nenhuma bobagem durante aquelas horas a sós... Com ela.
Empinando o nariz e regulando a respiração, eu entrei, como se há dois segundos eu não
tivesse quase infartado.
Graças ao som dos meus saltos, ela não demorou mais do que meio segundo para perceber
a minha presença ali. Assim que me viu, deu uma última tragada, soltando a fumaça, e jogou o
cigarro no chão da sala, apagando com o pé.
— E aí... — disse ela, me encarando de cima a baixo.
Ainda que tentasse disfarçar, eu podia perceber os seus olhares levemente furtivos em
direção ao meu corpo, especialmente as minhas coxas nuas, depois dos limites da barra da saia
curta e plissada.
— Oi.
— Senta aí... — apontou com o queixo, para uma cadeira ao lado da sua.
Contudo, estava perto demais.
Muito perto para alguém capaz de cometer uma besteira a qualquer momento, mesmo com
as vozes incansáveis de Grace Peterson, na minha memória, dizendo: “As Peterson nunca ficam
com qualquer pessoa.”
Suspirei, fazendo um esforcinho para afastar um pouco a cadeira, e me sentei.
Coloquei minha bolsa ali por cima e, então, a encarei, pelo cantinho do olho, quase sem
jeito. Era impossível observá-la e não lembrar do sonho que tive, assim como também era
impossível me lembrar do sonho e não sentir vergonha por ter gozado tanto para ela, depois de
ter gemido tão alto nos seus ouvidos.
Era desconcertante, ainda que isso não tivesse acontecido na realidade.
Rayka, por sua vez, também me olhou de volta. Passeou, com suas orbes vivas e acesas,
por mim, e nada mais falou. Por um momento, o silêncio que nos tomou foi tão estranho quanto
os meus próprios pensamentos sobre ela. Senti como se as minhas bochechas estivessem
gradativamente esquentando de vergonha.
Isso era incômodo.
Seu olhar me intimidava.
Comecei a me inquietar, batendo com a ponta da sandália no chão.
E, então, quando achei que eu mesma teria que puxar qualquer assunto e falar alguma
besteira, para quebrar aquele silêncio tenebroso, ela perguntou:
— Está recuperada de ontem?
— Tá falando do banho de lama que eu levei por sua culpa? — ergui uma das
sobrancelhas. — Sim, depois de ter passado umas duas horas no banho, consegui me livrar
daquele monte de óleo nojento e estragado.
Boa.
Essa resposta foi excelente.
Pelo menos, soei como a Victoria Peterson de sempre, e não como aquela idiota que estava
seriamente afetada por uma sapatão gostosa e mentirosa. Foi como alcançar, por alguns instantes,
uma breve zona de conforto que já me parecia tão difícil de estar, nos últimos tempos.
E eu vi, eu vi mesmo que fosse discreto demais, o pequeno e ínfimo vislumbre de um
sorriso no cantinho dos seus lábios, ao me ouvir.
Aquele sorriso...
Aquele sorriso verdadeiro que, há dias, eu não via.
Poderia até parecer bobagem demais minha... Quero dizer, na verdade, era bobagem
demais mesmo, mas alguma coisa esquentou dentro do meu peito, ao notar os cantinhos da sua
boca se curvarem. Eu não sabia ao certo o que era, mas, no fundo, parecia... Felicidade.
Droga.
Você tá tão ferrada, Victoria.
Até quando vai continuar assim?!
Pigarreei a garganta, tentando retomar a postura.
— Será que dá pra gente começar logo? — completei, esforçando-me parecer a Victoria
insuportável de sempre, quando, na verdade, eu só queria sorrir para o seu sorriso idiota. — Não
tenho o dia todo disponível para fazer isso.
Ela puxou o ar de leve.
— Claro. Vamos começar por Shakespeare e Scott Fitzgerald. Nas próximas aulas,
revisamos os outros conteúdos do teste.
Falando assim, ela até parecia responsável.
Mas, só parecia mesmo.
— Que maravilha... — ironizei de leve, revirando os olhos e já abrindo o livro de
Literatura.
— Muito bem, deixa eu ver aqui... — pegou o livro sobre a minha carteira e começou a
folheá-lo. Aquele biquinho lindo de atenção que ela fazia, quando estava concentrada em algo, já
era a sua marca registrada. E eu... Eu não conseguia parar de observar. Que inferno. — Sonetos
de Hamlet. Minha mãe costuma fazer várias questões sobre — completou.
— O príncipe chorão da Dinamarca — zombei.
— Olha só... — ergueu uma das sobrancelhas em minha direção, quase admirada. — Para
quem está com um pé na cova em Literatura, até que você já tem algum conhecimento. Isso é
muito bom. Talvez a gente possa progredir mais rápido assim.
— Por favor... — apertei os olhos de leve. — Sei que sou burra em Literatura, mas
também não é tanto assim.
Sem esforço, ao ouvir a minha resposta, aquele sorrisinho leve e quase imperceptível quis
aparecer de novo em seus lábios.
Tão charmosa.
E eu tão fraca.
Saco.
Quando eu ia conseguir parar com isso?
— Então, vejamos... — continuou ela, pousando os olhos atentamente sobre uma das
páginas. — Olha que interessante... “Ó, eu, o que os olhos colocaram na minha cabeça, que não
tem correspondência com a visão verdadeira? Ou, se tiver, para onde minha razão fugiu, que
censura falsamente o que eles veem?” Isso é lindo.
De automático, torci o nariz, fazendo uma careta para ela.
— Lindo? Isso não é lindo. É baboseira. Eu não faço ideia do que ele está dizendo.
— Está dizendo que o amor é mágico — explicou. — E que faz as pessoas olharem umas
para as outras de um jeito puro, sem julgamentos.
Por um segundo, tive a impressão de que as suas palavras estavam deslizando pelo ar,
flutuando, ondulando tão sútil e docemente, ao ponto de alcançar os meus ouvidos com carinho e
massagear o meu coração.
O amor é mágico.
E faz as pessoas olharem umas para as outras de um jeito puro, sem julgamentos.
Ouvir e perceber isso foi estranho.
Estranho e bom, ao mesmo tempo.
E o fato de ter sido tão bom só deixava as coisas ainda mais esquisitas.
Puxei o ar de leve, tentando não parecer uma idiota afetada com a sua interpretação de
Shakespeare. Fiz o possível para ser apenas a Victoria intragável de sempre. Era melhor assim.
Mais seguro para mim. Para nós.
— E por que ele não diz isso? — devolvi. — Por que as pessoas não dizem o que pensam?
Odeio arrodeios.
Só que, tão logo eu me calei, aquela última frase me pegou. As palavras escaparam da
minha boca, e só percebi o significado pessoal delas, depois que eu já tinha falado. Foi como um
estalo na minha cabeça.
Odeio arrodeios...
De alguma forma, parecia hipocrisia minha, por mais que eu não gostasse de admitir isso.
— As pessoas raramente fazem isso. Seria mais fácil, se todo mundo falasse abertamente
sobre o que pensa e sente de verdade, não é? — de leve, ergueu uma das sobrancelhas para mim.
— Às vezes, a gente precisa fazer o trabalho de enxergar por baixo da superfície. Veja só a linha
12. — apontou, lendo em seguida. — “O próprio Sol não vê até que o Céu clareie.” O que isso
significa para você?
“Seria mais fácil, se todo mundo falasse abertamente sobre o que pensa e sente de
verdade, não é?”
Aquela sobrancelha arqueada e o tom que usou só me davam a certeza de que, naquele
momento, Rayka tinha pensado o mesmo que eu, a respeito de um tal assunto.
As pontas em aberto entre nós...
Senti o meu coração querer acelerar um pouco, ainda que eu nem soubesse exatamente o
motivo, mas, novamente, o meu único objetivo foi enterrar qualquer indício de vulnerabilidade.
Por fora, eu não era nada mais do que um lago calmo e tranquilo. Por dentro, uma tempestade
começava a se formar acima do oceano.
Não era fácil estar ali, sozinha com ela, enquanto tinha um mundo de coisas ao nosso
redor berrando por uma solução.
Pigarreei a garganta, no entanto, para respondê-la, intragável como sempre:
— A única coisa que consigo entender disso é que o sol não consegue brilhar quando está
nublado. E só.
Rayka suspirou, passando a língua entre os lábios, como se estivesse tentando escolher as
melhores palavras para explicar.
— Você está sendo literal. Não escolha o óbvio. Todas essas palavras têm vários
significados. Precisa explorar as possibilidades e fazer a sua escolha. Sol pode ser o Sol de
verdade ou luz. Mas, luz pode ser conhecimento ou razão.
Franzi o cenho de leve.
— Só que, se eu ficar filosofando demais, isso pode se tornar infinito. Podem existir
inúmeras possibilidades.
— Sim, pode. Mas, neste caso, significa razão. E Céu pode se referir aos Portões do
Paraíso, ou pode significar como você está. Por exemplo, se está feliz ou apaixonada. Agora, leia
de novo, considerando todas as possibilidades, e diga o que acha que significa.
Cara, ela parecia tão mais linda explicando isso.
Tão inteligente.
Tão... Interessante.
Droga.
Droga, droga, droga.
Puxei o livro da sua mão, de maneira meio brusca, irritada comigo mesma por não ser
capaz de refrear os meus pensamentos e sentimentos sobre ela, apesar de tudo. E, então, tentei
me concentrar apenas no que eu tinha ido fazer ali: aprender Literatura.
Encarei as palavras do soneto com muita atenção. Fui e voltei. Refleti, analisei.
Pensei.
Pensei.
Pensei.
E, enfim, disse:
— O próprio Sol não vê até que o Céu clareie... Acho que significa que o amor cega e que,
quando estamos amando, não pensamos direito.
— Você concorda? — perguntou ela.
Seus olhos, porém, pareceram estranhamente mais escuros, ao perguntar isso. Um frio na
barriga revirou o meu estômago, de repente, sem que eu pudesse evitar.
Suspirei, fazendo o possível para controlar as sensações.
— É-É... — gaguejei sem querer. — Quero dizer, é só um poema.
— A poesia não é para fazer sentido. É para sentir. E você precisa estar sentindo para
entender o que ela significa.
Você precisa estar sentindo para entender...
Outra vez, era como se Rayka estivesse falando algo nas entrelinhas. Ao mesmo tempo
que parecia se referir ao próprio poema, eu também tinha a impressão de que, por trás, ela estava
querendo dizer algo sobre nós. Sei lá, talvez eu já estivesse começando a entender a dinâmica por
trás da poesia.
Eu enxergava por baixo da superfície o que ela queria dizer.
E o pior: eu estava sentindo. Eu realmente estava sentindo, não apenas o que Shakespeare
queria dizer com aquelas palavras, mas tudo. Tudo o que envolvia eu e ela. Todo aquele bolo de
confusões infindáveis na cabeça. Nós duas, as cartas, tudo o que já vivemos, a minha família, o
que esperavam de mim, o que eu esperava dela e... Maverick.
A ilusão de algo que nunca existiu.
Ou, se existiu, era apenas na minha e na sua cabeça.
Tantas coisas confusas, tantas coisas sem sentido e com sentido, que, quando dei por mim,
algo já estava saltando na minha boca:
— Tipo em O Grande Gatsby de Scott Fitzgerald. Não é uma poesia, mas é um romance
em que a gente precisa sentir para saber se ele realmente estava mentindo ou sonhando.
Mentindo.
Mentindo.
Mentindo.
Essa palavra continuava tão delicada pra mim.
Uma expressão que nos dividia e construía muros entre nós.
— Exatamente. Só que, no caso de Gatsby, era um sonho.
Balancei a cabeça em negativo, meus olhos brilhando de uma maneira que eu não gostaria
que acontecesse nem em pensamento.
— Não foi um sonho. Foi tudo mentira.
E, sem que eu pudesse evitar, o tom que eu depositei em “mentira” estava pior do que
todas as outras vezes em que eu a acusei de enganação. Tinha rancor, decepção, frustração na
voz. Tudo. De repente, eu já não parecia estar mais me referindo à Literatura ou ao Grande
Gatsby. Eu estava, na verdade, falando de mim, de nós, quando todas as lembranças do
motorhome, mesmo sem permissão, voltaram com força total à minha cabeça.
Minhas esperanças de finalmente dar certo com alguém que não fosse uma mulher. A
ilusão batendo na minha porta. A certeza de que eu talvez não tivesse sido feita para ficar com o
cara brilhante que as Peterson tinham a obrigação de ter ao lado. A pura sensação de que fui feita
de otária.
E, pela maneira como Rayka passou a me observar, com temor, eu tinha certeza de que ela
já sabia o que estava acontecendo.
Assim como nas poesias de Shakespeare, que ela tinha total habilidade para interpretar,
naquele momento Rayka estava me lendo, traduzindo o meu corpo, e captando o exato
significado de tudo o que eu falava.
Passando a língua entre os lábios, ela cravou os seus olhos nos meus e respondeu:
— Foi um sonho, Victoria.
Só que os meus olhos, quase lacrimejando, enquanto confundiam o que era real com o que
era Literatura, acompanhavam o mesmo fervor da minha língua imparável.
— E o sonho não acaba sendo uma mentira do mesmo jeito? — devolvi.
Mandíbula pressionada, corpo tenso.
— Gatsby deu a vida para salvar Daisy.
— Daisy era só um troféu para o Gatsby — retruquei, puramente comprimida.
Rayka bufou.
As entrelinhas estavam ali. Estavam entre nós, numa perfeita confusão entre Literatura e
realidade. A nossa vida em um paralelo com o que deveríamos estar estudando.
— Gatsby amou Daisy!
— Foi tudo mentira! — revidei entredentes.
E, sem conseguir conter as estúpidas lágrimas que queriam rebentar pela milésima vez, na
sua frente, me levantei da cadeira de supetão, atordoada, sem conseguir respirar direito.
Segui direto para a janela da sala, com uma das mãos na boca e a outra sobre o estômago,
me pressionando a não parecer uma fracassada perto dela outra vez.
Eu precisava de ar.
No entanto, quando eu menos eu esperei, Rayka também se levantou e, em um rompante
surpreendente, com os olhos cravados nos meus, sem piscar, ou melhor, sem desviar para
qualquer outra direção, me tomou entre as suas mãos, segurando firmemente o meu rosto e
grudando a sua testa na minha.
E a minha tentativa de recuperar o fôlego foi totalmente por água abaixo, quando, colada
em mim, ao ponto de sentir a sua respiração forte aquecendo a minha pele, ela perguntou em
sussurro obstinado:
— O que eu preciso fazer para que acredite nas minhas palavras, Victoria?
A minha surpresa com a sua atitude inesperada, porém, foi inversamente proporcional à
minha capacidade de empurrá-la para bem longe de mim.
Sim, era isso o que eu deveria fazer.
Eu tinha a obrigação moral de empurrá-la para bem longe.
Mas...
A mistura de tudo... A combinação do seu toque, da sua voz, da maneira como me olhava
com tanto desejo, do jeito como falava comigo, da forma como a sua respiração quente se
espalhava pelo rosto, tudo. Tudo, tudo, tudo, me impedia de agir com a razão.
Meu juízo estava meio falho, afinal. Sobretudo, quando eu tinha Rayka tão perto de mim,
depois de tanto desejar isso nos últimos dias, entre raivas, decepções e culpas.
Simplesmente, amoleci entre as suas mãos, que nem uma otária. E, deixando que algumas
lágrimas de fraqueza escapassem, fechei os meus olhos, enquanto sorvia a sensação dos dedos
me segurando.
— Você é maluca... — sussurrei.
— Eu sei... — respondeu.
Ela, por sua vez, deslizando do meu rosto até os braços, me envolveu calma e gentilmente
pela cintura, encaixando o rosto na curva do meu pescoço e roçando os seus lábios macios por
ali. O frio na minha barriga foi tão voraz quanto o arrepio nos meus pelos.
E as minhas lágrimas... As minhas lágrimas começaram a descer com ainda mais
intensidade.
— O quê que tá faltando? — disse ela contra a minha pele. Seu rosto ainda encaixado no
meu pescoço. — Eu tenho certeza de que, no fundo do seu coração, você sabe que eu estou
falando a verdade. Nunca menti em nada. O que falta, Victoria? Coragem?
Falta a sua mão dentro da minha calcinha.
Argh, que inferno!
Seu corpo grudado em mim não me ajudava a raciocinar direito. Eu não estava pensando
corretamente. Era tudo, tudo muito confuso, enquanto os meus desejos irracionais gritavam,
ainda que isso fosse absurdo demais, para que eu enfiasse a língua na sua boca e colocasse a sua
mão dentro da minha roupa.
Mas...
“As Peterson nunca ficam com qualquer pessoa...”
A voz da minha avó, repentinamente, soou tão clara e nítida na minha memória.
Droga.
Mais lágrimas inúteis de culpa e de vontade escorreram, enquanto, de olhos fechados, eu
me pressionava a não chorar, mesmo que fosse completamente em vão. Eu sentia tanta raiva de
mim mesma por causa disso. E me odiava tanto. Eu não devia chorar, porque as Peterson não
choravam.
Eu não devia ser fraca, só que isso parecia impossível.
A questão não era apenas a sua provável mentira e enganação.
A questão era a minha vida.
E tudo o que eu deveria ser.
— Não podemos... — sussurrei.
Sussurrei, ainda que tudo em mim doesse demais ao dizer isso.
Ela, por sua vez, ergueu o rosto, encarando o fundo dos meus olhos.
— Por que não? Você quer, não quer?
Eu estava no limite.
Eu juro que estava.
Eu estava no meu limite entre o querer e o dever.
O desejo e a obrigação.
O certo e o errado.
E, então...
“Você é uma Peterson e não deve aceitar nada menos do que a perfeição.”
“Ela não é uma menina normal, ela é lésbica.”
“Você não é lésbica, Victoria. Você é uma Peterson.”
“Você é uma Peterson e não deve aceitar nada menos do que a perfeição.”
“Ela não é uma menina normal, ela é lésbica.”
“Você não é lésbica, Victoria. Você é uma Peterson.”
“Você é uma Peterson e não deve aceitar nada menos do que a perfeição.”
“Ela não é uma menina normal, ela é lésbica.”
“Você não é lésbica, Victoria. Você é uma Peterson.”
Subitamente, fui bombardeada pela minha própria memória traiçoeira. Vozes cada vez
mais perturbadoras na minha cabeça, se repetindo e me deixando completamente tonta, confusa,
desnorteada. Minha avó, minha mãe, a grande maioria das pessoas que estavam ao meu redor.
Era tudo o que esperavam de mim. Era tudo o que eu deveria fazer. Era tudo o que eu tinha a
obrigação de ser.
Era demais.
Demais pra mim.
Muito mais do que eu conseguia suportar.
Zonza, com o coração quase saindo pela boca e todas as emoções à flor da pele, eu apenas
disse, sem conter o soluço de choro:
— Dá licença, por favor.
E, correndo, saí daquela sala.
Corri, corri, corri, enquanto lágrimas pesadas escorriam feito cachoeiras imparáveis.
Naquela altura, eu já não me importava de estar, provavelmente, agindo como uma louca no
meio da universidade. Na real, eu nem estava enxergando direito um palmo à minha frente.
Tonta, eu já tinha perdido a noção da direção. Não sabia mais nem para que lado ficava a
fraternidade.
Eu só queria fugir para bem longe.
Eu só queria sumir.
Eu só queria... Ficar bem comigo mesma.
Eu só queria parar aquela confusão insuportável dentro da minha cabeça.
Eu só queria ser alguém normal, caramba!
BUUM!
Repentinamente, quase caí no chão, ao esbarrar em cheio em alguém, quando dobrei num
dos corredores por ali.
Do jeito como eu estava, isso foi apenas uma pequena faísca para o completo incêndio.
— Será que você não olha para onde anda, não?! — explodi.
Porém…
— Victoria...?
Aquela voz calma e paciente até demais.
Meu corpo subitamente retesou e eu parei.
Reconheci a voz.
Esfregando as mãos no rosto, para tirar o excesso de lágrimas dos olhos, foi quando eu
pude ver direito quem era. E, sem que eu conseguisse evitar, senti perfeitamente o momento em
que o meu rosto queimou de vergonha pela maneira desaforada como falei com ela.
Era a psicóloga da universidade.
— A-Ah... Giselle? — desconsertada, gaguejando, sibilei. — O-Oi.
Juro que eu não sabia onde enfiar a minha cara.
Não queria que ela me visse assim.
Aliás, eu não queria que ninguém me visse naquele estado.
— Victoria... — claramente preocupada, com as suas sobrancelhas bem arqueadas, ela se
aproximou ainda mais de mim, me fitando atentamente. — O que aconteceu com você?
Ah, droga.
Ela percebeu.
Na real, quem não perceberia?
— Na-Nada — tentei desconversar, virando o rosto em outra direção, enquanto fazia o
possível para não chorar de novo, mesmo que o bolo na minha garganta estivesse na iminência
de transbordar. — Não aconteceu nada.
— Victoria... — tocou o meu rosto, com tanto carinho, com tanto cuidado. — É
impossível que algo não tenha acontecido.
E, então, sua delicadeza e preocupação funcionaram como gatilhos para que as minhas
forças novamente desmoronassem e eu me visse como aquela garota sem norte e sem cabeça
para qualquer coisa outra vez.
Eu não tinha o costume de falar dos meus problemas para ninguém, nunca tive, nem para o
meu pai, nem para a Brittany que era a minha melhor amiga, e muito menos para a minha avó.
Também nunca fui familiarizada com psicólogos, porque nunca achei que um desconhecido
pudesse me ajudar mais que alguém que teoricamente estava próximo a mim.
As Peterson davam um jeito em tudo sozinhas, afinal.
As Peterson eram autossuficientes.
As Peterson eram superpoderosas.
E eu não queria ser a Peterson fracassada da família. Não queria mesmo. Por isso, me
acostumei a engolir todos os sapos sozinha. Eu guardava tudo, absolutamente tudo, ainda que
isso fosse adoecedor demais.
No entanto...
Dessa vez...
Dessa vez, simplesmente não dava.
O meu limite já tinha extrapolado.
E eu não enxergava qualquer maneira de conseguir sair daquela fossa sozinha.
— Eu estou perdida...
Simplesmente, confessei, incapaz de segurar o soluço que escapou da minha garganta. E,
assim, na sua frente, entregando de bandeja toda a minha vulnerabilidade para uma quase
desconhecida, eu voltei a chorar tudo de novo.
EU TÔ SÓ FAZENDO MERDA, NÉ?

“Não tenha medo de continuar, não tenha medo de desistir,


é melhor falar demais do que nunca dizer
o que você precisa dizer de novo”
Say | John Mayer

VICTORIA

Frágil, de uma maneira como raras vezes me senti, eu me deixei ser guiada por ela. Giselle
me abraçou e, devagar, caminhou comigo rumo à sua sala de trabalho, na universidade. Ainda
notei olhares furtivos de algumas pessoas, por onde nós passávamos. Pareciam surpresas, ao se
darem conta do meu estado. Vez por outra, eu até notava cochichos, rumores do tipo “o que
aconteceu com ela?”, mas apenas continuei andando.
Por vezes, eu quis esconder o meu rosto, encontrar uma maneira de disfarçar, ou sei lá.
Mas, honestamente, não dava, era impossível. Aquele semblante de fracasso já fazia parte de
mim. Parecia assustadoramente grudado na minha personalidade. E era só questão de tempo para
que a notícia se espalhasse pelo campus inteiro, assim como aconteceu com a minha foto. Afinal,
todos queriam saber de fofocas quentes sobre Victoria Peterson, especialmente quando eu estava
ferrada.
Era como se dançassem sobre a desgraça alheia, sabe?
Minutos mais tarde, porém, já na sala de trabalho da Giselle, ela me oferecia um copo
d’água com açúcar e um travesseiro fofo, enquanto, sentada sobre um sofá muito confortável, eu
sentia a minha respiração um pouco mais regular do que antes. Meu rosto, com certeza,
continuava uma bagunça de vermelhidão e resquícios de lágrimas, mas, ainda assim, eu
aparentemente tinha conseguido reprimir o choro, pelo menos, no momento.
Um silêncio ainda nos abraçou ali. E algo me dizia que era proposital. Giselle apenas
fechou a porta, colocou uma música extremamente baixa e calma, e não puxou assunto por um
tempo. Eu sabia que ela queria me dar espaço. Espaço para pensar, para me acalmar, ou mesmo
para começar a colocar as coisas no lugar. Um espaço para eu não voltar a surtar.
Sem que eu me desse conta do quanto a hora avançou, tão imersa dentro de mim mesma e
dos meus pensamentos, enquanto encarava o copo já vazio, ouvi quando, de leve, ela perguntou,
se referindo à água com açúcar.
— Quer mais?
Pisquei os olhos algumas vezes, puxando o ar.
Era a minha maneira de tentar voltar ao mundo real.
— Não, obrigada — respondi, colocando o copo sobre uma mesinha de centro.
— Como está se sentindo? Melhor?
Balancei a cabeça de leve, esfregando as mãos na saia plissada, como o reflexo de algum
nervosismo que ainda existia em mim.
— Não... Só mais controlada.
Ela suspirou, e, então, me observando com tanta cautela e afeição, tornou a perguntar:
— Será que se sente confortável para me dizer o que houve? Talvez eu possa ajudar.
Talvez eu possa ajudar...
As palavras, que pareceram passear tão sutilmente pelo ar, entraram nos meus ouvidos
com uma força poderosa. Elas me causavam certa... Estranheza. E a estranheza não foi apenas
pelo poder que aquela frase parecia ter, mas porque eu raramente as escutava, sobretudo de
alguém que eu praticamente não me conhecia.
O vinco que se formou na minha testa, enquanto eu sorvia as suas palavras e a encarava,
não foi de propósito. Na verdade, foi como uma reação involuntária de uma pessoa que, pela
primeira vez na vida, tinha a sensação de que realmente poderia ser ouvida por alguém que talvez
quisesse e pudesse, de fato, ajudar.
— Você? — perguntei, em tons que misturavam incredulidade com espanto.
Eu sabia que ela era psicóloga e que escutar e conversar eram alguns dos seus papéis,
mas... O novo sempre pareceu me assustar tanto.
— Sim... Eu. Existe algum problema nisso, para você?
Balancei a cabeça de leve outra vez, esfregando uma das mãos no rosto.
— Não, eu só... — balbuciei, sem saber como dizer, porque nem mesmo isso eu tinha o
costume de falar. As Peterson, em teoria, dificilmente tinham problemas na vida. E, quando
tinham, logo davam um jeito. Pelo menos, foi o que eu passei a vida inteira ouvindo. — Eu só
não estou acostumada com... Com esse tipo de coisa, sabe? Eu não tenho o hábito de me abrir
para alguém.
— E que tal experimentar isso agora? — um pequeno sorriso encorajador quis aparecer
em seus lábios. — Tenho certeza de que pode fazer bem a você.
Puxei o ar, me inquietando um pouco sobre o sofá. Eu juro que não sabia como fazer isso.
Nunca me passaram um manual de como era contar os seus problemas para outras pessoas.
Parecia existir uma trava em mim, na minha garganta, sei lá, algo que me refreava sempre que
eu, ao menos, cogitava a possibilidade de desabafar sobre algo sério que estivesse acontecendo
comigo.
Além do mais...
Como falar aquilo?
Como explicar que eu estava perdidamente louca por uma mulher?
Como admitir isso?
Como dizer, em voz alta, o que eu tinha medo de falar até, para mim mesma, em
pensamento?
E se alguém, fora ela, pudesse estar ouvindo? E se ela contasse a alguém? O que iriam
pensar de mim? O que iriam falar sobre mim? Assim como a minha avó costumava dizer sempre
que eu pisava na bola com qualquer coisa, a minha imagem estaria completamente manchada,
não estaria?
Algo me dizia que gostar de uma garota era um grande, imenso e amedrontador pisão na
bola.
Droga.
Percebi o exato instante em que os meus batimentos cardíacos aceleraram outra vez. Era
como um gatilho. Me forçar a abrir a boca, para colocar aquilo pra fora, era como um gatilho
para mim. Senti toda a agonia, de minutos, querendo voltar. A aflição e o tormento de tentar
segurar na minha boca, por puro medo e covardia, algo que estava transbordando de mim, há
tanto tempo, e quase me sufocando.
— Vamos, Victoria... — calmamente, tornou a falar. — Coragem.
Coragem...
Coragem, coragem, coragem.
Sem que eu pudesse evitar, repentinamente, a minha memória me transportou de volta a
uma lembrança tão recente. Uma lembrança de, mais precisamente, uma hora atrás. Nós duas
naquela sala de aula, seus braços me envolvendo pela cintura, seu corpo colado no meu, seu
rosto encaixado na curva do meu pescoço, seus lábios roçando, esquentando a minha pele, e...
“O quê que tá faltando? Eu tenho certeza de que, no fundo do seu coração, você sabe que
eu estou falando a verdade. Nunca menti em nada. O que falta, Victoria? Coragem?”
Sua voz parecia tão clara na minha cabeça que, mesmo Rayka não estando ali, naquela
sala, era como se estivesse. Era como se estivesse bem ao meu lado. E eu me assustei.
Inevitavelmente, me assustei, como eu sempre me assustava com ela, comigo mesma e,
principalmente, com o fato de que o meu medo era do mesmo tamanho do desejo que eu sentia
por ela.
Era enorme.
Era demais.
A minha vontade de beijá-la.
O meu sonho de poder deslizar os seus dedos por baixo da minha roupa.
Que inferno.
Eu não ia mais conseguir segurar aquilo, não dava para continuar guardando só dentro de
mim. Eu estava me afogando, me sufocando. Se eu continuasse assim, eu ia explodir.
Enlouquecer completamente.
Giselle ainda completou:
— Eu te garanto que você vai sair dessa sala muito melhor do que quando entrou. O que
está te atormentando tanto?
Incapaz de suportar, soprei o ar tão pesado dos meus pulmões e pedi, quase suplicando:
— Você me promete que vai guardar segredo?!
— Minha querida... — tão carinhosa, ele me encarou e replicou. — Esse é o meu trabalho.
Eu passo o dia inteiro ouvindo sobre a vida das pessoas e tenho o dever ético de guardar tudo
comigo. Não se preocupe. O que nós conversarmos aqui, ficará somente aqui.
Tudo bem.
Tudo bem, tudo bem, tudo bem.
É agora, Victoria.
Coloca pra fora, de uma vez por todas.
— Eu beijei uma garota. A Rayka. A filha da mulher do meu pai. — minha voz
subitamente embargou, meus olhos se encheram d’água. — E acho que quero beijar muitas
outras vezes.
Despejei tudo de uma vez, com medo de me sentir ainda mais machucada ao pronunciar
isso. No entanto, por um instante, algo esquisito aconteceu. Meu corpo até retesou, quando a
sensação me perpassou.
Ainda pisquei os olhos algumas vezes, confusa comigo mesma.
Foi estranho.
Estranho, porque achei que falar isso seria doloroso, mas, na real, confessar, em voz alta,
aquilo que eu guardava no meu coração há tanto, tanto tempo, só fez eu me sentir subitamente...
Leve.
Que bizarro.
Giselle, por sua vez, me encarou como se estivesse esperando que eu dissesse algo mais.
Foi aí que a minha apreensão voltou. Talvez eu tivesse dito muito na lata, talvez ela estivesse
esperando alguma explicação.
Afinal, mulheres normais não ficavam com mulheres, ficavam?
Será que ela ia me mandar para um psiquiatra por estar realmente louca?
Ai, não.
— O que foi? — preocupada, perguntei. — Estou realmente maluca? Preciso de algum
tratamento psicológico?
— Não... Na verdade, eu estava esperando que você me falasse sobre o problema.
Como assim?
Franzi o cenho.
— Esse é o problema.
Foi quando ela, enfim, arqueou de leve as sobrancelhas, suspirando.
— Hum... — e me fitando sob olhares analíticos, ela replicou. — Estou entendendo.
Quero dizer, estou começando a entender. Me explique melhor isso, Victoria. Por que o fato de
beijar uma garota é um problema, para você? Existe alguma razão, algum motivo em específico?
Ergui uma das sobrancelhas para ela, sem entender onde estava querendo chegar.
— Será que não é evidente?
— Não para mim, querida... Por favor, me fale.
Suspirei, me preparando.
— Mulheres ficam com homens, não com mulheres.
Como um mantra tóxico, repeti a frase pela qual fui doutrinada a vida inteira.
Só que dizer isso foi estranhamente doloroso do jeito como eu pensei que seria a minha
confissão. Ao contrário, porém, a confissão do beijo não me doeu, mas mencionar que mulheres
só podiam ficar com homens me partiu em um milhão de pedaços.
Engoli seco, tentando empurrar o bolo que se formava na minha garganta.
Giselle, então, se remexeu sobre a sua cadeira, como se a minha fala tivesse a inquietado
em certa medida.
— Você realmente acha isso? Seja sincera comigo, Victoria. Você acha que mulheres
foram feitas para ficar apenas com homens?
Puxei o ar, esfregando uma das mãos na cabeça e coçando o couro cabeludo, como um
reflexo involuntário de toda a agonia que borbulhava dentro de mim, há três séculos. Era esse um
dos principais pontos que me atormentava. Enquanto uma parte de mim só queria reproduzir
falas, atitudes e pensamentos para agradar a minha família e não ser malvista por alguém, outra
parte apenas gostaria de estar em um lugar onde não fosse crucificada por sentir tesão por uma
garota.
— Eu não sei... — em um sopro, desnorteada, eu desabafei. — Passei a vida toda
escutando que eu deveria encontrar um cara que estivesse à altura de uma Peterson. Um cara
perfeito. E não uma mulher.
— E a sua relação com a Rayka, como é?
— Péssima — rolei os olhos úmidos, de leve. — A gente nunca se deu bem.
— Nunca? — ergueu uma das sobrancelhas, me fitando atentamente. — Bom, eu estou
conhecendo a história de vocês agora. Mas, para que você tenha a beijado e esteja sentindo
vontade de beijá-la outras vezes, talvez a relação não seja tão péssima assim. Será que não existe
algum sentimento bom, mesmo que esteja escondido?
Será que não existe algum sentimento bom, mesmo que esteja escondido?
De repente, um pequeno e ínfimo riso sem humor escapou dos lábios, enquanto, incrédula
com a minha própria capacidade de ser racional, balancei a minha cabeça em negativo. Meus
olhos brilhando em lágrimas pré-anunciadas outra vez.
— Eu juro, juro que não sei o que acontece comigo, quando eu a vejo, quando estou perto
dela — revelei com tanta contrição. Aquele bolo querendo subir com mais força pela minha
garganta. — Parece que eu enlouqueço. Eu simplesmente paro de pensar do meu jeito, como
Victoria Peterson, e começo a sentir e a fazer coisas que nunca imaginei ser capaz. É como se eu
me tornasse outra pessoa. E isso é assustador, confuso. Não me conheço mais, não sei mais quem
sou. Não sei se ainda sou a Victoria Peterson que todos querem que eu seja, ou se estou me
tornando alguém que vai envergonhar a família. Não aguento mais isso.
Lágrimas silenciosas tornaram a cair.
Giselle, por sua vez, me encarando tão concentrada, repetiu as minhas palavras, em tom de
pergunta:
— Envergonhar a família?
— Sim — respondi sem pensar duas vezes.
Esse era o meu fantasma.
Ela suspirou e, então, tomando nota sobre algo em um bloquinho que puxou sobre a mesa
de centro, ela questionou algo mais:
— Como foi a primeira vez em que você viu a Rayka? Consegue se lembrar? Conte para
mim.
— Eu... — meneei a cabeça outra vez, fechando os olhos por um segundo, como se, na
real, eu não quisesse acessar essa memória. — Eu acho que não me lembro direito... Foi há
tantos anos e...
Interrompi a mim mesma, porém, quando os meus pensamentos subitamente me levaram
de volta para lá. Sete anos atrás. O passado se desenhou tão claro e nítido, frente aos meus olhos,
que não pude fazer outra coisa, a não ser realmente vê-lo, ainda que eu não quisesse e, por algum
motivo, tivesse até medo de me lembrar.

...

Naquele feriado de Ação de Graças, a casa de praia estava lotada, em Jacksonville, e


ficaria ainda mais cheia, com a chegada da nova namorada do papai. Eu estava realmente
ansiosa para isso, confesso. Não via a hora dela chegar. Papai já tinha me apresentado à tia
Daisy, uns dois ou três dias atrás, mas eu estava animada para vê-la de novo. Ela era
maravilhosa, e eu estava tão feliz pelo meu pai finalmente ter encontrado alguém.
Enquanto os meus tios faziam churrasco e os meus primos brincavam de marco-polo na
piscina, eu pegava um sol e, em uma das mesas do jardim, desenhava, no meu caderno de artes,
os meus personagens preferidos do último filme que assisti. Entre uma pintura e outra, porém,
ouvi quando o meu pai, em voz alta, chamou por mim:
— Victoria, querida, venha aqui! Daisy chegou!
O meu sorriso foi maior do que eu mesma.
Entusiasmada, rapidamente fechei o meu caderno, guardei todos os lápis de cor e,
correndo, fui direto para a entrada da casa, onde papai já recebia sua namorada.
Me aproximando, eu a vi cumprimentar os meus tios e os meus primos que estavam por
ali. Porém, assim que notou a minha presença, parou tudo o que estava fazendo para me
abraçar.
— Ah, meu amor, que bom ver você!
Me apertando tão carinhosamente, eu não pude deixar de soltar algumas risadinhas. Eu
adorava isso. Adorava mesmo. Desde a minha mãe, eu não recebia carinho de uma “figura
feminina” ou materna, que não fosse a minha avó com o seu trato pouco afetuoso.
— Digo o mesmo, tia... É tão bom que você esteja aqui com a gente!
Ela sorriu, volvendo o rosto para frente do meu outra vez.
— E você, hein? Já está coradinha da praia. O biquíni está fazendo marquinhas —
brincou.
— Victoria se esquece do mundo quando está aqui, para ela é tudo mar e piscina —
divertido, papai respondeu. — Aí está o resultado. Um camarão.
Soltei outras risadinhas. Daisy também.
Em seguida, no entanto, já foi emendando outro assunto.
— Ah, querida, eu quero te apresentar uma pessoa — disse ela.
Só que, antes que Daisy pudesse completar, uma garota logo surgiu por trás dela.
Sorridente, enquanto olhava para os lados, observando tudo em volta, curiosa, o seu corpo só
pareceu retesar quando me viu parada bem ali, quase à sua frente. E, então, os olhos que
observavam tudo, já nem piscavam mais, ainda que o sorriso permanecesse no rosto, enquanto
me fitava.
O mais estranho de tudo, porém, não foi exatamente isso. Foi que eu também me senti
assim, concentrada demais na sua chegada, enquanto tantas outras coisas aconteciam ao nosso
redor. Ainda que eu não soubesse explicar o motivo, era como se a minha atenção tivesse sido
subitamente sugada para os seus cabelos curtos, os seus olhos escuros e o seu sorriso bonito.
Ela era toda bonita.
Toda.
— Esta é Rayka, a minha filha — Daisy completou.
Era a primeira vez que eu a via, assim como também era a primeira vez que eu sentia o
meu coração batendo rápido e lento, ao mesmo tempo, por causa de alguém.
Estranho.
Tão estranho.
Mas...
Ela sorriu ainda mais para mim, se aproximando, e eu não pude deixar de sorrir para ela
também.
— E aí! Tudo bem?! — disse ela, empolgada.
Sua voz também era bonita.
Deus, será que existia alguma coisa nela que não fosse completamente linda?
Rayka parecia ser tão simpática quanto sua mãe também era.
— Tudo! — respondi. — E contigo?
— Tudo ótimo! Prazer! — e, me pegando de surpresa, Rayka me abraçou. De súbito,
ligeiramente desconcertada não pelo seu abraço, mas pelo incrível frio na barriga que me deu e
pela forma como as minhas bochechas arderam um pouco, puxei o ar de leve.
A sensação parecia esquisita.
Mas, ainda assim, também era... Boa.
Muito boa.
E, então, quase sem me dar conta do que estava dizendo, quando as palavras
simplesmente escaparam da minha boca, eu a convidei:
— Quer ir pra piscina? Tem um monte de gente lá!
— Acho que vai ser daora — sorriu.
— Excelente, já estão fazendo amizade! — empolgada, tia Daisy exclamou.
— Vão lá, divirtam-se! Faça as honras da casa para a convidada, Vic — papai brincou.
Rimos uma para a outra.
E, então, juntas, caminhamos rumo ao jardim.
Quando nos afastamos o bastante, ainda ouvi quando ela disse:
— Obrigada, Vic. É legal ter uma garota aqui da minha idade.
Meu olhar foi direto na sua boca, mesmo sem querer.
Acho que eu nunca, nunca iria me acostumar com o seu sorriso.
— Não precisa agradecer. Espero que goste daqui.
— Eu já estou gostando, só por ter conhecido você.
E o frio na minha barriga foi ainda maior.
Suspirei, sem saber o que estava acontecendo comigo.
Quando tentei desviar o olhar, ainda meio desconcertada, vi uma parte do seu braço
envolvida por um plástico típico de quem tinha acabado de fazer uma tatuagem. Não pude evitar
a surpresa. Meu queixo pendeu um pouco para baixo. Era a primeira vez que eu via alguém da
nossa idade com tatuagem.
Rayka devia ter por volta dos quinze anos.
Ela fez a sua primeira tatuagem aos quinze.
Louca.
E eu gostei.
Tinha algo no seu rosto, no seu olhar, ou mesmo no seu sorriso que me fazia gostar dela
de graça, sem motivos, sem razões. Por um instante, Rayka só me pareceu ser a garota mais
legal do mundo, além de bonita, claro, muito bonita.

...

Foi como um soco. Aquela lembrança foi como um soco na minha cara. O golpe que eu
precisava levar na cabeça para finalmente me dar conta de algo que, durante tanto tempo, eu
tentei fingir que não aconteceu.
Eu estava estática, paralisada, absolutamente consternada.
Ainda assim, as palavras não se prenderam à minha boca. Elas resvalaram pelos meus
lábios como uma força imparável da natureza. Com os olhos cheios d’água, prestes a
transbordar, sem nem piscar, eu sussurrei, como se tivesse acabado de passar por um momento
de epifania.
Uma epifania assustadora, mas necessária.
Era como se eu tivesse vivido todos esses anos dormente e, só então, agora acordado. Isso
poderia parecer algo óbvio, claro e evidente para a maioria das pessoas, mas, para mim, não era.
Nunca foi. Apenas agora.
— Acho que gostei dela... — extasiada, repeti exatamente os meus pensamentos. — Desde
que eu a vi pela primeira vez, eu gostei dela. Só não sabia disso.
Ainda em choque com a minha autorrevelação, apenas percebi o momento em que um
pequeno sorriso quis aparecer nos lábios da psicóloga, como se tivesse gostado de ouvir isso.
— Consegue perceber agora que o sentimento bom, por ela, sempre esteve dentro de
você?
Sim...
Sim, sim, sim!
Por um instante, pareceu tão fácil pensar nisso, aceitar isso, dizer para mim mesma, ainda
que em silêncio, que eu gostava e sempre gostei dela. Por um instante, puramente, pareceu
simples.
Tão simplesmente assim.
Estranho e tão... Tão bom, ao mesmo tempo.
Eu quis sorrir, eu quis chorar, eu quis me alegrar, eu quis sair correndo feito louca de tanta
felicidade por finalmente, finalmente ter tido a capacidade de ser honesta comigo mesma.
Porém, como fantasmas que apareciam, de súbito, para nos assustar...
“Ela não é uma menina normal, ela é lésbica.”
“Estar perto dela e ser amiga dela, pode passar a falsa impressão de que você é alguém
como ela. Uma lésbica.”
“Você não é lésbica, Victoria. Você é uma Peterson.”
“Nunca aceite nada menos do que a perfeição.”
Lá estavam aquelas vozes, rigorosamente me atormentando pela quinquagésima vez. O
choro do fracasso, de automático, brotou e escorreu pelos meus olhos, enquanto a sensação de
sufoco evidente apertava o meu peito.
Droga.
Será que eu nunca ia conseguir me livrar disso?!
— Eu... — ofeguei, consternada. — E-Eu não posso. Eu não devo. É errado! — lágrimas
imparáveis continuavam descendo. — Isso não tem nada a ver com o tipo de pessoa que eu
preciso ser. O que esperam de mim, Giselle, é algo completamente diferente disso. E eu tenho o
dever de honrar a minha família. Eu não quero ser uma Peterson fracassada!
Giselle, por sua vez, suspirou, encarando-me com tanta preocupação.
— Quem disse isso pra você, meu amor?
— Minha avó, minha mãe. As mulheres que me deram essa vida. — repliquei, um traço de
ira perpassando os meus lábios, enquanto dos olhos só rolava tristeza.
— E o que te faz pensar que elas têm razão?
— Giselle, por favor... — girei as orbes, já completamente manchadas pela maquiagem.
— Se você trabalha nesta universidade, você sabe da posição das Peterson aqui e fora daqui. As
Peterson fizeram história. Elas elevaram o padrão não somente da fraternidade, mas da própria
universidade. Não tem uma pessoa da alta sociedade de Miami que não nos conheça. Esperam
muitas coisas de mim por causa disso. E pode ter certeza que a última delas é que eu me envolva
com uma mulher. — minha língua quase travou ao pronunciar essas palavras, tamanha
intensidade com a qual isso me despedaçava em tantos micro partes. — Esperam de mim
perfeição. Gostar de mulher nunca me soou como perfeição. Isso nunca chegou aos meus
ouvidos assim. Eu preciso honrar a minha família. Não posso ser a primeira a decepcionar. Não
posso. Não quero carregar isso nas costas.
A angústia me consumindo.
— Minha querida, quer que eu seja realmente honesta com você? — ergueu uma das
sobrancelhas para mim.
E o meu cenho automaticamente franziu.
— Quero... — respondi, receosa.
— Se você soubesse o quão rápido vão te esquecer, quando você morrer, não estaria
deixando de fazer tanta coisa por medo do que vão pensar.
Não que eu quisesse admitir isso, mas só essa frase foi capaz de socar o outro lado da
minha cara.
Ela, por sua vez, continuou.
— Eu sei do peso de todas as suas palavras, mas, sinceramente, Victoria, no fim das
contas, isso não significa nada. Não é porque a sua mãe e a sua avó foram de um jeito, que você
também tem que ser. Elas não são donas da razão.
Elas não são donas da razão.
Elas não são donas da razão.
Elas não são donas da razão.
A frase se repetiu tantas vezes na minha cabeça, em menos de um minuto, que, por um
instante, me senti tonta.
Eu passei a vida inteira achando que elas fossem...
Soprei o ar pesado dos meus pulmões, balançando a cabeça. Mesmo que o fundo da minha
alma gritasse que Giselle tinha razão e que aquilo que ela falava fazia todo o sentido, ainda
existia uma parte de mim, uma ínfima e tóxica parte de mim que tentava resistir.
Porque era tão, tão difícil desconstruir algo que foi alicerçado, cimentado e calcificado
durante uma vida toda. Já estava cravado no meu coração, na minha alma, na minha
personalidade. Era tão duro parar de acreditar em quem passei a vida inteira confiando de
olhos fechados.
— Minha avó me disse que eu deveria me afastar da Rayka, porque ela é uma péssima
influência para mim. E falou também que corro o risco de ser confundida com uma lésbica, se eu
ficar perto dela. Eu tenho um código de conduta a seguir, regras a cumprir. Ela diz o tempo
inteiro que eu não posso manchar a minha reputação, nem a imagem da família. — puxei o ar,
agoniada, quase como se estivesse sem fôlego por correr uma maratona. — E eu não quero isso.
Não quero manchar a imagem da família. Eu não quero gostar de mulher, eu quero ser perfeita!
Dessa vez, foi Giselle quem puxou o ar.
E eu vi.
Eu vi em seus olhos que, no fundo, tudo o que ela pensava era: o seu caso é pior do que eu
imaginava.
E era mesmo.
Eu me sentia completamente sufocada com a minha vida.
Nem eu me aguentava mais.
Como fugir de mim mesma? Era tudo o que eu queria saber.
Ela, no entanto, repentinamente levou a conversa para um rumo diferente. Tão diferente
que, por um instante, eu não entendi. Minha testa enrugou outra vez.
— Você conhece a peça do Lago dos Cisnes?
Parei, confusa.
O que ela queria com isso?
— Conheço — respondi, sem entender.
— E já assistiu ao filme Cisne Negro?
— Sim...
— Ótimo. Então, pode ser que você entenda mais facilmente o que vou dizer. — suspirou.
— No fim da história do Lago dos Cisnes, a Odette, que é a protagonista, se joga no lago, junto
com o príncipe, para finalmente se libertar da maldição que carrega. Já no filme Cisne Negro,
quando a Nina se joga, durante a apresentação de ballet, e morre, ela diz que, nesse momento,
finalmente alcançou a perfeição. Sabe por quê?
Ainda confusa, tudo o que eu consegui fazer foi balançar a cabeça em negativo, esperando
que ela, enfim, dissesse algo que me salvasse daquela bagunça terrível e insuportável dentro do
meu juízo.
— Porque a imperfeição é inerente à condição humana. Ninguém consegue escapar disso,
nem eu, nem você. A Nina passou o filme inteiro brigando consigo mesma, para alcançar a
perfeição. Só quando ela morreu é que, enfim, se sentiu perfeita, porque faz parte da vida nós nos
sentirmos imperfeitos. E não tem nada mais normal e natural do que a imperfeição. A perfeição é
só uma idealização utópica, inalcançável, que nós mesmos criamos. Não acha que é doloroso
demais ir contra a natureza humana?
Não acha que é doloroso demais ir contra a natureza humana?
Sim, eu achava sim.
Aliás, eu não só achava, eu sentia na pele também, exatamente como estava sentindo
agora. A dor dilacerante na alma, torturante e punitiva, por me sentir tão dividida entre o
sussurro no fundo da minha consciência, que me dizia para acreditar na mulher que eu tinha visto
apenas umas três vezes, porque ela realmente estava certa em cada uma das palavras que dizia,
enquanto outras tantas vozes gritavam na minha cabeça para que eu continuasse a dar ouvidos à
minha avó, porque foi ela quem esteve comigo a vida inteira.
Que inferno!
Eu estava a ponto de desistir de tudo, de mim mesma, daquela conversa toda.
Eu sentia que poderia explodir a qualquer momento, enquanto tentava escolher qual
caminho seguir.
Minha respiração estava cada vez mais pesada. Meus ombros subiam e desciam em um
ofego imparável, assustador. E os meus olhos... Os meus olhos poderiam arrebentar outra vez, no
próximo minuto.
— Mulheres são socializadas para agradar — continuou ela, me encarando tão
firmemente, como se soubesse de cada uma das minhas exatas sensações ali e, ainda assim, não
quisesse parar. Era como quem via uma borboleta dolorosamente saindo do casulo. Uma saída
necessária, mesmo que dolorosa, porque esse era o curso natural da vida. — Só que não estamos
aqui para cumprir com as expectativas de ninguém. Nem eu, nem você. Gostar de mulher não
significa imperfeição, querida. Muito pelo contrário. Só te torna ainda mais humana. Gostar de
mulher é um ato revolucionário.
Gostar de mulher não significa imperfeição, querida.
Muito pelo contrário.
Só te torna ainda mais humana.
Gostar de mulher é um ato revolucionário.
Gostar de mulher não significa imperfeição, querida.
Muito pelo contrário.
Só te torna ainda mais humana.
Gostar de mulher é um ato revolucionário.
Suas palavras se repetindo freneticamente na minha cabeça. Todos os meus pensamentos
borbulhando no meu juízo quente. Eu tentando me entender, tentando entender tudo. O couro
cabeludo coçando. O meu olhar desorientado.
Quanto mais a sua voz ecoava dentro de mim, me dando a certeza de que ela tinha razão
em tudo, mas aquela Victoria Peterson, que foi criada e doutrinada para ser impecável, se
revirava enfurecidamente na minha alma, fazendo de tudo para não me deixar sufocá-la.
Ou melhor, para não morrer.
E ela explodiu, a neta de Grace Peterson. Não eu, aquela que tentava entender o que
sentia. Era a outra.
Sim, foi ela quem exclamou através da minha boca, explodindo em uma fúria misturada
com desespero.
— O que você sabe sobre isso, Giselle?! Você nunca deve ter ficado com uma mulher!
Não sabe o que isso significa, não faz ideia!
O desespero daquela Victoria que sabia, ou melhor, que tinha certeza de que estava prestes
a sumir. Era só questão de dois minutos.
Foi o seu último grito.
Sua última tentativa de sobrevivência.
Ela ia realmente morrer.
Giselle, por sua vez, sem dizer mais nada, apenas se levantou da cadeira, caminhou até sua
mesa de escritório e, lá, pegou um porta-retrato grande, que, até então, eu não tinha visto.
Voltando para onde eu estava, ainda calada, apenas o ergueu para mim e, assim, me fez
segurar.
Quando eu realmente o vi e os meus olhos cravaram em cada uma das pequenas e
amorosas fotos que o compunham, eu não sei o que houve comigo, mas eu desabei de vez.
Desabei em um choro confuso, que nem eu mesma entendia. Eu só sabia chorar, chorar, e chorar,
enquanto os observava. Os sorrisos, o jeito como se olhavam, a criança que gargalhava com o
ataque de beijos daquelas que, certamente, eram as suas mães.
Eu não tinha a menor dúvida de que isso era uma das coisas mais lindas que eu já tinha
visto em toda a minha vida.
Nas fotos do porta-retrato, Giselle sempre estava com uma mulher. Em algumas elas se
abraçavam, em outras se beijavam, em outras estavam com um menininho adorável que,
provavelmente, não tinha mais do que cinco anos. E em todas, absolutamente todas, pareciam
tão, tão felizes.
Tudo que eu conseguia enxergar era... Amor.
O meu choro não parava, apenas continuava descendo como uma força imparável. Era
como se eu estivesse chorando tudo o que não chorei durante a vida inteira, porque, por ser uma
Peterson, eu simplesmente tinha que segurar.
Agora, porém, segurar o choro parecia tão estúpido quanto me privar de certas coisas por
ser Victoria Peterson. Estranhamente, isso já não parecia fazer mais tanto sentido quanto antes.
Eu queria chorar, eu queria colocar pra fora.
Culpa, remorso.
Culpa por ter sido grosseira com a Giselle. Remorso por saber que, em grande parte da
minha vida, eu não fui nada mais do que um lixo humano.
Arrependimento...
Arrependimento por ter sido sempre tão covarde.
Com a Rayka.
— Me desculpa... — puxei o ar, conseguindo, enfim, balbuciar alguma coisa. — Me
desculpa por ter falado com você daquele jeito. Vocês formam uma família muito linda.
Um pequeno sorriso se desenhou em seus lábios.
— Obrigada, querida — disse ela, deixando o porta-retrato em cima da mesa de centro. —
Agora, me diga uma coisa, você acha que essas fotos existiriam, se eu e a minha mulher
tivéssemos dado ouvidos às críticas e aos preconceitos, que, infelizmente, não foram poucos? —
ergueu uma das sobrancelhas. — Não estou dizendo que Rayka e você precisam se casar. Vocês
ainda são muito novas e têm um longo caminho pela frente, mas... Imagine só a quantidade de
coisas bonitas e maravilhosas que vocês podem viver juntas, se você se permitir.
E, pela primeira vez, por mais novo, recente e estranho que isso fosse, eu realmente
começava a imaginar.
Entre lágrimas e soluços, eu, gradativamente, imaginava coisas que, outrora, eu morria de
medo, situações hipotéticas que eu preferia me matar a ter que admitir que desejava, experiências
que, até então, eu tinha vergonha até de sonhar sozinha no escuro do meu quarto.
Agora, porém, as ideias começavam, lentamente, a clarear, sem que parecesse tão
assustador quanto sempre foi.
Ainda assim, eu precisava saber algo.
— Só me diz uma coisa, Giselle... Por favor, me diz... — dessa vez, eu não queria
contestar, negar, ou me opor a qualquer coisa. Eu só queria uma solução. — O que eu faço com
a minha avó?
— A sua avó vai ter que provar que te ama tanto quanto você passou a vida inteira
provando a ela. E, se ela realmente amar a neta que tem, vai aceitar, uma hora ou outra. Pode
demorar o tempo que for, mas, se ela realmente te amar, ela vai te aceitar. Ou, ao menos, te
respeitar. — puxou o ar e, então, encarando-me fixamente, completou. — Agora, minha querida,
o que realmente importa é só uma coisa: o que você sente pela Rayka?
Por alguns minutos, eu a encarei firmemente, com os olhos brilhando, sorvendo as suas
últimas palavras, sem saber o que falar além do óbvio.
Eu não aguentava mais.
Eu simplesmente não aguentava mais ter que mentir para mim mesma, negar o que eu
sentia e ter que me fingir de alguém que eu realmente não era.
— Eu sou completamente maluca por ela.
A frase saiu da minha boca, como se tivesse vida própria.
— Então, pare de se machucar e de machucar ela também. Rayka gosta tanto de você. E
eu tenho certeza de que ela só quer que você dê uma oportunidade para que ela te faça bem.
Rayka gosta tanto de você...
Só essa frase foi mais um gatilho, para que outros três milhões de litros d’água escapassem
de mim em forma de choro.
Eu me sentia um lixo, um lixo humano, porque, no fundo, ainda que eu quisesse me cegar
tanto para isso, eu sabia que ela realmente gostava de mim do mesmo jeito que eu também era
inteiramente louca por ela. E eu estava machucando a única pessoa por quem eu era apaixonada
desde os meus catorze anos.
— Eu tô só fazendo merda, né? — sibilei, pouco me importando de estar falando palavrão,
dessa vez.
Algumas coisas que eram importantes pareciam simplesmente estar, aos poucos, perdendo
o sentido, enquanto outras, que nunca dei atenção o bastante, estavam começando a me fazer
pensar, e mudar.
— Querida, por mais que exista um sentimento bom entre vocês, não é saudável que a
relação continue assim. Esse momento, meio confuso, pelo qual você está passando agora é
normal. Cada pessoa leva um tempo diferente para se aceitar, assim como cada um também
encara esse processo de maneiras diferentes. Para alguns, é natural, logo de cara. Esses aceitam
facilmente. Já outros, passam por todo um processo longo e custoso até a aceitação. E alguns
levam uma vida inteira e não conseguem. É desses que eu sinto pena, porque perderam todo o
tempo que tinham, sem se dar a chance de conhecer o amor de verdade. Então, querida, por mais
que seja natural se sentir confusa agora, uma vez que a estrutura social tenta nos oprimir
diariamente, não deixe o medo te parar para sempre. Não deixe que os seus temores se tornem
maiores do que você mesma, nem deixe para depois o que você pode fazer agora.
Engoli seco, sorvendo as suas palavras, ainda com os olhos cheios d’água.
— E o que eu devo fazer agora?
— Você quer ser feliz ou “perfeita”?
Mais uma vez, o que ela falava me chacoalhava como uma força insondável.
Não existia a menor possibilidade de conversar com Giselle sem sair pensando na vida
inteira, e em todas as péssimas escolhas e decisões já tomadas.
Suspirei, sentindo um súbito frio na barriga. Talvez fosse medo. O resquício do medo que
aquela Victoria Peterson ainda carregava. Dessa vez, porém, pelo menos dessa vez, eu não
permitiria que a minha covardia me parasse.
Já bastava.
Já era demais ter sido covarde por sete anos.
— Acho que quero ser feliz.
Ela sorriu para mim.
Sorriu brilhantemente, um traço de orgulho perpassando o seu olhar, e respondeu:
— Então, eu tenho certeza de que você já sabe o que fazer.
VOCÊ MINHA E EU DE VOCÊ

“Você será a única que me salvará e, no fim das contas,


você é o meu muro das maravilhas”
Wonderwall | Ryan Adams

VICTORIA

Com o coração explodindo na boca da garganta, eu saí da sala da Giselle e fui


praticamente correndo para a fraternidade. Era alegria, felicidade, empolgação, medo, receio,
ansiedade. E, sobretudo, loucura. Muita loucura. Tudo isso junto e misturado com muita
loucura.
Alegria por finalmente estar conseguindo respirar sem achar que poderia sufocar no
segundo seguinte. Felicidade pelas vozes, que antes berravam e me atormentavam, estarem
gradativamente se tornando mais baixas na minha consciência. Empolgação por ter a certeza de
que, milagrosamente, dessa vez, eu não deixaria a covardia falar mais alto do que os meus
desejos.
Ainda assim, medo do que poderia acontecer depois, medo daquela Victoria quase
enterrada e sepultada, dentro de mim, encontrar um jeito de reviver, medo de ser uma vergonha,
dessa vez, não para a família, mas para mim mesma. Medo de pisar na bola outra vez. Eu não
queria pisar na bola outra vez, ainda que tudo estivesse recente demais e que eu precisasse digerir
uma série de fatos e informações.
Ansiedade e tensão sobre como Rayka me receberia, depois de eu tanto decepcioná-la.
Receio que fosse tarde demais para o que eu queria fazer.
Mas...
Apesar de tudo e de todos os meus temores, os monstros que viviam dentro da minha
cabeça já não podiam fazer mais nada naquele instante, porque existia uma força em mim. Uma
vontade que era muito maior do que qualquer coisa que pudesse me fazer parar.
Eu estava milagrosa e estranhamente determinada.
Conversar com a Giselle foi como ser arrastada bruscamente de um limbo que só me
sugava para dentro dele. Voltei a enxergar. Voltei a ver e a sentir uma série de coisas que eu
deixei se perderem de mim, ao longo do caminho, por me anular demais, nos últimos anos, em
favor de vontades alheias daqueles que queriam mandar na minha vida.
E não, eu sabia que ainda não estava plenamente preparada para tudo o que eu ainda teria
de enfrentar. Não era como se eu tivesse me tornado alguém completamente diferente e livre dos
meus fantasmas, só por causa do que Giselle me falou. As coisas não eram assim, não
funcionavam como em um passe de mágica. Mas, eu também sabia que esse era o primeiro
passo, para que eu conseguisse me libertar de uma consciência perturbada.
O primeiro de muitos outros passos que eu ainda precisava dar.
Obstinada, eu continuei correndo rumo à fraternidade.
Se antes eu fugia da Rayka para tentar encontrar a paz. Dessa vez, eu não ficaria
plenamente tranquila, enquanto não falasse com ela. Eu precisava colocar para fora as milhares
de loucuras que se reviravam dentro da minha garganta. Sim, era loucura. Tudo aquilo era uma
grande e assustadora loucura.
Eu não fazia ideia das consequências disso, nem de todos os obstáculos que ainda se
colocariam na minha frente. Eu ainda não fazia ideia de como Rayka me veria, ou o que
pensaria, assim como eu também não tinha a menor noção de como classificar aquilo, de qual
seria o nome da nossa relação, ou de como rotular a mim mesma.
Eu não fazia ideia de nada.
Nem do agora.
Nem do futuro.
Porém, nem toda a loucura do mundo me faria desistir.
Não dessa vez.
Nem depois.
As únicas certezas que eu tinha era de que eu era completamente maluca por aquela
desgraçada e tinha que falar isso a ela, antes que eu me afogasse com as minhas próprias
palavras não ditas. Mesmo que Rayka já estivesse cansada de mim, frustrada e farta do tanto que
eu a fiz perder a cabeça de raiva, eu não poderia esperar mais nem um dia, sem dizer a ela algo
que ficou entalado durante os últimos sete anos.
Eu só precisava dizer e, enfim, colocar pra fora todo o restante de peso que Giselle não
tinha conseguido tirar das minhas costas, porque eu sabia que essa parte que faltava dependia
exclusivamente de mim.
Correndo, cruzei a porta da fraternidade e, passando como um furacão, por algumas
meninas que estavam ali, segui direto para as escadas. Ainda ouvi quando perguntaram “tá tudo
bem, Vic?” ou “o que aconteceu?”. Mesmo que o choro estivesse controlado, eu sabia que a
minha cara ainda continuava uma confusão de resquícios do tanto que me desidratei na sala da
Giselle. Maquiagem borrada, cabelos desgrenhados, completamente destruída. E, bem, a minha
pressa desvairada também não era nada sútil.
Ainda assim, eu não parei para me explicar. Não era a elas que eu devia explicações. Era a
outra pessoa. Uma maldita sapatão gostosa, que sorria bonito e falava com uma voz rouca e
estupidamente sexy. Era para ela que eu devia as minhas palavras e, com sorte, todos os meus
próximos beijos.
Minha deusa.
Quê que é isso?
Que vontade louca é essa?
Eu sentia como se todos os desejos reprimidos, ao longo dos sete anos de puro fingimento
e abstenção, tivessem arrebentado como uma barragem depois da tempestade. Eles encontraram
vazão, uma rota de saída segura e, agora, consciente. Mesmo coberta de um medo que ainda
representava parte daquela Victoria Peterson que viveu em mim por tanto tempo, eu não tinha
dúvidas de que, dessa vez, eu não ia retroceder.
Certa de que deixei todas as garotas lá embaixo com cara de tacho, pulei degrau por
degrau da escada. E, enfim, quando cheguei ao andar superior das Minervas, ofegante, maluca e
obstinada, não pensei mais em muitas coisas, apenas, sem bater, em um solavanco, eu abri a
porta do seu quarto que, felizmente, estava destrancada.
O meu corpo inteiro continuava funcionando à base de adrenalina.
E, então, em meio à uma respiração descompassada, puxada, com um traço de sorriso
esperançoso, quase ludibriado ao imaginar uma ínfima chance da nossa história, enfim, tomar um
rumo diferente, eu olhei para dentro do quarto e vi nada mais que... O vazio.
Foi automático, o pequeno e quase imperceptível sorriso de esperança logo desapareceu.
Rayka não estava ali. Mordendo involuntariamente o lábio inferior, em pura expectativa, ainda
entrei para realmente me certificar de que não tinha alguém. Olhei no banheiro, olhei na varanda,
olhei em todas as partes, mas... O lugar estava vazio, limpo, sem ninguém.
Droga.
Girei sobre os pés, esfregando as mãos nos cabelos, inquieta.
Pensa sua, imbecil, pensa no que você vai fazer agora.
Ir ou ficar?
Procurar ela ou esperar?
Será que eu ligava?
Será que eu mandava mensagem?
E se ela não me respondesse?
E se não me atendesse?
Argh, que confusão na minha cabeça!
Meu couro cabeludo queimava, enquanto as centenas de possibilidades viravam do avesso
o meu juízo. A ansiedade me consumia. Ou sei lá, o peso na consciência. Talvez fosse a vontade
de fazer a coisa certa com ela pela primeira vez, desde que eu fui gentil na casa de praia e a
chamei para ir à piscina comigo. Depois disso, eu não fui nada mais do que uma estúpida.
Uma imbecil.
Respirando fundo e fazendo o possível para conter os ânimos, coloquei as minhas duas
mãos sobre a sacada da varanda, esticando os braços. Baixei a cabeça e fechei os olhos, tentando
mentalizar um mantra.
Calma, Victoria.
Calma.
A pressa é inimiga da perfeição... Se você continuar assim, indo com tanta sede ao pote,
vai assustar a garota.
Eram nessas palavras que eu me segurava, para não cair na tentação de sair correndo outra
vez, para procurá-la feito uma louca. A única coisa que eu precisava ter certeza era de que eu não
desperdiçaria a minha próxima oportunidade com ela. E eu realmente tinha certeza disso.
Não importava se fosse agora ou mais tarde. Podia ser até meia-noite, antes de dormir, eu
iria falar com ela, ainda naquele dia.
Era isso.
Eu ainda iria falar com ela naquele dia.
Suspirei outra vez, ainda de cabeça baixa, na varanda, aquietando o coração.
Longos minutos se passaram, até eu começar a sentir, enfim, ainda naquela mesma
posição, a minha respiração gradativamente voltando ao normal. Foi quando decidi abrir os
olhos. Só que aí, quando assim o fiz, girando-os displicentemente para o lado, em direção ao
quarto, eu vi algo.
Algo que estranhamente capturou a minha atenção.
Juro que eu não fazia ideia do motivo de um pedaço de papel comum e amassado, caído
no pé de uma cama, ter chamado a minha atenção.
Mas, chamou, me atraiu, como se ele não fosse apenas um pedaço de papel como qualquer
outro. Parecia estar emitindo algum sinal, com luzinhas imaginárias em cores neon, por mais
bizarro que isso fosse.
Sem me conter, eu caminhei até lá e, me abaixando brevemente para pegá-lo, segurei-o
entre os meus dedos, desdobrando-o em seguida.
E, bem, se a foto da Giselle, com a sua família, era uma das coisas mais lindas que eu já
tinha visto, naquele papel estava uma das coisas mais lindas que eu já tinha lido em toda a minha
vida.

De tudo o que já existiu e ainda vai existir


Não tem nada no mundo
Nada
Que faça eu me desprender

Vitória mesmo é não me apaixonar por você


Vitória mesmo é conseguir te esquecer
Vitória é não enlouquecer
Por não ser capaz de me afastar de você

Vitória é você acordar um dia


E ver que se o universo nos permitiu nascer
É porque era pra ser
Você minha e eu de você

Era a sua letra.


A mesma letra que eu já conhecia tão bem das cartas do Maverick.
De súbito, sem que eu pudesse evitar, como uma força interna muito maior do que eu era
capaz de controlar, os meus olhos se encheram d’água pela milésima vez naquele dia. Segurando
o papel tão firmemente entre os meus dedos, como se ele pudesse sumir a qualquer momento, as
minhas lágrimas, dessa vez, não eram de tristeza ou de angústia, eram de emoção, e de um
sentimento tão bonito e tão gostoso que eu não me lembrava de ter sentido outra vez.
Talvez fosse a primeira vez que eu sentia, assim como também era a primeira vez que eu
lia um texto seu que não fosse as cartas.
E eu sabia, sabia que não deveria sonhar tão alto assim, nem ser convencida o bastante
para achar que aquilo realmente tinha a ver comigo, mas... Argh! A minha consciência gritava.
Ela gritava em uma alegria tão contundente, por ter a certeza de que a palavra “vitória” não
estava ali por acaso.
No fundo, bem no fundo, algo me dizia que eu estava nas entrelinhas.
Era o meu nome escrito de outra forma.
E, novamente, eu queria sorrir, eu queria chorar. Eu queria pular de felicidade, por estar
louca por alguém que realmente merecia o sentimento. Rayka era uma miserável linda, que me
escrevia e me falava coisas das quais nunca recebi de alguém.
Senti um filete de esperança de que a situação poderia não estar totalmente perdida entre
nós, mesmo com o tanto que eu vacilei.
Limpei as lágrimas que já escorriam, rindo e sorrindo que nem uma idiota para aquele
pedaço de papel, quando...
— Por que está no meu quarto?
Por pouco, uma exclamação de susto não escapou da minha boca.
E os meus batimentos cardíacos que, até então, estavam controlados, voltaram a batucar,
com força total, não apenas no meu peito, mas também nos meus ouvidos.
Ao erguer o rosto, meu corpo retesou breve e involuntariamente. Lá estava ela, parada na
porta do quarto. Sim, era ela, com a mesma jaqueta preta e as mesmas botas de combate que vi
mais cedo, na aula particular. Maravilhosa. A única diferença era o seu olhar para mim. E eu
sabia a razão. Sabia perfeitamente. Mais uma vez, eu fui covarde o bastante para fugir dela,
quando, na real, eu e ela sabíamos que, por mais que eu negasse, tudo o que eu mais queria eram
os seus braços em mim.
Seu semblante estava duro. Rígido. E, confesso, isso me comprimia muito mais do que eu
imaginava que poderia acontecer.
Ainda assim, eu não tirava a sua razão.
Ela não aguentava mais.
Eu sabia que não.
Nem eu aguentava mais.
Rayka estava certa em não confiar mais em mim.
Só que eu ainda ia tentar, porque jamais conseguiria me deitar na cama outra vez e dormir
em paz, sem antes colocar para fora tudo o que estava entalado na minha garganta, há sete anos.
— Me diga, Victoria. — séria, diante do silêncio, ela insistiu. — Por que está no meu
quarto?
Seu aspecto, porém, ficou ainda mais ríspido, depois de perceber que eu estava segurando
algo. Trincou a mandíbula e, respirando fundo, ao subir e descer os ombros, caminhou obstinada,
até mim, sem parar de olhar para as minhas mãos.
— O que você está vendo? — o vinco na sua testa se tornando ainda maior.
E, então, numa mistura de irritação e vergonha, simplesmente puxou o papel das minhas
mãos, afastando-se de mim outra vez, enquanto amassava a folha, como se a força que colocava
nessa atitude fosse capaz de apagar da minha memória o que eu vi.
Eram raras, muito raras as vezes em que eu a via com vergonha de alguma coisa. Rayka
sempre foi desinibida com tudo. Agora, porém, sabendo que eu tinha visto um por cento do seu
mundo escondido na Literatura, o seu rosto avermelhou. Seu aborrecimento também era
perceptível, mas nada me impediria de dizer, com os olhos ainda molhados e com toda a
sinceridade do mundo:
— Foi a coisa mais linda que eu já li.
Eu jamais me privaria novamente de falar qualquer coisa a ela.
E eu notei perfeitamente quando, ao erguer outra vez o rosto para mim, a minha fala, em
certa medida, a desconcertou. Mesmo que isso não estivesse absolutamente claro, foi como se eu
tivesse atingido-a em um ponto muito específico e delicado. Por um segundo, vi a
vulnerabilidade estampada sutilmente em meio a rigidez do seu olhar.
Ainda assim, segundos depois, como quem se dava conta de que não poderia mais baixar a
guarda para mim, ela endireitou a postura e retrucou:
— Você não deveria estar aqui.
Meu olhar vacilou um pouco, ao ouvir o seu tom frio.
— Por quê?
Perguntei mesmo já sabendo a resposta.
— Porque eu não quero. É melhor que a gente se afaste de uma vez. Vai ser mais saudável
para nós duas.
Droga.
Ela estava mesmo chateada pelo que houve na aula.
Aliás, milagre seria se ela não se aborrecesse.
Num rompante de coragem, eu repliquei:
— Só que eu não quero me afastar de você.
Novamente, o seu corpo retesou.
— Como é? — franziu o cenho, ainda numa mistura de confusão e aborrecimento.
Por um segundo, pareceu não acreditar no que ouvia.
— Eu disse que... — suspirei. Meu coração em um ritmo enlouquecedor dentro do peito.
— Eu disse que não quero me afastar de você, Rayka. — e dando alguns passos em sua direção,
tentei me aproximar.
Ela, por sua vez, deu dois para trás. A frieza junto com o susto. Rayka parecia assustada,
como se estivesse vendo um fantasma bem na sua frente, ainda que tentasse disfarçar. A sua
dureza era terrível, mas saber que eu estava a apavorando era ainda pior.
Eu não queria que Rayka tivesse medo de mim.
Já bastava a porcaria da minha covardia que me impediu de fazer centenas de coisas ao
longo de tantos anos.
— Do que você está falando, Victoria? — o vinco na sua testa continuava enorme. —
Como assim você não quer se afastar de mim, se é isso o que você sempre faz quando está
comigo? — entredentes, completou. — Deveria estar dando graças a Deus, porque finalmente
estou tomando a decisão de deixar o seu caminho livre. Não quero mais quebrar a minha cabeça
com algo que claramente não tem futuro.
Rancor.
Havia tanto rancor implícito na sua voz.
E isso acabava comigo.
Balancei a cabeça em negativo, encarando-a firmemente sob olhares trêmulos e
umedecidos. Com a voz embargada, quase sem conseguir conter os soluços que queriam escapar,
eu repliquei:
— Não quero que deixe o meu caminho livre, Rayka. Na verdade, eu quero... — deusa, eu
mal conseguia acreditar que estava falando isso. Mas, eu estava sim. E eu precisava dizer, antes
que isso explodisse na minha garganta. — Eu quero você na minha vida. Por favor.
Ela, por sua vez, me encarou como se estivesse ainda mais desorientada.
— Po-Por favor? — questionou ela, gaguejando em pura confusão mental. Na sua testa
não estava escrito outra coisa além de “que porra é essa?”. — Você... Você enlouqueceu? Do
que está falando? Que tipo de brincadeira é essa? Acha que tem o direito de me fazer de idiota?
Uma hora você me beija, e na outra age como se estivesse profundamente arrependida. Num
minuto diz que me quer, e no outro foge de mim como se nunca mais fosse olhar na minha cara.
Eu não suporto mais isso, Victoria. Se você está aqui para me confundir outra vez, pode dar o
fora agora.
Sim, eu estava louca mesmo. Louca há sete anos.
Por ela.
Alucinada por ela.
E a culpa era toda dela, por ser tão inutilmente linda.
Maldita desgraçada.
— Não é brincadeira, não é piada, eu juro. Rayka, eu... — por um segundo, me perdi entre
as palavras que estavam na ponta da minha língua. Suspirei. — Eu tô aqui para tentar me
entender com você. Só me escuta, por favor.
Foi quando ela soprou o ar pesado dos seus pulmões, rolando os olhos, por um segundo, e
esfregando as mãos no rosto, impaciente, como se, em silêncio, estivesse xingando a si mesma,
por se permitir dar mais uma chance a mim, mesmo que fosse apenas para me ouvir.
— Fala. — irritada consigo mesma, foi tudo o que me respondeu.
E eu queria tentar me aproximar dela outra vez, queria abraçá-la, sentir as suas mãos em
mim, experimentar todo o carinho que ela sempre quis dar a mim e eu estupidamente neguei. Eu
desejava receber tudo aquilo que me privei durante sete anos, como um preso que finalmente se
libertava da sua cadeia. Ou melhor, como um preso que conseguia fugir da prisão perpétua.
Ainda assim, me segurei, porque, pelo jeito como estava, Rayka não toleraria isso.
Então, com as lágrimas balançando nos meus olhos o tempo inteiro, apenas continuei.
— Eu poderia falar milhares de coisas agora, para me explicar ou para tentar convencer
você, mas acho que, nesse momento, não existem palavras no mundo mais adequadas do que...
Me perdoa. Por tudo. Tudo mesmo, durante esses sete anos.
Rayka, no entanto, parecia cada vez mais sem norte.
Era como se ela estivesse enxergando um alienígena no meu lugar.
— Não estou entendendo porra nenhuma... — soltou, quase desconfiada, desacreditada. —
De manhã você era alguém completamente diferente dessa pessoa que está aqui agora, de frente
para mim. Aliás, durante esses sete anos, você foi alguém totalmente diferente disso. O quê que
tá acontecendo, Victoria? Você tá bem? Você tá drogada? O que deram pra você?
Por um segundo, eu quis rir que nem uma idiota, mesmo com os olhos cheios d’água. Essa
desgraçada era capaz de ser engraçada até quando estava puta da vida comigo.
— Acho que me deram uma dose de vergonha na cara.
Ainda receosa, ela me encarou.
— Quem fez isso? — ergueu uma das sobrancelhas. — Por favor, me diga. Eu preciso dar
um beijo na boca dessa pessoa, para agradecer.
— Se você der um beijo na boca de qualquer pessoa que não seja eu, juro que te mato.
Ela soprou o ar outra vez, balançando a cabeça. Agora, porém, um pequeno e
imperceptível traço de sorriso de incredulidade cruzou os seus lábios.
— Cara, você só pode estar de brincadeira comigo — disse ela, esfregando as mãos no
rosto e deixando-o ainda mais vermelho de tensão do que já estava.
Que inferno, Rayka não estava me levando à sério.
E o pior era que tinha razão nisso.
— Eu... — lágrimas estúpidas e silenciosas começaram a escorrer, sem qualquer
permissão minha. Droga, eu estava tão emotiva naquele dia. Que ridículo. — Eu sei que você
deve estar me achando ainda mais maluca do que normalmente eu já sou, por chegar aqui agora,
dizendo esse tipo de coisa do nada, quando, na verdade, tudo o que eu faço e falo é o contrário
disso.
— Sim, eu estou te achando completamente maluca mesmo — confirmou ela.
Sua respiração dando indícios de que estava se tornando gradativamente mais pesada.
— Na verdade, eu tô maluca — repliquei, encarando firmemente os seus olhos. — Não
vou ficar em paz, enquanto eu não falar o que tenho pra te dizer.
— E como eu posso confiar no que está me dizendo, sem quebrar a cara pela centésima
vez? Como eu faço para me sentir segura o bastante com as suas palavras, sem pensar, a cada
meio minuto, que a qualquer momento você pode mudar de ideia e me dar as costas, do jeito
como sempre faz? Você. É. Instável. Victoria. — completou pausadamente, me fazendo sentir o
peso total de cada uma das suas palavras.
Você. É. Instável. Victoria.
Ouvir isso me quebrava em tantos níveis.
— Eu sou, ou eu era instável, porque passei a vida inteira sendo doutrinada a fazer uma
coisa, quando, na verdade, por dentro, eu sempre quis outra. Eu sempre quis você, Rayka, mesmo
com toda a carga de cobranças e obrigações nas minhas costas. — olhando no fundo dos seus
olhos, falei com toda a sinceridade que existia dentro de mim. — Durante todo esse tempo, eu
estive fragmentada em dezenas de Victoria’s, enquanto fazia malabarismos para agradar e atingir
as expectativas de todo mundo, quando, na verdade, eu estava desagradando a mim mesma. — a
amargura escorrendo por cada uma das minhas palavras. — E você sabe, Rayka, eu tenho
certeza absoluta de que você sabe, melhor do que qualquer outra pessoa, que o processo de
aceitação não é o mesmo para todo mundo. Para alguns, não é tão simples quanto parece. E eu
estou nessa estrada há sete anos. Nós atravessamos um longo caminho. Só que agora... Agora, eu
estou aqui, com a guarda completamente baixa, para começar a colocar as coisas no lugar, se
você me der essa chance.
Seu olhar marejado encarou o meu, em silêncio, enquanto as minhas lágrimas ainda caíam.
E eu vi, eu vi perfeitamente, mesmo através das nossas orbes molhadas, o conflito que ela
travava consigo mesma e com a sua dignidade.
Ainda que ela não quisesse transparecer, parecia estampado, na sua testa, algo muito além
da sua confusão mental. Também estava escrito com todas as letras, em caps lock: eu já te dei
tantas chances e você ainda quer mais outra?
Sim, eu queria sim.
Eu só precisava de mais uma única chance, mesmo que não merecesse.
E eu sabia que não merecia.
Mas...
Era só mais uma e, dessa vez, mesmo ainda com tantos medos, eu me comprometeria a
aprender e a fazer o certo. Ou, pelo menos, tentar fazer o certo.
Rayka, por sua vez, respirou fundo, liberando o ar pesado dos pulmões em seguida. Coçou
a nuca, esfregou as mãos no rosto outra vez, e girou sobre os seus pés, como se não soubesse
exatamente o que fazer.
Minutos após o silêncio, porém, ela me encarou outra vez, enfadada, e replicou:
— Por que você faz isso comigo, hein? Por que quando eu decido seguir em frente, você
simplesmente aparece para me virar do avesso? — bufou de leve, balançando a cabeça e, então,
completou. — Olha, eu sei que isso não é fácil para algumas pessoas. Sei que não deve ter sido
fácil para você, nem antes, nem agora. E peço desculpas por indiretamente ter te exigido algumas
coisas que ainda não estavam ao seu alcance. Eu sei que, às vezes, eu fui meio... Ansiosa demais
para que a gente desse certo logo. Então, me desculpa. É só que agora… — puxou o ar. Seu
olhar meio perdido. Por um segundo, ela também pareceu se perder entre as suas palavras. —
Agora, eu estou realmente cansada. Estou exausta. E a última coisa que eu quero é quebrar a
minha cara de novo.
Foi tudo o que disse, passando por mim e caminhando até a varanda, como se quisesse
tomar um pouco de ar. Posicionando-se sobre a sacada de um jeito muito semelhante ao meu,
poucos minutos atrás, quando cheguei ao seu quarto, esticou os braços sobre o parapeito e baixou
a cabeça.
Meu coração apertou outras trezentas vezes dentro do peito.
Não.
Por favor, não se canse.
Não agora.
Obstinada, com os olhos ainda cheios d’água, caminhei ligeiro em sua direção. E, sem
nem pensar direito nas minhas atitudes ou nas consequências que aquilo traria para mim, para
nós, simplesmente segurei o seu rosto entre as minhas mãos. Encarando o fundo das suas orbes,
deixei que transbordasse de mim tudo o que estava me afogando não apenas ultimamente, mas
durante todos esses anos.
Todas as palavras não ditas, que me arrancavam o sono.
— Me desculpa, Rayka... Me desculpa por não ter cuidado bem do seu coração, em todas
as vezes que você quis me dar ele. Eu estava assustada, confusa, e fui estúpida. Você tem toda a
razão em não estar se sentindo segura. Sei que não mereço o seu perdão. Nem sei se eu mesma
me perdoaria, se estivesse no seu lugar, mas... — puxei o ar, ofegante. A minha tensão se
transformando naquilo que caía dos meus olhos. — Se você fizer a gentileza de me dar mais uma
chance, eu vou me esforçar para ser alguém melhor. Não apenas porque quero ter você comigo,
mas porque eu preciso ser alguém melhor para mim mesma. Não aguento mais ser um lixo de
pessoa. Não aguento mais reprimir o que eu desejo. E bem... — sussurrei, por fim, contra os seus
lábios. — Estou louca para ficar com você de novo. Louca. Lembra do seu poema? Você minha
e eu de você.
Senti o exato instante em que o seu corpo estremeceu ao ouvir a minha última frase.
Você minha e eu de você...
Rayka fechou os olhos, respirando fundo e, com isso, deixou algumas lágrimas caírem,
enquanto eu ainda segurava o seu rosto com as duas mãos. Um silêncio violento nos abraçou. Ela
parecia perdida dentro de si mesma, dos seus próprios pensamentos. Pela primeira vez em muito
tempo, eu a notava realmente vulnerável.
Rayka sempre pareceu resistente a tantas coisas.
Mas, não dessa vez.
Dessa vez, ela não parecia nada mais do que uma garota assustada, assim como eu também
estava.
O meu coração não parava de pulsar forte, batucando dentro do peito, por não saber se eu
estava realmente preparada para a sua recusa. Ainda que as consequências do seu “sim”, para a
minha vida, também pudessem me assustar, e que os resquícios de medo daquela Victoria
Peterson, que sempre viveu em mim, ainda estivessem por ali, eu não tinha dúvidas de que eu
realmente a queria.
Eu a queria.
E não fazia ideia do quanto ficaria decepcionada comigo mesma, por ter a certeza de que a
culpa, em não conseguir ficar com a pessoa por quem eu sempre fui apaixonada, era
completamente minha.
A cada segundo que passava, a minha ansiedade só aumentava. E, quanto mais calada ela
ficava, mais nervosa eu me sentia.
Achei que as coisas fossem melhorar quando ela abrisse os olhos outra vez. Porém,
quando assim o fez, pousando lentamente as suas orbes sobre as minhas, tudo pareceu ainda pior.
Mais assustador. Me encarando compenetrada por alguns segundos, como em um duelo interno
entre a razão e a emoção, ela balançou a cabeça para mim.
Balançou em negativo.
Um claro, nítido, e conciso “não”.
Foi nesse instante, nesse exato instante que eu senti toda a ínfima confiança que eu tinha,
indo embora. Minha respiração vacilou. E os meus olhos se encheram ainda mais d’água.
Rayka estava literalmente negando.
Ela estava me negando.
E eu percebi.
Percebi que esse era o fim da linha, o fim do jogo. Todas as minhas possibilidades
pareciam estar escapando por entre os dedos, de modo que, nem com muito esforço, eu
conseguia segurá-las. Colhi o que realmente plantei durante sete anos. E não existia sentimento
no mundo que pudesse descrever como eu me sentia ali, na sua frente. Eu não tinha nem a
capacidade de jogar a culpa em alguém, para colocar para fora as minhas frustrações, porque eu
sabia que a única culpada por isso era eu mesma.
Quando achei que não suportaria mais ficar de pé, recebendo a sua devida frieza, sem
parecer ainda mais quebrada do que eu já estava, as palavras de desesperança simplesmente
escaparam da minha boca.
— Sei que não mereço ser perdoada, sei que não basta chegar aqui e falar uma dúzia de
palavras bonitas, como se isso fosse resolver a situação, porque não vai. Você não está errada. Eu
te entendo. Entendo que não queira mais nada de mim, e tem toda a razão nisso. Então, eu só...
Só... — balbuciei, toda atrapalhada, quase sem raciocinar direito, enquanto um soluço tentava
pular da minha garganta. — Desculpa, Rayka.
Foi tudo o que eu disse, dando-lhe as costas e saindo rumo à porta, antes que ela me visse
chorar outra vez.
Caminhando ligeiro para fora, eu só queria respirar e fazer o possível para parar de me
culpar. Ou, pelo menos, para parar de me culpar tanto, ainda que eu soubesse que isso era
impossível. Eu não tinha dúvidas de que levaria um tempo para digerir.
Dessa vez, não deu, Giselle.
Era o pensamento que rondava a minha cabeça.
Nem sempre se podia ganhar.
E, com a Rayka, eu sempre, sempre perdia. Essa não era a primeira vez.
A diferença era que, agora, eu não tinha perdido só o jogo, eu tinha perdido o
campeonato inteiro.
Entre lágrimas estúpidas, que não me deixavam em paz, porém, eu ouvi.
Ouvi perfeitamente.
E isso foi extraordinariamente mais claro do que o “não” que me deu com a cabeça.
Sua voz rouca e imponente.
— Espera — disse ela.
Travei.
De súbito, simplesmente travei.
Meus olhos arregalaram.
O que ela queria?
E, então, toda a minha tentativa de recuperar o fôlego foi por água abaixo, quando,
assustada, virei brevemente o rosto para ela e a vi caminhar ligeiro até mim, com o olhar mais
determinado do universo. Me segurou pelo braço, arrastando-me para fora dali, e falou:
— Quero que venha a um lugar comigo.

