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EU NASCI EM BRIGHTON.
Vim de uma família muito bem estruturada que não soube lidar
com o falecimento do meu avô — viva a ironia — e que preferiu não
lidar com a viúva.
Uma família que queria que minha avó se sentisse bem, mas
não... tanto. Uma família que se ofereceu para ajudá-la em qualquer
fase, mas que desistiu quando percebeu que a fortuna dela não
passava de algumas libras jogadas no fundo de um banco. Uma
família que a amava, mas só quando estava no auge de sua carreira
e ainda era convidada para dar entrevistas no rádio, depois, servia
apenas para lamentações. Uma família que queria ver minha avó
bem, mas melhor se houvesse dinheiro envolvido.
Eu tinha sete anos quando vovó perguntou à minha mãe se
poderia me criar.
Para famílias “normais” ou remotas, a pergunta poderia ser uma
ofensa. Um insulto gravíssimo. Para minha mãe, bem, acredito que
para minha mãe foi um alívio. Quase como “Ora, por que não
perguntou antes?”
Na época, queriam encontrar uma enfermeira para minha avó.
Ela não estava doente e nem nada disso, mas estava começando a
envelhecer e minha família não queria encarregar um tempo à
minha avó que não tinham. Quero dizer, eles tinham, mas Regina
Campbell não era mais a Regina Campbell, então não se
importaram com mais nada.
Vovó queria me criar porque eu dava trabalho para minha mãe.
Mordia as crianças na escola, era um pouco violenta, odiava ser
educada, odiava me comportar e vovó disse que poderia dar um
jeito em mim de uma vez por todas. O santo remédio que ela
passou a procurar e jamais encontrou. Enfim, minha mãe cedeu —
não que isso tenha custado muito caro ou muitas conversas, apenas
duas a convenceram.
Não me lembro muito bem dos meus reais sentimentos. Não sei
se prometi a mim mesma que daria o dobro de trabalho para vovó
Regina; não lembro o que queria na época. Só lembro de ir embora
de Brighton, com um ursinho de pelúcia entre as pernas e uma
mochila ao meu lado, vovó estava fumando com a janela aberta,
enquanto um motorista seguia em frente, com um caminhão de
mudanças logo atrás de nós.
Durante a viagem de Brighton até Salt, vovó disse que eu era a
neta mais bonita que ela tinha. Ninguém nunca havia me chamado
de bonita antes. Só encrenqueira e mal educada. Vovó disse que
meus cabelos cacheados eram meu verdadeiro charme. Ninguém
nunca disse que meus cabelos eram lindos ou charmosos, só
falavam que deveriam penteá-los e contê-los em um penteado
qualquer.
Vovó disse que meus lábios cheios, eram desenhados à mão
por anjos. Ninguém nunca tinha me contado uma história mística
sobre mim. Só que os lábios das outras garotinhas eram mais
discretos e, por isso, eu precisava ser boazinha para suprir minha
falta de beleza.
Então, fui amolecendo.
A criança que prometia tacar fogo em cortinas caras, só queria
saber o que mais ela podia ser de acordo com avó. Os primeiros
dias em Salt e na nova vizinhança foram horríveis. Minha vizinha de
janela era a perfeitinha Nicola Wolf, de cabelos arrumados e postura
intacta.
Ela odiava brincar na areia, na lama, não gostava de patinar por
diversão e sempre fazia careta quando preferia pular e dançar a
sentar e brincar de bonecas. Era a criança mais chata do mundo.
Um dia, ainda sem amigos, no Jardim de Infância, encontrei
uma garota, pequena e mirrada, fazendo seus ursinhos de pelúcia
caírem da Casa da Barbie.
— O que é isso? — Eu perguntei completamente curiosa.
— Eles estão pulando de bungee jump — respondeu Gwen.
Mas, para variar um pouco, Gwen ficou desconfiada de mim
durante duas semanas até decidir dividir alguns bolinhos de
baunilha comigo no recreio.
Sobre os concursos de beleza, eu gostava.
Meu Deus, eu me divertia para caralho sempre que precisava
fingir que não era eu. Graças à vovó, eu acreditei fielmente que
podia vencê-los. Como venci muitos. A maioria das pessoas acha
que vovó é quem me obrigou a participar de um concurso de beleza,
mas apenas quis.
Por conta própria.
Foi em um dia em que encontrei algumas fotos dela no sótão,
com a minha idade. Ela havia sido Miss Brighton e conseguiu uma
vaga no Miss Universo representando a Inglaterra aos vinte e um.
Ela me contou a história enquanto fazia panquecas pela manhã.
Então, sem esperar ela terminar, disse que queria tentar.
Lógico que a caminhada foi difícil; odiava que penteassem
meus cabelos, as maquiagens incomodavam e os vestidos eram
rosa demais. Mas depois, depois que eu desfilava, acenava para
vovó na plateia e sorria, eu percebia que, de fato, estava fazendo
algo divertido. Sabotar e provocar as outras misses eram a minha
parte favorita de tudo. Elas choravam com tanta facilidade que me
dava ainda mais vontade de continuar.
Só parei de competir quando não achei mais graça alguma.
Sempre era a mesma coisa; desfile, perguntas idiotas com
respostas prontas, exibição de talento, classificatórias, mais desfiles
e a vencedora. Pronto. Fim de papo. De volta para a casa.
Ah, sim. Os concursos serviram para fazer com que vovó e eu
tivéssemos um laço ainda mais forte, com certeza. Mas também
serviu para fazer com que meus troféus ficassem ao lado dos de
atuação de vovó. Nosso mural é a minha parte predileta da casa.
Fica abaixo da escada principal e tem nossas fotos, dispostas
abaixo de uma luz neon que muda de cor.
A ideia da luz foi minha.
Quando cresci e percebi que gostava de garotas — mais do
que importuná-las — vovó não ficou surpresa. Ela tragou um cigarro
e disse que tudo bem. Naquela noite, ela me deu seu colar favorito
de todo o mundo. Um colar de ouro branco com um pingente de
cadeado. Ela disse que aquele colar lhe acompanhou por muitos
anos; que ela o segurava sempre que precisava manter a calma e
que a ajudava sempre a descobrir quem ela era e a verdade sobre
si mesma.
Vovó, então, me disse que as pessoas iriam tentar me punir por
amar. Que as pessoas iriam testar minha paciência e que eu deveria
ser franca e manter a calma. Que, dali em diante, eu precisava
sempre saber quem eu era.
Nunca mais o tirei do pescoço.
Somos melhores amigas e graças à minha avó, soube desde
pequena que tenho um valor enorme no mundo.
— Não acredito!
— Pois acredite, porque não estou contando mentira nenhuma,
Gwen.
— Você odeia dança no gelo! — Gwen berrou do outro lado da
linha. — Tipo, desde que...
— Eu sei, eu sei. Mas a chatinha da Nicola Wolf irá me pagar. E
com o dinheiro irei conseguir a Betty de uma vez por todas. Nem
preciso agradecer. Danço, venço esse troço e ainda ganho um
carro. Está me entendendo?
Ouço minha melhor amiga suspirar do outro lado da linha.
— Está indo para lá agora? — Gwen quis saber.
— Estou. Chegando à arena de ensaios. Arena Palmer. —
Empurro a porta pesada a vácuo da arena pública da cidade.
Algumas pessoas podem treinar à vontade, outras precisam marcar
horário. — Eu prometi, não prometi?
— Certo... — A desconfiança de Gwen ataca novamente. — Me
conte tudo depois!
Desliguei o celular, enfiando na minha calça e abrindo uma
latinha de energético em seguida.
A Arena Palmer me recebeu rapidamente. Sem graça.
Algumas funções da cidade de Salt é sempre apoiar os
esportes de gelo. A pista de patinação estava vazia, por apenas
uma figura deslizando pelo gelo artificial de maneira leve e graciosa.
Dei um longo gole no energético e me aproximei das duas pessoas
que estavam me esperando.
Harvey Bird é quem estava patinando; de um lado e para o
outro, com um sorriso enorme no rosto que só fazia os olhos de
Nicola Wolf faiscarem. É até estranho perceber que Nicola tem
apreço por alguém neste mundo e ainda mais por Harvey. Alguém
absolutamente normal.
— E aí. — Desci alguns degraus da arquibancada, para chegar
até Nicola. Inteiramente de preto, Nicola também usava um rabo de
cavalo bem penteado e firme ao topo da cabeça. Ela me direcionou
apenas uma olhada e um aceno de queixo. Era o bastante. — E aí,
Harvey! — Acenei para ele, que havia acabado de girar mais de
cinco vezes no lugar.