✽ ✽ ✽

Eu juro que a minha cabeça não me deu descanso um segundo sequer, durante o caminho
inteiro. Por alguma razão, Rayka estava com o carro da tia Daisy, estacionado em frente à
fraternidade. Sem quaisquer explicações, ela me colocou dentro dele e, quase cantando pneu,
saiu dali comigo.
Passei todo o percurso tentando controlar a respiração e os pensamentos frenéticos que não
me deixavam em paz. Um nervosismo ridículo, por não saber o que estava acontecendo, sempre
me atormentava, a cada vez que eu girava levemente o rosto em sua direção e via Rayka apenas
olhando para frente, enquanto guiava o carro, como se uma situação assim fosse comum entre
nós todos os dias.
O que ela queria?
O que estava planejando?
Para onde estava me levando?
Ela tinha desistido de me dar um fora?
Ou iria me dar um fora em outro lugar que não fosse a fraternidade?
Será que aproveitaria para me matar escondida, como vingança por todos os anos a
menos de vida que eu lhe proporcionei a cada estresse meu?
Argh, droga, eu não sabia...!
Adoraria ser menos curiosa.
Sério.
Ser mais paciente e menos curiosa, seria perfeito para a minha ansiedade. O que não era o
caso.
Eu estava gelada.
Ridiculamente gelada.
Rayka também não colaborava. Aliás, ela colaborava até demais, alimentando a minha
mente fértil com incertezas. Para completar, claro, eu estava mesmo completamente fora de um
estado de lucidez, porque conseguia achar a desgraçada ainda mais atraente com aquele olhar
sério, misterioso e compenetrado no trânsito. Me dava uma coisa. Uma agoniazinha boa no
coração, como se eu estivesse ao lado da garota mais fantástica e gostosa de todo universo. Era o
que ela era, de fato.
Jamais deixaria de reparar na forma como a sua mandíbula pressionada me deixava
instigada, no desenho do seu rosto de perfil, nos seus lábios cheios, no seu nariz arrebitado. Ou
mesmo no jeito singular e quase despojado como os seus dedos longos e as suas mãos tatuadas
seguravam o volante. Sexy. Inteiramente sexy.
E eu... Idiota por ela.
Como sempre.
Mesmo com milhares de perguntas borbulhando na minha boca, a todo instante, consegui
me manter quieta até chegarmos ao local para onde ela estava nos levando. Dentro de alguns
minutos, porém, a paisagem só de prédios e de palmeiras típicas de Miami passou a dar lugar a
uma vista privilegiada da praia, e, aos poucos, aquilo que era só carros e avenidas foi substituído
por areia e mar.
Meu cenho franziu, à medida em que nós nos aproximávamos. Ao mesmo tempo, porém,
o meu coração começou a acelerar em algumas possibilidades que eu não sabia se poderia me dar
ao luxo de, pelo menos, cogitar. Minha deusa, seria bom demais para ser verdade. E eu não
queria, eu juro que não queria me iludir com o fato de estarmos indo à linda e maravilhosa
Miami Beach, em pleno pôr-do-sol.
Mas...
Rayka não me levaria ali só para me dar um fora, levaria?
Suspirei, tentando conter os ânimos de excitação que já começavam a aflorar.
Calma, Victoria, calma. Ainda é cedo demais para sonhar acordada.
Ela, porém, atravessou praticamente toda a extensão da praia, pelo menos a parte mais
movimentada de Miami Beach, e estacionou o carro em uma área não totalmente, mas quase
deserta. Mesmo morando há anos naquela cidade, era um lugar que eu não ia há muito, muito
tempo.
Ao girar a chave na ignição e desligar o motor, olhou para mim finalmente e, indicando
com a cabeça, falou:
— Vamos?
Seu olhar foi penetrante. Eu diria até... Intenso. Mas também, estranhamente,
estranhamente mesmo, ele já não parecia tão duro e frio quanto minutos atrás, no seu quarto da
fraternidade. Isso era um sinal meio complicado, para uma imbecil iludida como eu. Precisei, em
silêncio, me repreender por diversas vezes, para não parecer uma idiota ainda maior e não
imaginar um mundo perfeito onde ela me diria “sim”.
Estava cedo para tirar conclusões.
Apenas puxando brevemente o ar e fazendo o possível para controlar as emoções, acenei
um sim para ela e saí do carro acompanhando-a. Ainda vi quando ela tirou as botas, já que a
faixa de areia ficava logo ali a poucos metros. Tirou também a jaqueta, ficando apenas de calça e
camisa. Colocou tudo no banco de trás do carro.
Percebendo que iríamos para perto do mar, fiz o mesmo. Tirei as minhas sandálias e fiquei
descalça.
Mesmo que eu sentisse que, assim como a minha, a cabeça dela não parava de trabalhar
em inúmeros pensamentos, caminhamos, em silêncio, por uma relativamente extensa faixa de
areia. Dali, eu ainda conseguia avistar, ao longe, a parte mais movimentada da praia, onde os
turistas em geral ficavam.
O local em que estávamos, porém, era calmo e tranquilo. Muito tranquilo. Tão tranquilo
quanto a forma como ela se sentou em uma das pedras grandes, perto do mar, acendeu um
cigarro e lá ficou, fumando e observando o horizonte à nossa frente. Não parecia ser só
impressão minha, ela estava mesmo inesperadamente mais calma, leve.
Eu já não sentia a mesma tensão que exalava do seu corpo, no quarto.
E isso era bom, muito bom, mas também era curioso.
Talvez o tempo que passamos em silêncio, durante todo o trajeto, tivesse ajudado-a a
colocar a cabeça no lugar melhor do que eu.
Como a pedra, onde ela estava, era grande, me sentei quase ao seu lado, de frente para o
mar. Mesmo assim, dei-lhe um pouco de espaço, porque eu ainda não sabia o que esperar dela.
Eu não fazia ideia do que Rayka pretendia ao me levar ali.
Quem sabe me afogar, como vingança por todas as raivas que eu a fiz passar?
Não.
Eu realmente esperava que não.
Suspirei de leve, encarando o horizonte, enquanto ela ainda fumava em silêncio e
observava as ondas quebrando na areia. Minutos se passaram sem que qualquer uma de nós
falasse alguma coisa. Ainda pensei em puxar assunto, mas decidi respeitar o tempo dela, mesmo
que eu estivesse absolutamente curiosa e ansiosa para saber das suas reais intenções.
Por ali, apenas o som do vento e do mar preenchia os nossos ouvidos.
Isso, até ela, enfim, falar, ainda olhando para o horizonte:
— Por que isso agora, Victoria? Por qual razão você mudou de ideia?
Respondi sem dificuldade. Isso era uma das coisas que eu mais tinha certeza. Bom, eu
podia não ter certeza de muitas coisas, principalmente sobre como seria a minha vida dali pra
frente, mas disso eu tinha plena convicção.
— Percebi o quanto eu estava agindo como um lixo. E eu já não aguento mais isso. Não
aguento mais fingir que não sinto nada por você. Não aguento mais ferir a mim mesma, nem a
você. Isso é sufocante pra mim. E eu preciso respirar.
Ela, por sua vez, passou a língua entre os lábios, como se estivesse sorvendo, não tão
facilmente as minhas palavras, ao baixar de leve o rosto.
— Desistiu de ser perfeita?
No seu tom, porém, não havia qualquer acusação ou remorso. E, honestamente, eu a
agradecia por isso. Mesmo que eu soubesse que tinha total culpa no cartório e que não merecesse
dez centavos da sua compaixão, não seria nada saudável uma conversa cheia de dedos na cara e
lavagem de roupa suja.
— Eu não sei... — respondi sinceramente. No fundo, tudo sobre a vida daquela Victoria
Peterson, que todo mundo conhecia e que vivia em mim há vinte e um anos, ainda era delicado e
nebuloso pra mim. Eu ainda precisava me entender comigo mesma sobre uma série de coisas. —
Mas, acho que estou começando a escolher a felicidade. — completei.
Você quer ser feliz ou “perfeita”?
A voz clara da Giselle soou nos meus ouvidos.
Rayka, ainda sem olhar, balançou brevemente um sim com a cabeça. Aquela mesma
postura de quem digeria lentamente as informações. Ficou alguns minutos em silêncio, porém,
observando o mar, fumando e pensando, enquanto eu me perguntava quantas coisas poderiam
estar passando pela sua cabeça.
De repente, porém, os seus lábios sibilaram, em meio ao silêncio:
— Me machuquei várias vezes, Victoria.
E eu sabia, eu tinha plena certeza, que ela não estava falando isso com a intenção de me
maltratar, mas, sim, de desabafar, com o coração em migalhas, exatamente igual a como o meu
ficava ao ouvir isso.
— Eu sei... Eu sei... — ofeguei, quase me agitando de leve, sem querer. — E me sinto
péssima por isso. Aliás, eu sempre me senti assim, mas eu tentava me cegar para que doesse
menos em mim. Só que agora não dá mais pra evitar. Toda vez que eu nego a você, eu nego a
mim mesma também.
Foi quando ela suspirou e, enfim, desde que chegamos ali, girou o rosto e me encarou. Seu
olhar, mesmo mais leve do que quando estávamos no seu quarto, ainda guardava alguns
resquícios de frustração.
— Acho que nós duas erramos em muitas coisas. Não posso colocar a culpa inteiramente
em você, sabendo que também pisei na bola algumas vezes, por pura imaturidade. Ainda assim,
me machuquei muito. E não posso dizer que não estou com medo de quebrar a minha cara de
novo, mas... Gosto de você, sua patricinha metida. Gosto muito.
Então, pela primeira vez, depois de tanto tempo, eu vi um pequeno e quase imperceptível
sorrisinho verdadeiro nos cantinhos da sua boca.
Parecia uma miragem de tão perfeito que era.
E os meus olhos... Os meus olhos, estúpidos demais, se encheram d’água, mesmo sem
querer. Dessa vez, não de tristeza, mas de pura felicidade. Aquela felicidade que eu desejava
colocar no lugar da perfeição.
Nunca pensei que eu fosse amar tanto ouvir que a Rayka gostava de mim.
— Sou louca por você, sua sapatão idiota... — respondi, sem reservas, tão absorta pelas
suas duas últimas frases.
Um ínfimo risinho escapou da sua boca, como se, enfim, o calor daquele pôr-do-sol
estivesse gradativa e lentamente derretendo o gelo entre nós.
Rayka, então, ergueu de leve uma das mãos e, delicadamente, deslizou os dedos pelos
meus cabelos, em um carinho que aqueceu cada um dos pontos do meu corpo que ainda
pudessem estar gelados. Fechei os olhos involuntariamente, torcendo para que isso fosse real, e
não apenas fruto da minha imaginação tão caótica.
— Sabe... — disse ela. Sua voz ainda rouca, daquele jeito que adorava, mas, agora, mansa,
sexy. — É inacreditável quando você fala isso. Nunca imaginei que Victoria Peterson, um dia,
fosse dizer que é louca por mim. Realmente parece loucura. Mentira. Um sonho.
E eu pensava exatamente a mesma coisa, quando ela dizia que gostava de mim, mesmo
depois de tudo. Ou apesar de tudo.
Surreal.
— Posso confiar que, dessa vez, você não vai acordar em um belo dia, dizendo que tudo
não passou de um erro? — completou.
Foi quando eu abri os olhos de novo, encarando-a firmemente.
— Lembra de quando você me dizia que não me enganou e pedia para que eu acreditasse
nas suas palavras? Agora, sou quem peço, Rayka. Sei que é difícil pra você, mas confia em mim.
Ela me devolveu seu olhar atento e, ainda com os dedos deslizando pelos meus cabelos,
perguntou:
— O que você sente quando pensa sobre nós?
Puxei o ar de leve, um tanto receosa sobre a minha resposta ser adequada ou não para o
momento.
Mas...
— Medo.
Honestamente, falei.
Ainda que não fosse adequado e que corrêssemos um risco tremendo de regredir todas as
casas que tínhamos avançado com muito custo, eu tinha feito um trato comigo mesma de só dizer
a verdade a ela, daqui pra frente. Então, eu precisava ser sincera.
Rayka, por sua vez, franziu o cenho de leve. Seu corpo retesando por um instante.
— Então, você não está cem por cento certa do que quer?
— Não, não é isso — balancei a cabeça em negativo veemente. Pelo amor da deusa, não
era desse jeito que eu queria que ela pensasse. — Eu não tenho medo do que existe entre nós. O
medo é do desconhecido, de como será a minha vida daqui pra frente e dos obstáculos que eu
vou ter que ultrapassar, mas você é a maior certeza que eu tenho. E eu não tenho a menor dúvida
de que te quero.
Rayka ainda passou um tempo encarando o fundo dos meus olhos, absorvendo tudo o que
eu tinha dito, captando a minha mensagem. Sim, eu sabia que ela estava digerindo. Rayka podia
ser muito diferente de mim, mas, às vezes, ela era muito igual. E eu juro que fiquei apreensiva
durante todos os minutos do seu silêncio.
Quase me culpei pela milésima vez. Só que, agora, por não ter conseguido me expressar
do jeito certo com as palavras.
Instantes depois, porém, quando eu já estava a ponto de abrir a minha boca, na tentativa de
esclarecer aquilo e não estragar as coisas de uma vez por todas entre nós, ela me pegou de
surpresa, com um sorrisinho lindo e muito nítido, esquentando tudo por dentro de mim outra vez.
Tirou, então, o seu celular do bolso, colocou uma música, deixando no volume mais alto, e
posicionou o aparelho em cima da pedra onde estávamos.
Sentindo o meu coração bater tão forte, sem saber o que ela estava planejando dessa vez,
vi quando se levantou, pisando na areia e, então, simplesmente estendeu uma das mãos para
mim, com o olhar mais vivo, sugestivo e charmoso da face da Terra.
— Me concede uma dança, madame?
Foi automático e impossível de segurar.
Um riso se desprendeu da minha boca, de repente.
Era alívio, era felicidade, era tesão.
Tudo.
Tudo o que existia de bom.
Ah, seu bom humor estava de volta. Amém!
Sem pensar duas vezes, segurei a sua mão, me levantando, e respondi:
— É claro.
Rayka me envolveu com seus braços ali mesmo, em uma dança no meio da praia, com o
pé na areia e mais ninguém ao nosso redor. Era só eu, ela, o mar e a minha incrível capacidade de
achá-la ainda mais linda a cada dia. Especialmente, quando as suas mãos me seguravam pela
cintura e faziam todos os meus pelos se arrepiarem.
A música, que não era muito lenta nem muito agitada, mas ritmada na medida certa, nos
levou, enquanto o sol começava a se esconder lá na linha horizonte, provavelmente admirado do
quanto Rayka e eu éramos realmente perfeitas juntas.
Roçando o seu corpo em mim, deixando o seu rosto tão colado no meu, e fazendo eu
perguntar a mim mesma, em silêncio, por umas trezentas vezes seguidas, em menos de meio
minuto, se aquilo que estava acontecendo era mesmo real, ela me disse algo, encarando o fundo
dos meus olhos.
— Não precisa ter medo. Eu estou com você.
Eu estou com você.
Eu estou com você.
Eu estou com você.
Sua frase se repetiu milhares de vezes na minha cabeça, me deixando ainda mais
apaixonada do que eu já estava por ela. Eu sabia que Rayka se referia ao que eu tinha dito. Mas,
acima de tudo, eu também sabia que isso significava que ela estava, enfim, me dando mais uma
chance de fazer as coisas do jeito certo, agora. E não tinha uma vez em que eu pensasse em nós
duas juntas, desse jeito, sem sentir vontade de...
— Por favor, me beije logo.
Completamente louca para experimentar a sensação da sua boca na minha outra vez, e ter
a certeza de que isso tudo não era só uma ilusão da minha cabeça, eu pedi.
Na verdade, eu supliquei.
Sim, supliquei miseravelmente, de um jeito como eu nunca tinha feito com alguém.
E o sorriso que ela me deu, ao ouvir isso, foi inacreditavelmente extraordinário, brilhante e
enorme, como se tivesse ganhado um prêmio. Mas, eu tinha certeza de que, na verdade, o prêmio
era meu.
Brincalhona, com o seu típico humor irritantemente engraçadinho, que passei sete anos
odiando e agora amava, ela perguntou:
— Então, quer dizer que eu posso beijar a sua boca, sem correr o risco de levar um tapa na
cara dois segundos depois?
Rolando os olhos e sorrindo tanto quanto ela, devolvi:
— Cala a boca, sua idiota.
E, sem esperar por mais tempo, encaixei as minhas mãos no seu pescoço e a puxei para o
beijo mais desejado de todo universo: aquele que se dava sem qualquer peso na consciência. O
mais esperado, o mais gostoso, o mais adorável de todos.
Aliás, qualquer beijo que essa imbecil me dava, era como alcançar o paraíso por alguns
minutos. Os seus lábios sempre seriam insuperáveis, incomparáveis.
Ainda assim, esse beijo, agora, teve um gostinho diferente.
Era gosto de liberdade.
E de amor também.
Sua língua deslizou para dentro da minha boca e eu pedi aos céus para que isso nunca mais
acabasse. Dessa vez, eu tinha certeza absoluta de que não surtaria dois segundos depois, nem
fugiria no dia seguinte. Muito pelo contrário. Eu repetiria esse beijo milhares de outras vezes.
PLANO MAQUIAVÉLICO DE
APODERAMENTO DO MEU
CORAÇÃO

“Eu sinto você assumir o controle de quem eu sou e de tudo o que eu já conheci,
amar você é o antídoto”
Golden | Harry Styles

VICTORIA

Daquela tarde em diante, eu passei a acordar, todas as manhãs, com um imenso e ridículo
sorriso no rosto. Sério, tão ridículo que, às vezes, eu ainda me perguntava que tipo de feitiço
aquela sapatão colocou em mim. Rayka só podia ter superpoderes. Eu já nem caminhava, na real,
eu flutuava como uma estúpida garotinha que se apaixonava pela primeira vez.
E, bem, eu era mesmo uma garotinha estupidamente apaixonada pela primeira vez na vida.
Desde os meus catorze anos, ou seja, desde a puberdade e o momento em que os meus
hormônios começaram a me fazer pensar que beijar na boca talvez não fosse tão nojento quanto
eu julgava ser quando era criança, só existia a Rayka pra mim. Ninguém antes, ninguém depois
dela. Apenas ela.
Não importava o quanto eu tentasse negá-la, esquecê-la ou me desligar do fato de que eu
era louca por uma garota. Não importava o tanto de tempo que nós ficássemos longe uma da
outra, ou quantos meses e anos nós passássemos sem nos ver. Sempre foi ela. E eu estava
começando a acreditar que continuaria sendo ela, pra sempre.
Agora, era como se, mesmo com os receios daquela Victoria que existiu em mim durante
vinte e um anos, as coisas estivessem começando a se ajeitar. Aquela bagunça enorme e
fenomenal dentro da minha cabeça, que já não me deixava em paz e tirava o meu sossego,
parecia estar começando a se organizar. Tudo estava voltando aos seus lugares, ou mesmo
ocupando novos lugares.
Claro que eu ainda continuava digerindo e processando uma porção de coisas. Não era tão
simples dormir hétero-preconceituosa e acordar sapa-bi-ou-sei-lá-o-quê. A minha cabecinha
continuava trabalhando ativamente na desconstrução de um monte de detalhes. Agora, óbvio, ela
felizmente trabalhava de um jeito muito mais calmo que antes.
Também, né?
Quem que ia aguentar eternamente uma loucura como aquela?
Deusa me defenda.
Eu estava me descobrindo alguém que nunca fui, ou aquela pessoa que sufoquei dentro de
mim por tanto tempo. Eu estava fazendo coisas que nunca fiz, eu estava me entendendo e me
conhecendo, agora, como uma garota que ficava com outra garota. E o bom disso tudo, por mais
estranhamente bizarro que parecesse, considerando que nunca me imaginei vivendo algo assim,
era que eu estava... Muito, muito feliz.
Perfeita, eu ainda não tinha tanta certeza, mas, feliz, eu sabia que sim.
Inclusive, conversar com a Giselle, quase diariamente, na sua sala da universidade, estava
me ajudando bastante nisso. Ela ficou incrivelmente feliz, quando contei que Rayka e eu, enfim,
tínhamos dialogado civilizadamente na praia e estávamos começando a nos entender.
Pois é, Giselle era mesmo uma linda.
O que também era bizarro pra mim. Digo, não o fato dela ser uma linda, mas, sim, o fato
de que tantas coisas que antes eu não julgava serem importantes pra mim, agora tinham subido
em um grau de prioridade inesperado, incluindo a terapia. Para quem sempre foi um tanto
desacreditada do poder da psicologia, agora estar amando conversar com uma psicóloga, quase
todos os dias, era tão novo e bizarro quanto todo o resto. Mas, também, era igualmente
maravilhoso.
Era isso.
Mesmo com os receios que eu naturalmente ainda sentia, as coisas estavam se encaixando,
aos poucos. E quanto mais elas se ajustavam dentro da minha cabeça, me fazendo acreditar e
confiar que eu estava no caminho certo de me entender comigo mesma, mais leve e feliz eu
ficava.
Aliás, não era nem um pouco difícil acordar, todos os dias, com aquele sorriso de idiota,
sempre que eu via uma flor diferente, junto com um bilhetinho, em cima do móvel ao lado da
minha cama.
Isso estava se tornando um ritual seu. E meu também.
Rayka me visitava antes de dormir, para me dar boa noite, e, então, pela manhã, ela me
deixava uma... Surpresinha.
Maldita miserável que fazia eu me apaixonar ainda mais, graças ao seu plano
maquiavélico de apoderamento do meu coração.
Naquela manhã, não foi diferente. Assim como todos os outros dias da semana, eu abri os
meus olhos e automaticamente virei o rosto para o lado, já esperando encontrar uma nova flor e
um novo bilhetinho.
E encontrei.
Ahhhh, realmente encontrei!
Suspirei, que nem uma otária, sorrindo pela centésima vez e sentindo um ânimo
instantâneo para me levantar, só de ver aquilo.
Rayka ridícula.
E linda.
E maravilhosa.
Argh, que ódio.
Animada, logo me sentei na cama e, com muito amor, peguei o bilhete e a flor. Essa
parecia uma tulipa azul. Perfeita e cheirosa. Juro que eu não sabia como e onde ela conseguia
pegar flores diferentes todos os dias, para entrar no meu quarto, sei lá, cinco ou seis horas da
manhã, e me deixar aqueles presentinhos antes de eu acordar.
Bom… Eu não sabia como e onde ela conseguia, mas eu adorava.
Mesmo.
Depois de três dias seguidos, recebendo as suas florzinhas junto com os bilhetes, resolvi
colocar um jarro com um pouco d’água, ao lado da minha cama. Então, a cada manhã, eu
depositava uma nova flor no jarrinho. Com um sorriso maior do que eu, foi nele que eu coloquei
a tulipa azul, para se juntar às suas outras amigas. Já estava todo colorido, repleto das mais
variadas e lindas flores.
Suspirando outra vez, que nem uma imbecil, abri, então, o seu bilhete e...

Será que dá pra parar de ser tão linda enquanto dorme?


Assim fica difícil voltar para o meu quarto
Quando tudo o que eu mais queria era ficar no seu
Até amanhecer
E dizer que não existe mulher mais perfeita no mundo que você

Ai, que terrorista!


Alguém precisava prendê-la...
...Na minha cama.
Sorri para mim mesma três vezes mais, enquanto segurava o bilhete e repetia aquelas
frases por milhares de vezes, sem conseguir parar. Quase rolei sobre os lençóis, de um lado para
o outro, como a idiota que eu realmente era.
Rayka estava me mimando. Ou pior, me deixando mal-acostumada.
Sim, muito mal-acostumada.
Desgraçada para saber usar tão bem as palavras, sempre.
Dessa vez, não como Maverick, mas, sim, como Rayka. E, honestamente, não existia nada
melhor do que isso. Uma coisa era certa, no entanto, ela sempre seria capaz de me envolver,
sendo Maverick ou, principalmente, sendo Rayka.
Eu jamais escaparia dela, em qualquer uma das suas versões.
Aliás, eu já não queria escapar dela.
Com o coração satisfeito de uma maneira como poucas vezes na vida eu senti, guardei o
bilhetinho no baú, junto com os outros, e, enfim, me levantei da cama. Naquele dia, eu não tinha
aulas pela manhã, mas James fez o favor de me convocar para algumas horas extras. Segundo o
que me disse, duas garçonetes foram demitidas e ele precisava de gente para cobrir o trabalho
delas, enquanto não contratava pessoas novas.
Rolei os olhos, suspirando.
Eu até poderia estar me tornando ligeiramente mais dócil, em termos de relacionamento
amoroso, mas jamais, jamais iria me acostumar com o fato de ter que esfregar o chão, desentupir
fogões industriais e cozinhar panquecas. Eu não via a hora do James conseguir dinheiro o
suficiente para terminar a reforma na lanchonete.
Enquanto caminhava rumo ao banheiro, porém, algo repentinamente reteve a minha
atenção, sem que eu ao menos fizesse esforço algum para isso. Era o meu caderno, caído bem ali,
em um cantinho do quarto. Meu antigo caderno de desenhos. Aquele que eu guardava a sete
chaves, para que ninguém o visse.
Franzindo o cenho de leve, me aproximei para pegá-lo.
E, segurando-o entre as minhas mãos, eu o abri.
Lá estavam elas...
Law e Joy.
Um novo e súbito sorriso escapou dos meus lábios, quase sem eu perceber, quando
deslizei, com carinho, os dedos por cima das ilustrações e comecei a folhear. Estranhamente,
aquela vontade de escondê-lo ou mesmo jogá-lo no lixo, já quase não parecia existir. A única
coisa que eu conseguia sentir ali era afeto. Um afeto bom.
O meu peito se aqueceu, dessa vez. Não por acaso, mas porque alguma coisa me dizia que
eu estava me tornando mais parecida com Law do que eu podia imaginar. E isso, curiosamente,
já me assustava tanto quanto antes. Aliás, não me assustava nem um pouco.
Law tinha se tornado livre no final dos quadrinhos.
Livre das amarras dos seus próprios preconceitos.
E estava feliz.
Feliz da mesma forma como eu estava começando a me sentir.
Estranho.
Mas, bom. Muito bom.
E, então, algo dentro de mim, que eu nem sabia dizer exatamente o que era, de repente, me
motivou a fazer uma coisa. Uma coisa que há muito, muito tempo eu não fazia. Senti uma
tremenda vontade de voltar a desenhar naquele caderno, sem nem saber o porquê. Porém, não um
desenho qualquer. E, sim, os quadrinhos de Law e Joy.

✽ ✽ ✽

De verdade, eu não estava muito normal. Não estava mesmo, ainda que as coisas
estivessem começando a se ajeitar na minha cabeça. Ou, então, na real, eu tinha acabado de
descobrir que o avesso era exatamente o meu lado certo. Isso porque era claro que eu não tinha
obrigação nenhuma de tirar o bilhete dela de dentro do baú e andar para cima e para baixo com
ele, que uma idiota apaixonada, lendo e relendo as suas palavras.
Pois é, eu não tinha a obrigação.
Mas, foi o que eu fiz.
Sim, foi exatamente o que eu fiz. E eu parecia não ter a menor vergonha na cara de fazer
isso.
Apenas como a grande desgraçada sonhadora e iludida que eu realmente era, caminhei, até
a lanchonete, segurando o seu bilhete e repetindo cada uma das suas frases, como se, a qualquer
momento, eu pudesse esquecê-las. O que era completamente improvável. Se eu não me esquecia
de cada uma das suas palavras sendo Maverick, que dirá os bilhetes que ela me dava sendo a
própria Rayka.
E, do mesmo jeito que eu fazia com as cartas do Maverick, estava acontecendo agora,
enquanto eu lia e relia milhares de vezes os seus poemas, as suas cantadas escritas e disfarçadas
de piadinhas, e a sua lábia melindrosa em formato de versos rimados.
Maldita imbecil que sabia exatamente como conquistar uma mulher.
Quase saltitante, entrei na Esquina das Panquecas, sorridente, enquanto balançava, entre os
meus dedos, o bilhete que eu não largava por nada. E, bem, para a minha completa felicidade, a
primeira pessoa que eu vi, arrumando copos sobre um dos balcões, foi ela.
Juro que não sabia como isso era possível, mas, assim que eu a avistei e ela também me
viu, o meu sorriso se tornou maior que a Ocean Drive inteira de Miami. Para quem tinha chorado
trinta mil litros, nos últimos dias, eu estava indo bem demais, contente demais. Isso, no entanto,
era impossível evitar. Desde aquela tarde na praia, eu só precisava olhar para ela e tê-la por
perto, para que minha dignidade descesse toda para o ralo.
Porém, pouco me importando com a tal da dignidade, eu me aproximei. E, quanto mais eu
chegava perto, mais o sorriso dela, para mim, me parecia charmoso. Quando percebeu, então, o
que eu segurava, mirando os seus olhos bonitos no bilhete, largou o pano de enxugar, em cima
do balcão, e ergueu uma das sobrancelhas para mim, quase safada.
Ou melhor, safada mesmo.
Filha da mãe gata, que saco!
Antes de tudo, eu me joguei nos seus braços e, de um jeito mais manhoso do que eu
gostaria, falei:
— Oi...
Nós tínhamos combinado de ir aos poucos. Bom, pelo menos, eu tinha pedido isso a ela,
um dia depois da praia. Ainda que eu já tivesse evoluído consideravelmente em uma porção de
coisas, ainda existia outra porção de coisas que eu precisava processar. Um passo de cada vez,
até porque eu ainda não sabia se já estava plenamente preparada para contar à nossa família
inteira o que estava acontecendo entre nós, incluindo a minha avó principalmente.
Querendo ou não, Grace ainda era o ponto delicado de tudo.
Então, Rayka e eu ainda não nos beijávamos na frente das pessoas. Apenas em particular,
ou em alguma escapadinha, quando a vontade batia muito grande em público. Porém, eu
percebia, lá no fundo, que as escapadinhas em público estavam se tornando cada vez mais
frequentes, porque a vontade de nos beijarmos e nos tocarmos, a cada cinco segundos que
ficávamos perto uma da outra, parecia aumentar, de um jeito insano, todos os dias.
Eu tinha culpa dela ter nascido gostosa?
Podia ter nascido um pouquinho feia, né?
Mas, não. Claro que não.
É óbvio que o universo jamais iria colaborar comigo neste ponto. Ele tinha que fazer uma
criatura que era a própria libido em forma de pessoa. Argh.
Nada me impedia, porém, de lhe dar um abraço tão gostoso quanto ela própria.
— Bom dia, amor... — respondeu, me envolvendo pela cintura. — Gostou do que eu
deixei hoje?
— Adorei... — sua desgraçada.
Não completei, mas tive vontade.
Ainda grudadas, porém, me afastei um pouco, somente o suficiente para encará-la nos
olhos. E mordi o lábio inferior, tentando conter o sorriso estúpido que queria ficar ainda maior. O
seu bilhete, no entanto, continuava na minha mão, provando a mim e a ela que, não importava o
quanto eu me esforçasse para disfarçar, eu sempre pareceria uma idiota apaixonada na sua frente.
E não, eu ainda não estava acostumada a ouvi-la me chamar de... Amor.
Era estranho e maravilhoso, ao mesmo tempo.
— Ah, que bom... — deslizou uma das mãos pelos meus cabelos, tirando carinhosamente
uma mecha da frente do meu rosto. — Eu também gostei bastante de entrar no seu quarto hoje,
cinco e pouco da manhã, e te ver dormindo com a boca aberta. Tinha uma babinha escorrendo
bem aqui... — apontou, brincalhona, para o cantinho dos meus lábios. — A coisa mais sensual.
Sério.
Ri, sem conseguir segurar.
Um leve traço de vergonha cruzando o meu olhar.
— Ah, sua idiota... — empurrei de leve o seu ombro. — Para...!
— Se eu parar, não vou mais ver as suas bochechas vermelhas assim. Aí não tem graça.
Revirei os olhos.
— Cuidado, hein? Eu sou muito perigosa. Posso te fazer passar uma vergonha bem
grande, quando menos esperar.
— Ah, é? — ergueu uma das sobrancelhas, quase desafiadora. Aquele sorriso
estupidamente charmoso, nascendo no cantinho dos seus lábios. — Isso, por acaso, é alguma
ameaça, Victoria Peterson?
Empinei o nariz, divertida.
— Unhum, é sim. Pode apostar. Se eu fosse você, tomaria muito cuidado comigo.
— Hum... — balançou a cabeça de leve, me encarando firmemente por alguns segundos.
Seus olhos cravados nos meus com seriedade, mesmo que eu conseguisse enxergar perfeitamente
a diversão escondida em cada linha do seu semblante e da sua boca, até que... Subitamente
exclamou só para mim. — Não antes de mim! — e, me pegando completamente de surpresa,
ainda abraçada comigo, começou a me fazer cócegas.
Cócegas por todos os lados, por todas as partes.
Eu juro.
Incapaz de segurar, comecei a gargalhar, percebendo todos os funcionários e todos os
clientes automaticamente olhando para nós, enquanto eu recebia aquele ataque de cutucões no
sovaco, nas costelas, na barriga, e relinchava mais alto que uma égua.
— Para, Rayka! Para, sua imbecil!
Entre risos e vergonhas em público, eu tentava me desvencilhar das suas mãos. No fundo,
porém, o fato era que eu estava me divertindo. Eu estava me divertindo pra caramba. E há muito
tempo não gargalhava tanto assim.
Entretanto...
— RAN-RAN — parecia um pigarro proposital, em alto e bom som.
O barulho nos fez subitamente parar. E, então, quando viramos o rosto para ver quem ou o
que era...
Stacy.
Ah não.
Até os nossos sorrisos sumiram.
A menina parecia ter um chama, algum tipo de sinal, sempre que Rayka chegava perto de
mim. Stacy só surgia das profundezas do inferno quando não devia. Ou seja, sempre. Ela sempre
não era bem-vinda em qualquer lugar que nós estivéssemos juntas.
— Por gentileza, querida... — daquele jeitinho bem insuportável, disse ela. — Segura
esses patins. — e já foi empurrando o troço pra cima de mim, ao mesmo tempo que,
descaradamente, se metia entre Rayka e eu, tentando nos separar.
Revirei os olhos, bufando.
Stacy parecia ter prazer nesse tipo de coisa.
Cadela.
— Pra que eu vou segurar essa porcaria? — desaforada, enrugando a testa para ela, eu
devolvi.
— Esqueceu que hoje você vai trabalhar como garçonete daqui, anjo? — ergueu uma das
sobrancelhas. Aquele ridículo sorrisinho sádico se desenhando na sua boca. — Se ainda não
percebeu... — olhou em volta, ironizando. — Todas as garçonetes daqui usam patins.
Era só o que me faltava mesmo.
Não bastava trabalhar na Esquina das Panquecas, usando uma farda cor de rosa com
panquecas estampadas e sorridentes, agora eu teria de passar o dia inteiro trepada em oito
rodinhas.
— Eu não vou trabalhar montada nisso aí! — retruquei, cruzando os braços.
Ela automaticamente cerrou os olhos para mim.
— Meu amor, não sei se já percebeu, mas quem manda aqui sou eu.
E fez absoluta questão de enfatizar o “sou eu”.
Argh!
— Eu vou falar com o James! — exclamei. — Eu vou falar com ele e vou dizer que...!
Antes que eu pudesse completar, com a minha fúria nascente e já tomando proporções
inacreditavelmente grandes, Rayka me interrompeu falando:
— Calma... — sua voz dócil e bonita, me fez parar. Aliás, não somente ela, mas também a
forma como a sua mão deslizou pelo meu braço. Puxei o ar, quase inconscientemente. Ai, por
que essa ridícula tinha um poderzinho na ponta dos dedos? Ódio! — Eu te ajudo com isso. Vai
ser legal, você vai ver — sorriu. — No começo, achei que seria muito chato andar de patins por
aqui, mas, depois que peguei o jeito, foi bem divertido. Eu te ajudo. Te ensino.
Em menos de meio segundo, que nem a otária que eu era, sempre que estava perto dela,
me desmontei inteira. A minha guarda subitamente baixou, e, então, sem que eu fizesse esforço
algum, aquele sorriso idiota, que eu dava para exatamente tudo o que a Rayka falava, estampou o
meu rosto.
— Sério...?
Foi a única idiotice que eu consegui responder, toda boba, com os olhos brilhando em sua
direção.
Eu não podia mentir, eu adorava quando Rayka tomava a frente de qualquer situação para
me ajudar. Isso me soava como... Cuidado, atenção. E afeto.
Filha da mãe pra eu amar e odiar.
— Sim, claro! — empolgada, respondeu. — Vai ser bem fácil, é só você...
Dessa vez, porém, foi a Stacy que a interrompeu.
— Ah não, você quer ajudar essa garota em tudo...! — ralhou, nem um pouco satisfeita
com ideia. — Esquece isso, Rayka. Você tem outras coisas para fazer por aqui.
— Sim, eu sei que tenho. Mas, ajudar a Victoria por vinte minutos não vai me atrapalhar
em nada. Além do mais, os patins daqui são do tipo Quad. Duas rodinhas na frente, duas
rodinhas atrás. Rapidinho ela pega o jeito.
Stacy cruzou os braços.
— Vai atrapalhar sim — replicou entredentes. — Acabou de chegar uma nova leva de
mantimentos. E você vai organizar tudo comigo lá na despensa, porque...
— Stacy! — James repentinamente gritou pelo seu nome, antes mesmo que ela
conseguisse completar. — Vem cá!
— Ai, que droga... — resmungou ela. — Espera aí, pai, eu vou daqui a pouco!
— Agora, Stacy! — insistiu.
Juro que, por um segundo, a voz do James pareceu um coro celestial nos meus ouvidos. Eu
já não aguentava mais ver e escutar a garota cacarejando ali, bem do meu lado. Os meus
tímpanos pediam socorro.
— Saco — bufou e, dessa vez, jogando literalmente os patins nas minhas mãos,
completou, autoritária, encarando a Rayka. — Olha só, eu vou lá, mas, quando eu voltar, você
vai comigo arrumar as coisas no estoque.
Rayka suspirou.
— À vontade, Stacy — e gesticulou com uma das mãos, quase irônica, como se estivesse
dizendo “pode passar”.
Quando a garota deu as costas e saiu dali praticamente marchando, fui eu que puxei o ar
para bem dentro dos pulmões, esfregando uma das mãos no rosto. Às vezes, eu tinha a impressão
de que aquela menina conseguia sugar e fazer desaparecer toda a energia boa de um lugar.
— Relaxa, não vai dar em nada — ouvi quando Rayka comentou. — Certeza que ela nem
vai voltar aqui. Já conheço o James. Quando ele chama a Stacy para ajudar em qualquer coisa,
ela passa, pelo menos, metade do turno sumida.
— O que é ótimo, né? Só a presença dela me cansa.
Rayka soltou uma risadinha.
— Logo você vai estar livre da Stacy e da Esquina das Panquecas inteira.
— Nossa, isso é tudo o que eu mais quero — rolei os olhos, já exausta sem nem ter
começado o expediente. — Mesmo assim, até lá, eu preciso aguentar certas coisas, inclusive
carregar bandejas em cima disso aqui, como se estivesse em um circo — ergui os patins, nem um
pouco animada.
— Isso vai ser tranquilo. Te juro. Muito mais divertido que limpar o óleo incrustado na
cozinha.
— Assim espero... — torci o nariz, em puro nojo, só de me lembrar do que já passei nos
fogões industriais da Esquina das Panquecas. — Bom, agora me deixa trocar de roupa. Preciso
vestir a farda e colocar isso nos pés sem cair umas dez mil vezes seguidas no chão.
Foi tudo o que eu disse, já me preparando para ir até a sala dos fundos, onde
costumávamos deixar as bolsas e mochilas e nos preparar para os turnos de trabalho. Quando eu
já estava dando o primeiro passo, porém, Rayka falou, subitamente, dois tons acima.
— Quer que eu te acompanhe?
Parei o ato na metade e me virei para ela.
Juro que eu não sabia se tinha entendido direito. A minha cabeça ainda estava poluída
demais com o estresse que a voz da Stacy me causava. Ela conseguia desalinhar todos os meus
chakras.
— Como disse? — perguntei.
Rayka pigarreou a garganta e, então, com o traço de um sorrisinho nascente, no canto dos
seus lábios, ela repetiu devagar.
— Quer que eu te acompanhe?
Algo, lá no fundo, me dizia que aquilo se parecia muito com... O seu típico sorrisinho da
sacanagem.
Eu, no entanto, não sabia o que estava me dando, talvez fosse o meu juízo ainda
contaminado por patins e Stacy. Por um segundo, não dei ouvidos ao meu sexto sentido que era
tão aguçado para segundas intenções. Meio aérea e burra até demais, repliquei displicentemente,
ainda sem sacar direito:
— Aaahh, nã-não, imagina... — lhe dei um sorrisinho, balançando a cabeça de leve e
gesticulando com uma das mãos. — Eu volto rapidinho. Num instante troco de roupa.
Só que aí, dessa vez, os seus olhos me sondaram de um jeito que eu nem fui capaz de
descrever. Ela, então, se aproximou de mim, já transbordando uma energia completamente
diferente de um minuto atrás. E, encarando fixamente as minhas orbes, tornou a dizer, agora
pausadamente, enquanto passava um dos braços pela minha cintura.
— Victoria... Quer. Que. Eu. Te. Acompanhe? — e apertou sutilmente o meu quadril.
Foi quando eu, enfim, matei a charada.
A forma como falou o meu nome, o jeito como me encarava, a maneira como me envolveu
com o seu braço e a entonação que usou... Tudo. Absolutamente tudo esfregava na minha cara o
que ela de fato queria e quais eram os seus planos. Os seus terríveis planos.
Meu coração acelerou.
Ainda existia um pouco do medo daquela Victoria... Aquela Victoria que sempre foi tão
covarde para a maioria das coisas que realmente desejava. Aquela Victoria que pensava umas
dez mil vezes antes de fazer qualquer coisa, especialmente ali, dentro da lanchonete, perto de
tanta gente, e correndo o risco de ser flagrada por alguém a qualquer momento. Essa Victoria, de
anos, meses ou semanas atrás, jamais cogitaria a possibilidade de dar uns amassos nas salas da
Esquina das Panquecas.
Aliás, essa Victoria jamais cogitaria dar uns amassos com uma mulher em qualquer lugar
que fosse.
Pois é.
Acontece que eu já não era mais essa Victoria, ainda que apenas a Rayka soubesse disso.
Essa Victoria começou a desaparecer, dentro de mim, antes mesmo de eu me dar conta. E
agora... Agora ela se parecia, cada vez mais, com um borrão inofensivo, uma lembrança distante
na minha alma, do que com alguém ou uma força maior capaz de impedir de fazer alguma coisa.
A Victoria de agora queria pegar a Rayka, nem que fosse nas salas escondidas da Esquina
das Panquecas, especialmente se ela parasse para pensar que a última vez que beijou a boca da
garota foi na noite anterior, pouco antes de deitar na cama, e que passou mais de meia hora,
rolando de um lado para o outro dos lençóis, até conseguir pegar no sono, enquanto imaginava,
com a mente fértil até demais, o que poderia acontecer, se Rayka não tivesse ido para o seu
quarto.
Justo o quarto que ficava bem ao lado.
Divididas apenas por uma parede.
A Victoria de agora queria.
Simplesmente queria.
Sem pensar em mais nada, movida pelo desejo que ela inflamava em mim só de me
encarar, olhei de um lado para o outro da lanchonete, me certificando de que ninguém estava nos
observando, e, então, de súbito, a segurei por um dos braços, arrastando-a rapidamente dali.
Enquanto atravessamos toda a extensão das salas administrativas e das cozinhas, ainda
virei o rosto para trás umas duas ou três vezes, fitando o seu olhar bonito e morrendo mil milhões
de vezes seguidas, sempre que percebia a cara de sacana que ela me dava e aquele sorriso
miseravelmente pervertido.
Sem dúvidas, era a pessoa mais sem-vergonha que já tinha cruzado o meu caminho.
Nenhum homem e muito menos outra mulher.
Só ela era desse jeito.
Se antes isso me assustava, agora eu amava.
Um semblante assim, bonito como esse, com uma sacanagem escancarada como essa, era
apenas a Rayka quem conseguia reproduzir sem parecer ridículo. Aliás, era ridículo sim.
Ridiculamente excitante.
Ofegante, suada, e louca da cabeça, alcancei, enfim, a porta da sala que ficava bem nos
fundos. Era quase como uma despensa dos próprios funcionários. Não havia qualquer pessoa ali,
para a minha completa felicidade. E, bem, até onde eu sabia não colocavam câmeras naquela
sala, porque tinha gente que trocava de roupa ali, como eu.
Apressada e já cheia de tesão, destravei o trinco, deixando Rayka passar na minha frente.
Ela entrou e eu fechei a porta, trancando-a e agradecendo a todas as deusas por ter uma chave ali.
Ao me virar para ela, foi automático. Com os ombros subindo e descendo pesadamente, em uma
agonia gostosa, que era novidade até para mim mesma, coisa que eu nunca tinha sentido, larguei
o meu resto de lucidez e corri para os seus braços, pulando no seu colo.
Ela me pegou no mesmo instante, segurando-me firme pelas coxas. E, já arrancando todos
os beijos mais severos e gostosos dos meus lábios, me levou para cima de uma mesa, deixando
tudo, absolutamente tudo o que eu nem fazia ideia do que era, cair no chão.
O barulho foi tão alto que, por um instante, eu me assustei.
— Ai, merda... — sibilei, numa mistura de tensão com tesão, sem conseguir parar aquilo
por nem um segundo. — Vão nos ouvir!
Nessa altura, falar palavrões já não me parecia tão pecaminoso quanto antes.
Ela, por sua vez, pouco se importando com qualquer coisa que não tivesse a ver com os
beijos que me dava ou com os lugares por onde as suas mãos passeavam, respondeu, contra os
meus lábios:
— Você não sabe o quanto eu tava doida pra fazer isso, desde que te vi dormindo hoje de
manhã.
E, à medida que falava, os seus dedos me tocavam em uma quantidade de partes que eu
mal conseguia identificar. Rayka parecia ter trezentas mãos. E todas, sem dúvidas, eram
absolutamente habilidosas.
— Então, não era na minha boca babada que você estava reparando? — tentei ironizar,
muito embora o meu juízo não estivesse em perfeito funcionamento entre aqueles beijos.
Talvez já estivesse começando a faltar oxigênio no meu cérebro.
— Não mesmo — disse ela. — Na verdade, eu reparei no quanto a sua bunda parecia
irresistível descoberta pelo baby-doll frouxo.
Foi quando eu pausei por um só segundo, a fitando.
— Espera aí... Ficou reparando na minha nudez enquanto eu dormia e nem sonhava que
você estava me vendo, sua safada?
Ela sorriu, travessa.
— Me declaro culpada por esse crime. É uma bunda gostosa demais para não ser
admirada. Sério.
E sem conseguir passar mais que meio minuto séria, ri contra os seus lábios.
— Idiota... — puxando-a pelo pescoço, voltei a beijá-la, me sentindo ridiculamente mais
excitada só por ouvi-la falar assim de mim.
Ela, por sua vez, substituindo o sorriso leve por um olhar mais intenso, ergueu um pouco
mais as minhas pernas, entre a sua cintura, flexionando os meus joelhos, e deslizou de leve os
seus dedos pela parte de baixo das minhas coxas.
Suspirei, fechando os olhos e inclinando a cabeça para trás.
A ponta dos seus malditos dedos só podia ter algum superpoder mesmo. Vibravam,
esquentavam e aqueciam tudo, não apenas por baixo da minha calcinha, mas também por dentro
do meu peito e da minha cabeça. O meu lado racional estava derretendo completamente.
Sem conseguir segurar aquilo que já escapava da minha boca, abrindo as orbes ainda mais
escuras para ela, simplesmente perguntei:
— Vem cá, me diz uma coisa... Fora o quanto ela é claramente gostosa, o que você pensou
exatamente quando viu minha bunda?
Ela sorriu.
Aquele sorriso que me matava sempre.
— Pensei umas dez milhões de vezes em te acordar, porque eu estava louca para te tocar e
não podia.
O frio na barriga que eu senti, misturado com o ardor gostoso, por causa da sua resposta,
deixou todos os meus pelos arrepiados. Foi como despertar repentinamente, um lado meu que
nem eu mesma conhecia.
Na real, desde aquele pôr-do-sol na praia, eu estava me conhecendo cada vez mais, todos
os dias. Uma Victoria que eu não tinha noção de que existia ou de que poderia existir em mim. E
era assustador que isso já não fosse tão assustador para mim, por mais confuso que pudesse ser.
Era confuso, mas, ao mesmo tempo, também não era.
Uma deliciosa e maluca viagem rumo ao meu eu.
Quando me dei conta, eu já estava falando:
— O que acha de tocar em mim agora, do jeito como você queria?
E eu sabia que essa era a primeira vez na vida que eu parecia tão safada.
Eu nunca fui safada.
Pelo menos, não assim.
Vi, então, o sorriso mais incrível do mundo que ela me deu. E, por um instante, seus olhos
brilharam num limiar entre a doçura e a sacanagem. Na sua testa estava escrito que ela não
parecia acreditar nas palavras que eu tinha acabado de pronunciar.
— Você é real? — perguntou ela.
— Eu tenho certeza de que você vai perceber o quanto eu sou real, quando apertar a minha
bunda.
Essa, definitivamente, não era a Victoria Peterson.
Mas, era uma versão infinitamente melhorada dela.
Num rompante, Rayka deslizou sua língua para dentro da minha boca e enfiou as suas
duas mãos por debaixo do meu vestido, apertando sem medidas a minha bunda. Eu arfava contra
os seus lábios, sentindo o quanto eu estava me perdendo de mim mesma e, ao mesmo tempo, me
encontrando também.
Sua mão era firme, forte.
E essa era a primeira vez que a gente se pegava desse jeito, ainda que desde a praia a gente
se beijasse todos os dias. Eu não me enganei quando percebi que tudo estava se tornando
gradativamente mais intenso entre nós.
Porém, foi quando os seus dedos alcançaram as laterais fininhas da minha calcinha minúscula de
renda, que eu tive um breve instante de epifania. Eu não fazia muita ideia de como as coisas
aconteciam entre mulheres. Eu nunca fiz coisas com mulheres. Mas, algo, lá no fundo, me dizia
que não estava longe de eu fazer com ela, mesmo que eu não tivesse noção de como isso
funcionava.
UMA CARRETA DE ORGASMOS
PARA VOCÊ

“Você tem que saber, estou apaixonada, nunca amarei uma outra pessoa”
Gold | Chet Faker

VICTORIA

Eu não sabia explicar como isso estava acontecendo. Não sabia mesmo, principalmente
considerando a quantidade de anos que passei sem nem tocar direito naqueles cadernos. Talvez
fosse aquela ordinária, junto com todos os seus beijos terrivelmente maravilhosos e os seus
dedos absolutamente perigosos. Ou talvez fosse o quanto eu parecia diferente de mim mesma e,
ao mesmo tempo, tão certa de quem eu estava me tornando. Talvez fosse a mistura de tudo isso e
o fato de que eu estava conhecendo uma parte de mim, antes sufocada, mas... Ultimamente, eu
me sentia incrivelmente mais inspirada para desenhar.
Sim.
Muito mais inspirada.
Deixei temporariamente de lado as esculturas e os vasos de cerâmica, nos quais eu me
debruçava com tanto afinco, desde o início da faculdade, porque eram as únicas coisas que
faziam eu não me lembrar da adolescente boba e iludida que já fui um dia, e voltei a desenhar.
Enquanto as esculturas faziam o sucesso subir à minha cabeça e permitiam que eu me tornasse
conhecida como a prodígio artista plástica em formação, renomada e ganhadora dos primeiros
lugares em concursos, os desenhos só faziam eu me encontrar de novo comigo mesma. E, mesmo
que isso parecesse simples, não era.
Não era simples.
Só eu sabia o significado que isso tinha para mim.
Eu adorava desenhar, eu amava criar quadrinhos, aqueles quadrinhos, mas, por puro
medo, abandonei a minha paixão, literalmente a minha paixão, achando que isso me levaria para
cada vez mais perto do tipo de garota que me disseram que eu não deveria ser.
Agora, não ironicamente, eu andava para todos os lados, sempre com algum dos meus
cadernos de desenhos debaixo do braço, assim como aquela adolescente de quinze anos, que foi
fazer o ensino médio em Nova Iorque e não parava de se lembrar daquela menina que deixou em
Miami, sem nem poder lhe dar um tchau direito, porque a sua avó poderia ver e reclamar. A
diferença entre mim e aquela adolescente era que ela só desenhava escondida, debaixo das
cobertas do seu quarto, com medo de que alguém a visse. E eu, agora, só queria desenhar em
todos os lugares, e a qualquer momento que o tempo me permitisse.
Inclusive, nesse exato instante, dentro de uma das salas do bloco do Curso de Literatura,
esperando Rayka para mais uma das nossas aulas particulares. Desde aquela tarde em Miami
Beach, talvez essa fosse a nossa terceira aula juntas. Enquanto ela não aparecia, Law e Joy
criavam vida outra vez.
Eu tinha encerrado a história delas, quando, enfim, ficaram juntas. Desde então, eu não
criei mais nada para elas. Aquele final ficou martelando tempo demais na minha cabeça, me
assustando uma porção de vezes, sempre que algo, no fundo da minha alma, sentia vontade de
fazer a mesma coisa que Law fez.
A continuação, porém, que eu estava fazendo agora, era sobre o que aconteceu depois que
elas ficaram juntas. As novas aventuras entre a skatista e a mocinha, agora como um casal.
O mais inacreditável de tudo era que, ao contrário de como eu passei anos me sentindo,
acuada e temerosa em ao menos pensar naquelas personagens de novo, agora quanto mais eu as
desenhava, mais empolgada eu me sentia. E o entusiasmo não era apenas por ver a evolução do
meu traço, ou poder observá-las tomando forma outra vez, através das minhas mãos, mas,
principalmente, vê-las juntas.
Juntas.
Lindas.
Elas sorrindo uma para a outra, elas se abraçando, elas se beijando, elas se amando, elas
indo para o quarto... Juntas.
Puxei o ar de leve, quase inconscientemente.
E, então, entre um rabisco e outro, o meu braço, sem querer, esbarrou contra o livro de
literatura, deixando-o cair no chão. Era o livro que Rayka e eu estávamos usando para estudar.
Me esticando um pouco e inclinando-me para pegá-lo, porém, notei o momento em que,
de dentro dele, um pedaço de papel caiu. Franzindo o cenho de leve, sem me dar conta de que
papel era esse, peguei-o e o desdobrei, lendo com atenção.

Quando abrir esse livro, não esqueça


Por mais difícil que pareça
Nem Shakespeare conseguiria explicar
Em qualquer um dos seus versos mais bonitos e difíceis de interpretar
Que uma mulher como você
Não precisa de muito para perceber o quão inteligente pode ser
No próximo teste, o “A” que vai receber
Será tão grande quanto essa sua bunda que eu quero morder

Foi automático.
Um sorriso misturado com uma risada frouxa, me escapou subitamente dos lábios, sem
que eu pudesse evitar.
Era mais um dos seus bilhetes que misturavam romantismos piegas com piadinhas.
Irritantemente engraçadinha. Como sempre.
Não bastava aqueles que ela já deixava, pela manhã, ao lado da minha cama, junto com
uma nova flor a cada dia, Rayka também estava espalhando outros e os deixando escondidos em
lugares estratégicos do meu quarto ou das minhas coisas, fosse em bolsas, cadernos, livros,
estojos de maquiagem.
Em qualquer parte, Rayka estava lá.
E eu amava.
Safada.
E linda.
Impressionante o quanto ela conseguia ser romântica, encantadora, engraçada e sem-noção
ao mesmo tempo.
Balançando a cabeça de leve e sorrindo que nem uma imbecil, voltei a desenhar Law e Joy
estupidamente mais inspirada. Ainda mais do que eu já estava. E olha que já estava pra caramba.
Era esse tipo de coisa que aquela meliante fazia comigo. Ela me deixava em um nível de idiotice
que nunca estive.
Já imaginando qual seria a próxima cena, deixei a minha imaginação viajar, depois do
bilhete, e comecei a desenhar Law e Joy... No quarto. Primeiro, elas entrando aos beijos. Depois,
Joy jogando a Law sobre a cama. E, então...
— Nossa, que irado! O que é isso que você tá fazendo?
Juro.
— Ai, minha deusa!
Exclamei subitamente, tão de supetão quanto a sua chegada, dando um pulo sobre a
cadeira.
Ela riu.
A própria Joy da vida real.
— Que foi, amor...? Desculpa, eu não queria te assustar — entre risadinhas, ela replicou.
— Quê que cê tá fazendo aí? Deixa eu ver — e já ia puxando o meu caderno.
Porém…
— Na-Nada. — rapidamente, coloquei a mão sobre o seu braço, a impedindo. E, então,
numa velocidade tão grande quanto a minha fala, fechei o caderno. — Não é nada.
Mesmo que eu estivesse começando a lidar de maneira amigável com aqueles cadernos e
desenhos, talvez essa reação ainda fosse um pequeno reflexo daquela Victoria Perfeita Peterson,
que viveu em mim por vinte e um anos.
Ou talvez...
Ou talvez eu apenas não estivesse preparada para mostrá-la esses desenhos, porque, no
fundo, bem no fundo, eu sabia que, quando Law e Joy foram criadas lá na minha adolescência,
elas não tiveram outra inspiração a não ser em mim e na Rayka.
Isso era um fato.
Um dia, eu ainda mostraria a ela.
Só não seria agora, justo quando Joy estava literalmente em cima da Law.
Rayka, no entanto, ergueu uma das sobrancelhas para mim, arteira.
— Tem certeza? — e sorriu, safada. Muito safada. — Pelo pouco que eu pude perceber,
tinha duas mulheres no desenho. Uma em cima da outra. Sensacional.
Minhas bochechas arderam, de súbito.
Eu juro.
Queimei de vergonha.
Miserável.
— Ai, para...!
Me empertiguei. O coração acelerado, sem que eu nem soubesse o motivo.
As coisas entre nós duas estavam avançando em um nível que eu não entendia a razão de
ainda sentir alguma vergonha na frente dela. Ou na real... Na real, talvez eu até soubesse a razão.
Bem, durante a adolescência, eu desenhava situações, naqueles quadrinhos, que, no fundo, eu
desejava viver. Então, agora, ilustrando a Joy em cima da Law, eu só poderia imaginar que...
Ai, tá bom, tá bom, Victoria!
Uma coisa de cada vez, menina.
Você nunca enfiou o dedo nem dentro de si mesma.
Calma.
Suspirei.
— Vem, senta logo aqui — puxei uma cadeira ao meu lado, para ela, tentando
desconversar e limpar os meus pensamentos nebulosos até demais. — Temos muito o que fazer.
Soltando mais uma risadinha, ela assim o fez.
— Tudo bem... O que temos para hoje? — perguntou.
Fazendo o possível para colocar a cabeça no lugar, respondi:
— Então, eu pensei da gente estudar para o teste que vai acontecer daqui a dois dias. Só
que eu me lembrei que, depois de tantas cartas do Maverick, a única coisa que não fizemos foi
falar sobre o trabalho final da disciplina. Aquele lá do romance, sabe? Precisamos fazer isso.
— Oh, sim, tem razão... — sorriu, quase com ares de despreocupação, enquanto se
espreguiçava. Eu ainda me perguntava como essa garota conseguia tirar tantas notas boas sem se
esforçar. Só podia ser um dom. — Falta o quê? Uma semana para a apresentação?
— Sim, falta pouco mais de uma semana e ainda não fizemos nada!
Por um segundo, aquela Victoria perfeita e extremamente preocupada com notas quis se
sobressair no meu tom de voz meio desesperado. Vez por outra, ela ainda dava o ar da graça. Eu
vivia numa espécie de dualidade. Não estava completamente de um lado, nem do outro. Mesmo
assim, puxei o ar, tentando manter a linha e pegar leve. Ninguém merecia aquela Victoria, nem
eu mesma.
— Isso sem contar que a minha mãe ainda não sabe que você descobriu quem é a sua
dupla.
— E nem vai ficar sabendo — retruquei de pronto. — Você se lembra do que ela disse no
início, né? Se ela souber que alguma dupla descobriu o parceiro, antes do tempo, rola punição. E
eu juro pra você que não estou preparada para reprovar, nem para fazer esse trabalho sozinha. Eu
preciso fazer esse trabalho com você. É a minha única esperança de não perder essa maldita
disciplina.
Ela, no entanto, erguendo uma das sobrancelhas para mim e me dando um pouco do seu
infernal olhar charmoso, se inclinou sobre a sua cadeira, em minha direção. Sorrindo daquele
jeito que me fazia morrer milhares de vezes, falou bem perto do meu rosto, sacana e brincalhona
ao mesmo tempo:
— Sabia que é excitante ouvir você dizer que precisa de mim? Eu fico toda molhada.
Eu fico toda molhada...
Juro que o frio na barriga que me deu, com apenas essa frase imbecil, não foi brincadeira.
Canalha.
Suspirei, tentando disfarçar e não me desmontar inteira antes do tempo. E, então, rolando
os olhos para ela, ao fazer um tremendo esforço para parecer que a minha boceta não contraiu só
de ouvir isso, respondi:
— É, mas não fica se achando, tá? Eu estou me referindo exclusivamente à disciplina.
Ela riu, não me levando nem um pouco a sério. Aliás, nem eu mesma me levava a sério.
Eu tinha certeza de que estava escrito na minha testa que, entre tantas outras coisas, eu também
precisava da sua boca entre as minhas pernas.
Ai, pera, não.
Arregalei os olhos de leve para mim mesma, ao perceber a última frase que simplesmente
escapou dos meus pensamentos.
Pelo amor da deusa das líderes quase-sapatônicas de fraternidade.
Eu estava me tornando irreconhecível.
— Unhum, tá bom... — respondeu ela, ainda divertida, e, se esticando de novo, quase
bocejando, completou. — Vamos ver o que podemos fazer para esse trabalho...
Então, como se não bastasse o grau de imbecilidade que eu já me encontrava, só de tê-la
por perto e de escutar suas palavras sutilmente sacanas perto do meu rosto, ela colocou uma das
suas mãos bem em cima da minha coxa nua pela saia relativamente curta que eu usava,
inclinando um pouco a cabeça para trás como se estivesse realmente pensando.
Para qualquer pessoa isso poderia ser encarado como um ato simples, comum, até banal.
Mas, não para mim. Ah, claro que não. E muito menos para ela ou para os seus dedos espertos.
Eu sentia, por mais esquisito que isso fosse, como se existisse um tipo de energia na ponta de
cada um deles. Bizarro demais. Esquisito demais.
Mas, era um fato.
E, não, obviamente essa não era a primeira vez que eu notava isso. Claro que eu já tinha
percebido muito antes. Eu tinha reparado desde as primeiras vezes em que ela me tocou, há sete
anos, mesmo quando aparentemente nem havia segundas intenções. Nesse exato momento,
porém, a tal energia que as suas mãos carregavam parecia mais intensa.
Baixei o olhar lentamente e o meu corpo retesou, mesmo sem querer, ao ver os seus dedos
tatuados sobre a minha pele. Não era medo, receio, ou qualquer coisa dessa natureza. Não, não
mesmo. Era algo muito mais assustador do que isso, porém gostoso na mesma medida. Era o
início de um ridículo e imparável tesão.
Suspirei, tentando agir com a razão, ainda que eu já soubesse que iria falhar
miseravelmente nisso. Ergui, então, o olhar novamente para o seu rosto e me esforcei para pensar
no trabalho.
— A tia Daisy falou que era pra gente criar uma história de amor. Só que ela não
especificou o tipo. Então, acredito que não precisa ser necessariamente de casal. Pode ser uma
história de amor entre amigos, entre irmãos, sei lá.
Minha respiração, porém, estava começando a ficar inutilmente ofegante. E eu já não
conseguia nem disfarçar isso enquanto, feito uma boba, pronunciava cada palavra.
Droga.
Às vezes, eu parecia uma adolescente idiota na puberdade.
Só que tudo se tornou ainda pior (ou melhor, dependendo do ponto de vista), quando ela
deslizou os dedos sobre a minha coxa, indo na direção certa da barra da minha saia curta, ao
dizer:
— Todos os tipos de amor são interessantes, mas, no nosso caso, acho que fica melhor
uma história de amor em casal. Não acha?
A sagacidade no seu tom de voz, a escuridão nas suas íris, a intensidade do seu olhar,
tudo... Tudo deixava a minha sanidade seriamente desajustada. Especialmente o fato de que
quanto mais ela falava, mais os seus dedos ameaçadores passavam para debaixo da minha saia.
Maldita.
Por que eu simplesmente não conseguia ser racional perto dela?
— Será que dá pra parar com isso? — bobamente excitada, ainda que eu fizesse de tudo
para me segurar, falei. — Não estou conseguindo me concentrar com a sua mão dentro da minha
roupa.
Foi quando ela sorriu para mim, mostrando todos os seus dentes, como se tivesse ganhado
um prêmio. O prêmio de me deixar propositalmente com tesão.
Sim, eu conseguia ver nos seus olhos o quanto Rayka estava agindo diabólica e
intencionalmente, assim como eu também tinha certeza de que ela enxergava claramente, na
minha testa, escrito com glitter e letras garrafais, que, na real, eu não queria que ela parasse,
mesmo que a minha boca chata tentasse falar o contrário.
— Eu só paro, se você me disser que não tá gostoso — falou baixinho, tão sexy e perversa.
Que inferno.
Ela ia acabar comigo, bem no meio de uma sala de aula da universidade.
Respirei fundo, sem conseguir me conter, principalmente quando a sua mão se enfiou
ainda mais por baixo da minha roupa e a porcaria dos seus dedos ousados esfregou a minha
boceta por cima do tecido da calcinha de seda.
— Rayka...
Seu nome saiu da minha boca, em um grunhido de tesão, quando o meu clitóris
subitamente latejou. Arqueei as sobrancelhas, assustada comigo mesma, por sentir isso. Era a
sensação mais diferente e gostosa de toda a minha vida. Mesmo que eu já tivesse me excitado
outras vezes, nas minhas experiências com homens, nada, absolutamente nada se comparava a
isso.
Com alguns caras, eu já senti calor.
Mas, com a Rayka, eu queimava.
Eu pegava fogo.
Mesmo fazendo o maior esforço do mundo para me manter quieta, eu sabia que estava
falhando miseravelmente nisso. E sabia tão bem que foi impossível não deslizar o meu olhar, na
direção certa da sua boca, e não imaginar um milhão de formas diferentes de usar os seus lábios
dentro daquela sala.
Ainda mirei na porta, entretanto, vendo-a fechada, quando um filete de racionalidade me
perpassou e me fez lembrar de que ela não estava trancada. Não havia chave ali. A qualquer
momento alguém poderia entrar e nos ver.
Porém...
Rayka, ainda com o sorriso mais charmoso e tentador da face da Terra, esfregando o seu
dedo por cima da minha calcinha, disse:
— Nossa, que gostosa. Você já tá toda molhada pra mim, Victoria.
E eu simplesmente não consegui evitar o inevitável.
Fui incapaz de me manter parada por mais tempo, depois de ouvi-la falar isso com os
olhos brilhantes em admiração e desejo, enquanto sua mão continuava dentro da minha roupa.
Louca e excitada, avancei para os seus lábios, abrindo bem as pernas, para lhe dar mais
espaço. Sua língua deslizou sobre a minha, enquanto o meu coração faltava sair pela boca. Eu
nunca achei que fosse capaz de me transformar em um vulcão humano, do jeito como estava
naquele momento.
— Será que a gente nunca mais vai conseguir ficar perto uma da outra, sem sentir o maior
tesão do mundo? — perguntei entre beijos.
— Eu aposto que não. — tão ofegante quanto eu, ela respondeu. — Aliás, eu não quero
nunca que chegue um dia em que eu não sinta o maior tesão do mundo, só de estar perto de você.
Quero sentir esse tesão por você a vida toda, Victoria.
— Ah, sua idiota... — ela sempre usava as palavras certas para assassinar o restante da
minha sanidade. — Você ainda vai me foder inteira.
Nessa altura, eu já nem me importava de soltar algum palavrão.
E, bem, o “foder” não era exatamente naquele sentido. Porém, aparentemente foi dessa
forma como Rayka interpretou, porque, de pronto, replicou contra os meus lábios:
— Oh, Deus, sim, eu espero que sim.
Eu sabia, sim, o que isso significava. Em outros momentos, eu poderia ficar realmente
nervosa com as suas intenções. Ou melhor, eu ficaria excitada e igualmente nervosa. O
nervosismo, porém, não era de medo, receio, ou qualquer coisa desse tipo. Era por pura
inexperiência com mulheres. Naquele instante, entretanto, apesar de toda a minha falta de
prática, eu só queria sentir a sua boca em todas as partes que existissem no meu corpo.
Ainda assim, como um último resquício da minha consciência, quase sem ar, já sabendo
que, dali em diante, seria muito difícil me concentrar em qualquer outra coisa que não fosse nós
duas, uma se agarrando à outra, só consegui perguntar em um sopro:
— E o nosso trabalho...?
De fato, era o fim da minha racionalidade.
Depois disso, já era.
Eu sabia que o trabalho não seria feito naquele dia, porque, independente do que ela
respondesse, eu só queria que a gente continuasse com aquilo. Eu queria beijar a sua boca, e
sentir as suas mãos tocando não apenas as minhas coxas ou a minha boceta por cima da calcinha
ensopada. Eu queria senti-la pegando em tudo.
Rayka, por sua vez, tão sedenta, encarando intensamente os meus olhos, respondeu:
— Será que não percebe que o trabalho já está feito? Nós estávamos o fazendo, desde o
início, mesmo sem receber. Já temos uma história de amor. A nossa. Você e eu. E, agora, vamos
escrever mais um capítulo.
Foi tudo o que disse, levantando-se de supetão e me puxando pela mão.
Surpresa com a sua atitude, me ergui da cadeira, quase instintivamente, enquanto Rayka,
às pressas, me guiava para fora da sala. Só deu tempo de eu pegar, em um piscar de olhos, minha
bolsa, meu caderno e o livro. Em um rompante, quase como se estivesse se libertando de uma
prisão, abriu a porta.
E eu sabia que ela estava mesmo se libertando de uma prisão. A prisão que nós mesmas
criamos e que nos privou de tudo o que tínhamos vontade, durante os últimos sete anos. Era
dessa prisão que Rayka e eu estávamos nos libertando. A sua pressa era totalmente
compreensível, considerando que levamos mais de dois mil e quinhentos dias para, finalmente,
fazermos esse tipo de coisa.
A libido insana, que atravessava o seu corpo, era tão forte que irradiava ao ponto de tocar
o meu. Eu sentia. Sim, eu sentia e eu também estava me sentindo da mesma forma que ela.
Ofegante, quase sem ar, eu tentava acompanhar os passos ligeiros, enquanto, caminhando à
minha frente, ela ainda me guiava de mãos dadas.
E eu percebia, apesar de toda a pressa do momento, as pessoas, ao nosso redor, pela
universidade, nos observando e cochichando. Por um segundo, eu ainda imaginei o que falariam
de nos verem assim, juntas. Por um instante, eu ainda pensei dos burburinhos chegarem aos
ouvidos da minha avó.
Mas...
Honestamente, depois de andarmos por uma longa extensão do campus, esses
pensamentos foram, de súbito, sufocados e praticamente esquecidos, quando alcançamos o
estacionamento da universidade, cheio de carros espalhados por todos os lados. A parca
iluminação dos postes não encobria a escuridão. No céu, a noite já estava sobre as nossas
cabeças.
Ao nosso redor, naquele instante, não havia ninguém.
Franzi o cenho de leve, curiosa e, ao mesmo tempo, absolutamente excitada, para saber
quais eram os seus planos dessa vez.
— O que está fazendo? Para onde estamos indo?
Antes que ela respondesse, porém, eu vi, à medida em que caminhávamos quase correndo,
aquilo que parecia ser o carro da tia Daisy. Arqueei as sobrancelhas, surpresa. Ainda pensei na
possibilidade de ser outro igual ao dela. Mas, não. Claro que não, só podia ser o dela. Era bem
provável que não existisse outra BMW, daquele modelo, com um adesivo de mandala no vidro
do porta-malas.
— Entra — disse ela, ao parar do lado do carro e abrir uma das portas do banco traseiro
para mim.
— Você tá com o carro da sua mãe?
— Ela mal usa esse carro... — rolou os olhos de leve, a respiração ainda pesada. Eu
praticamente escutava o seu corpo implorar para que eu entrasse logo. — Me pediu para que eu
levasse na lavagem a seco hoje. Levei, mas ainda não devolvi. — e, então, quase suplicando,
enquanto apontava com o queixo para o banco de trás, completou. — Vamos, Vic... Por favor?
Engoli seco.
Eu sabia exatamente o que isso significava. Lógico. Além de estarmos completamente
excitadas, todo mundo já ficou com alguém, pelo menos uma vez na vida, dentro de um carro.
Quero dizer, nem todo mundo. Existia uma pessoa que nunca fez isso: eu. Sim, acreditem ou
não, Victoria Peterson jamais ficou se roçando com alguém nos bancos traseiros de um
automóvel. Isso era, digamos... Deselegante demais para uma Peterson. Pelo menos, na
concepção daquela Victoria que viveu em mim por vinte e um anos.
Agora, porém, ainda que essa Victoria esperneasse dentro de mim, ela já não tinha mais a
mesma autoridade de antes. Tudo estava diferente. Eu estava diferente, e me sentia assim, não
apenas agora, mas, se eu fosse realmente honesta comigo mesma, desde que Rayka voltou para
Miami e colocou o seu primeiro pé dentro da fraternidade. Sim, foi desde aquele momento.
Com o desejo batendo bem na minha goela, e as muitas ondas de calor que o meu corpo
liberava a cada cinco segundos, eu não conseguia pensar em outra coisa, a não ser entrar naquele
maldito carro com ela. Ultimamente, na mesma medida que eu ainda sentia algum medo, eu
também vibrava em empolgação pelo novo. Eu estava gostando do novo, afinal.
Era pura adrenalina, desejo, vontade de me conhecer cada vez mais e, principalmente, de
ficar com ela. Por isso, segurando a sua mão, dessa vez fui eu que a puxei. Só que para dentro do
carro, comigo.
Quando a porta foi fechada e o som lá de fora inteiramente abafado, tudo o que existia
entre nós, além da penumbra da noite potencializada pelo vidro fumê, era o desejo absurdo e
aquele sentimento pujante que transbordava de dentro de nós. Tudo o que eu conseguia escutar,
fora o meu coração pulsando freneticamente bem nos meus ouvidos, eram as nossas respirações
pesadas, que, naquele pequeno espaço, misturavam-se uma na outra.
Rayka não parava de me olhar e eu também não parava de admirá-la. Encarando-a sob a
pouca luz dos postes que incidia sobre o carro, ela parecia ainda mais linda. Isso poderia até ser
contraditório, considerando a escuridão da noite, mas ela brilhava. Brilhava tanto que me
encantava e me deixava com ainda mais vontade de ir para cima dela.
— Você está bem? — perguntou ela, reparando na minha respiração tão descompassada
quanto a sua.
Não respondi com palavras. Eu estava bem. Eu estava bem até demais. Eu estava com ela,
e isso era suficiente. Apenas pulei no seu colo, montando sobre o seu corpo, com uma perna de
cada lado. Tomei os seus lábios para mim outra vez. Sentindo as suas mãos em mim novamente,
só que, agora, ali, com apenas ela e mais ninguém ao nosso redor, o carro tornou-se um mundo
só nosso.
Uma bolha só nossa.
Rayka pressionou firmemente uma das minhas coxas, me grudando ainda mais a ela,
enquanto, com a sua outra mão, se encaixava à minha nuca, puxando meus cabelos, de modo a
inclinar a minha cabeça, para deixar o caminho do meu pescoço completamente livre. Arfei,
fechando os olhos, ao sentir sua língua molhada passeando sobre a minha pele. Rayka me
chupava e me mordia, como se quisesse arrancar um pedaço de mim.
Um gemido ainda quis me escapar, mas segurei. Pelo menos, dessa vez, eu fui capaz de
segurar. Não estava acostumada a fazer esse tipo de coisa. Sei lá, a emitir esse tipo de som.
Victoria Peterson achava muito deselegante. Só que essa Victoria, apesar de tudo, já quase não
existia mais. E, agora, aquela que estava ali, só queria se permitir a algumas sensações, ainda que
continuasse tentando abafar os sons guturais que quase lhe escapuliam.
Eu queria muito mais.
Aparentemente, ter passado sete anos repreendendo todo o desejo entre nós, só o fez torná-
lo gigantesco e, agora, implacável, como uma torrente que rebentava com uma força muito maior
do que qualquer pessoa poderia imaginar.
Porém...
À medida que eu começava a roçar, por puro instinto em cima dela, um ato quase
inconsciente de alguém que só desejava sentir mais, percebi o momento em que Rayka enfiou
outra vez as suas mãos por baixo da minha saia. Seus dedos encontraram as laterais fininhas da
minha minúscula calcinha de seda, e tentaram puxá-las para baixo. Sem que eu fizesse esforço
algum para isso, o meu sexto sentido e as minhas experiências, subitamente, me avisaram algo.
Bem, eu nunca tinha ficado com uma mulher. Essa era a primeira vez. Mas, eu também
não era virgem, para não saber identificar o momento em que estava na cara que certas coisas
iriam acontecer.
Foi quando, de repente, eu travei. E eu não travei pelo que eu sabia que aconteceria ali,
mas pelo pensamento certeiro e absoluto que me atingiu. Por um instante, eu senti como se
tivesse sido teletransportada de volta a algumas das infelizes vezes em que eu ficava com
homens. Sim, mesmo que agora eu estivesse com uma mulher, foi para as minhas experiências
passadas que minha memória me levou. E eu me lembrei... Eu me lembrei perfeitamente, sem
orgulho algum, de algo que sempre acontecia.
Eu fingia.
Sim, eu fingia com eles.
O problema era que, com a Rayka, eu não queria fingir. Depois do pôr-do-sol em Miami
Beach, eu tinha feito um trato comigo mesma de que seria verdadeira com ela em tudo. Ou seja,
eu não podia mentir nem mesmo com isso.
— Vic...? — percebendo a minha pausa abrupta, ela falou. Seu olhar bonito e atencioso
me sondou. — O que houve? Você tá bem?
Suspirei.
— Eu... Eu preciso te dizer uma coisa.
Com o cenho franzido, ela me encarou ainda mais intensamente.
— O que?
Ah, droga... Como dizer isso sem sentir a maior vergonha do mundo?
— É que... — pigarreei a garganta, completamente encabulada. Se não estivesse escuro,
ela veria o meu rosto todo vermelho. — É que... Eu tenho... Tenho...
Tentei escolher as palavras certas, mas, aparentemente, elas não existiam. Para o meu total
constrangimento, todas as formas de falar aquilo, de uma maneira mais eufemista, tinham
sumido da minha cabeça. Eu não conseguia pensar em outra forma que não fosse a mais direta e
vergonhosa.
— Está me deixando preocupada, Victoria.
Que saco.
Estalei a língua no céu da boca, chateada comigo mesma por eu ser assim, complicada até
sexualmente falando.
Era melhor falar logo de uma vez.
— É que eu tenho certa... Certa... — diz logo, Victoria! Minha consciência gritava comigo
mesma. — Ai, tá legal! — foi quando, enfim, despejei tudo de uma só vez. — É que eu tenho
dificuldade pra gozar, sabe? Tenho dificuldade pra gozar, quase não tenho orgasmo, finjo na
maioria das vezes, e agora nós estamos aqui. Você vai tirar a minha calcinha e eu não quero ter
que fingir outra vez, porque...
— Meu amor, calma — disse ela, ao me interromper subitamente, segurando o meu rosto
entre as suas mãos. — Calma, tá? Respira.
Como uma garotinha medrosa, eu encarava, assustada, o fundo das suas orbes, percebendo
a intensidade e o cuidado com que ela também observava as minhas. Cada parte do seu
semblante transmitindo o máximo de atenção e afeto possível. Enfim, respirei um pouco menos
agitada, só de perceber a maneira como ela me olhava.
— Por que está me dizendo isso, amor? — com delicadeza, ela perguntou.
Baixei levemente o olhar, ainda meio encabulada.
— Porque... Eu não quero que pense que eu não estou a fim, ou que eu não estou
gostando, se caso eu não chegar lá, sabe? Eu estou gostando sim. E estou a fim de ficar com você
aqui e agora também. É só que... É um problema meu, sabe? Infelizmente, eu tenho essa
dificuldade. — fitei os meus dedos, enquanto passava uns sobre os outros, de um jeito meio
inquieto. — Eu só não quero ter que fingir com você. Quero continuar sendo sincera assim.
Ela, por sua vez, me segurou carinhosamente pelo queixo, fazendo-me levantar o rosto e
encará-la outra vez.
— Olha, você não precisa ter vergonha de mim com absolutamente nada, muito menos
com isso — e deslizou suavemente a sua outra mão pelos meus cabelos.
Suspirei, fechando os olhos por um breve instante, sorvendo a sensação deliciosa da sua
mão fazendo carinho em mim. Quando os abri de novo, sorri de leve para ela, um pouco mais
aliviada.
— Obrigada...
— Não tem que me agradecer por isso — respondeu. — Sabe por que você tem
dificuldade de gozar com os caras?
— Por que eu devo ter algum problema?
— Não... — balançou veemente a cabeça em negativo. — Porque esses idiotas com quem
você ficava eram egoístas. Provavelmente, eles só se preocupavam com o prazer do próprio pau
e se esqueciam de você. Comigo você não vai precisar fingir. Confia em mim?
Sem pensar duas vezes, eu acenei com a cabeça. Não era a primeira vez que Rayka me
passava confiança com as suas palavras e as suas atitudes. A real era que, desde o dia em que eu
decidi parar de resistir ao que eu desejava, eu sempre me sentia segura quando estava com ela.
Mesmo com os riscos de sermos pegas a qualquer momento por alguém, em qualquer lugar que
estivéssemos, eu me sentia inexplicavelmente segura só por estar com ela.
— Eu confio — respondi, certa do que dizia.
Rayka, então, beijou a minha boca, falando contra os meus lábios, tão feliz:
— Ótimo.
O seu sorriso lindo, a forma carinhosa como me encarava, o cuidado evidente no seu
olhar, tudo, absolutamente tudo me enchia, agora, não apenas daquela excitação sempre tão
palpável entre nós, mas também de algum sentimento que eu ainda não era capaz de dar um
nome.
Um sentimento bonito. Bom e bonito.
Algo que deixava não apenas a minha boceta úmida, mas também o meu coração quente,
confortável, em paz, feliz.
Era isso.
Rayka conseguia ser uma junção, quase inacreditável, daquilo que antes eu me forçava a
odiar, mas que, na real, sempre me atraiu. A união perfeita entre o romantismo e a sacanagem. O
respeito e a canalhice.
Me pegando, então, de surpresa mais uma vez, Rayka transitou perfeitamente no seu
continuum, indo da sutileza à intensidade, em questão de segundos. Girou o meu corpo, de modo
que, agora, eu já não estava mais sobre o seu colo, mas, sim, sobre o banco ao seu lado.
Tornou a me beijar, encaixando uma das mãos na minha nuca e outra na minha cintura,
apertando a pele e me deixando com todos os pelos levantados a cada vez que chupava a minha
língua ou mordia a minha boca. Rayka beijava tão bem que me irritava. Me irritava por imaginar
que ela só podia ter uma vasta experiência, para ter tanta habilidade assim. E eu ficava doente só
de pensar nessa maldita boca beijando outra que não fosse a minha.
Me concentrei, no entanto, em nós duas. Afinal, não tinha como eu passar mais do que
cinco segundos prestando atenção em qualquer outra coisa que não tivesse a ver com a gente ou
com as suas trezentas mãos que passeavam por mim a cada segundo. Sem fazer qualquer esforço
para isso, porque apenas o fato de estarmos juntas era suficiente, a temperatura foi aumentando
outra vez.
E aquilo que, há dois minutos, era puro carinho e cuidado, agora continuava sendo, só que
misturado com muito desejo e tesão. Ao meu lado, ainda me beijando, ela se inclinou, colocando
as duas mãos dentro da minha roupa, e encontrou as laterais da minha calcinha novamente.
— Olha, eu sei, eu sei... — tão ofegante, disse ela contra os meus lábios. Suas orbes
escuras e tão bonitas me encarando com tanta ansiedade. Nossas respirações combinavam até no
quanto estavam entrecortadas. — Sei que poderíamos e deveríamos estar indo com mais calma,
só que... Ah, que droga, Victoria, é impossível, completamente impossível, não pensar em fazer
um milhão de coisas quando estou com você. E, agora, estamos aqui e eu… Eu só quero saber se
posso. — pressionou as laterais da minha calcinha, dando a entender qual era a sua intenção. —
Vai ser bom, muito bom. Eu prometo. Só me deixa fazer uma das coisas que mais desejo há sete
anos. Por favor?
Só me deixa fazer uma das coisas que mais desejo há sete anos...
Aí era que tava. Esse era o “x” da questão. Não era só ela quem desejava. Eu também, e
muito, mesmo que sempre tivesse tentado reprimir todas as minhas vontades com ela. Eu
desejava isso, sonhava com isso, precisava disso, sobretudo agora, com as suas mãos dentro da
minha roupa e a minha cabeça incapaz de pensar em qualquer outra coisa.
Por isso, apenas respondi, certa e segura do que eu também queria:
— Faça.
Mesmo com os medos e os receios que ainda me rodeavam, eu queria sim isso. Os meus
fantasmas já não falavam tão alto quanto antes. E, agora, depois de ter sido sincera com ela sobre
um detalhe que poderia me travar, eu me sentia incrivelmente mais leve, sem aquele peso de que
eu precisava fingir alguma coisa para impressioná-la. Eu só ia ser eu mesma.
E não tinha nada de mais maravilhoso do que ser eu mesma com a garota que me tirava o
sono, há sete anos.
Rayka me deu um sorriso brilhante. Enorme. Lindo.
E, entre respirações já ofegantes e suores que escorriam pelo calor que fazia dentro do
carro, suas mãos, enfim, puxaram a minha calcinha de seda para baixo. Por um segundo, eu
quase não acreditei que aquilo estava mesmo acontecendo. Rayka e eu, dentro daquele carro,
enquanto a minha calcinha era arrancada pelos seus dedos e se perdia pelo piso do banco detrás
de uma BMW.
Dessa vez, não foi medo, nem choque.
Foi pura admiração por ela. Por nós. Ou mesmo uma sensação esquisita, mas muito, muito
boa de que eu estava sonhando.
No entanto, me provando que eu estava realmente acordada e que, ao contrário do que eu
imaginava, eu jamais teria capacidade de fingir qualquer coisa com ela, mesmo se quisesse,
Rayka com as mãos fortes e seguras deslizou pelas minhas coxas e alcançou a minha boceta com
os dedos.
Foi automático.
Na primeira passada do seu indicador pelo meu clitóris já excitado, um gemido absurdo e
não intencional, simplesmente se desprendeu da minha boca. E, tão instantâneo quanto o meu
gemido foi o susto que eu levei comigo mesma, ao perceber aquele negócio saindo pela minha
garganta, sem qualquer intenção minha.
Eu nunca, nunca, nunca gemia assim.
Ou melhor, quando eu gemia, fazia o mais baixo possível, porque achava deselegante
demais, para uma Peterson, agir como uma cadela no cio.
Porém, a elegância agora parecia ter ido completamente para o espaço. E o mais esquisito
de tudo era que, por mais assustada que eu estivesse, não fazer barulho já não era mais
importante para mim quanto antes. Na real, se eu fosse sincera comigo mesma, gemer era até...
Libertador.
Gostoso.
E Rayka percebeu como eu fiquei.
— Tá tudo bem? — perguntou ela.
Balancei a cabeça em um sim, meio aérea e absolutamente cheia de tesão.
— Continua. Só continua. Por favor.
Como uma viciada, eu pedi.
Era bom. Aquilo era muito bom.
Rayka sorriu ainda mais, e, então, segurando o meu rosto firmemente por baixo do queixo,
como se quisesse manter o meu olhar fixado ao seu enquanto fazia aquilo, ela, sentada ao meu
lado, abriu ainda mais as minhas pernas, colocando a minha esquerda sobre a sua direita, e
esfregou com ainda mais intensidade os dedos em mim.
O gemido que me escapou foi maior que o outro. Só que, dessa vez, eu não parei, nem a
fiz parar. Tudo o que eu mais queria era que ela fosse em frente e me fizesse sentir coisas que
nenhuma pessoa conseguiu.
Definitivamente, Victoria Peterson já não era mais a mesma Victoria Peterson, enquanto
ela, a maldita Rayka Ferris, se deleitava, com os seus olhos brilhando em minha direção, a cada
vez que me masturbava e assistia de camarote todas as minhas microexpressões causadas única e
exclusivamente por ela.
— Você não faz ideia do sonho que estou realizando agora... — disse ela, aproximando o
seu rosto do meu, ao ponto dos nossos lábios se tocarem. — Que boceta mais gostosa, Victoria.
E quanto mais ela falava, mais o ritmo dos seus dedos se tornava intenso, esfregando o
meu clítoris absurdamente excitado e inchado de uma maneira que eu não conseguia nem me
lembrar da última vez em que ele esteve assim. Se é que algum dia ele esteve realmente dessa
maneira.
Enquanto o seu toque ridiculamente habilidoso me deixava ainda mais fora de si, eu
fechava os olhos, pressionando-os firmemente, enquanto mordia o lábio inferior, incapaz de
controlar gemidos como aqueles que jamais saíram da minha boca.
Definitivamente, eu não teria como fingir nada com ela, porque todas as reações do meu
corpo eram verdadeiras até demais. E a prova era essa.
Não teve um cara sequer, desde que eu perdi a virgindade e me tornei sexualmente ativa,
que conseguisse arrancar um gemido verdadeiro meu nem com penetração, quanto mais só de
passar o dedo em cima do meu clitóris.
O que essa bandida tinha nas mãos? Ou melhor, no corpo inteiro?
Eu. Não. Sabia.
Porém, foi quando eu senti o meu baixo ventre contrair pela primeira vez, que as coisas
ficaram mais insanas. Ofeguei, numa mistura de sobressalto com tesão.
Eu estava chocada comigo mesma.
Aliás, com ela.
Com a gente.
No entanto, novamente, eu não parei. Eu queria saber até onde aquilo ia dar. Eu queria ver
até onde nós duas, juntas, poderíamos ir.
Nessa altura, a ideia de que estávamos dentro de um carro e de que poderíamos ser
ouvidas, por alguém do estacionamento da universidade, parecia cada vez mais distante. Eu
estava me esquecendo... Eu estava me esquecendo completamente de qualquer lado racional que
pudesse existir.
Como se não bastasse, soltando o meu queixo, deslizou sua mão até a região da blusa, em
um estilo corpete, que eu usava e, então, quando menos esperei, seus dedos habilidosos puxaram
para baixo as duas taças. Meus peitos eriçados saltaram para fora. Os mamilos pareciam mais
enrijecidos do que o normal.
— Puta que... — ela sibilou, respirando fundo, ao encarar tão detidamente os meus peitos.
— Você é absurda. Você é inacreditável.
Ah, não.
Por favor.
Isso era um plano para me matar?!
Porque, se fosse, ela realmente estava conseguindo.
Eu quase gemi só de ver a maneira como ela me observava. Seus olhos fixos e
embasbacados olhando para os meus peitos, me deixavam ridiculamente mais excitada do que eu
já estava. E, bem, eu já estava muito excitada. Ou seja... A minha situação não estava nem um
pouco tranquila.
Eu precisava de mais.
Eu queria mais.
Era quase como se os meus mamilos estivessem chamando por ela. Ou melhor, chamando
pela boca dela.
Minha boceta latejou e, sem aguentar mais esperar, tamanho tesão, as palavras
simplesmente escapuliram da minha boca. Quando dei por mim, eu já estava falando, enquanto
rebolava na sua mão, para que ele me tocasse ainda mais:
— Me chupa, Rayka. Me chupa, agora.
Eu nem pedi. Eu ordenei.
Nunca me senti tão cachorra em toda a minha vida.
Eu mal conseguia acreditar que estava agindo dessa maneira. Mas, a real, era que eu
estava sim. E era melhor eu me acostumar logo com essa nova versão de uma Peterson, porque
eu tinha certeza de que ainda ia querer fazer isso muitas outra vezes, com ela.
Tipo... A vida inteira.
Era gostoso demais para não ser repetido por umas trezentas e cinquenta milhões de vezes.
A exclamação que saiu da minha boca, quando senti os seus lábios, pela primeira vez na
vida, sugando os meus peitos, foi incomparável com qualquer outro som que já tivesse escapado
da minha garganta. Não deu. Eu juro que não deu. Mordi a minha língua por todas as vezes em
que enchi a boca para dizer que jamais agiria como uma cadela no cio, em uma relação sexual.
Eu estava sim agindo como uma cadela no cio, e não tinha a menor intenção de parar.
Muito pelo contrário. Eu só queria continuar.
Era isso o que o meu corpo mandava.
Se ainda existisse qualquer sombra de racionalidade sobre mim, eu juraria que o meu
escândalo, dentro daquele carro, poderia ser ouvido não somente no estacionamento inteiro, mas
também de lá até o bloco do Curso de Literatura.
E a minha preocupação com isso?
Estranhamente nenhuma.
Eu nunca... Nunca, nunca, nunca estive tão molhada em toda a minha vida. Com certeza,
não apenas a mão dela estava ensopada, mas também o banco do carro. E, confesso, eu me sentia
incrivelmente maravilhosa assim.
Molhada não apenas de tesão, mas também de muito, muito suor, eu experimentava uma
infinidade de sensações, pela primeira vez. Só ela. Apenas ela. Nenhum cara, ninguém,
absolutamente ninguém. Apenas aquela maldita ridícula conseguia provocar isso em mim. Eu
não sabia a razão, eu não sabia o porquê, mas o fato era que Rayka tinha a exata noção de cada
um dos seus atos. Era como se fossem milimetricamente calculados para me fazer enlouquecer.
Incapaz de me conter, eu rebolei ainda mais contra a sua mão, aumentando a fricção do
seu toque. E, então, arqueando as minhas costas e empurrando os meus peitos para mais dentro
da sua boca, eu inclinei a cabeça para trás e fechei os olhos. Me deixei ser levada, guiada por ela
que, mesmo me tocando assim, pela primeira vez, sabia exatamente do que eu gostava e de como
eu gostava.
Era como se ela tivesse um manual meu.
Ou a porra de uma bola de cristal, para adivinhar.
Quando eu menos esperei, porém, Rayka enfiou uns três dedos dentro de mim. Gritei.
Enquanto ela metia, alcançando o fim da minha vagina e fazendo eu me contorcer, também
estimulava o meu clitóris com o polegar e chupava os meus peitos, deixando-os ainda mais
excitados do que já estavam.
Foi o momento em que eu senti… Eu senti perfeitamente as ondas chegando cada vez
mais perto de mim. Ondas que se espalhavam com cada vez mais intensidade pelo meu baixo
ventre. Aquele aviso... Aquele típico aviso que, há um tempão, ninguém me fazia experimentar.
Mas, Rayka, com as suas mãos e a sua boca, foi capaz.
Arquejei.
Arquejei sem aguentar.
Não me permiti ficar assustada por ser uma mulher a me fazer chegar lá. Muito pelo
contrário. Eu deixei que ela me fizesse chegar lá, porque eu queria. Eu queria experimentar o
poder espetacular que nós duas, só nós duas, conseguíamos ter juntas.
E, definitivamente, não pude me conter, quando ela, largando os meus peitos, subiu com a
boca até o meu rosto e falou contra os lábios:
— Tem noção do que é isso? Eu estou comendo a garota dos meus sonhos.
Enfim, foi o seu golpe mais baixo.
— E você tem noção de que vai fazer essa garota gozar agora?
Essas foram as únicas palavras que eu consegui pronunciar entre os gemidos que não
paravam por nada nesse mundo.
Depois de anos tendo relações sexuais insignificantes, onde eu praticamente nunca tinha
um orgasmo e fingia em noventa por cento dos casos, senti finalmente o formigamento que, por
muito tempo, pensei não passar de uma lenda. Ele começou pelas pontinhas dos dedos dos meus
pés, subiu pelas minhas pernas e alcançou a minha boceta.
Me desmanchei no orgasmo mais surreal de todos os tempos.
Parecia mentira.
Ou sei lá.
Não parecia real, porque todos os que eu já tinha experimentado, na realidade, não
chegavam nem perto desse. Parecia mágica, ou coisa de filme.
Por alguns instantes, enquanto eu gozava, era como se estivesse transbordando... Era como
se eu estivesse colocando pra fora tudo aquilo que prendi, bem dentro de mim, durante sete anos
da minha vida. Ou melhor, das nossas vidas.
Um “adeus” aos desejos e sentimentos reprimidos.
Um “olá” ao novo capítulo daquela história.
Bem que, antes de sairmos da sala de aula, Rayka disse que escreveríamos mais um. Ela
tinha toda a razão.
No fim, o gosto que eu senti foi de liberdade.
Ainda ofegante, tentando controlar a respiração, caí, exausta, sobre o encosto do banco de
trás. Por cima de mim, Rayka se deitou, descansando o seu rosto sobre o meu peito. E, depois
disso, eu vivi os minutos mais calmos dos últimos anos.
Enquanto Rayka, com os olhos mais adoráveis e charmosos do mundo, me observava por
baixo dos cílios, tão linda, e deslizava suavemente os dedos sobre a minha pele, eu fazia carinho
nos seus cabelos tão suados quanto os meus.
O silêncio, entre nós, não foi nem um pouco desconfortável. Muito pelo contrário. A gente
conversava apenas com o olhar, fazendo juras eternas das quais eu tinha certeza de que, em
breve, seriam faladas. O convite, para uma vida inteira juntas, implícito em olhares ridiculamente
apaixonados.
Eu estava ridiculamente apaixonada por ela.
E não me restavam dúvidas de que ela também estava por mim.
EU TÔ VIRANDO UMA CACHORRA

“Pois essa vida é uma sinfonia agridoce”


Bitter Sweet Symphony | The Verve

VICTORIA

— Não, sério… Sério, Giselle. Vamos falar sério, agora. Seríssimo. — juntei as mãos,
colocando-as sobre a minha boca, enquanto eu, em busca de respostas, encarava firme a
psicóloga. — Eu tô virando uma cachorra! — e, teatral, subitamente exclamei.
Ela gargalhou.
Juro.
Gargalhou ao ponto de lágrimas se formarem nos cantinhos dos seus olhos.
E, bem, por mais que eu ainda estivesse digerindo aquilo e sentindo o coração acelerar
absurdamente a cada vez que me lembrava de todos os detalhes obscenos (e ridiculamente
gostosos) do que fizemos no banco de trás daquele carro, confesso que, por um instante, eu
também senti uma tremenda vontade de rir.
Quero dizer, eu não estava assustada, e muito menos arrependida. Óbvio que não. Se eu
pudesse, estaria agora mesmo, em qualquer beco que fosse, me atracando com aquela sapatão
descarada. E, no fundo, algo me dizia, que esse era exatamente o motivo por eu querer rir junto
com a Giselle.
Tipo assim, mesmo que eu estivesse me sentindo uma cachorra... Caramba, eu só queria
continuar me sentindo aquela cachorra que, durante anos, julguei e critiquei!
Tinha coisa mais sem-noção do que isso?
Acabei rindo de mim mesma e das minhas idiotices, sem aguentar. Era alegria, felicidade,
coração leve. Sentimento de completude, transbordamento. Eu estava com a garota que eu
sempre quis. A verdade era essa. E, para completar, aquela certeza milagrosa de que, mesmo
depois de sete longos anos recheados de preconceito e homofobia internalizada, o impertinente
peso na minha consciência agora não passava de uma ínfima e pequena centelha quase invisível.
Tentando controlar a respiração, zoei:
— Por acaso, eu sou algum tipo piada para você, Giselle?!
— Ai, você é uma graça, querida... — disse ela, balançando a cabeça de leve e puxando o
ar, enquanto limpava as lágrimas que escaparam pelos cantinhos dos olhos. — Acho que
rejuvenesço uns cinco anos, a cada vez que converso com você.
— Giselle, eu perdi a minha calcinha! Sabe o que é isso? Perdi! Não achei em canto
nenhum do assoalho do carro e precisei voltar só de minissaia para a fraternidade. Estou virando
uma cachorra!
Foi automático.
Ela gargalhou outra vez.
E eu também.
Que fase.
— Ah, é uma delícia estar com quem a gente gosta de verdade, não é?
— Com quem a gente gosta? — Ergui uma das sobrancelhas para ela, com uma cara tipo
“hã?” — Minha querida, eu estou completamente maluca! Eu durmo e acordo pensando nela,
passo a aula inteira olhando para ela, chego na fraternidade louca para ter um momento a sós
com aquela desgraçada. E, para completar, tenho até me sentido empolgada de fazer faxina e
servir cafezinho em cima de um par de patins, só porque eu sei que vou encontrá-la na Esquina
das Panquecas. Pelo amor da deusa, o que tá acontecendo comigo?! — teatralmente, exclamei
outra vez, me inclinando para ela com os olhos esbugalhados.
Giselle, por sua vez, sorriu brilhantemente para mim. E, então, sentada ao meu lado,
segurou minhas mãos, em uma mistura de entusiasmo e afeto, dizendo:
— Querida... Você está amando!
Foi quando eu subitamente parei, absorvendo e testando as suas palavras, em silêncio, por
alguns instantes. Franzi o cenho, porém, ao me dar conta de algo. E, então, meio confusa,
perguntei:
— Quer dizer que quando a gente tá amando, a gente fica safada assim?
Ela riu de novo, se divertindo.
— Você não tem jeito mesmo, Victoria... — meneando a cabeça, suspirou. — Olha, é
super normal se sentir assim. É normal querer estar perto de quem se gosta, de ficar, de beijar, de
transar... É super normal. Você sabe disso, não sabe? Já deve ter se sentido atraída assim por
alguma outra pessoa, não já?
Aí era que tava o “x” da questão.
Pigarreei a garganta e...
— Bom... Na verdade, não — sorri amarelo. — Eu nunca me senti assim por nenhum
homem. Nem por alguma outra mulher. Só ela. Acho que sou Raykassexual.
Inevitavelmente, mais alguns risinhos se desprenderam dela. Algo me dizia que talvez eu
fosse a pessoa que mais a fez rir em um consultório, em toda a sua carreira como psicóloga. E
não, isso não era convencimento meu. Era só o meu sexto sentido mesmo.
— Que linda... — respondeu ela, admirada. — Então, eu acho que isso torna tudo muito
mais mágico e especial do que já é! Aproveite, meu bem, não são todos os dias que nós
encontramos o amor das nossas vidas.
O amor das nossas vidas...
Querendo ou não, isso ressoou na minha cabeça, fazendo-me pensar por mais tempo do
que parecia normal.
Bom, se eu realmente estava amando a Rayka, eu ainda não fazia ideia. Não era como se
eu já soubesse nomear, ao pé da letra, o que de fato sentia, ou colocar um rótulo na nossa
relação. As coisas continuavam sendo novas para mim. Mas, de algo eu tinha certeza. E essa
certeza não era de agora, muito embora somente agora eu conseguisse admitir isso a mim
mesma. Eu estava apaixonada por ela.
Era paixão sim.
Amor, eu ainda não tinha certeza.
Mas, paixão era fato.
Eu tinha perdido completamente o controle da minha vida e da minha dignidade. Agora,
estava tudo nas mãos daquela safada. Enquanto ela puxava a minha coleira, fazendo o que bem
entendesse comigo, eu agia feito a sua cadelinha.
— Ai, Giselle... Ela é tão perfeita! — e simplesmente me derreti, choramingando como
uma garotinha iludida, ao falar. Pela primeira vez, pronunciar essa palavra, em um contexto fora
da doutrina das Peterson, não me assustou, nem me trouxe fantasmas em forma de lembranças
das quais eu não queria me recordar. Aos poucos, bem aos poucos, eu percebia que estava
começando a sutilmente me entender com a palavra “perfeição” e com o seu verdadeiro
significado não apenas no dicionário, mas principalmente na minha vida. — Bom, ela não deixou
de ser uma desgraçada. Mas, ainda assim, é perfeita! Ela é engraçada, e me faz rir na mesma
medida que me deixa excitada. Ela é romântica. Ridiculamente romântica. Todas as manhãs, eu
acordo com flores e bilhetes. E, ao longo do dia, ela deixa vários outros espalhados nas minhas
coisas. Ai, a Rayka é uma terrorista, Giselle! Uma ladra de corações! Que ódio! Para completar,
ainda faz tudo tão bem! Sério! UH! — me abanei com uma das mãos, só de me lembrar. —
Ontem, quando a gente estava no carro, você não tem a menor noção, menina...! Ela abriu as
minhas pernas, tirou a minha calcinha e...
— Ok ok ok! Eu já entendi que Rayka é uma Miss Maravilha! — soltando risadinhas,
completou. — Não precisa entrar nos detalhes mais íntimos do ato.
Foi quando eu me dei conta.
— Ops... — sorri amarelo, meio desconcertada. — Acho que me empolguei um pouco,
né?
— E é ótimo que esteja empolgada com tudo isso, Victoria! Mesmo! — segurou minhas
mãos outra vez, com tanto carinho. — Não faz ideia do quanto eu fico feliz por saber que Rayka
e você, enfim, estão se entendendo. Espero que você se sinta orgulhosa de si mesma também. É
importante reconhecer as próprias conquistas. E isso tem sido não apenas uma evolução sua, mas
também, acima de tudo, uma baita conquista pessoal.
E isso tem sido não apenas uma evolução sua, mas também, acima de tudo, uma baita
conquista pessoal...
Sua frase ecoou nos meus pensamentos.
Querendo ou não, Giselle mais uma vez tinha toda a razão. Se eu bem parasse para pensar,
era um misto de evolução com conquista pessoal. Eu não estava conquistando apenas a garota
que eu sempre desejei ter, mas também estava conquistando a garota que, no fundo, mesmo com
todos os medos e censuras, eu sempre quis ser.
A Victoria de anos, meses ou semanas atrás, já não era mais a mesma de agora. E, por
incrível que pareça, isso também já não me assustava mais. Pelo menos, não tanto quanto antes.
A real era que eu sentia como se estivesse tirando gradativamente pesos das costas, a cada vez
que deixava para trás alguma parte daquela menina nojenta, insuportável e preconceituosa.
O meu sorriso para Giselle foi ridiculamente emocionado.
Mordi o lábio inferior, tentando conter um brilhinho que já queria nascer nos cantos dos
meus olhos. Puxei o ar e, com carinho, também segurei as suas mãos.
— Obrigada por tudo, Gi. Mesmo.
— Você não tem que me agradecer por nada. Eu tenho o maior prazer em ajudar você da
forma como me cabe.
Soltei uma risadinha, ainda meio boba.
— É uma fada-madrinha pra gente.
Ela sorriu.
— Fada-madrinha, é?
— Unhum! — confirmei balançando um sim veemente com a cabeça. — Eu ainda não
cheguei a comentar com a Rayka, mas, quando eu disser o quanto você me ajudou e continua me
ajudando a me entender comigo mesma, tenho certeza de que ela vai concordar sobre você ser
uma fada-madrinha.
Giselle soltou risadinhas adoráveis.
— É uma honra receber esse título, querida. Sabe que pode contar comigo para o que
precisar. Eu não tenho varinhas de condão, mas tenho anos de estudo e trabalho como psicóloga.
— O que é quase a mesma coisa! — exclamei, divertida, fazendo-a rir ainda mais. —
Você é maravilhosa.
Suspirei, porém, tentando retornar dos contos de fadas para o mundo real. As conversas
com Giselle sempre eram ótimas. Na verdade, ir ao seu consultório e bater um papo com ela,
quase diariamente, estava se tornando um dos meus programas preferidos, depois de me enroscar
com a Rayka, claro. Aquela miserável sempre ocuparia o primeiro lugar em tudo na minha vida.
Ainda assim, porém, eu tinha algumas outras coisas para fazer.
— Bom... Acho que tá na minha hora, Gi. Eu preciso ir à lavanderia pegar umas roupas e,
depois, tenho que ir pra casa do meu pai, porque...
Foi quando, de súbito, me lembrei de algo. E a memória repentina até me fez interromper
a frase pela metade. Inevitavelmente, meu sorriso vacilou.
Giselle, claro, percebeu.
— O que foi, querida?
Passei a língua entre os lábios, um tanto desanimada, mesmo sem querer.
— A minha avó... — só a palavra “avó” já parecia carregada de um peso quase
insustentável. — Por algum motivo, a minha avó marcou um almoço em família, hoje, na casa do
meu pai. E, sempre que penso nela, eu penso em como vou contar a ela sobre tudo o que está
acontecendo agora. Impossível evitar. Você sabe que a minha avó, apesar de tudo, continua
sendo uma das pessoas mais importantes da minha vida.
Mesmo com as minhas evoluções e conquistas pessoais, Grace ainda era uma questão em
aberto para mim. Uma questão que me preocupava bastante.
Giselle, por sua vez, puxou o ar de leve e, então, encarando-me com atenção, apenas
respondeu:
— Por enquanto, se preocupe somente em viver com a Rayka tudo o que há para viver. Ou
melhor, tudo o que vocês quiseram viver durante sete anos e só agora estão se permitindo.
Aproveite cada segundo ao lado dela. Vocês merecem isso. E, então, no momento certo, a sua
avó vai saber. Fique tranquila, Victoria.
Fique tranquila, Victoria...
Eu não tinha como prometer isso a ela, mas, pelo menos, eu ia tentar.

✽ ✽ ✽

O relógio marcava meio-dia, quando entrei na casa do meu pai, cheia de sacolas da
lavanderia. Depois de ter andado, por uns cinquenta mil quilômetros da cidade (tudo bem, não
foi tudo isso, mas eu adorava ser dramática), os meus pés estavam arrasados.
Esse castigo eterno do meu pai, sem liberar grana para o conserto da minha Porsche,
estava me matando. Pelo menos, se eu olhasse as coisas pelo ângulo da positividade tóxica, eram
algumas calorias perdidas a cada saída da fraternidade. Minha nutricionista estava adorando essa
fase, por sinal.
Assim que atravessei a porta, Bernadine, uma das funcionárias da casa, sempre muito
simpática, prontamente apareceu para me receber.
— Vic, querida, seja bem-vinda. Deixe-me ajudá-la com essas sacolas. — e logo pegou
todas aquelas que eu segurava.
— Ah, Bê, muito obrigada! Onde estão os outros?
— John e Daisy já estão descendo para o almoço. E a sua avó ainda não chegou.
— Hum, tudo bem. Vou ficar por aqui esperando.
— Quer que eu guarde as suas sacolas lá dentro? Quando for embora, você as pega de
volta.
— Isso seria ótimo, Bê. Muito obrigada. Aproveita e traz um balde cheio de gelo, para eu
colocar os meus pés de molho — ironizei, puxando o ar, enquanto ainda tentava recuperar o
fôlego depois da longa caminhada.
— Ah, pode deixar, é pra já! — supereficiente, logo respondeu. — Em um minutinho, eu
trago!
— Eu tô brincando...! — ri, mesmo que, por conhecê-la quase desde quando nasci, eu já
soubesse que ela prontamente iria atrás de conceder o meu desejo. — Eu tô só brincando com
você, Bê. Não precisa, sério. Acho que consigo aguentar essas sandálias até a hora de voltar para
a fraternidade.
— Tudo bem... — disse entre risinhos. — Mas, se precisar de alguma coisa, é só me
chamar!
— Obrigada, Bê.
E, assim, carregada com as dezenas de sacolas que peguei na lavanderia, Bernadine saiu
dali, me deixando a sós na recepção da casa.
Ainda girei sobre os meus pés mazelados, observando ao redor e pensando no que fazer,
enquanto esperava papai e Daisy descerem para o almoço. O lugar era enorme. Fora a sala de
estar e a sala de jantar, ainda havia outra, bem ali ao lado, cheia de poltronas e de estantes
repletas de livros. Era quase como um museu misturado com biblioteca.
Despretensiosamente, caminhei até lá. Me lembrei de que eu precisava me tornar amiga
dos livros de Literatura, se eu não quisesse perder a disciplina. E, bem, até onde eu sabia, ali não
ficava apenas os livros do meu pai, mas também os da tia Daisy. Quem sabe eu encontrasse algo
que pudesse me ajudar. Dentro de dois dias, eu tinha que fazer a porcaria daquele teste que
definiria se eu ia reprovar de uma vez por todas ou se eu ainda tinha alguma chance de livrar o
meu rabo.
Assim que entrei na enorme sala-museu, porém, ouvi o meu celular tocar dentro da bolsa.
E, bem, eu até poderia tê-lo ignorado, se não estivesse tocando insistentemente, enquanto eu
folheava os livros, em busca de algo que tivesse a ver com o que eu estava estudando em
Literatura.
Droga, eu deveria tê-lo deixado no silencioso.
Soprei o ar pela boca, desistindo do plano de fingir que eu não ouvia o toque.
Quando abri o zíper da bolsa e puxei o celular, no entanto, vi o exato instante em que um
pedacinho de papel caiu no chão.
E, bem, eu também poderia ter escolhido ignorar aquele aleatório pedaço de papel, se eu
não tivesse, na minha vida, uma sapatão metida a escritora. Meu coração estúpido acelerou, e um
sorriso logo ameaçou nascer nos meus lábios, só de cogitar a possibilidade daquilo ser mais um
dos seus bilhetes espalhados e escondidos nas minhas coisas.
Entusiasmada, rapidamente o peguei no chão. E, agora, nem o toque de todos os celulares
do mundo inteiro, juntos, tiraria a minha atenção desse pedacinho de papel.

Não tenho a menor dúvida de que sou


A garota mais sortuda do universo
Podem tirar tudo de mim, e sem nada me deixar
Mas a única coisa que não podem me roubar
É a lembrança dos seus olhos nos meus
E da sua boca na minha
Gemendo e me pedindo para continuar
Até você gozar

Ah não.
Não, não, não, não.
Por que ela era assim, cara? Por que sempre usava golpes tão baixos comigo?
Isso era tão injusto!
Agora, pronto...! Eu queria que ela me fizesse gozar de novo, nesse exato momento!
Inferno.
Suas miseráveis palavras foram suficientes para ativar a minha memória sexual e me
deixar excitada. Pelo amor da deusa. Quando Daisy decidiu fazer a Rayka, certamente pensou
“ah, espera aí, então vamos colocar no mundo alguém capaz de tirar o juízo de todas as
mulheres, incluindo a Victoria”. Sim, claro. Só podia ser isso. Era a única explicação para essa
garota transbordar sacanagem, a cada respiração.
Ela era a primeira e única pessoa, que eu já conheci, capaz de atormentar tanto os meus
pensamentos quanto a minha libido. A única que conseguia me excitar na mesma medida que me
fazia sorrir. Aliás, naquele instante, o tamanho do sorriso de idiota no meu rosto era proporcional
ao tesão entre as minhas pernas.
Ela não tinha o direito de fazer isso comigo. Não tinha!
Maldita imbecil.
Rayka imbecil.
E adorável.
E linda.
E
— Sempre tão gata... Como consegue?
Uma voz repentinamente falou bem no pé do meu ouvido, enquanto mãos, de súbito,
apertaram a minha cintura.
Foi automático.
Eu dei um pulo. Juro. Dei um pulo, sentindo como se tivesse sido arrastada do mundo dos
sonhos, onde certa sapatão enfiava dedos em mim e chupava os meus peitos. Voltei rapidamente
à realidade, triste e sórdida, em que eu não podia sequer me trancar em algum quarto com ela,
porque eu estava na casa do meu pai.
— Ai, que susto, garota! — virei-me, vendo perfeitamente a sua cara safada e deslavada.
Aquele sorrisinho sacana que acabava comigo milhares de vezes seguidas. — Você tá querendo
ficar viúva?!
Ela gargalhou.
— Meu Deus, quando eu penso que não é possível, você sempre me prova que consegue
ser muito mais incrível do que eu já achava. Claro que não quero ficar viúva. Eu quero é... — e
já foi me envolvendo com os seus braços, enquanto a sua boca ousada, sem perder tempo,
alcançava o meu pescoço.
— Ei, ei, ei... — exclamei em um sussurro, dando tapinhas de leve no seu ombro. — Aqui
não! Tá louca? Estamos na casa dos nossos pais!
Ela rolou os olhos.
— Isso é tortura, Victoria... Nos beijamos pela última vez no carro, ontem.
Se era uma tortura para ela, imagina para mim que acabei de ler aquele bilhete, desejando
subitamente repetir o que aconteceu no maldito carro.
Suspirei e...
— Tenho certeza de que consegue se segurar até chegarmos à fraternidade… — quase
cantarolei, fazendo um tremendo esforço para me controlar também. Não era difícil só para ela.
Também era para mim. Essa infeliz deveria ter nascido um pouquinho feia, para eu desejá-la
menos. Droga. — Mas, e você? Veio para o almoço? — tentei desconversar, antes que eu caísse
na tentação de fazer alguma besteira ali.
— Claro! Você acha que eu perderia um almoço em que a própria Grace Peterson, em
pessoa, me convidou? É claro que não. — sorriu, irônica.
Espera aí.
Algo de errado não estava certo.
— A minha avó te convidou pessoalmente para o almoço? — franzi o cenho.
— Bem, não foi pessoalmente, mas ela mesma me ligou e me convidou. Disse que será um
almoço em família muito importante.
Puxei o ar de leve. Um mau pressentimento repentinamente me perpassou. Havia alguma
coisa por trás desse convite. Grace Peterson estava armando. Eu sabia que estava. Ela nunca,
nunca dava ponto sem nó.
Eu não imaginava que ela tivesse descoberto algo realmente contundente a respeito do que
estava acontecendo entre mim e a Rayka. Se assim fosse, não estaria planejando tudo tão
friamente. Pelo que eu já conhecia da minha avó, se ela tivesse descoberto, estaria arrancando o
meu fígado neste exato momento.
Ainda assim, Grace estava aprontando algo. Só me restava saber o que era.
Rayka, no entanto, olhando para a minha mão e percebendo o que eu segurava, logo
mudou o assunto.
— Ah, encontrou mais um? — disse ela, sorrindo safada como sempre. — Esse eu escrevi
à noite, depois que chegamos à fraternidade, quando eu estava sem conseguir dormir, só
pensando no que tinha acontecido e cogitando a possibilidade de invadir o seu quarto pra te
deixar a noite inteira em claro junto comigo.
Soltei uma risadinha, girando as orbes e balançando a cabeça.
— Eu só queria saber como você consegue esconder esses bilhetinhos, nas minhas coisas,
sem que eu perceba.
— São os meus superpoderes... — brincou. — Você não entenderia.
— Ah, é? — cerrei os olhos para ela. — Os mesmos que têm nas pontas dos seus dedos,
quando está comigo? — e, sem nem me dar conta direito, mordi o lábio inferior, segurando o
sorriso frouxo da sacanagem.
E Rayka certamente notou o espírito da cadelagem, bem no fundo dos meus olhos.
Ah, se percebeu.
Claro. Era difícil disfarçar quando essa imbecil estava por perto.
Minha deusa, eu estava me tornando uma cachorra mesmo.
Logo aproximou o seu corpo do meu outra vez, e, com aquela cara de sem-vergonha linda
e charmosa, falou pertinho de mim:
— Sim, exatamente os mesmos superpoderes que te fizeram gozar tão gostoso pra mim
ontem.
Gozar tão gostoso pra mim...
Um frio forte e intenso fez a minha barriga se revirar, só de ouvi-la falar. Aquele olhar
ridiculamente atraente completava o pacote, como se fosse a cereja do bolo. Que inferno. Ela
conseguia me deixar ainda mais otária do que eu já estava. E, mesmo sabendo que era arriscado
demais brincar com o fogo, bem ali, na casa dos nossos pais, respondi roçando os meus lábios
nos seus:
— Sapatão idiota...
Ela sorriu ainda mais e...
— Tantã.
Quase beijando a sua boca, eu ri por ela ter me chamado assim.
O velho apelido irritante.
— Imbecil — disse eu, entre risinhos.
E, então, quando menos esperei, os tais dedinhos ousados e poderosos começaram a fazer
cócegas em mim, por todas as partes, em todos os ângulos. Inevitavelmente, risadas se
desprenderam da minha garganta, enquanto ela, se divertindo, continuava.
— Para, Rayka! Para, sua idiota! — dizia eu, enquanto gargalhava.
No fundo, porém, a verdade era que eu já estava me divertindo tanto quanto ela. E,
enquanto dava tapinhas de leve no seu braço, em uma tentativa de pará-la, na real tudo o que eu
fazia era abraçá-la ainda mais.
Havia uma pressão entre nós.
Uma pressão que nos atraía uma à outra.
Até mesmo ali, entre cócegas certeiras e imparáveis, no fim das contas, a gente sempre
encontrava uma desculpa para se agarrar.
Porém...
— Victoria?
Aquela voz.
Eu ouvi claramente aquela voz fria, rígida e cortante. Não era do meu pai, nem da tia
Daisy, e muito menos de algum dos funcionários da casa. Era dela.
Foi o que me fez subitamente travar.
Grace Peterson.
Impressionante o quanto ela era capaz de mudar o meu estado de espírito da água para o
vinho, apenas por chamar o meu nome daquele jeito. A severidade escorrendo por cada uma das
letras. Era como um gatilho para mim. Sempre foi. Eu poderia estar ótima, mas ser repreendida
por ela, apenas com o seu tom de voz, era o suficiente para que eu perdesse todo o ânimo.
Gelada, me virei. E foi exatamente ela quem eu vi, parada bem na porta daquela sala,
olhando fixamente para nós, enquanto as minhas mãos tocavam Rayka pelos ombros e a garota
me segurava pela cintura. Suas orbes analíticas e seriamente críticas passearam sobre nós, em
silêncio, como se estivesse sondando milimetricamente cada detalhe da cena. E também
desaprovando cada um desses detalhes.
Engoli seco, numa tentativa de manter quieto o meu coração que já batia na garganta. E
mesmo que eu soubesse que isso era desprezível demais da minha parte e que também me partia
infinitas vezes por dentro, dei dois passos para o lado, me afastando da Rayka por puro instinto.
Não era exatamente um ato pensado. Era o instinto de sobrevivência que despertava em mim,
sempre que eu me sentia ameaçada pela minha avó.
— O-Oi, vovó... — mesmo fazendo um esforço para evitar, gaguejei.
Ela, por sua vez, altiva sobre os seus saltos e a sua postura elegante até demais,
aproximou-se de nós, ainda calada. Percebi, mesmo desconfortavelmente, a forma como encarou
Rayka, a cada passo que dava. Seus olhos nem piscavam, e eu jurava que o seu rosto poderia
derreter a qualquer momento. Fitou a garota como se ela fosse um inseto muito perigoso. Um
inseto que precisava ser exterminado.
De repente, falou:
— Rayka, será que pode nos deixar a sós? Eu preciso conversar com a minha neta.
Nenhum “bom dia”, nenhum “olá” para ela. Nada, absolutamente nada que pudesse
transparecer, pelo menos o mínimo daquela educação falsa que Grace sempre tentou estabelecer
na sua frente, mesmo odiando a garota. E, pelo tom que usou, aquilo não era exatamente um
pedido, mas, sim, uma ordem.
Rayka, por sua vez, não parecia nem um pouco intimidada. De queixo erguido, fitou a
minha avó. Corajosa. Cada parte do seu corpo me transmitia pura coragem e segurança. Isso era
tão bom e, ao mesmo tempo, tão ruim pra mim. Bom porque eu me sentia protegida com ela.
Rayka não precisava pronunciar uma palavra sequer, para eu saber que ela enfrentaria qualquer
coisa comigo, sem me dar as costas. E ruim porque eu ainda não tinha completa certeza se era
capaz de retribuir, ao pé da letra, esse mesmo apoio que ela me dava. Isso era uma merda.
Toda a segurança que Rayka me passava, ia embora graças ao peso na minha consciência,
por ainda ser uma verdadeira cagona perto da Grace.
Eu até poderia ter largado vários por cento da minha covardia, nos últimos dias, e me
orgulhado do quanto eu tinha evoluído em relação ao tipo de pessoa que já fui. Porém, quando o
assunto era a minha avó, eu ainda errava feio no quesito coragem.
Eu só queria saber até quando Grace continuaria exercendo esse poder sobre mim, porque
eu já não aguentava mais me sentir impotente na frente dela.
Rayka ainda me olhou, como se perguntasse se era isso mesmo o que eu queria. Em
silêncio, ela me dizia que não tiraria os pés dali, se essa fosse a minha vontade. Certamente, ela
tinha percebido o clima pesado que a minha avó carregava consigo. Não era difícil perceber,
afinal.
E, bem, a minha real vontade era de que Rayka permanecesse mesmo ali, que continuasse
comigo e que me sustentasse se em algum momento eu não conseguisse sozinha, mas... Eu sabia
que a minha avó jamais toleraria que qualquer uma das suas ordens, disfarçadas de pedido,
fossem descumpridas. Infelizmente, seria pior se Rayka ficasse ali.
Por isso, tudo o que eu consegui fazer foi balançar um breve sim com cabeça, enquanto
tentava esboçar um pequeno e quase imperceptível sorriso, me esforçando para fingir que estava
tudo bem, quando, na verdade, por dentro, eu já me sentia esmorecida antes mesmo de saber o
que a minha avó tinha para falar.
Rayka sabia que eu estava lhe dizendo para ir, assim como também tinha certeza que eu
fingia estar tudo bem. Ela me conhecia... Me conhecia bem demais, para ser capaz de identificar
quando eu era verdadeira ou falsa. Nada passava despercebido por aquela garota.
No entanto...
Após um longo suspiro, e o olhar de “por favor, não faça nenhuma confusão agora, me
deixe ver o que a minha avó quer” que eu lhe dei, Rayka me encarou mais uma vez, como se
dissesse “não tenha medo de nada, eu estou com você pra tudo”, e simplesmente saiu dali, não
por querer, mas por eu lhe pedir.
Caminhou para fora em silêncio, deixando-me apenas a certeza de que, mesmo a minha
avó e o mundo inteiro querendo me convencer do contrário, eu tinha feito a escolha certa em
ficar com ela.
Quando me vi sozinha com Grace ali, porém, o meu coração acelerou com mais
intensidade. Fiquei com medo de que ela percebesse que eu estava nervosa, ou de que até
escutasse as batidas fortes no meu peito. Não queria parecer fraca, na sua frente. Eu nunca queria
isso, muito embora, na realidade, não fosse o que acontecia.
Aparentemente, eu sempre me sentia fraca perto dela.
— Algum problema, vovó? — tentei soar natural, mesmo que, por dentro, eu estivesse
tremendo.
Ela ainda se manteve calada, como se tivesse prazer em me fazer sofrer e soubesse que o
seu silêncio me matava lentamente.
Alguns instantes depois, porém, ela enfim abriu a boca para falar. E eu confesso que,
mesmo tendo sofrido com a sua demora para dizer o que estava acontecendo, teria sido melhor se
ela realmente tivesse permanecido em silêncio.
— Me parece que está ficando muito próxima à filha da Daisy.
Não, não era uma pergunta. Era uma afirmação.
Ela estava sacando.
Bem, eu não sabia se estava sacando o que realmente estava acontecendo entre nós, mas
alguma coisa ela estava sacando sim. A minha avó era esperta demais. E eu juro que não sabia
como me sentir em relação a isso.
Pigarreei a garganta, no entanto, me esforçando para parecer normal.
— Bom, ela está na fraternidade agora e... Estamos convivendo. Acho que não tem nada
mais natural do que nos aproximarmos.
— E o fato dessa garota estar na fraternidade te dá o direito de andar de mãos dadas com
ela, por aí?
Seu tom não se alterava, era frio e cortante, mesmo comedido, enquanto os seus olhos
pareciam facas afiadas.
Franzi o cenho, sem entender.
— Do que está falando, vovó?
Ela suspirou, como se estivesse tentando manter a calma.
— Os boatos que estavam circulando hoje, pela universidade, eram de que Victoria
Peterson foi vista ontem, no início da noite, circulando pelo campus de mãos dadas, com a
Rayka. Pode me explicar o que significa isso?
O chão subitamente se abriu sob os meus pés, quando enfim me dei conta. Eu me lembrei.
Sim. Me lembrei perfeitamente da hora em que saímos feito loucas daquela sala de aula,
caminhamos às pressas até o estacionamento e depois... Um dos melhores momentos da minha
vida, no banco traseiro de um carro.
— Vovó, eu...
Em um súbito desespero, que talvez eu nem tivesse conseguido disfarçar, tentei falar. Sim,
eu tentei falar qualquer merda, qualquer bobagem para justificar o injustificável, mas... Os meus
olhos simplesmente se encheram d’água, sem que eu pudesse evitar, quando a minha boca quase
pronunciou as inúteis e desprezíveis palavras “vovó, eu não sei do que você está falando”.
Eu sabia sim.
Sabia demais.
E me sentia a pior e mais detestável pessoa do mundo só de, ao menos, cogitar a
possibilidade de negar o que estava acontecendo. Negar a Rayka seria como dar as costas para
quem eu realmente estive apaixonada durante todos esses anos. Negar a Rayka seria como trair a
pessoa que estava ao meu lado, pronta para me defender a qualquer momento. Negar a Rayka
seria como negar a mim mesma, e tudo o que eu era, e tudo o que eu sempre fui.
Por isso, a única reação possível do meu corpo foram as lágrimas instantâneas.
E eu juro, juro que não queria perder a compostura na sua frente, ainda mais exatamente
depois da minha avó ter mencionado aquilo. Não apenas para não aparentar fraqueza, mas
porque, depois de perder a postura, eu não precisaria dizer mais nada. A resposta para o
significado de termos sido vistas andando de mãos dadas já estaria estampada na minha cara.
E realmente estava.
Estava absolutamente estampada na minha cara e nos meus olhos cheios d’água, prestes a
arrebentar.
Tão estampada que a minha avó percebeu.
E, então, pela primeira vez na vida, eu não senti apenas respeito por ela ou nervosismo
pelos seus tons de ameaça. Na verdade, eu senti medo. Um medo irracional, ao me perceber, de
repente, tão pequena perto dela, principalmente quando, tomada para evidente fúria, agarrou o
meu braço com toda a força e pressionou a minha pele contra os seus dedos.
Com as orbes cheias d’água e o cenho franzido, ainda baixei o olhar e disse...
— Vovó, está me machucando...
Só que ela apenas continuou, apertando ainda mais, numa espécie de castigo pelo que
estava acontecendo. Como se não bastasse, ainda falou, cuspindo palavra por palavra, com
firmeza, enquanto encarava o fundo dos meus olhos:
— Você é a maior decepção da minha vida.
Se eu já estava arrasada por dentro, isso terminou de acabar comigo. Minha avó sempre
sabia como atingir o ponto certo do meu coração. E, dessa vez, ela não só atingiu como também
o partiu ao meu meio. Senti como se trezentas facas estivessem entrando no meu corpo inteiro,
ao mesmo tempo.
Eu nunca tinha escutado-a falar esse tipo de coisa para mim. Pelo menos, não desse jeito.
E talvez fosse por isso, exatamente por isso, que as lágrimas, agora, não se sustentaram.
Elas começaram a escorrer.
— Po-Por quê? — Ainda perguntei, em um sopro.
Ela, por sua vez, cerrando os olhos em minha direção, como se não admitisse que eu não
soubesse a razão de eu ser a sua maior decepção, me respondeu com mais severidade:
— Será que você é tão burra assim, Victoria? Ou só está tentando criar o máximo de
situações possíveis para acabar com a sua reputação e manchar a imagem da nossa família,
ultimamente? Primeiro, aquela foto ridícula, que te deu título de vagabunda da universidade. E,
agora, isso. É assim como você quer ser chamada por aí? Como uma sapatão?!
E mais lágrimas desciam.
— Vó, espera, deixa eu explicar...
— Eu não quero ouvir as suas explicações imundas! Já tenho todas as respostas que
preciso só com esse seu choro ridículo. Agora, escute-me, Victoria. Escute-me bem. —
completou entredentes, apertando ainda mais o meu braço. Eu tinha certeza de que aquilo ficaria
roxo. — Pare já com qualquer coisa que esteja acontecendo entre você e aquela menina! Você é
uma Peterson, tem um futuro brilhante pela frente, e não pode, em hipótese alguma, se deixar
mal influenciar por uma garota doente. Não se esqueça de que isso seria o tipo de coisa que a sua
mãe ia querer que você fizesse. Estamos entendidas?
Mãe...
Não se esqueça de que isso seria o tipo de coisa que a sua mãe ia querer que você
fizesse...
Subitamente, as palavras ecoaram dentro da minha cabeça e passaram a se repetir infinitas
vezes nos meus pensamentos.
Meu corpo retesou. Por um instante, até as minhas lágrimas pararam.
Mãe, mãe, mãe.
Grace sabia o quanto essa palavra era importante e delicada para mim. E ela era esperta o
suficiente para sempre usá-la quando queria fazer eu me sentir culpada por algo ou quando
queria me convencer de alguma coisa.
Minha avó sabia que, agora sim, tinha me atingido com essa palavra, mais do que com
todas as outras que usou.
De repente, eu me lembrei do que a minha mãe disse, antes de ir embora... Ouça o seu pai,
ele é muito sábio e inteligente, mas, principalmente, obedeça a sua avó. Porém, não apenas isso.
A minha cabeça, subitamente, também se perguntou algo que, até então, eu ainda não tinha
parado para pensar... Fiquei encucada.
Repentinamente, encucada.
Será que a minha mãe realmente iria desaprovar o fato de eu me relacionar com uma
garota? Ou ela apenas me aceitaria como sou?
A questão pairou sobre os meus pensamentos, como uma eureka, mesmo que eu ainda não
tivesse respostas para ela.
Pela primeira vez, eu refletia sobre esse assunto, por esse ângulo. Franzi o cenho de leve,
comigo mesma, agora com as lágrimas pausadas, perdida entre muitas ideias súbitas. E, então,
quando pensei em balbuciar alguma coisa, ouvi duas batidas na porta da sala onde estávamos.
Era um dos funcionários da casa.
— Pois não? — Grace falou.
— Com licença, senhora Peterson. O seu convidado já chegou.
Convidado?
Minha testa enrugou outra vez.
— Ótimo! — sorriu como se, há menos de um minuto, não tivesse me acertado em cheio
com a pia da cozinha. — Obrigada. Já estamos indo.
No instante em que o homem saiu e nós ficamos sozinhas de novo, ela se virou para mim,
naquele porte altivo e elegante, sempre inabalável e insubmisso a qualquer coisa. Soltando o meu
braço, tudo o que disse foi:
— Agora, engula esse choro. Não quero que apareça com essa cara lá fora. Quero que
esteja impecável. Você não merece um terço do cuidado que eu tenho, mas eu ainda sou boba o
bastante para te entregar de bandeja as melhores oportunidades que você poderia ter. Portanto,
assim que passar por aquela porta, comporte-se, como a Peterson que você deve ser, pelo menos
uma vez nessa sua vidinha medíocre, e me dê finalmente o orgulho de tê-la como minha neta.
Séria e rígida, simplesmente me deu as costas depois disso, caminhando para fora dali e
levando consigo todo o restante de ar dos meus pulmões. Juro que precisei apoiar as minhas
mãos no encosto de uma das poltronas, para tentar me manter de pé. Até as minhas pernas
pareciam com pouca força. Me esforçando para respirar fundo e não morrer sem fôlego bem ali,
baixei a cabeça.
Inevitavelmente, os meus olhos se fecharam, enquanto eu tentava colocar todos os meus
pensamentos embaralhados nos seus devidos lugares. Meu juízo estava passando por mais uma
daquelas bagunças terríveis, que eu odiava viver. Eu não sabia direito o que raciocinar a respeito
daquilo, assim como não fazia a menor ideia do que a minha avó estava tentando dizer com
“comporte-se como uma Peterson, quando passar por aquela porta”.
Para falar a verdade, naquele momento, talvez eu nem fizesse questão de entender isso.
A única coisa mais clara que eu conseguia distinguir dentre tudo o que parecia
absolutamente confuso, era aquela pergunta que ainda martelava a minha cabeça.
Será que a minha mãe me aceitaria como sou?
Ah, como eu queria que ela ainda estivesse ali comigo.
Lágrimas ameaçaram escorrer outra vez, quando um novo nó se formou na minha
garganta. E, então, enquanto eu continuava ali, de olhos fechados e mãos apoiadas no encosto de
uma das poltronas, na tentativa de me manter de pé, senti, de repente, um toque carinhoso, muito
carinhoso, nos meus braços.
Um toque conhecido, que lenta e suavemente deslizou até os meus ombros.
Mesmo que eu ainda estivesse mergulhada em uma inquietação interna e silenciosa,
suspirei involuntariamente, experimentando o conforto instantâneo e a calma milagrosa que só as
suas mãos me davam.
Eu nem precisava ver para saber quem era, mas quando virei o meu rosto para trás e tive o
vislumbre nos seus olhos bonitos, charmosos e preocupados em minha direção, foi como um
bônus.
Era o que eu precisava para voltar a respirar corretamente.
— O que aconteceu, amor? Você estava chorando? — perguntou ela, tão adoravelmente
atenciosa. — Fiquei lá fora só esperando a Grace sair, para falar com você. Os seus olhos,
amor... — e deixou a frase pela metade, enquanto, com o cenho franzido, deslizava o seu polegar
sobre a minha bochecha.
Minhas pálpebras se fecharam outra vez, só com o seu toque.
E eu poderia, sim, ter deixado aquela outra Victoria Peterson aparecer. Aquela que passou
a vida inteira desejando impressionar a minha avó e agir como a garota perfeita que deveria ser.
Eu poderia, sim, ter fugido da Rayka, naquele instante, ter me deixado levar pelas ameaças da
Grace e ter falado para ela que nós deveríamos encerrar tudo agora mesmo.
Mas...
Não.
Eu não consegui.
Aliás, não era questão de não ser capaz. Era questão de não querer.
Simples assim.
Eu não queria mais ser aquela pessoa intragável que um dia fui.
Eu não suportava mais isso.
Naquele momento, tudo o que eu conseguia e queria fazer era abraçá-la. E foi exatamente
o que eu fiz. Mesmo correndo o risco da minha avó nos ver outra vez e fazer uma confusão ainda
pior comigo, eu a abracei bem forte, sorvendo a sensação indescritível de tê-la junto comigo.
Rayka retribuiu, me envolvendo firmemente com os seus braços, enquanto beijava o topo
da minha cabeça.
— O que foi que aconteceu, amor? — tornou a perguntar.
Eu, no entanto, separando-nos do abraço brevemente, apenas o suficiente para encarar o
seu o rosto, respirei fundo, enquanto limpava os meus olhos, para tirar, de uma vez por todas, do
meu rosto, qualquer resquício de choro. Não porque a minha avó tinha mandado. Muito pelo
contrário. Era porque eu não queria mais chorar por causa dela.
— Podemos falar sobre isso depois? — pedi.
— Victoria... — ela, no entanto, inquieta por saber que eu não estava bem, ainda quis
insistir um pouco.
Suspirei, balançando a cabeça de leve, e, então, repeti:
— Falamos sobre isso depois. Tudo bem?
Rayka apenas puxou o ar.
Não parecia satisfeita com a minha resposta.
Na verdade, não estava nem um pouco satisfeita com o fato de ter que esperar. Porém,
ainda assim, se deu por vencida e, depois de acenar um breve sim para mim, me acompanhou até
lá fora, onde os outros provavelmente já nos esperavam para o almoço.
Enquanto caminhávamos pela sala de estar, indo em direção ao local onde a mesa estava
posta, eu tentava me restabelecer. Respirando fundo e tirando todos os resquícios de lágrimas
que ainda pudessem existir no meu rosto, eu me concentrava para colocar o meu melhor e mais
seguro semblante de Victoria Peterson.
Eu poderia estar me tornando alguém bem diferente daquela garota mesquinha e
intragável, mas, vez por outra, a sua bela cara de bosta, disfarçada de confiança, era bem-vinda,
especialmente agora, depois de ter levado milhares de tapas invisíveis da minha avó. Eu não
queria parecer tão arrasada por fora quanto estava por dentro.
Rayka permaneceu ao meu lado o tempo inteiro. E, bem, quando a minha avó notasse mais
essa proximidade, ela também iria abominar isso terminantemente. Mas, sendo sincera, eu não
estava com o menor saco para fingir que não queria que Rayka estivesse perto de mim, porque,
sim, eu queria que ela ficasse ao meu lado. Queria muito.
E, se a minha avó achava que as suas duras e críticas palavras iriam me assustar o
suficiente para eu me afastar da Rayka, ela estava completamente enganada. Na real, o que
estava acontecendo era o contrário. Agora, quanto mais quebrada eu me percebia, mais eu queria
que a Rayka estivesse bem pertinho de mim. Eu não sabia exatamente o motivo, mas me sentia
muito mais forte quando eu estava com ela.
Porém...
Para o meu completo susto, nem toda a minha força interna, retirada lá das profundezas
daquela Victoria Desprezível Peterson, quase completamente sufocada dentro de mim, me
prepararia para o que vi, ao entrar no local, onde a mesa já estava posta.
Subitamente travei.
Sim, paralisei como se estivesse vendo um fantasma. Ou melhor, a visão do inferno. Era
isso mesmo.
Inferno.
E eu poderia jurar que Rayka me encarou sem entender o que estava acontecendo. Na real,
eu mesma tentava entender o que estava acontecendo.
Que. Porra. Era. Essa?
Sim, a Victoria que não falava nem pensar em palavrões já estava bem longe de mim. Ela
tinha comprado uma passagem só ida para Plutão.
Ofeguei, confusa.
Ainda ouvi meu pai, sorridente, falar:
— Ah, que bom que apareceram!
— Perfeito! — Daisy também se pronunciou. — Já podemos nos servir, então.
Só que eu juro que não consegui prestar mais atenção em nada, depois que eu vi o idiota
do Ethan sentado bem ao lado da minha avó, conversando, entre risos e sorrisos, super entretido
com ela, como se fossem amigos de longa data.
Sem que eu pudesse evitar, minha memória foi bombardeada pelas lembranças das últimas
vezes em que o vi, algumas semanas atrás.
“Desculpa, gatinha... É que... Olha só...” e segurou minha mão livre, levando-a até sua
calça, para que eu sentisse o seu pênis duro.
“Poxa, gatinha... O que foi? É porque a gente tá no carro? Não se preocupe, bebê...
Tenho um lugar muito melhor pra gente ir.”
“Como assim a gente mal se falou? Cara, eu passei a noite inteira com você. Paguei
lanche, paguei cinema. Porra.”
“Os caras falaram que você dava fácil.”
Ai, que ódio!
O maldito encontro com o Ethan, logo depois que a Rayka chegou em Miami e me deixou
meio perturbada do juízo.
Os caras falaram que você dava fácil.
Os caras falaram que você dava fácil.
Os caras falaram que você dava fácil.
Argh!
Me subia uma fúria incontrolável, apenas por me lembrar das suas palavras ridículas e do
jeito imundo como me tratou naquele encontro. Aliás, o problema não foi apenas o encontro. Isso
seria pontual demais para um cara como o Ethan. Na real, o problema era ele. Geralmente,
homens escrotos eram sempre escrotos, e não somente em uma única ocasião. Podiam disfarçar
ou se fingir de bom-moço, mas, no fim das contas, dificilmente mudavam.
Que diabos aquele infeliz estava fazendo na casa do meu pai, conversando com a minha
avó?
— Ah, querida! — minha avó, com uma simpatia extremamente falsa, como se há quinze
minutos não tivesse me humilhado, logo se levantou da cadeira, aproximando-se de mim. Ethan,
ridículo, a acompanhou, sem perder tempo. Aquele seu sorrisinho de presunção, enquanto me
olhava, me dava embrulho no estômago. — Antes de tudo, eu os quero apresentar, caso ainda
não conheçam. Ethan estuda na Universidade de Miami. Será um futuro médico. O seu pai é o
coordenador do curso. E, além de tudo, é também sobrinho do reitor da Rhode, que é para onde
você pretende ir estudar e trabalhar, não é mesmo? — sorriu brilhantemente, como quem
encaixava as peças do seu próprio quebra-cabeça. — Bem, eu disse que o apresentaria somente
no jantar do meu aniversário, mas decidi fazer isso logo. Você se lembra, não lembra, querida?
E como eu poderia me esquecer?
Exatamente depois de eu acordar confusa e toda molhada, por ter sonhado gozando para a
Rayka, Grace praticamente invadiu o meu quarto da fraternidade e, entre tantas cobranças
vomitadas, disse que me apresentaria a um rapaz muito apropriado. Eu só não sabia que esse
rapaz era o Ethan, já que de “apropriado” ele não tinha nada.
Era só por causa da sua gorda conta bancária e do fato de que seria médico um dia? Ou
porque vinha de uma boa família e era sobrinho do reitor da Rhode em Providence?
Honestamente, isso não queria dizer merda nenhuma. O Ethan que eu conhecia não era aquele
metido a bom-moço, que agora estava bem na minha frente, era o escroto que me levou para sair,
com o único objetivo de me comer, porque, por acaso, algum enviado de satanás lhe disse que eu
dava fácil.
Ódio.
Eu juro que não sabia de onde a minha avó tinha tirado essa ideia ridícula.
Ela estava completamente enganada sobre a índole do Ethan.
Ele, por sua vez, se aproximando de mim, cheio de dentes, logo falou:
— Oi, Vic! É tão bom te ver de novo!
Como se não bastasse, ainda deu um beijo em cada lado do meu rosto, enquanto eu,
paralisada com aquela patifaria, não conseguia esboçar qualquer reação decente, além do meu
cenho absolutamente franzido.
— Ah, então já se conhecem? — ainda mais satisfeita, a minha avó replicou.
— Quem não conhece Victoria Peterson? — irritantemente garboso, ele encheu a boca
para falar o meu nome.
Parecia a ponto de beijar o chão onde eu pisava, só para conseguir ainda mais a aprovação
da minha avó.
— Que ótimo! — Respondeu ela.
E, mesmo falando para mim, Grace completou, olhando diretamente para a Rayka, ao meu
lado, como se estivesse lhe passando algum recado nas entrelinhas:
— Tenho certeza de que vocês vão se dar muito bem. Ethan é um ótimo rapaz.
Meu coração acelerou de raiva.
E, em meio àquela quantidade de sentimentos ruins embolados dentro de mim, enfim
consegui virar o rosto para a Rayka. Foi quando eu percebi... Percebi perfeitamente que o ódio
que eu sentia também transbordava dela, por cada parte do seu corpo, enquanto fitava Ethan e
minha avó, com a mandíbula trincada e os olhos pegando fogo.
DEPOIS DE VOCÊ, MAIS NINGUÉM

“Como um anjo fora da página, você apareceu


Parece que eu nunca mais vou ser a mesma”
Like A Star | Corinne Bailey Rae

VICTORIA

Aquele almoço foi ridículo.