— E aí, Aster! — gritou, girando novamente acima dos
calcanhares em patins.
— Bem... — Nicola passou seus olhos pelo energético na
minha mão e depois para o meu rosto. Quase entrando em colapso.
— Preciso dizer que está atrasada? — E fingiu um sorriso.
Joguei todo meu peso ao seu lado, me sentando e deixando
que minha mochila caísse entre minhas pernas.
Foram três dias interessantes.
Dias em que me vi obrigada a falar com Nicola Wolf; cada dia
por algum motivo diferente. Dei meu número a ela, afirmando que
poderia me ligar ou enviar uma mensagem sobre os treinos.
Até mesmo tive que falar com ela em uma aula!
Eu nem sabia que fazíamos uma aula na faculdade juntas, meu
Deus!
Agora, depois dessas setenta e duas horas, eu sou oficialmente
a parceira de Harvey Bird em uma competição no gelo.
O que não faço pela Betty?
— O que iria adiantar? — devolvi a provocação. — Você irá
falar do mesmo jeito.
— Precisa saber que somos pontuais. — Nicola arrebitou o
nariz. — Ser pontual te dá pontos, sabia disso?
— Não é a Olimpíada, Nicola. — Revirei os olhos. — É apenas
um torneio.
— Oh. — Ela murmurou incrédula. — Acha mesmo que eles
não irão julgar sua pontualidade, ou... Ou sua destreza...
— Nicola! — Harvey se aproximou de nós. Deslizou até a
barreira de madeira e plástico que separava a pista de patinação
das arquibancadas e apoiou os braços ali. — Não assuste a menina
logo no primeiro dia.
— Só estou dizendo... — Nicola engole em seco, empertigando
os ombros. — Que temos que ser levados a sério.
— Nem começamos. — Harvey sorriu. — Relaxa, por favor.
Nicola não discutiu com ele, apesar de querer.
Apenas enrugou o nariz e umedeceu os lábios, contrariada.
Sua atitude quase — eu disse quase — me faz sorrir. Garotas
teimosas ainda são garotas teimosas. Mas garotas prepotentes e
estressadas tinham uma parte de mim que ainda não conseguia
entender o porquê me atraíam tanto. Elas sempre encaram a vida
com uma pressa exagerada, enquanto apenas quero desacelerar.
— Então... — Nicola bate os pés de modo frenético e ansioso
na madeira abaixo de sua sola. — Não iremos explicar nada a ela?
Harvey Bird, que eu espero que saiba responder Nicola à altura,
apenas sorri serenamente. Sem um pingo de estresse.
— Ainda é o primeiro dia, Nikki. — Harvey garante, com um
sorriso de efeito que é capaz de acalmar Nicola Wolf. — Vamos
apenas conversar sobre os treinos diários e ver como nos damos
bem, hum? — Harvey abaixa um pouco o queixo, para encontrar os
olhos de Nicola.
Ela suspira, convencida e confirma com o queixo, silenciosa.
Solto uma risada nasal.
— Fofos — sibilo. — E então, como isso será feito?
— Trouxe seus patins? — Harvey pergunta para mim.
— Sim.
— Então só os coloque e vamos tentar encontrar nossa química
na pista e na dança.
Bato uma palma rítmica, confirmando.
Sinto Nicola inquieta ao meu lado.
Será que ela entraria em pane se passasse apenas um dia, um
diazinho, sem dar ordens em alguém?
Deixo o energético de lado — até digo que Nicola pode beber.
Veja como sou boazinha.
Retiro meus patins reservas da mochila, preparo meus pés e
minhas meias, e os coloco. Em pé, me arrasto até a entrada da pista
de patinação, Harvey me espera com uma mão estendida.
— Você não vem? — pergunto a Nicola.
Seus olhos estão presos em nós dois, em pé, diante de seu
corpo. Ela não trouxe nenhum patim, não trouxe nada para estar
conosco. Apenas está sentada, com as mãos reunidas ao joelho,
em silêncio, nos avaliando.
— Serei a treinadora — responde um pouco vaga nas palavras.
— Apenas isso.
Subo as sobrancelhas e a ignoro.
Eu sei que Nicola não pode competir, mas patinar deve ser uma
tarefa fácil, não é? É só zanzar de um lado e para o outro, deslizar
com equilíbrio, determinação.
Não deve exigir muito.