Completamente ridículo.
Como forma de deixar claro o meu desprazer com a palhaçada que a minha avó estava
tramando, fiz uma espécie de greve de palavras, desde o momento em que me sentei àquela mesa
até terminar de comer. Utilizei monossílabas para praticamente tudo e não fiz a menor questão de
ser simpática. Coloquei a minha melhor máscara de Victoria ordinária, aquela que viveu em mim
por vinte e um anos, e, assim, eu fiquei, ainda que Grace sempre desse um jeito de puxar os mais
idiotas assuntos só para que Ethan e eu trocássemos algumas palavras.
Sim, eu sabia que mesmo com os seus sorrisos, para dar a ele a falsa impressão de que
tudo estava na mais perfeita ordem, eu via, no fundo dos seus olhos direcionados a mim, todas as
suas exclamações silenciosas de repreensão sobre o meu comportamento. Mesmo assim, eu
aproveitei. Grace Peterson, por ser uma Peterson de “respeito”, jamais faria qualquer cena ali, na
frente do seu “menininho de ouro”, que também chamavam de Ethan.
Ou seja, ela só me queimaria com ferro em brasa, quando estivéssemos a sós. Enquanto
isso não acontecia, porém, eu continuava me comportando do jeito como eu bem queria.
Rayka também não deu muitas palavras. Apenas quando necessário. Eram raras as vezes
em que eu a via assim, considerando o quanto sempre foi extrovertida com todo mundo. Ela, no
entanto, continuava tão irritada quanto eu, por enxergar que a minha avó estava deliberadamente
me jogando pra cima daquele cara e, sobretudo, por ter a certeza de que, dentre tantos motivos
para Grace fazer isso, talvez o principal deles fosse o fato de que, agora, estava começando a
perceber algo de verdade acontecendo entre nós. Rayka sabia disso. E como sabia. Ela era
esperta, sacava as coisas rápido.
E era por isso, exatamente por causa de tudo isso, que ela mantinha o seu olhar sério e
exasperado a cada vez que percebia Ethan olhando fixa e descaradamente para mim, ou melhor,
para o decote dos meus peitos. Rayka mastigava a comida com amargor e apertava o copo de
suco entre os seus dedos, sempre que tomava um gole. Eu tinha certeza de que, na real, o que ela
queria mesmo era apertar o pescoço do desgraçado daquele jeito.
Papai e Daisy, coitados, claramente estavam percebendo o clima estranho naquela mesa. E
eles até tentavam amenizar isso, escolhendo assuntos leves para conversar, mesmo que não
entendessem direito o que estava acontecendo. O problema era que nada, absolutamente nada
dava jeito. Aquela energia ruim já tinha se instalado sobre a mesa e, se eu demorasse mais um
pouquinho ali, ficaria com indigestão.
Por isso, querendo acabar logo com o circo, comi o mais rápido que pude e logo saí,
sentindo, óbvio, os olhos fervorosos de Grace queimarem as minhas costas. Certamente, era mais
uma desaprovação sua. Afinal de contas, eu mal tinha falado alguma coisa, durante o almoço, e
ainda dei o fora dali sem abrir o bico. A sua decepção ao meu respeito só podia estar
aumentando.
Uma Peterson mal-agradecida, que não merecia o sobrenome que tinha...
Honestamente, eu só estava cansada.
Passei vinte e um anos tentando inutilmente atingir as suas expectativas, quando, na real,
bastava um pequeno e mísero “erro” meu, para eu regredir em absolutamente toda a admiração,
que a muito custo, tinha conseguido dela. Era sempre assim. Sempre.
Isso era desgastante. E eu estava exausta.
Subi as escadas aos pulos, seguindo direto para o meu antigo quarto. Entrei, fechei a porta
e me tranquei, caindo na cama e respirando fundo.
Enfim, um pouco de ar puro.
Aquela mesa do almoço parecia poluída demais.
Eu já não aguentava mais ter que escutar a conversa esfarrapada da minha avó, enquanto
fazia de tudo para me incitar direta ou indiretamente a manter algum diálogo com o mané do
Ethan. Da mesma forma, não suportava os olhos descarados daquele sujeito, enquanto, sob uma
falsa máscara de bom-moço, me fitava cheio de presunção.
Agora, eu entendia o motivo dela ter convidado a Rayka, sob a justificativa de que seria
um almoço muito “importante”. Fazia tudo parte do seu plano ardiloso. Grace foi rápida. Muito
rápida. Bastou escutar da boca das pessoas, que eu estava andando de mãos dadas com a Rayka,
para que começasse a agir.
Eu estava farta.
Farta disso.
Farta de ter a minha vida e as minhas atitudes cerceadas e controladas por ela.
Farta de tudo.
Por isso, deitada naquela cama, eu pedia aos céus para que eu não fosse mais perturbada.
Eu suplicava a todas as deusas para que a minha avó esquecesse da minha existência, pelo menos
até o fim daquele dia, e não aparecesse ali querendo criar alguma confusão, por eu não ter
recebido o seu convidado do jeito como desejava que eu fizesse.
Eu só precisava de paz, de um momento sem as suas ordens intermináveis.
Antes de subir, eu ainda ouvi quando a tia Daisy pediu à Rayka, depois que terminou de
almoçar, para que a acompanhasse até o supermercado. Segundo o que ela disse, queria ajuda
com as compras. Rayka ainda perguntou se poderia ser depois, eu sabia e sentia o quanto ela
queria ter um momento a sós comigo, para conversarmos. Mas, tia Daisy falou que não podia
esperar.
Bem, honestamente, eu sabia que Daisy não era muito fã de dirigir, assim como também
sempre pedia a ajuda da Rayka com compras, lavanderias e tudo o mais. Porém, algo me dizia
que aquele seu repentino convite ao supermercado não era apenas pela direção do carro ou
porque realmente precisava comprar alguma coisa naquele momento. Era por algum outro
motivo. E, provavelmente, esse motivo tinha a ver com o climão na mesa.
Tia Daisy também não dava muitos pontos sem nó.
Rayka foi. Com a cara emburrada, mas foi.
Ainda assim, não parei para pensar muito sobre o que a tia Daisy planejava com aquela
saída repentina. Aproveitei que, naquela tarde, eu não teria aulas na faculdade, nem trabalhos na
lanchonete, e, lá fiquei, deitada no meu antigo quarto.
Dentre tudo o que poderia estar tirando o sossego da minha cabeça, tipo a minha avó e as
suas ideias completamente descabidas a respeito da minha vida, porém, só existia uma coisa que
realmente me martelava. E, por incrível que isso pudesse parecer, não tinha a ver com Grace ou
com Ethan.
Na verdade...
Tinha a ver com algo muito mais importante.
Tinha a ver com a minha mãe.
Minha mãezinha.
Era sobre ela e sobre aquela pergunta, ou melhor, aquela dúvida que não saía por nada dos
meus pensamentos, desde que Grace me encurralou contra a parede, antes do almoço.
Eu sabia que a intenção da minha avó, com certeza, não era me deixar pensativa, quando
disse que interromper a minha relação com a Rayka seria o que a minha mãe gostaria que eu
fizesse. Muito pelo contrário. Mais uma vez, ela tinha usado a minha mãe, para tentar me
convencer de algo que ela mesma queria que eu fizesse.
E o efeito que isso me provocou foi totalmente o oposto do que eu tenho certeza que ela
esperava da minha parte.
Em vez de abaixar a cabeça e aceitar categoricamente o que a minha avó dizia, sob a
justificativa de que ela conhecia tão bem a minha mãe, agora, ao menos agora, eu quis
questionar.
Sim, pela primeira vez na vida, desde que mamãe se foi e eu passei a obedecer a Grace em
tudo, eu quis duvidar.
E, até este exato momento, mesmo depois daquele almoço, eu ainda estava assim.
Será?
“Será” parecia ser a única palavra possível no meu juízo, enquanto milhares de perguntas
acerca disso se repetiam, a todo instante, na minha cabeça.
Será que Grace realmente sempre estava certa sobre tudo?
Será que eu estive certa, durante todo esse tempo, em aceitar e acreditar em tudo o que
ela me dizia?
Será que a minha avó realmente sempre soube o que a minha mãe gostaria que eu fizesse,
caso estivesse aqui?
Aliás, será que a minha mãe estava certa quando disse que a minha avó sempre saberia o
que era melhor para mim?
Será que a minha mãe reprovaria mesmo o fato de eu ser perdidamente apaixonada por
uma menina?
E será que ela me amaria menos por causa disso?
Será, será, será, será.
Havia uma infinidade de “serás” se embolando dentro da minha cabeça, enquanto a única
certeza que eu tinha, nessa altura, era do quão ruim era não ter a minha mãe por perto. Na
verdade, ruim sempre foi. Mas, agora, parecia um pouco pior.
Se ela estivesse aqui, eu poderia tirar qualquer dúvida, a apenas um passo de distância.
Apenas um. Seria como abrir a porta do meu quarto e encontrá-la, sei lá, arrumando a mesa para
o jantar. Seria perfeito. Um sonho que eu jamais poderia realizar, porque não dava para trazê-la
de volta.
Eu acho que toda garota confusa e, ao mesmo tempo, apaixonada, adoraria ter o colo da
mãe e ouvi-la dizer que está bem ou que, pelo menos, tudo vai ficar bem.
Convivi com a minha mãe até os nove anos. E, embora eu tivesse muitas e boas
recordações dela, eu sentia que ainda não tinha sido o suficiente. Ela se foi quando eu era uma
criança. Não vivemos juntas o bastante. Era como se eu precisasse conhecê-la mais. Sempre tive
essa impressão. Sim, eu não conhecia direito a própria pessoa que me gerou, mesmo que eu
sempre tivesse escutado as mais diversas histórias sobre ela, onde todas terminavam no fato de
que a minha mãe era perfeita.
Um exemplo.
Ainda assim, parecia-me faltar algo. Ou muitas coisas.
Eu queria conhecê-la melhor. Eu precisava disso.
Eu queria saber como Madelyn Peterson agiria sendo a mãe de uma garota apaixonada por
outra garota. Eu queria saber se, na verdade, eu fui enganada pela minha avó, durante todos esses
anos.
Eu precisava de respostas.
Eu precisava conhecer a minha mãe de verdade.
Mas...
Como?
Foi quando a porta do meu quarto, de repente, se abriu. Por um instante, o meu coração
disparou em puro nervosismo, enquanto eu, meio traumatizada com tudo, já pensava no pior. Era
como se o meu corpo já estivesse condicionado a acreditar que algo de ruim aconteceria, sempre.
No entanto, ao contrário do que a minha consciência acreditou, antes mesmo de ver quem
era, não foi a minha avó, com toda a sua carga de prepotência, quem apareceu. Foi o meu pai.
— Oi, filha... Posso entrar?
Suspirei aliviada, confesso.
Eu não queria ser perturbada, mas também tinha certeza de que a última pessoa a me
incomodar seria o meu pai.
Portanto...
— Sim, claro... Entra, pai — e me sentei na cama, para recebê-lo.
Fazendo o mesmo, ele se sentou ao meu lado.
Ao deixar a porta do meu quarto aberta, percebi o silêncio que fazia lá fora. Até onde eu
sabia, apenas Daisy e Rayka saíram. Franzi o cenho, levemente curiosa.
— Onde estão os outros? — perguntei.
— Já foram.
Já?
Não sabia se ficava confusa ou tranquila. Talvez os dois.
Enruguei um pouco mais a testa.
— E a minha avó não quis vir aqui, antes de ir embora?
— Quis sim, mas eu pedi para que ela falasse com você depois.
E, bem, ele não precisou dizer mais nada, nem eu mesma, para que eu entendesse que, se
ele fez isso, era porque realmente tinha sacado alguma coisa e percebido que eu precisava de um
tempo longe dela.
— Obrigada, pai... — respondi sinceramente.
Eu seria eternamente grata por me salvar de mais dores de cabeça, pelo menos naquele dia.
— O que está acontecendo, querida? Daisy e eu percebemos algo estranho durante o
almoço. Só não sabemos se foi por causa daquele rapaz, ou por algum outro motivo.
E ele falava com tanto, tanto carinho e afeto que, antes mesmo de abrir a minha boca, eu já
podia sentir involuntariamente os meus olhos querendo começar a encher d’água pelos
cantinhos. Que saco. Eu estava tão emotiva, nos últimos dias, que chegava a ser ridículo.
Suspirei e abaixei o olhar, encarando as minhas mãos.
Como contar?
Como dizer a ele que o clima ruim na mesa do almoço não era apenas porque Grace
estava tentando me empurrar para o Ethan, mas, principalmente, porque ela estava fazendo isso
com o claro objetivo de me afastar da Rayka?
Como falar pra ele que eu estava louca, ou melhor, que eu sempre fui louca pela filha da
sua esposa?
Ele, no entanto...
— Diga, querida... — em um tom de voz ameno, pediu e, então, segurando o meu queixo
com cuidado, levantou o meu rosto devagar, fazendo-me encará-lo outra vez. — Não tenha medo
de me falar o que está acontecendo. Você sabe que pode contar comigo para qualquer coisa.
E eu sabia sim.
Sabia, mesmo sem ele precisar pronunciar essas palavras.
Eu sempre soube.
John era o cara mais incrível que eu poderia ter como meu pai. Às vezes, puxava as
minhas orelhas, por causa das besteiras que eu fazia, e me deixava sem alguma coisa, como
forma de “castigo”, mas, honestamente, sempre me deu todo o amor que eu precisava. E, depois
que mamãe se foi, ele agiu como um verdadeiro homem, um pai mesmo, atencioso, preocupado,
carinhoso, enquanto fazia o possível para suprir toda a falta que eu sentia dela.
Dela...
Franzi o cenho de repente, encarando os olhos dele, ao me dar conta de algo. Foi como
uma lâmpada se acendendo subitamente sobre a minha cabeça. Como eu ainda não tinha
pensado nisso? Pisquei repetidas vezes, percebendo o quanto eu estava sendo burra.
Sim, era isso.
Era isso.
Eu não tinha a minha mãe, mas, felizmente, eu tinha o meu pai.
E, entre tantas alegrias que eu poderia sentir por ter um pai presente, uma delas,
certamente, era falar sobre a minha mãe com alguém que tinha total propriedade no assunto. Ele
viveu com ela por muito mais tempo do que eu, e não me restava dúvidas de que qualquer
pergunta que eu fizesse, sobre a minha mãe, ele me responderia com total sinceridade.
Portanto, ainda encarando o fundo dos seus olhos, suspirei e perguntei:
— Pai... Como era a mamãe?
Eu vi um sorriso amável nascer nos seus lábios, só de me ouvir mencioná-la. Ele pareceu
surpreso e, ao mesmo tempo, admirado com a minha pergunta. Por mais que o nosso sentimento
por Madelyn estivesse tão vivo quanto sempre foi, mesmo depois de mais dez anos da sua
partida, poucas foram as vezes em que nós falamos sobre ela.
— Ah, querida, a sua mãe era... Maravilhosa.
Ele encheu a boca para falar a palavra “maravilhosa”.
Eu sabia que John ainda amava Madelyn. Todos sabiam, até mesmo a tia Daisy sabia que
a minha mãe sempre foi o grande amor da vida do meu pai. Um amor incomparável. Aliás, os
amores que ele sentia pelas duas mulheres da sua vida, Madelyn e Daisy, eram singulares,
diferentes. Não dava para se comparar, porque cada um era especial à sua maneira. Da mesma
forma como os amores eram incomparáveis, elas também eram. Duas mulheres incríveis, mas
completamente diferentes e insubstituíveis.
Sorri.
Uma emoção latente, já batendo na boca da minha garganta.
— Vocês se conheceram na Universidade de Miami, não foi?
— Sim... Eu era bolsista. Não tinha um centavo para pagar a faculdade, mas, pelo menos,
era inteligente. O reitor da época me deu uma bolsa de estudos, para que eu conseguisse cursar
Direito. Foi quando eu conheci a sua mãe, em uma das festas estudantis. Ela era incrível, cursava
Artes Plásticas, assim como você, era uma das alunas mais exemplares da universidade, líder da
Fraternidade das Minervas... — sorriu, nostálgico, saudoso, como se estivesse voltando no tempo
para se lembrar. — Eu me apaixonei desde a primeira vez que a vi.
Lágrimas balançaram na linha d’água dos meus olhos.
Eles dois pareciam tão perfeitos.
— Vovó aceitou facilmente o relacionamento entre vocês?
— Não mesmo, querida... — soltou uma risadinha fraca.
Franzi o cenho.
— Não?
— Grace sempre foi uma mulher difícil. Eu era pobre, era bolsista. Ela queria que a filha
se casasse com um cara rico, algum herdeiro, ou futuro médico. Mas, Madelyn não permitiu ser
convencida pelas ordens da mãe. Ela enfrentou a Grace para ficar comigo.
Senti quando meu queixo se inclinou para baixo.
Bem, não era como se eu não conhecesse a história da minha família, ou dos meus pais,
mas... Eu fui criada por Grace com a visão de que a minha mãe sempre foi perfeita e sempre fez
tudo o que a minha avó queria que ela fizesse.
Eu sabia, sim, que o meu pai nasceu em uma família humilde e que conseguiu conquistar o
seu espaço com bastante dificuldade. No entanto, eu ainda não tinha pensado nas coisas por esse
lado, talvez porque, há anos, eu fui condicionada a sempre enxergar a nossa família por uma
ótica tão “higienizada” e perfeita.
— Então... Ela desobedeceu a vovó?
— Sua mãe era forte, meu amor. Por mais que Grace tentasse regrar os comportamentos
da filha, a maioria das coisas Madelyn fazia porque bem queria, especialmente depois que me
conheceu. Ela decidiu não abrir mão do nosso relacionamento. E, com o tempo, percebendo que,
se não aceitasse, acabaria perdendo a filha, Grace passou a tolerar a relação. Depois que Madelyn
engravidou e você nasceu, Grace ficou mais maleável ao relacionamento. Ela se encantou pela
neta.
Dessa vez, lágrimas escorreram dos meus olhos sem que eu pudesse evitar, à medida que o
meu castelinho de areia desmoronava. Só que, ao contrário do que qualquer pessoa poderia
imaginar, o meu choro não era por ter acreditado na farsa da perfeição de uma Peterson ou por
ver o tal castelinho indo abaixo, era por finalmente saber que, na real, a minha mãe foi tão
humana quanto eu.
Em vez de me sentir enganada, por ter pensado, quase a vida inteira, que ela sempre
abaixava a cabeça e fazia tudo o que Grace queria, eu só conseguia sentir orgulho, admiração.
Uma súbita e gigantesca admiração, mais intensa do que aquela que eu já tinha por ela. O
pedestal onde eu colocava a minha mãe, agora, não era pela sua famosa perfeição, mas, sim, pela
sua coragem de enfrentar a minha avó.
Orgulho era tudo o que eu sentia.
Orgulho por ter escolhido o meu pai.
Por ter ficado com ele.
Por ter enfrentado as pressões da Grace, que agora eu mesma sofria, e, ainda assim, ter
continuado com ele.
Não existiria homem no mundo melhor e mais perfeito para a minha mãe do que o meu
pai. Ele foi um grande homem para ela, do mesmo jeito que era um grande pai para mim e um
grande marido para Daisy. Eu não tinha a menor dúvida disso. E, se a minha mãe tivesse
escutado a minha avó, ela teria perdido a oportunidade de viver e estar ao lado de uma pessoa
que realmente valia a pena.
— Pai... — entre lágrimas, balbuciei. Existia algo, uma pergunta entalada na minha
garganta desde cedo. Sim, desde que a minha avó agarrou o meu braço com força e falou que
deixar Rayka era o que a minha mãe gostaria que eu fizesse. Isso estava me sufocando e, ao
mesmo tempo, quase saltando da minha boca, como se tivesse vida própria. Em dado momento,
eu não pude segurar. — Pai... Você acha que mamãe aprovaria um relacionamento meu, que a
própria Grace desaprova?
Ele franziu o cenho de leve, me fitando.
— Que relacionamento, filha?
Ah, Deus.
Isso era o tipo de coisa que eu nem sabia falar direito, porque nunca, nunca me imaginei
em uma situação como essa. Nunca me imaginei dizendo isso.
Naqueles breves segundos que antecederam a minha resposta, eu me sentia como outra
pessoa. Eu, definitivamente, já não era mais eu mesma. Ou, pelo menos, aquela Victoria Peterson
que um dia fui e que ele conhecia.
Ao mesmo tempo, porém, esquisito e confuso como fosse, ainda que eu me sentisse
diferente, também era como se eu finalmente, agora, fosse eu mesma. Contraditório demais, mas
real na mesma medida.
— Um relacionamento entre mim e... — eu não tinha planejado colocar isso para fora
agora, talvez eu nem estivesse plenamente preparada. Deus sabia o quanto eu estava nervosa
por dizer isso ao meu pai, mas... Eu tinha que aproveitar a oportunidade. Eu precisava dizer
isso a ele, antes que a dúvida me consumisse por dentro. — Um relacionamento entre mim e
uma garota, pai.
Minhas bochechas quiseram queimar em uma vergonha ridícula, mas...
Isso não durou muito mais do que meio segundo.
Quando o seu rosto suavizou e um sorriso leve surgiu nos cantos da sua boca, eu parei.
Simplesmente, parei, quase surpresa, e observei atentamente cada traço das suas feições.
Ele suspirou, me encarando, e, então, sem me fazer quaisquer questionamentos que
poderiam ser constrangedores ou acusadores, apenas me respondeu, com todo o carinho:
— Eu não tenho a menor dúvida de que ela te apoiaria, filha. Ainda que mais de dez anos
já tenham se passado, eu continuo me lembrando perfeitamente dela e conheço muito bem a
mulher por quem eu me apaixonei.
De súbito, soltei involuntariamente todo o ar que eu nem tinha me dado conta de que
estava prendendo.
Meus olhos voltaram a encher d’água, enquanto o meu coração acelerado bateu no peito
de um jeito que há muito, muito tempo eu não sentia.
— Mesmo? — sibilei, realmente emocionada.
E, então, ele balançou um sim com a cabeça, ainda encarando os meus olhos.
— Sim. Jamais duvide disso, Victoria. Ela sempre te amou demais. Demais mesmo. E eu
tenho certeza de que continua te amando, onde quer que esteja agora.
Solucei, sem conseguir me conter.
Lágrimas caíram com muito mais força.
Não de tristeza, mas de um puro alívio que só aquelas palavras puderam me dar.
— Sinto tanta falta dela, pai...
— Eu também sinto, meu amor... Sinto muita falta dela — e, com os seus braços, ele me
envolveu em um abraço.
Chorei.
Enquanto suas mãos afagavam as minhas costas e os meus cabelos, chorei como se cada
uma daquelas lágrimas estivesse ajudando a me curar um pouco mais. Eu sabia que ainda existia
um caminho pela frente, até me sentir plenamente saudável, mas, tinha certeza de que, todos os
dias, um pouquinho das minhas cicatrizes estava se fechando. Gradativamente se fechando,
sobretudo depois de ouvi-lo.
Foi como se, de repente, eu tivesse tirado mais um peso do meu coração.
Um peso que eu pensei que nem existisse mais, depois de ter me entendido com a Rayka
naquela praia. Mas, existia, sim, e estava bem escondidinho dentro de mim, até eu encontrá-lo,
agora, e colocá-lo para fora.
Não me restavam dúvidas de que eu ainda tinha muito o que desconstruir e o que tirar de
mim. A faxina era permanente e a casa não ficaria completamente arrumada da noite para o dia,
depois de vinte e um anos de bagunça. Esse trabalho seria pessoal, diário e contínuo.
E, mesmo recebendo o seu carinho até aquele minuto, eu também queria ouvir dele, da sua
boca, o que ele pensava sobre o assunto, porque eu sabia que isso curaria mais uma parte do meu
coração.
— Pai... — me afastei do abraço, somente o suficiente para observar os seus olhos. — E
você...? Também me apoiaria?
Ele sorriu, deslizando carinhosamente o polegar pelo meu rosto, enxugando as lágrimas.
— É claro que eu apoio. Eu apoio você em tudo... Quero dizer, não quando bate o carro
pela milésima vez. Isso eu não apoio. Por mim, ficará sem o carro pelo resto da vida. — brincou.
— Mas, sobre gostar de uma garota, meu amor, eu não vejo problema algum nisso.
Eu ri, entre lágrimas e sorrisos.
— Não sabe o quanto eu precisava ouvir isso, pai.
— Ah, pode ter certeza de que eu sabia sim — e me abraçou outra vez.
— Te amo tanto.
— Eu também amo você, princesinha linda do pai.

RAYKA

— Bora, Rayka, desembucha. Confessa logo de uma vez. Eu já sei.


Não tinha supermercado coisa nenhuma. O que a minha mãe estava tramando era algo
completamente diferente. Daisy me colocou dentro do seu carro, sim, exatamente aquele da
pegação memorável no banco traseiro, e me levou até o quinto dos infernos, bem ali, onde o
vento fazia a curva, só para me colocar contra a parede. Ou melhor, contra a porta.
Bem que eu ainda tentei ficar em casa. Ou, sei lá, em algum lugar onde a Victoria
estivesse. Queria conversar com ela e saber que porra a sua avó falou para fazê-la chorar. O
ranço que eu tinha daquela velha cheia de botox e cirurgia plástica, não estava escrito em canto
nenhum, porque era grande demais. Não cabia nem em um livro de mais de mil páginas. A
mulher era uma mala.
Minha mãe, porém, momentaneamente se esqueceu de todos os seus princípios de vida
leve e espiritualizada. Naquele exato instante, ela mais parecia a Daisy que convivia com o meu
pai debaixo de briga, dentro de casa, todo santo dia, antes de se divorciar e começar a fazer ioga
e meditação quarenta e cinco vezes por semana.
Ela não me deixou nem terminar de almoçar direito. Não pude ao menos dar qualquer
palavra com a minha prometida. Logo fui arrastada para dentro de um carro que, trinta minutos
depois, parou no acostamento de uma via, onde, bem lá no final, era possível ver o sol se pondo
no horizonte e uma galera surfando em Miami Beach, naquele fim de tarde.
Pelo menos, a porra daquela vista fazia valer a pena a saída sem-noção.
— Que foi, mãe? — virei o rosto para ela, erguendo uma das sobrancelhas. — Em qual
esquina a gente esqueceu o seu espírito namastê? Me fala aí, pra eu ir lá buscar.
Ela rolou os olhos.
— Olha só, sem gracinhas, tá, Rayka? O assunto é sério.
— Foi por causa do almoço? Eu sei, eu sei. O clima não tava legal. Mas, eu não tenho
culpa da Grace ter inventado de levar um maníaco sexual que ficava olhando o tempo todo para
os peitos da minha mulher! E aquela velha ainda teve a audácia de achar que ele é um “rapaz
ótimo”! — fiz aspas com os dedos, exclamando, enquanto com desdém imitava a voz da velha
dizendo isso. — Ótima é a minha boceta, isso sim!
Mamãe, por sua vez, respirou fundo.
— Tá legal... Agora sou eu quem peço... Será que dá para acalmar os ânimos? Ou vai ficar
chorando todas as pitangas, por causa de um garoto que nem tem chances com a Victoria, por
que ela não vai dar?
Suspirei.
Até que ela tinha razão.
Victoria jamais daria uma chance para um merdinha daquele.
Minha mulher tinha bom-gosto, pô.
Se agora ela estava comigo, era porque tinha bom-gosto.
— Ok, não está mais aqui quem reclamou... — tentei conter os ânimos, ainda que eles
estivessem extremamente aguçados, sobretudo quando eu me lembrava da cena deplorável do
almoço. Minha barriga estava doendo de indigestão até agora. — Pode desenrolar aí o assunto.
— Vou ser bem direta, querida. Juntei todos os pontos dessa história, durante o almoço,
principalmente enquanto você estava quase infartando de ciúmes pela Victoria.
Franzi o cenho, confusa.
— Pera aí. Que pontos, mãe?
Ela riu, balançando a cabeça, quase como uma louca.
Na verdade, ela era uma louca sim.
— Ai, vocês achavam que iam me enganar né? — disse ela, entre gargalhadas. — Aliás,
quase me enganaram mesmo... Eu só podia estar meio embriagada, entre tantos aromas
diferentes de óleos essenciais que eu coloco nos incensos todos os dias, mas... — subitamente
parou as risadas e me encarou com total seriedade. — Victoria já descobriu que Maverick é você,
não já?
Ah não.
Eu instantaneamente congelei.
E não, eu não congelei por mim, mas congelei por ela. Pela Victoria. A Victoria já tinha
me deixado bem claro que um dos seus maiores medos era que mamãe descobrisse que nós já
tínhamos desvendado o mistério dos bilhetes e, por causa disso, nos separasse e não nos deixasse
fazer o trabalho juntas. Ou, sei lá, na pior das hipóteses, nos reprovasse.
Bem, era isso o que diziam as regras sumariamente estipuladas por Daisy Ferris, lá no
início de tudo. Quem descobrisse a identidade real do parceiro de dupla, antes do tempo, faria o
trabalho sozinho ou reprovaria a disciplina sem perdão.
Eu, honestamente, não dava a mínima importância para uma reprovação, mas eu sabia o
quanto isso era importante para Victoria. Toda certinha nas notas e nos estudos, ela jamais
aceitaria reprovar tão bestamente assim em uma disciplina.
Fora que, de alguma forma, graças à minha facilidade com Literatura, Vic estava usando
aquele trabalho quase como uma tábua de salvação. Se o próximo teste não desse jeito, ao menos
ela ainda tinha o trabalho final comigo. Ela estava confiante de que, com a minha ajuda,
conseguiria sair do fundo do poço do grande e vermelho F, na nota final do curso. E, bem,
modéstia à parte, eu não tinha a menor dúvida de que isso aconteceria. No que dependesse de
mim, Victoria seria aprovada com louvor.
Ou seja, a minha mãe não podia, em hipótese alguma, saber da verdade.
Pigarreei a garganta, tentando disfarçar o meu gelo.
— É-É... — e gaguejei, mesmo sem querer. Merda. — Tá falando de quê, mãe? Eu não
faço a menor ideia da onde a senhora tirou isso. Isso não tem lógica.
Sim, tem sim! Tem total lógica, Rayka! Tá praticamente escrito na sua testa, mulher!
Berrou a filha da puta da minha consciência.
Droga, droga, droga.
— Olha só, Rayka, eu não sou burra, não! Não tente enganar a sua própria mãe! Eu sou
professora universitária de Literatura e tenho PhD, eu sou inteligente, meu amor!
Ah, que merda.
Se a Victoria ao menos sonhasse que isso estava acontecendo exatamente agora, ela ia
falecer. E, não, eu não podia ficar viúva. Nem ser assassinada pela minha própria mulher.
— Mas, mãe... — ainda tentei falar.
Porém...
— Não tem história de “mas”, Rayka — fui cabalmente interrompida. — Eu já entendi
tudo! Juntei todos os pontos. Os flertes que você, espertinha, andou passando na garota pelas
cartas, o desentendimento em Charleston e, agora, a aparente reconciliação. Victoria é curiosa!
Ela quis saber, desde o primeiro bilhete, quem era Maverick. Eu me lembro muito bem! E agora
que vocês estão juntas, eu só posso acreditar que ela descobriu, não é?
Ai que porra.
O quê que eu podia fazer para convencê-la do contrário?
Victoria ia morrer do coração e depois ia ressuscitar só para me matar por eu tê-la feito
reprovar.
— Mamãe, isso não tem nada a ver! Esse lance entre a Victoria e eu já rola faz tempo,
muito antes do trabalho!
— Não interessa! — devolveu. — Pode até ter começado antes do trabalho, mas eu tenho
certeza absoluta de que foi com o trabalho que as coisas aconteceram, de fato.
— Mãe... — quase choraminguei.
— Não me engane, Rayka. Não me engane. Se continuar mentindo, vai ser pior. Eu
reprovo as duas sem dó nem piedade, e não abro nem a possibilidade de fazerem o trabalho
separadas!
Mamãe era namastê, mas, quando queria, ela também sabia tocar o terror.
Puxei o ar, quase derrotada.
Tá legal, tá legal... Vamos pensar friamente, Rayka.
O que de pior poderia acontecer? Reprovar?
Não, mamãe não faria isso, por mais que tivesse ameaçado e colocado nas regras do
trabalho. Ela gostava muito da Victoria para ser capaz desse tipo de coisa.
Só restava a opção de fazermos o trabalho separadas. E, bem, mamãe podia até separar a
nossa dupla, como punição pelo descumprimento de uma das principais regras, mas isso não
significava que eu ia deixar de ajudar a Victoria com o trabalho.
Ou seja, ia acabar dando no mesmo.
Fechou!
Fechou total!
Era isso. Mamãe separava a gente e, por baixo dos panos, eu continuaria ajudando a
Victoria da mesma forma.
Beleza!
Respirei fundo, quase teatralmente, decidida a dar um basta nisso, e...
— Tá legal, ela já descobriu — confirmei.
— Eu disse! — exclamou e, então, balançando a cabeça em negativo, enquanto encarava a
galera lá na frente surfando nas ondas do pôr-do-sol, completou. — Parecia que eu estava até
adivinhado que isso aconteceria, quando vi que vocês foram sorteadas como dupla. O destino
sempre se encarrega de tudo. É batata.
— Pois é, mãe... Destino, sacou? — ainda tentei dar um jeitinho de convencê-la. — A
culpa é inteiramente dele, e não da gente.
Ela, por sua vez, virando o rosto novamente, apertou os olhos em minha direção.
— É, mas não foi o destino que pegou na sua mãozinha e te obrigou a dar em cima da
garota, nos bilhetes, até que ela ficasse completamente curiosa e fosse atrás de descobrir quem
realmente estava escrevendo tudo aquilo.
Soprei o ar.
— Qual foi, mãe? Será que não ficou feliz que agora Victoria deixou de ser só sua enteada
e passou a ser a sua norinha?
Daisy ainda me encarou séria por alguns segundos, com os olhos semicerrados e um
jeitinho meio atravessado, até que, de repente...
— Ai, siiiim! Eu tô TÃO feliz! — simplesmente se desmontou inteira, super empolgada,
agarrando as minhas mãos. — Eu falei! Eu disse que ia dar certo! Eu disse que era só questão de
tempo pra vocês se entenderem!
Juro que não aguentei.
Comecei a rir.
— Mãe, você é muito louca.
— Você tem a quem puxar, querida — piscou para mim, divertida. — Mas, vai, me conta!
Me conta tudo! Eu quero saber de todos os detalhes! Victoria é finalmente a minha norinha
mesmo? — seu sorriso ia de orelha a orelha, gigante.
E, bem, eu também não pude deixar de sorrir feito uma idiota.
— Sim, mãe... Até que enfim estamos nos entendendo — respondi nas nuvens, como se
uma hora atrás eu não tivesse quase infartado de raiva por causa da Grace.
— Aaaa, que lindas! — e me chacoalhou inteira no banco do carro. — Sabe que eu vou ter
que separar vocês no trabalho, né? Mas, continuam sendo lindas do mesmo jeito!
— Será que não dá pra abrir uma exceçãozinha pra gente? — sorri amarelo, tentando
convencê-la mais uma vez. — Ninguém vai ficar sabendo que a nossa dupla foi descoberta antes
do tempo. Vai ser um segredinho só nosso, hã?
— Não mesmo, querida — retrucou. — Descobrir a dupla, antes do tempo, é um benefício
que pode tornar o trabalho muito mais simples do que já é. Ou seja, não posso abrir exceção
alguma. Se eu abrir para vocês, vou ter que abrir para todo mundo. E isso não vai rolar.
Soprei o ar.
— Droga, mãe. A Victoria vai entrar em pânico quando souber que não faremos mais o
trabalho juntas.
— Imagina. Ela é uma menina superinteligente. Tenho certeza de que ela vai dar um jeito
nisso. Inteligente, esforçada, linda, maravilhosa e, agora, minha nora! Aaaaa, eu tô tão feliz! Vai,
filha, me conta tudo! Eu quero saber!
Sorri de leve, ainda meio boba com sua empolgação engraçada.
— Se eu contar todos os detalhes, promete que me ajuda a sumir com a Grace e o filho da
puta do Ethan?
Ela riu.
— Querida, a última coisa com que você vai ter que se preocupar é com eles. Confio
muito no taco da filha que tenho. Depois de você, Victoria não vai dar chance para mais
ninguém.
NÃO SIRVO NEM PRA SER SAPATÃO

“Você teve um dia corrido hoje, me abrace forte”


Hold Me Closer | Elton John feat. Britney Spears

VICTORIA

Ter aquela conversa com o meu pai foi tudo o que eu precisei para voltar mais leve à
fraternidade. Eu ainda não tinha dito que a garota da história era a Rayka. Não fazia ideia de
como ele iria reagir ao descobrir que a pessoa por quem eu estava apaixonada era justamente a
filha da sua esposa, mas... Só de receber o seu apoio, naquele momento, era o bastante.
Eu me sentia a menina mais amada do mundo pelo pai.
Aliás, eu sempre me senti assim com ele, mas, principalmente, agora.
Quando pus os pés na fraternidade, já era de noite, por volta das sete horas. Porém, a
minha tranquilidade, graças à conversa com o meu pai, só durou até eu me lembrar de que, no
dia seguinte, no maldito dia seguinte, eu teria a porcaria do teste de literatura. E isso foi no exato
segundo em que atravessei a porta de entrada.
Droga, droga, droga, droga.
Um filete de suor, em puro nervosismo, se formou automaticamente na minha testa, ao me
dar conta de que eu só tinha me lembrado disso agora em plena sete horas da noite...! Faltando
sei lá, apenas algumas horas para que eu estivesse sentada com a bunda na cadeira da sala de
aula, enquanto era torturada por Shakespeare.
Argh!
Que inferno.
Por que essa disciplina não acabava logo?
Eu só queria um minuto de paz...!
Subi as escadas correndo, aos pulos. Fui direto para o meu quarto, nem falei com as
meninas. A minha cabeça agora só trabalhava em função da amnésia ridícula que me deu. Ou
melhor, do resultado terrível da minha amnésia. Eu precisava revisar tudo o que estudei com a
Rayka nos últimos dias e dar um jeito de meter aquilo dentro da cabeça, nem que eu precisasse
abrir o meu crânio.
Eu podia não ser mais exatamente aquela Victoria “perfeita”, mas também não admitiria
tão facilmente uma reprovação, porque isso já era demais.
Entrei no quarto, fechei a porta e não me dei nem ao trabalho de tirar a roupa para vestir
alguma coisa mais leve. Fui direto para a minha escrivaninha e me sentei, na mesma velocidade
do meu desespero por saber que o teste se aproximava de mim que nem o Ghostface do filme
Pânico.
Abri o caderno, o livro, o notebook e comecei a ler.
Sim, comecei a mastigar e a engolir cada um dos resumos que fiz, escrevi e digitei na
força do ódio.
Li, li, li, li, li.
Eu tinha que empurrar tudo para dentro do meu cérebro, de alguma maneira. Mesmo com
as trezentas aulas que Rayka me deu só naquela última semana, e mesmo que ela tivesse um dom
inexplicavelmente maravilhoso para ensinar, eu ainda não me sentia plenamente confiante. Eu
ainda estava com medo de entrar na sala e não saber escrever porcaria alguma nas questões.
Por isso, eu li que nem uma louca.
Na verdade, eu era mesmo louca. E parecia estar ainda pior com aquela disciplina de
Literatura e o iminente risco de reprovação.
No entanto...
Uns quinze minutos depois...
Como nada na minha vida parecia realmente funcionar direito, os meus olhos inúteis
começaram a pesar. Unhum, acreditem se quiser. Simplesmente assim. Eles simplesmente
começaram a pesar, como se tivessem o direito de se fechar logo agora! Que ódio!
Bufei comigo mesma, esticando bem as pálpebras e afirmando a visão no livro que meus
dedos apertavam sem pena, para que eu não enforcasse o meu próprio pescoço.
Suspirei e voltei a ler os sonetos super descomplicados e acessíveis de Shakespeare.
Porém...
Instante depois...
Lá estava eu, novamente, quase caindo em cima da escrivaninha e babando sobre o Sonho
de uma noite de verão.
Ai, que raiva.
Ou isso era algum tipo de sintoma de velhice precoce, ou a Literatura, de fato, me dava um
sono da porra. Honestamente, eu acreditava que era segunda opção, porque não aceitaria que,
com vinte e um anos e a bunda dura, eu já fosse considerada velha.
Dei um tapa na minha própria bochecha, esperando ficar ligada, e voltei à leitura, piscando
os olhos com força, na ilusão de que isso pudesse ajudar. No estado que eu estava, era capaz de
eu apelar para qualquer coisa, inclusive misturar café com Red Bull e Monster.
Sendo que eu odiava Red Bull e Monster.
Mas...
A minha ilusão só podia estar gigantesca mesmo, porque, menos de cinco minutos depois,
lá estava eu, me arreando que nem uma otária sobre os livros.
Só que aí, quando achei que eu definitivamente era um caso perdido e seria derrotada nos
quarenta e cinco do segundo tempo, pelo diabo de um sono terrível… O meu celular subitamente
tocou, no mesmo instante em que o primeiro ronco ia sair, indicando que uma mensagem tinha
acabado de chegar.
Me sobressaltei, de supetão, puxando o ar e, milagrosamente, me acordando daquele
marasmo de sonetos embaralhados na cabeça. Enfim, pisquei os olhos repetidas vezes me
sentindo um pouco mais esperta. Ah, graças a deusa! Um susto era tudo o que eu precisava.
E eu juro que nem ia parar para olhar o que poderia ser.
Provavelmente, era só mais alguma daquelas típicas mensagens de operadora.
Sempre era.
Porém, algo dentro de mim quis ter um pouco de consideração. Afinal, o que quer que
tivesse me salvado daquela apatia assombrosa, merecia um pouco de atenção.
Quando desbloqueei a tela do celular, no entanto, e vi quem realmente tinha me enviado a
mensagem, não precisei de mais do que meio segundo para sentir um sorriso enorme e idiota nos
meus lábios. Sim, eu só tive que ler meia dúzia de palavras suas para me transformar naquela
ameba imprestável. Algo que isso já estava se tornando comum de acontecer comigo, desde o
pôr-do-sol em Miami Beach e os nossos beijos.

“Chego à fraternidade em uns vinte minutinhos. Beijos, amor.”

Amor...
Amor.
Amor.
Amor.
Eu ainda não tinha me acostumado totalmente a ouvir ou ler essa desgraçada me
chamando de amor.
Era tão... Lindo.
Argh!
Miserável.
Inacreditável o quanto Rayka tinha capacidade de sempre me deixar muito mais imbecil
do que eu já estava por ela.
Entre as palavras daquela sua mensagem, porém, eu me lembrei de que, um dia atrás,
tínhamos comentado sobre fazer uma revisão juntas, para o teste de Literatura. Rayka estava
sumida, desde a hora do almoço.
Eu não fazia ideia de onde ela tinha se enfiado com a tia Daisy, mas esperava que ela
pudesse me ajudar, de alguma forma, a não surtar completamente por causa daquele teste,
quando aparecesse.
Enquanto isso, era melhor que eu continuasse tentando adiantar qualquer merda daquele
conteúdo, porque, senão, não teria ajuda da Rayka que desse jeito. Eu ia mesmo surtar. E, sim, eu
estava cansada de viver no limite dos meus estresses.
Tentando me concentrar pela milésima vez, coloquei o celular sobre a escrivaninha,
respirei fundo, como se estivesse me preparando para uma guerra, e tornei a fixar os meus olhos
em Romeu Montecchio e Julieta Capuleto.
Só que aí, quando eu menos esperei, um tiro invisível atingiu subitamente os meus
pensamentos. Enquanto o meu inconsciente ainda viajava por resquícios das lembranças de que
Rayka e eu deveríamos, agora mesmo, estar revisando o conteúdo juntas para o teste, eu me
recordei da nossa última aula. Sim, involuntariamente, os flashes começaram a pipocar na minha
cabeça, sem qualquer permissão minha.
E eles pareciam imparáveis.
Sua mão deslizando por entre as minhas coxas, no meio da sala de aula, passeando por
baixo da minha saia e... “Eu só paro, se você me disser que não tá gostoso”. Droga. A memória
sexual era uma vadia!
Para com isso, Victoria. Concentração.
Porém...
Incapaz de evitar, já eram seus dedos que invadiam a minha memória. Aliás, não apenas a
minha memória, mas também a minha calcinha. Eu podia senti-la me esfregando, mesmo que ela
nem estivesse ali. Involuntariamente, minhas pernas se fecharam, apertando e fazendo pressão na
minha boceta. Me contorci sobre a cadeira, só de me lembrar.
Que saco!
Agora já não era mais o sono, era a própria Rayka quem estava me desconcentrando de
Hamlet. Se eu continuasse assim, o F ia vir com força, dando um tapão na minha cara, junto com
a reprovação.
Merda.
Fiz o possível para focar a minha atenção no livro e no caderno, outra vez.
No entanto, foi a sua boca que me alcançou. E a maneira como me chupou, dentro do
carro. Seus lábios sugando os meus peitos, enquanto metia os dedos em mim. O jeito como eu
não conseguia evitar os meus gemidos cada vez mais altos, principalmente quando a ouvi falar
“Tem noção do que é isso? Eu estou comendo a garota dos meus sonhos” e...
Socorro.
Chega!
Chega, Victoria!
Bati com as duas mãos sobre a mesa da minha escrivaninha, largando o livro.
Definitivamente, aquele dia não foi feito para eu estudar. Ou melhor, aquela noite. E,
quanto mais eu tinha certeza disso, mais eu me desesperava com a certeza de que ia me ferrar
muito no teste.
Nada, absolutamente nada estava colaborando comigo. Nem mesmo a minha cabeça, que
parecia ter vida própria e agir do jeito como bem entendia, enquanto não parava de pensar nas
mãos dela, nos dedos, no olhar sacana. O jeito como abriu as minhas pernas, puxou a minha
calcinha e se esfregou em mim. Suas mãos puxando o meu corpete para baixo, seus olhos
admirando os meus peitos, como se fossem os mais bonitos que já tinha visto em toda a sua vida,
e a sua boca fazendo exatamente tudo o que sempre quis comigo.
Tudo o que eu também sempre quis que ela fizesse, mas tinha medo de dizer.
Minha boceta pulsando e...
Pelo amor da deusa das líderes de fraternidade mentalmente desequilibradas por uma
mulher gata e gostosa cujo nome é Rayka.
Eu podia sentir a minha calcinha já molhada.
Molhada do jeito como ela me deixou no carro.
O que significava?
Falta de sexo ou loucura.
Franzi o cenho para mim mesma.
Aliás...
Repentinamente, parei. Sim, meu corpo retesou, quando uma súbita e inesperada pergunta
preencheu todos meus pensamentos que, até meio minuto atrás, estavam recheados de
lembranças para maiores de dezoito anos. Bem, não que aquela pergunta não tivesse a ver com a
minha sórdida memória sexual, porque, sim, tinha a ver sim.
Só que, dessa vez, foi uma exclamação que se acendeu sobre a minha cabeça, em vez de
várias frases seguidas de reticências abarrotadas de tesão.
Ou melhor, foi um ponto de interrogação. Um questionamento súbito, forte, rápido e
certeiro, que me surpreendeu com tamanha intensidade.
Como era transar com uma mulher?
Ofeguei, quase assustada com o rumo dos meus pensamentos e, principalmente, com a
minha incapacidade de pará-los.
Inclusive...
O que fizemos dentro daquele carro, poderia ser considerado como sexo?
Minhas sobrancelhas prontamente arquearam, enquanto a minha cabeça, quase frenética,
passou a assimilar uma quantidade absurda de pensamentos ao mesmo tempo. Foi quando a
curiosidade me tomou.
Sim, aquela curiosidade indomável.
Algo ainda quis me parar, sussurrando na minha consciência que tudo isso poderia ser uma
grande bobagem minha. Afinal, quando eu tivesse que saber como o sexo acontecia, eu saberia,
mas... Sempre que esse tipo muito específico de curiosidade me tomava, eu não conseguia parar.
Sim, eu já me conhecia o suficiente para saber disso. Eu sempre ia até o fim, quando me pegava
curiosa desse jeito, assim como não descansei, naquela época, até descobrir quem era Maverick.
Eu. Era. Curiosa. Demais.
Por isso, incapaz de controlar minhas próprias ações, desbloqueei o notebook e acessei o
Google, guiada por uma súbita vontade de conhecer o novo. Por mais que eu sempre tivesse
sentido muito medo de sair da minha zona de conforto, ultimamente era o novo, o desconhecido,
que despertava a minha empolgação.
Quando eu encarei a barra de pesquisa e ela também me encarou de volta, porém, não
soube exatamente o que digitar. Eu nunca tinha feito esse tipo de coisa. Nunca busquei muitas
informações sobre sexo, nem mesmo sexo heterossexual entre pessoas cisgênero. Tudo o que eu
sabia do assunto era o que eu tinha aprendido na escola ou o que a minha avó, com os seus
costumes do século XV, tinha me ensinado.
Victoria Perfeita Peterson se achava boa demais para esse tipo de coisa. Não era elegante,
afinal. Aliás, Victoria Perfeita Peterson era idiota o bastante para julgar várias coisas importantes
como deselegantes.
No entanto, as coisas não estavam como antes.
Aquela menina que agora morava dentro de mim era muito mais curiosa do que a outra.
Curiosa e louca por uma garota.
Com o coração meio acelerado em um nervosismo que eu nem entendia muito bem, digitei
“sexo entre garotas”. Ainda que eu não tivesse a menor noção de como começar, era esse o
primeiro termo que aparecia na cabeça. Se estava certo ou errado pesquisar assim, eu não fazia
ideia, mas, fui em frente.
Foi então que uma infinidade de páginas surgiu bem nas minhas fuças. Páginas dos mais
diversos tipos e conteúdos, incluindo vídeos. Havia muitos vídeos. Vários deles com títulos
muito esquisitos.
Eu não entendia nada disso, mas, sem experiência nesse tipo de pesquisa e sem saber o
que esperar, cliquei no primeiro que eu vi pela frente.
Meu queixo despencou, quando eu me dei conta do que era. E, bem, eu não precisei de
mais do que meio segundo para perceber, porque o vídeo já começava no meio do ato. Eram
duas mulheres, literalmente numa cama. Instintivamente, coloquei uma das mãos sobre a boca,
em choque. Meus olhos nem piscavam, tamanho torpor.
Minha consciência ainda quis me fazer fechar a página no mesmo milésimo em que eu
notei do que se tratava. Eu nunca tinha assistido pornô entre mulheres. Na verdade, eu nunca
tinha assistido pornô, nem entre um homem e uma mulher.
Quero dizer...
Talvez eu tivesse assistido uma ou duas vezes, em toda a minha vida, um pornô hétero,
mas foi só isso mesmo. E eu certamente saí dos vídeos dois minutos depois de entrar, porque
sempre achei muito nojenta e bizarra a ideia de observar pessoas transando. Aquela Victoria era
perfeita demais para isso.
Acontece que, agora, mesmo sabendo que eu também deveria fechar aquele negócio e sair
dali, eu poderia estar sentindo tudo, um nervosismo bizarro, o coração acelerado, ou mesmo a
consciência pesada por algum motivo, menos nojo. Tudo, tudo, tudo, menos nojo daquelas duas
mulheres.
Isso era esquisito demais. Sim, era. Mas, alguma parte do meu consciente ou do meu
inconsciente não estava me deixando agir com a razão. Fiquei vidrada naquilo. Simplesmente,
vidrada.
Vi o momento em que uma delas abriu as pernas da outra e se enfiou no meio. Com a
boca, ela lambia e chupava a boceta da garota que se contorcia sobre a cama, fazendo caras e
bocas completamente safadas. Eu salivei, sem querer. Juro que salivei. Meu coração acelerou,
mesmo sabendo que era melhor eu parar com isso.
Eu, no entanto, não conseguia tirar a porcaria dos meus olhos da tela, especialmente
quando a câmera focava no clitóris da outra bem durinho. Porra. Eu estava sem ar, sei lá. A pele
do meu rosto queimava. E quanto mais a mulher chupava, mais ofegante eu ficava.
Aquilo parecia tão... Gostoso.
Nessa altura, eu já não sabia se a minha calcinha molhada era só das lembranças da Rayka,
ou se também tinha alguma coisa a ver com aquele vídeo.
Porém, tudo se tornou ainda mais intenso quando aquela que estava chupando esticou
ainda mais as pernas da outra, de uma maneira como eu jamais poderia acreditar que era
possível, e se posicionou bem em cima. As bocetas delas se tocaram e os meus olhos dobraram
de tamanho. Se antes eu estava com o coração acelerado, agora ele tinha subido para a minha
boca.
No instante em que elas começaram a rebolar uma na outra, deixando a câmera filmar
perfeitamente as bocetas deslizando, foi a minha que pulsou. E eu juro, juro, juro, que se eu
estivesse plenamente consciente, não me permitiria ficar assim só por causa de um pornô
ridículo, mas... Quem eu via ali, já não era mais aquelas mulheres, era... Rayka e eu.
Droga...
Cruzei minhas pernas, apertando-as involuntariamente, na tentativa de aplacar as minhas
reações. Entretanto, quando, enfim, me sobreveio um pensamento alto e uma vontade insana de
tocar a mim mesma, coisa que eu quase nunca fazia, as duas mulheres começaram a gemer alto
e...
— Ah, até que enfim cheguei!
A porta do meu quarto subitamente abriu.
Rayka apareceu.
Eu dei um PULO.
Juro que eu dei um imenso e monumental pulo de susto, quase assim um salto mortal,
baixando a tela do notebook no mesmo milésimo e torcendo para que nenhum daqueles gemidos
nada discretos escapassem pelas caixinhas de som.
Ela, no entanto, franziu o cenho, dando-me um sorrisinho meio confuso, ao fechar a porta
e notar o estado que eu estava. Eu não tinha a menor dúvida de que o meu rosto parecia uma
completa confusão de susto misturado com tesão, por mais que eu tentasse voltar ao normal.
— Quê que cê tava fazendo? — se aproximou.
— Na-Nada... Nada. Nossa, você me assustou! — coloquei a mão no coração, fazendo o
possível para voltar a respirar direito.
Foi quando o seu semblante mudou de confuso para esperto. E, então, com aquele
sorrisinho sacana que sempre me matava um milhão de vezes seguidas, me deu um pequeno
beijo e disse:
— Desculpa, amor... Não foi minha intenção. Eu não sabia que você estava vendo pornô.
QUÊ?
Subitamente, fiquei vermelha, bege, azul, rosa, todas as cores.
— Eu não estava vendo pornô! — exclamei, aturdida, quase como num mecanismo de
defesa instintivo, mas falho.
O jeito esganiçado como a minha voz saiu, não me deixava mentir. Ele entregava
direitinho o que eu estava fazendo.
Saco.
— Unhum, tá bom... — respondeu ela, ao puxar uma cadeira, sentando-se ao meu lado,
arteira, como quem não se convencia do que eu tinha dito.
— E você? O que tava fazendo? — tentei mudar de assunto, enquanto o meu coração se
acalmava. — Sumiu.
— Ficou com saudade? — ergueu uma das sobrancelhas para mim, safada.
Rolei os olhos de leve, sorrindo para o seu convencimento.
— Só um pouquinho, quase nada — brinquei.
Ela soltou uma risadinha.
— Tá, eu digo, mas... Não antes de você. — e, então, para quem estava com ares de
brincadeira até meio minuto atrás, seu olhar, de repente, se tornou um pouco mais sério. — Me
conta, Vic... O que a sua avó queria naquela hora? Eu passei o dia inteiro com isso na cabeça,
principalmente porque eu sei que você tava chorando.
Suspirei, meio resignada.
Não teve jeito, apenas este comentário foi o suficiente para que a vergonha do pornô desse
o fora. Entendi a razão do seu semblante mudar. De súbito, todos os meus pensamentos foram
tragados para o momento em que a minha avó apertava o meu braço e tentava me convencer das
suas vontades.
— Olha, é bobagem... — balancei a cabeça, baixando o olhar. — Não precisa se
preocupar. Eu não quero falar sobre isso.
— Vic, por favor… — deslizou a cadeira de rodinhas, chegando ainda mais perto de mim,
e segurou minhas mãos. — Estamos juntas agora. Eu me preocupo, sim, com você. Com a gente.
Foi quando eu ergui o olhar para ela, outra vez.
Era impossível não querer encarar as orbes da pessoa que sempre conseguia pronunciar
algumas das palavras bonitas que eu já ouvi. E, bem, não eram só palavras. Era o significado e o
sentido que eu percebia por trás de cada uma delas.
Como a boba que eu estava me tornando nos últimos tempos, os meus olhos
inevitavelmente brilharam, enquanto a minha cabeça repetia por várias vezes aquilo.
Estamos juntas agora.
Eu me preocupo, sim, com você.
Com a gente.
Existia tanta sinceridade que, se eu pudesse, pediria a ela para dizer isso a mim todos os
minutos, pelo resto da vida, só para que eu experimentasse essa mesma sensação gostosa que
sentia no peito agora.
Puxei o ar de leve, segura por estar com ela.
— A minha avó disse que... — eu nem sabia direito como pronunciar essas palavras de
tão ruim que elas eram. — Ela disse que era para eu encerrar qualquer coisa que esteja
acontecendo entre nós.
Percebi quando Rayka prendeu o ar.
Seu corpo até retesou, e, receosa, ela me encarou.
— Você vai... Fazer isso?
Existia temor no seu tom.
Balancei a cabeça, enfim sem a menor dúvida do que eu queria.
Eu a queria.
Escolhi ficar com ela desde o dia do pôr-do-sol em Miami Beach e manteria a minha
decisão, porque era isso o que eu queria. E, a cada dia, eu estava mais convencida de que
qualquer rumo da nossa relação teria de ser decidido por nós duas, apenas nós duas e mais
ninguém.
— Não, eu não vou fazer isso.
Foi quando ela subitamente soltou todo o ar que prendeu.
— Graças a Deus... — e, então, deslizando a cadeira de rodinhas outra vez, se aproximou
ainda mais de mim e me abraçou.
Fechei os olhos, sorvendo a sensação maravilhosa que os seus braços sempre me
causaram, até quando nós ainda não estávamos juntas. Eles sempre foram pontos fracos para
mim. E algo me dizia que sempre seriam.
— Foram sete anos, Vic. Sete anos. — completou ela. — Não quero te perder logo agora
que as coisas finalmente estão acontecendo entre nós.
Me afastei do seu abraço gostoso, somente o suficiente para encará-la nos olhos, e, com a
certeza do que eu dizia, respondi:
— Não se preocupe. Você não vai.
Ela sorriu para mim, seus olhos tão adoravelmente felizes.
— Estou muito orgulhosa de você. Tem se tornado a garota mais corajosa que eu já
conheci.
E eu sorri de volta para ela, milagrosamente satisfeita comigo mesma, por um motivo que
jamais imaginei. Se eu antes eu ficava orgulhosa quando chegava perto de alcançar a tal
perfeição, agora estava satisfeita de chegar cada vez mais perto da coragem.
— Obrigada... Também estou orgulhosa de mim mesma.
Encantadora, ela me beijou, deslizando carinhosamente as suas mãos pelo meu rosto e
pelo pescoço. Suspirei contra os seus lábios. Isso era o suficiente para deixar todos os pelos dos
meus braços arrepiados. Nada no mundo se comparava às sensações que ela causava em mim
com detalhes aparentemente tão pequenos.
No entanto, instantes depois, Rayka pausou brevemente e falou:
— Agora, sou eu que preciso te dizer uma coisa importante.
— O quê?
— Tem a ver com o fato de eu ter sumido com a minha mãe depois do almoço.
Franzi o cenho. A curiosidade já despontava em mim.
— Pode falar — me ajeitei sobre a cadeira, para encará-la melhor.
Rayka suspirou e, então, disse:
— Ela descobriu.
Minha testa se enrugou ainda mais.
— O quê? Quem descobriu o quê?
— Minha mãe descobriu que você já sabe que Maverick sou eu.
Pera aí.
Como é que é?
Eu gelei, congelei, sei lá. Fiquei de todas as cores!
Foi como se um repentino buraco tivesse se aberto sob os meus pés e eu me visse caindo...
Caindo, que nem uma louca, rumo ao gigantesco e vermelho fundo do poço do F.
— Ah, não! — me levantei bruscamente, levando as mãos à cabeça, num iminente
desespero. Aliás, iminente não. Eu já estava desesperada mesmo! — Eu vou reprovar! Não vou
conseguir fazer a porcaria desse trabalho sozinha! — e comecei a vergonhosamente choramingar,
enquanto, desolada, andava de um lado para o outro do quarto. — Eu vou reprovar!
— Amor... Amor... Calma.
Rayka se levantou, tentando me parar.
Eu, porém, continuei, ainda cega pelo drama.
— E, pra completar, amanhã ainda tem o maldito teste que eu nem consegui revisar nada!
Meu Deus, eu vou tirar um grande e terrível F! Rayka... — teatralmente, agarrei os seus braços,
esbugalhando os olhos em sua direção, ao parar no meio do quarto e virar para ela, que ainda
tentava me tranquilizar. — Eu tô muito fodida!
Ela suspirou.
Um sorrisinho parecia querer nascer nos cantinhos da sua boca.
— Primeiro, acho que a boneca está falando muito palavrão ultimamente... Aprendeu com
quem? Comigo? — soltou uma risadinha de leve. — Segundo, vem cá. — e me puxou pela mão
até a cama, colocando-me sentada sobre o colchão logo em seguida.
Franzi o cenho, sem entender.
— O que você tá fazendo?
Ela, no entanto, sem me responder, se abaixou, ajoelhando-se bem na minha frente e,
então, com cuidado e carinho, tirou as minhas sandálias e começou a fazer massagem nos meus
pés.
Ah, isso era um golpe baixo.
Soltei todo o ar pesado e preso nos meus pulmões, enquanto inevitavelmente fechava os
olhos e sorvia a sensação indescritível das suas mãos apertando os meus pés com tanta
habilidade. Deixei minha cabeça pender para trás, com o bizarro relaxamento instantâneo que
isso me causou.
Que diabos essa menina tinha nos dedos?
A desgraçada era boa até fazendo massagem.
Aliás, o que ela não sabia fazer, né? Aparentemente, ela sabia de tudo.
— Olha só, meu amor... — foi quando, enfim, falou, levantando-se em seguida, enquanto
me puxava mais para cima da cama e se deitava ao meu lado. Deixando as suas costas apoiadas
no travesseiro e a minha cabeça sobre o seu peito, ela continuou. — Primeiro, tudo o que você
precisa saber para o teste de amanhã, já está dentro da sua cabeça. Nós estudamos vários dias
seguidos. Você não precisa se desesperar ou virar a noite inteira revisando o conteúdo. Isso só
vai te deixar cansada para a prova. Não faça isso. Segundo, eu ainda vou te ajudar com o
trabalho final da disciplina, mesmo que a gente não seja mais uma dupla oficialmente. Está bem?
Fique tranquila.
— Mas... — ofeguei, tentando falar novamente.
As coisas ainda não estavam simplesmente resolvidas assim na minha cabeça, como
pareciam estar na dela.
Porém...
— Confie em mim, Victoria — ela me interrompeu, puxando o meu queixo para encará-la
nos olhos. — Você confia?
Suspirei.
Eu não podia mentir.
Eu me sentia segura com ela, até quando queria me desesperar com alguma coisa. Rayka
sempre me passou uma sensação de proteção, antes mesmo de estarmos juntas, eu só nunca tinha
admitido isso. Então, mesmo que o meu coração quisesse se inquietar a cada vez que eu me
lembrava daquela disciplina, eu também não podia mentir agora. Eu tinha prometido a mim
mesma que nunca mais mentiria para ela sobre qualquer coisa.
Portanto...
Meneei a cabeça em uma afirmação, fitando o fundo das suas orbes.
— Eu confio.
E o sorriso que ela me deu foi brilhantemente lindo.
Parecia tão feliz e satisfeita com a minha resposta.
— Ótimo — respondeu.
Deslizando, então, a sua mão do meu queixo para o meu pescoço, me puxou para um
beijo. Um beijo que eu não demorei um segundo sequer a ceder. Era como um ímã, realmente a
merda de um ímã, que me atraía para ela em quaisquer circunstâncias. Até mesmo quando a
minha cabeça estava cheia de estresse e preocupação. Aquela garota parecia ter a estranha
capacidade de me fazer esquecer tudo, só de chegar perto de mim e me beijar assim.
Em pouco tempo, aquilo que começou com um pequeno selinho foi se transformando em
algo maior e mais intenso. Sua mão, que antes me segurava pelo pescoço, desceu até a minha
cintura e apertou, puxando-me gradativamente mais para cima dela. E quanto mais o beijo se
aprofundava, mais eu realmente ia para cima dela. Por um instante, percebi a minha respiração
ficando pesada. Ainda pausei por dois segundos, para observá-la. A desgraçada parecia tão
atraente com o rosto corado de tesão. Sendo que ela já era atraente pra caralho, sem nem estar
excitada.
Droga.
Como alguém nascia só uma vez e ainda vinha ao mundo assim?
Tornei a beijá-la com todo o desejo que excedia de mim. Ele parecia subir pela minha
garganta e extrapolar por cada poro da minha pele. Eu nunca, nunca desejei tanto alguém como
eu desejava essa menina. E, agora, finalmente isso já não me assustava mais. Beijá-la era como
me saciar. Ou melhor, era como se a minha vida inteira fizesse sentido.
Agora eu entendia a razão de sempre ter reparado nela mais que o normal, ou de sempre
ter sentido um ciúme irracional quando eu a via com alguém, ou mesmo de ter notado o meu
coração bater mais forte no dia em que eu a conheci na casa de praia em Jacksonville. Era por
isso. Por causa de tudo isso. Era porque, mais cedo ou mais tarde, a gente tinha que acontecer.
Percebi quando as suas mãos safadas desceram da minha cintura e pararam no cós da saia
que eu usava, forçando-o levemente para baixo. Eu não precisei de mais do que isso para
entender o que ela queria. Se Rayka não enfiou as mãos por baixo da roupa, era porque, dessa
vez, queria tirá-la por completo. E, bem, eu não estava mais em posição de me fingir de santa,
como quem não desejava que esse tipo de coisa acontecesse.
Eu queria sim.
Aquele beijo era só a ponta de um iceberg enorme, que se formou com as lembranças da
nossa última aula e com aquele maldito vídeo.
Eu bem que poderia sentir alguma timidez de ficar só de calcinha na sua frente, mas,
honestamente, depois do que fizemos no banco traseiro daquele carro, talvez não existisse mais
vergonha entre nós. Talvez. Ou, pelo menos, não disso. Se antes as coisas já estavam intensas,
depois do carro elas se tornaram ainda mais.
E eu só queria ver onde a gente ia dar, ainda que não tivesse a menor ideia do destino.
Minha calcinha ainda estava úmida. Agora, no entanto, ela molhava muito mais.
Deixei que Rayka puxasse a minha saia para baixo. Fiquei apenas com um cropped
curtinho cobrindo os peitos. A minha calcinha era minúscula, e o seu rosto absolutamente
admirado, com o meu corpo, foi impagável. Diferente da escuridão no carro, agora ela podia me
ver por completo, graças à iluminação do quarto. E eu juro que me senti a mulher mais gostosa
do planeta, só com o seu olhar.
Isso foi incrivelmente satisfatório.
Só que mais satisfatório do que isso foi quando ela, como se não pudesse mais se
controlar, partiu para cima de mim. Encaixando-se entre as minhas pernas, na cama, Rayka me
beijava com força, chupando os meus lábios e lambendo o meu pescoço, enquanto dizia:
— Você me deixa toda perturbada... Não tem ideia da quantidade de coisas que eu
imaginei fazer contigo, agora, só de te ver de calcinha, com a boceta toda pra mim.
— E por que não faz?
Quando dei por mim, como se tivessem vida própria, as palavras simplesmente saltaram
da minha boca. Talvez os seus beijos estivessem me deixando aérea demais. Até me espantei
comigo mesma, por um breve segundo, mas não o suficiente para parar o ato.
Rayka, entretanto, logo se encarregou de me desligar de qualquer coisa e pensar somente
nela, no momento em que sorriu sacana para mim, ao ouvir o que eu tinha acabado de dizer. Era
como se eu tivesse cantado uma música muito gostosa nos seus ouvidos, tamanha satisfação no
seu rosto.
Só que aí, quando achei que não ficaria mais embasbacada com nada em relação a nós
duas, percebi que estava completamente enganada. E eu tive a certeza absoluta disso no exato
instante em que, ainda sacana por ouvir a minha resposta, ela se levantou da cama, por um
segundo, e simplesmente, simplesmente tirou a roupa bem na minha frente.
Se livrou da sua blusa de moletom e da calça larga que usava, revelando o corpo
impressionante por baixo, que pouco dava para perceber com as roupas frouxas que vestia. A
barriga definida, graças aos abdominais que eu tinha certeza de que ela fazia todos os dias de
manhã, antes de ir para a universidade. As pernas bonitas, os peitos pequenos por baixo do top, a
bunda redondinha dentro daquela calcinha boxer. Os braços tatuados. E, claro, aquela serpente
maldita tatuada desde os seios, passando pela cintura e terminando lá perto da sua boceta.
Engoli seco, salivando sem querer.
Porém, foi quando ela subiu em cima de mim de novo, me beijando outra vez, enquanto
tirava sua própria calcinha boxer, que eu quase paralisei.
Sim, paralisei.
Ou melhor, eu me dei conta.
A ficha simplesmente caiu, ao percebê-la segurar a minha mão e levá-la sutilmente em
direção a sua... Boceta.
Minha deusa das líderes de fraternidade inexperientes, sapatonicamente falando... A
gente... A gente estava quase transando? Ou... A gente ia transar? Isso era sexo? O sexo
propriamente dito? Ou um pré-sexo?
Meu queixo despencou, por um segundo, especialmente quando a minha mão, guiada por
ela, de fato alcançou a sua boceta. Ofeguei, sentindo tremeliques nas pontinhas dos meus dedos,
e baixei o olhar. Puta que… Era linda. Absolutamente linda. E estava tão molhada quanto eu.
Gostosa.
Eu nunca tinha pensado sobre a boceta de mulher alguma, nesses termos. Não mesmo. Na
verdade, eu nunca tinha reparado ou realmente visto outra boceta que não fosse a minha, por esse
ângulo. Essa era a primeira vez. Só que dentre tudo o que poderia me assustar, isso não me
assustava. O que na verdade estava me tirando dos trilhos, além do meu enorme desejo por ela,
era outra coisa.
A minha inexperiência.
Foi quando Rayka guiou os meus dedos para dentro do seu sexo, que o meu corpo
subitamente retesou. Arfei, numa mistura de excitação e tensão. Ela percebeu. Percebeu tanto
que parou por um instante, me encarando com certa preocupação, mesmo que o seu rosto
continuasse coberto de tesão.
— Está tudo bem? Está com medo? — perguntou.
Não consegui responder com palavras. A minha respiração estava muito desregulada para
isso. Apenas meneei a cabeça com um não, ao fitar os seus olhos.
O que eu estava sentindo não era exatamente medo, e muito menos falta de vontade.
Certamente, não era por falta de vontade. Muito pelo contrário. Desde o que aconteceu no carro,
eu só ficava pensando em quando seriam as próximas vezes que a gente faria coisas daquele tipo
de novo. Agora, porém, talvez... Talvez o que eu estivesse sentindo fosse... Insegurança.
Sim, insegurança, por mais segura que eu sempre me sentisse com ela.
Essa insegurança, no entanto, não era por causa dela. Era por minha causa mesmo e pela
minha inaptidão com isso. Eu não tinha dúvidas de que a minha falta de experiência com
mulheres estava estampada no meu rosto. Na real, se eu já não era exatamente experiente com
homens, quanto mais com mulheres.
Isto, de alguma forma, me envergonhava. Eu poderia não sentir vergonha de ficar nua ou
só de calcinha na frente dela, mas a minha inexperiência me deixava seriamente tímida.
Tipo assim...
Como eu ia fazer nela as mesmas coisas que ela fazia em mim?
Como eu demonstraria tanta habilidade sem ter?
Como provocar nela o mesmo prazer gostoso que ela me causava?
Eu não queria decepcioná-la. Não queria que ela achasse ruim. Eu queria fazer direito,
mesmo sem nem saber para onde ir. Era confuso sim, mas era isso o que eu estava pensando.
Eram esses os pensamentos que me deixavam seriamente zonza, confusa e preocupada.
Ainda assim, falei:
— Continua, Rayka. Continua, por favor.
Seu cenho franziu de leve.
— Tem certeza de que não quer que eu pare? Não tem problema algum pra mim.
Balancei a cabeça outra vez.
— Não... Me mostra o que podemos fazer juntas.
Eu juro que não sabia o que eu estava fazendo da minha vida. Aliás, eu não tinha ideia do
que nós estávamos fazendo ali. Não sabia o que isso significava, se era sexo ou só pegação. Não
tinha certeza de onde isso ia dar.
Eu só sabia que, mesmo absolutamente insegura com a minha capacidade de dar prazer a
ela, eu queria continuar.
— Tudo bem... Mas, qualquer coisa, você me fala, tá?
Concordei, encarando os seus olhos.
E, mais uma vez, ela me deu um daqueles seus sorrisos.
— Me toque, Victoria... Assim... — e guiou a minha mão para o seu sexo outra vez.
Arfei e pedi:
— Me mostre...
Rayka, então, guiou os meus dedos por ali, fazendo-me senti-la por entre os grandes
lábios, depois os pequenos lábios, e, enfim, meu indicador alcançou o seu clitóris, começando a
esfregá-lo no ritmo em que ela mesma ditava.
Molhada, tão incrivelmente molhada.
Tão molhada quanto eu também estava.
Minha respiração pesada acompanhava a sua, especialmente quando ela, mordendo o
próprio lábio inferior, fechou os olhos, puxou o ar e pendeu a cabeça para trás. Seu rosto estava
claramente tomado pelo prazer que o toque lhe causava. Meus lábios se entreabriram, apreciando
a visão perfeita de senti-la se contorcendo em mim, por causa dos meus dedos. E eu quis ficar
feliz. Sim, eu quis ficar muito feliz, porque eram os meus dedos, na sua boceta, lhe provocando
sensações, mesmo que fosse ela comandando o ritmo com a mão sobre a minha.
No entanto, em dado momento, toda a breve tranquilidade que eu senti, por ver as coisas
dando certo, se esvaiu, quando ela soltou a minha mão e disse:
— Me toque do jeito como você se toca.
Pera aí.
Do jeito como eu me toco?
Meu coração acelerou, mesmo sem querer. E, repentinamente, eu me senti nervosa outra
vez, enquanto as suas palavras se repetiam na minha cabeça: me toque do jeito como você se
toca, me toque do jeito como você se toca, me toque do jeito como você se toca.
O problema era ESSE.
Eu não me tocava, nem nunca toquei uma garota.
Quero dizer...
Eram raríssimas, raríssimas mesmo as vezes em que eu me tocava. Em toda a minha vida,
eu quase nunca fiz isso. Victoria Perfeita Peterson achava isso deselegante demais para os seus
padrões. Juro que eu só apelava para a masturbação quando estava realmente a ponto de subir
pelas paredes. E isso definitivamente aconteceu pouquíssimas vezes comigo, tipo quando
“Maverick” me escreveu sacanagens nas cartas e eu fiquei meio perturbada.
Isso era a exceção, e não a regra.
Eu praticamente não tinha experiências nem sozinha, comigo mesma.
Minha deusa, eu era uma completa negação sexualmente falando!
Senti o coração acelerar em puro nervosismo, mas, ainda assim, engolindo a seco, fiz o
possível para tentar e continuar.
Agora, sendo eu a única responsável pelo toque, me esforcei para manter o ritmo que, há
pouco, ela tinha me mostrado. Deslizei ainda mais os meus dedos nela, me concentrando para
não agir feito um macho que não sabia nem encontrar o clitóris de uma mulher.
Por um instante, isso não pareceu real. Eu não estava assustada. Mesmo com medo de não
saber fazer as coisas direito, eu não estava assustada com o ato em si. Ainda assim, era como se
eu estivesse sonhando, ou sei lá. Eu nunca tinha me imaginado tocando garota alguma. Aliás, eu
nunca pensei que um dia estaria masturbando Rayka desse jeito.
Era diferente, novo, mas muito, muito gostoso, apesar da minha pouca habilidade.
Em dado momento, porém, não soube exatamente o que houve. Não fazia ideia se eu tinha
me empolgado demais ou se era realmente apenas a minha completa burrice sexual, mas...
— Au! — Rayka subitamente exclamou.
Me assustei.
— Ai, me desculpe!
E um automático filete de suor de nervosismo quis escorrer pela minha testa.
Ela, no entanto, suspirando, sorriu para mim e balançou a cabeça de leve.
— Está tudo bem, meu amor. Não se preocupe. Você só está colocando mais força do que
realmente precisa. É só deixar a mão um pouco mais leve, tá?
Juro que, mesmo ela falando para eu não me preocupar, senti quando as minhas bochechas
queimaram de pura vergonha.
— Me desculpe, eu... — lamuriei.
Ela, no entanto...
— Meu amor, você está ótima fazendo isso — me interrompeu de pronto, devolvendo. —
De verdade. É só deixar a mão um pouco mais leve.
Suspirei, meio receosa.
— Tem certeza?
— Unhum, tenho!
— Tá legal...
E continuei.
Ou, pelo menos, tentei continuar, fazendo o possível para deixar aquilo, de fato,
minimamente gostoso para ela. Eu queria dar prazer a ela. Queria fazer as coisas direito. Queria
que ela sentisse prazer comigo do mesmo jeito que eu sentia com ela. E eu juro que me esforcei
para isso, mesmo tendo um total de zero noção sobre como dosar o peso na mão, para que não
fosse nem muito leve, nem muito forte.
Só que aí, repentinamente, vozes de insegurança começaram a atormentar a minha cabeça,
sem que eu pudesse evitar.
Eu até tentava calar tudo aquilo, mas... Parecia impossível. Completamente impossível.
Quanto mais eu sufocava as vozes, mais alto as perguntas soavam na minha consciência.
E se ela estivesse mentindo pra mim?
E se ela estivesse fingindo que estava gostando só para não me deixar triste?
E se ela estivesse contando os segundos para que isso acabasse logo?
ARGH!
Por que a minha cabeça era assim?
Parei.
Simplesmente parei, confusa, desolada e com raiva de mim mesma por não ser capaz de
controlar os meus pensamentos malucos.
E, então, ofegante não de tesão, mas de pura desilusão com as minhas próprias
capacidades, ou melhor, incapacidades, de súbito, me joguei sobre o colchão, lamuriando:
— Aaaai, eu sou horrível! Eu sou péssima nisso! Eu tenho certeza que você deve tá
odiando, que saaaco!
Rayka, por sua vez, entortou subitamente as duas sobrancelhas em minha direção,
jogando-se ao meu lado, logo em seguida.
— Amor? A-Amor? — de pronto, segurou o meu rosto com as duas mãos, encarando os
meus olhos fixamente, como se estivesse tentando entender. — Pera aí. Do que você tá falando?
Como assim?
— Eu tô dizendo que sou péssima nesse negócio. Eu tenho certeza que você tava odiando.
Se eu já tenho um total de zero habilidades em me masturbar, quanto mais pegar assim em outra
pessoa, sabe? Eu tenho vergonha de ser tão inexperiente! — lamuriei outra vez. — Quero te dar
prazer, mas tenho certeza de que sou uma negação.
Sua testa enrugou ainda mais, enquanto ainda me encarava confusa.
— Amor... — com os olhos grudados nos meus, replicou. — Você estava me dando
prazer.
Dessa vez, foi o meu cenho que franziu.
— Estava?
— Sim! — balançou a cabeça veemente. — Tem que parar de ser tão insegura, meu amor.
Eu estava adorando. Claro que, com tempo, a gente vai se entender ainda melhor na cama, mas já
estava ótimo.
Soprei o ar, rolando os olhos de leve.
— Eu já me entendo perfeitamente com você — respondi. — O problema não é quando
você faz. Tudo o que você faz é maravilhoso, incrível. O problema é quando eu faço. Nunca fiz
esse tipo de coisa com mulher e poucas foram as vezes em que eu mesma me toquei. Eu sou
meio... Inexperiente, sabe? Com tudo. — senti minhas bochechas corarem só de dizer isso. —
Não tenho muita confiança no que eu sei fazer. Ou melhor, no que eu acho que sei fazer.
Ela, por sua vez, suavizou o semblante, ao suspirar, e, então, me encarando com todo o
carinho, deixou que um pequeno sorriso nascesse nos seus lábios, enquanto deslizava
suavemente os dedos pelo meu rosto.
— A única pergunta que tenho a te fazer é: está satisfeita com a gente?
— Muito — respondi sem pensar duas vezes. Era uma das coisas que eu mais tinha certeza
na vida. — Nunca estive tão satisfeita com alguém como estou com você.
E o sorriso que ela me deu foi ainda mais brilhante.
— Então, tenha paciência, meu amor. Eu prometo a você que é só questão de jeito, de
prática. Com o tempo, a gente vai até plantar bananeira enquanto transa — brincou.
E eu ri de leve, incapaz de segurar.
Só ela mesmo para me fazer rir em um momento assim.
Rayka era inacreditável.
Muito mais do que um dia eu pude imaginar.
— Você gosta de quando eu faço? — completou ela.
Um arzinho de sacanagem começando a aparecer no seu tom e no seu rosto de novo.
— Eu amo.
E eu não precisava pensar mais que meio segundo para responder isso.
Existia total sinceridade em cada uma das letras dessa pequena frase.
Rayka, aparentemente, aprovou o que ouviu, porque, safada, deslizou as mãos para dentro
da minha calcinha.
Foi inevitável.
Arfei de automático, fechando os olhos. Eu já não tinha a menor dúvida de que aquela
desgraçada tinha algum tipo de poder nas pontas dos dedos. Um poder que não apenas me
deixava excitada, como em um passe de mágica, mas também que me fazia esquecer de coisas
que me atormentavam um minuto atrás. Era sempre assim.
Sempre.
Em qualquer ocasião que eu pudesse estar preocupada, ela sempre conseguia me distrair
com os seus dedos, suas mãos, seus lábios, seu corpo.
Ser a garota da Rayka tinha dessas.
Aliás, eu adorava esse termo “a garota da Rayka”.
Sortuda eu? Imagina.
Esfregando-se em mim, como toda a habilidade que só ela tinha, me estimulava enquanto
beijava a minha boca, lambia o meu pescoço e mordia o lóbulo da minha orelha. Ainda de olhos
fechados, eu apenas me entregava, porque já não podia fazer outra coisa, considerando o quanto
aquela infeliz me tinha na palma das mãos. Literalmente.
Quando dei por mim, a minha lubrificação já voltava a escorrer pela calcinha, melando
tudo, a minha bunda, o colchão, tudo, enquanto ela se detinha ao meu clitóris já inchado de tesão,
me tocando de uma maneira como só ela sabia fazer. E eu até poderia, mais uma vez, sentir
ciúmes, porque as suas habilidades demonstravam o quanto ela tinha uma vasta experiência com
outras garotas. Mas, preferi focar apenas em nós.
E realmente foquei.
Em pouco tempo, eu já podia sentir os primeiros espasmos abaixo do meu umbigo.
Como se não bastasse...
— Que boceta deliciosa, meu amor... — começou a falar sacanagem bem no pezinho do
meu ouvido, enquanto me tocava. — Eu tô tão doida pra te chupar todinha. Me deixa chupar tua
boceta, por favor? Faz anos que eu quero te chupar. Anos. Vou ser a garota mais feliz do mundo.
Ah, pelo amor da deusa.
Essa menina... Essa menina era... Era uma canalha!
Mas... Uma canalha tão gostosa...
Minha boceta pulsou apenas de ouvi-la dizer isso. E eu sabia que essa reação involuntária
era uma clara e evidente resposta do meu corpo. Eu nem precisava pensar, porque o meu corpo
falava. Cada parte da minha pele, dos meus órgãos, da minha cabeça, da minha consciência, e da
minha alma queria isso. Eu queria ter dela tudo o que pudesse receber, e descobrir até onde nós
podíamos ir juntas, mesmo que o destino ainda fosse uma incógnita para mim.
Alcançar o limite de todos os limites entre nós era o que o meu corpo queria, o que os
meus desejos queriam, o que eu queria, por mais que eu nunca tivesse recebido o oral de uma
garota. E eu até poderia me assustar com isso, ao cair na real de que essa seria uma baita primeira
vez. Mas, honestamente, desde que decidimos começar com isso, as coisas estavam se tornando
mais intensas, e não era apenas nela que as vontades cresciam e aumentavam, era em mim
também.
Chupar a minha boceta seria uma consequência de tudo o que nós já estávamos fazendo.
Uma consequência maravilhosa.
Ofegante, em uma agonia boa e cheia de tesão, enquanto os meus dilemas de dez minutos
atrás pareciam, cada vez mais, um sussurro inaudível na minha consciência, eu não a respondi
com palavras. Apenas, desesperada por mais e completamente cega pelo prazer instantâneo que
ela me dava, eu mesma tirei a minha calcinha e empurrei os seus ombros para baixo.
Ela sorriu.
Sorriu gigante para mim, numa mistura de felicidade, alegria, safadeza, sacanagem, tesão,
realização.
E, enfim, caiu de boca.
Na primeira chupada que me deu, eu gemi alto.
E me assustei com o volume.
Lembrei-me subitamente de que estávamos na fraternidade e de que, lá fora, existiam
dezenas de garotas. Arqueei as sobrancelhas e coloquei uma das mãos sobre a boca, tentando
abafar os outros gemidos que involuntariamente escapavam da minha garganta.
Que desgraçada pra chupar bem!
E, aparentemente, ela não precisou de mais do que cinco segundos para sacar o jeito como
eu mais gostava e a maneira que mais me fazia gemer, porque, quanto mais ela lambia de um
jeito, um jeitinho desgraçado, que eu nem mesma sabia explicar, mais a minha boca soltava
aquele barulho gutural, implacável e involuntário.
Gemi.
Gemi mesmo.
Gemi alto, enquanto tentava me controlar para que as garotas da fraternidade não
escutassem.
Rayka era uma miserável excepcional em tudo o que o se propunha a fazer.
Eu sorria, simplesmente sorria, meio louca, me deleitando de prazer e me contorcendo
sobre a cama, sem conseguir parar, enquanto sua língua friccionava o meu clitóris e fodia a
minha vagina.
Ninguém nunca me fez um oral assim.
Ninguém.
Nada.
Nenhuma pessoa.
Nem o cara mais cobiçado de toda a Universidade de Miami.
Nem um deles.
Apenas ela.
Filha da puta.
Quando me dei conta, eu já estava instintiva e involuntariamente rebolando na sua boca.
Era um movimento irracional, desprovido de qualquer lógica, de qualquer razão. Eu estava me
comportando como a cadela que nunca fui na vida. Sem dúvidas, era a coisa mais imoral que eu
já tinha feito.
E, puta que pariu, como eu queria ser safada com ela!
Safada de um jeito que eu nunca quis ser, somente agora. E somente com ela.
Foi quando uma memória me atingiu como um raio e eu me lembrei, subitamente, do
maldito vídeo que interrompeu as minhas revisões para a prova. E, bem, eu também me lembrei
da prova. Por um segundo, entre chupadas e gemidos, eu quis me preocupar por estar agindo que
nem uma cadela no cio, em vez de estar estudando para a porcaria do teste. No entanto, em meio
aos sussurros quase inaudíveis de preocupação, uma vontade me tomou.
Culpa daquele vídeo.
Tudo culpa daquele maldito vídeo!
Aquelas duas mulheres faziam aquele negócio tão bem. Elas encaixavam as pernas uma na
outra e rebolavam as bocetas juntas. Elas faziam isso parecer tão gostoso e tão... Fácil.
Me dei conta.
Repentinamente me dei conta.
Minha cabeça começando a maquinar em um milhão de possibilidades.
Talvez fazer isso fosse mais fácil do que tentar estimulá-la com os dedos. Sim, claro, só
podia ser muito mais fácil! Pelo menos, no pornô, parecia ser bem fácil. E, óbvio, gostoso
também. Sim, era isso. Claro.
Por que não pensei nisso antes?
Que ideia brilhante!
Agora, você vai arrasar, Victoria!
Vai que é tua, mulher!
Num rompante de loucura e tesão, subitamente a puxei para cima, invertendo as nossas
posições. Montei sobre ela, e pude vislumbrar o olhar admirado e o sorriso sacana que ela me
deu, graças à atitude repentina. No entanto, a admiração logo se transformou em embaraço,
quando eu tentei esticar suas pernas, imitando as garotas do vídeo, e me esforcei para me
encaixar e caber ali. Bem ali.
— Amor, o que você tá fazendo?
Um vinco se formou na sua testa.
Eu, no entanto, obstinada e doida para dar o meu melhor, apenas continuei.
Eu queria impressioná-la, eu queria ser a melhor garota com quem ela já ficou, eu queria
deixar todas as outras no chinelo.
Porém...
Ao transpassar as nossas pernas, exatamente da maneira como as garotas no pornô
faziam...
Simplesmente...
Não. Encaixava.
Não encaixava.
Não encaixava!
POR QUE NÃO ENCAIXAVA, SE NO PORNÔ PARECIA TÃO FÁCIL?!
Me desesperei, enquanto sentia os seus olhos confusos sobre mim. Tentei de uma forma,
tentei de outra, chacoalhando as suas pernas toscamente, como se eu estivesse mexendo nas
pernas de uma das minhas bonecas, mas...
— Amor, amor, amor, calma... — disse ela, erguendo as mãos. — O que o meu amor tá
querendo fazer? Você quer fazer tesoura?
Tesoura...
T-e-s-o-u-r-a.
A palavra simplesmente reverberou na minha cabeça. Aquilo era uma tesoura. E, bem,
mesmo que eu soubesse o significado da palavra, ouvi-la saindo da boca dela, me fez sentir uma
súbita vergonha. Sim. Sempre que eu achava que não tinha mais vergonha de nada com ela, a
vida fazia questão de me mostrar que eu estava redondamente enganada.
Caí na real.
E, toda descabelada, meio assustada comigo mesma, eu a encarei, enquanto sentia as
minhas bochechas queimarem.
Pura vergonha.
Respirei fundo, entretanto, fazendo o possível para disfarçar o meu vexame. E, sorrindo
amarelo, tentei contornar a situação:
— Ah, eu só... É... Hã...
Remexi pra lá e pra cá, mais uma vez. Só que, novamente, NÃO ENCAIXAVA. Quando
eu mexia, a minha boceta ia para um lado e a dela para o outro. Tal hora, eu já estava roçando na
sua coxa. Mas, não era exatamente aí onde eu queria me esfregar!
Ai, minha deusa, que coisa terrível e difícil!
Eu queria chorar.
Eu...
Eu não podia errar!
Eu não podia ser um fracasso nisso também!
Não saber fazer nada, nem mesmo isso, era decepcionante demais. E eu só queria ser
realmente boa em alguma coisa que lhe desse prazer.
Juro que, enquanto eu sentia vontade de chorar, eu também fazia um esforço tremendo
para, internamente, me tranquilizar. Porém, quando ela disse:
— Amor, podemos tentar de outro jeito... Existem outras posições mais fáceis pra tesoura
e...
Eu não aguentei e simplesmente desmoronei ali mesmo.
Dessa vez, com mais intensidade do que na outra.
— Ai, eu sou imprestável! — berrei com as lágrimas descendo. — Eu não sirvo nem pra
ser sapatão! Não consigo fazer nada direito!
— Amor, amor...! — subitamente deslizou em minha direção, agarrando o meu rosto entre
as mãos, preocupada. — Não chora, tá tudo bem! Fica calma, amor, a gente vai dar um jeito
nisso. Vamos tentar outras posições e tá tudo bem!
— Não tá tudo bem! — berrei, dramática. — Eu sou burra em tudo! Primeiro, em
Literatura. Agora, no sexo! Gente, eu não consigo nem transar com a mulher que eu gosto, que
saco!
E tornei a chorar.
Rayka suspirou, unindo suas duas mãos na frente da boca, enquanto me encarava e me
fazia ter a certeza de que estava me achando bem doida mesmo.
Eu só queria ser a garota mais sexy e sensual com quem ela já tinha ficado e consegui me
tornar a mais perturbada de todas.
Que merda.
Ela segurou, no entanto, o meu rosto firmemente outra vez, encarando o fundo dos meus
olhos, e, com calma, falou:
— Olha só, respira, tá? Um, dois. Um, dois. Inspira, expira.
Tentei acompanhar o seu exercício de respiração, muito embora eu ainda estivesse
fungando.
Rayka, por sua vez, completou:
— Está tudo bem. Tudo sob controle. — por um segundo, era como se estivesse falando
com uma menininha. — Agora, eu vou vestir a sua roupinha em você e a gente vai beber uma
água, tá?
Fungando, choraminguei com os olhos brilhando:
— Tá.
APRENDENDO A PILOTAR O
CAMINHÃO