— Antes de começarmos a... — Coço minha nuca. —
Procurarmos nossa química. — Harvey, o médico, dá um sorriso.
Nicola, o monstro, enruga os lábios. — Por que é que você precisa
do dinheiro do prêmio?
Nicola inspira e abafa um gritinho, como se eu tivesse não só
lhe ofendido como toda sua família.
— Não precisa responder se não quiser, Harvey! — Nicola junta
as sobrancelhas, irritada.
— Não, tá tudo bem. — Ele garante ao gesticular para ela. —
Dívida estudantil — diz para mim. — É bem grande. E a minha bolsa
não cobre muito. Estou meio atrasado para um empréstimo
estudantil e pode ser ainda pior. O prêmio vai cobrir boa parte do
valor, ou ele todo. Depende da nossa posição.
Agora sinto um pouco de pressão.
— Bem. — Subo os ombros. — Se vamos fazer isso. É melhor
fazermos direito!
8
— Está bom?
Barr está aflito com sua fantasia, ele quer que tudo esteja nos
mínimos detalhes perfeitos que imaginou. Ele tem uma festa para ir.
Sua primeira festa do ensino fundamental e a primeira que irá
sozinho. Um garoto de sua sala, alguém chamado Luc, o convidou
hoje à tarde. Ele pediu para mamãe e ela deixou. Barr irá dormir na
casa de Luc depois que a mãe dele vier buscá-lo antes da meia-
noite. Barr tem planos de comer muito chocolate, assistir filmes com
muito sangue e só dormir depois das três da manhã.
— Está melhor do que todas as fantasias que já vi — elogio-o
observando que a rua estava movimentada para um feriado que Salt
não comemora muito bem.
Nada de legal ou muito importante acontece por aqui mesmo.
Barr Wolf está fantasiado de Grover, de Percy Jackson.
Colocou pequenos chifres falsos entre o cabelo crespo e baixo,
pintou à mão com a ajuda de papai, os emblemas as letras do
Acampamento Meio-Sangue, colocou uma calça jeans preta de
lavagem totalmente nova — que eu nem sabia que ele a tinha.
— Podemos ir? — Barr pergunta de uma vez, pegando uma
sacola plástica com uma abóbora que está fumando um cigarro.
— Vamos. — Me apresso em dizer.
Porque mamãe está com aquele olhar que quer me pedir
alguma coisa. E irei prontamente negar.
Quando Barr desce as escadarias primeiro, mamãe me chama,
tranquila, sem levantar suspeitas. Ela se encosta no batente da
porta e ainda envergonhada — sem encarar meu pé ferido — ela
sorri. Ou ao menos tenta.
— Será que podemos conversar? Quando Barr for até a casa
do amigo?
Eu poderia dizer “sim” se já não soubesse o que “conversar”
significa em outras palavras. Então apenas sorrio, de volta.
— Não — simplifico. — Irei à uma festa.
É mentira.
Neguei todos os convites de Harvey e de Gwen para aparecer.
Mas agora que estou falando com mamãe, terei que ir.
— Te vejo amanhã. — Encerro nossa pequena conversa e
desço as escadas.
Barr já está falando com Aster Campbell, de frente para o
jardim da casa dela. Todos na vizinhança não pouparam gastos para
oferecer um dia inteiro de horror e “magia” para seus filhos. Todas
as casas possuem pelo menos duas abóboras luminárias. Sangue
falso em caixas de correio e ou alguns Condes Dráculas de fantoche
sentados em uma cadeira na varanda.
Me aproximo dos dois e percebo que Aster está fantasiada
também. Sei que estamos indo à uma festa, mas não imaginava que
ela levaria a sério.
Está bonita.
Bem bonita.
Dentro de uma fantasia dos Caça-Fantasmas, até mesmo o
macacão de cor marrom-papelão e uma caixa de alumínio presa às
suas costas. Cabelos em um rabo de cavalo que deixa os cachos
soltos e bufantes do lado de trás.
Ao me ver, Aster tem duas reações; sorrir e depois negar com a
cabeça.
— Não está fantasiada, Nicola. — Ela reclama assim que me
aproximo. — Aposto que pegou o primeiro vestido preto que
encontrou e acha que está.
Meio que me vesti de Wednesday Addams. Estou usando um
vestido preto, não muito longo até os joelhos, meia-calça e
sapatilhas baixas, também pretas. Uma maquiagem ao redor dos
olhos, muito mal feita e cadavérica. Tranças dos dois lados caem
em meu busto. E as pessoas não precisam saber o que são olheiras
e o que é maquiagem pura.