“Amando cada minuto porque você faz eu me sentir tão viva”


Alive | Empire of The Sun

VICTORIA

Com calma e muito carinho, Rayka vestiu a roupa em mim, me deixou deitada, coberta
pelo meu edredom felpudo e cheiroso, e foi buscar um copo d’água. Ou melhor, uma garrafa
d’água. Sim, uma boa quantidade para que eu me recuperasse, de uma vez por todas, do meu
terrível dramalhão.
Agarrada a um travesseiro fofo, deitada e encostada à cabeceira da cama, eu bebia a água,
enquanto a fitava, meio encabulada, por baixo dos cílios. Agora, com a adrenalina alcançando
níveis mais baixos, a minha vergonha não era apenas do meu total de zero habilidades sexuais,
mas também do meu “show” de horrores, regado a muitas lágrimas e berros.
Droga.
Eu sentia a minha consciência pesando, e essa sensação, definitivamente, não era nem um
pouco confortável.
Estraguei a nossa noite.
Que merda.
De pé, ao lado da cama, me encarando ainda com leves resquícios de preocupação, ela
perguntou:
— Tá mais calma agora?
Eu, no entanto, vermelha feito uma pimenta, enquanto a observava por baixo dos cílios,
sonorizei apenas um:
— Unhum.
Com a cara completamente dentro do copo.
O som até saiu meio abafado.
Bem, se eu pudesse não estaria enfiando o meu rosto apenas dentro daquele copo, mas
também em um buraco. Um buraco enorme que, de preferência, desse para esconder o meu corpo
inteiro, depois do vexame.
Rayka, por sua vez, suspirou, como se não estivesse completamente convencida da minha
resposta. E, então, aproximando-se devagar, com carinho, deitou-se ao meu lado, na cama, e
encarou o fundo dos meus olhos.
— Estou te achando meio envergonhada e sei que você não é assim — disse ela,
deslizando suavemente os dedos pela minha bochecha.
Foi automático.
Mesmo que eu tentasse não me entregar àquela péssima sensação de que eu era um zero à
esquerda e de que eu fui a única responsável por frustrar todas as nossas expectativas de ter uma
noite muito gostosa, baixei o olhar, me xingando internamente, umas trezentas vezes seguidas,
por ser tão mané.
— Eu não queria estragar o nosso momento. Na verdade, eu queria que fosse maravilhoso.
Me desculpa.
Ela, no entanto, segurou o meu queixo, erguendo o meu rosto para eu observá-la outra
vez.
— Você não tem que se desculpar por nada, meu amor. — e parecia existir tanta
sinceridade em cada palavra pronunciada. — Foi maravilhoso, como sempre é quando estamos
juntas. Está tudo bem, ok? Eu não estou chateada, nem desapontada, e entendo completamente
que tudo isso ainda é muito novo pra você.
Por que ela tinha que ser tão linda? Que droga.
Suspirei.
— Tem certeza que você gostou, mesmo com os meus vexames? Ou só tá falando isso pra
tentar me deixar melhor?
Rayka sorriu, adorável, balançando a cabeça de leve para mim, como se dissesse em
silêncio “por que você viaja tanto?”. Segurou, então, firmemente o meu rosto, entre as suas
mãos, e cravou os olhos nos meus.
— Tem noção de que você é a garota dos meus sonhos? — seu sorriso de segundos atrás
se transformou em um semblante um pouco mais sério, enquanto ela dizia quase pausadamente,
como se quisesse ser o mais clara possível comigo. — Victoria, eu nunca cheguei nem a
imaginar que, um dia, a gente pudesse estar se beijando assim. Eu sempre desejei isso, com todas
as minhas forças, mas nunca acreditei que pudesse se tornar realidade, sabe? Você parecia
inalcançável pra mim. Então, te ter agora, nas minhas mãos, e saber que você quer transar
comigo é... — meneou a cabeça de leve, puxando o ar, como se não existissem palavras
suficientes. — É surreal, Victoria. É como se eu estivesse vivendo um sonho. Não parece real,
mas eu sei que é. Eu sei que tudo isso é inacreditavelmente real. Só de te ver satisfeita comigo,
interessada e com vontade de fazer as coisas darem certo entre nós, já me faz incrivelmente feliz.
Por isso, não se cobre tanto agora. Eu adoro qualquer demonstração de afeto e desejo seu. E eu
tenho certeza de que, com o tempo e a experiência que nós vamos ganhar juntas, uma com a
outra, as nossas relações sexuais vão ficar cada vez melhores.
Depois disso...
De tudo isso...
Eu não tinha dúvidas de que estava olhando para ela que nem uma idiota emocionada e
apaixonada. Sim, há vários dias eu já tinha me conformado de que eu definitivamente me tornei
uma garotinha boba por aquela mulher. Só que ouvi-la dizer essas coisas me deixava muito mais
estúpida e encantada do que eu já estava.
Meus olhos se encheram d’água, ainda que eu não quisesse, e ali mesmo, na cama, eu a
abracei de súbito. Envolvi os meus braços ao seu redor, tão forte, mas tão forte, que, por um
momento, achei que o meu corpo fosse se fundir ao seu.
Rayka era tão madura, tão adulta, tão... Linda.
E, bem, ainda que eu tivesse levado tempo demais para admitir isso, nunca era realmente
tarde para começar a ser honesta. Rayka era, de fato, completamente diferente daquela pessoa
que eu passei sete anos imaginando que fosse. Por baixo da capa de garota cara de pau e
irritantemente engraçadinha, que adorava me tirar do sério, existia uma mulher brilhante.
E, a cada vez que eu percebia isso, era como levar um tapa na cara. Um tapa certeiro que
me acordava para a vida e me fazia ter cada vez mais vontade de definitivamente ser uma pessoa
maravilhosa para ela.
Entre seus braços, eu falei:
— Só queria ser a garota mais incrível com quem você já ficou. Sei que, com certeza, você
já deve ter ficado com meninas fantásticas e completamente experientes. Queria te fazer esquecer
delas, só para você ter a certeza de que realmente vale a pena estar comigo agora.
No exato instante em que me calei, ela nos separou do abraço somente o suficiente para
encarar os olhos e dizer:
— Você é a garota mais incrível com quem eu já fiquei, Victoria. Nunca duvide disso. Eu
não preciso de motivos para ter a certeza de que vale a pena estar com você, porque, pra mim,
isso já é um fato consumado. Não faço questão de estar com nenhuma das outras garotas. Você é
o suficiente pra mim. Foi por você que eu sempre estive apaixonada. Não por elas.
Argh.
Que desgraçada perfeita.
Num rompante súbito, eu a segurei pelo pescoço, beijando sua boca. Nunca fui de cair no
papinho de alguém, mas, no dela, eu não só caía, como também despencava. E eu despencava
com gosto, com orgulho, porque, além dela ser uma miserável linda e irresistível, a franqueza
escorria pelos seus olhos, pela sua língua, por cada palavra que pronunciava, especialmente
quando falava esse tipo de coisa.
Eu estava muito apaixonada.
Que ódio.
— Obrigada... — disse eu, entre beijos que já me arrancavam o fôlego. — Obrigada,
obrigada, obrigada por me dizer tudo isso e por ser a melhor pessoa com quem eu poderia estar
agora. Não sei se mereço tanto.
Eu não sabia se isso era precipitado demais da minha parte, considerando que só fazia
pouco mais de uma semana que estávamos realmente juntas, mas... Foda-se. Foda-se a lógica,
foda-se tudo. No meu coração, a certeza que transbordava era de que eu não queria estar com
mais ninguém que não fosse ela. Eu queria só ela.
— É claro que merece. Você é o meu amor... — respondeu ela, entre sorrisos tão
adoráveis. Na verdade, ela era completamente adorável, em cada mínimo detalhe. E já ia
puxando o edredom para cima de nós, enquanto se acomodava sobre a cama, como se estivesse
se preparando para dormir.
Foi quando o meu cenho franziu de leve.
— Espera... Não vamos mais transar?
— Não agora...
Um filete de preocupação subitamente despontou no meu peito.
— Você não quer mais transar comigo? — senti quando as minhas sobrancelhas
arquearam, junto com o meu coração que errou uma batida.
Ela soltou uma risadinha de leve, enquanto me aconchegava ao seu peito e apagava a luz
do abajur ao lado da cama.
— É óbvio que eu quero, meu amor. É o que eu mais quero nessa vida. Só que, agora, nós
vamos dormir e descansar. Ainda teremos muitas outras oportunidades para fazer amor, não
teremos?
Acenei um sim veemente com a cabeça.
Eu era, sim, uma negação na cama, mas eu queria aprender. E, principalmente, queria
aprender com ela.
Rayka sorriu, satisfeita.
— Ótimo — respondeu.
E, então, carinhosa, ela me fez relaxar e dormir, enquanto afagava os meus cabelos,
deslizando os seus dedos suavemente por ali e beijando o topo da minha cabeça. Essa foi a
primeira vez que nós deitamos juntas, na mesma cama. E eu juro que seria capaz de fazer
qualquer coisa só para sentir, muitas outras vezes ao longo da minha vida, essa calma e
tranquilidade que apenas ela conseguia causar em mim, enquanto a gente dormia.

✽ ✽ ✽

Na manhã do dia seguinte, por incrível que pareça (sim, muito incrível mesmo),
Shakespeare não me humilhou em trezentas línguas diferentes, nem me fez querer chorar por ter
nascido. Aquela infeliz, maravilhosa e linda, tinha mesmo razão. Aliás, quando ela não tinha
razão? A cada questão do teste, que eu sabia responder, era como se eu estivesse tirando umas
quinhentas toneladas das minhas costas. Quando eu terminei, até me sentia mais leve.
Talvez a calma e a tranquilidade de dormir agarradinha no seu peito, a noite inteira, tivesse
perdurado até a hora da prova. Estudos, certamente, ainda precisavam comprovar os benefícios à
saúde de dormir com a Rayka. Sério. Benefícios esses que só eu podia usufruir, claro. Seria
capaz de matar, qualquer outra pessoa que ao menos tentasse encostar no seu colchão.
E não, eu não era ciumenta.
Mas, enfim, bem que ela disse que eu me lembraria de cada um dos conteúdos que
estudamos, durante o teste. Sim, eu me lembrei perfeitamente da sua boca gostosa, enquanto
explicava sobre Hamlet e o resto de toda aquela baboseira. Não que eu tivesse me
desconcentrado da prova, graças às lembranças da sua boca, mas foi um alívio para o meu juízo
já tão prejudicado por interpretações literárias que aparentemente não tinham a menor lógica.
O fato era que eu finalizei o teste e o entreguei à tia Daisy me sentindo incrivelmente mais
leve.
Porém...
Ainda existia uma coisa que martelava a minha cabeça. E não, não tinha a ver com o
quanto Shakespeare era capaz de escrever sonetos utilizando o sentido literal das palavras. Tinha
a ver com o que houve ontem à noite, no meu quarto, e, mais especificamente, com a minha
incapacidade de tocar boceta do jeito certo.
Pelo amor da deusa!
Eu não sabia nem tocar um clitóris direito! Isso era um crime!
Bom... Por mais que Rayka tenha sido uma fofa, me dizendo que estava tudo bem e que
com o tempo nós íamos entrar no ritmo uma da outra, eu não sentia a menor vontade de deixar as
coisas por isso mesmo. Ou pior, eu não tinha a menor vontade de deixar a nossa situação correr
solta e esperar que, com o tempo, eu naturalmente criasse vergonha na cara e aprendesse a
transar direito.
Eu queria aprender. Logo.
Eu... Eu queria saber como as coisas realmente funcionavam! E eu não queria esperar só
por ela ou só pelo momento em que estivéssemos juntas. Eu queria fazer a minha parte também,
sabe? Eu queria estar preparada, para quando fosse, de fato, acontecer. Ou, pelo menos,
minimamente preparada.
Foi por isso que, guiada pela minha curiosidade tão aguçada nos últimos tempos, eu me
lembrei de uma pessoa que poderia me ajudar muito com isso. Não na prática, porque, na prática,
era só com a Rayka mesmo. Mas, ela poderia me ajudar com a teoria. Ah, isso eu tinha certeza
que sim!
Aliás, por que eu não tinha pensado nela antes?
Credo, eu era muito burra.
Depois da Rayka, Brittany era a pessoa que eu mais confiava para falar sobre esse tipo de
coisa. Além dela ser a minha melhor amiga, ainda tinha uma vasta experiência em campo.
Assim, quando o teste acabou e os alunos começaram a sair da sala, segurei Brittany pelo
braço e a arrastei rapidamente dali, feito uma louca, antes que Rayka pudesse me interceptar ou,
sei lá, alguma das outras garotas.
Era caso de vida ou morte da minha dignidade de recém-sapa-bissexual, ou seja lá como
eu pudesse chamar isso.
— Ei ei ei, espera, menina! — exclamou ela, já andando aos trancos e barrancos por ali,
quase tropeçando nos seus saltos. Ou melhor, andando não, correndo mesmo. — Quê que é isso?
O que deu em você?
Eu, no entanto, não respondi. Apenas continuei guiando-a o mais rápido possível. Tudo o
que eu queria era encontrar um lugar reservado para nós.
Foi quando avistei, a alguns metros, um banquinho vazio, debaixo de uma árvore, perto do
bloco de Ciências Contábeis. Próximo o suficiente de nós, mas longe o bastante dos outros para
que não fôssemos ouvidas. Perfeito.
Sem pensar duas vezes, ainda arrastando-a pelo braço, segui direto para lá. Quando enfim
chegamos e nos sentamos, sem ninguém por perto, de um lado ou do outro, cravei os olhos nos
seus, meio ofegante, e disse:
— Preciso da sua ajuda.
Brittany enrugou a testa.
— O que foi dessa vez? Discutiu com alguma menina por causa da fraternidade? Eleanor
está tentando te tirar da presidência outra vez? Ou você pediu para furarem os pneus do carro da
Emma de novo?
— Não... Não! — gesticulei com as mãos, balançando a cabeça. — Não é nada disso.
— Então o que é? Fala logo. Sabe que eu não gosto de mistério.
Tá legal, Victoria. É agora.
Puxei o ar profundamente e...
— Como é transar com mulher? — coloquei pra fora.
Brittany subitamente tossiu, se engasgando com a própria saliva.
— Pera aí, como é? — perguntou ela, ainda tentando recuperar o fôlego.
Droga.
Soprei, meio inquieta.
Eu precisava de respostas.
— Como faz sexo com mulher, Brittany?! — exclamei em um sussurro, tentando ser o
mais clara possível:
Ela, por sua vez, me encarando como se eu tivesse três cabeças em cima do pescoço,
encheu os pulmões e me perguntou ainda mais confusa:
— Cê tá bem, Vic? Bebeu? Tá drogada? Alguém fez algum tipo de lavagem cerebral em
você? Acho que você tá meio doentinha, amor.
— Não, eu não tô bem! — berrei, de súbito, sentindo toda a minha agonia e decepção de
ontem voltar, mesmo com as palavras fofas daquela desgraçada linda, que me tranquilizaram
momentaneamente. — Eu não tô bem porque ontem eu não consegui transar, que drogaaaa!
E comecei a choramingar, dramática, xingando a mim mesma por ser tão burra
sexualmente falando.
— Uou uou uou, pera aí! — Brittany exclamou, assustada. — Pausa a fita e volta. O que
você não conseguiu ontem?
— Transar — funguei.
O vinco na sua testa se tornou ainda maior.
— Com quem?!
E eu choraminguei outra vez:
— Com a Rayka.
Seus olhos dobraram de tamanho.
— Haaaaã? Com a Rayka?!
Encarando-a quase com naturalidade, apesar de todo o meu drama pessoal sobre estar com
uma garota e não saber transar direito, disse:
— Sim.
— Meu Deus do céu! AAAAA! — de supetão, berrou, entusiasmada de uma maneira que
até me assustou. — Até que enfim você decidiu parar de fazer cu doce! Eu sempre, SEMPRE
desconfiei que tudo não passava de desejo enrustido! Aaaa, que legal! Bem que todo mundo tava
falando que viu vocês correndo de mãos dadas até sumirem no estacionamento! Mas, e aí... —
repentinamente, baixou o tom, aproximando o seu rosto do meu, como se quisesse segredar algo.
— Me conta... A pegada dela é boa mesmo? É tão gostosa quanto parece? Naquele dia da festa, o
beijo que eu dei nela foi tão mixuruca que mal deu para sentir — e fez biquinho.
— Ai, para, Brittany! — exclamei, empertigada. Só de me lembrar daquela festa em Palm
Beach, já me subia um incômodo terrível pela garganta. E não, isso não era ciúme. Talvez só um
pouco ou... Tá, tá legal! Era ciúme sim, que saco! — Ela é maravilhosa, se é isso o que quer
saber. Agora, vamos ao que interessa, por favor.
Tentei desconversar.
A última coisa que eu queria ouvir era Brittany comentando sobre ter pegado a Rayka.
— Tudo bem, querida, vamos falar sobre você ser uma porta na cama.
— Eu não sou uma porta na cama, não! — retruquei, de supetão. E, então, em um tom
mais baixo e comedido, completei, meio envergonhada. — Eu só... Só não tenho muita
experiência. Será que dá para ter um pouco mais de respeito com a minha ingenuidade?
Ela riu.
— Viu só? É nisso que dá pagar de santa a vida inteira. Agora você tem um caminhão
ultra-max-power de última geração e não sabe como dirigir.
Bufei, rolando os olhos.
— Tá bom, não precisa ficar passando isso na minha cara! Estou aqui justamente para
pegar umas dicas.
Brittany suspirou, e, então, ajeitando-se sobre o banco onde estávamos sentadas, me
encarou com mais atenção.
— Tá legal... Vamos lá. Já que você quer alguma ajuda minha a respeito disso, eu preciso
saber em que ponto a relação de vocês está. Vai. Me fala. O que vocês já fizeram?
Foi quando, de súbito, senti as minhas bochechas esquentando. E, bem, não foi só eu quem
percebeu isso. Brittany também.
— Ah, qual é, Vic? — completou ela, franzindo o cenho de leve. — Não precisa ter
vergonha de mim. Você sabe. O que a gente conversar aqui, vai ficar só aqui. Além do mais,
vocês já devem ter feito algo, né? Quero dizer... Se ontem estavam a ponto de transar, é porque
alguma coisa já devem ter feito.
Puxei o ar, me preparando.
Eu nunca tive o hábito de contar sobre as minhas intimidades para ninguém, nem mesmo
para Brittany, que era a minha melhor amiga. Sempre fui muito reservada quanto a isso. Afinal,
não era elegante que uma Peterson perfeita saísse por aí comentando sobre o que fazia na cama.
Mas, ainda assim, naquele momento era necessário expor.
Eu não podia ter arrastado Brittany até ali de graça.
Se eu comecei, agora eu ia até o final.
— Bom... — encarei as minhas mãos brevemente, enquanto, meio inquieta, passava os
dedos uns nos outros, até que, ao erguer o olhar para ela outra vez, coloquei para fora. — No dia
que nos viram praticamente correndo de mãos dadas pelo campus, a gente foi se pegar no carro.
Ela me estimulou até eu gozar. E as coisas estão ficando mais intensas, a cada dia. Ontem a gente
ficou no quarto. No meu quarto. Ela me chupou, e foi uma delícia. Sério. Só que... Quando sou
quem toma a iniciativa de fazer, as coisas ficam meio... Desastrosas. — em um tom mais baixo e
levemente encabulado, cravando as orbes nas suas, eu completei. — Eu não sei fazer nada
direito, Brittany. E eu quero muito saber fazer.
Ela, então, suspirou, com uma das mãos no queixo, toda cheia de pose, como se fosse uma
especialista analisando o caso.
E, bem, ela era mesmo uma especialista, considerando o quanto vivia plenamente a sua
bissexualidade do tipo noventa por cento mulher e dez por cento homem.
— Nesse caso, você já teve a sua primeira relação sexual com mulher.
E não, não era uma pergunta. Era uma afirmação.
Enruguei a testa.
— Já?
— Mas, é claro! E, pelo amor de Deus, ainda foi com a gostosa da Rayka! Você tem tanta
sorte!
Sim, eu já sabia que eu tinha sorte. Essa não era a minha dúvida.
Bastava eu olhar na cara daquela pilantrinha tatuada, para eu saber que nasci com a
boceta virada pra lua.
A minha dúvida era...
— Então, eu, tipo, já transei mesmo com a Rayka? — entortei as sobrancelhas. — Quero
dizer... O que nós fizemos pode ser considerado mesmo como sexo? Não seria “preliminar”? Não
teve penetração. Ou melhor, teve um pouco no carro. Ela enfiou os dedos em mim, mas também
nem foi tanto assim porque eu gozei em incríveis três minutos. Meu recorde.
— Menina! Bate na boca, se disser isso outra vez! — exclamou ela, dando um tapinha na
minha mão. — Isso nunca foi preliminar. Dedadas, chupadas e tudo o mais é sexo. Preliminar é
toda tensão sexual que rola antes. Os olhares, os beijos, os carinhos, os bilhetes, as gentilezas, as
mãos dadas são preliminares. Mas, o ato em si é sexo, independente de ter penetração com dedos
ou com falo.
Meu coração acelerou em uma estúpida felicidade.
— Ai, sério?
E eu quis sorrir, que nem uma garotinha idiota. Ainda era meio estranho saber que, de
fato, ao pé da letra, nós já tivemos relação sexual, mas, ao mesmo tempo, era TÃO bom. Tipo
assim, Rayka e eu estávamos transando, meu Deus!
Bem que no carro ela falou que estava comendo a “a garota dos seus sonhos”.
Só de pensar nisso o meu estômago se contorcia em milhares de voltas.
E a minha boceta também.
— Seríssimo! A gente cresce ouvindo, desde o colegial, que o sexo é um privilégio
cishetero. E aí vem toda aquela balela falocêntrica de que só rola relação sexual se tiver um pênis
penetrando uma vagina, mas, amor, um pau é tão desnecessário para uma mulher quanto uma
bicicleta é para um peixe. O sexo não é um privilégio cishetero. Não é assim que funciona, tá? E
ele acontece de maneiras diferentes entre as pessoas, principalmente entre aquelas que têm
vulvas. Você gozou como? Com ela estimulando o seu clitóris e chupando os seus peitos,
provavelmente, né?
Balancei um sim com a cabeça, já me sentindo um pouco mais confiante de falar sobre o
assunto sem corar.
— Foi... Foi desse jeito.
E eu jamais poderia me esquecer.
— Ai, puta merda... — suspirou, balançando a cabeça, quase com um ar de sonhadora. —
A Rayka é demais! Só vai, amiga! Só vai! Só continua!
Pois é... Esse era o x da questão.
Eu queria ir sim.
Mas, como, porra?
Argh!
— Será que você não tem, sei lá, algum conselho, alguma dica, alguma luz no fim do
túnel, para uma pessoa meio... Idiota como eu? Ontem eu tentei fazer uma... Uma... — minha
deusa, como que fala isso? Que saco. Lá vai. — Ontem eu tentei fazer uma tesoura nela. E, foi,
tipo assim... — senti um filete de suor se formar na minha testa, só de me lembrar daquele
vexame. — Uma tragédia! Não encaixou! Eu simplesmente não consegui fazer encaixar aquela
merda!
— Ah, você tentou fazer uma tesoura, sua safada? — sorriu.
Quando eu pensava que já estava me acostumando a falar sobre o assunto sem corar,
sempre aparecia uma nova informação para deixar a porcaria das minhas bochechas vermelhas.
— Tentei, mas foi horrível — resmunguei.
— Bom... Sabe qual é o segredo pra fazer uma tesoura bem-feita? — ergueu uma das
sobrancelhas para mim.
E, pela sua cara, foi impossível não inclinar o meu corpo, me aproximando mais dela,
subitamente curiosa.
Meus olhos, cravados nos seus, nem piscavam.
Eu só queria respostas!
— Qual?
— Se arreganhar.
Pera aí.
— Hã? — entortei as sobrancelhas, automaticamente me afastando todos os centímetros
que me aproximei dela.
— É isso mesmo que você ouviu, meu anjo. Tem que se arreganhar! Pra encaixar, tem que
se arreganhar. E, claro, deixar a vergonha de lado. Tem que ser sem-vergonha. Algumas
mulheres não conseguem porque a vergonha trava.
Pigarreei a garganta, tentando processar as informações.
— Arreganhar? T-Tá falando de abrir bem as pernas?
— Isso mesmo. Bom, existem algumas posições mais fáceis, claro. Posições que não
precisa abrir tanto as pernas. Mas, no geral, tem que se arreganhar mesmo. Por isso, cuida aí nos
treinos, amor. Faz uns agachamentos, malha essas perninhas, que vai dar bom! Depois que pegar
o jeito, é só sucesso!
Ai, minha deusa.
Cocei o couro cabeludo.
— Isso parecia muito mais fácil no pornô que eu assisti.
Foi quando ela arqueou as sobrancelhas.
— E você assistiu pornô...?
Seu sorrisinho de incredulidade era impagável.
— Assisti — respondi em um resmungo. — Mas, não me orgulho. As duas mulheres do
vídeo me humilharam em umas quinhentas línguas diferentes com a tesoura que fizeram.
Brittany riu.
— Olha só, eu não recomendo que você assista pornô esperando aprender alguma coisa.
Cê sabe que, infelizmente, pornô lésbico é feito para homens e não para mulheres. Ou seja, é
fantasioso demais. Não representa a realidade. Eu sugiro que você acesse o site da Sophie Hall.
Ela é lésbica e é uma educadora sexual maravilhosa, especializada em relações sexuais entre
vulvas de mulheres que amam mulheres. No site dela tem vários artigos, vídeos e cursos com um
monte de informações que eu tenho certeza que serão valiosíssimas pra você. Inclusive, sobre a
tesoura, ela mostra vários tipos de posições e movimentos pra ficar gostoso na hora que encaixa.
E pode ficar tranquila porque ela ensina tudo com muita responsabilidade.
Franzi o cenho de leve.
— Sophie Hall o nome dela?
— Isso! — tirou o celular da bolsa, digitou algo e, então, completou. — Acabei de te
mandar o link do site para não ter erro. Ela é maravilhosa, sério. Tenho certeza de que, se passar
um tempo estudando os conteúdos dela, você vai se sentir muito mais confiante na hora do sexo.
Suspirei.
Isso era tudo o que eu mais queria... Esquecer aquela insegurança da inexperiência e me
sentir completamente confiante em dar prazer.
— Obrigada, Britty.
— Imagina! — sorriu. — Sabe que, sempre que precisar, eu tô aqui, né? Inclusive, se
quiser, a gente pode até treinar juntas, hã? Fazer umas tesouras, uns orais. Acho que vai ser
ótimo! — brincou, me cutucando.
— Ah, sai pra lá! — dei um empurrãozinho no seu ombro, rindo.
Ela também achou graça, boba. No entanto, segundos depois, um pouquinho mais séria,
completou:
— Olha só, mesmo com todos os artigos que você leia e com todos os vídeos que você
assista, quando estiver com a Rayka, se lembre de fazer nela do jeito como gostaria que ela
fizesse em você. Ou, pelo menos, do jeito como você acha que gostaria. Só de pensar assim, já
será um bom começo.

✽ ✽ ✽
Quando cheguei à fraternidade, subi correndo para o meu quarto e me tranquei. Assim que
cruzei a porta, ainda recebi uma mensagem da minha avó, dizendo: “Já foi para o salão? Quero
que esteja impecável hoje à noite. Não apareça menos bonita do que uma Peterson deve ser”. E
o seu tom autoritário conseguia atravessar até mesmo a tela do celular. Daqui a algumas horas,
seria o tal jantar do seu aniversário. Aquele em que eu teria de agir como a garota perfeita que
eu, definitivamente, dia após dia, tinha mais certeza de que eu não era.
Acontece que mesmo com a sua urgência em me fazer parecer uma princesa para uma
porção de pessoas que eu, honestamente, não dava a mínima, eu tinha coisas mais importantes do
que ir ao salão naquele momento. Com a sede de conhecer o novo e responder as dezenas de
perguntas que ainda alugavam um triplex na minha cabeça, me sentei na escrivaninha, de frente
para o meu notebook, e entrei no site da tal Sophie Hall. O cabeleireiro teria de esperar.
Assim que a página inicial abriu, por mais ridículo que isso pudesse parecer, tive a súbita
sensação de estar entrando em um mundo que, até então, eu não conhecia. O mundo mágico das
mulheres que amavam mulheres. Meus olhos não precisaram de mais do que cinco segundos
para ficar completamente vidrados na tela. Depois disso, nem se um asteroide caísse na Terra, eu
perderia o foco daquilo. Era como um parque de diversões muito... Irado. Assustador, mas, ao
mesmo tempo, empolgante. Sim, a mesma sensação de entrar em uma montanha-russa.
Um oráculo.
Tudo, absolutamente tudo, chamava a minha atenção. Não apenas as fotos de mulheres
lindas juntas, que não eram de cunho pornográfico, mas também os banners e os títulos dos
vídeos e artigos. Cada tema trazia palavras que eu não conhecia ou que, pelo menos, eu tinha
ouvido falar pouco. Porém, foi em um texto específico que eu cliquei primeiro. Ele estava lá pela
metade da página inicial e se chamava “Um guia preliminar do sexo entre vulvas de mulheres
que amam mulheres”.
Entrei.
No artigo, algumas frases e trechos estavam destacados.
“Raramente nos ensinam sobre outras possibilidades de amar e transar. Nas escolas,
onde a educação sexual deveria compreender todos os gêneros, identidades e orientações
sexuais, a temática, por vezes, é encarada como um tabu. Mas, a verdade é que o amor e o sexo
vão muito além do que uma relação cishetero entre um homem e mulher.”
Só o primeiro trecho já foi como um tapa na minha cara. Eu tinha perdido a conta de
quantas vezes, ao longo da minha vida, fui ensinada de que o certo era que eu ficasse com um
cara. Um cara perfeito. Não era o meu pai quem me falava isso. Na verdade, ele sempre me
deixou bem à vontade para escolher com quem eu gostaria de estar. Porém, minha avó e uma
porção de pessoas ao meu redor que, mesmo sem perceber, espalhava o discurso, tinham um
peso nisso.
“Mulheres não precisam de um pênis para reprodução e, muito menos, para alcançar o
prazer. Aliás, graças ao mito do falocentrismo, uma quantidade significativa de mulheres sente-
se frustrada por não conseguir atingir o orgasmo com penetração. É importante saber que uma
pessoa com vulva tem maiores chances de gozar com o estímulo à glande do clitóris do que com
penetração, e não existe absolutamente nada de errado nisso.”
Se eu me lembrasse do meu rol vergonhoso de relações sexuais, desde que eu perdi a
minha virgindade com dezoito anos, poderia contar nos dedos das mãos a quantidade de vezes
que algum cara realmente me fez gozar. Geralmente, eles só metiam, ejaculavam e caíam fora.
Enquanto isso, eu, idiota, ainda fazia o favor de fingir um orgasmo, só para deixar o ego dos
imbecis ainda maior, ou, pelo menos, para acabar logo com o pesadelo da transa. Eu também não
tinha consciência corporal o suficiente para saber o que era melhor para mim. Eu mal me tocava,
porque achava que era sujo.
Talvez fosse por isso que Rayka conseguiu de mim um orgasmo em incríveis três minutos.
Ela tinha consciência corporal. Ela sabia exatamente como fazer e onde tocar. Ela não era
egoísta para pensar apenas no próprio prazer.
Bem... Ela era perfeita.
“Preliminar é tudo o que antecede o ato. São passeios de mãos dadas, massagens
carinhosas, mensagens românticas de bom dia, dedos que repentinamente deslizam sobre a pele.
Preliminar é aquilo que provoca tensão sexual, enquanto orais, estímulos ao clitóris, tesouras e
tudo o mais que faz parte do ato é sexo. Mesmo quando não há penetração, pode se configurar
como ato sexual.”
Bem que a Brittany falou...
Ela era entendida sobre o assunto.
Eu acho que vivia em uma eterna preliminar com a Rayka, desde eu a conhecia,
especialmente agora, depois daquele pôr-do-sol na praia. Os seus bilhetinhos espalhados em cada
canto das minhas coisas, as flores todas as manhãs, os olhares, os beijos carinhosos. Tudo. Com
a gente, tudo era preliminar.
“Há um equívoco quanto ao uso dos termos ‘ativa, passiva e relativa’. É urgente
ressignificá-los. Estas expressões têm origem heterossexual e pouco representam o sexo entre
mulheres que amam mulheres e pessoas com vulvas. Ser ativa não significa ser aquela que
nunca é ‘penetrada’, assim como ser passiva não significa ser sempre tocada sem retribuir. Sexo
é reciprocidade. Portanto, estes termos no sexo entre pessoas com vulvas está mais voltado à
energia de dominação e submissão do que propriamente ao ato sexual. Ativas têm uma maior
energia de dominação, mas, ainda assim, recebem e gostam de receber estímulos. Passivas têm
uma maior energia de submissão e, mesmo assim, também tocam, penetram e estimulam.”
Era isso.
Esse era o ponto.
Por mais que eu claramente gostasse de quem tinha pegada e poder sobre mim na cama, e
por mais que Rayka fosse exatamente esse tipo pessoa, eu também queria fazer nela. Eu queria
aprender. Eu queria lhe dar prazer do mesmo jeito que ela me dava, agora que eu, enfim, estava
me desamarrando de um monte de cordas que me prenderam a vida inteira.
“Outro equívoco é acreditar que mulheres desfeminilizadas querem ser o ‘homem’ da
relação. A desfeminilidade é uma expressão de gênero, é a forma como a mulher se sente bem
sendo vista e existindo no mundo, seja usando roupas largas ou cabelos curtos. Não, elas não
são homens. Elas continuam sendo mulheres. Portanto, elas não têm a obrigação de sempre se
relacionar com meninas extremamente femininas, nem de performar uma energia ativa em cem
por cento das relações sexuais. Mulheres desfem também querem receber prazer, assim como
merecem o seu carinho e atenção. Elas não são desprovidas de afeto, e merecem ser amadas
como qualquer outra mulher.”
Sophie Hall parecia estar conversando comigo. Seu conteúdo era melhor do que qualquer
pornô, e só me dava a certeza de que eu estava começando a andar pelo caminho... Certo.
Rayka era uma princesa. Uma princesa desfeminilizada.
Droga, eu estava muito apaixonada.
Ridiculamente apaixonada.
Desci um pouco mais na página do artigo e, então, vi bem destacado, praticamente em
letras garrafais:
“PREVINA-SE! Os vírus também podem ser transmitidos através do sexo entre vulvas,
entre vulva e dedo, e com sexo oral. Ainda que não seja atrativo, mulheres e outras pessoas com
vulvas têm se utilizado de artifícios, como cortar uma luva ao meio, ou mesmo uma camisinha, e
segurar na hora da tesoura ou do sexo oral. No entanto, a invisibilização é a principal
justificativa para que não haja métodos específicos de prevenção de ISTs voltados ao sexo entre
vulvas. As camisinhas foram criadas para o pênis, enquanto o sexo entre vulvas segue à margem
da agenda farmacêutica e dos decisores públicos. Por isso, falar sobre prevenção em sexo entre
vulvas é muito mais do que autocuidado, é um ato político. Precisamos ser vistas e ouvidas.
Ainda assim, algumas doenças podem ser evitadas com vacinas e uso de medicamentos. Procure
a farmácia, o posto ou o hospital mais próximo e coloque em dia as suas vacinas contra hepatite
e HPV, além também da profilaxia pré-exposição de proteção contra o HIV.”
Pelo menos, a parte boa de ter sido a Victoria Perfeita Peterson, durante grande parte da
minha vida, era que eu fui obrigada, pela minha avó, a cumprir com toda a minha cartilha de
vacinas. Simplesmente, tomei tudo o que eu precisava, e, depois de mocinha, permaneci com o
hábito de ir ao ginecologista e tudo o mais. Ela dizia “uma Peterson precisa ter uma rotina de
cuidados”. Ao menos, algo de bom, Grace Peterson precisava ter feito.
Descendo mais um pouquinho na página, porém, foi quando os meus olhos se fixaram em
um banner que praticamente piscava em cores douradas para mim, cuja frase era “Seja uma
deusa da tesoura! Aprenda aqui tudo o que você precisa para tesourar bem gostoso.” Eu travei,
simplesmente travei, como se, enfim, tivesse encontrado o pote de ouro no final do arco-íris. E
realmente encontrei.
Cravei ali, muito mais do que em qualquer outro lugar, sobretudo quando eu cliquei em
cima do banner e outra página se abriu, com um monte de textos, imagens e vídeos, não
pornográficos, de Sophie Hall ensinando tudo sobre a tesoura.
Juro que os meus olhos brilharam.
Na verdade, eles se tornaram duas pedras de diamantes, enquanto eu viajava pelo universo
das mulheres que davam prazer a mulheres.
Depois disso, a lembrança de que eu deveria ir a um salão de beleza, para me arrumar para
o jantar da minha avó, ficou muito distante. Na minha cabeça, só existia Sophie Hall e tudo o que
ela poderia me ensinar a fazer com a Rayka. Passei o restante da tarde mergulhando nas
tesourinhas de ouro, nos movimentos circulares, ondulares, e em tudo o mais que, pela primeira
vez na vida, eu via.

*Nota: o conteúdo deste capítulo foi inspirado na coluna e nos cursos de educação sexual de Gisele Palma. Jornalista e
terapeuta de ginecologia natural. Trabalha com educação sexual e menstrual nas redes sociais, bem como promove cursos,
palestras e atendimentos com foco em mulheres que amam mulheres.
MELHOR SER ANTIPÁTICA DO QUE
SER FALSA

“Sim, eu posso romper e mover-me rapidamente, mas você não me verá cair”
Elastic Heart | Sia

VICTORIA

Aconteceu que eu me tornei quem eu mais temia. Ou, pelo menos, quem a Victoria
Perfeita Peterson mais temia: a garota que colocava o salão de beleza em último lugar da lista
de prioridades. Sim, eu passei a tarde inteira mergulhada no site da Sophie Hall, e em tudo o que
poderia ensinar a um pequeno gafanhoto como eu. Por isso, não fui ao salão. O que eu podia
fazer? Os artigos e vídeos sobre tesoura e sexo oral pareciam atrativos demais.
Tive que eu mesma me virar sozinha com o cabelo e a maquiagem, faltando apenas meia
hora para o início do jantar. Dei um jeito na minha cara de safada que andava lendo demais sobre
putaria e fiz o melhor que eu pude com o que tinha. Só esperava que a minha avó não reparasse
que a minha produção não estava exatamente profissional e não quisesse me queimar no fogo do
inferno por causa disso. Nunca me arrumei tão rápido, em toda a minha vida, e nunca estive tão
despreocupada com o fato de não ter ido ao salão.
Definitivamente, eu já não era mais a mesma Victoria.
Ou melhor, eu não era mais Victoria Perfeita Peterson.
E, por incrível que pareça, isso não me assustava.
Juro que as únicas coisas que eu pensava, enquanto seguia para casa da minha avó, no
banco traseiro do carro do papai, era em tudo o que eu tinha lido e assistido, e no quanto eu fui
idiota por ter passado tanto tempo da minha vida fugindo de coisas que eu obviamente iria
gostar. Agora que eu estava começando a entender como aquilo funcionava, eu só queria...
Fazer. Isso mesmo. Eu estava me tornando uma puta safada, e já não sentia mais peso na
consciência por causa disso, nem me preocupava com o quanto poderia ser “deselegante” para
uma Peterson agir assim.
Se eu pudesse, não estaria indo agora para aquele bendito jantar, mesmo que eu tivesse
passado a vida inteira considerando o aniversário da minha avó como um dos dias mais
importantes do ano inteiro. Na real, na real de verdade, se eu não precisasse cumprir com mais
esse rito social, eu estaria com a Rayka, em algum lugar, colocando em prática o que eu tinha
começado a aprender. E, bem, essa vontade parecia cada vez mais forte, sempre que eu virava o
rosto para o lado e percebia aquela desgraçada linda bem ali, pertinho de mim, no banco traseiro,
tão irresistível dentro de um blazer estiloso.
Juro.
Ela estava linda.
A garota era um tesão, mesmo sem fazer o menor esforço para isso.
E parecia uma miserável ainda mais tentadora sempre que me olhava e me dava um
sorrisinho charmoso, aproveitando o escurinho do carro, e o quanto os nossos pais estavam
entretidos em uma conversa aleatória, para colocar a mão na minha coxa e deslizar suave e
sutilmente para um pouco debaixo do meu vestido.
Precisei respirar fundo umas trezentas vezes, me controlando para não pular no seu colo
ali mesmo.
Ah, as preliminares.
Eu podia ouvir a voz de Sophie Hall falando sobre isso nos vídeos.
Rayka e eu parecíamos viver em eternas preliminares.
E eu poderia perfeitamente continuar ali, pelo resto da noite, no banco traseiro daquele
carro, ou em algum lugar em que nós pudéssemos ficar juntas, mas, bastou eu colocar o primeiro
pé, dentro da mansão enorme e lotada da minha avó, para que eu fosse arrastada para longe da
única pessoa que realmente me interessava ali.
Mesmo que a casa fosse enorme, estava absolutamente cheia. Cheia de gente fútil e falsa.
Uma festa feita para a alta sociedade de Miami, que, por fora, sorria para você, e, por dentro, te
julgava até a sua décima terceira geração. Alguns até conseguiam disfarçar, mas, outros podia-se
ver, nítido, o olhar simpático que davam de frente e a cara de nojo que faziam quando a pessoa
virava as costas.
Isso embrulhava o meu estômago.
De verdade.
Por muito tempo da minha vida, eu até falei a mesma língua dessas pessoas. Eu fui uma
delas, ainda que isso, agora, não me causasse qualquer tipo de orgulho. Eu realmente merecia o
título de “sujeitinha desprezível” que alguns me deram. Sorria falsamente e, depois, ofendia
quando não podia ser ouvida. Era um traço meu de covardia completamente vergonhoso. Juro
que eu não tinha ideia de como pude ter sido tão desprezível por tantos anos.
Agora, nada disso parecia fazer sentido para mim, do jeito como um dia fez. Nada. Me
enchia a paciência, aquele desfile infindável de mulheres que se preocupavam mais com a marca
da roupa que vestiam do que com a própria saúde, ao ponto de terem que ir ao banheiro vomitar
as calorias a mais que comeram durante a festa. Me dava asco o desfile de homens tolos que me
engoliam com os olhos e não tinham vergonha na cara o bastante para perceber que, pela minha
idade, eu poderia ser filha de qualquer um deles.
Não soube exatamente como e quando isso começou a acontecer, talvez a mais tempo do
que eu pudesse me dar conta. Porém, a verdade era que, provavelmente, aquele era o momento
em que a minha maturidade estava sendo colocada em xeque. E essa maturidade me dizia que eu
já não fazia mais parte daquele meio, como um dia achei que fizesse. Eu me sentia
completamente, completamente deslocada. Tão deslocada que já não conseguia mais esboçar um
sorriso sequer para aquelas pessoas, porque sabia que não seria verdadeiro.
E eu não queria mais ser falsa.
Com ninguém.
Nem comigo mesma.
Era por isso, exatamente por isso, que eu já não aguentava estar mais nem um segundo
com uma dupla de falsas bajuladoras, que me puxaram assim que eu apareci no salão. Para
aguentá-las, eu teria de ser falsa, assim como elas. Ou seja, eu não tinha a menor pretensão de
aguentá-las.
— Ai, você tá tão linda, Vic! Meu Deus, sempre com tanto bom gosto! — disse uma delas.
O seu jeito de falar parecia tão enjoativo que o meu estômago embrulhou. E, então, segurando
uma das minhas mãos, completou. — Dá uma voltinha, vai!
Suspirei, quase revirando os olhos. Ainda assim, fui legal o bastante para girar por ali, que
nem uma idiota. Juro que eu não sabia como fui capaz de estar mergulhada nisso por anos. Eu só
queria ir embora, sei lá, voltar para a fraternidade e ficar com quem realmente era de verdade
comigo.
— Que vestido maravilhoso! — a outra comentou, quando parei de frente para elas
novamente. A falsidade, porém, escorria pelos olhos e pelas palavras. Eu sentia, eu percebia, eu
sabia. Sim, eu era capaz de identificar isso perfeitamente, porque, até pouco tempo atrás, eu era
exatamente como elas. — Conta pra gente onde você comprou, porque eu preciso ir lá amanhã!
Por que um raio simplesmente não caía ali, em cima de todo mundo?
— Ah, sei lá, eu não faço ideia — respondi meio sem vontade. No entanto, completamente
verdadeira. Eu realmente não fazia ideia. — Deve ter sido online ou em alguma lojinha qualquer
do shopping. Às vezes, não paro pra pensar sobre esse tipo de besteira.
A Victoria Perfeita Peterson, aquela de meses atrás, que só usava Chanel, Louboutin e
Prada, sem dúvidas, estava se revirando em seu túmulo, agora mesmo, só de me ouvir
respondendo assim a essas garotas.
E não, eu não estava nem aí.
Só que, aparentemente, elas não se deram conta do meu tom desinteressado no assunto,
porque continuaram.
— O meu é um Versace — respondeu a primeira, toda convencida.
— É? Legal.
Minha deusa, por favor, me tira daqui. Nunca te pedi nada.
— E o meu é um Valentino — disse a outra, enfadonha. — Você sabia?
— Hum... Que bom. — ainda ensaiei um pequeno sorriso, fazendo o maior esforço do
mundo. — Mas eu não ligo.
Foi quando o semblante das duas vacilou.
— O q-que disse? — até gaguejou, tentando esboçar aquela simpatia fajuta que jamais me
convenceria.
Com as sobrancelhas sutilmente arqueadas, elas pareciam meio abismadas com a maneira
como eu tinha falado. Eu, no entanto, esboçando a minha melhor cara de paisagem e agindo
naturalmente, como se eu não tivesse acabado lhes dar uma cortada, peguei uma taça de
champanhe de um garçom que passava ao nosso lado, bebi o conteúdo inteiro em um só gole,
devolvi a taça à bandeja e virei para elas, respondendo, depois de sentir o álcool rasgando a
minha garganta:
— Eu disse que não ligo. Não faço a menor questão de saber qual a marca do vestido de
vocês.
Minha deusa, como era bom ser verdadeira, sem filtros.
Eu precisava fazer isso mais vezes!
Com certeza, faria bem para a minha saúde.
Melhor ser antipática do que ser falsa.
As duas ainda me encararam travadas, como se a última coisa que esperavam era que,
Victoria Peterson, a Líder da Fraternidade das Minervas, filha de Madelyn Peterson e neta de
Grace Peterson, além de virar uma taça todinha de champanhe, lhes desse uma resposta tão mal-
educada. O combo completo.
Bem, eu não tinha o costume de beber. A minha barriga sempre foi muito fraca para isso.
Na verdade, era a primeira vez que eu tomava um champanhe inteirinho em um só gole desse
jeito. Mas... Eu sabia que, se eu tinha que aguentar essa conversa e, principalmente, essa festa até
o final, eu precisava ingerir alguma coisa alcoólica.
Segundos depois da total paralisia vergonhosa, quando achei que enfim me livraria
daquelas duas e do assunto chato, porém...
— Ai, Victoria, você é tão engraçada!
Elas simplesmente começaram a rir. E as risadas pareciam tão desconcertadas. Um misto
de loucura com vontade de quebrar o gelo que eu mesma criei. Era como se tentassem fingir que
tudo não tinha passado de um grande mal-entendido.
E as bajulações mentirosas também voltaram com tudo:
— Você é maravilhosa, Victoria! — disse uma delas, ainda entre risadas falsas e
desconcertadas.
— Tem um ótimo bom humor! — completou a outra.
Puta que merda, eu merecia mesmo.
Elas não caíam na real.
Foi quando, controlando os risos, a primeira falou, puxando outro assunto, igualmente
chato:
— Quer saber? Aqueles três carinhas não param de olhar para você, Victoria. Acho que
estão interessados! — apontou com o queixo, olhando, toda faceira, em determinada direção.
Franzi o cenho.
Não que eu estivesse interessada, porque era óbvio que não. Independente de quem fosse,
não se chamava Rayka, nem tinha braços tatuados, nem lábios gostosos, nem um ótimo senso de
humor, nem piadas pessimamente engraçadas, nem mãos safadas, nem a forma mais carinhosa de
tratar alguém como só ela sabia fazer.
Ainda assim, curiosa para ver até onde aquela garota era capaz de ir com as besteiras que
falava, virei o rosto. E automaticamente torci o nariz.
— Atrás daqueles velhos? — perguntei.
— Que velhos, menina? — soltou uma risadinha. — São eles mesmo!
— Tá louca? — enruguei ainda mais a testa, fazendo uma baita cara de nojo. Sim, eu
estava me aproveitando, o quanto podia, da minha versão sem filtros. — Um deles tem idade pra
ser meu pai. E dois deles têm idade pra ser meus avós!
Credo.
— Ah, se você não quiser, eu quero — replicou ela, toda garbosa.
— Fica à vontade, então.
Foi quando subitamente senti uma mão na minha cintura.
E, bem, eu conhecia muito bem aquele toque. Não era qualquer pessoa que me segurava
daquele jeito. Era só ela.
Respirei subitamente aliviada, e, antes que eu pudesse virar o rosto para olhá-la, sua voz
gostosa falou:
— Olá, meninas, boa noite. Tudo bom? — disse ela, sorrindo daquele jeitinho educado
demais. Chegava a ser até charmoso. — Olha só, eu vou ter que roubar a Vic de vocês. Estão
chamando-a bem ali... Tudo bem?
E eu sabia que, na verdade, não tinha ninguém me chamando.
Rayka só estava tentando me salvar.
Amém.
— Ah, claro! — uma delas respondeu, ainda com aquela falsa simpatia. — Depois a gente
se fala, Vic.
Pelo amor da deusa, que vontade de beijar a boca da Rayka um milhão de vezes, só por
ela ter aparecido para me tirar dali. Aliás, por isso e também porque eu adoraria beijá-la um
milhão de vezes sem qualquer motivo.
Subitamente empolgada, com uma simpatia que, até então, eu ainda não tinha usado com
elas, repliquei:
— Perfeito! Então, eu vou lá! Provavelmente, deve ser alguma coisa muito importante.
Meninas, até... — Nunca mais? — Depois!
E, pela primeira vez desde que pus os pés naquela casa, sorri. Sim, sorri ao dar as costas e
sair caminhando com a Rayka pela festa. Eu ainda não podia ir embora dali, mas, só de tê-la ao
meu lado, junto comigo, já era uma baita força, para que eu suportasse o que ainda estava por vir.
Eu tinha certeza de que a conversa com aquelas garotas sem-noção era apenas uma amostra
grátis de tudo o que poderia acontecer, considerando que eu ainda nem tinha visto a minha avó.
Quando alcançamos uma boa distância de onde as malucas estavam, soprei o ar pesados
dos meus pulmões, relaxando os ombros, e agradeci honestamente:
— Obrigada...! Sério! Você não sabe o quanto eu estava tentando achar um jeito de fugir
dali.
— Ah, eu sei sim. Percebi os seus olhos pedindo socorro — soltou uma risadinha. —
Você tá tensa, amor.
— E tem como evitar? — ergui uma das sobrancelhas para ela, enquanto ainda
caminhávamos por ali. — Eu não queria estar aqui. Tudo bem que é o aniversário da minha avó,
mas... Sei lá — balancei a cabeça de leve. Isso ainda era meio confuso até pra mim mesma. —
Eu não tô me sentindo confortável. É como se as pessoas estivessem esperando de mim um
comportamento que eu não tenho mais. Aliás, não apenas as pessoas no geral, mas
principalmente a Grace. Eu já consigo sentir as cobranças dela, mesmo que ela ainda nem tenha
aparecido.
Foi quando Rayka nos fez parar ao lado de um balcão de bebidas, onde um barman servia
alguns convidados, e me encarou meio... Admirada. Aquele início de sorrisinho lindo e fofo, no
cantinho dos seus lábios, me deixava idiota demais. Muito idiota por ela.
— Você está diferente... — falou.
Seus olhos escuros estavam brilhantes, orgulhosos.
Tão linda.
LINDA DEMAIS.
QUE INFERNO.
Sorri de leve para ela, faceira.
— Você acha? — perguntei.
— Eu tenho certeza.
Mordi o lábio inferior.
A vontade era de morder o seu.
— Isso é bom?
O sorriso dela ficou ainda maior.
Mais lindo.
— Maravilhoso — respondeu quase soletrando a palavra.
Soltei uma risadinha, satisfeita, inclinando a cabeça para um lado, enquanto sondava os
seus olhos bonitos, tão perto dos meus.
— Qual você prefere? Aquela Victoria ou essa?
Encarando o fundo das minhas orbes, replicou sem pensar duas vezes:
— Eu prefiro você. Eu já era apaixonada por você antes e, agora, estou perdidamente mais.
Argh, que miserável...!
Revirei os olhos automaticamente, louca de vontade de pular em cima dela ali mesmo.
— Você não tem o direito de ficar me excitando assim, em locais onde eu não posso fazer
nada!
Ela soltou uma risadinha, sacana.
E, então, com a voz mais charmosa do mundo, ao me entregar uma taça de champanhe que
o barman tinha acabado de lhe servir, perguntou:
— Onde você queria estar agora?
Segurei a bebida, enquanto ela tomava um gole da sua, com aquela cara de safada que me
matava um milhão de vezes, e, então, baixei o olhar, fitando-a por inteiro. Inacreditável o quanto,
do mesmo jeito quando ficava sem roupa, ela conseguia ser uma filha da puta gostosa, ainda que
estivesse coberta por aquele blazer estiloso.
Se eu pudesse, porém, tiraria aquilo tudo, agora mesmo.
Sem qualquer sombra de dúvida da minha vontade, ergui novamente o olhar para o seu, e
respondi:
— Queria estar em um lugar sozinha com você.
E as palavras pareciam tê-la deixado completamente satisfeita, porque as suas íris escuras
e safadas brilharam ainda mais para mim.
Dando um passo, ela chegou ainda mais perto.
Meu coração acelerou em puro desejo. Eu juro que estava louca para dar um beijo na sua
boca, mesmo que, ao nosso redor, existissem dezenas de pessoas.
Deslizou seus dedos carinhosos e depravados pelo meu rosto, tirando uma mecha de
cabelo da frente dos meus olhos, e perguntou:
— Quer ir pra fraternidade?
Ah, isso seria o meu sonho!
No entanto...
Antes que eu pudesse dizer “Sim, sim, sim! Vamos sair logo daqui!”, senti uma presença
estranha bem nas minhas costas. Foi quando o semblante da Rayka, de súbito, mudou. Antes leve
e sedutor, agora estava completamente sério. Mandíbula trincada e olhos pegando fogo, do
mesmo jeito como ficou quando viu o...
— Olá, Victoria. É tão bom poder estar perto de você de novo.
Ethan.
Que merda.
Rayka deixou sua taça de champanhe em cima do balcão e eu também.
Ao virar o meu rosto em sua direção, as suas mãos imundas logo se encaixaram à minha
cintura. E bastou isso para que Rayka parecesse ainda mais possessa.
— Larga ela. — prontamente disse, segurando-o firme pelo braço, enquanto suas orbes
queimavam.
— Ih, qual foi? — cínico e desprezível como sempre pareceu ser, Ethan retrucou. — Tá se
metendo por quê? Você, por acaso, tem alguma coisa a ver com a Victoria?
— Sim, eu tenho — respondeu, séria.
Na verdade, puta de raiva.
Não existia qualquer simpatia no seu olhar.
Ele, por sua vez, riu, irônico.
Argh, meu estômago embrulhava com a sua prepotência.
— Ah, é? Tá achando que é a mulher dela? — ergueu uma das sobrancelhas, ironizando.
— Eu não estou achando, eu sou.
Ele gargalhou.
— Você é muito engraçada, garota. Parece que não se enxerga.
Dessa vez, fui eu que explodi, sem aguentar a sua nauseante presença ali.
— Quem não se enxerga é você, Ethan! No mês passado, eu deixei bem claro que não
quero nada contigo, nunca quis e nunca vou querer. Desencosta e cai fora logo daqui!
— Gatinha, não é isso o que a sua avó diz. Ela me acha um ótimo cara pra você. E eu sei
que sou.
— A minha avó ainda não sabe do lixo que você é — retruquei. — Você é um merdinha,
Ethan, e não deveria estar aqui!
Ele, no entanto, em toda a sua arrogância falou:
— Você deveria dar graças a Deus, Victoria, porque, depois daquela sua foto imoral
circulando por aí, eu sou o único cara decente que ainda te quer.
Como é que é?!
Eu juro que fiquei boquiaberta e puta com a sua ousadia em dizer uma merda dessa. Ao
mesmo tempo, Rayka, completamente irada, exclamou:
— Filho da puta! Se você não sair daqui agora, eu juro por Deus que te arrasto até lá fora
pelo pescoço.
— Ih, tô com medinho — ironizou. — Olha só, eu nem falo com sapatão, tá?
Foi quando a fúria dela rompeu de vez e, sem dizer mais nada, o agarrou firmemente com
os dedos pela gola da camisa que ele usava. Rayka parecia colocar tanta força, que eu tinha a
impressão de que a roupa dele poderia rasgar a qualquer momento. Ethan queria ser tanta merda,
mas estava simplesmente nas pontas dos pés, enquanto Rayka o mantinha preso.
— Ei, ei, ei, me solta! — ele ainda tentou espernear.
Rayka não lhe deu ouvidos, estava decidida a enxotá-lo dali.
Porém...
Quando ia dar o primeiro passo, arrastando-o feito o lixo que ele realmente era...
— Posso saber o que está acontecendo aqui?
Minha avó apareceu, em toda a sua imponência, de vestido elegante, saltos de dez
centímetros, procedimentos plásticos no rosto e olhar absolutamente rigoroso. Ainda que eu não
quisesse e tivesse ódio de mim mesma, por nunca saber encará-la de nariz empinado, o clima ali,
para mim, mudou de súbito.
Eram os efeitos que Grace Peterson me causava involuntariamente. Ela me intimidava.
Aliás, apenas a sua presença me intimidava. E eu me sentia como uma tola, estúpida, por ser
incapaz de evitar esse tipo de coisa. Meu coração acelerou. Só que, agora, o problema não era
exatamente o que ela poderia fazer ou falar comigo. Era o que ela poderia fazer ou falar com a
Rayka.
Eu queria proteger a Rayka de tudo o que eu já tinha sentido por causa da minha avó.
Medo, trauma, nervosismo, ansiedade.
O que eu passei ninguém merecia passar.
Rayka, no entanto, não parecia ter medo da Grace. Encarando-a de queixo erguido,
enquanto Ethan permanecia preso entre os seus dedos, ela respondeu:
— Esse cara está nos incomodando.
Grace, por sua vez, retrucou:
— Acho melhor soltá-lo e parar de agir feito uma selvagem, antes que seja você a pessoa
expulsa dessa festa.
Rayka bufou.
— Tudo bem, eu o solto. Mas, eu solto lá fora, no meio da rua.
Minha avó fuzilou a garota com os olhos, e nem se deu ao trabalho de disfarçar.
Pelo que eu já conhecia de Grace Peterson, ela odiava quando qualquer um a desafiava. E,
bem, ela pouco parecia estar se importando em usar aquela sua antiga capa de falsa educação
com a Rayka, só para fingir que não detestava a garota. Ela sempre a detestou, mas, agora,
depois de começar a sacar o que estava acontecendo entre nós, decidiu deixar a cordialidade de
lado, mesmo que Rayka fosse da família, a filha da mulher do meu pai.
Tirou, então, uma escuta do bolso e, falando, pareceu entrar em contato com algum dos
seguranças:
— Por favor, Oliver, estou com problemas. Uma pessoa precisa ser expulsa da festa.
O quê?!
Não!
Um automático filete de suor se formou na minha testa. Eu sabia que a pessoa a quem ela
estava se referindo não era o Ethan, era a Rayka. Por isso, logo intervi. Não podia deixá-la fazer
isso.
— Não, não, não, vó, espera — segurei sua mão, impedindo-a de continuar falando pela
escuta. — Não faça isso.
— Então, diga para esta selvagem soltar o meu convidado. Não é assim que se recepciona
as pessoas.
Percebi quando Rayka pressionou ainda mais a mandíbula, ao ser chamada de “selvagem”
pela minha avó. Aliás, eu também fiquei indignada, porque a pessoa selvagem daquela história
não era ela. Era o Ethan, que não respeitava nada, nem ninguém, e, como se não bastasse, era
cara de pau o bastante para não se afastar, mesmo sabendo que estava incomodando.
Eu tinha certeza de que Rayka não fazia a menor questão de permanecer naquele jantar.
Nem eu mesma fazia questão de continuar ali. Por mim, teria ido embora na mesma hora que
cheguei. Ainda assim, eu não queria que ela saísse dali como se fosse uma qualquer, uma intrusa
expulsa de uma festa, porque ela não era. Não era mesmo. E eu jamais me perdoaria, se
permitisse que a minha avó fizesse algo assim.
Por isso, fitando-a intensamente, com traços de aflição evidentes no meu olhar, eu a pedi
em silêncio. Pedi para que largasse aquele desgraçado, antes que desse a minha avó o gostinho
de fazer com ela o que bem entendia, do mesmo jeito como fazia comigo. Rayka soprou o ar
pesado dos seus pulmões, enquanto me observava.
Eu sabia, eu tinha certeza de que ela estava me lendo e pensando exatamente o mesmo que
eu.
Não podíamos dar a minha avó o prazer de expulsá-la da festa, porque, certamente, era
isso o que ela gostaria de fazer, antes mesmo da Rayka chegar.
A garota bufou outra vez, indignada, enquanto balançava a cabeça em negativo. Seu
semblante dizia o tempo inteiro que ela não estava achando absolutamente nada certo naquela
situação. Apesar disso, fez o que eu lhe pedia, soltando-o bruscamente, como se ele fosse um
saco de merda.
E ele era mesmo.
Foi quando ouvi a minha avó falar:
— Preciso conversar a sós com você, Victoria.
A frase, em tese, foi para mim, mas ela encarou diretamente a Rayka enquanto
pronunciava cada palavra. Ou seja, o recado estava claro, Grace queria que a garota se afastasse e
tivesse o caminho livre, para encher a minha cabeça de minhocas.
Puxei o ar.
Eu sabia... Eu sabia que isso, mais cedo ou mais tarde, iria acontecer naquela festa. Em
algum momento, a minha avó me puxaria para destilar todas as suas cobranças a respeito do que
gostaria que eu fizesse, ou melhor do que ordenava que eu fizesse. E eu não precisava nem saber
do assunto da conversa, para ter certeza de que era isso o que ela queria. Era por esse motivo que
eu não estava nem um pouco animada com aquele jantar de aniversário. Dentre tantas outras
razões, essa era uma delas para eu estar me sentindo completamente deslocada.
— Você sabe que não precisa ir, se não quiser, Vic — Rayka falou.
Minha avó, no entanto, logo a interrompeu.
— Este assunto e esta situação não estão sob o seu domínio. Portanto, sugiro que não se
intrometa onde não é chamada.
A patada, que a minha avó lhe deu, não acertou a ela, mas acertou a mim. A cada vez que
Rayka era destratada, era como se fosse eu mesma recebendo e sentindo os insultos na pele. E
não, eu não queria que Rayka continuasse recebendo isso, ou algo ainda pior. Assim, mesmo
preferindo encontrar qualquer rota de fuga, fiz o que a minha avó ordenava. As faíscas entre as
duas eram muito palpáveis, e, para que pegassem fogo, só bastava um piscar de olhos. Era isso o
que eu pretendia evitar.
Dei um último olhar a Rayka, me esforçando para fazê-la acreditar que as coisas iam ficar
bem, e me afastei dali com a minha avó. Deixei que ela me guiasse até uma parte mais reservada
do salão.
Foi automático.
Tão logo ela conseguiu, quase literalmente, me encurralar em um canto da festa, meu
braço foi seguramente apertado com força e brutalidade pelos seus dedos.
— O que você está fazendo da sua vida, Victoria?! — exclamou entredentes. Seu tom era
comedido, mas, ao mesmo tempo, intimidante. Tão intimidante quanto os seus olhos rígidos
cravados nos meus. — Eu não reconheço mais a minha neta! Que tipo de atitudes são essas?
Onde está a Victoria Peterson graciosa de sempre? Cadê a educação que eu lhe dei? Desde que
você pôs os pés aqui está agindo como uma mal-educada, sem modos, destratando convidadas e
principalmente o Ethan. Agora, você só consegue sorrir se for para uma sapatão?! É isso?!
Então, ela estava me observando de longe?
— Vovó...
Tentei falar.
Ela, no entanto, me interrompeu, ainda me bombardeando com suas cobranças e
reclamações.
— Me escute, Victoria — apertou ainda mais o meu braço, cravando os seus olhos nos
meus. — Trate já de se desculpar com o Ethan e de tratá-lo bem! Ele é um ótimo rapaz e o tio
dele, Duncan Bailey, o reitor da Rhode está aqui. Não quero nenhum vexame por sua causa!
Bufei.
Eu odiava quando ela colocava Ethan em um pedestal, como se ele fosse o melhor cara do
mundo.
— Vó, o Ethan é um desgraçado! — sem aguentar, exclamei. — Nós já ficamos uma vez,
e ele me destratou. Ele me humilhou! Ethan disse que eu era fácil, e isso é uma absoluta mentira!
— Tem certeza que é uma mentira? — ergueu uma das sobrancelhas para mim. — Se
agora você está, que nem uma vagabunda, querendo dar até para uma mulher, eu suponho que
Ethan esteja mesmo certo sobre o que disse a seu respeito.
Que nem uma vagabunda...
...Querendo dar até para uma mulher.
Suponho que Ethan esteja mesmo certo sobre o que disse a seu respeito.
Suas palavras entraram como facas afiadas pelos meus ouvidos, e, mesmo que eu não
quisesse me abalar com isso, elas perfuraram o meu coração. Se repetindo por umas trezentas
vezes, na minha cabeça, cada uma daquelas frases não me causaram qualquer outro sentimento a
não ser uma profunda decepção com ela.
Grace realmente ia ficar do lado dele, mesmo depois de saber que eu fui humilhada?
Sim, ela ia.
Claro que ela ia.
Eu não deveria ficar surpresa. Na verdade, eu não estava surpresa. O que estava mesmo
era decepcionada, frustrada. E eu senti um bolo idiota se formando bem na minha garganta,
quando caí na real de que, não importava o que eu fizesse, o quanto eu me esforçasse ou o
quanto eu estivesse certa sobre qualquer coisa, minha avó jamais, jamais estaria do meu lado
porque ela não queria estar do meu lado.
Simplesmente assim.
Ela não queria.
Não por eu estar errada, mas porque ela tinha prazer em não concordar com absolutamente
tudo o que fazia ou deixava de fazer.
Essa era Grace Peterson.
E eu estive muito enganada, durante a minha vida inteira, quando achei que algum dia, em
algum momento, eu conseguiria alcançar cem por cento da sua aprovação, para tê-la ao meu lado
do jeito como eu sempre sonhei.
Honestamente, eu estava cansada.
Cansada de tentar cumprir com as suas expectativas, com as suas ordens.
Eu estava cansada de ser humilhada por ela e por outras pessoas que se achavam no
direito de fazer isso comigo.
Com os olhos cheios d’água, puxei o meu braço bruscamente para que a sua mão me
soltasse. Foi quando ela franziu o cenho para mim, suas orbes austeras e rigorosas.
— O que foi? — questionou. — Pensei que tivesse ficado claro que não vou admitir
nenhum showzinho seu essa noite. Quero apresentá-la ao reitor. Duncan precisa perceber que
vale a pena recebê-la na Rhode. E a sua transferência tem que acontecer logo. Venha, vamos.
Tentou me segurar pelo braço de novo.
Eu, no entanto, rapidamente dei um passo para trás e, dura, ainda com os olhos molhados,
respondi:
— Não.
O vinco na sua testa se tornou maior.
— O que disse?
Parecia não acreditar no que ouviu.
— Eu disse que não — repeti. — Não, não, não. Está claro agora? Eu não vou falar com
ele. Eu não quero falar com ele.
E ela me encarou como se eu a tivesse insultado com dezenas de palavrões diferentes.
— Você está enlouquecendo, Victoria?
— Não, não estou enlouquecendo. Só não estou em condições de falar ou de decidir sobre
o meu futuro agora.
Ela, por sua vez, ofegou, consternada, como se essa fosse a maior afronta que eu já tivesse
feito a ela, em toda a minha vida. E, bem, provavelmente era mesmo.
— Será que não percebe que as suas palavras e as suas atitudes só me deixam cada vez
mais decepcionada de ter uma neta como você? Não percebe o quanto eu tenho me esforçado
para fazer de você uma mulher de verdade e bem-sucedida?! Já imaginou quantas portas vão se
abrir, se você for para Rhode? Você vai se tornar uma artista famosa e todos vão querer comprar
as suas coleções! Agora, vamos falar com Duncan! — Tentou segurar o meu braço outra vez. —
Você sabe que é isso o que Madelyn, a sua mãe, iria gostar que você fizesse.
Chega!
Não dava mais.
Simplesmente não dava.
Eu não conseguia mais nem puxar o ar para dentro dos meus pulmões direito.
Enquanto Grace dizia que eu a decepcionava, ela só me machucava. O tempo todo. O
tempo inteiro. E me machucava ainda mais, a cada vez que usava o nome da minha mãe, para
tentar me convencer de algo que ela mesma queria que eu fizesse.
Senti um aperto no meu peito, uma sensação ruim. Talvez fosse falta de fôlego. Uma
espécie de calor, misturado com frio, e tremor. Parecia ansiedade, ou sei lá. As pontas dos meus
dedos estavam dormentes. Acho que eu estava passando mal.
— Preciso sair daqui, com licença. Não estou me sentindo bem.
Foi tudo o que eu disse, dando as costas para ela e caminhando ligeiro por entre as pessoas
da festa.
— Victoria? Victoria!
Ainda escutei quando me chamou, mas não parei para lhe dar atenção outra vez.
Agora, eu precisava cuidar de mim. Era a mim que eu deveria dar atenção. Passei a vida
inteira preocupada em agradar os outros, quando, na verdade, eu estava me desagradando e
adoecendo mentalmente nesse processo. Tudo o que eu tinha que fazer, a partir deste momento,
era me preocupar com a minha saúde física, mental. E tentar voltar a respirar.
Juro que eu não fazia ideia de como não tropecei nos meus pés, com a pressa e a agonia
que eu estava. Meus olhos tão cheios d’água não conseguiam nem enxergar direito um palmo à
minha frente. Ainda esbarrei em uma porção de pessoas pelo caminho e tinha certeza de que
muitas delas me olharam confusas, sem saber o que estava acontecendo. Eu, obstinada, apenas
continuei quase correndo para fora.
Foi então que, mesmo com a visão turva pelas lágrimas, eu fui capaz de ver o céu
estrelado, quando, enfim, cruzei as portas e alcancei o jardim.
Por um segundo, senti como se tivesse me libertado de alguma prisão.
E, finalmente, fui capaz de puxar o ar para bem dentro dos meus pulmões, recuperando as
forças das minhas pernas, antes fracas pela falta de oxigênio.
Fechei os olhos, deixando lágrimas silenciosas escorrerem e, então, senti quando o meu
braço foi tocado.
Sua voz bonita falou:
— Vic? Amor? Te vi correndo pra cá... O que a Grace fez com você?
Não fui capaz de respondê-la naquele momento. Me virei de súbito, abraçando-a forte,
muito forte, sem nem me dar ao trabalho de abrir as pálpebras.
Eu já tinha certeza de que era ela.
E isso foi o suficiente.
Era nos seus braços que eu encontrava conforto e segurança.
— Me tira daqui — pedi. — Me tira daqui, por favor.
SEMPRE GOSTEI DE MULHER