— Sim, estou — defendo minha fantasia. — Achei um tutorial
fácil. Não estrague a brincadeira, Aster. Sou a própria Wednesday!
— Não irei discordar! — Aster ergue as mãos em rendição. —
Vamos nessa, pirralho?
— Vamos! — Barr comemora e corre na frente.
Aster me olha e aponta para frente, para eu poder passar
primeiro. Então, dou um passo e nossos ombros se chocam.
Decididas a caminharmos uma do lado da outra, ficamos em silêncio
pelos primeiros cinco minutos.
— O que houve?
O braço de Nicola me segurou na saída da aula. Da qual não
tivemos. A sra. Tent teve que se ausentar pelo caso de Taylor e
todos fomos liberados mais cedo.
Apenas me encostei à parede, segurando Nicola pela cintura.
Ela, incrivelmente, deixou ser tocada de maneira tão íntima na
faculdade. Em um mar de pessoas que poderiam comentar.
Mas ela não se importava, conforme contava tudo o que tinha
acontecido dentro daquele escritório fechado e sinistro.
— Ela te plagiou?
— Aham.
— Meu Deus!
— Mas a burrinha não sabia que precisava memorizar tudo de
uma vez. Ou pelo menos o sentido da história. Se Taylor fosse mais
inteligente, eu estaria encrencada para caralho.
— Se ela fosse inteligente, teria feito o próprio trabalho. —
Nicola resumiu.
Aperto sua cintura ao perceber que não estou participando de
uma miragem. Nicola está em meus braços.
— Sim. Mas a sra. Tent irá resolver. Sei que sim. — Mordo
meus lábios, me segurando para não a beijar. — E o seu trabalho?
Como foi? — Mudo de assunto.
— Quer ler? — Nicola o retira da mochila atrás de seu corpo. —
A sra. Tent gostou muito e... bem... — Ela umedece os lábios,
insegura por algum motivo. — Ela adorou. Enfim, gostaria da sua
opinião. Não é fictício, mas também não é biográfico.
— Claro que quero ler. — Pego o trabalho de sua mão e o abro.
Nicola se desvencilha de mim — o que é uma pena — e espera
pacientemente do meu lado, conforme abro a primeira página de
uma pasta. É a cópia. Vejo pela xerox mal feita da biblioteca da
United Salt.
“SOBRE BASTIDORES DESTRUTIVOS E COMO UM DELES
ME PRIVOU DO MUNDO
POR Nicola Wolf
Sei que quando estamos apaixonados tudo é um motivo
enorme para estarmos com a pessoa que amamos ou que
passamos a adorar e a confiar. Acho que quando as pessoas me
falam que estão namorando, sempre me pergunto como é nos
‘bastidores’.
A família da minha mãe sempre fala que, se querermos saber
como uma coisa funciona, precisamos conhecer seu bastidor.
Mas o que é um bastidor, afinal?
Em séries e filmes, são as câmeras, são o que acontecem para
aquela cena ir ao ar ou ser feita. São a computação gráfica, o IA,
são os diretores que ficam atrás das câmeras. Um bastidor é tudo
aquilo de grandioso que acontece e ninguém mais vê. O que
enxergamos na tela do cinema é o resultado de um trabalho duro de
uma equipe de dezenas de pessoas, que são creditadas em letras
minúsculas ao final do filme que a maioria não assiste ou nem
presta atenção. Nós somos forçados a esperar os créditos
acabarem quando alguma cena extra é prometida. Fora isso, quem
liga para os bastidores?
Talvez as pessoas que façam parte dele.
Mas o que quero dizer, é que existem os bastidores de qualquer
relação. Quando vemos uma foto nas redes sociais, de um casal
sorridente, companheiro e fiel, somos levados a pensar que
adoraríamos ter aquilo o que eles têm. Mas, nós querermos mesmo,
ou queremos o que eles mostram online? Quero dizer, quantos
casais famosos adoramos, mas iriámos detestar se soubéssemos o
que acontece nos bastidores deles?
Quantas pessoas não deixam transparecer o que realmente
acontece dentro e fora de uma relação?
Eu diria que quase nenhuma. Ao nosso redor, jamais iremos
saber o que acontece, da mesma forma que jamais saberão o que
acontece dentro de nós.
Fico me perguntando, de vez em quando, quantos casais que
vemos na rua são verdadeiramente bons? Quantos caras que
seguram as bolsas de suas namoradas na rua estão realmente
preocupados com elas? Quantos casais de pessoas deixam de
segurar um na mão do outro, com medo de sofrer represálias?
Quantos amigos vemos passear no shopping e, na verdade, são um
casal?
O que eu sei sobre o meu é que ele é horrível.
Bem, o meu namorado é incrível. Mas o bastidor dele, não é.
Ele promete que as coisas irão ficar bem, que ele jamais
levantará a mão para mim novamente – nunca chegou a me bater,
mas uma breve ameaçada, sim. Enche meu rosto de beijos e eu me
sinto tão amada, que decido que ele é o que quero para sempre.
Não sua violência, não sua forma de mentir para mim, não a
maneira fria com que me olha quando decide que irá me punir, não
quando sua mão aperta meu pescoço com mais força na hora do
sexo e nem quando seu pulso encontra o meu punho de maneira
nada além de protetora. Nada disso.
Mas eu o quero.
Por algum motivo?
Bem...
Tenho certeza que ele não é igual aos outros. Sei que as
pessoas vivem falando que uma mudança só é certa quando a
vemos, mas acho que... discordo. Eu o quero na mesma intenção
que ele me quer.
Veja com cuidado, ele quer se casar comigo!
Não é como as outras garotas que se tornam diversão para ele.
Eu sou a garota. Eu sou a mulher que ele quer levar ao altar e não a
tirar mais de lá.
(Ou talvez a aliança seja o fator definitivo que possa me chamar
de “minha” para sempre)
Mas ele não é assim! Ele é diferente.
(Como diferente se ele te insulta?)
Ele pede desculpa.
(Os outros também).
Não, não, não. Você não está entendendo. Os outros
relacionamentos são destrutivos, o meu é apenas... um bastidor. Um
mal entendido. Uma briga de casais como qualquer outro cônjuge
tem.
(Mas se ele promete que nunca mais fará nada parecido e faz,
ele é uma farsa. É um mentiroso)
Não, ele não é! É apenas um garoto.
(De vinte e poucos anos? Ele deixou de ser um garoto faz anos,
temo em te contar)
Você ainda não entendeu!
(Então, me conte)
Ele me faz bem, me faz sentir amada. Quer um futuro comigo.
(Mas te bate...)
Ele não me bate. De onde tirou isso?
(Mas te pune. Te insulta, faz a achar que ninguém iria amá-la
novamente)
Mas ninguém irá me amar. Ele mesmo diz. Que sou chorona
demais, que sou sensível demais, que sou maluca, ciumenta,
apegada, mandona e instável. Talvez ele tenha razão. Talvez só ele
me ame... são defeitos demais. Ele tem razão, não tem?
(Não, ele não tem. No fundo você sabe que ele não tem)
Mas eu sou a garota certa para ele.
Ele só quer diversão com as outras.
(Você poderia querer se fosse conversado ou se fosse um
relacionamento aberto. Mas... hum... não é)
Não poderia ser. Ele tem ciúme de outros caras comigo.
(Espera... você não tem amigos?)
Amigas, sim. Mas muita das vezes ele não gosta delas. Quero
dizer. É o que eu estava explicando lá em cima antes de você me
interromper; existem os bas...
(Sim, os bastidores. Eu sei, eu sei. Como irá passar por cima do
fato de que você não tem amigos?)
Amigas, sim.
(Não estou falando delas)
Ele tem certeza que amigos podem me fazer ser falada pela
cidade. Vivemos em uma cidade pequena, não quero dar motivo a
ele...
(Dar motivo a ele sobre o quê?)
Você sabe...
(Adoraria que falasse em voz alta)
Não precisa. Você sabe. A única parte que não gosto dele.
(As pessoas não são quebra-cabeças. Elas têm seus defeitos,
mas quando um deles te assusta, sinto em lhe dizer, mas não é
mais...)
Nem pense em dizer a palavra “saudável”, me cansei dela.
(Entendo)
Posso continuar?
(Pode)
Bem, para finalizar. Acredito que as pessoas vivem cercadas
por mundos que não fazem parte.
O bastidor do meu relacionamento é horrível, eu sei.
Mas é normal como qualquer outra relação.
Sei disso.
(Não, você não sabe)”
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