“Nua comigo, você tem que ficar nua comigo”


Bare Wit Me | Teyana Taylor

VICTORIA

Rayka era tão fantástica que não precisou de mais do que cinco minutos para conseguir um
carro que nos levasse de volta à fraternidade. Enquanto eu apoiava a cabeça no seu colo, ela
passou o caminho inteiro afagando os meus cabelos e não deu uma palavra sequer, porque sabia
que eu precisava, pelo menos, do tempo do percurso para digerir tudo o que tinha acontecido.
Eu não estava chorando, mas sentia cada uma das minhas articulações doer, como um
reflexo das palavras e das atitudes da minha avó que machucavam a minha alma. Era como se o
meu corpo, não satisfeito em aguentar toda a pressão interna, estivesse colocando para fora tudo
o que havia de ruim por dentro, numa tentativa de expulsar aquilo que não me fazia bem.
Desliguei o meu celular, ao perceber as dezenas de mensagens e ligações perdidas da
Grace que se acumulavam. Ela, provavelmente, estava em puro estado de fúria e desespero. Eu,
no entanto, não queria lidar com isso agora. Pelo menos, não agora. Eu não sabia por quanto
tempo ela ia aguentar sem ir atrás de mim. A qualquer momento, Grace poderia aparecer, mas
preferia não pensar nisso, ou iria regredir tudo o que, a muito custo, eu já tinha acalmado.
Uma coisa de cada vez.
Quando chegamos à fraternidade, uns vinte minutos depois, o lugar estava tranquilo.
Como já passava da meia-noite, a maioria das garotas estava dormindo.
Subimos as escadas juntas, enquanto Rayka carinhosamente me segurava pela cintura,
dando-me apoio para caminhar. Dessa vez, não fomos para o meu quarto, fomos para o dela.
As paredes brancas, os móveis clean e o estilo da estrutura neoclássica da fraternidade
ainda estavam lá, claro. Mas, tudo, absolutamente tudo tinha a cara dela, o jeito dela, a
personalidade dela. Desde os pôsteres de bandas de rock pregados nas paredes e as colchas de
cama escuras, até as roupas pretas, bagunçadas e espalhadas pelo chão. Rayka era o meu total
oposto, e o seu quarto, ainda que fizesse parte da fraternidade, não tinha nada a ver com o meu.
A antiga Victoria poderia entrar em colapso, no meio daquela desorganização. Eu, no
entanto, só conseguia me sentir estranhamente... Em casa. Sim, muito mais em casa do que no
meu próprio quarto, mesmo que isso não parecesse ter lógica.
Respirei fundo, me sentindo ainda mais calma, como se a sua bagunça de preto, skates e
bonés fosse cura para minha própria desorganização mental. Percebi o momento em que, depois
de fechar a porta e livrar-se do seu próprio blazer, se aproximou de mim e, com as suas mãos
leves, tirou o casaco que eu usava por cima do vestido, pendurando-o em um cabide de roupas
por ali.
Enquanto ainda compartilhávamos um silêncio de pura cumplicidade, Rayka,
estupidamente encantadora como sempre, me fez deitar em sua cama, sentou-se por perto, de
modo que as minhas pernas ficaram sobre o seu colo, desabotoou as minhas sandálias e
massageou os meus pés e as minhas mãos, mais uma vez. Sim, mais uma vez, assim como no dia
em que eu estava preocupada com o teste. Isso já parecia um ritual seu. Um ritual que ela usava
sempre que me percebia tensa.
E, se o seu objetivo era me fazer bem, ela conseguia isso com maestria, porque,
honestamente, eu não sabia se era só pela massagem ou pelo conjunto inteiro da obra que Rayka
Ferris era, mas ela foi capaz de me deixar ainda mais à vontade e confortável do que eu já me
sentia só de estar em seu quarto.
Eu enxergava o cuidado que ela tinha por mim, em cada mínimo detalhe das suas ações,
ou do jeito amável e seguro como os seus dedos deslizavam e apertavam a minha pele. Era puro
carinho.
Quase... Devoção.
Rayka parecia devota a mim.
E eu só me perguntava por que eu tinha passado tantos anos da minha vida tentando achar
uma pessoa perfeita, quando ela estava bem na minha frente.
Rayka era demais.
Muito mais do que eu poderia imaginar.
Ainda virei brevemente o rosto para o lado, respirando fundo o cheiro maravilhoso do seu
perfume impregnado nos lençóis e nos travesseiros. Tudo o que eu mais queria era que esse
perfume também ficasse grudado em mim, marcando o seu território na minha pele.
Então, depois de alguns minutos da mais agradável e gostosa massagem nos meus pés, ela
se deitou ao meu lado e...
— Vem cá... — finalmente falou, puxando-me para apoiar a cabeça no seu peito.
Era a primeira vez que Rayka pronunciava alguma coisa, desde que saímos da festa. Nada
tirava da minha cabeça a certeza de que ela me deu um tempo para processar, para respirar, para
tentar colocar minimamente a cabeça no lugar, sem me forçar a falar quando ainda não fosse da
minha vontade.
Rayka era madura nas suas decisões.
E isso só me fazia admirá-la ainda mais.
Suspirando, satisfeita, aproveitei para passar uma das pernas sobre as suas, encaixando a
minha coxa, enquanto o tronco se colava ao seu. Estávamos grudadinhas, do jeito que eu
adorava. E tudo se tornava ainda mais gostoso com os seus carinhos nos meus cabelos e o cheiro
do seu perfume o tempo todo no meu nariz.
Passamos longos minutos assim, deitadas, dividindo uma porção de carinhos misturados
com aquele silêncio de cumplicidade que já era tão familiar à nós, até que eu, enfim, me sentindo
um pouco mais preparada para tocar no assunto, abri a boca e disse:
— Obrigada. Por tudo.
— Você sabe que não tem que me agradecer.
— Mas eu quero... Você tem sido pra mim o que pessoa alguma nunca foi.
— Eu tenho sido o que? — perguntou ela, encarando-me com um sorrisinho adorável,
enquanto uma das suas mãos ainda deslizava sobre os seus cabelos.
Olhando no fundo das suas orbes, respondi:
— Tudo. Você tem sido tudo.
E isso era a mais pura verdade.
Encontrei nela, a última pessoa que eu imaginava, o que sempre procurei por aí e nunca
soube como realmente dar um nome. Amor. Agora, eu sabia. Eu tinha certeza absoluta de que
não existia qualquer outra palavra no mundo, capaz de descrever o seu cuidado por mim, que não
fosse amor.
Linda e exultante, ela sorriu ainda mais, me puxando para um beijo.
— Obrigada por ter me tirado de lá — completei contra os seus lábios. — Não sei se
conseguiria sozinha. Minha avó me mostrou hoje, de uma vez por todas, o quanto eu estava
enganada sobre ela durante a minha vida inteira. Ou sei lá… O quanto eu tentei me cegar a vida
inteira. Estava claro, bem na frente dos meus olhos, mas eu não quis enxergar.
Foi quando Rayka afastou um pouco o rosto, suspirando. Um traço de insatisfação
perpassou o seu olhar. E, então, mesmo de leve, sua mandíbula pressionou.
— Juro que, se não fosse por você, eu não sei o que teria feito a Grace — resmungou. —
Sei que ela é a sua avó, então me desculpe pelo que vou dizer, mas eu não consigo engolir aquela
mulher. Nunca consegui.
— Tudo bem, eu entendo... Na verdade, eu entendo até demais. — eu sentia na pele, muito
mais que a Rayka. — Também estou farta disso tudo, dela, das cobranças que me faz, das
expectativas que coloca em cima de mim. Eu tô cansada, Rayka. Cansada de fazer tudo o que os
outros querem.
— Então, não faça, meu amor — respondeu ela, incisiva. — Você precisa parar de se
sentir na obrigação de fazer absolutamente tudo o que a sua avó quer. Isso não é nem um pouco
saudável. Você já tem vinte e um anos. Está com idade suficiente para caminhar com as próprias
pernas e tomar decisões por si só.
E eu sabia que ela estava completamente certa em cada uma das suas palavras.
Diferente daquela outra Victoria, que se achava dona da razão, mas era apenas burra e
cega o suficiente para não medir esforços em tentar ser perfeita e alcançar os padrões inatingíveis
da avó, agora eu ouvia. Simplesmente, baixei a minha crista e passei a ouvir os conselhos das
pessoas que queriam o meu bem.
Rayka era uma dessas pessoas, e eu não tinha a menor dúvida.
— É... Acho que estou começando a adotar essa filosofia de só fazer o que eu quero... —
puxei o ar de leve, relembrando, então, o quão ridículo foi aquele jantar. — Grace exigiu que eu
tratasse bem o Ethan. Quero dizer, ela estava literalmente me jogando para cima dele, por puro
interesse, só porque ele é sobrinho do reitor da Rhode... Grande coisa — rolei os olhos.
— Filho da puta — resmungou irritada. — Eu acabaria fácil com a cara dele.
— Você não está sozinha nisso. Eu também acabaria, se pudesse.
Ela balançou a cabeça em negativo.
— Não sei de onde a sua avó tira essas ideias absurdas.
— Ah, pois eu sei sim — respondi meio exausta, porque essa história com a Rhode me
perseguia desde que era uma criança. — O plano que Grace traçou para mim, desde que eu tinha
nove anos de idade, era que, depois que eu passasse na universidade e assumisse a presidência da
fraternidade por um período que me fizesse cumprir com a tradição das Peterson, eu seria
transferida para a Rhode e concluiria o meu curso de Artes Plásticas lá. Era isso o que a minha
mãe faria. A diferença era que ela não ia para a Rhode estudar. Ela iria para trabalhar e estava
quase de mudança comigo e com o meu pai, quando descobriu o câncer uma semana antes.
Todos os seus planos foram cancelados, e, então, ela partiu. Acho que, depois que mamãe
morreu e não realizou o sonho que ela tinha, eu... Eu não sei... Eu... — balancei a cabeça de leve,
fazendo um esforço mental para tentar encontrar palavras que realmente explicassem o que tinha
acontecido comigo. — Eu acho que... Eu acho que tomei isso como um dever meu, sabe? Já que
ela não realizou o sonho que tinha, eu faria por ela. Achei que fosse o certo, principalmente por
causa da minha avó. Ela vivia dizendo que era isso o que minha mãe gostaria que eu fizesse. Na
real, ela diz isso até hoje. Grace passou toda a minha infância e adolescência me preparando para
isso. Só que agora... — suspirei, ainda sem saber como explicar isso direito. Era confuso até para
mim mesma. Aquela recente sensação de deslocamento não dizia respeito apenas ao mundo da
minha avó, mas também aos planos que ela traçou para mim. — Agora… Eu não sei exatamente
o que está acontecendo comigo, mas... Tenho pensado se isso é realmente o que eu quero fazer
da minha vida. À medida que eu tenho caído na real sobre uma porção de aspectos da minha
vida, eu já não tenho mais certeza se quero ir para Providence, terminar o meu curso na Rhode e
depois trabalhar lá. Sei que isso abriria muitas portas para mim, mas... Não faço ideia se quero ir
por esse caminho. Não faço ideia mesmo.
Parecia que, quanto mais a minha visão clareava, mais eu enxergava nitidamente a minha
vida e tudo ao meu redor. Coisas que passaram tanto tempo obscuras, enquanto eu
propositalmente me cegava, agora se mostravam tão evidentes. Evidentes, mas não menos
confusas. A pergunta que cercava os meus pensamentos era uma só: será que era realmente isso
o que a minha mãe queria para mim?
Ou melhor... Será que era realmente isso o que EU queria para mim, ou a ideia de me
transferir para Rhode era apenas uma consequência de eu ter aceitado passivamente, a vida
inteira, todas as decisões da minha avó?
Eu já não era mais eu mesma.
A Victoria Peterson de agora não era a mesma que aceitou, em silêncio, aquele plano,
ainda na infância e na adolescência.
As coisas estavam diferentes.
Principalmente eu.
— Saiba que vou te apoiar, independente da decisão que você tomar — disse ela. — Vou
estar do seu lado, sempre, você decidindo ficar ou ir para a Rhode.
E o meu coração esquentou só de ouvi-la dizer isso.
Nunca achei que uma pessoa conseguiria se tornar ainda mais linda, só pelo que falava,
mas Rayka me provava isso. Aliás, ela me provava muito mais que isso. A cada minuto, ela fazia
jus em ocupar o seu lugar de melhor pessoa que eu poderia ter ao meu lado.
Sorri para ela, boba, completamente boba, enquanto encaixava a minha mão na região
entre o seu rosto e o seu pescoço, puxando-a para um beijo.
— Obrigada — disse eu contra os seus lábios. — Obrigada mil vezes por me apoiar.
— Eu tô aqui pra te dar suporte, Vic — respondeu ela. — Mas, não se esqueça de que essa
decisão deve ser tomada por você, e não pela sua avó.
Suspirei, me afastando um pouco.
— Sim, eu sei disso. Sei tão bem que, às vezes, eu fico imaginando se, de fato, ir para
Rhode e seguir os passos que a minha mãe não deu, era o que ela iria querer para mim, se ainda
estivesse aqui.
— Não aceite fazer qualquer coisa sem ter a mínima vontade para isso, meu amor. Sei que
temos vinte e um anos e somos muito novas. Algumas das pessoas mais interessantes que eu já
conheci, não sabiam o que fazer da vida aos quarenta, mas… Mesmo assim, mesmo sem ter
certeza, no fundo, a gente sempre sente alguma coisinha, sabe? Nem que seja uma mínima
vontade. Se nem mesmo ela existir, é um problema. A gente só tem que fazer o que a gente quer.
— E foi isso o que a minha mãe fez... — sorri de leve, me lembrando das palavras do meu
pai. Desde aquela conversa com ele, eu sempre ficava admirada e orgulhosa, quando pensava no
que ela realmente tinha feito. — Passei a vida inteira achando que a minha mãe foi uma boneca
perfeita e impecável, que fez tudo o que Grace queria. E, então, há poucos dias, eu descobri que,
na verdade, ela era muito corajosa. Ela enfrentou a minha avó, que não aprovava o
relacionamento, para ficar com o meu pai. Eu a admiro pela coragem de ter feito o que queria, e
não o que Grace ordenava que ela fizesse. Se isso não tivesse acontecido, eu nem estaria aqui
agora. Minha mãe era incrível. Sério.
Rayka sorriu para mim, aparentemente tão orgulhosa e admirada quanto eu.
— Sabe o que eu acho?
— O que?
Puxou o ar de leve, ajeitando-se sobre a cama, e, então, pousou uma das suas mãos no meu
pescoço. Cravando os seus olhos nos meus, encarou o fundo das minhas orbes e, com toda a mais
nítida e linda sinceridade, falou:
— Eu acho que a sua mãe, onde quer que esteja agora, tem muito, muito orgulho de você e
vai continuar tendo, independente do caminho que você escolher seguir, porque ela te ama, quer
te ver feliz, e conhece o seu coração. Não existe alguém no mundo que conheça o seu coração,
assim como eu, e não fique orgulhoso da pessoa incrível que você é. Você é muito maior do que
os seus medos e as suas dúvidas sobre o futuro, Victoria. Muito maior.
A sua mãe, onde quer que esteja agora, tem muito, muito orgulho de você...
...Não existe alguém no mundo que conheça o seu coração, assim como eu, e não fique
orgulhoso da pessoa incrível que você é.
Você é muito maior do que os seus medos e as suas dúvidas.
Muito maior.
Meus olhos brilharam para ela.
Eu juro que eles brilharam, sem que eu precisasse fazer o menor esforço para isso.
Rayka me fascinava.
Ela me fascinava por completo.
De todas as coisas que eu poderia ter dúvidas, ela era a minha maior certeza. O meu maior
acerto. Não importava o que falassem, ou o quanto a minha avó tentasse nos afastar, Rayka
continuaria sendo o meu maior acerto. E nada, absolutamente nada seria capaz de tirar isso da
minha cabeça. Ou melhor, nada seria capaz de tirá-la da minha cabeça.
Ela era um fato consumado na minha vida.
E encarar os seus olhos escuros, intensos e tão bonitos, depois de ouvi-la dizer isso, só me
dava ainda mais certeza de que eu a queria.
Eu a queria, por inteiro.
Completamente.
Cada parte do seu corpo entre as minhas mãos, entre os meus dedos, entre os meus lábios.
De preferência agora.
Diziam que a libido de uma mulher era instigada pelo que ela ouvia. Rayka, no entanto,
conseguia me excitar não apenas pelo que falava para mim, mas também pelo que me mostrava
nas suas atitudes, no seu coração, no seu corpo.
Essa era a nossa preliminar.
E, Deus, como eu a queria nesse instante.
Eu a quis desde que a vi dentro daquele miserável blazer estiloso.
A vontade de tirar cada uma das suas peças.
Aliás, eu sempre a quis, até mesmo quando tinha medo de querer.
— Você é perfeita, Rayka Ferris.
— Perfeita? — ergueu uma das sobrancelhas para mim, divertida, sorrindo. — Será que
agora estou alcançando o padrão das Peterson?
Soltou uma risadinha, brincando.
Eu, no entanto, com total seriedade e honestidade, sentindo o desejo escorrer por cada uma
das minhas palavras, balancei a cabeça em negativo.
— Não, você não alcança o padrão das Peterson. Você supera ele.
E simplesmente a puxei para um beijo, mostrando-a que, agora, não era brincadeira o que
eu queria fazer. Guiada pelo desejo, me permiti montar sobre o seu corpo, deixando uma perna
de cada lado. Rayka me segurou pela cintura e, quando dei por mim, entre os beijos, ela já
deslizava para baixo da minha roupa, enchendo as duas mãos com a minha bunda, apertando,
pressionando, arrancando gemidos meus.
As coisas, entre nós, tomavam intensidade rápido demais. Bastava um piscar de olhos para
que o gelo se tornasse fogo. O frio transformando-se em calor.
Lembranças do momento em que estávamos no carro, antes de chegarmos à festa, quando
eu desejei não ir para o jantar, mas, sim, colocar em prática tudo o que eu tinha visto no site da
Sophie Hall.
Ah, Deus, agora eu podia tirar cada peça da sua roupa.
Quando comecei a desabotoar a sua camisa e ela percebeu o que estava acontecendo ali,
porém, suas mãos seguraram as minhas, travando momentaneamente o ato.
— Vic... Tem certeza? — perguntou, sua respiração já irregular. Eu via, eu enxergava
perfeitamente o desejo estampado no seu rosto. E era a coisa mais linda desse mundo. Ainda
assim, porém, os seus olhos carregavam certa preocupação. — Olha, não precisa se forçar a
fazer... Naquele dia, a gente tentou e...
— Rayka... — ofegante e cheia de vontade, a interrompi prontamente. — Será que não
percebe que estou completamente louca para transar com você? É tudo o que eu mais quero.
Soltando automaticamente o ar dos seus pulmões, como se eu tivesse-a feito derreter
apenas com essas palavras, os seus olhos fitaram os meus numa mistura de tesão, amor e
fascínio.
— Mesmo?
Parecia tão encantada.
E apaixonada.
— É lógico — enfatizei. — Lembra lá na festa, quando eu falei que queria estar em um
lugar a sós com você?
Ainda em êxtase, ela apenas balançou um sim com a cabeça, encarando o fundo das
minhas orbes.
— Pois bem, agora estamos.
E isso foi tudo o que eu precisei dizer para que, dessa vez, fosse ela a avançar na minha
boca. Quase ri de prazer contra os seus lábios. Eu amava, amava quando ela me tocava e me
tomava entre os seus braços com tanta vontade. O resultado de anos de um desejo reprimido em
mim, que agora eu podia demonstrar e colocar para fora sem sentir peso na consciência.
Rayka era quase como... A realização de um sonho adolescente.
Arfei entre beijos, quando ela me invadiu por baixo do vestido, apertando as minhas coxas
e a minha bunda com ainda mais força que antes. Puta que pariu, os seus dedos firmes me davam
tanto tesão. A verdade era que o seu toque conseguia transitar perfeitamente entre a sutileza de
um carinho e a força de um sexo. Ela sabia os momentos exatos e adequados para cada tipo de
atitude.
Numa rapidez louca, como quem não aguentava mais nem um segundo sem sentir pele
contra pele, nós começamos a tirar a roupa uma da outra. E não aguentávamos mesmo. Dessa
vez, ela me deixou desabotoar sua camisa inteira, assim como a calça social, que logo foi parar
no chão junto com a sua calcinha boxer. A sensação de arrancar cada peça sua e deixá-la nua
para mim, só para mim, coisa que eu desejei fazer a cada vez que a olhei durante aquele ridículo
jantar, era indescritivelmente maravilhosa.
Enquanto ela abria o zíper do meu vestido, largando-o no chão, junto à sua roupa já
deixada ali, também se livrava da minha calcinha. Por baixo, eu já nem usava sutiã. E ela
percebeu isso. Percebeu quando me viu completamente nua sobre ela. Peitos à mostra, pele toda
descoberta, boceta só esperando a dela.
Suas mãos subiram pelo meu tronco, alcançando os meus seios. Foi quando os dedos
estimularam os meus mamilos, já bem excitados. Quanto mais ela tocava, mais a minha boceta
latejava. Fechei os olhos, inclinando a minha cabeça para trás. Entre as minhas pernas, minha
lubrificação já escorria, provavelmente molhando a sua barriga.
— Sou capaz de gozar só de olhar pro teu corpo, Victoria — disse ela, ainda apertando e
roçando os bicos dos meus peitos. Eles estavam tão enrijecidos e empinados, esperando pela sua
boca. Minha vontade instintiva era de começar a me esfregar nela. — Me deixa te chupar, vai...
Abre as pernas pra mim.
E habilmente me virou sobre a cama, ficando em cima de mim.
Esse “Me deixa te chupar, vai... Abre as pernas pra mim”, soava totalmente, totalmente
convincente, sobretudo com a porra daquela sua voz rouca e gostosa de quem já tinha nascido
safada. Era, de fato, uma tentação.
Porém...
Existia algo.
Uma coisa muito mais urgente para mim. Algo que estava despertando a minha libido
ainda mais do que a promessa do sexo seu oral estupidamente delicioso. Era uma coisa que eu
precisava fazer, antes que a minha boca babasse de tanto salivar de vontade.
Isso estava martelando e triturando todo o meu juízo, desde que eu acessei o site daquela
mulher. A tal educadora sexual. Tudo bem que os conteúdos não eram pornográficos, mas, ainda
assim, porra, davam uma vontade. Uma vontade desgraçada de colocar em prática, ainda que a
minha insegurança vez por outra quisesse aparecer.
E, bem, se eu levasse em consideração que eu tinha esse desejo, mesmo enrustido, há
anos, as coisas se tornavam ainda mais insanas.
Ou seja, era tempo demais esperando.
— Tudo bem, você pode me chupar — falei. — Mas, só depois que eu fizer em você.
— Como é que é?
Ela paralisou.
Seu rosto subitamente mais vermelho de tesão.
Eu sorri.
Mesmo que algumas breves, leves e inoportunas inseguranças ainda quisessem sussurrar
bobagens lá no fundo da minha consciência, eu sorri. Afinal, Sophie Hall disse que sexo era
momento de tesão, e não de tensão.
— Eu disse que vou te chupar primeiro, amor.
— Ah, meu Deus... — ela sibilou e, então, fechando os olhos por um segundo e apertando-
os, completou, gemendo. — Você ainda vai me matar, garota.
Soltei risadinhas.
E, da mesma forma como há pouco ela fez comigo, eu fiz com ela. Habilmente a girei
sobre a cama, trocando as nossas posições. Dessa vez, era a Rayka quem estava por baixo.
Foi automático, ofeguei ao me perceber por cima, encarando-a com olhares de puro tesão
e desejo. Olhares absolutamente verdadeiros. Não existia um centímetro do meu corpo que não
estivesse queimando por causa dela. Rayka era inacreditável. Gostosa em último grau. E, na
posição que eu estava, tinha uma visão privilegiada de tudo o que agora era meu.
Os braços definidos e tatuados, os gominhos na barriga, a cintura bem delineada, os peitos
lindos. O resultado dos exercícios que ela fazia todas as manhãs, cedinho, antes de ir para a aula.
E... Aquela tatuagem.
Aquela tatuagem muito específica.
A maldita serpente.
Minha boca involuntariamente salivou, enquanto o rastro de um pensamento antigo, muito
antigo, me perpassou. Essa tatuagem sempre me intimidou. Antes, eu não sabia por qual motivo.
Não parecia fazer sentido, me perceber assustada por causa de um desenho, ainda que fosse
muito bonito e muito bem-feito.
Agora, no entanto, eu conseguia desvendar o mistério.
A serpente era uma filha da puta tentadora. Ela chamava a minha atenção, retinha os meus
pensamentos, e, mesmo que antes eu não quisesse admitir a mim mesma, ela sempre foi capaz de
me fazer imaginar, lá na parte mais escondida da minha consciência, um milhão de bobagens a
respeito da Rayka e do seu corpo.
A tatuagem me instigava.
Antes, eu não conseguia ver o final da cabeça da serpente, mas, agora, com a garota sem
roupa, eu tinha a visão na íntegra. Desde o vale entre os seus seios até perto da sua boceta. A
serpente terminava com a cara quase em cima. A língua para fora. A representação da ousadia
que ela mesma tinha.
Claro que aquela sapatão tinha que fazer uma tatuagem assim, só para me deixar cheia de
vontade de...
Argh.
Sem aguentar, me permiti fazer algo que eu tinha certeza que desejava desde a primeira
vez em que vi aquela maldita serpente. Baixei o rosto e lambi. Lambi tudo, dolorosamente
gostoso, desde a cabeça dela, perto da boceta, passando pelo seu corpo, que se estendia pela
costela esquerda, até chegar no rabo.
Rayka arquejou, enquanto eu passava a língua por toda a extensão do desenho sobre a sua
pele, e gemeu ainda mais, quando, ao chegar no final da cobra, suguei os peitos. Coloquei-os na
minha boca, um de cada vez, lambendo e chupando os mamilos, daquele jeito safado como ela
fazia comigo.
— Puta que... Victoria... — dizia ela, entre respirações irregulares.
Seu rosto cheio de tesão era a coisa mais linda do universo.
Sério.
Ainda que a gente tivesse demorado tempo demais para fazer esse tipo de coisa, ou ainda
que, agora, batesse certo arrependimento por não termos nos entendido logo, percebendo o
quanto era realmente gostoso nós duas juntas, talvez, só talvez, esse fosse, de fato, o momento
certo para isso acontecer.
Era a primeira vez que eu chupava os peitos de uma mulher, e não sabia se, antes, eu seria
capaz de enxergar esse ato com tanta naturalidade quanto agora, ou de fazer isso sem depois ser
tóxica com ela e destilar uma série de palavras preconceituosas de alguém que não se aceitava e
não se entendia bem consigo mesma.
Talvez, só talvez, eu realmente tivesse precisado atravessar todo aquele caminho, para
chegar aqui, agora, e me sentir pronta para fazer isso sem culpa, sem arrependimento, sem
remorso.
Apenas uma garota completamente apaixonada por outra, com tesão por ela e querendo
dar prazer a ela.
— Tá gostoso? — perguntei.
— Muito!
Sua resposta causou agitação no meu peito. Ao mesmo tempo que eu me sentia incrível
por estar fazendo isso, eu também me apaixonava, ainda mais, não apenas por ela, mas por nós
duas juntas.
A gente fazia uma obra de arte na cama.
— Pois eu quero deixar muito mais gostoso.
Foi tudo o que eu falei, segundos antes de deslizar pelo seu corpo e parar com a cara de
frente para sua boceta. Rayka estava com as pernas abertas, e eu estava bem no meio,
inevitavelmente admirando o quanto o seu sexo era perfeito igual a todas as outras partes do seu
corpo. Eu olhava para ele e ele parecia me chamar, como se, o que quer que acontecesse agora,
fosse a consumação de algo que a vida predestinou a nós, desde a primeira vez que nos vimos na
casa de praia de Jacksonville.
— Você é maravilhosa... — falei.
Ela, por sua vez, soprou o ar, e, então, como se estivesse com a boca seca, passou a língua
entre os lábios, dizendo:
— E você, se realmente fizer isso, vai acabar comigo, Victoria.
— Por quê?
— Porque você não tem ideia da quantidade de vezes que eu te imaginei entre as minhas
pernas e a quantidade de vezes que eu precisei reprimir esses pensamentos por achar que isso
jamais iria acontecer. Parece que eu tô sonhando, Victoria.
Parece que eu tô sonhando, Victoria...
Puxei o ar de leve.
Sim, parecia que eu estava sonhando também.
Confesso que um misto de tesão e nervosismo perpassou o meu corpo e a minha cabeça,
ao assimilar as suas palavras. Eu sabia que essa definitivamente não era a sua intenção. Rayka
obviamente não quis me intimidar com as suas palavras. Na real, ela só parecia estar colocando
para fora o quanto se sentia satisfeita e realizada com o nosso momento.
Eu também estava.
Estava demais.
Mas...
De algum modo, de uma forma ou de outra, notá-la tão expectante pelo que eu poderia
fazer entre as suas pernas, me fez sentir um filete de hesitação. Sim. Infelizmente sim, por mais
estúpido e ridículo que isso fosse. Aquela velha insegurança de não alcançar as suas
expectativas, junto com o fantasma das memórias da última vez, quando me achei imponente e
inexperiente demais para lhe dar prazer na boceta.
Droga.
Droga, droga, droga.
Para com isso, Victoria.
Para com essa merda.
Balancei a cabeça para mim mesma, tentando espantar os pensamentos miseráveis.
Suspirei e, então, me dei conta de que, muito mais forte do que as minhas inseguranças,
era a minha vontade de fazer. Sim, eu queria fazer. Eu queria muito fazer isso nela. Era o que eu,
de fato, estava desejando. Ou melhor, era o que eu sempre desejei, até quando eu era imatura o
suficiente para não saber que era isso o que eu desejava.
Tanto quanto lamber a sua serpente, eu também queria chupar a sua boceta. E isso estava
martelando a minha cabeça. Martelando, consumindo as minhas vontades, preenchendo os meus
pensamentos, especialmente depois de assistir aquelas aulas de educação sexual. A vontade
parecia aumentar a cada minuto.
Eu não queria deixar de fazer isso. Não mesmo.
Eu queria saber como era, de fato, na prática. E não apenas na teoria.
Eu queria ser boa em lhe dar prazer. Aliás, eu queria ser boa em nos dar prazer, porque eu
sabia que, enquanto eu lhe desse prazer, eu estaria dando a mim também.
Obstinada, então, me posicionei e deslizei, pela primeira vez na vida, a ponta da língua sua
boceta, de baixo até em cima. Ainda com pouco tato, com pouca habilidade, com certo medo de
errar.
Porém...
— Puta que pariu! — Rayka exclamou, de pronto, colocando uma das mãos no rosto,
enquanto pressionava e esfregava os olhos fechados, com o indicador e o polegar.
Juro que, por um segundo, ofeguei, preocupada.
Será que eu tinha feito algo de errado?
— O que foi? — perguntei. — Não gostou?
Foi quando ela tirou a mão do rosto, se apoiou nos cotovelos e abriu as orbes outra vez,
fitando-me seriamente e dizendo:
— Victoria, você é uma filha da puta desgraçada e gostosa demais! — A excitação
escorrendo por cada uma das suas palavras. — Acho que posso gozar a qualquer momento.
Então, apenas continue com isso. Não pare. Por favor, não pare.
E ela pedia com uma necessidade tão aparente que foi impossível não sorrir da loucura
misturada com desejo nos seus olhos.
Eu ainda não sabia bem como fazer isso, não tinha prática alguma, apenas teorias da vida e
de Sophie Hall, mas eu realmente queria continuar. Não apenas porque ela estava pedindo, mas
também por puro tesão.
E eu continuei.
Com o indicador e o dedo do meio, abri ainda mais a sua boceta, voltando a lamber. Quero
dizer, dessa vez, eu não só lambi, eu literalmente a chupei. Do jeito como eu achava que sabia,
fiz. Tentei puxar, lá da minha memória, o que Sophie Hall tinha falado sobre sexo oral, nas aulas
de educação sexual.
O jeito, a intensidade, os movimentos, tudo.
Tentei me lembrar de tudo.
E, claro, pensei também na forma como eu gostava que fizessem em mim, do jeito como
Brittany tinha me aconselhado.
Rayka não demorou a gemer.
Gradativamente, os seus gemidos se tornavam mais altos. Eles não eram nem um pouco
discretos, assim como ela também não parecia se importar em estarmos dentro da fraternidade e
sermos ouvidas. Confesso que eu também não. Pela primeira vez, eu não me importava com o
que iriam pensar.
E, mesmo que os sussurros daquela minha intrusa insegurança quisessem me convencer de
que aquilo poderia ser fingimento só para me incentivar, eu não conseguia acreditar. Não, não
podia ser fingimento. Parecia real demais. Muito real.
Tão real quanto a sua boceta completamente molhada.
Ela estava pingando.
Molhada em um nível absurdo, assim como eu também. A minha lubrificação escorria só
de vê-la assim. Embaixo dela, eu conseguia enxergar perfeitamente a colcha úmida. E isso era
lindo. Fantástico. Rayka estava assim por mim, por minha causa. Isso me deixava exultante.
Pela primeira vez, eu senti o gosto da lubrificação de uma mulher na minha boca. A
textura. E, ao contrário do que passei a vida inteira imaginando equivocadamente, ou
preconceituosamente, a sensação não foi ruim. Chupá-la não foi nem um pouco nojento.
Na verdade, foi gostoso.
Uma delícia.
Passei a língua por todas as partes, nos grandes e nos pequenos lábios, mas concentrei a
maior parte da minha atenção no seu clitóris. Era lá onde eu mais sentia prazer. Então, imaginava
que, com ela, pudesse ser algo semelhante. Ele estava tão incrivelmente excitado, duro,
vermelho. A minha boceta latejava só de ver.
Era a coisa mais maravilhosa.
Tentando dosar entre o forte e o delicado, eu continuei chupando. Nem tão pesado para
que não doesse, mas também nem tão leve ao ponto de não sentir.
Minha língua nunca trabalhou tão freneticamente em toda minha vida. Chupar homem era
diferente. Por isso, não imaginava que eu tivesse tanta... Digamos... Desenvoltura neste ato com
uma mulher. Querendo ou não, eu estava positivamente surpresa comigo.
Ainda assim, porém, vez por outra, eu me perguntava.
Será que eu estava fazendo realmente certo?
Porra, isso era gostoso.
Era muito gostoso.
Só que eu não queria que fosse bom apenas para mim, eu queria que fosse maravilhoso
para ela também. Quando pensei em perguntar se estava tranquilo assim ou se ela queria que eu
fizesse de outro jeito, no entanto, Rayka começou a dizer, entre gemidos:
— Isso, Victoria... Assim... Vai... Eu tô quase...
Juro que isso me desmontou inteira.
Sua voz rouca, sexy. A forma como ela se mexia sobre a cama. As suas mãos apertando os
lençóis entre os dedos. Sua cara de safada.
Até perdi o equilíbrio e o fôlego por um segundo.
Surpresa, excitada, entusiasmada.
Então, eu estava mesmo fazendo certo?
— Continua assim? — perguntei ligeiro, ainda chupando.
Foi quando ela se apoiou nos cotovelos outra vez, entre respirações descompassadas, e me
fitou com muita atenção.
Seu semblante lindo e sofrido de tesão.
— Aham, desse jeito...! — exclamou, segurando a minha cabeça e rebolando na minha
boca. — Puta que pariu, você fica muito gata entre as minhas pernas.
Porra...
Enfiei ainda mais a minha boca na sua boceta, chupando como se eu estivesse a beijando.
Minha cara já estava toda melada. E isso nem de longe me incomodava. Muito pelo contrário. Só
me dava ainda mais vontade de continuar.
Me lembrei do exato jeito como ela fazia em mim e me deixava de grelo duro. Foi então
que ela gemeu ainda mais. E os seus gemidos eram tão sinceros, que me davam uma puta
vontade de fazer isso pelo resto da vida, só para ouvi-la gemer infinitas outras vezes assim para
mim.
Só que aí, em determinado momento, entre reboladas e mãos segurando a minha cabeça,
ela exclamou:
— Sua filha da puta, vai se foder...!
E então...
Gozou na minha boca e...
Foi... Mágico.
Sim.
Estranho e mágico, ao mesmo tempo.
Nada a respeito dela, de nós duas, ou do ato era estranho. Não, não mesmo. Estranha foi a
sensação que me deu depois. Ou melhor, um pensamento súbito ao meu respeito. Ainda ali, com
a boca na sua boceta, depois dela ter gozado para mim, foi como se, de repente, as respostas, que
ainda precisavam ficar claras para mim, tivessem se tornado completamente nítidas.
Eu nem piscava.
Juro que eu nem piscava, tamanho êxtase com a sua gozada gostosa e com a súbita certeza
que eu tive.
Era um momento de epifania para mim.
Sim, era sim. Só podia ser.
Se antes eu me achava Raykassexual, por me sentir incapaz de realmente gostar de
mulher, ou se ainda pairavam algumas dúvidas a respeito do que me atraía, elas simplesmente
desapareceram por completo.
Senti-la gozar na minha boca me deu a certeza absoluta de que eu não era apenas
Raykassexual. Na real, eu gostava mesmo de mulher.
Sim, eu gostava.
Eu gostava de chupar boceta.
Eu gostava de mulher.
Claro que eu não queria estar com outra pessoa que não fosse ela, e óbvio que eu era
completamente apaixonada pela Rayka, mas eu gostava, sim, de mulher. E ter a certeza disso era
incrível, porque explicava um monte de situações da minha vida inteira. Situações que,
antigamente, me deixavam muito confusa.
Só agora eu entendia por que reparava mais do que o normal nos jeans apertados de
algumas garotas, ou porque não me sentia plenamente confortável quando as minhas amigas
tiravam a roupa na minha frente, ou porque a minha respiração ficava meio esquisita quando eu
via uma cena de beijo entre mulheres em algum filme ou série. Só agora eu sabia o que isso
significava.
Eu sempre gostei de mulher.
Sempre.
Ainda tomada pelo prazer, com os olhos cheios de loucura e tesão, porém, Rayka
interrompeu os meus pensamentos e disse:
— Sua vez.
Foi automático.
Tudo dentro de mim reacendeu em pura excitação, não apenas pela sua voz rouca ou pelo
seu semblante sexy de quem tinha acabado de ter um orgasmo, mas também pelo que eu sabia
que estava por vir, porque tudo o que ela fazia era incrível.
Agora, completamente certa da minha vida inteira e cheia de respostas das quais eu nem
sabia que precisava (mas precisava sim), me deixei levar pelas suas mãos e pelo que ela bem
queria e pretendia fazer comigo.
Eu confiava cegamente em cada atitude sua.
No controle da situação, Rayka me virou habilmente sobre a cama, abrindo as minhas
pernas. Flexionou os meus joelhos, na direção dos meus ombros, enquanto dobrava os seus. Se
aproximou, ficando entre as minhas pernas, e simplesmente... Encaixou.
Sim, boceta com boceta.
Simples assim.
Minhas sobrancelhas arquearam e meus olhos dobraram de tamanho.
Nessa posição era tão fácil…!
Puta que pariu, encaixou tão bem.
Rayka era completamente competente no que fazia.
Desgraçada.
Meus lábios se entreabriram de tanto tesão, especialmente quando os seus intensos e
bonitos olhos me encararam. Do jeito como estávamos, nós nos olhávamos perfeitamente bem de
frente. Era a posição mais espetacular que podíamos fazer.
No entanto, espetacular mesmo foi o que eu senti quando ela se moveu.
— Ah, porra...! — choraminguei com o quão incrível isso foi.
Em movimentos ondulares, começou a esfregar nossas bocetas. Uma grudada na outra,
deslizando. Nossas lubrificações se misturando, seu clitóris ainda duro tocando o meu
igualmente excitado. O charme dos seus curtos fios de cabelos suados, que se agarravam à testa.
Os músculos do abdômen que se definiam a cada vez que ela movimentava o corpo para frente e
para trás. A serpente colada na minha pele. Tudo.
Absolutamente tudo fazia o meu baixo ventre pulsar de desejo.
Da minha garganta, gemidos inexprimíveis escapavam sem que eu pudesse evitar.
Rayka ainda se inclinou para me beijar, enfiando a sua língua dentro da minha boca,
enquanto, forte, se movia sobre mim. Debaixo do seu corpo, eu só arquejava e ofegava, me
sentindo, pela primeira vez na vida, completamente realizada e satisfeita em cima de uma cama.
Nunca, nunca, nunca, nunca imaginei que fazer tesoura fosse tão gostoso.
Gostoso ao ponto do orgasmo explodir naturalmente em mim.
Eu, que já estava no limite do prazer, desde o oral que fiz nela, me joguei.
Gozei.
Gemendo tão alto quanto ela, eu gozei, e a sensação foi maravilhosa. Gozei com a certeza
de que eu não apenas gostava de mulher, mas também de que Rayka era a garota da minha vida.
E, no que dependesse de mim, essa garota da minha vida seria realmente minha pelo resto da
vida.
ESTOU COMENDO A SUA NETA

“Você teve um dia ruim, a câmera não mente,


você está para baixo e nem se importa”
Bad Day | Daniel Powter

RAYKA

Naquela manhã, eu não precisei buscar flores, porque a mais bonita de todas estava bem
ao meu lado, dormindo completamente nua, tão gata e gostosa quanto era acordada. Também não
havia bilhetes, porque a poesia nós fizemos na cama, durante a madrugada inteira. E que poesia...
Deliciosa.
Nem com todas as palavras do universo, eu conseguiria escrever algo tão bonito quanto
nosso sexo.
Acordei primeiro que ela, ainda desacreditada de que tudo aquilo realmente tivesse
acontecido. Talvez eu precisasse beliscar a mim mesma, ou sei lá. Cara, Victoria Peterson me
deu e me comeu. A menina era um absurdo, e ela fazia eu me sentir como a porra da garota mais
sortuda do mundo inteiro.
A minha adolescente interior estava realizada.
Sim.
A Rayka de catorze anos, aquela que era diferente da maioria das garotas e não entendia a
razão da mais bonita de todas simplesmente se afastar três dias depois de terem começado uma
“amizade”, agora estava ficando com a sua paixão platônica... A menina que não saía da sua
cabeça desde a primeira vez que a viu, a patricinha mais chata, linda, metida, gostosa, irritante e
maravilhosa do planeta.
Aquele sorriso de imbecil não saía por nada do meu rosto.
E, bem, algo me dizia que ele ainda passaria muito tempo ali.
Vê-la dormir com os lençóis cobrindo apenas um lado da sua bunda, enquanto os seus
peitos permaneciam totalmente descobertos, porém, era prova suficiente para que eu, enfim,
parasse de acreditar que tudo não tinha passado de um sonho. Foi real. Incrivelmente real.
Tão real quanto a minha vontade de agarrá-la agora mesmo.
Sim, eu sabia que deveria deixá-la dormir mais um pouco. Não foi uma madrugada
completa de sono. Depois da primeira, ainda transamos outras duas vezes. Quase não
descansamos. Não que eu me arrependesse, porque eu definitivamente não me arrependia.
Inclusive, passaria outras noites em claro, se fosse para transarmos assim de novo.
Foram muitas energias gastas, e Victoria estava em seu vigésimo terceiro sono.
Mas, honestamente?
Quando, nos últimos sete anos, eu poderia imaginar que tudo isso, um dia, estaria
acontecendo entre nós?
Aquela filha da mãe era irresistível demais, e eu também estava estupidamente feliz, para
impedir a mim mesma de pular em cima dela e acordá-la com uma surra de beijos, abraços e
cheirinhos.
Foi exatamente o que eu fiz.
Me desculpem, não deu para evitar.
Ataquei-a por todos os lados, na mesma intensidade da minha felicidade e do meu desejo.
Puta que pariu, eu tava feliz pra caralho! Foda-se, não tinha como eu não ficar assim. Eu me
sentia absolutamente satisfeita com ela, com o nosso relacionamento, com tudo. Isso sem falar
que… Porra, a garota era um fenômeno, não apenas por dentro, considerando o quanto estava se
tornando cada vez mais fantástica e admirável, mas também por fora.
Vocês têm noção de que eu tinha um AVIÃO estacionado bem em cima da MINHA cama?
Não eram todos os dias que isso acontecia.
Na verdade, um avião, como esse, eu nunca tive.
Nem a garota mais bonita com quem eu já fiquei chegava perto do que a Victoria
representava pra mim. Era beleza, mas também era muito mais que beleza. Era o seu coração.
Aquela alma bonita que eu enxerguei até quando não parecia existir nada de bom ali. A alma de
uma menina que era mais profunda do que superficial.
Por isso, eu não aguentei.
Me rendi e lhe agarrei.
Por todos os lados, por todas as partes.
Vibrando em amor, paixão, felicidade.
Em segundos, os seus olhos se abriram, lindos. E, junto deles, também veio o sorriso.
Victoria acordou e, para a minha sorte, ela parecia de muito bom humor.
Entre risadas gostosas, falou:
— Mesmo depois de uma madrugada inteira de sexo, você acorda com essa disposição?
Ainda em meio à chuva de beijos e abraços, respondi:
— É óbvio! Na verdade, por causa de uma madrugada inteira de sexo com você, eu
acordo com essa disposição.
Victoria riu ainda mais.
E, Deus, como era maravilhoso vê-la assim. Eu quase não conseguia me lembrar do
quanto ela já tinha desejado me assassinar.
— Nesse caso, eu não preciso nem perguntar como está.
— Estou me sentindo... Incrível! — empinando o nariz, divertida, devolvi.
Sim, eu me sentia incrível de estar com a garota por quem sempre fui apaixonada. E o
melhor de tudo: ela parecia tão feliz comigo quanto eu estava com ela. Essa era a cereja do bolo.
Foi então que Victoria ergueu uma das sobrancelhas para mim, mordendo muito de leve o
lábio inferior. Aquela carinha sacana que só ela tinha. Uma sacanagem misturada com
ingenuidade, que me deixava realmente maluca.
Não tinha como eu não me apaixonar.
Era impossível.
— Isso quer dizer que o chá servido foi aprovado?
Aaahhhh, que saco! Como ela conseguia ficar ainda mais linda dizendo “chá”?
Ódio.
A minha vontade era de beijá-la ainda mais por ser uma filha da mãe tão fofa e sexy ao
mesmo tempo.
— Aprovadíssimo!
— Então, está bem alimentada, né? — divertida, continuou. — Fome você não tem mais.
— Pelo amor de Deus, Victoria, eu sempre tenho fome. Inclusive, estou faminta neste
exato momento.
Ela gargalhou, linda.
— Você é muito safada, cara.
— E tem como não ser? — ergui uma das sobrancelhas. — Desde já me sinto mal-
acostumada, e a culpa é inteiramente sua. O teu sexo é perfeito e o teu oral é maravilhoso.
Foi quando o seu sorriso diminuiu um por cento e ela me encarou com ainda mais atenção.
Era como se eu tivesse atingido um ponto delicado seu. E, bem, eu sabia que sim. Sabia que ela
ainda guardava alguns receios sobre “não saber fazer direito”.
— Tá falando sério? Gostou de verdade?
Mesmo agindo como uma verdadeira deusa em cima daquela cama, durante a madrugada
inteira, ainda parecia existir um pequeno e quase imperceptível traço de insegurança nas suas
perguntas.
Puxei o ar de leve.
Será que os meus gemidos nem um pouco discretos e a quantidade de vezes que gozei não
foram suficientes para deixar claro o quanto eu tinha gostado?
Se ela soubesse o quanto era capaz de me deixar maluca com apenas um beijo, não teria
tantas dúvidas do seu potencial.
Segurei, então, o seu rosto entre as mãos e, com toda a sinceridade que existia em mim,
falei.
— Meu amor, você foi um absurdo. Sério. Foi incrível. Eu me sinto completamente
satisfeita. Fora que... — deixei escapar um sorrisinho sacana. — A visão linda de você entre as
minhas pernas, é algo que vou guardar na memória pra sempre. Queria que você pudesse se ver,
só para ter a certeza absoluta do que eu estou falando.
Foi quando ela soltou uma risadinha de leve, suavizando o semblante outra vez.
Aproximou-se ainda mais de mim, dando um beijo na minha boca. E, então, arteira, contra os
meus lábios falou:
— Bom, sei que não sou capaz de ver a mim mesma durante o sexo, mas… Eu vi algo
muito melhor. A tatuagem de smile na sua bunda. Excitante, sério. De muito bom gosto.
Ri, me lembrando de ter mencionado a respeito disso em alguma das cartas do Maverick.
Aparentemente, Victoria também não se esqueceu.
— Por acaso, está me zoando, senhorita Peterson? — divertida, falei. — Cuidado, hein?
Se eu fosse você ficava esperta. Do nada eu posso te arrastar para uma competição de quem
come mais pizza, e só deixo você sair de lá depois que estiver passando mal.
Ela gargalhou.
— Não, não, deusa me livre! Retiro o que eu disse! Não está mais aqui quem zoou com a
sua tatuagem de smile na bunda!
— Hum... Acho bom! — empinei o nariz, sob falsos olhares sérios, até que, subitamente,
me desmontei e comecei a fazer cócegas nela.
Cócegas por todos os lados.
Victoria gargalhou muito mais que antes. Seu rosto adoravelmente vermelho de tantas
risadas, enquanto, com tapinhas, ela tentava me impedir e berrava:
— Para, sua idiota! Eu vou te matar!
Nossa, quanta falta eu senti de sofrer ameaças da minha mulher.
Continuei.
E ela rindo ainda mais, desistiu de me dar tapinhas e começou a revidar, tentando fazer
cócegas em mim também. Vê-la feliz e tão leve comigo, ou por causa de mim, chegava a ser tão
maravilhoso quanto uma madrugada inteira de sexo.
Porém...
Repentinamente, como o encanto que acabava às doze badaladas da meia-noite, ou
melhor, como se as portas do inferno tivessem sido abertas, eu comecei a ouvir. Aliás, nós
começamos a ouvir aquela voz. Aquela maldita, intragável e indesejável voz. Eu preferia ouvir
um demônio falando, bem nos ouvidos, do que ela. Sério.
— Deixe-me passar, Brittany! Eu exijo!
— Espera, espera aí! Não entra assim, não!
— Eu sei que as duas estão dentro deste quarto, Brittany, e eu vou entrar.
— Mas, Rayka pode ainda estar... — Brittany deixou a frase pela metade, quando
provavelmente foi atropelada pela fúria da Peterson.
Ah não.
Não, não, não.
Victoria subitamente parou. Eu vi, dentro de dois segundos, o temor se desenhar no seu
olhar. Franziu o cenho, me encarando, e...
— Essa não é a...?
Eu ainda desejei, desejei com todas as forças que eu nem sabia que existiam dentro de
mim, que nós tivéssemos nos lembrado de trancar a porta. No entanto, pensar sobre isso, agora,
pareceu tarde demais, especialmente quando foi bruscamente aberta e ela apareceu bem na nossa
frente.
Grace Peterson.
Altiva e rígida, sob seus saltos de dez centímetros, postura ridiculamente ereta e semblante
cheio de plásticas e botox, ela nos fitou. O julgamento era claro, o preconceito ainda mais. E eu
só queria saber como eu iria me segurar, sem voar no pescoço daquela mulher, se ela começasse
a falar besteira ali, o que provavelmente iria acontecer.
Suas orbes críticas e austeras nos observaram sobre a cama, com verdadeira ojeriza, e
divagaram do nosso corpo para nossas roupas espalhadas pelo chão. Ela sabia exatamente o que
houve ali, a madrugada inteira. Victoria, assustada, rapidamente puxou o lençol para si, tentando
cobrir-se. Ela ainda estava nua. Na verdade, nós duas estávamos nuas. E o olhar de Grace,
percebendo isso, foi absolutamente indigesto.
Ela nos encarava como se fôssemos as mulheres mais nojentas de todo o planeta. A
repulsa, o nojo, a raiva e a decepção escorriam sobre o seu semblante.
Ainda percebi quando Brittany nos olhou como se estivesse pedindo desculpas em silêncio
e dizendo “juro que tentei evitar”. E eu sabia que ela deu, sim, o seu melhor para impedir Grace
de invadir o quarto. Brittany não tinha culpa nisso. Aliás, ninguém era culpado por Grace
Peterson ser uma filha da puta.
— V-vó? — Victoria sibilou.
— Então foi para isso que você deixou o jantar?
E a maneira que pronunciou “isso” era como se estivesse se referindo a um monte de
bosta.
Desgraçada.
Bem que imaginei que Grace estava quieta demais, quando não foi atrás da Victoria, ainda
na madrugada, especialmente depois dela desligar o celular e não atender a nenhuma das suas
ligações, nem responder a qualquer mensagem.
Por um instante, achei que a velha tivesse sido abduzida por extraterrestres e estivesse em
Netuno agora, mas, às vezes, felicidade de sapatão parecia durar pouco. A velha plastificada
estava só esperando para dar o bote.
— Vó... — Victoria puxou o ar. Ela estava pálida, e as suas mãos tremiam ligeiramente.
— Po-por que não espera um pouco? Deixa eu me vestir, e aí a gente...
Ela, no entanto, foi categoricamente interrompida pelo temperamento intragável da velha.
— Se você não tem vergonha na cara de se deitar com uma mulher, por que tem vergonha
de mim? Hã? É porque sabe que está fazendo a pior besteira da sua vida, não é?
Victoria estremeceu, e eu juro, juro que a vontade de arrastar a Peterson-Mor para fora do
meu quarto, pelos cabelos, crescia a cada segundo. Se eu tinha que escutar esse tanto de bosta
que ela falava, eu precisava ao menos vestir uma roupa. Afinal, a qualquer momento, eu poderia
fazer história e expulsar a Ex-Minerva mais famosa de dentro da própria fraternidade.
Suspirando, tirei o lençol de cima de mim, me levantei e, nua, caminhei tranquilamente até
as minhas roupas largadas no chão. Procurei a boxer e o top. Enquanto eu fazia isso, no entanto,
pude sentir o seu olhar de fogo, queimando as minhas costas. Provavelmente, a minha atitude de
me levantar pelada, como se eu tivesse o costume de aparecer sem roupa na frente das pessoas
todos os dias, soou para ela como uma tremenda falta de respeito.
Eu conseguia enxergar no seu rosto o quanto ela me achava extremamente cara de pau.
Uma garota sem modos. Uma selvagem. Uma menina que não recebeu a criação certa. Uma
pessoa totalmente inadequada para a sua neta.
Grace me odiava. Sempre me odiou.
E não, eu não estava nem aí.
— É disso o que você gosta, Victoria? — cheia de repulsa, encarando-me de cima a baixo,
ela questionou. — Quanta decadência! Como você não tem nojo?!
Comequié?
Nojo de que? De mim?
Ah, caralho, se ela achava que eu ia aguentar calada as merdas que falava, estava muito
enganada.
— E você, quando vai parar de encher a porra do saco? Que droga! — retruquei, ao vestir
a boxer e o top. — Ontem você perturbou a Victoria no jantar, deixou a garota completamente
desestabilizada, e agora já está aqui, infernizando outra vez. Será que não consegue deixar de ser
insuportável por, pelo menos, um dia? Porra, vai descansar, cara!
Vi, então, quando a boca dela se abriu e se fechou, uma dezena de vezes em apenas meio
segundo. Parecia não acreditar que eu tinha falado com ela desse jeito. Definitivamente, eu
estava condenada ao inferno particular de Grace.
— Quem você pensa que é? Como ousa falar comigo assim? Você não passa de uma
vagabundazinha depravada!
— Vagabundazinha depravada?! — arqueei as duas sobrancelhas. — Eu deveria te colocar
pra fora daqui agora e...
Obstinada, já puta de raiva, quando dei o primeiro passo em direção à mulher, certa de que
a seguraria pelo braço e a colocaria no meio da rua, porém, Victoria, completamente atordoada,
se levantou da cama, ainda com o lençol ao redor, e se colocou no meu caminho, entre mim e a
sua avó.
— Calma, calma, calma! — pediu.
Seu olhar estava alarmado.
Respirei fundo, retesando. Só a Victoria mesmo para me impedir de agir orgulhosamente
como a garota sem modos que Grace sempre me considerou. Agora, sim, eu teria feito jus ao
meu título.
A velha plastificada, no entanto, inconformada, continuou:
— É esse tipo de pessoa que você quer ter ao seu lado? Uma selvagem?!
— Ah, para de tentar nos colocar uma contra a outra! — retruquei, enquanto Victoria
ainda se mantinha frente ao meu corpo, tentando evitar que algo pior acontecesse. — Você já
passou sete anos fazendo isso! E veja só, não conseguiu. Estou comendo a sua neta, Grace
Peterson!
Seu rosto se mortificou outra vez, mas o olhar estupefato logo deu lugar a orbes quentes
como fogo. Eu podia sentir as chamas que ela me lançava.
Grace bufou, trincando a mandíbula:
— Você vai se arrepender de estar falando assim!
— Ah, vai pro caralho que te parta! — retruquei, sem paciência. — Eu não tô nem aí, faz
o que você quiser!
Ai, nossa, que delícia.
Eu sempre sonhei em falar com ela assim.
Foi quando a velha, cheia de botox no rosto, se enfezou de vez e partiu para cima de mim.
Sabe Deus o que ela achava que era capaz de fazer. Eu, no entanto, não arredei o pé. Fiquei no
mesmo lugar, só esperando.
Victoria, porém, se colocou no seu caminho dessa vez, erguendo uma das mãos e
impedindo-a de continuar.
— Vó, para com isso, por favor! Para de agir assim!
— E agora vai defendê-la?!
— Estou defendendo a mim mesma, vó. Os meus sentimentos. Tudo isso me machuca!
— E você acha que eu também não estou machucada?! A minha única neta me dando esse
desgosto!
Ah, lá vem, mais chantagem emocional.
Puta que pariu.
— Para com isso, vó… Para de falar desse jeito.
— Eu vim aqui só para ter a decepção de enxergar, com os meus próprios olhos, o que eu
tinha certeza absoluta de que iria acontecer. Você é podre, Victoria. Podre.
— Chega, vó! Você vai me perder, se continuar agindo assim e falando esse tipo de coisa!
Foi quando a mulher a encarou como se ela tivesse lhe feito uma grande afronta.
Tão ultraje.
— Está me ameaçando? — em um tom mais baixo, mas igualmente intimidador,
questionou.
Victoria suspirou, tentando se revestir de força. Na verdade, ela já estava sendo forte há
muito tempo. Minha garota era uma fortaleza e, de fato, precisava ser. Era difícil se manter firme
no propósito de viver o que queria, quando existiam tantos ruídos de Grace Peterson ao redor.
— Não estou ameaçando. Estou sendo honesta.
— Então, você prefere ter ao seu lado uma garota problemática e depravada, que com
certeza vai te largar, depois que se cansar de transar com você, do que a sua avó, que esteve
contigo a vida inteira, que te fez a pessoa influente que você é hoje e que esteve ao seu lado no
seu pior momento, quando a sua mãe morreu?!
— Cala a boca! — Victoria subitamente berrou.
Grace fez questão de dar ênfase à “sua mãe morreu”.
E sabia, tinha completa certeza de que mencionar a mãe da Victoria era sempre uma
questão delicada, quase um gatilho. Uma questão tão delicada que, pela primeira vez na vida,
Victoria gritou com a sua avó.
Ela se assustou.
Sim, Victoria se assustou com o potencial da própria voz e com o que tinha acabado de
fazer, enquanto Grace a encarava surpresa e cinicamente “machucada”. Isso, no entanto, era só
mais uma das suas formas de deixar a garota com peso na consciência.
— Levantou a voz para mim?
Victoria estremeceu, ainda atônita consigo mesma, com a própria situação.
E eu a abracei.
Eu sabia que ela precisava disso, nesse momento.
Grace, por sua vez, diante do silêncio da neta e do nosso abraço, ainda nos encarou cheia
de despeito e falou:
— Pode continuar brincando, Victoria. Mas, esteja preparada, porque você não vai brincar
por muito tempo.
Foi tudo o que disse, virando-se, então, sobre os seus saltos de dez centímetros, e, nos
dando as costas, saiu dali.
Quando ficamos sozinhas outra vez, no quarto, Victoria subitamente amoleceu nos meus
braços, fechando os olhos e encostando a cabeça no meu peito, como se parte da energia do seu
corpo tivesse se esvaído junto com a sua avó.
— Vai ficar tudo bem, amor... — disse eu, afagando os seus cabelos com uma das mãos.
— Não escute o que ela fala. Grace não tem a menor noção de nada.
Vic suspirou e, então, ergueu os olhos para mim.
— Eu não escuto. Não mais. Só queria saber o que ela vai fazer agora.
Balancei a cabeça, encarando-a firmemente.
— Não importa. Grace nunca vai conseguir o que quer.

VICTORIA

Eu não saí do armário.


Eu fui praticamente expulsa dele.
Mas, sendo bem honesta, isso não me preocupava. A Victoria Perfeita Peterson poderia
colapsar. Certamente, ela entraria em surtos por saber que todo mundo estava comentando sobre
ela estar ficando uma garota. Só que eu já não era mais ela. Tinha deixado de ser há um tempo.
Então, me importar com esse tipo de coisa era tudo o que eu não faria.
Quando Rayka e eu terminamos de nos arrumar e descemos as escadas, nos tornamos o
centro das atenções. Ainda que tentassem disfarçar, todas as Minervas nos olhavam e
cochichavam. Eu sabia exatamente do que elas estavam falando. Se ainda não tivessem
percebido, depois de tudo o que houve nas últimas horas, incluindo a madrugada, não lhes
restavam dúvidas.
Rayka e Victoria estavam juntas.
Não foi apenas pelo show de horrores da minha avó naquela manhã, foi também pela
nossa transa nem um pouco discreta. Eu sabia que todas as garotas nos ouviram, e, só não
assistiram de camarote, por causa das paredes. Elas já tinham sacado o que estava acontecendo.
Não era difícil entender, afinal.
Nessa altura, eu também não duvidava de que a fofoca já tinha se espalhado pela
universidade inteira.
Agora, todo mundo estava sabendo.
Saímos para o mundo.
Mas, isso definitivamente não era o que estava tirando a paz dos meus pensamentos, ou
me desmotivando. Definitivamente não. Era outra coisa. Uma coisa cujo nome começava com
Grace e terminava com Peterson.
Mesmo que Rayka fosse a pessoa mais incrível com quem eu poderia estar e fizesse de
tudo para eu não me abalar com as atitudes da minha avó, às vezes era meio impossível de evitar.
Ainda que eu estivesse me acostumando a não ouvir as palavras pesadas de Grace, elas
continuavam machucando.
Eu ainda era feita de carne e osso. Eu ainda tinha um coração. E, infelizmente, eu ainda
sentia. Eu sentia mesmo que não quisesse sentir.
E eu me odiava tanto por isso.
Me odiava por me afetar, porque era exatamente isso o que a minha avó queria causar em
mim. Ela queria que eu me sentisse mal, para que, mais cedo ou mais tarde, eu fizesse as suas
vontades.
Juro, juro que eu adoraria estar pensando em outras coisas e me lembrando da madrugada
maravilhosa que Rayka e eu tivemos, mas era a memória dos olhos rígidos e preconceituosos da
minha avó que permanecia na minha cabeça. Suas frases de efeito, suas chantagens emocionais.
A droga de uma pressão psicológica que ela passou a vida toda fazendo sobre mim.
Por isso, enquanto Rayka foi ao bloco do curso Literatura, resolver alguma coisa que eu
definitivamente não fazia ideia do que era, eu estava escorada a um dos balcões da Esquina das
Panquecas, sem um pingo de ânimo, enquanto enxugava alguns copos. Se eu pudesse, na real,
estaria agora mesmo deitada na minha cama, vegetando.
Por ali, a idiota da Stacy, que não fazia merda alguma, a não ser mascar chiclete e assistir
seriado no computador do caixa, observava o meu trabalho com a sua melhor cara de entojo. Ela
adorava agir como se eu fosse a sua empregada. E, bem, o real dono daquela lanchonete era o
James, seu pai, não ela.
Mas, Stacy parecia ter nascido com um reizinho na barriga tão grande quanto o que eu
tinha tempos atrás.
— Será que dá pra fazer isso aí direito? — com aquele tonzinho nojento, que era típico
dela, falou. — Você está deixando todos os copos molhados!
Revirei os olhos.
Como se eles não fossem secar naturalmente...
Que idiotice.
— Olha só, Stacy, não enche, tá? Eu estou num péssimo dia hoje.
— Querida, eu não tenho nada a ver com os seus problemas. Assim que você passa por
aquela porta — apontou, debochada. — Você precisa deixar tudo do lado de fora e fazer o seu
trabalho bem-feito.
Eu merecia mesmo.
Sem paciência para a sua conversinha fiada, estalei a língua no céu da boca e disse:
— Ah, vai se foder, Stacy.
A calma e a educação, daquela bonequinha que passei a vida inteira sendo obrigada e
ensinada a ser, eu já não fazia mais questão de ter.
Seu queixo, porém, se inclinou um pouco para baixo, ao se dar conta da forma como eu
tinha falado com ela. Parecia perplexa, ou sei lá. Eu, honestamente, não estava nem aí.
Aparentemente, todo mundo queria ser tratado bem por mim, mas, na hora de me tratarem bem,
não era assim que funcionava.
Quando Stacy ia destilar o seu veneno, em forma de uma resposta que eu tinha certeza de
que seria muito malcriada, no entanto, Rayka apareceu de repente por ali, arrancando a nossa
atenção. Principalmente a minha.
Caminhava tão leve e despreocupada. Um sorriso que até me fazia repensar se eu não
conseguia mesmo parar de chorar pitangas por causa da minha avó.
— E aí, e aí! Tudo tranquilo?!
— Oi, amor — respondi.
Ainda que eu tivesse ensaiado e me esforçado para lhe dar o meu melhor sorriso, Rayka
percebeu que, querendo ou não, a minha vibe continuava péssima.
— Ah não... — disse ela, seu olhar tranquilo vacilando um pouco. — Você ainda está
desanimada pelo que houve de manhã.
E não, não era uma pergunta. Era uma afirmação.
Juro que eu não queria confirmar, porque, mesmo que eu não fosse mais aquela Victoria
Perfeita Peterson, eu ainda tinha aversão a parecer uma fracote, mas... O que eu ia ganhar com
isso, afinal?
Suspirei.
— Sim, estou, infelizmente.
Ela, por sua vez, estalou a língua, me abraçando.
— Ah, amor... Não fica assim. Você está fazendo exatamente o que a sua avó quer. O
maior objetivo dela é te deixar desse jeito, porque ela acha que, assim, uma hora ou outra, você
vai acabar cedendo.
E Rayka estava certa.
Realmente era essa a intenção da minha avó.
— Eu sei, eu sei que preciso parar com isso.
Na teoria, eu sabia que precisava, mas, na prática, parecia meio difícil.
— Bom... — com um repentino sorrisinho arteiro, Rayka me fitou. — Eu tenho algo aqui
que talvez possa melhorar o seu humor.
Franzi o cenho de leve, curiosa.
— É? O quê?
Precisava ser alguma coisa muito boa mesmo, porque do jeito que eu estava…
Foi então que ela tirou a mochila das costas, apoiando-a entre as pernas, no chão. Abriu,
procurou por algo e...
— Quando eu estava lá no bloco, vi que a minha mãe deixou os testes corrigidos na
coordenação e... VOCÊ TIROU UM A! — subitamente exclamou, toda feliz, erguendo, de
supetão, a folha bem nas minhas fuças.
Espera aí.
Meus olhos automaticamente dobraram de tamanho.
Demorei alguns segundos para assimilar a informação, tamanha surpresa.
— Co-como é...? — balbuciei, aturdida. — Eu... Eu tirei um A?! — e berrei. — Ah, minha
deusa, eu tirei um A?!
— Sim! Tirou sim! Olha só! — esfregou o teste ainda mais na minha cara.
Tremendo, o segurei e o apertei entre os meus dedos, quase sem acreditar. Eu nem
piscava.
— Minha deusa, minha deusa, minha deusa, eu tirei um A!
De súbito, com a felicidade que eu sentia, pulei no colo dela, abraçando-a e comemorando.
Rayka me segurou, tão alegre quanto eu.
— Sim, meu amor, eu falei que ia dar certo!
— Ah, eu mal posso acreditar! Muito obrigada! Muito obrigada, muito obrigada, muito
obrigada mil vezes por ter me ajudado com as aulas — e, ali mesmo, em um dos balcões da
lanchonete, eu a beijei, pouco me importando de nos verem.
Ela sorriu contra os meus lábios, tão linda.
— Não precisa agradecer, amor.
Dei uma risadinha de leve, descendo do seu colo. E, então, sentindo o alívio que eu tanto
desejei, respirei fundo.
— Parece que tirei uns cinquenta quilos das minhas costas.
Rayka também soltou uma risadinha, satisfeita.
— Eu imagino, amor... — segurou o meu queixo, fitando os meus olhos, e completou. —
Assim como a nota, todo o restante das outras coisas também vai se ajeitar.
Suspirei.
— É isso o que eu espero.
Ela sorriu.
— Olha só, vou colocar as minhas coisas lá dentro e vestir a farda. Já volto, tá?
Balancei um sim com a cabeça.
— Tá bem.
Rayka sumiu pelos corredores da parte administrativa da lanchonete, enquanto eu
permaneci no balcão. Agora, no entanto, eu me sentia alguns por certo mais “animada” para
continuar organizando a porcaria daqueles copos. Não que o mundo repentinamente tivesse se
tornado cor de rosa, mas não tinha como o meu estado de espírito não melhorar, pelo menos um
pouquinho, depois de uma nota como aquela.
Stacy continuava ali por perto, no notebook do caixa, enquanto cerrava as unhas e me
fitava com os seus típicos olhares de deboche, que pareceram triplicar depois de me ver beijando
a Rayka. Ainda assim, achei milagroso que ela não tivesse soltado uma das suas falas do tipo
“não permitimos namorico entre funcionários”.
Que permanecesse desse jeito.
Quanto menos Stacy enchesse a porra do saco, melhor.
Puxando o ar de leve, tentei me concentrar no trabalho e na porção de copo que eu ainda
tinha para organizar.
Porém, um grupinho de três caras parou bem em frente ao balcão onde eu estava, fitando-
me como se quisessem algo. Eu, claro, já fui logo puxando um bloco de notas de dentro do meu
avental, esperando que eles falassem o pedido. Quando ergui o olhar para os três, no entanto,
algo parecia estranho. Eu já os tinha visto algumas vezes na universidade. Se eu não me engano,
estavam se formando.
O esquisito era a maneira como estavam me observando. Traços de prepotência e
zombaria se desenhavam no semblante de cada um deles. Franzi o cenho de leve, sem entender.
Bastou que o primeiro abrisse a boca, contudo, para eu sacar o que eles realmente queriam.
Eles queriam zoar com a minha cara.
— E aí, garçonete! Me vê um burrito pra viagem.
Puxei o ar, trincando a mandíbula.
Mesmo com a nota boa no teste, eu definitivamente não estava no meu melhor dia para
aguentar gracinhas de imbecis.
— Não trabalhamos com burrito — repliquei com um total de zero simpatia. — Para
acessar o cardápio, aqui está QR Code — apontei, voltando a minha atenção para os malditos
copos, em seguida.
Eles, no entanto, continuariam sorrindo para mim, como se eu fosse algum tipo de piada.
— E, boceta pra viagem, tem? — outro falou, arrancando risadas estúpidas dos demais,
que davam tapinhas nas costas e nos ombros, entre si, como se estivesse se sentindo o máximo
por tirarem onda com a minha cara. — A gente te entende, Victoria! Boceta é melhor do que pau
mesmo.
E continuaram rindo.
— Mas, quem diria, hein? Você que só pegava homem! — o terceiro também comentou.
Puta que pariu.
— Ah, qual foi? Hoje é o dia dos idiotas?! — exclamei, com um total de zero paciência.
Como eu já imaginava, a notícia de que Rayka e eu estávamos juntas, tinha se espalhado
pela universidade. E aqueles miseráveis estavam se aproveitando do fato de que, além de estarem
fora da universidade e do domínio do reitor, que por sinal era o meu pai, eles também estavam se
formando, o que anulava quase completamente a possibilidade de serem expulsos, tal qual o meu
pai ameaçou, se ouvisse qualquer relato de bullying comigo ou com qualquer outro aluno.
Eram os mesmos ridículos que bajulavam a Rayka, quando ela tinha acabado de voltar,
porque era a “lésbica descolada” que chegou da Europa. Um bando de falsos! Traiçoeiros. Eu
sempre soube que não apenas eles, mas também a maioria da corja que estudava naquela
universidade, esperava só a primeira oportunidade para apunhalar.
Era sempre assim.
— Ih, ficou bravinha? — ainda em tom de zoação, o primeiro retrucou. — Não estamos
falando a verdade? Você decidiu dar para uma mulher, porque depois de aparecer nua naquela
foto, para todo mundo, nenhum homem te quer mais, né?
Ah não.
Não, não, não.
Eu estava sendo obrigada a ouvir isso mesmo?
QUE ÓDIO.
Quando fui lhes responder, quase a ponto de voar no pescoço de cada um deles, porém,
Stacy subitamente apareceu do meu lado, exclamando:
— Ei, seus imbecis! Deixem a garota em paz e caiam fora da minha lanchonete agora!
Foi quando eu retesei, surpresa, quase em choque, piscando os olhos repetidas vezes,
enquanto tentava entender se isso o que estava acontecendo era real.
Stacy estava…
Ela estava... Me defendendo?
Sobressaltada, ainda girei o rosto em sua direção e a fitei.
— Já estamos indo, a gente só queria ter certeza de que a Victoria tá chupando xereca. E
parece que está mesmo!
Voltaram a rir.
Que saco!
— Vão se foder! Se querem realmente saber, estou chupando, e podem ter certeza absoluta
de que chupo melhor do que vocês três juntos!
Stacy, por sua vez, completou:
— Olha só, se vocês não vazarem agora, vai ser pior. Vou ter que tomar outra atitude, e eu
já estou com o celular na mão — mostrou ela. — Caiam fora daqui!
E eles fizeram isso.
Ainda me lançando algumas brincadeiras de mal-gosto, completamente desnecessárias,
deram as costas e foram embora. Saíram de lá rindo feito os otários que eram, mas saíram.
Me escorei no balcão, tentando recuperar o fôlego que perdi com a raiva que passei, e,
ainda abismada com Stacy, a encarei, confusa. Eu ainda não entendia a razão dela ter me ajudado
e me defendido. Stacy nunca fez isso, e eu jamais esperaria essa atitude dela.
Ela, no entanto, me ofereceu um pequeno e quase imperceptível sorrisinho, quando
ficamos sozinhas outra vez.
E eu, embasbacada com o que ela fez, só consegui balbuciar:
— O-Obrigada...
Stacy, por sua vez, ainda com aquele sorrisinho, distanciou-se, retornando ao seu lugar
atrás do notebook do caixa, enquanto me encarava por cima do ombro, e falou:
— É, mas não vai se acostumando não.
Quando dei por mim, eu já estava sorrindo para ela também.
Sorrindo de leve, mas, ainda assim, sorrindo.
Me encostei ao balcão outra vez, no entanto, respirando fundo e apoiando os meus
cotovelos sobre o tampo, de modo que as minhas mãos agora tocavam o meu rosto e o
esfregavam. Esfreguei-o várias vezes, na mesma intensidade da minha raiva, deixando-o ainda
mais vermelho do que já estava.
Eu me sentia exausta.
Sério.
Eu me sentia exausta de ter que lidar com esse tipo de gente.
— Hey...? — Rayka apareceu novamente e, segurando os meus braços, tirou as mãos da
frente do meu rosto. — O que aconteceu?
O vinco na sua testa era profundo.
Puxei o ar outra vez, rolando os olhos de leve.
Até mesmo mencionar sobre aqueles idiotas me cansava.
— Sabe que a notícia de que estamos juntas já se espalhou, né? Uns imbecis apareceram
aqui e zoaram comigo por causa disso.
— O quê?! — seus olhos dobraram de tamanho, e a raiva foi plenamente perceptível no
seu rosto. — Que filhos da puta! Onde eles estão? — girou o pescoço por todos os lados da
lanchonete, procurando-os.
— Eles não estão mais aqui — respondi. — Foram embora.
Rayka bufou, balançando a cabeça.
— Desgraçados — e resmungou.
Puxei o ar pela milésima vez, tentando recuperar os ânimos.
— Quando eu penso que o meu humor vai melhorar, esses imbecis aparecem — desabafei.
— Primeiro a minha avó, agora esses caras. Eu tô de saco cheio, sério. Tô cansada.
Ela, por sua vez, me olhando com tanto carinho e preocupação, esticou suas mãos,
deslizando-as pelos meus cabelos.
— Eu sei, amor. E sei também que a gente merece um tempo longe disso tudo.
— Como vamos ficar longe disso, Rayka? Temos uma vida inteira aqui. Trabalho,
faculdade, fraternidade, tudo. Infelizmente, não tem como largar tudo isso e simplesmente dar o
fora.
— Sim, por enquanto não tem como, mas nada nos impede de escapar um pouco. O que
acha de darmos uma fugidinha esse fim de semana?
Franzi o cenho.
— Fugidinha?
Um pequeno sorrisinho quis aparecer no cantinho dos seus lábios.
— Sim, uma pequena fugidinha. A Alyssa tem uma casa de praia maravilhosa em Palm
Beach. Podemos ir para lá, passar o sábado e uma parte do domingo. Acho que vai dar pra
relaxar, desopilar, colocar a cabeça no lugar. Topa?
Inevitavelmente, o meu rosto suavizou.
Ainda que o mundo inteiro quisesse me convencer do contrário, nada mais era capaz de
tirar da minha cabeça a certeza de que ela era a melhor pessoa com quem eu poderia estar.
A melhor.
Envolvendo-a com os meus braços pelo seu pescoço, respondi:
— Você é perfeita, Rayka Ferris.
A MAIOR SAPAPATY

“Dançando no luar, todos se sentem amados e aceitos”


Dancing In The Moonlight | Toploader

VICTORIA

Não que eu fosse capaz de me esquecer completamente dos problemas ou das raivas que
passei naquela “sexta-feira 13”, porque, infelizmente, eu ainda não tinha adquirido esse
superpoder. Mas... Eu estava com uma das garotas mais interessantes e inteligentes que já
cruzaram o meu caminho, e ela era tão esperta que eu não precisava dizer nada para que ela
soubesse exatamente do que eu estava precisando.
E, bem, eu precisava mesmo de um dia na praia.
Tia Daisy, um amor como sempre, nos emprestou o carro. Rayka foi dirigindo. Palm
Beach não ficava muito longe de Miami. Era pouco mais de cem quilômetros de distância e
quase uma hora e meia de viagem. Mesmo que Miami fosse uma cidade litorânea e que eu
pudesse encontrar um mar, se eu pedisse um Uber até a Ocean Drive, nada se comparava com
entrar em um carro e respirar ares diferentes daqueles que se está acostumado a inspirar todos os
dias.
Foi exatamente o que eu senti, quando, depois de uma hora de estrada, comecei a ver o
mar bem azul no horizonte e a enorme faixa de areia que o delineava. A sensação foi quase
como... Alívio. O alívio de encontrar calmaria, após dias de absoluta turbulência. Claro que eu fui
o caminho inteiro babando por aquela miserável que conseguia ser atraente até segurando a
porcaria de um volante. E, bem, só essa visão já era a solução para todos os meus problemas.
Filha da mãe gata.
No entanto, Rayka mais Palm Beach parecia ser a combinação perfeita para a recuperação
total da minha saúde mental. Um encaixava perfeitamente no outro. De fato, o que eu precisava
para rejuvenescer a alma.
A casa de praia da família da Alyssa ficava quase na beira do mar. E não, Rayka não tinha
aumentado a conversa quando disse que era incrível. Era mesmo. Além de ser enorme, o fundo
da casa, onde ficava uma piscina, com gramado, cadeiras de sol e redes de vôlei, era literalmente
dentro da praia. Apenas um cercadinho dividia o gramado da areia, e tudo era realmente lindo.
O paraíso perfeito para que o meu juízo voltasse ao seu devido lugar.
Lá ninguém morava, a casa era usada apenas nas férias. No entanto, assim que chegamos,
caixas de som com músicas altas já soavam. Os amigos da Rayka estavam nos esperando,
enquanto bebiam e faziam um churrasco. Jeff com uma garota que ele estava pegando, chamada
Mia, e Alyssa com... Brittany. Elas continuavam ficando.
Sim, graças a deusa!
Alguém com quem eu tinha intimidade, fora a Rayka, estava lá. Talvez, assim, eu não
corresse o risco de me sentir meio... Deslocada. Claro que eu tinha certeza de que seria
maravilhoso passar aquele fim de semana em Palm Beach com a garota por quem eu era
apaixonada, longe de tudo o que nos incomodava. No entanto, eu nunca fui, digamos, próxima
aos amigos da Rayka.
Na verdade, eu não precisava de inteligência para saber que, na real, eles me achavam
chata.
Aliás, quem não acharia chata a Victoria Perfeita Peterson?
Eu mesma, sempre que pensava no tipo de pessoa asquerosa que já fui, me achava um
tremendo porre. Ou seja, eu não tiraria a razão de quem pensasse da mesma forma que eu, nem
mesmo os amigos da Rayka.
Porém...
Quando cruzamos as portas dos fundos, bem onde eles faziam o churrasco na companhia
de quinhentas mil latinhas de cerveja, e eu achei que seria recebida com olhares tortos por ser
uma intrusa no meio da galera legal, Alyssa logo exclamou, divertida:
— Meu Deus! Meu. Deus! — colocou uma das mãos no coração, teatral, enquanto a outra
segurava uma bebida. — A maior e mais metida sapapaty da Universidade de Miami está na
minha humilde residência? Isso é um marco histórico!
Eu ri, inevitavelmente ri, porque eu sabia identificar quando alguém me zoava para pegar
no meu pé e quando era por pura brincadeira. No caso da Alyssa, era por pura brincadeira.
Rayka, no entanto, revirou os olhos, balançando a cabeça de leve, enquanto sorria para a
palhaçada da garota.
— Beleza, Alyssa, pega leve, tá? — disse ela. — Sem gracinhas exageradas. É a primeira
vez que a Victoria vem aqui e eu não quero que seja a última.
Ri outra vez.
— Tá tudo bem, amor — falei.
— Pera aí, o quê? — arregalou os olhos, aproximando-se ainda mais de nós. — Amor? Ela
te chamou de amor, Rayka?! — berrou, louca, deixando o queixo despencar. — Cara, o chá
deve ter sido bom, hein? — e me deu alguns cutucões na costela.
— Incrível, se quer saber — pisquei um dos olhos para ela.
Alyssa gargalhou.
— Garota, desde quando você se tornou tão legal? — perguntou a mim e, então, virou-se
para a Rayka. — O que você fez com ela?!
— Querida, para a sua informação, todas as Minervas são incríveis. As pessoas só têm
uma visão distorcida da gente, tá? — dessa vez, foi Brittany quem falou, caminhando até nós. E,
dando pulinhos e gritinhos de felicidade, me abraçou. — Aaaai, é tão legal que esteja aqui!
Sorri, realmente satisfeita por estar ali.
— É tão bom te ver aqui também!
— Sério, Rayka, como essas patricinhas se tornaram tão maneiras? — divertida, ouvi
Alyssa perguntar. — A gente operou algum tipo de milagre ou o quê?
— Elas colocaram uma coleira nos nossos pescoços e agora a gente dá a patinha pra elas
— Rayka respondeu. — Foi isso o que aconteceu.
Alyssa gargalhou, tomando um gole da sua bebida.
— Tem razão, já era... — disse ela, entre risinhos que tentava controlar. Um pouco mais
contida, no entanto, olhou para mim e, mais séria, completou. — Sabe que tudo isso é
brincadeira, né, Vic? Eu tô muito feliz de te ver aqui. Nunca achei que isso fosse acontecer.
Então, seja muito bem-vinda.
O sorriso que se abriu no meu rosto foi sem igual. E eu tinha certeza que os meus olhos
estavam brilhando de pura felicidade. A forma como Rayka me encarou, admirada, não me
deixava dúvidas sobre isso.
Eu também nunca imaginei que iria gostar de estar na presença dos amigos dela, mas, por
mais bizarro que isso pudesse parecer, o jeito insano da Alyssa, desde que eu coloquei o meu
primeiro pé ali, me fez ter a impressão de que éramos amigas há anos. Quase íntimas. E a
sensação disso foi maravilhosa. Mesmo.
Eu me sentia confortável.
Bem recebida.
Em casa.
— Muito obrigada. De verdade. — respondi, sinceramente. — Eu tô me sentindo ótima
aqui.
— Olha, se eu fosse você, não dizia isso por enquanto, porque a gente ainda não te
embebedou. Depois de umas dez latas de cerveja, você me diz se tá se sentindo ótima mesmo —
brincou.
Eu ri.
A garota era completamente maluca.
— Liga não, amor — Rayka falou. — Ela fica fazendo gracinha direto só pra chamar
atenção.
Alyssa, por sua vez, revirou os olhos.
— Isso é tudo inveja, só porque sou uma pessoa legal, simpática e extrovertida.
— E humilde também — Brittany completou, soltando risinhos.
— Por isso que você se apaixonou, né, gatinha? — replicou, divertida, soltando um
beijinho para Brittany, que lhe dava de volta uma caretinha engraçada. Duas figuras. Depois de
puxar o ar profundamente, então, completou, berrando na direção oposta a que estávamos. — Ei,
Jeff Esquisitão! Vem aqui receber as visitas direito, seu idiota! E traga a sua garota!
Depois desse grito, não demorou muito para que o garoto aparecesse acompanhado de
Mia. Rapidinho, todo suado e vermelho, com uma cara de quem estava no meio do sol, Jeff
correu até nós.
— Ah, foi mal! — disse ele. — Oi oi, tudo bem? — falou comigo, simpático, dando-me
um beijo em cada lado do rosto e cumprimentando a Rayka logo em seguida.
Nem parecia que, na última vez em que estivemos tão perto, eu literalmente berrei com
ele, porque, depois de gentilmente me oferecer uma carona para a fraternidade, o seu carro deu o
prego bem no meio do mato.
Porra, eu era terrível.
Que bom que nunca era tarde demais para se tornar uma pessoa menos intragável.
— Oi, Jeff! — respondi de volta.
— Oi, prazer! — disse também a garota que estava com ele.
— O prazer é todo meu — sorrindo, repliquei.
— Desculpa não ter vindo logo — comentou ele. — Mia e eu estávamos terminando de
ajeitar a rede de vôlei.
— Ah, bem lembrado! — empolgada, Alyssa exclamou. — O que acham de jogar vôlei
agora? Olha, isso é tradição aqui nessa casa! Não aceito “não” como resposta — sorriu. — Já tá
tudo pronto, né, Jeff?
— Tá sim, tá no ponto!
— Show! Bora? — e, expectante, Alyssa olhou para Rayka e eu.
— Acho que vai ser ótimo — Rayka respondeu. — Bora, amor?
Eu, no entanto, sorri meio amarelo para ela, com vergonha do que ia dizer.
— Ai, sabe o quê que é? — fiz uma breve pausa dramática, mas absolutamente verdadeira,
e completei. — Eu ainda sou péssima em vôlei. Se a bola vem pra cima de mim, eu saio correndo
— soltei risadinhas desconcertadas.
— Ah, não… — em um misto de preocupação e brincadeira, Rayka sibilou. — Não
acredito que você está me dizendo que ainda não sabe jogar vôlei. Você dança Ballet, toca piano
e saxofone, fala francês, e já foi até escoteira, mas ainda não sabe jogar vôlei? Como assim isso
não estava incluso no programa de princesa?
E, agora, em vez de sorrir com vergonha, eu sorri que nem uma boba para ela, porque eu
sabia exatamente o que estava acontecendo.
Era quase como um déjà vu.
Uma maravilhosa sensação de déjà vu.
Algo que ficou guardado na minha memória, mesmo depois de tanto tempo.
Jacksonville, sete anos atrás, casa de praia com a família, três dias depois que nós nos
conhecemos. O início de uma amizade que não perdurou, porque, assim que eu saí da cozinha,
animada para aprender a jogar vôlei com a Rayka e os meus primos, minha avó me interrompeu
no meio do caminho e começou a encher a minha cabeça de minhocas.
Agora, no entanto, não existia mais o risco disso acontecer.
E eu, honestamente, mesmo sem saber fazer um saque, nunca me senti tão animada para
jogar vôlei quanto eu estava agora. Eu só queria recuperar todo o tempo que perdemos e fazer
tudo o que deveríamos ter feito antes.
Meio faceira, mordendo de leve o lábio inferior, numa tentativa de segurar um pouco do
meu sorriso enorme, ergui uma das sobrancelhas para ela e falei, repetindo exatamente a nossa
conversa de sete anos atrás:
— Você conseguiu decorar mesmo tudo isso sobre mim, em apenas três dias?
E ela sacou, porque, com um sorrisinho maravilhoso, muito charmoso, se aproximou ainda
mais de mim, passando um dos braços pela minha cintura, e respondeu:
— Claro... Eu presto atenção em tudo o que você fala.
Argh, que infeliz.
Por que ela sempre conseguia me deixar tão idiota quanto eu já estava?
Não resisti.
Aproveitando que o seu braço ainda me segurava pela cintura, e pouco me importando de
termos uma “plateia” ao nosso redor, eu a beijei ali mesmo, entre sorrisinhos tão idiotas e tão
nossos.
Não fui capaz de evitar.
Porém...
— Êêêê, não somos obrigados a ficar vendo esse tipo de melosidade aqui, tá legal? —
brincalhona, disse Alyssa, abanando com as mãos, no nosso meio. — Vamos logo jogar!
E, entre risinhos, nos arrastou dali direto para onde a rede estava colocada.
Empolgada, mesmo que eu tivesse um total de zero conhecimentos em vôlei, logo tirei a
minha roupa ficando apenas de biquíni. Rayka, por sua vez, ficou só de top e short de banho. O
sol estava a pino, bem em cima das nossas cabeças, lindo, completando a paisagem da praia e do
mar, logo ali, à nossa frente, um pouco depois do cercadinho.
Eu só queria ter a chance de jogar com ela e colocar em prática mais uma coisa que
deveríamos ter feito há bastante tempo, mais precisamente há sete anos.
Enquanto a gente se posicionava para começar, Brittany perguntou:
— Quem vai sacar?
— A Vic! — Rayka prontamente respondeu.
— Pera aí, pera aí... — sorri um pouquinho nervosa. — Eu não sei sacar.
— Eu te ensino — disse ela. — Vem... — e indicou na direção de uma das pontas da
quadra de areia.
Juro que senti novamente como se tivesse voltado à Jacksonville, quando eu achava Rayka
a garota mais legal que eu já tinha conhecido e, ainda assim, não entendia o motivo de sentir o
meu coração acelerar sempre que ela chegava perto. Eu não entendia a razão das minhas mãos
suarem frio, ou o porquê de eu não conseguir parar de reparar nela enquanto jogava com os meus
primos.
No fundo, eu só queria estar com ela, jogar com ela, conversar com ela, ainda que os olhos
da minha avó estivessem o tempo inteiro sobre mim, vigiando cada passo que eu dava naquela
casa de praia, enquanto passivamente me impedia de fazer o que eu tinha vontade.
Agora, no entanto, eu podia.
Na verdade, eu podia fazer bem mais do que antes. Eu podia abraçá-la, beijá-la, me deitar
com ela, dormir com ela. Nós podíamos fazer qualquer coisa, não apenas jogar vôlei juntas. E a
sensação de saber disso era fantástica.
Por isso, satisfeita, me aproximei e deixei que ela me ensinasse.
— Olha, amor — disse ela, segurando na minha cintura, enquanto falava bem pertinho do
meu rosto. — Costas eretas, braço estendido para posicionar a bola bem na palma da sua mão —
gesticulou e... — Joelhos separados — deslizou os dedos por entre as minhas coxas.
Suspirei, mesmo involuntariamente, sentindo o calor da sua pele e o jeito como me tocava.
Passei a língua entre os lábios, de repente com sede.
— Se continuar pegando em mim assim, não vamos jogar. Vamos fazer outra coisa.
Ela sorriu, arqueando uma das sobrancelhas, sacana.
— Nesse caso, acho que vou continuar. O que você acha? Subimos agora para um dos
quartos ou só depois?
Eu ri.
— Besta... — dei-lhe um tapinha no ombro. A proposta era tentadora. — Vai, me ensina.
Vai me ensina, antes que eu te arraste para um dos quartos mesmo.
Pensei, mas não completei.
Rayka soltou risadinhas.
— Tudo bem... Depois de posicionada corretamente assim, é só jogar para cima essa bola
que está na palma da sua mão, tomar impulso e, então, bater.
— Só? — ergui uma das sobrancelhas para ela.
— Sim.
Balancei a cabeça de leve.
— Como se isso fosse fácil, né?
— Ah, por favor, amor. Você consegue fazer esculturas, vasos de cerâmica, uma porção
de desenhos, e um monte de outras coisas. É claro que você consegue sacar uma bolinha dessa.
Vai... — e, dando um tapinha na minha bunda, se afastou um pouco para que eu tentasse.
Ai, isso ia ser um desastre.
Respirei fundo, encarando fixamente a bola na palma da minha mão esticada, joguei-a
para cima e... Fiz o possível para não sair correndo, medrosa, quando, com força, a bola desceu
bem na minha direção.
Levantei a mão e bati.
A bola ainda fez um percurso meio torto, meio feio. Não foi nem um pouco gracioso, era
verdade, mas, pelo menos, foi. Ela conseguiu atravessar a rede, sem ir para fora da quadra de
areia e alcançou o outro time. Na verdade, ela só foi para fora depois que Brittany a tocou de
leve, mas não conseguiu rebater.
A bola saiu pelo escanteio.
Espera aí.
Pisquei os olhos repetidas vezes, tentando raciocinar e buscar, lá no fundo da minha
memória, ainda das aulas de educação física do colegial, o que significava quando uma pessoa
do time adversário tocava na bola e ela ia para fora, sem defender.
Isso...
Isso não significava que...
Antes mesmo que o meu pensamento pudesse ser completado, só ouvi quando Rayka
berrou:
— Aaaaaaeeee! — e, como se não bastasse, me pegou no colo, rodopiando comigo pela
quadra de areia. — Meu Deus, que orgulho da minha mulher!
Foi quando eu caí na real.
— Ai, não! Sério? Eu marquei ponto?!
— MARCOU SIM! — gritou, explodindo de felicidade, enquanto ainda me girava por ali.
Gargalhei, vibrando junto com ela, ao entrelaçar as pernas na sua cintura.
Pronto, a nossa comemoração estava feita. E perdurou por todo o tempo de jogo. Aquele
pontinho milagroso, quase torto, foi o suficiente para me deixar ainda mais motivada com o
restante da partida.
Jogamos por horas, muitas horas, entre pausas para lanche e descanso. E, quanto mais
vôlei tinha, mais eu me divertia. Mesmo com saques desengonçados, lances sem qualquer técnica
e alguns deslizes na areia, que me renderam quedas vergonhosas, eu me senti realmente
renovada, depois de tantas risadas e horas com os pensamentos longe daquilo que me
incomodava.
Era exatamente o que eu precisava.
Um tempo depois, enquanto ainda jogávamos, Alyssa falou para todos nós:
— Saca só, eu me lembrei aqui que mais tarde vai ter uma festa irada na praia! E vai ser
aqui pertinho — apontou para a faixa de areia e o mar logo à nossa frente, depois dos limites do
cercadinho da sua casa. — Nós vamos, né?
— Óbvio! — Brittany prontamente exclamou, ao rebater a bola. — Não perco por nada
uma festinha em Palm Beach.
— Vai ser tipo um luau, né? — Jeff perguntou.
— Sim! Muita música, muita bebida. Vai ser daora!
Antes que eu pudesse falar qualquer coisa a respeito disso, porém, ouvi quando o meu
celular tocou em cima de uma das cadeiras de praia, local onde eu tinha deixado as minhas
roupas, depois que fiquei só de biquíni.
— Ai, gente, com licença, vou ter que atender.
Eu tinha prometido a mim mesma que esse fim de semana seria tipo como um retiro. Um
“retiro espiritual” onde eu faria de tudo para não passar nem perto de qualquer coisa que
pudesse me remeter a problemas e tudo o mais. Pelo menos, durante aquele sábado e parte do
domingo, eu ficaria longe de tudo o que tirava a minha paz, incluindo um detox completo do
meu celular e das redes sociais.
Afinal, a qualquer momento poderia aparecer alguma mensagem indesejada ou ligação
inoportuna capaz de cortar completamente o meu clima. E não, eu definitivamente não queria
que aquela sensação de alívio simplesmente sumisse. Eu já tinha caminhado muitos passos
mentais, para me esquecer de tudo o que tinha me perturbado até ontem.
Porém...
Mesmo que eu tentasse evitar, ainda tinha uma coisa, um negocinho me cutucando e me
impedindo de agir como se não estivesse ouvindo o celular.
Argh, que droga.
Talvez fosse algo importante, né? Ou, sei lá.
Sei lá!
Eu realmente só esperava que esse “algo” não tivesse a ver com a minha avó e com as suas
tentativas de poluir os meus pensamentos para me convencer passivo-agressivamente das suas
vontades.
Tudo o que eu fiz, porém, foi correr até onde o celular estava, exatamente em cima das
minhas roupas largadas sobre a cadeira de praia, e, quando encarei a sua tela, franzi o cenho, ao
perceber que quem estava ligando era o meu pai.
— Oi, pai? Alô? — atendi no mesmo instante.
— Oi, querida! Como você está?
— Eu tô bem, pai. E você? Aconteceu alguma coisa?
— Não, na verdade... Eu liguei mais para saber como você está. A Daisy me falou que
Rayka e você foram à Palm Beach. Está tudo bem mesmo por aí?
Daisy me falou que Rayka e você foram à Palm Beach...
Mesmo sem querer, engoli seco, ao ouvir isso. Nessa altura do campeonato, não me
restava a menor dúvida de que o meu pai já tinha descoberto que a tal garota por quem eu era
apaixonada era... A filha da sua mulher.
Juro que eu não queria que ele soubesse disso pela boca dos outros. Queria eu mesma ter
lhe dito, quando achasse que fosse o momento certo, mas obviamente a fofoca se espalhou muito
mais rápido do que eu conseguia imaginar.
— A-Ah... Tá tu-tudo bem sim... — até gaguejei, minha voz saindo um pouco mais aguda
do que eu gostaria. Droga. — Tá tudo tranquilo.
Tentei soar natural, mesmo nervosa por dentro.
Ele, por sua vez, disse:
— Querida, não precisa ficar com vergonha assim. Desde as nossas últimas conversas,
especialmente aquela sobre a sua mãe, eu sabia que a garota de quem você estava falando era a
Rayka. Daisy e eu já tínhamos conversado sobre isso algumas vezes também.
Ah, seus fofoqueirinhos de uma figa.
— E não vai me matar?
— Vou sim. Vou te matar, e depois te ressuscito só para te colocar de castigo e te proibir
de transar com a sua garota pelo resto da vida.
Ofeguei.
Minhas sobrancelhas arqueadas.
— Papai...?
Ele gargalhou do outro lado.
— Até parece, né, Victoria? Já basta a sua avó fazendo o papel de advogada do diabo.
Já basta a sua avó fazendo o papel de advogada do diabo...
Soprei o ar pesado dos meus pulmões, só de ouvi-lo mencionar sobre isso.
Minha avó sempre seria um assunto delicado para mim.
Quase um gatilho.
— Eu prefiro não falar sobre isso agora... Desculpa, pai, eu não quero ser mal-educada, é
só que... Nós viemos à Palm Beach justamente para tentar esquecer um pouco dos problemas,
sabe? Quando eu voltar à Miami, penso em como vou lidar com a minha avó.
— Tudo bem, querida, eu entendo. Eu soube do que ela fez. Soube que invadiu o quarto da
Rayka e causou um tumulto na fraternidade.
— Sim, isso foi terrível.
Eu não gostava nem de me lembrar.
— Só queria te dizer para ficar realmente bem, tá? Estou com você, filha. Sei que Grace
não dá moleza, principalmente quando as coisas não acontecem do jeito que ela quer. Eu vou
conversar com ela, ok? Vou tentar amenizar a situação.
Foi quando o meu peito subitamente esquentou, e os meus olhos arderam em uma
felicidade que eu precisava sentir.
— Sério? — absolutamente contente, perguntei.
— Sim. As coisas não podem continuar como estão. Farei o possível para termos uma
conversa civilizada.
— Ai, pai... — quase choraminguei de alegria. — Isso é a melhor coisa que eu poderia
ouvir. Muito obrigada. De verdade.
Risinhos se desprenderam dele.
— Que bom, meu amor. Fique bem mesmo, tá? Aproveite o passeio. Depois nos falamos.
— Tá bom, pai... Te amo.
— Também te amo, querida.
E, com um sorrisinho ainda maior do que todos os outros que já tinham se desprendido de
mim, desde que cheguei em Palm Beach, eu desliguei o celular.
Inacreditável o quanto eu sempre me sentia mais forte quando meu pai apareceria e me
dizia que as coisas iam ficar bem. Eu podia não ter mais a minha mãe, mas, desde que ela se foi,
John cumpria o seu papel de verdadeiro pai com maestria. Certamente, ainda existiam coisas que
só iriam melhorar de verdade se eu ainda tivesse a minha mãe por perto. Mas, mesmo assim, meu
pai supria a maior parte das minhas necessidades. Sempre.
Sempre, sempre, sempre.
Que bom que a mamãe não desistiu dele por causa da minha avó.
Que bom.
Deus sabia que ele era o melhor pai que eu poderia ter.
Puxei o ar de leve, voltando os olhos para o vôlei e a garota de braços tatuados que
defendia habilmente a bola a cada lance.
Eu também sabia que ela era a melhor pessoa com quem eu poderia estar agora. E eu
queria ver até onde podíamos ir juntas. Algo me dizia que teríamos um relacionamento tão
bonito quanto a minha mãe e o meu pai tiveram.

✽ ✽ ✽
— Ai, amor, não. Não, não, não. Essa gosma é nojenta demais!
Rayka exclamava, fazendo uma carinha linda de nojo e irritação, enquanto eu espalhava a
máscara de skin care pelo seu rosto.
Depois de uma tarde inteira de jogos de vôlei, risadas, bebidas e peles bronzeadas, graças
ao uso desmedido de biquínis e shorts de praia, estávamos agora em um dos quartos da casa,
tentando fazer skin care. Tomamos um bom banho no chuveiro, antes de ir para o tal luau que
Alyssa tinha comentado, e decidimos encarar a missão da pele de pêssego. Quero dizer, eu decidi
sozinha. No que dependesse da Rayka, isso não estaria acontecendo. Era uma tentativa de
recuperar, pelo menos no rosto, as queimaduras que o sol forte de Palm Beach causou.
Rayka, no entanto, aparentemente não gostava de nada melado na sua cara. Talvez só a
minha boceta.
— Não é nojenta, amor, é cheirosa! — repliquei. — Vai hidratar a sua pele, sério. Sol
forte nos faz envelhecer mais rápido, sabia?
— Como se eu estivesse preocupada com envelhecimento... — resmungou ela, enquanto,
com uma faixa cor de rosa no cabelo, o seu rosto vermelho do sol, e irritadinho graças a mim,
recebia mais máscara de abacate.
— Sabia que você fica a coisa mais fofa e engraçada do mundo com essa carinha de ranço
e uma faixa rosa no cabelo? — brinquei, ainda que fosse mesmo verdade. Ela realmente estava a
coisa mais fofa e engraçada do mundo. — Combina muito com a sua vibe gótica suave.
— Ah, é? Não me diga... — revirou os olhos.
— Sim... É o troco que eu te dou, por todas as vezes em que você deliberadamente me
estressa só porque me acha “muito gata com raiva” — sorri, brilhante, fazendo aspas com os
dedos.
Ela riu.
— Mas é verdade, pô. Sabe uma grande gostosa? É como você fica quando está com raiva.
Eu não consigo resistir. Agora, esse negócio que você tá passando na minha cara, me dá agonia!
— Que dramática... Tá linda com a cara toda verde!
— Linda, é? — ergueu uma das sobrancelhas para mim. — Adivinha o que vai ficar lindo
também?
Franzi o cenho.
— O quê?
— Você, em cima dessa cama agora — e subitamente começou a fazer cócegas em mim.
Cócegas por todos os lados, por todas as partes.
Eu, que era absolutamente fraca para esse tipo de coisa, gargalhei, tentando impedi-la de
continuar. Tentativas frustradas, óbvio.
— Para! — caí sobre os lençóis. — A gente vai sujar a colcha toda com máscara de
abacate, sua imbecil!
Rayka, no entanto, com seus dedinhos espertos e miseráveis, apenas seguiu em frente. Em
pouco tempo, nossa skin care já estava quase toda destruída. Na verdade, a cama parecia estar
mais hidratada do que nós. Tons de verde estavam por todos os lados, menos no nosso rosto.
O que Rayka tinha de habilidade em me fazer cócegas, eu tinha de fraqueza quando
recebia seus ataques de cosquinha.
— Vou te mataaar! — berrei.
Foi quando ela, enfim, parou, ainda gargalhando. Sua respiração desregulada se misturava
aos risos, por pouco incontroláveis.
— De verdade, não existe e nunca vai existir uma skin care tão daora quanto essa — disse
ela.
Girei as orbes, tentando recuperar o fôlego.
— Engraçadinha... O mundo é injusto. Mesmo vermelha do sol, a sua pele continua
perfeita. E olha que eu tenho certeza de que essa é provavelmente a primeira vez que você passa
uma máscara. Enquanto isso, eu preciso de quilos de produtos faciais para que o meu rosto fique
minimamente aceitável. Será que, se eu me tornar uma caminhoneira, a minha pele fica boa
também?
Ela riu, divertida.
— Estou percebendo vibrações esquisitas por aqui...
— Que vibrações?
— Vibrações de quem quer me transformar em uma sapapaty — sorriu.
— Ah, tá bom — balancei a cabeça, sorrindo. — Como se eu tivesse essa capacidade.
Você é a maior sapatão caminhoneira que eu já conheci. Impossível te transformar em qualquer
coisa diferente disso.
Rindo de leve, deslizou uma das mãos pelo pescoço, encaixando-a carinhosamente na
minha nuca. Com aquele sorrisinho, que já não era mais de brincadeira, e, sim, de pura
admiração, ela me encarou, entre faixas cor de rosa e máscaras faciais borradas, daquele jeitinho
que fazia eu me sentir a garota mais importante do universo inteiro.
— Não sabe o quanto eu tô feliz de te ter aqui comigo.
Sorri, meio boba. Ou boba até demais.
— Eu também me sinto feliz de estar aqui com você. Pensei que os seus amigos fossem
odiar a minha presença — soltei uma risadinha. — Mas, na real, eles são bem legais.
— Por favor... Quem odiaria uma coisinha linda dessa?
— Você me odiava.
— Nunca te odiei, Victoria. Mas, você me odiava sim.
Suspirei de leve.
Até podia parecer realmente ódio, naquela época. Aliás, eu mesma queria acreditar que era
ódio, porque, assim, as coisas aparentemente se tornavam muito mais “fáceis” de eu digerir.
Porém...
— Nunca foi ódio, Rayka. Eu só queria um beijo teu, e não sabia como pedir.
Seu sorriso gigante foi automático com a minha resposta sincera.
— Sabe que agora pode pedir, né?
— Na verdade, agora eu não peço. Eu já chego beijando.
Foi exatamente isso o que eu fiz, puxando-a pela nuca e grudando os seus lábios nos meus.
Ela, por sua vez, riu de leve contra a minha boca, entre beijos, dizendo:
— É assim que eu gosto.
E eu... Eu nunca gostei tanto da sensação de máscara facial, com saliva e algo mais na
minha boca. Era perfeito.

✽ ✽ ✽

Por volta das nove da noite foi quando pusemos os pés na areia, indo para o tal luau em
Palm Beach que Alyssa tinha comentado. Como a casa dela ficava quase literalmente dentro da
praia, não demoramos mais do que alguns minutos de caminhada, na beira do mar, até
chegarmos ao local da festa. Antes mesmo de atravessarmos os portais feitos com palhas de
palmeiras, já era possível ver a iluminação forte do local e ouvir a música alta que ecoava por
boa parte do litoral.
A decoração estava linda, feita com tecidos, sofás, balões e toda sorte de itens capazes de
provocar um clima de leveza e magia. A praia, pelo menos ali naquela faixa de areia onde o luau
acontecia, estava lotada. Ao nosso redor, à medida que entrávamos, as pessoas dançavam,
bebiam, conversavam e se divertiam, entretidas com o som de algumas das músicas eletrônicas
mais envolventes que eu já tinha ouvido.
No entanto, quanto mais caminhávamos por ali, mais algo realmente chamava a minha
atenção.
Aquelas... Aquelas pessoas...
— Espera aí — parei subitamente no meio da festa, franzindo o cenho de leve. — Tem
gente da universidade aqui?
— Vic... Quando a galera daquela universidade não fica sabendo de alguma festa?
Aqueles malditos são ratos de rolê — respondeu Brittany. — Mas, relaxa, a maioria que veio é
desconhecida, tá? Não vão perturbar.
Suspirei, meio incerta.
Bom, não que eles estivessem me olhando, ou aparentemente cochichando qualquer coisa
ao meu respeito, mas, depois daquela sexta-feira 13, onde a maioria das pessoas se achou no
direito de me zombar ou de fofocar sobre mim, eu estava realmente com o pé atrás.
Ainda era noite de sábado, e eu queria que o meu “detox de problemas” perdurasse até
voltarmos de viagem. Dor de cabeça era a última coisa que desejava sentir naquele momento, já
bastava a última semana e tudo o que eu precisei aguentar, incluindo a minha avó e aqueles
filhos da puta que escaparam do inferno e foram me atazanar na lanchonete.
— Fica tranquila, sapinha, se eles já estão entretidos demais dentro do mundinho
miserável de tequila deles, a tendência é que isso só “piore” — Alyssa também falou, fazendo
aspas com os dedos.
— Aguarda só, amor, no mais tardar, daqui a uma hora, eles estarão tão bêbados que não
vão nem se lembrar dos próprios nomes — Rayka completou.
Sorri de leve.
— Assim espero — respondi.
— Por falar em tequila, acho que tá na hora de começarmos os trabalhos, né? — foi tudo o
que Alyssa disse, já nos puxando para um balcão onde, entre drinques exóticos, serviam muito
álcool. — E aí, irmão! Me vê seis doses de tequila! — pediu ela ao barman.
Quando dei por mim, as bebidas já estavam postas bem na nossa frente. Alyssa distribuiu
uma dose para cada um de nós. Porém, foi quando ela entregou uma na minha mão que eu
retesei, um pouco resistente em segurar.
— Ué, o quê que foi? — perguntou ela.
Sorri meio amarelo.
— É que... A minha barriga é... Ela é meio fraca para bebidas, entende? Uma vez, eu bebi
cerveja com a Rayka e vomitei. Acredita?
— Ah, não... Vai me dizer que você não aguenta uma dosezinha dessa de nada?
Comequié, Victoria? Onde está a sua força, mulher?!
Eu ri e Rayka também.
— É sério... — disse ela, tentando intervir na situação. — Até o estômago dessa bebê é de
princesa. Álcool muito forte e Victoria Peterson não se dão muito bem. Talvez só um pouco de
champanhe... Ou vinho? — olhou para mim sugerindo. — O que acha, amor? Peço algo assim
pra você?
No entanto, antes que eu respondesse, Alyssa foi logo dizendo:
— Só um! — me segurou pelos ombros, teatral e divertida, quase suplicando com os olhos
esbugalhados, enquanto encarava fixamente as minhas orbes. — É só um shot, Victoria, e depois
a gente não fala mais disso! Prometo! Não vai matar!
Eu ri outra vez e suspirei, rolando os olhos de leve, quase me dando por vencida.
Sério, eu só podia estar de muito bom-humor mesmo.
— Tá legal, tá legal...! Mas, só vai ser um, hein? Só esse!
Ela abriu um sorrisão gigante e satisfeito para mim.
— Beleza! — bateu palma, empolgada. — No três, todo mundo bebe junto!
Ai, socorro.
Eu só esperava não acabar a noite com a cara enfiada em algum vaso sanitário.
Respirei fundo e esperei que ela fizesse a contagem.
Ainda exclamei, pela última vez:
— Só esse, Alyssa!
Ela sorriu para mim e...
— Um... Dois... Três!
Brittany, Alyssa, Jeff, Mia, Rayka e eu viramos o shot inteiro de uma só vez.
Desceu rasgando, juro. Ainda fechei os meus olhos, pressionando-os para tentar aplacar a
sensação de pura queimação. Só que aí, quando a bebida passou completamente pela minha
garganta e eu achei que não chegaria mais perto de álcool pelo resto da noite, ou pelo resto da
vida, percebi que eu estava redondamente enganada.
No momento em que eu abri os olhos e encarei todos ao meu redor, percebendo o álcool se
espalhando gradativamente pelas minhas veias, eu senti um súbito, bizarro e intrigante…
Entusiasmo.
Sim.
Nem eu sabia exatamente o que estava acontecendo comigo, mas, se antes eu já estava
feliz por ter feito aquela viagem à Palm Beach, por estar com a Rayka e por ter ido àquele luau,
agora eu me sentia estupidamente mais.
Feliz, empolgada, entusiasmada.
Tudo.
Absolutamente tudo o que existia de bom.
E, então, depois disso... As coisas só se tornaram mais intensas para mim. Ou melhor, para
nós. Aquele shot que a Alyssa me deu, de repente, se transformou em vários, por minha livre e
espontânea vontade. Como quem experimentava, pela primeira vez, a liberdade de poder beber
álcool sem se preocupar em agir feito uma boneca muito bem-educada, ou mesmo sem sentir o
peso na consciência de estar agindo como uma leviana, que era o que a minha avó costumava
dizer, eu tomei muitos outros shots, incluindo cerveja e gin.
E dancei, beijei, agarrei a minha garota.
Minha deusa, eu dancei e beijei pra cacete!
Talvez eu nunca tivesse aproveitado tanto de uma festa, como nessa vez. E, bem, não era
só pela bebida, era por tudo, mas, principalmente, pela companhia dela. Eu já não era mais o tipo
de pessoa que conseguia resistir quando Rayka estava tão perto de mim. Bastou que ela me
segurasse pela cintura e me levasse para o centro do luau, para que nós começássemos a dançar e
a nos beijar muito.
Não importava se nós estivéssemos no meio de dezenas de pessoas ou que houvesse
“conhecidos”, eu a beijei com toda a vontade que eu tinha. E só não tirei a sua roupa ali mesmo
porque ainda me restavam alguns por cento de lucidez. Vontade, no entanto, não me faltou.
Talvez fosse a adrenalina, ou a pura sensação de felicidade, mas, por incrível que pareça,
mesmo com todas as bebidas e as danças, o meu estômago seguia intacto e quieto. Eu estava me
sentindo bem.
Na verdade, eu estava me sentindo ótima.
Lá pelas tantas, talvez perto da meia-noite, eu já estava toda suada. Mesmo que por ali
corresse um vento gostoso do litoral, o meu corpo estava quente e as gotas de suor caíam
intensamente pelo meu pescoço.
Foi quando Rayka perguntou:
— Quer parar? Quer descansar?
— Não! — ri para ela. — E eu juro, juro que não estou bêbada!
— Ah, é? Tem certeza? — ergueu uma das sobrancelhas para mim, soltando breves
risinhos. — Algo me diz que isso não é verdade.
Sorri, balançando a cabeça em negativo para ela, enquanto ainda dançávamos. Encarei,
então, o fundo dos seus olhos e falei:
— Eu só estou vivendo, pela primeira vez na vida. E a sensação disso é ótima.
Ela sorriu de volta para mim, deslizando suas mãos pelos meus cabelos e colando ainda
mais o seu corpo ao meu.
— Adoro te ver livre, sabia? — disse ela, bem pertinho do meu ouvido.
Sua boca roçando o lóbulo da minha orelha.
Todos os meus pelinhos se arrepiaram, que droga.
— E eu adoro ser livre com você — respondi.
O beijo entre nós foi inevitável. Aliás, todos os nossos beijos sempre eram inevitáveis.
Impossível fugir da atração cada vez mais forte.
Maldita miserável.
Quando Rayka esticou suas mãos safadas um pouco para baixo, alcançando a barra da
roupa que eu usava, e deslizou seus dedos pela minha coxa, eu abri os olhos, cogitando a
possibilidade de irmos embora dali, mesmo que a festa estivesse muito boa. Eu só não sabia se ia
conseguir segurar a vontade de transar até o amanhecer.
No entanto, antes mesmo que eu pudesse abrir a minha boca para falar, travei.
Simplesmente travei.
Eu tinha certeza absoluta de que o meu rosto empalideceu. Sim. E sentia como se todo o
sangue da minha cara tivesse sido drenado só de ver aquilo. Era tipo um fantasma. Um dos
fantasmas mais filhos da puta de todos.
Ele estava bem ali, ficando com uma loira enquanto olhava fixamente para mim. Ou
melhor, para nós.
Ethan.
Pela primeira vez na noite, o meu estômago quis embrulhar.
Droga.
Eu não podia vomitar por causa daquele desgraçado.
Rayka, por sua vez, percebeu a minha repentina inquietação.
— O que foi, amor? — perguntou ela, seu cenho já franzido.
Quando eu ia responder, no entanto, as palavras sumiram dos meus lábios outra vez. Ao se
afastar brevemente da garota, eu pude ver com quem Ethan estava. E o vinco na minha testa se
tornou ainda mais profundo do que antes.
Aquela... Aquela... Aquela era a Stacy? Stacy Hinkhouse?
Não, não, não.
Isso já era demais. Eu até podia aturar ali a presença de quem eu conhecia só de vista na
universidade, mas, definitivamente, não suportaria Ethan, sobretudo se continuasse nos
observando feito um stalker maluco. Eu não tinha viajado para ser encontrada por uma parte dos
meus problemas.
Não.
Não mesmo.
De repente, a minha boca ficou seca. Seca de puro ódio.
Pressionei a mandíbula.
— A-Acho que preciso tomar uma água, amor.
Foi tudo o que eu lhe disse.
Antes de ouvir a sua resposta, simplesmente saí ligeiro dali, caminhando a passos largos e
rápidos, por toda a extensão do luau, rumo a um dos balcões de bebidas.
— Amor, espera aí! O que foi?!
Ainda escutei ela gritar por cima da música, mas apenas continuei andando. Se fosse para
falar sobre aquele miserável, eu queria fazer isso bem longe dos olhos dele. De preferência, na
casa da Alyssa, dentro do quarto, ou em qualquer outro lugar em que a sua presença não me
fizesse sentir vontade de colocar pra fora todas as doses de tequila.
Quanto mais distância eu tivesse daquele imbecil, menos estresse eu teria.
A festa estava ótima, mas eu definitivamente não percorri mais de cem quilômetros para
dar de cara com ele.
Me escorando em um dos balcões de bebidas, pedi uma garrafa d’água ao barman, que
prontamente me entregou.
Ao mesmo tempo, Rayka me alcançou.
— Amor? Amor? — já preocupada, segurou o meu rosto com as duas mãos, encarando os
meus olhos. — O que foi, amor? Você está passando mal?
Só se fosse passando mal de raiva.
Girei a tampa da garrafa, bebi um gole muito generoso, respirei fundo e...
— Ethan está aqui.
— O quê? Sério?
— Aham, e ele estava olhando para nós enquanto dançávamos e nos beijávamos. Aquele
perturbado! Que ódio!
Rayka estalou a língua no céu da boca.
— Fico tranquila, amor — replicou. — Isso não vai dar em nada. Ele não é nem doido de
se aproximar de nós.
Porém...
Aparentemente, ele era bem doido sim.
Bastou Rayka se calar, para que ouvíssemos bem atrás de nós:
— Poxa vida, que bela coincidência!
Puta que pariu.
O enviado de satanás.
Até o seu tom de voz conseguia ser estupidamente asqueroso.
Bufando, eu me virei.
Meu corpo inteiro já pegava fogo de ódio.
— O que você quer aqui, seu perturbado? — perguntei, cuspindo o meu entojo em cada
palavra pronunciada.
— Ah, por favor, Vic... — sarcástico, com aquele sorriso que me dava ânsia de vômito,
respondeu. — Uma presença ilustre, como a de vocês, não pode passar despercebida em lugar
nenhum, nem mesmo aqui.
— É melhor vazar daqui agora, Ethan — disse Rayka, entredentes.
Ele, no entanto, imundo como sempre foi, fez que não ouviu o que ela tinha falado e, cara
de pau, continuou com as suas ironias especificamente para mim:
— Claro que eu não poderia deixar de vir falar com a garota mais difamada da
Universidade de Miami. Como é que chamam mesmo...? — cínico, fingiu que estava tentando
puxar algo na memória. — Ah, me lembrei! Primeiro, foi puta. E, agora, sapatão. Você tá bem,
hein, Vic?
Foi então que Rayka subitamente agarrou a sua camisa entre os dedos.
— Olha só, eu tô falando sério... — seu rosto perigosamente perto do dele. — Faz tempo
que eu quero acertar o punho na tua cara.
E, então, ele finalmente a encarou.
O ar de superioridade e prepotência, com o qual ele a fitou, foi nauseante. Ainda que não
dissesse palavra alguma, o seu semblante falava por si só. Ethan estava a subestimando, como se
ela não fosse capaz de nada.
— Uhhhh... — ironizou. — Acha mesmo que pode comigo?
Quando eu ia apenas pensar em dizer “amor, deixa isso pra lá, não vale a pena”, Rayka,
de supetão, acertou um soco tão forte e certeiro na cara do imbecil, que ele literalmente caiu.
Atordoado, com o nariz esguichando sangue por todos os lados, Ethan gritou, ainda
largado na areia:
— Você tá ficando maluca, sua vagabunda?!
Em um primeiro momento, eu fiquei em choque. Meu queixo despencou e meus olhos
nem piscavam. Eu mal podia acreditar que isso tinha acontecido, ainda que, nem de longe, eu
duvidasse do que Rayka era capaz. Cinco segundos depois, porém, ao cair na real, uma súbita -
sim, uma súbita - vontade de rir me tomou.
Juro.
Toda a raiva e todo o ranço, que eu sentia, milagrosamente se transformaram em uma puta
vontade de gargalhar, por vê-lo ali, que nem um otário, com o nariz sangrando e o semblante de
quem não entendida como foi parar com a cara na areia por causa de uma mulher.
Eu só queria rir.
Eu só queria rir muito.
Já me estourando, falei:
— Vem, amor! Vamos!
E a puxei pelo braço, para sairmos dali.
— Vocês vão se arrepender, suas vadias! — ele ainda gritou.
Rayka e eu, satisfeitas por todo o sangue que escorria do seu nariz, largamos apenas um
belo “foda-se”, em uníssono, e demos o fora.

✽ ✽ ✽

Não conseguimos nos segurar por muito tempo. As risadas se desprenderam de nós, à
medida que corríamos feito loucas pela praia e nos afastávamos do local da festa. Ríamos tanto,
mas tanto, que eu já não sabia se a minha falta de fôlego era da corrida ou das risadas. Talvez
fosse pelas duas coisas.
Sequer paramos para avisar aos nossos amigos que íamos embora.
Eles iriam entender, de qualquer forma. Ou, então, iriam ligar para saber se ainda
estávamos vivas.
— Você viu a cara dele? Você viu? — perguntou ela, gargalhando.
Nós já estávamos fracas, caindo uma por cima da outra.
— Eu não paro de me lembrar!
— Ah, nossa, me sinto cinquenta milhões de vezes mais leve, depois de socar aquele filho
da puta. Eu estava há um zilhão de anos com vontade de fazer isso!
Ri.
E, então, eu não sabia se era da adrenalina do soco, da felicidade de estar com ela, ou se
era só aquela vontade louca de arrancar a sua roupa, que eu sentia desde que estávamos
dançando no luau, mas, eu não resisti. Mordendo de leve o lábio inferior, a puxei para mim, ali
mesmo, no meio da praia.
— Você mandou muito bem...
Eu precisava voltar a beijá-la.
E foi isso o que eu fiz.
Entre sorrisos e olhares sacanas, os seus lábios deslizaram pelos meus, à medida que a
minha língua entrava na sua boca. Suas mãos apertaram firmemente a minha cintura, enquanto o
beijo ganhava cada vez mais intensidade. Em pouco tempo, eu já me sentia com menos fôlego.
Rayka...
...Aquela desgraçada que me deixava com vontade de trepar até dentro do mar.
Separei os lábios por um instante e puxei o ar profundamente, enquanto olhava ao redor.
Foi quando eu vi, um pequeno montinho de areia. Uma pequena duna ali perto, em formato
concha. Era como se, no meio da praia, houvesse uma redoma escondida.
— Vem aqui... — A puxei pela mão, levando-a até lá.
De um lado, era pura escuridão. Do outro, ainda era possível enxergar as luzes da festa
meio distante. E, na nossa frente, o mar.
Eu me sentei na areia, bem no meio da concha formada pela duna.
Entre sorrisinhos meio confusos, ela franziu o cenho para mim.
— O que foi? — perguntou.
Ri pelo nariz.
— Senta aqui comigo... Vamos olhar... As estrelas.
Ela também riu de leve, mas, ainda assim, o fez.
Logo Rayka estava sentada ao meu lado, me envolvendo com os seus braços pelas minhas
costas, enquanto tentava aplacar, em mim, o frio do vento da madrugada, cada vez mais forte na
praia.
Isso estava me arrepiando.
— Você é uma figura, Victoria.
— Não vamos deixar aquele idiota estragar a nossa noite.
Ela suspirou.
— Tem razão. Não vamos deixar.
Sorri, girando o rosto para ela.
— Onde você aprendeu a dar socos assim em caras?
Rayka, por sua vez, empinou o nariz para mim, divertida.
— Eu tenho os meus dotes, ora.
Ri.
— Aposto que você aprendeu na adolescência, porque vivia brigando com os garotos, né?
Ela suspirou.
— Tudo bem, agora você me descobriu — e riu.
Sorrindo de leve, deslizei os meus olhos das suas orbes para a sua boca. Meu raciocínio
estava meio nublado. Sempre que eu tentava seguir por um rumo diferente, era a lembrança da
vontade de tirar as roupas, durante a nossa dança, que me batia. Deus, eu era um caso perdido.
Eu já não conseguia passar mais do que dois minutos com ela sem pensar em alguma besteira.
O que Rayka estava fazendo comigo eu não sabia, mas a coisa era séria. Muito séria.
— Eu achei sexy — falei.
Erguendo uma das sobrancelhas para mim, ela perguntou:
— O quê?
— Você me defendendo.
— Ah, é? — sorriu.
E, dessa vez, foi o seu sorriso sacana quem apareceu.
Ah, minha deusa, como eu queria ver isso.
As batidas do meu coração aceleraram.
— Unhum — respondi. — Na verdade, eu te acho toda sexy. Não tem uma parte sequer de
você ou das suas atitudes que não me atraia. Tudo me atrai.
Percebi, então, o seu olhar se tornar mais intenso. Deslizando uma das suas mãos pela
minha nuca, ela encaixou bem na região entre o meu pescoço e o meu queixo. Todos os meus
pelinhos se arrepiaram. Só que, agora, não foi de frio. Foi de tesão.
— Sabia que é você quem fica sexy dizendo isso?
Puxei o ar de leve, tentando engolir uma vontade que já subia com força pela minha
garganta. Rayka definitivamente despertava em mim uma Victoria que eu nunca tinha visto. Eu
estava quase... Irreconhecível.
Uma cadela.
Mas, uma cadela com muito orgulho.
— Se eu te disser algo, você promete que não vai me achar muito maluca?
Ela sorriu.
— Prometo.
Suspirei mais uma vez e, enfim colocando para fora o que já transbordava de mim há
horas, falei:
— Você sabia que... Eu nunca transei em uma praia?
Foi quando uma das suas sobrancelhas se ergueu para mim. E o olhar, que ela me deu, era
de quem já tinha sacado onde eu queria chegar. Agora, não era apenas sacana o seu sorriso. Era o
seu rosto inteiro, o seu corpo, a energia que exalava de si.
Passando a língua entre os lábios, aproximou o seu rosto do meu e sussurrou quase contra
a minha boca:
— Algo me diz que essa madrugada é perfeita para uma primeira vez.
Sem pensar duas vezes, montei sobre o seu corpo.
— Eu também acho.
NUNCA RECEBI FLORES

“Os dias de cão acabaram”


Dog Days Are Over | Florence and The Machine

RAYKA

Na manhã seguinte, assim que os raios de sol surgiram na linha do horizonte e alcançaram
os meus olhos, a primeira coisa que eu vi, bem na frente das minhas fuças, foi um pequeno
ramalhete de flores. Um pequeno e lindo ramalhete de flores. Sorri, mesmo sem saber o que isso
significava. E, então, ainda meio sonolenta, com o rosto cheio de grãos de areia grudados por ter
dormido ali, deitada na praia, ergui o olhar.
Foi quando eu a vi, sentadinha ao meu lado, perfeita, com aquela carinha de quem
conseguia ser linda, mesmo depois de uma madrugada inteira transando numa duna deserta, no
meio da costa de Palm Beach. Com os joelhos flexionados, enquanto os seus cabelos bonitos
balançavam com o vento, ela olhava para mim. Victoria parecia um sonho.
E sorriu ainda mais encantadora, quando segurou aquele ramalhete de flores, erguendo-o
para mim.
Pisquei os olhos algumas vezes e franzi o cenho de leve, acordando de uma vez por todas.
Afinal, não tinha como me sentir sonolenta quando Victoria Peterson me oferecia flores.
Será que eu estava entendendo certo?
Era isso mesmo?
— São pra mim? — numa mistura de felicidade com incerteza, perguntei, sentando-me ao
seu lado.
Seu sorriso foi muito mais brilhante que antes.
— É claro que são. Ou acha que só você pode me dar flores? — soltou uma risadinha.
É claro que são...
Juro que eu nunca, nunca imaginei que a junção de quatro palavras tão pequenas fosse me
deixar tão feliz. Se o sorriso dela estava tão brilhante quanto o sol que começava a nascer, eu
sabia que o meu tinha se tornado ainda maior. Era uma alegria que não cabia em mim.
— Ah amor... — segurei o ramalhete, quase sem acreditar. As palavras por um momento
escaparam da minha boca. Parecia algo tão bobo, tão simples. E, bem, para a maioria das pessoas
devia ser realmente algo simples receber um ramalhete de flores que nem eram de uma
floricultura, mas de algum canteiro da praia, que ela certamente conseguiu encontrar antes de eu
acordar. Para mim, no entanto, isso dizia tantas coisas, significava muito mais do que qualquer
pessoa podia imaginar, e fazia uma diferença tão grande, porque... — Eu nunca recebi flores de
alguém.
Ela, por sua vez, ergueu as sobrancelhas para mim, surpresa.
— Nunca?
— Não... — balancei a cabeça de leve, sorrindo meio desconcertada, ao me lembrar
brevemente. — Algumas meninas acham que o papel das garotas desfem é dar as flores e não
receber, mas você... — encaixei uma das minhas mãos na região entre o seu pescoço e o seu
queixo, fitando-a ainda mais idiota por ela do que eu já era. Meus olhos, mesmo pequenos por eu
ter acabado de acordar, já brilhavam pra Victoria. Por Victoria. — Você é diferente de todas as
meninas que eu já conheci. Sei que é piegas e clichê dizer isso, mas eu não posso falar outra
coisa, se a verdade é essa.
Victoria sorriu para mim, entre risinhos adoráveis, enquanto passava seus braços pelo meu
pescoço e me puxava para mais perto de si.
— Essas meninas são todas idiotas. Não souberam aproveitar o que tinham. Que bom que
agora eu sei... — soltando mais risadinhas, me beijou.
E, bem, ela realmente sabia. Ainda que a nossa relação tivesse sido meio conturbada,
durante alguns anos, agora Victoria agia como aquela garota que, no fundo, eu sempre soube que
ela era, mesmo na época em que tudo queria me convencer do contrário. Atenciosa, carinhosa.
Dava sem esperar receber. E se importava o suficiente para ter a certeza de que um
relacionamento era uma via de mão dupla. Pura reciprocidade.
Talvez essa fosse a verdadeira perfeição que ela sempre buscou.
— Você é incrível, Victoria Peterson — respondi contra os seus lábios. — E eu amei as
flores. Mesmo. Elas são lindas.
Vic sorriu.
— Dormiu bem?
— É... Hã... — fiz uma caretinha divertida de quem estava pensando. — Depois de gozar
três vezes?
Ela riu.
— Sim, depois de gozar três vezes.
— Perfeitamente bem — respondi. — Claro que, na minha bunda, ainda deve ter um quilo
de areia. Mas, depois de gozar três vezes e dormir que nem um anjo, isso é o de menos.
Victoria riu ainda mais.
E, então, ainda com os braços ao redor do meu pescoço, falou:
— Foi uma das melhores noites da minha vida.
— Eu só não digo que foi a melhor, porque, todas as vezes que estamos juntas, você
sempre se supera. O que está acontecendo com você? — sorri.
— E você está cheia de lábia hoje... — disse ela, brincalhona, cerrando os olhos de leve
para mim. — Eu que te pergunto o que está acontecendo.
Soltei risadinhas, ainda encarando os seus olhos.
— Não é lábia. É verdade. Eu poderia passar o resto da vida nessa praia, sem reclamar,
porque aqui tenho tudo o que preciso. Você.
Ela sorriu.
Seus olhos lindos brilhavam.
— Sim, isso pode ser verdade, mas também não deixa de ser lábia... Uma grande, boa e
gostosa lábia. — respondeu, entre risinhos, enquanto acomodava-se ainda mais entre as minhas
pernas.
Parecia entusiasmada. Entusiasmada de estar ali, entusiasmada de estar comigo,
entusiasmada com a nossa viagem, entusiasmada com boa parte de tudo. Porém... Em meio
àquele sorriso lindo, enquanto ainda me fitava, seu semblante feliz vacilou um pouco. Era como
se, de repente, ela tivesse se lembrado de algo. Uma coisa que sugava a sua alegria.
Inevitavelmente, minha testa enrugou.
— O que foi? — perguntei.
— Eu só me dei conta de que esse paraíso está quase acabando... — suspirou, baixando
levemente o olhar. — Esse final de semana foi espetacular com você e os seus amigos, Rayka.
Um dos melhores que eu já tive, nos últimos tempos. Só que eu sei que, quando terminarmos o
almoço e voltarmos à Miami, todos os problemas vão surgir de novo. E eu tenho tanto ódio de
mim mesma por estar pensando nisso agora, quando eu deveria estar aproveitando as minhas
últimas horas aqui, mas, às vezes, não dá para evitar.
Que droga...
Victoria estava pensando exatamente o mesmo que, no fundo, a minha consciência
sussurrava, desde que pusemos os pés em Palm Beach. Ainda que eu não tivesse aberto a minha
boca para falar sobre isso, porque não queria estragar o nosso momento longe de tudo o que nos
incomodava, os fantasmas de Miami continuavam atormentando. E eles perturbavam mesmo
quando estávamos distraídas. Ou, pelo menos, quando deveríamos estar.
Era uma merda.
Puxando o ar, segurei o seu rosto entre as minhas mãos, encarando fixamente os seus
olhos.
— Amor, você sabe que nós somos maiores do que os problemas, não sabe? Sabe que
somos maiores do que a sua avó e de todos aqueles imbecis que falam de nós, não sabe? Eu não
tenho a menor dúvida que vamos conseguir dar um jeito nisso.
Era esse tipo de coisa que eu repetia para mim mesma, um milhão de vezes, sempre que
pensamentos inoportunos se sentiam no direito de passear pela minha cabeça.
— Eu sei, eu sei... — disse ela, ainda entre as minhas pernas. — É só que... — soprou o ar,
como se estivesse sentindo-se cansada só de mencionar isso. — Desde aquele dia que a minha
avó invadiu o seu quarto na fraternidade, eu tô achando ela muito quieta. Tenho medo do que ela
possa estar planejando dessa vez. Meu pai disse que ia conversar com ela, mas eu não tenho
certeza de que Grace vai ouvi-lo. E, fora isso, ainda tem a merda daquele trabalho. Você se
lembra de que amanhã é o dia da apresentação, não se lembra? E olha só onde estamos agora...
No meio de uma praia… — soltou um risinho fraco. — Não que eu queira ir embora daqui,
porque não, eu definitivamente não quero. Por mim, eu passaria o resto da vida nessa praia. Mas,
é inevitável pensar no quanto estou fodida. Não preparei nada e estou sozinha. Não tenho mais
você naquele inferno de trabalho.
— Não, você não tá sozinha, Vic — repliquei, de pronto. — Olha só... — tirei o celular do
bolso da minha calça que, com sorte, ainda tinha dez por cento de carga. Abri em uma pasta,
onde eu guardava os meus textos na nuvem, e mostrei a ela. — Eu tenho algumas histórias
engavetadas. Romances que escrevi e que provavelmente nunca vou usar. Você pode pegar um
desses para apresentar amanhã. Tipo esse aqui... — apontei. — É uma comédia romântica bem
levinha, sobre uma escritora cuja personagem de um dos seus livros aparece dentro de casa do
nada — soltei uma risadinha pelo nariz. — É bem pequena, simples. Tem pouco mais de
sessenta páginas. Rapidinho você consegue ler e preparar algum resumo para amanhã. Fique com
esse texto para apresentar. Eu uso alguma outra história minha.
Foi quando os seus olhos brilharam para mim outra vez.
E, então, a preocupação se transformou em esperança.
Linda.
— Tá falando sério?
— É claro que eu tô... — sorri, fazendo carinho no seu rosto com o polegar. — Quero
ajudar. Além do mais, vai ser uma delícia ver a minha a garota lendo e falando sobre alguma
história minha.
Subitamente, ela suspirou, e, então, me tomando para si, abraçou-me forte, apertado.
— Ah, meu Deus, o que eu faço com você, hein?
— Bom... — me afastei somente o suficiente para encará-la nos olhos outra vez. — Acho
que pode começar me beijando.
Ela riu.
— Com o maior prazer... — colou os seus lábios nos meus e... — Muito obrigada por
todos os dias ocupar o lugar de melhor pessoa da minha vida.

VICTORIA

Ao longo das últimas semanas, eu tive a confirmação de algumas coisas. A primeira delas:
eu sempre gostei de mulher. A segunda: eu sempre fui apaixonada pela Rayka. Com aquela
pequena viagem à Palm Beach, porém, eu pude confirmar algo mais. Eu não apenas a queria pelo
resto da vida, como também tinha certeza disso. Fazia tempo que eu não me sentia tão leve assim
por mais de vinte e quatro horas. Mesmo com alguns pensamentos intrusos e contratempos
indesejados, tipo o surgimento do Ethan lá das profundezas do inferno, eu me senti tão bem
naquele fim de semana.
Rayka não precisava fazer o menor esforço para que eu me sentisse bem. Ela só tinha que
existir. Só isso mesmo.
Alyssa e Jeff também foram incríveis comigo. Eles me receberam tão bem, mesmo que
não somente conhecessem a fama da Victoria Perfeita Peterson como também já tivessem
provado um pouco do veneno que ela destilou algumas vezes. Acho que eu podia dizer que
quebrei a minha cara. Quero dizer, eu tinha quebrado a cara várias vezes durante as últimas
semanas, e mordido a língua também. O que antes não tinha importância para mim, agora estava
no topo da lista de prioridades. E o que eu julgava como estranho ou esquisito, na real era o
melhor que eu poderia ter comigo.
Os amigos da Rayka se incluíam nisso. Mesmo sem a menor intenção, eles também me
fizeram quebrar a cara. E quebraram bonito. Eles faziam parte daquele grupinho, nada seleto de
pessoas, que eu julgava só por serem “diferentes” do padrão. Aprendi a duras penas que, em
geral, o padrão significava porra nenhuma. Os caras babacas e as garotas idiotas, que lambiam o
chão por onde eu passava e que se encaixavam no tal padrão antes adorado e idolatrado por mim,
foram os primeiros a me fazer de chacota, não apenas quando a minha maldita foto circulou por
toda a universidade, mas também quando a notícia sobre Rayka e eu estourou.
Enquanto isso, aqueles para quem eu virava as costas e tratava como se não fossem nada,
na real foram os primeiros a me acolher e a me tratar do jeito como eu sempre deveria ter os
tratado: como um ser humano.
Ah, mas eu aprendia.
Eu aprendia sim.
Eu tinha que aprender. Nunca era tarde demais para isso.
A partir de agora, eu só escolheria aqueles que me escolhiam de verdade também. Sem
máscaras, sem rótulos, sem segundas intenções. Apenas quem realmente queria o meu bem.
Apenas quem não era de mentira.
Tipo ela.
Entre tantas coisas que Rayka estava me ensinando, mesmo sem saber, enxergar o que
realmente valia a pena na vida era uma delas. Melhor do que ter centenas de pessoas te bajulando
falsamente era ter cinco amigos verdadeiros ao seu lado. Nada do mundo pagaria o valor alto de
ter alguém de verdade com você.
E, agora, eu tinha ela.
— Estou feliz com você — disse eu, enquanto, charmosa, Rayka dirigia, já entrando no
campus da universidade.
De volta ao mundo real.
Ela virou o rosto para mim, desviando brevemente a atenção da rua.
Tão linda.
— Eu também estou feliz com você. Muito, muito.
— Obrigada pelo final de semana maravilhoso — falei.
E o seu sorriso era como um tesouro inestimável.
— Sabe o que teremos agora? — perguntou ela, divertida, erguendo uma das
sobrancelhas.
— O quê?
Foi quando dobrou na rua da fraternidade. Ao final, eu já podia avistar as pilastras
neoclássicas da fachada.
— Uma semana maravilhosa — respondeu ela. — Aliás, uma vida maravilhosa!
Eu sorri, soltando risadinhas pelo nariz, enquanto balançava de leve a cabeça. Ainda que
eu tivesse tremido nas bases por um momento, lá na praia, me lembrando de que logo estaríamos
de volta ao olho do furacão, a sua capacidade persuasiva de me convencer de que as coisas iriam
ficar bem parecia poderosa demais. Durante todo o percurso, os meus pensamentos não me
atormentaram outra vez.
Afinal de contas, as suas piadinhas sem graça e os seus beijinhos gostosos, ao longo do
caminho, eram irresistíveis demais.
Entre uma risadinha e outra, à medida que nos aproximávamos da fraternidade, porém...
Algo prendeu a minha atenção.
Sim.
Subitamente, reteve a minha atenção.
Na frente da Casa das Minervas, um enorme caminhão de mudança estava estacionado e,
por ali, havia um movimento incomum de caixas e móveis. Ao redor, as garotas olhavam
incrédulas para aquilo, como se estivessem surpresas, ou até chocadas com algo.
Um vinco profundo na minha testa se formou, enquanto a curiosidade já despontava em
mim.
O que estava acontecendo?
Eu não me lembrava de qualquer uma das meninas ter me avisado que iria embora da
fraternidade.
Tão logo Rayka parou o carro próximo à calçada, eu desci, absolutamente confusa, e fui
caminhando até a entrada. Homens e mais homens não paravam de sair de dentro da
fraternidade. Era como se realmente estivesse acontecendo uma grande mudança. No entanto, as
coisas ficaram ainda mais esquisitas quando...
— Espera aí... — boquiaberta, sibilei para Rayka, ao meu lado, tão surpresa quanto eu. —
Aquela não é a minha bota da Gucci dentro de uma caixa toda amarrotada...? E aquele ali não é o
espelho do meu quarto? Para onde as minhas coisas estão indo?!
Meu coração acelerou ao ponto de quase pular da garganta.
Não, não, não.
Que porra era essa?
Correndo, atarantada, quase tropeçando nos meus pés, eu me apressei para dentro da casa.
Para piorar, ao redor, as garotas, ainda abismadas, começaram a cochichar ainda mais entre si, ao
me ver. Isso só me deixava ainda mais assustada, sobretudo porque eu não conseguia identificar
uma palavra sequer do que diziam. O burburinho que elas faziam parecia ainda mais confuso do
que a própria situação.
Aos pulos, no momento em que cruzei as portas gigantes da fraternidade, atravessando o
caminho daquele batalhão de homens que não paravam de transitar de um lado para o outro,
porém, ouvi a voz do meu pai:
— Não, não! Parem com isso! Já chega! — gritava ele com os homens que continuavam
carregando caixas como se não tivessem escutado nada.
— Estamos apenas seguindo as ordens de quem nos contratou, senhor — respondeu um
deles.
De quem nos contratou?
O vinco na minha testa ficou ainda maior.
Quem os contratou?!
— Grace! — papai subitamente virou o rosto para um lado, exclamando. — Eu não
permito! Eu não permito que isso aconteça. Está me ouvindo? Eu sou o pai da Victoria e não
permito que você faça isso!
Foi quando ela, de repente, surgiu ali, retrucando:
— E eu sou a avó dela! Tenho tanto poder de decisão quanto você! Aliás, tudo isso que
está acontecendo agora é sua culpa, John! Você sempre mimou muito aquela menina. Sempre fez
todas as vontades dela e apoiou todas as besteiras que ela quis fazer. Agora, está aí o resultado!
Ela cresceu e se tornou uma vagabunda que acha que pode tudo! Se ela tivesse sido criada só por
mim, nada disso estaria acontecendo. Victoria precisa ficar longe dessas péssimas influências
que atrasam a vida dela!
Espera aí?
Quê?
Com o coração escapando pela boca e os olhos saltando da caixa craniana, eu me
aproximei rapidamente deles. Por um momento, comecei a sentir a minha respiração falhar.
Ao redor, todas as garotas da fraternidade observavam boquiabertas o show.
— Mas... O que... O que é isso? O que está acontecendo aqui? — questionei. — O que as
minhas coisas estão fazendo dentro de um caminhão?!
Grace, de pronto, ao ouvir a minha voz, virou-se em minha direção. Seu semblante sério e
altivo, que antigamente me amedrontava e me intimidava de todas as formas possíveis, agora não
me causava nada mais do que pura repulsa.
Para completar, ela torceu o nariz ao notar Rayka bem ao meu lado. Nos encarou como se
fôssemos duas aberrações. Ou, sei lá, um monte de lixo que precisava ser levado em cima de
uma caçamba, o quanto antes, para parar de feder. Meu estômago revirou de automático. Eu não
suportava mais isso. Estava passando da hora de dar um basta.
— Suas coisas estão a caminho de Providence. Duncan já aceitou a sua transferência para
a Rhode. Você viaja amanhã.
Como é que é?!
— Puta que pariu, a velha plastificada enlouqueceu de vez — resmungou Rayka.
— Eu não vou a lugar algum! — retruquei. — Você não pode fazer isso!
— Já está feito, Victoria. Não é algo que você tenha poder de escolha. Amanhã você viaja
e acaba com essa brincadeira — completou ela, fitando Rayka cheia de despeito, enquanto
deixava bem claro que a brincadeira que se referia era o nosso relacionamento.
— Ô Grace, deixa eu te perguntar uma coisa... — Rayka falou. — Você, por acaso, tem
algum desejo enrustido por alguma mulher? Ou, sei lá, durante a sua adolescência você se
apaixonou por alguma garota e os seus pais não permitiram a relação? É porque muita gente
preconceituosa, que nem você, é louca para dar o rabo a alguém do mesmo sexo, sabe? Já vi
alguns casos.
— Me respeite, sua atrevida! A sua mãe nunca foi capaz de te dar educação?
— Claro que ela me deu. Mamãe me ensinou a nunca abaixar a cabeça para gente filha da
puta.
De súbito, o queixo de Grace despencou.
Seu rosto se tornando ainda mais vermelho.
— Você está me chamando de...
— Eu estou farta! — berrei, interrompendo a troca de farpas das duas. E, bem, eu estava
pouco me importando com a plateia de Minervas ao nosso redor, que, provavelmente,
espalhariam mais fofocas. — Farta de você me dizer o que fazer e como fazer. Estou farta de
obedecer a todas as suas ordens. Chega. Eu não quero mais isso pra minha vida!
Meus olhos estavam ardendo de ódio.
— Então, você não quer mais o melhor para a sua vida? É isso, Victoria? — entortou as
sobrancelhas para mim. — Ir para Rhode é o seu plano, desde criança. E você sabe que está se
perdendo aqui com essas péssimas influências, assim como também sabe que concluir os estudos
lá vai te abrir muitas portas. Você vai se tornar uma artista famosa, renomada! É o que uma
verdadeira Peterson merece.
— Eu vou me tornar uma artista renomada independente de onde eu esteja!
— Isso significa que você não quer mais me ouvir? — me encarou em um pavor cínico,
levando uma das mãos ao peito, como se estivesse ferida. — Não quer mais os meus conselhos?
Isso é um absurdo!
— Sim, vó, é exatamente isso o que eu estou tentando deixar claro — repliquei, sem
pensar duas vezes. — Não quero mais você apontando o dedo para mim, mandando e
desmandando na minha vida como se eu fosse algum tipo de marionete sua.
Ela bufou, completamente aborrecida.
— Você é muito mal-agradecida! Eu tenho certeza que se lembra de que, quando estava
no leito de morte, Madelyn te disse para me ouvir, porque eu sempre saberia o melhor caminho
para você. Você está decepcionando a sua mãe!
Basta!
Isso era demais para os meus ouvidos.
Demais para a minha cabeça.
Eu ia explodir.
Não podia permitir que ela continuasse com os seus joguinhos psicológicos,
completamente adoecedores, só para tentar me atingir. Essa sua tática era suja, miserável.
Absolutamente narcisista.
De súbito, a ira me cegou. Sim, o meu corpo esquentou. E, talvez, só talvez, eu nunca
tivesse sentido uma raiva tão grande quanto essa. Não fui capaz de me conter. Aquela força que
brotou de dentro de mim era muito maior do que eu mesma.
Com os olhos pegando fogo, o queixo erguido, a mandíbula trincada e o semblante
enfurecido, eu atravessei todo o espaço, que ainda nos separava, e avancei em sua direção, ao
ponto de parar apenas quando os nossos narizes encostaram um no outro.
Eu nem piscava, tamanha raiva.
— Para de falar o nome da minha mãe em vão! — entredentes, exclamei. — Para de usar
ela para tentar me convencer do que você mesma quer! Eu odeio quando faz isso e odeio uma
porção de outras coisas em você.
Não precisei contar dois segundos.
Automaticamente, um tapa forte, certeiro e bruto atingiu o meu rosto, fazendo toda a pele
da minha bochecha esquentar, ou melhor, queimar. O impacto foi tão intenso que o meu pescoço
virou completamente para um lado, enquanto os meus cabelos se espalharam feito cascata.
Fiquei zonza, e, por alguns instantes, um zunido perturbou a minha audição.
Até então, eu não tinha chorado, nem sentido a menor vontade de fazer isso. Porém,
enquanto aquele calor se espalhava pela minha bochecha, involuntariamente, duas lágrimas
quentes, escaldantes, desceram dos meus olhos.
Lágrimas de verdadeiro ódio.
— É desse jeito como você trata a sua avó que te ama e sempre fez tudo por você?! — ela
ainda teve a audácia de perguntar, como se, há meio segundo, não tivesse acertado a minha cara
em cheio.
Talvez fosse desse jeito como ela demonstrava o seu “amor” por mim.
Rayka, no entanto, foi mais rápida que eu.
— E você, se realmente amasse a sua neta não faria esse tipo de coisa, sua covarde!
A garota já ia avançando em direção à Grace, quando meu pai a segurou pelos braços.
— Cale a sua boca — devolveu Grace.
— Chega, Grace! — papai exclamou. — Isso já passou de todos os limites.
Porém, foi no exato instante em que, entre as dezenas de garotas que observavam o show,
um dos homens do caminhão de mudanças apareceu ali e disse para minha avó:
— Senhora, terminamos de arrumar as coisas. Está tudo pronto para o envio.
— Ótimo — respondeu ela, e, então, virando-se para mim, completou. — As suas coisas
estão indo embora agora e amanhã será você, Victoria. A sua brincadeira está encerrada agora.
Meus ombros subiam e desciam freneticamente, em uma respiração descompassada e
carregada de fúria e rancor. Ao contrário do que ela provavelmente imaginava, o seu tapa na
minha cara não me reprimiu, nem tampouco me fez enxergar que eu estava “errada” nessa
história. Muito pelo contrário. A sua atitude só me causou ainda mais ódio, mais raiva, mais
revolta, e me fez ter ainda mais certeza do que eu queria.
Eu a queria longe da minha vida.
De uma vez por todas.
Girando devagar o meu rosto, para ficar de frente para o dela outra vez, eu a encarei
seriamente, com toda a aversão e a decepção que eu sentia.
Não, eu não estava decepcionando a minha mãe, assim como Grace tentava me fazer
acreditar. Mas Grace estava, sim, me decepcionando e me machucando. Completamente.
— Se ainda existia qualquer mínima chance de eu aceitar ir para Rhode, não tenha dúvidas
de que, a partir de agora, depois de tudo o que aconteceu aqui, não há mais a menor possibilidade
de eu ir ou de eu fazer qualquer outra coisa que me ordene. Você não manda mais em mim, e eu
não faço mais questão de ser a Peterson que você quer que eu seja. Acabou.
Seu rosto se petrificou.
Se, por um lado, a sua fúria se evidenciou, por outro era a surpresa, pela maneira como eu
falei, que despontou de si.
Eu sabia, eu sentia, ou melhor, eu fui capaz de enxergar, no fundo das suas íris, o quanto
as minhas palavras atingiram-na dessa vez, e o quanto ela sabia que eu estava falando
absolutamente sério no que eu dizia. Mesmo que não quisesse admitir, Grace tinha certeza de
que eu já não era aquela Victoria submissa às suas vontades, e nunca mais seria.
Era o fim.
Ainda assim, montando-se sobre a sua postura austera, para fingir que nada no mundo a
abalava, ela respondeu:
— É isso o que nós vamos ver.
Foi a última coisa que eu a ouvi dizer, antes de me dar as costas e sair dali, furiosa,
batendo com os seus saltos sobre o piso de mármore branco da fraternidade.
Após um súbito silêncio, o burburinho das Minervas, que ainda observavam aquilo, se
tornou ainda mais intenso. A antiga Victoria poderia repreendê-las e censurá-las por serem tão
curiosas e fofoqueiras. A antiga Victoria poderia até gritar para que parassem ou expulsar a
maioria delas por insolência. Mas, honestamente, eu não me importei nem um pouco.
Na verdade, depois que me vi longe da Grace, tudo o que eu consegui fazer foi respirar
aliviada. Tão aliviada que, por um instante, a força nas minhas pernas vacilou. Rapidamente, no
entanto, Rayka e meu pai me alcançaram, abraçando-me ao mesmo tempo. Um de cada lado. E,
sem dúvidas, esse era o melhor abraço que eu poderia sentir naquele momento.
Fechei os olhos, sorvendo a sensação maravilhosa, quase indescritível, de ser acolhida por
quem realmente me amava não apenas com palavras, mas também com ações. E, então, escutei o
meu pai dizer:
— Venha, querida, vamos sair daqui.
ANTES TARDE DO QUE MAIS TARDE

“Eu nunca quero estar sem você, agora você sabe o que eu sinto”
Now You Know | Hillary Duff

VICTORIA

Papai me levou para a sua casa e me colocou em sua redoma, distante de tudo o que
tivesse a chance de me perturbar. Não que o burburinho na fraternidade estivesse me
incomodando. Honestamente, podiam falar de mim o que quisessem. Eu já não me importava
com isso. No entanto, querendo ou não, o meu antigo quarto, a sua companhia de pai atencioso e
os braços da Rayka eram os melhores lugares onde eu poderia estar.
Depois de conversar comigo e reafirmar por milhares de vezes que não me preocupasse
com nada, porque ele ia dar um jeito de pegar todas as minhas coisas de volta, papai me deixou a
sós com a Rayka. E ela, claro, passou um tempão comigo no quarto. Por longos minutos, apenas
o seu silêncio e o seu carinho nos meus cabelos foram o suficiente para que o meu coração, de
uma vez por todas, voltasse ao seu devido lugar.
O meu rosto ainda doía do tapa. Isso era um fato. Entretanto, talvez a dor maior fosse na
alma. E não, não era por tristeza, mágoa ou decepção. Era por eu ter me permitido viver, durante
tantos anos, em uma situação como aquela. Ainda que eu soubesse que não tinha culpa de nada a
respeito da forma como eu era tratada, e que Grace era a responsável por criar um ambiente ao
meu redor de completa dependência emocional a ela, vez por outra ainda me batia um
arrependimento.
O arrependimento de não ter cortado o mal pela raiz mais cedo.
Talvez, só talvez, se eu tivesse tomado as rédeas da minha vida logo, Grace não teria se
achado no direito de me controlar como fez por tanto tempo, e, então, uma boa parte das
situações desgastantes que eu vivi não teria acontecido.
Bom...
Tudo fazia parte de um grande “talvez”. Eu não queria ficar pensando muito em como as
coisas poderiam ser diferentes, se eu não tivesse me entregado às chantagens psicológicas da
minha avó. Pelo menos, agora, eu tinha colocado um ponto final. Sim, eu sabia que eu tinha
colocado sim.
Antes tarde do que mais tarde.
E, ainda que durante tanto tempo eu tivesse me deixado afligir pelos desentendimentos
com Grace, por suas palavras duras, ou mesmo pelas suas táticas tóxicas de convencimento que
davam a entender que eu sempre estaria errada a qualquer hora e a qualquer momento, agora eu
já não me sentia mal por ter dado um basta. Eu não me sentia mal por ter tomado distância
daquilo que eu achava que fosse a última parte existente da minha mãe.
Na verdade, eu estava bem.
Muito bem.
Era como se eu tivesse tirado mais alguns quilos das costas. Bem, desde a primeira
conversa que eu tive com a Giselle, o peso começou a sair. Depois disso, a cada vez que eu
beijava a Rayka e aceitava quem eu realmente era, ele diminuía. E, agora, parecia tão pequeno
que eu quase não sentia.
Não derramei mais uma lágrima sequer, por causa da minha avó ou da situação como um
todo, nem mesmo senti vontade de derramar. Era como se os meus olhos, finalmente, tivessem
secado para qualquer coisa que pudesse me machucar.
Eu sabia que, dessa vez, fui muito clara. Não existia pessoa no mundo que me fizesse
entrar na porcaria de um avião, no dia seguinte. Só que o principal de tudo era que ela também
sabia disso. Eu vi claramente nos seus olhos, segundos antes de ir embora da fraternidade, que
Grace se deu conta de que aquela era a última vez em que ela aparecia na minha frente para me
exigir alguma coisa.
Ainda que não quisesse admitir, que esperneasse, ou que tentasse se valer de mais uma das
suas tóxicas estratégias de convencimento, ela sabia que estava perdendo aquele jogo. E,
principalmente, estava me perdendo. Ela perdeu a filha para a morte, mas agora estava perdendo
a neta em vida por causa das suas próprias atitudes.
Eu estava cada vez mais distante dos seus parâmetros, cada vez mais distante dela.
Era quase... Libertador.
Diferente do que passei a vida inteira pensando, eu já não me sentia mal de me afastar
daquilo que eu achava que era a última parte da minha mãe. Isso porque, agora, eu tinha
entendido que o que restou da minha mãe, na real, estava em mim. Sim. Era eu. Ela me deu à luz,
ela me gerou, e, se eu quisesse encontrá-la ou me sentir mais perto dela, eu tinha que olhar para
mim mesma. Minha mãe estava em mim, dentro do meu coração, em cada célula do meu corpo.
Minha mãe estava no meu DNA.
E, enquanto eu estivesse comigo mesma, ou seja, sempre, a minha mãe também estaria
perto de mim. Eu era a sua última e mais importante parte.
Aprendi muitas coisas nos últimos meses, nas últimas semanas. Coisas que nunca
passaram pela minha cabeça, ou que eu nunca imaginei que seriam relevantes, mas que, agora,
faziam tanto sentido para mim.
Ali, deitada na cama do meu antigo quarto, eu podia ouvir claramente a voz de cada um
deles.
Meu pai.
Giselle.
Rayka.
Eu aprendi com cada um deles. Aprendi a olhar para o mundo de outras formas. Menos
crítica, mais leve. Mais gentil. Aprendi que a vida era muito maior do que eu imaginei que fosse,
que amar não era como uma receita de bolo, que nem tudo era que o parecia ser, que o maior erro
que eu poderia cometer era julgar sem conhecer, e que, principalmente, não existia nada mais
perfeito do que aceitar quem você realmente é.
“Sua mãe era forte, meu amor. Por mais que Grace tentasse regrar os comportamentos
da filha, a maioria das coisas Madelyn fazia porque bem queria, especialmente depois que me
conheceu.”
“Ela sempre te amou demais. Demais mesmo. E eu tenho certeza de que continua te
amando, onde quer que esteja agora.”
Meu pai tirou uma parte do véu que encobria os meus olhos. Ele me fez entender, enfim,
que eu passei a vida inteira enganada sobre a pessoa que a minha mãe realmente foi. Na verdade,
eu não estava enganada, eu fui enganada. Minha avó enfiou na minha cabeça a ideia de que
mamãe era perfeita porque fazia tudo o que ela queria, assim como uma “verdadeira Peterson
deveria ser”, quando, na verdade, ela era muito mais que perfeita. Ela era corajosa. Corajosa por
fazer exatamente o que queria.
No dia em que minha mãe falou, antes de morrer, para que eu ouvisse a minha avó, ela
estava com medo. Ela estava com medo, porque tinha certeza de que não demoraria a ir embora e
sabia que deixaria uma filha de nove anos, uma criança, sem mãe. Ela queria me proteger,
mesmo que não tivesse a menor ideia de como fazer isso, quando não estivesse mais comigo.
“Mulheres são socializadas para agradar. Só que não estamos aqui para cumprir com as
expectativas de ninguém. Nem eu, nem você. Gostar de mulher não significa imperfeição,
querida. Muito pelo contrário. Só te torna ainda mais humana. Gostar de mulher é um ato
revolucionário.”
Giselle me mostrou que o meu papel aqui não era agradar alguém. Eu não tinha a função
de seguir um roteiro que nem mesmo foi traçado por mim. Giselle tirou uma boa parte dos
carrapichos grudados em mim. Um por um, com muito cuidado, a cada conversa. Ainda que
doesse no início, a sensação era passageira, momentânea. O alívio de se desprender das amarras
era muito maior do que o medo de errar, de tropeçar nos meus próprios pés e cair.
Aliás, eu já não tinha mais medo de errar, desde que a decisão de fazer algo partisse de
mim e não de alguém que se achava no direito de me obrigar contra a minha vontade.
“Eu acho que a sua mãe, onde quer que esteja agora, tem muito, muito orgulho de você e
vai continuar tendo, independente do caminho que você escolher seguir, porque ela te ama, quer
te ver feliz, e conhece o seu coração. Não existe alguém no mundo que conheça o seu coração,
assim como eu, e não fique orgulhoso da pessoa incrível que você é. Você é muito maior do que
os seus medos e as suas dúvidas sobre o futuro, Victoria. Muito maior.”
Essa era a voz mais bonita que soava na minha memória.
A voz dela.
Rayka me ensinou muito mais do que eu poderia aprender sozinha, em toda a minha vida.
Aliás, ela me ensinou muito mais do que qualquer outra pessoa poderia me fazer aprender.
Rayka me segurou pela mão e me ajudou a não me esconder mais dentro de mim mesma, me fez
enxergar que não existe algo de errado em ser uma garota e gostar de garotas.
Ela me salvou, sem nem ter ideia disso.
E, principalmente, me fez amar a pessoa que eu verdadeiramente era, em vez de odiar a
mim mesma.
Agora, depois de tanto aprender com pessoas que realmente valiam a pena e
acrescentavam valor na minha vida, eu me sentia plenamente capaz de andar com as minhas
próprias pernas. Eu me sentia forte e segura para seguir o meu caminho, fazer as minhas escolhas
e assumir as minhas responsabilidades, sem precisar dar satisfações do que eu fazia ou deixava
de fazer, nem me preocupar com o que pensariam sobre mim.
Eu ia honrar com as lições esfregadas na minha cara, durante os últimos meses, e,
principalmente, eu ia honrar eu mesma. Sim. Era uma questão de honra, a partir de agora, tomar
o controle sobre a minha vida.
E, bem, eu faria isso com o maior prazer.
Depois de horas deitada comigo, fazendo carinho nos meus cabelos e deixando que apenas
o silêncio da cumplicidade nos cercasse, Rayka saiu do quarto. Tia Daisy a chamou para fazer
algo que eu não tinha ideia do que era.
Passei alguns minutos ali, na cama, a sós, apenas olhando para o tempo e pensando na
vida, enquanto esperava ela voltar. Eu estava bem, leve, decidida. Mesmo reflexiva, nada no
mundo seria capaz de tirar a paz de espírito que eu sentia, apesar de tudo o que aconteceu na
fraternidade.
Ainda sem fazer nada, vi um pacote de chiclete em cima do móvel ao lado da cama.
Quando me estiquei para pegá-lo, no entanto, os meus olhos displicentes recaíram sobre a
cômoda que ficava ali pertinho, mais especificamente o seu último nicho, aquele rente ao chão,
onde havia um caderno de brochura, cujo marcador de página, feito de tecido, era dourado. Eu
podia ver a sua pontinha brilhante me chamar.
Meu corpo retesou, de repente.
Eu me lembrava disso.
Só não me lembrava que isso ainda estava na casa do meu pai.
Com a minha atenção completamente voltada para aquele caderno, me esqueci de que
pretendia mascar um pouquinho de borracha e me levantei da cama, rapidamente o alcançando e
o segurando entre as minhas mãos.
Foi inevitável.
Um sorriso logo se grudou aos meus lábios, e lá ficou, enquanto os meus olhos brilhavam,
admirados por estarem vendo mais um daqueles ali. Eu não me lembrava de ter deixado um dos
meus cadernos de desenho no meu antigo quarto. Imaginei que todos os que ainda existiam,
estavam comigo na fraternidade e, agora, provavelmente, dentro de um maldito caminhão de
mudança.
E, bem, a julgar pelo local onde este caderno estava enfiado, quase escondido para que
ninguém o encontrasse, eu só podia acreditar que os desenhos se tratavam de...
Sim, sim, sim!
Entusiasmada, o abri, ganhando a confirmação.
Lá estavam elas duas, maravilhosas, entre dezenas e mais dezenas de quadrinhos.
Law e Joy.
O orgulho que agora eu sentia em ver aquilo era completamente diferente da vergonha que
me atormentou por anos. Foi uma adolescência inteira me martirizando por gostar de desenhar
duas garotas se beijando. Para completar, duas garotas que se pareciam tanto com Rayka e eu.
Apesar da vergonha, no entanto, existia algo, uma coisa que nunca deixou eu me desfazer
daqueles cadernos, por mais que eu tivesse pensado, milhares de vezes, em jogá-los no lixo.
Acho que sempre os amei, mesmo quando eu me forçava a não admitir isso.
Eu sempre amei Law e Joy.
E, agora, eu as amava muito mais.
Com sorrisos que não me largavam de jeito nenhum e olhares brilhantes que não paravam
de fitar os quadrinhos, eu passei folhas e mais folhas, relembrando, imersa, quase viajando, cada
parte de uma história que eu criei para elas.
Ao contrário de como me vi durante tanto tempo ao tocar naquilo, agora Law e Joy me
causavam pura empolgação.
Mesmo que nas últimas semanas, eu tivesse voltado ao hábito de desenhá-las, a falta que
eu sentia de criar novas histórias para elas, se tornava maior a cada dia.
Era como uma necessidade.
Uma necessidade de fazer aquelas garotas ganharem mais vida, agora que eu estava
vivendo exatamente o que desenhei enquanto acreditava que aquilo nunca fosse acontecer
comigo.
A inveja que eu sentia da Law, pela coragem que ela teve de ficar com a sua garota, tinha
se transformado em admiração. Ela não era apenas uma personagem que eu tinha criado para
colocar para fora aquilo que eu tinha medo e vergonha de ter no coração, ela era alguém com
quem eu me identificava de verdade.
Ela era quase... Eu.
Absolutamente empolgada, enquanto folheava o caderno, ouvi quando duas batidas na
porta do quarto, que já estava aberta, soaram.
Ainda entretida, viajando pelos desenhos, com os pensamentos completamente
preenchidos por Law e Joy, ergui displicentemente o rosto e... Tomei um susto.
Sim.
O meu sorriso até vacilou, diminuiu, dando lugar a um semblante realmente confuso. Ela
era a última pessoa que eu esperava ver ali.
Com a testa enrugada, quase sem acreditar, sibilei:
— Stacy?
A garota me ofereceu um sorrisinho de leve, pequeno. Um sorriso tão contido que não
alcançava o olhar.
— Posso entrar? — perguntou ela.
Sem entender o que significava isso, larguei o caderno em cima da cama e me levantei.
Encarando o seu rosto, eu não conseguia decifrar qualquer uma das suas intenções. O seu olhar
não me dizia muitas coisas.
— O que está fazendo aqui?
— Eu vim em missão de paz, juro.
Só que eu me lembrei.
Eu me lembrei perfeitamente de tê-la visto beijando o miserável do Ethan, na noite
anterior. Não era difícil esquecer.
Como eu poderia confiar em alguém que se envolvia com um cara como aquele? Aliás,
como eu poderia confiar em Stacy Hinkhouse, se Stacy Hinkhouse sempre quis me derrubar do
cavalo?
— Não era você que estava enfiando a língua na boca do Ethan em Palm Beach?
— E, por um acaso, você se importa com isso? Está com a Rayka agora, Victoria, e ela é
muito melhor do que o Ethan.
— Não preciso que me diga que a Rayka é melhor do que Ethan — devolvi. — Eu já
tenho certeza absoluta disso.
Ela soprou o ar, balançando a cabeça de leve, quase revirando os olhos.
— Vai continuar agindo como a garotinha metida e desprezível de sempre, ou vai me
deixar falar?
— Eu não sou assim com todo mundo — retruquei, cruzando os braços. — Só com quem
eu não confio. Tipo você.
— Olha só, você vai querer ouvir o que eu tenho pra te dizer.
— Duvido muito, Stacy.
Foi então que ela deu alguns passos, entrando no meu quarto, mesmo que eu não tivesse
lhe dado permissão para isso. Suspirou, encarando-me seriamente, e disse:
— Quem espalhou a sua foto seminua, pelos celulares da universidade inteira, foi o Ethan.
Suas palavras me atingiram como soco instantâneo. De repente, senti como se um buraco
enorme tivesse se aberto sob os pés, e eu estava caindo... Caindo em direção à mesma sensação
de pura impotência que experimentei no dia em que aquele inferno aconteceu.
O vinco na minha testa se tornou ainda maior, e a minha respiração falhou.
Até então, os meus olhos estavam secos, mesmo com todo o show da minha avó na
fraternidade. Entretanto, depois de ouvir isso, foi automático. As minhas orbes subitamente
arderam e se encheram d’água. Lágrimas de ódio. Sim. Esse assunto me provocava uma
gigantesca fúria. Mesmo depois de meses, eu não tinha engolido o fato de ter sido exposta, sem o
meu consentimento, e feita de palhaça na frente de todo mundo.
— O que...? O que disse, Stacy?! — questionei entredentes, já bufando.
— Eu fiquei com aquele idiota ontem e me arrependo disso até agora, mas, depois que ele
voltou bêbado e com o nariz quebrado, por causa do soco que a Rayka deu, eu ouvi quando
comentou com os amigos, se gabando por ter sido ele a espalhar aquela foto sua.
Não.
Não, não, não.
— Mas... — ofeguei, confusa. Meus olhos absolutamente desnorteados. — Eu nunca... Eu
nunca dei qualquer foto minha a ele. Como...? Como ele conseguiu? Isso não faz sentido!
— Eu não sei como ele conseguiu, Victoria — replicou. — O idiota não entrou nesses
detalhes. Mas, ele afirmou, com todas as letras, puto de raiva pelo narizinho quebrado, que foi
ele o responsável pela exposição da sua foto na universidade inteira. Sei lá. Ele disse que você se
achava muita merda e tinha que parar de ser tão convencida, por isso espalhou.
Filho da puta...!
Eu não tinha me esquecido de que o lance da foto foi um dia depois daquele encontro
ridículo e terrível, quando saímos para o cinema. Eu lhe dei um fora. E, na manhã seguinte, antes
dos celulares biparem, eu também lhe dei outro toco. Talvez… Talvez ele fosse o tipo de cara
que não sabia levar um fora. Aliás, talvez não. Ethan era realmente o padrão de cara que não
sabia levar um fora.
Será que... Será que Stacy estava certa?
Será que...?
Argh, que ódio!
A minha cabeça girava. O meu ouvido zunia. Esfreguei as mãos no rosto, ainda sem chão,
sem saber exatamente o que fazer. Um lado meu queria degolar o Ethan, muito mais do que eu
sempre quis matá-lo, enquanto o outro queria assassinar Stacy, caso isso fosse algum tipo de
armação dela.
— Escuta aqui! — com um tom de ameaça, exclamei, pressionando a mandíbula e
caminhando alguns passos em sua direção. — Se você estiver mentindo pra mim, Stacy...!
Ela puxou o ar, rolando os olhos.
— Eu não estou mentindo, Victoria! O que eu ganharia com isso?
— Não sei! Eu não sei o que você ganharia com isso! — retruquei. — Mas, se você estiver
mentindo sobre uma coisa tão séria assim, Stacy, eu juro, juro que te mato!
Foi quando ela, bufando, seus ombros subindo e descendo, aproximou o rosto do meu,
enquanto fitava o fundo dos meus olhos. Suspirou e, entredentes, sem tirar suas orbes das
minhas, respondeu em um tom baixo, mas incisivo:
— Eu já fui exposta uma vez, Victoria. Não aqui, não agora. Foi no colegial. Mas, revenge
porn é crime, independente de quando, onde e com quem isso aconteça. Eu sei muito bem como
fica a cabeça de uma mulher que passa por algo assim, e eu jamais brincaria com coisa séria. Eu
não podia saber da verdade e não te dizer.
Estremeci.
Estremeci, por Stacy já ter passado por algo assim também, quando eu não fazia a menor
ideia disso. Estremeci pela sua sinceridade. Estremeci pela honestidade que eu vi estampada no
seu olhar e nas suas palavras, sem o menor esforço.
Meu queixo despencou e minha guarda involuntariamente baixou.
Me lembrei da última sexta-feira, quando ela me defendeu daqueles imbecis que
apareceram na lanchonete, tirando onda sobre a foto e sobre a minha relação com a Rayka. Uma
atitude que eu jamais esperaria da Stacy, assim como essa que ela estava tomando agora.
Sem piscar os olhos direto, perguntei:
— Então, está me ajudando porque você já foi exposta?
— Não exatamente. Não é só por isso. É porque eu acho que, de vez em quando, uma
vadia pode fazer uma boa ação, né? — e, de leve, ela sorriu para mim.
Eu quis sorrir para ela também.
Na verdade, um sorriso, misturado com um risinho de leve, se desprendeu de repente dos
meus lábios, mesmo sem querer, enquanto eu a encarava fixamente e escutava, tão atenta, ao que
ela dizia. Eu estava grata. Sinceramente grata, pela sua aparente honestidade.
Ainda assim, suspirei e perguntei:
— Eu posso confiar mesmo em você, Stacy?
— Bom, a minha parte eu já fiz. Mas, se não quiser me dar um voto de confiança, ao
menos avise à polícia sobre isso. Eles vão descobrir que eu estou falando a verdade.
Foi tudo o que ela disse, já me dando as costas e caminhando em direção à saída do
quarto, enquanto me deixava mergulhada em um turbilhão de pensamentos fortuitos e
inesperados.
— Ah...! — exclamou ela, de súbito, virando-se para mim, pela última vez, quando já
estava quase atravessando a porta. — Só uma coisa, antes que eu me esqueça. Eu sei que a
Rayka é muita areia para o seu caminhãozinho cor de rosa, mas não desiste dela, não, tá? Pode
parecer difícil aguentar as palavras de ódio, o preconceito explícito e velado, mas muito pior do
que isso é deixar quem se ama só por causa de um monte de filho da puta. Larga o foda-se.
E, então, sumiu dali.
Ainda passei uns três minutos de pé, paralisada, encarando a saída do quarto, enquanto
tentava digerir tudo o que tinha acontecido ali e organizar as dezenas de pensamentos que davam
saltos mortais na minha cabeça.
Centenas e mais centenas de perguntas me bombardeavam a cada segundo. Aquela garota
tinha mexido com uma outra parte delicada da minha vida, uma cicatriz que ainda estava em
aberto. E eu tinha certeza de que só iria sarar, depois que eu soubesse quem era o responsável
pela foto e ele recebesse a devida punição.
Eu ainda não tinha certeza se a acusação da Stacy era mesmo verdadeira. No entanto, eu
não precisava de nenhuma confirmação da polícia para saber que Ethan não prestava. Disso eu
sempre soube, assim como também sabia que, mais uma vez, a minha avó se equivocou no que
ela achava que era o “certo” para a minha vida. Ela tentou me empurrar para cima de um cara
escroto, só pelo status. E isso, definitivamente, não era o melhor para mim.
Se eu já não iria abdicar, de jeito nenhum, da minha vontade de ficar com a Rayka, depois
de tudo isso que aconteceu eu não ia desistir mesmo dela.
Rayka era a minha garota.
Enfim, recuperando os movimentos das minhas pernas outra vez, caminhei em direção à
cama. Peguei o meu antigo caderno e, deslizando os meus dedos, com tanto carinho, sobre os
desenhos de Law e Joy, tive uma ideia.
Agora, eu sabia exatamente o que fazer na apresentação do trabalho de Literatura.
ELA É MAIS DO QUE VOCÊ IMAGINA

“Sinto o meu coração pela primeira vez,


porque agora estou seguindo em frente”
Coastline | Hollow Coves

VICTORIA

Naquele dia, eu não sabia explicar exatamente o que estava acontecendo, mas existia uma
vibração incomum no ambiente. Uma energia fora do normal em mim, ao meu redor, sei lá.
Ainda que pensar assim parecesse piegas demais, ou o sol tinha nascido de um jeito diferente ou
quem estava diferente, na verdade, era eu.
E, bem, para ser sincera, acho que, quando a gente muda, as coisas à nossa volta acabam
mudando também.
Algo me dizia que era isso o que estava acontecendo.
Eu, definitivamente, não era mais a mesma pessoa. Talvez não somente as coisas boas que
me ocorreram nos últimos tempos, mas, principalmente, as ruins, tivessem me moldado e me
revestido de uma força, que eu nem sabia que era capaz de ter, para que eu, enfim, chegasse
neste momento, agora, e estivesse preparada para fazer o que iria acontecer dentro de alguns
minutos.
O dia tinha amanhecido mais brilhante que o normal.
E aquela luz parecia não ser apenas do sol, ela também saía de dentro de mim, do meu
coração, e irradiava pelo meu corpo inteiro.
Talvez isso fosse um prenúncio do que estava por vir.
Algo como... O meu segundo nascimento.
Sim.
O primeiro foi quando eu literalmente saí da barriga da minha mãe. Mas, o segundo... O
segundo era agora, exatamente vinte e um anos mais tarde, quando eu, enfim, descobri quem
Victoria Peterson, de fato, era.
Sapatão.
Tá vai...
Uma sapapaty rosinha.
Uma sapatão que só se envolveu com homens, porque era isso o que mundo ao redor
impunha compulsoriamente, fazendo parecer que era o natural de todas as mulheres.
Eu não gostava de homens. Quando eu não gemia no sexo, não era para não parecer
deselegante. Quando eu não transava no primeiro encontro, não era para não parecer fácil
demais. Sempre que eu não gozava, não era só porque os caras não sabiam encontrar o meu
clitóris. Quero dizer, era por isso também, mas não era só por isso. Era porque eu não sentia
prazer. Era porque eu, na real, não gostava de caras. E, agora, eu enfim entendia isso.
Vinte e um anos foi o tempo que eu precisei levar para me entender. Nunca era tarde
demais, afinal. Enquanto há vida, há tempo para se conhecer. Agora, eu finalmente podia e
queria dizer isso a todos. Não por obrigação, porque eu definitivamente não tinha qualquer
obrigação de fazer isso. Mas, eu queria. Eu queria, porque, até que enfim, eu não me odiava
mais. Muito pelo contrário. Eu tinha orgulho de quem eu era.
Eu tinha orgulho de dizer que gostava de mulheres, que elas sempre me atraíram, e que eu
era perdidamente apaixonada por uma.
Me conhecer e me aceitar era melhor do que qualquer nota que eu poderia receber com a
apresentação daquele trabalho.
A sala de aula de literatura estava lotada. Lotada daquelas pessoas que ainda cochichavam
sobre Rayka e eu, mas que logo escutariam o que eu tinha para dizer. Eles tentavam disfarçar,
fingir que não estavam falando sobre nós, e, ainda assim, eu percebia. Só que, honestamente, eu
não me importava. Não me importava mesmo. Eles podiam falar o que quisessem. O que estava
na minha cabeça, na verdade, era outra coisa.
Grace.
Sim, durante aqueles minutos que nos separavam do início das apresentações, era ela
quem estava nos meus pensamentos, mas não pelos motivos de sempre. Não era pelas
preocupações que ela já provocou, nem pelo peso na consciência, graças às suas cobranças, que
ela já me causou. Não, não mesmo. Por incrível que pareça, dessa vez era porque eu queria que
ela estivesse ali. Eu queria que Grace enxergasse, com os próprios olhos, o que iria acontecer.
Pedi para que dessem o recado na sua sala de conselheira da reitoria, e eu realmente
esperava que ela já estivesse ciente disso. Não entrei em detalhes com a sua secretária, nem disse
o motivo do convite. Apenas pedi para que ela fosse à minha sala de aula de Literatura.
Agora, só restava ela aparecer.
Tomara que a sua curiosidade a guiasse até lá.
Mesmo com o burburinho velado dos curiosos, Rayka estava sentada bem ao meu lado,
segurando a minha mão. Não que eu precisasse de coragem para fazer aquilo que eu já tinha
decidido que iria acontecer, porque, felizmente, coragem era uma habilidade que eu tinha
conseguido desenvolver, mas, os seus dedos entrelaçados nos meus, me davam ainda mais
fôlego.
— Como você tá se sentindo? Tá tranquila?
Sorri.
A desgraçada conseguia ficar ainda mais linda, quando se mostrava atenciosa. Ou seja,
sempre.
— Estou ótima. Sério.
— Ah, maravilha...! — soprou o ar, de supetão, sorrindo, como se a minha resposta tivesse
deixado-a automaticamente aliviada. — Então, você leu a história que eu te passei, né?
— Li sim, e é perfeita como tudo o que você escreve — respondi, sinceramente.
Vi quando as suas bochechas ruborizaram.
Rayka raramente ficava envergonhada com qualquer coisa. Raramente mesmo. Na real,
ela era bem cara de pau com tudo. Sempre foi. Mas, eu estava começando a perceber que,
quando o assunto eram os seus textos, ela se desmanchava.
Adorável.
— Estudos comprovam que receber elogios da sua mulher aumenta a expectativa de vida
da parceira em mais de vinte anos, sabia?
— Ah, é? — mordi o lábio inferior, meio faceira. — Nesse caso, acho que vou elogiar a
cada cinco segundos. Quem sabe, assim, você viva até os quinhentos e cinquenta e cinco anos.
Ela soltou uma risadinha.
— Por favor, por favor, faça isso... — e, contente, me puxou para um pequeno beijo.
Foi quando ouvimos o tom dos burburinhos significativamente aumentar. Estavam quase
nos tratando como animais exóticos em uma exposição. Rayka suspirou, meio irresignada, ao
separar nossos lábios.
— Não se importe com isso — falou. — Eles não sabem lidar com duas gostosas se
beijando.
Balancei a cabeça de leve, ainda sorrindo.
Aliás, não era só a minha cabeça que estava leve. Era eu por completo.
— Eu não me importo, de verdade. A única coisa com que me importo, no momento, é
encerrar essa disciplina e ficar as férias inteiras com você, pela primeira vez na vida —
completei, passando os braços pelo seu pescoço.
Ela sorriu, satisfeita.
— Então, está preparada para a apresentação? Fez um resuminho da história que te passei?
— Bom... Não exatamente da história que você me passou.
Rayka, por sua vez, franziu o cenho, meio confusa.
— E o que vai apresentar, então?
Sorri, arteira.
Eu ainda não sabia se seria aprovada na disciplina, depois de apresentar o que tinha em
mente. Só que, sendo bem honesta, reprovar ou não, agora, parecia o de menos, na frente do que
eu precisava fazer. E não, eu não precisava fazer isso por causa dos outros, era por causa de mim
mesma. Eu já tinha sufocado as minhas vontades a vida inteira. Ou seja, isso foi tempo demais,
ultrapassou todos os limites.
Agora, eu não ia mais me refrear.
— Você vai ver... — respondi. — Daqui a pouco.
E os seus lábios bonitos se curvaram em um sorriso absolutamente charmoso para mim.
— Está muito misteriosa.
Soltei uma risadinha.
— Acho que você vai gostar.
Assim me calei, porém, foi a voz da tia Daisy que eu ouvi:
— Bom dia, bom dia!
E, então, quando ela surgiu ali, entrando na sala de aula, toda a leveza que eu sentia se
transformou, de repente, em uma súbita e pequena tensão, porque eu caí na real de que as
apresentações iriam começar e... A minha avó ainda não tinha chegado.
Encarei, expectante, a porta da sala, a mesma por onde tia Daisy tinha acabado de passar,
mas não havia sinal algum da Grace. A cada vez que eu olhava naquela direção e não via
qualquer indício dos seus saltos de oito centímetros ou da sua postura impecável, algo dentro de
mim desanimava um pouco. Bem pouco, mas, sim, desanimava.
Nunca pensei que fosse torcer tanto para ver Grace, depois de tudo o que tinha acontecido.
No entanto, existia um motivo para isso.
Um bom motivo.
Óbvio que eu falaria o que tinha para dizer independente dela estar ali, mas a sua presença
seria como... Uma cereja para o bolo.
— Como estamos hoje, hein? — tipicamente espirituosa e empolgada, tia Daisy
perguntou.
— Com sono! — um dos garotos disse.
— Viramos a noite fazendo esse trabalho — completou uma menina. — A gente precisa
de descanso, professora!
Daisy riu.
— Nossa... Até parece que vocês não amaram estar aqui, toda semana, falando sobre os
sonetos de Shakespeare e a adorável e gigantesca coleção de autores britânicos e norte-
americanos — brincou.
— Não, professora, não amamos — respondeu o garoto.
A sala inteira riu, incluindo a própria Daisy.
— Vocês são impossíveis mesmo... — disse ela, entre risinhos. — Tudo bem... Podemos
começar para que vocês saiam daqui correndo em direção à praia?
— Por favor! — uma das garotas quase choramingou. — Quero férias.
Ela sorriu, simpática como sempre.
— Ok, quem gostaria de apresentar primeiro? Pode ser você e sua dupla, Maggie?
— Sim, pode ser a gente!
— Ótimo! Então, vamos descobrir quem é a sua dupla — completou Daisy, puxando o seu
controle de alunos, que eu já conhecia tão bem. Exatamente o papel que eu peguei para descobrir
quem Maverick era.
Daí por diante, tia Daisy foi gradativamente revelando as duplas, à medida que as
apresentações das histórias de amor iam acontecendo. Algo que não aconteceria com Rayka e eu,
já que fomos separadas no trabalho, por descumprimento de regra. Ainda assim, se eu pensasse
friamente, até que existia uma vantagem em me apresentar sozinha. Eu também queria que
Rayka ouvisse o que eu tinha para dizer, muito embora, de alguma forma, ela soubesse de cada
uma das palavras, antes mesmo que eu abrisse a minha boca. Rayka conhecia o meu coração.
Entre uma dupla e outra, tia Daisy avisou à turma que as únicas alunas a apresentarem o
trabalho separadas eram Rayka e eu. E, bem, a classe inteira nos encarou como se já soubesse
disso. Era como se o fato de estarmos juntas fosse motivo suficiente para deixar óbvio que
descobrimos a nossa dupla muito antes do tempo “certo”. Na real, talvez fosse óbvio mesmo.
O tempo inteiro de aula foi só para a apresentação dos trabalhos. E alguns, ou melhor, a
maioria deles, confesso, parecia bem interessante. Os alunos não desenvolveram histórias apenas
sobre o amor romântico entre casais. Houve histórias de amor fraternal entre amigos, entre
irmãos, entre pais e filhos. E eu até fiquei admirada com a capacidade daquela galera,
aparentemente tão superficial, em criar histórias com morais tão boas.
No entanto, mesmo surpresa com a qualidade das apresentações, era a porta da sala de aula
que ainda retinha a minha completa atenção. Com os ombros subindo e descendo, quase
ofegante, eu encarava a entrada fixamente, observando pessoas transitarem de um lado para o
outro do corredor, enquanto não surgia qualquer mínimo indício dela.
Até o meu pé balançava, meio inquieto.
Engraçado que quando Grace não era bem-vinda, ela era sempre a primeira a aparecer,
mas, quando era chamada, não dava nem sinal de vida. Parecia fazer isso de propósito.
Vinte, trinta, quarenta minutos.
Uma hora, uma hora e meia.
Esse foi o tempo que passou. E a minha avó não deu as caras ali.
Entre palmas, aplausos e exclamações de “excelente!”, eu notei dupla por dupla encerrar o
trabalho. E, então, quando Rayka fez a apresentação de um dos seus textos, e a tia Daisy virou-se
para mim, dizendo:
— Acho que agora só restava você, não é, Victoria?
Eu soube que a espera atingiu o seu limite.
Olhei para o meu relógio de pulso e vi que duas horas já tinham se passado, desde o início
da aula. Se Grace recebeu o recado, ela o ignorou.
Droga.
Suspirei.
Olhei para a porta e ainda tentei sibilar:
— Mas, eu queria que... — as palavras simplesmente se perderam na minha boca.
Eu queria que a minha avó pudesse ver o que eu tinha para falar.
Eu queria que ela me escutasse, pelo menos uma vez na vida, sem me interromper.
Porém...
— Vamos, querida? — tia Daisy insistiu.
E, ao redor, todos da sala me encararam em pura expectativa. Só faltava eu para que todo
mundo, enfim, fosse liberado e pudesse ir embora para as férias. Ou seja, cada segundo que
passava valia ouro para aquela galera.
Puxei o ar.
Era isso.
Não existia mais tempo. Afinal de contas, duas horas eram demais.
Tudo bem...
Eu sabia que, de um jeito ou de outro, a mensagem acabaria chegando até ela.
— Boa apresentação, amor. — Rayka falou.
— Obrigada — sorri de leve.
E me levantei da cadeira, caminhando até a frente da sala de aula.
Um súbito silêncio se fez por ali. Era como se estivessem acompanhando cada passo meu,
na expectativa do que eu fosse fazer. Ao contrário das outras apresentações em que Daisy
precisou pedir para que se calassem, eles pareciam aguardar atentamente para me ouvir. Talvez
porque fosse a primeira vez que iriam escutar a minha voz, desde que a notícia sobre Rayka e eu
estourou na universidade.
Victoria, a patricinha que só ficava com caras, agora estava beijando uma garota.
E com orgulho.
Encaixei o pen drive no notebook e selecionei o arquivo que eu tinha preparado na noite
anterior, depois que Stacy saiu do meu quarto.
Quando ergui o rosto novamente para frente e me posicionei, percebi o olhar de todos
sobre mim, expectantes, curiosos, atentos. Apesar de tudo, eu nunca me senti tão confiante para
falar sobre aquilo, algo que transbordava do meu coração desde os meus catorze anos, quanto eu
estava me sentindo agora. Esse era o momento adequado, eu tinha certeza.
Rayka, como sempre, foi fantástica em querer me ajudar, ao me oferecer um dos seus
textos. A ideia era maravilhosa e a sua história sinceramente valia muito a pena. Era incrível,
como tudo o que ela fazia. Mas... Ainda assim, existia algo dentro de mim, quase saltando pela
garganta, com uma tremenda vontade de se desprender da minha boca e ganhar a sua tão sonhada
liberdade, depois de longos sete anos: a nossa história.
Em um trabalho sobre histórias de amor, não existia a mínima chance de não falar sobre
Rayka e eu.
— O meu trabalho será apresentado de um jeito diferente. — foi a primeira coisa que eu
disse. — Como vocês sabem, eu sou aluna de Artes Plásticas. Portanto, a minha história não será
contada em textos, mas, sim, em ilustrações que foram feitas por mim. — e, então, abri o
primeiro slide, onde eu tinha feito uma montagem com dezenas de quadrinhos de Law e Joy,
depois de digitalizar parte dos meus desenhos para a apresentação.
Foi automático.
Tão logo as imagens apareceram na tela, exclamações súbitas e baixinhas de admiração
preencheram os meus ouvidos. Todos encararam os quadrinhos não apenas boquiabertos, mas
também de sobrancelhas arqueadas. Eu só não sabia se a surpresa era pela qualidade dos
desenhos ou pela quantidade de ilustrações com beijos explícitos entre duas garotas. Talvez fosse
pelas duas coisas.
O olhar da Rayka, no entanto, foi o meu maior presente. Era absolutamente visível o
quanto ela estava encantada. As suas íris brilhavam e o seu sorriso era de puro orgulho. Eu nunca
tinha mostrado esses desenhos para alguém, nem mesmo para ela. Sempre os escondi, debaixo de
sete chaves, com vergonha de que os vissem. A mesma vergonha que eu tinha de mim, por me
sentir atraída por mulher, eu também tinha daquelas ilustrações. Agora, no entanto, eu sabia que
Joy e Law precisavam ganhar o mundo tanto quanto Rayka e eu.
Todas nós merecíamos ser vistas, aceitas e respeitadas.
Honestamente, acho que não poderia existir uma ocasião melhor do que essa para fazer
isso.
Ainda fitei a porta da sala de aula pela última vez. Um pequeno e quase imperceptível
desânimo quis me abater, mas eu não deixei. De jeito nenhum ele iria se apoderar de mim. Se em
duas horas Grace não apareceu, agora que ela não iria aparecer mesmo. Mas, isso não importava.
Não mesmo.
O principal de tudo já estava acontecendo. Eu já estava na frente de todas aquelas pessoas,
orgulhosa de mim mesma e pronta para fazer o que eu achei que nunca fosse capaz: dizer com
todas as letras, sem medo nem vergonha, quem eu realmente era.
Ainda que eu não tivesse a menor obrigação de fazer isso, eu queria contar essa história.
Rayka merecia as minhas palavras. E, bem, eu também merecia. Eu merecia me ouvir, eu
merecia colocar isso pra fora. A minha alma merecia receber esse carinho.
Victoria Perfeita Peterson foi embora. E, agora, eu adoraria que conhecessem a nova. Ou
melhor, eu adoraria que conhecessem aquela que sempre existiu em mim, mas que eu sufoquei
durante tantos anos.
— Hoje, eu quero contar a vocês a história de uma garota que se escondia dentro de si
mesma, e desenhava romances entre duas garotas, como forma de colocar para fora aquilo que
tinha vergonha de ter dentro do coração. Essa é a Law.
Quando baixei a cabeça para passar o slide, porém...
Uma silhueta conhecida se formou na minha visão periférica. O meu coração
automaticamente acelerou. Eu sabia quem era. Sim, eu sabia. Sem que eu pudesse evitar, a
minha respiração se tornou irregular. Esse era o efeito súbito e irracional que, na maioria das
vezes, a sua presença causava em mim.
Ao erguer o rosto, lentamente, eu tive a confirmação. Grace. Depois de duas horas do
início da aula, ela, enfim, chegou, junto com o seu semblante sério e a sua postura altiva e
impecável. Não demorou mais do que meio segundo para que os seus olhos rígidos e expressivos
se cravassem nos meus. Logo atrás dela, o meu pai também surgiu, e parou bem ao seu lado,
como quem queria ver o que estava acontecendo.
No entanto, foi sobre ela que a minha atenção se manteve presa, como sempre. Ainda que
eu estivesse absolutamente certa e decidida do que faria, sem a menor intenção de desistir,
percebi as minhas mãos ficando geladas, junto com o coração acelerado e a respiração meio
descompassada.
Eu não sabia exatamente o que isso significava ou o porquê dessa reação em mim, mas
desconfiava de que fosse resultado de uma vida inteira de terrorismos psicológicos e
constrangimentos gratuitos.
Respirei fundo, no entanto, me revestindo de força.
Minha avó não podia me intimidar mais.
Não podia.
Ela não tinha mais poder sobre mim.
E nunca mais ia ter.
— Há sete anos, Law estava em uma casa de praia, em Jacksonville, e conheceu uma
garota incrível chamada Joy — continuei. — Foi um dos melhores feriados de Ação de Graças
que já existiu. Law e Joy logo fizeram amizade. Brincavam na piscina e na praia, corriam na
beira do mar e, à noite, conversavam sob a luz de uma fogueira, observando as estrelas no céu.
Joy era fantástica. Engraçada, divertida, encantadora e... Absolutamente linda. Mesmo que Law
ainda não tivesse discernimento suficiente para entender isso, ela se apaixonou por Joy desde o
primeiro momento em que a viu.
À medida que eu falava, os slides iam passando com cada uma das ilustrações que eu tinha
feito de nós. Elas acompanhavam exatamente a nossa história. Nós em Jacksonville, na praia, na
piscina, e deitadas pertinho da fogueira, debaixo de um monte de estrelas. Uma boa parte das
situações que Rayka e eu vivemos na adolescência, eu consegui reproduzir em ilustrações, nos
quadrinhos, exceto o final da história, quando Law e Joy, enfim, ficaram juntas. Isso eu desenhei
anos atrás, achando que jamais se tornaria realidade. Só que, agora, tempos mais tarde, enfim
aconteceu.
— No entanto, existia um problema... — prossegui. — Mesmo que elas tivessem se
aproximado e começado uma relação que poderia ser muito maior do que uma amizade, Law
sofria pressões de todos os lados. Pressões sociais, pressões da família. Gente que dizia para ela
o que ela deveria fazer, mesmo que não fosse exatamente da sua vontade. Law carregava nas
costas a responsabilidade de ser perfeita. E o que ensinaram a ela, por muito tempo, era que
gostar de mulher não significava perfeição.
Foi quando encarei a minha avó novamente, e percebi, pela primeira vez em muito, muito,
muito tempo, os seus olhos brilharem em algo que pareciam lágrimas. No entanto, não eram
lágrimas de emoção, assim como aquelas que eu via no rosto do meu pai, da tia Daisy e da
Rayka. Eram lágrimas de tristeza.
Vergonha.
Frustração por eu estar contando a todos o que ela sempre quis esconder do mundo: uma
neta sapatão.
Confesso que, por um segundo, os meus olhos também quiseram arder, mas não de
tristeza, de medo, de vergonha, ou de frustração. Não, não era nada disso. Era de alívio. Puro
alívio em poder estar colocando tudo isso para fora finalmente, sendo ouvida sem ser
interrompida, depois de anos. Sem dedo na cara, sem gritaria, sem discussão, sem opressão.
Apenas, ouvida do jeito como sempre deveria ter sido.
Puxei o ar para para bem dentro dos meus pulmões, tentando conter o choro de satisfação,
e continuei.
— Ensinaram à Law que gostar de mulher era feio, sujo. Errado. Mulher de verdade não
podia ficar com mulher. Era isso o que diziam para ela. — um filme passava na frente dos meus
olhos à medida que eu falava. As palavras dela, que me perturbaram por tanto tempo, ainda
ressoavam na minha cabeça. Talvez eu nunca fosse capaz de me esquecer dos seus absurdos.
“Ela não é uma menina normal. Ela é lésbica. E é uma péssima influência para você. Estar
perto dela e ser amiga dela, pode passar uma falsa impressão de que você é alguém como ela.
Uma lésbica. E você não é lésbica, Victoria. Você é uma Peterson.” — Law passou anos sendo
doutrinada assim. Ela tinha que ser perfeita. Ela tinha que atingir as expectativas alheias, era uma
questão de necessidade. Law passou anos odiando a si mesma, em silêncio, em segredo, porque
não conseguia parar de se sentir atraída pela Joy. Law chorou durante sete anos, por não ser
capaz de esquecer aquela garota, por não conseguir gostar de algum homem, por não encontrar o
cara perfeito. Law pensou que poderia estar enlouquecendo. E a Law... A Law sou eu.
Dessa vez, as exclamações de surpresa não foram baixinhas. Um súbito burburinho
rompeu o ar, em meio a bocas abertas e sobrancelhas arqueadas. Ao mesmo tempo, porém, papai
e tia Daisy me encaravam com sorrisos emocionados e orgulhosos, enquanto Rayka... Rayka
parecia ainda mais encantadora do que normalmente já era.
Seus olhinhos escuros estavam absolutamente marejados, mas não de remorso pelas coisas
ruins que eu passei e, consequentemente, ela também. Ela estava feliz. Feliz e admirada. A
felicidade era por ter a certeza absoluta de que eu também estava feliz enquanto colocava para
fora tudo aquilo que me entalava há sete anos. A admiração era pelo mesmo motivo. Seu sorriso
bonito, genuíno e charmoso me deixava ainda mais louca do que já era por ela.
E, pela forma como me observava, parecia estar se segurando para não se levantar da
cadeira, naquele exato momento, e me pegar nos seus braços ali mesmo.
Honestamente, isso era tudo o que mais queria que ela fizesse.
— Eu nunca pensei que esse trabalho fosse me trazer o amor, mas ele me trouxe. E, junto
a isso, me fez enxergar uma porção de coisas para as quais eu me cegava. Tentei odiar a Rayka
por muitos, muitos anos. Tentei odiá-la tanto quanto eu odiava a mim mesma, por gostar dela.
Mas, no fim das contas, eu percebi que quanto mais eu tentava, mais eu me apaixonava. Rayka é
muito mais do que eu imaginava. Ela me salvou de mim mesma, me mostrou que não existe algo
de errado em ser uma garota e gostar de garotas. Ela é a pessoa que me fez enxergar quem eu
realmente sou. Lésbica. Eu gosto de mulher. — enchi a boca para finalmente falar isso sem
medo, nem vergonha. — A Rayka é mais do que vocês imaginam. Aliás… — virei-me em
direção à minha avó que, com o rosto absolutamente vermelho, me observava, a ponto de
explodir. — Ela é mais do que você imagina, Grace. É a garota da minha vida.
E Grace bufou, pressionando a mandíbula.
Bufou com os olhos cheios de lágrimas de ódio, fúria e frustração.
Pela primeira vez na vida, no entanto, isso não foi capaz de me intimidar.
Enfim, eu me sentia completamente livre. A última amarra que me prendia, se soltou.
Apenas segui em frente, voltando o olhar para a turma, com a mais perfeita e agradável sensação
de alívio. Leveza.
— Podem rir, zoar, me julgar, assim como alguns de vocês já fizeram, desde que
descobriram o que está acontecendo entre Rayka e eu. Podem até me amaldiçoar o quanto
quiserem. Eu não me importo. Não me importo mesmo. Isso não vai me fazer recuar, nem mudar
o fato de que Victoria Peterson está completamente apaixonada por uma garota. — foi quando
virei o rosto para ela e, com os olhos marejados de felicidade tanto quanto os dela estavam para
mim, completei. — Eu sei que não sou perfeita e, honestamente, não quero mais ser, mas eu amo
ser quem sou, quando estou com você. Essa é a história de amor que eu tenho para contar.
E, então, assim que eu me calei, não precisei contar dois segundos seguintes. Em um
rompante, Rayka simplesmente se levantou da cadeira onde estava e, com as orbes tão
destemidas, desejosas e determinadas, cruzou todo o espaço entre nós, pegando-me enfim nos
seus braços.
Nos beijamos ali mesmo, no meio da sala, no meio de todo mundo.
E, ao contrário do que pensei que fosse acontecer, palmas que começaram tímidas logo se
alastraram por todas as partes, com força e intensidade, seguidas de assobios e exclamações.
Inevitavelmente, eu ri e sorri contra os seus lábios gostosos, me sentindo incrível.
— Pra mim, você é perfeita... — disse ela, entre beijos. — Estou tão orgulhosa de você.
De nós.
Meu sorriso se tornou ainda maior.
— Você é muito o amor da minha vida.
Foi quando ela afastou o seu rosto do meu, apenas o suficiente para encarar o fundo dos
meus olhos, e disse:
— Eu amo você, Victoria.
Meu mundo parou por alguns segundos. Suas palavras tocando tão fundo o meu coração,
tanto quanto a sua sinceridade. A franqueza transbordava pelos seus olhos e pela sua boca.
Mesmo que ela já tivesse demonstrado em atitudes, milhares de vezes, que realmente me amava,
era a primeira vez que a sua boca pronunciava isso.
E, honestamente, eu tinha certeza de que pediria para ela repetir até cansar.
— Eu também te amo, Rayka. Muito.
Minha deusa, como era bom falar isso sem qualquer peso na consciência.
Ainda entre palmas e assobios, nos beijamos de novo, com a certeza de que estávamos
tomando a melhor e mais acertada decisão das nossas vidas. A decisão de ficarmos juntas.
Todas as amarras foram soltas.
E, então, o sinal da universidade tocou, indicando o fim das aulas e o início das férias. Lá
no fundo, porém, algo me dizia que esse sinal significava muito mais do que uma pausa entre
semestres.
Era o fim de uma vida, para o início de outra.
Rindo e sorrindo uma para a outra, ainda nos abraçando, pegamos as nossas bolsas e
caminhamos para fora da sala, com os outros.
No entanto, ao passarmos pela porta, Grace ainda estava lá. Nos seus olhos, o ódio se
misturava com a incredulidade. Ainda que ela soubesse exatamente o que aconteceu ali e o que o
meu discurso significava, talvez, para assegurar a própria sanidade mental que já não era das
melhores, ela estivesse em uma fase de negação da realidade.
— Você vai desistir mesmo do seu sonho? — ainda ousou perguntar, pressionando a
mandíbula.
Suspirei e, com um sorrisinho, respondi:
— Não, vó, eu não vou desistir do meu sonho. Eu vou desistir do seu.
Isso foi tudo o que eu disse.
Bem que eu poderia ter ficado e conversado, mas acho que tudo o que tinha para lhe dizer
foi falado na minha apresentação. Além do mais, se Grace realmente quisesse conversar comigo
direito, ela teria feito isso durante os vinte e um anos que se passaram.
Acompanhando a multidão que comemorava a liberdade do fim das aulas, Rayka e eu
saímos juntas, de mãos dadas, em direção a uma nova vida.
UM SONHO QUE ERA NOSSO

“Nós somos os campeões do mundo, meus amigos,


e nós continuaremos lutando até o fim”
We Are The Champions | Queen

DOIS ANOS MAIS TARDE

RAYKA

No primeiro movimento dos meus olhos, ainda pesados de sono, depois de ter dado até às
quatro da manhã, eu fiz a primeira coisa que eu fazia quando acordava todos os dias. Me
espreguicei e estiquei o braço, esperando encontrar o seu corpo ao lado do meu.
No entanto, meio sonolenta, enquanto tateava por ali, na expectativa de apertar um
bumbum grande e gostoso, tudo que eu encontrei foi o vazio.
Que saco, cadê a minha bunda?
Eu não gostava de acordar sem aquele bundão bem na minha cara.
Foi quando abri os olhos com mais vontade e observei ao redor. Lençóis brancos, móveis
em decoração meio boho/rústica que nós tínhamos escolhido juntas, totalmente diferente da
ostentação da Fraternidade das Minervas, esculturas e quadros que ela mesma tinha pintado,
roupas espalhadas pelo chão, graças ao sexo memorável que fizemos durante a madrugada.
Nosso quarto.
Mas...
Onde estava a peça principal?
Franzi o cenho de leve.
Meus ouvidos, então, repentinamente identificaram um som. O som de um motorzinho.
Ou melhor, um som que eu já conhecia tão bem, há mais de dois anos.
Sorri.
Eu sabia exatamente o que ela estava fazendo.
Ligeiro me levantei da nossa cama, e não me dei nem ao trabalho de vestir uma roupa. Saí
pelada mesmo, caminhando por ali, do jeito como eu já tinha o costume de fazer, e parei
exatamente no batente da porta, onde eu conseguia ter uma visão privilegiada dela, na sala.
Dentre as muitas vantagens de morarmos sozinhas agora, existiam essas: poder andar nua pelo
nosso apartamento e acordar vendo a minha mulher tão sexy fazendo mais um dos seus vasinhos
de argila.
Ao seu redor, outros tantos vasos, feitos por ela, ocupavam o espaço com plantinhas de
todos os tipos. Victoria pegou amor por flores, desde os meus bons-dias carregados de rosas e
bilhetes, há mais de dois anos.
O principal, no entanto, estava ali, usando apenas um top e um shortinho frouxo. Com as
pernas abertas, o torno elétrico no meio e os cabelos presos em um coque, deixando alguns fios
charmosos escaparem para os lados, Victoria estava sensacional. Seus dedos longos, bonitos e
talentosos modelavam a arte, enquanto os seus braços, agora preenchidos por algumas tatuagens,
seguravam com firmeza e habilidade a argila. Gostosa.
Sim, acreditem ou não, Victoria Peterson fez tatuagens. E puta que pariu! Ela conseguiu se
tornar uma filha da puta mais gostosa do que sempre foi.
Me lembro da primeira coisa que ela disse, ao sair da sua primeira sessão de tatuagem, em
um estúdio, e se olhar no espelho: “estou me sentindo maravilhosa!”
Uma graça.
A garota ainda acabava com o meu juízo, mesmo depois de mais de dois anos de
relacionamento, e eu tinha certeza de que continuaria me deixando maluca pelo resto da vida.
Todos os dias, sem precisar fazer o menor esforço para isso, Victoria despretensiosamente me
mostrava que ela era a minha melhor escolha, só por existir.
Estávamos vivendo um dos nossos melhores momentos. Concluímos a faculdade,
naturalmente saímos da fraternidade, porque o nosso tempo lá era só durante o curso, compramos
um apartamento e estávamos morando juntas. Claro que, nas Minervas, nós já morávamos juntas.
Mas, nada como ter um lugarzinho só nosso. Tudo tinha o nosso jeito, a nossa cara.
Fora que, por favor, né? A privacidade de poder transar com ela até em cima da pia da
cozinha, não tinha preço.
Sem resistir a ficar olhando de longe a garota que agora, graças a Deus, eu podia chamar
de minha mulher, me aproximei. E, óbvio, eu tive que fazer um charminho, porque eu não era eu,
se não fizesse isso. Se Victoria achava que ia conseguir escapar facilmente de mim, naquela
manhã, usando um top que mal conseguia cobrir os seus peitões, estava muito enganada.
— Cadê o meu beijo de bom dia? — curvei o lábio em um biquinho dengoso, parando
bem ao seu lado. — Aliás, eu acordei e não vi a sua bunda gostosa bem na minha cara. Muito
maldoso da sua parte. Eu posso ficar doente por causa disso, Victoria.
Tudo o que ela fez, ao me ver de pé ali, com os braços cruzados, o bico de pidona e o
corpo com um total de zero peças de roupa, foi me observar de cima a baixo, com uma súbita e
adorável cara de safada. Filha da puta. Eu já conseguia imaginar, dentro de um milésimo de
segundo, tudo o que eu poderia fazer com aquele rostinho de quem gemia e sabia sentar como
ninguém.
— Cê tava dormindo que nem um anjinho. Não quis te acordar. — mordeu, então, o lábio
inferior, como quem tentava controlar um risinho sacana, e, passando mais uma bela olhada em
mim, especialmente na direção da minha boceta, completou. — Mas, agora, me arrependo
amargamente de não ter dado... O beijo.
Desligou o torno elétrico, deixando apenas o seu silêncio e o seu olhar de puta darem a
entender quais eram as suas recentes intenções.
Desgraçada.
Sorri.
— Sabe que agora pode dar, né?
E, bom, eu já não estava me referindo só ao beijo.
Victoria não demorou mais que meio segundo para perceber. Ela já me conhecia tão bem.
Ainda assim, a engraçadinha quis brincar.
— Será que posso me redimir, dando um beijinho na sua boca aqui? — perguntou,
arteira.
— Não, não mesmo. Vou te levar de volta pra cama e mostrar o que garotas más, como
você, ganham quando acordam e não dão beijo de bom dia na sua mulher.
Simplesmente a puxei para mim, fazendo-a se levantar da cadeira. Victoria foi rindo para
os meus braços. Uma risada tão gostosa quanto o seu temperamento, desde que começamos a
namorar. Com o impulso, suas mãos cheias de argila melaram o meu peito.
— Meu Deus, eu vou te sujar inteira — disse ela entre risos.
— Não tem o menor problema — e a segurei por baixo das coxas, fazendo-a entrelaçar as
pernas na minha cintura.
— Se for pra me pegar desse jeito, acho que vou deliberadamente me esquecer do seu
beijo de bom dia mais vezes — brincou, entre beijos e respirações já ofegantes.
— Faça isso e nunca mais sairá do nosso quarto — devolvi. — Cada beijo de bom dia
esquecido equivale a uma manhã inteira de sexo.
Victoria gargalhou e me deixou jogá-la sobre a nossa cama outra vez.
Antes de mergulhar no seu corpo, ainda parei por dois segundos para observá-la. O coque,
que há dois segundos prendia os seus longos cabelos, já tinha se desfeito. Os mamilos deliciosos
já estavam eriçados por baixo do top. A cintura bem desenhada chamava por mim, pela minha
boca, língua e dentes, louca pra ser mordida. E os seus braços tatuados formavam o pacote
completo, para minha falta de sanidade, junto com o piercing no seu umbigo, que eu adorava
lamber.
Deus, que mulher maravilhosa.
Sem esperar por mais tempo, me afundei sobre ela, beijando os seus lábios, enfiando a
língua na sua boca e apertando as suas coxas entre as minhas mãos, enquanto os seus dedos
espertos estimulavam os meus peitos, me deixando mais molhada do que eu já estava.
Quando eu fiz que ia levantar o top que vestia, porém, o alarme do seu celular subitamente
tocou.
— Ih... — Victoria parou por um momento, fazendo uma caretinha de leve. Sua respiração
ainda desregulada. — Hora de se arrumar para o lançamento. Já deve ser quase meio-dia e está
marcado para as duas da tarde.
Eu apenas balancei a cabeça, empurrando o seu celular para bem longe de nós.
— O lançamento vai ter que esperar um pouco porque agora eu vou fazer amor com você.
E isso foi tudo o que eu precisei dizer, para que Victoria sorrisse e se desmontasse por
completo. Continuamos deliciosamente o que tínhamos começado, sujando de argila e cerâmica
todos lençóis brancos, sem culpa, assim como já fizemos milhares de outras vezes. A cerimônia
de lançamento, sem dúvidas, começaria mais tarde do que o previsto, mas, eu não me importava,
porque eu estava dando prazer à minha mulher.

VICTORIA
O lançamento, que estava marcado para as duas horas da tarde, começou às quatro.
Felizmente, Katherine Ford, a editora-chefe da Susan & Salisbury Books, que estava nos
publicando, era um amor da pessoa e entendia perfeitamente que eu não tinha uma mulher como
namorada, mas, sim, uma máquina de fazer sexo.
Quero dizer...
Tá, tá legal, ela obviamente não sabia que nós tínhamos chegado às três e meia, porque
Rayka ficou chupando a minha boceta, enquanto eu enfiava os dedos na sua, mas, ainda assim
Katherine foi compreensiva o bastante com o nosso pequeno atraso de uma horinha e meia.
Coisa pouca, afinal.
O lugar estava lindo!
A Susan & Salisbury Books era uma editora muito conceituada, e sempre conseguia os
melhores e mais bonitos lugares para fazer sessões de autógrafos e tudo o mais. Dessa vez, eles
locaram um jardim enorme e maravilhoso em Miami, como daqueles de contos de fadas, para o
coquetel de lançamento do primeiro livro em quadrinhos que Rayka e eu oficialmente fizemos
juntas.
Sim!
Isso era tão incrível.
Claro que, ao longo dos últimos dois anos, nós tínhamos preparado um material que dava
para fazer uns dez volumes de HQ’s diferentes sobre a skatista e a garota certinha. Enquanto
Rayka escrevia o enredo e o roteiro das cenas, eu ilustrava. Esse era o nosso primeiro trabalho
lançado por uma editora tradicional. Em breve, nossos quadrinhos estariam espalhados pelas
livrarias dos Estados Unidos.
Inacreditável e fantástico, assim como a história inteira entre Rayka e eu.
Nosso trabalho em dupla deu certo desde o início. A gente se entendia muito bem, e,
quando discordávamos de alguma coisa, adotamos o ritual de conversar na cama. Isso
funcionava que era uma beleza. Fora que, venhamos e convenhamos, relembrar algumas
situações entre nós e criar outras que queríamos que ainda acontecessem com a gente, era uma
delícia.
Law e Joy eram como nossos avatares.
Aquilo que ainda não tínhamos vivido, nós colocávamos nos quadrinhos, como uma
implícita meta para cumprirmos nas nossas vidas reais. Desde situações cotidianas, como transar
em um lugar diferente, até experiências mais excepcionais, como dar a volta ao mundo juntas.
Joy e Law faziam, e, em breve, Rayka e eu faríamos também.
Ainda na universidade, depois da disciplina da tia Daisy, nós começamos a trabalhar nisso,
juntas. Foram alguns anos publicando de maneira independente na internet. Apesar de todas as
dificuldades da publicação independente, no entanto, conseguimos juntar, aos poucos, uma boa
base de pessoas maravilhosas que admiravam o nosso trabalho.
Nossas redes sociais passaram a contar com alguns milhares de seguidores, e, então, de
repente, tínhamos um grupo de pessoas ansiosas por mais aventuras de Law e Joy. Foi quando
Susan & Salisbury Books nos notou e fez o convite para a nossa primeira publicação por uma
editora. Rayka e eu comemoramos tanto. Foram dias e dias sem acreditar que aquilo estava
acontecendo.
E, depois, quando a ficha enfim caiu, foram mais dias e dias chorando de emoção,
bebendo cerveja barata e transando até cansar, porque Joy e Law, finalmente, estavam ganhando
o mundo.
Rayka e eu estávamos ganhando o mundo.
E isso parecia ainda mais claro, agora, vendo aquele jardim de conto de fadas abarrotado
de gente, com nossos livros e quadrinhos espalhados por todas as partes, decorando o local,
enquanto uma fila imensa de fãs nos esperava ansiosamente para o autógrafo. Tantas pessoas
maravilhosas nos apoiando, nos chamando e acenando para nós, que eu juro que não sabia como
lidar com o tamanho da minha felicidade.
Eu sabia que estava no caminho certo.
Aliás, eu soube disso desde o dia que tomei a decisão de ficar com a Rayka.
Quando a minha avó disse que eu só teria sucesso na minha carreira, se eu concluísse os
meus estudos na Rhode e me tornasse uma artista plástica por lá, eu sabia que ela estava
enganada. Sempre que fazemos o que amamos e colocamos todo o nosso carinho nisso, o sucesso
é só uma consequência. Vem de maneira natural, sem precisarmos esperar por ele. Foi o que
aconteceu com os quadrinhos de Law e Joy.
Aliás, Grace esteve enganada não apenas a respeito disso, mas também sobre uma porção
de outras coisas.
Incluindo o caráter do Ethan.
Depois que Stacy falou comigo e eu dei um voto de confiança à sua informação, a polícia
descobriu que ela realmente estava certa. O canalha, de fato, tinha espalhado a minha foto, que
conseguiu com o primo de um conhecido do vizinho da casa da tia dele. Como recompensa,
Ethan recebeu uma pena de um ano e seis meses de reclusão. Agora, dois anos depois, ouvi falar
que ele estava fora da prisão desde o outono.
Honestamente, por mais que eu quisesse que a sua pena tivesse sido muito maior e que ele
passasse o resto da vida na cadeia, o mal que Ethan me fez, parecia tão distante agora, frente às
coisas maravilhosas que aconteceram na minha vida nos últimos anos. Se eu soubesse que
existiria uma vida tão bonita com a minha mulher, depois de eu aceitar quem eu realmente era,
eu não teria chorado tanto por causa daquela foto inútil, nem me preocupado em encontrar o cara
“perfeito”.
Na verdade, eu teria ficado com a Rayka desde os meus catorze anos.
Mas...
Para tudo na vida, existia um tempo, não é?
A minha relação com Grace inevitavelmente foi abalada. Nós não nos falávamos direito há
mais de dois anos. E nos víamos raramente em algumas comemorações de família. Fora isso,
nada mais. Eu ainda amava a minha avó, era verdade, mas eu também continuava odiando nela
os seus discursos de ódio, a sua ignorância, a sua arrogância, a sua prepotência.
Agora, felizmente, ela não tinha mais poder sobre a minha vida, assim como eu também
consegui me desprender da dependência emocional que ela criou em mim.
Às vezes, para a vida seguir, nós precisávamos deixar algumas coisas e pessoas para trás,
incluindo familiares. Aprendi que não é porque uma pessoa tem o seu sangue que isso dá o
direito a ela de te tratar como quiser, nem te dá o dever de aceitar a situação e sempre perdoar,
ainda que continue machucando.
Eu me dei conta de que, para parar de sofrer, algumas vezes a gente só precisa afastar das
nossas vidas tudo aquilo que nos faz mal e dar um basta.
Eu dei.
Dei um basta na minha avó, nas circunstâncias que me cercavam, nos rumos que Victoria
Perfeita Peterson estava tomando.
E foi só então que a minha vida começou a realmente ir pra frente.
Agora, ali, no meio daquele jardim, rodeada de pessoas incríveis, presenteada com a
companhia da minha mulher, e abraçada pelo orgulho dos livros e quadrinhos que ela e eu
criamos, eu percebia, mais uma vez, que, na vida, a gente só precisava de coragem.
Coragem para fazer.
Coragem para ser.
Coragem para aceitar quem realmente somos.
E, então, quando, enfim, nós nos aceitamos, tudo fica mais leve.
Tudo fica mais feliz.
Feliz do jeito como eu estava agora, vendo os meus amigos e a minha família tão felizes
quanto Rayka e eu estávamos por mais uma conquista nossa. Papai e Daisy sempre lindos,
conversavam entretidos, enquanto tomavam suas taças de champanhe. Eles nos apoiaram desde o
início, desde o primeiro momento. Não nos julgaram, nem hesitaram em nos ajudar. Eles não
apenas foram o nosso porto-seguro, como também continuavam sendo.
Jeff, e Alyssa e Brittany, que por incrível que pareça ainda estavam juntas, eram os
mesmos loucos de sempre, especialmente ali, enquanto conversavam e jogavam piadas bobas.
Brittany já era a minha melhor amiga, mas Alyssa e Jeff conquistaram um lugar especial no meu
coração, assim como eu sabia que também tinha conseguido um lugar especial na vida deles.
Foram dois amigos de verdade que eu ganhei.
E, claro, além de todo mundo que já estava ali, não poderia faltar...
— Que festa ma-ra-vi-lho-sa! — disse ela, surgindo de repente, ao meu lado.
Giselle.
A minha fada-madrinha.
Sorri, tão alegre.
— É tão bom que você esteja aqui!
Nos abraçamos.
Giselle continuava sendo a minha psicóloga, e, uma vez por semana, eu ainda ia para a
terapia. Bem, eu tinha certeza de que passaria o resto da vida indo, porque passei a apreciar isso.
Virou um hábito, sabe? Um hábito tão importante e agradável quanto qualquer outro. Era
gostoso conversar com ela. Um dos melhores momentos da minha semana. Ela se tornou minha
psicóloga, minha amiga e minha confidente.
— É claro que eu não poderia faltar! Está tudo impecável, completamente à sua altura,
querida.
Eu ri e, divertida, em um tom mais baixo, como se tivesse lhe segredando algo, falei:
— Sabe que eu não decidi nada sobre a organização desse coquetel, né? Não me importei
nem com a cor dos guardanapos. E, honestamente, é ótimo não me preocupar mais com uma
porção de bobagens que antes eu queria controlar.
Ela também soltou uma risadinha e, então, esfregando carinhosamente uma das mãos no
meu braço, falou, com verdadeiros olhares de admiração:
— Eu estou tão orgulhosa de você, da sua leveza.
— Você tem parcelas de culpa nisso, né? Uma santa que opera milagres em garotas
nervosas — brinquei.
Ela riu.
— Que nada... — respondeu, balançando a cabeça de leve. — Todas as suas mudanças
partiram de você, do seu coração.
E eu suspirei em pura satisfação, enquanto olhava para ela, porque eu sabia que isso era
verdade.
A mudança e o desejo de mudar precisavam começar dentro de nós.
— Você é uma deusa! — repliquei, divertida.
Ela soltou risadinhas.
— Eu faço o que posso.
Sorri.
— E a sua esposa, onde está? Ela tá gostando? Trouxeram o Sean? Ele está se divertindo?
— Ah, pode ter certeza de que ele está se divertindo mais do que qualquer um de nós!
Naomi foi ao parquinho onde ele está brincando com as outras crianças. Se não o tirarmos de lá,
ele não se lembra nem de comer — soltou risadinhas pelo nariz. — Naomi está encantada com
tudo. Ela disse que vem falar com você daqui a pouco, e vai disputar um autógrafo também.
Eu ri.
— Eu fico tão contente! Sabe que se precisarem de alguma coisa por aqui, é só falar
comigo, né?
— Claro, sei sim. Nem se preocupe.
Assim que ela se calou, no entanto, uma terceira voz que falou pertinho de nós.
Uma voz rouca, sexy e muito conhecida.
— Olá, olá, com licença! Sem querer atrapalhar, mas atrapalhando... — disse ela, ao me
envolver com uma das suas mãos pela minha cintura. — Tudo bem, Gi? — sorrindo, falou com a
psicóloga e, então, girou o rosto para mim. — Katherine está nos chamando para começarmos a
sessão de autógrafos. Sabe que já estamos com um atraso de mais de duas horas, né? — soltou
risinhos.
Sim, eu sabia sim.
Graças à sua língua miserável.
— Ah, eu já estou indo! — Giselle exclamou rapidamente. — Não se preocupem comigo.
Inclusive, já peguei uma senha e vou concorrer a um desses autógrafos super requisitados!
Rayka sorriu.
— Obrigada, Giselle.
— Obrigada, Gi! Depois a gente se fala.
E, assim, ela se afastou, seguindo em direção à sua esposa que saía com Sean do
parquinho.
Quando ficamos sós, respirei fundo, contudo, um pouquinho ansiosa por ser a primeira vez
que eu daria autógrafos e precisaria lidar com essa quantidade de pessoas ao mesmo tempo. Nem
na minha época de Victoria Popular Peterson, durante a universidade, havia tanta gente assim ao
meu redor.
Não que eu estivesse reclamando, porque era óbvio que não.
Isso era uma das coisas mais fantásticas que já aconteceu nas nossas vidas, e eu estava
adorando.
Só me sentia um pouquinho ansiosa mesmo.
— Como eu tô, amor? — me virei para ela, perguntando. — Minha roupa tá boa? Minha
maquiagem também?
Rayka, por sua vez, sorriu leve e encantadora, deslizando os seus dedos pelo meu rosto, ao
colocar uma das minhas mechas de cabelo atrás da orelha.
— Você está um absurdo, como sempre. Gostosa e linda pra caralho.
Suspirei.
Meu coração um pouquinho acelerado.
— Quantas senhas foram entregues?
— Distribuíram cento e cinquenta.
Espera aí.
Meu queixo subitamente despencou, enquanto meus olhos dobravam de tamanho.
— Tem cento e cinquenta pessoas querendo um autógrafo nosso?
— Sim! — riu. — E olha que não deu pra todo mundo. Teve gente que não conseguiu
pegar uma senha a tempo.
— Ai, minha deusa! — exclamei numa mistura de empolgação, felicidade e nervosismo, e
peguei uma taça de champanhe de um garçom que passava bem ao meu lado. — Eu vou beber
isso aqui, mas acho que preciso de algo mais forte para comemorar.
Ou para tentar me manter um pouco mais calma.
— Amor... — disse ela em um divertido tonzinho de alerta.
— Ah, qual foi, amor? — repliquei, virando a taça e bebendo o conteúdo quase todo em
um só gole. Bebidas assim já não desciam mais rasgando a minha garganta. Eu estava
acostumada. — Você sabe que o meu estômago não é mais tão fraco para álcool como antes.
Ela soltou risadinhas.
— Tá bom... Mas, vamos logo, antes que Katherine coloque coleirinhas nos nossos
pescoços e nos arraste até lá. A única coleira que eu aceito é a sua — finalizou dando um tapinha
de leve na minha bunda.
Safada.
De automático, pulei.
Eu nem sabia a razão desses pulinhos de reflexos em mim, se já era um costume os seus
tapinhas sacanas na minha bunda.
Confesso, eu adorava.
Quando segurei a sua mão e fiz que ia dar o primeiro passo para seguir em direção ao local
onde a sessão de autógrafos aconteceria, porém...
We are the champions, my friends...
Os meus ouvidos, repentinamente, identificaram a música que estava tocando no jardim.
Uma música que há mais de dois anos eu não ouvia. Uma música que me atormentou por tanto
tempo.
De supetão, eu parei. Travei no ato. Rayka também.
Por alguns segundos, deixei que aquela letra entrasse na minha cabeça de novo. Fechei os
olhos involuntariamente. Os flashes de um tempo distante passando pela minha memória outra
vez.

We are the champions


(Nós somos os campeões)
We are champions
(Nós somos os campeões)
No time for losers
(Os perdedores não têm vez)
‘Cause we are the champions of the world
(Pois nós somos os campeões do mundo)

Surpresa com a adorável sensação de nostalgia e prazer, por escutar essa música
novamente e saber de tudo o que ela significava e representava para nós, virei o rosto para a
Rayka, com os lábios meio entreabertos, sentindo como se tivesse voltado àquela praia.
— Você...
As palavras simplesmente se perderam na minha boca, por um instante.
Ela, por sua vez, com um sorrisinho arteiro e um olhar de quem sabia exatamente o que eu
queria dizer, perguntou:
— North Beach, quase cinco anos atrás, um jogo de verdade ou desafio, e uma fogueira,
lembra?
Sorri.
Inevitavelmente, sorri.
— Jamais poderia me esquecer.
Sem resistir, eu a beijei, em homenagem aos velhos e aos novos tempos. E, segurando a
sua mão, saímos dali, caminhando juntas, para continuarmos a viver um sonho que não era só
meu, nem só dela. Um sonho que era nosso.
We are the champions do Queen já não me assustava mais. Muito pelo contrário. Uma
porção de outras coisas não me assustavam mais. Troquei a palavra perfeição por amor e
felicidade.
Coragem.
Não me restavam dúvidas de que, em alguma parte do universo, minha mãe estava muito
orgulhosa, tanto quanto eu estava absolutamente orgulhosa de mim mesma, porque, agora, eu
era, sim, tão corajosa quanto um dia ela foi.
E, bem, querendo ou não, com coragem, amor e felicidade, tudo ficava muito mais...
Perfeito.
CONHEÇA OUTRAS OBRAS DA
AUTORA

Sou tudo o que você (não) precisa

Sinopse
Nojentinha, mimada e herdeira de um complexo hoteleiro em Las Vegas. Talvez essas fossem as
melhores palavras para descrever quem era Agatha Ballard. Acostumada a ter uma vida
desregrada, passava mais tempo em festas do que em casa. Numa dessas baladas, Agatha,
bêbada, consegue a façanha de bater o seu carro justo em viatura da polícia. Como se não
bastasse o acidente, graças ao seu ego maior do que o Monte Everest, ela é detida não somente
por estar dirigindo alcoolizada, mas também por desacato à autoridade da, competente e
profissional, policial Zara Scott.
Claro que o dinheiro solucionava muitas coisas. Inclusive, o pagamento da sua fiança, para ser
liberada do xadrez. Agatha só não contava que, além da multa, também teria de prestar serviços
comunitários, como forma de cumprimento da sua pena. Agora, a riquinha, que nunca lavou suas
próprias calcinhas, precisaria esfregar o chão e desentupir muitos vasos sanitários sujos da
penitenciária de Las Vegas. Tudo isso sob a supervisão e os olhares atentos da policial Zara
Scott.
Entre trocas de farpas, micos e olhares intensos, um desejo nasce, entre as duas, e se torna muito
mais evidente do que deveria. Elas tentam resistir ao sentimento, mas só até descobrirem que
amar não é exatamente precisar de uma pessoa, e, sim, querer tê-la.

Não importa o que digam

Sinopse
De todas as tentações existentes no universo, só existia um ponto fraco, para Vivian Morrone:
mulheres. Conhecida pelo profissionalismo e pela dedicação ao seu trabalho com a política, a
única coisa capaz de fazê-la sair dos trilhos era uma mulher atraente. E o seu adversário de
eleição, Dereck Ford, sabia muito bem disso.
Depois de cair em uma armação e ter sido flagrada, pela imprensa, numa situação bem
comprometedora com uma mulher contratada e paga por Dereck, Vivian viu o seu rosto estampar
as capas dos jornais, de toda a Califórnia, como a "candidata promíscua".
Agora, a canditada à governadora do estado, decidida a dar a volta por cima por cima e
desmascarar o seu adversário a toda a população, vai em busca da melhor e mais atraente garota
de programa, para se disfarçar de socialite, se infiltrar na vida de Dereck e descobrir os esquemas
de corrupção que o envolvem.
Ao bater os olhos nela, pela primeira vez, em uma boate, Vênus parecia ser a garota certa para o
trabalho. Linda. Ela chamava atenção por onde passava. Um diamante bruto a ser lapidado.
Vivian só não esperava que o esforço de transformar uma menina, sem classe, na princesa
herdeira de um falso império, seria maior do que imaginava.
No entanto, entre aulas de etiqueta, convivências debaixo do mesmo teto, risos e calores
irracionais, alguns sentimentos aparentemente sem sentido começam a surgir. Ainda que elas
fossem muito experientes e racionais sobre vários aspectos da vida, incluindo relacionamentos,
lhes restava perceber que o amor não precisava fazer sentido. Ele só precisava existir, não
importava o que dissessem, o que falassem ou pensassem. Simples assim.
AGRADECIMENTOS
Assim como agradeci no início do livro, eu não poderia deixar de dar o meu muito obrigada a
você que chegou até aqui, depois dessa jornada intensa e linda. Muito obrigada por dedicar um
tempinho precioso da sua vida para ler a história das minhas meninas. Você não sabe o quanto
isso me deixar incrivelmente feliz.
O meu desejo lá das notas iniciais continua sendo o mesmo agora. Eu realmente espero que o
livro tenha tocado o seu coração da mesma maneira como tocou o meu. A história de Rayka e
Victoria precisava existir.
Muitíssimo obrigada também aos meus leitores que já me acompanham diariamente nas redes
sociais, especialmente no Instagram. Eu não sei o que seria de mim sem a motivação que vocês
me dão. Todas as mensagens, os comentários e as curtidas fazem uma enorme diferença.
Agradeço ao Bruno, meu parceiro de vida, por estar comigo em todos os momentos e por dar
forças quando acho que já estou cansada o bastante para continuar.
E, por fim, deixo o meu muito obrigada à Amazon por tornar cada vez mais acessível o trabalho
de autores independentes.
INDO ALÉM

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ABOUT THE AUTHOR
V. S. Vilela
V. S. Vilela é mestre e doutoranda
em Administração por formação e
escritora por paixão. Desde a
infância, já escrevia suas histórias e
imaginava mundos fantásticos, que
somente a cabeça de uma criança
poderia criar. Mas, foi apenas aos
vinte e dois anos que começou a
compartilhar seus textos na
internet. Com o tempo, a autopublicação em plataformas digitais e gratuitas lhe deu a
oportunidade de acumular números jamais imaginados, e, principalmente, conhecer pessoas
maravilhosas, seus leitores. Hoje, certa da sua vocação, deseja se profissionalizar, cada vez mais,
na escrita, e levar histórias de qualidade ao público, desde romances à aventuras.
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