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Título original: O Medo é Feito de Gelo.

Copyright © 2021 L.S Englantine.

Texto de acordo com as novas regras ortográficas da Língua Portuguesa. 1ª edição


2020. Todos os direitos reservados. Nenhuma parte dessa obra pode ser reproduzida ou
usada de qualquer maneira ou por qualquer meio, eletrônico ou físico, inclusive fotocópias,
gravações, ou sistema de armazenamento em banco de dados, sem permissão por escrito,
com exceção de citações curtas utilizadas em resenhas críticas, artigos ou divulgação em
mídias sociais. Esta é uma obra de ficção. Todos os personagens, localidades e
acontecimentos históricos e/ou atuais retratados neste romance são produtos da
imaginação da autora e utilizados de modo fictício, sem qualquer referência à realidade.
Créditos de imagem à Plataforma Digital Canva.

Arte: Julia Lima.


Revisão: Lara Silva e Ísis Casemiro.
Diagramação: Lara Silva.
Capa: Mary Abade.
Uma amiga me explicou o que era a palavra “sáfico”, decidi finalmente escrever um
romance. Então, valeu, Sofia Neglia.
0

Play Date – Melanie Martinez


Sad Day – Fka Twigs
Girls Like Girls – Hayley Kyoko
Are You Bored Yet? – Wallows
Crazy for You – Best Coast
Ex’s and Oh’s – Elle King
Pretty Girl – Hayley Kyoko
Bad Bad News – Leon Bridgers
I Hate Myself for Loving You – Joan Jett
Curious – Hayley Kyoko
Two Weeks – Fka Twigs
Own My Own – Miley Cyrus
Flying Solo – Madison Reyes
Mesmo que o mundo deixe de ser mundo
As palavras ainda estarão entre nossos corpos decompostos

E mesmo que o medo seja feito de gelo


O coração não é

Para aquela que se inspira na tolerância


Se banha de amor
E respira a paz

À você, que torna o mundo melhor


Que as vezes se vê como nada
Mas é tudo o que precisamos

A você, um beijo e um muito obrigado.


– Julia Bells.
1

SALT É A CIDADE MAIS GELADA do país de acordo com


algumas revistas e estudiosos.
No inverno, o gelo chega a até a dois metros de altura ao redor
das casas, as escondendo ou impedindo que qualquer pessoa
consiga sair. Às vezes, alguns vizinhos, aqueles sortudos que não
tiveram suas casas invadidas pelo gelo, precisam ajudar as outras
pessoas, as desafortunadas, que ficaram presas em suas casas.
Seja pela porta da frente, dos fundos ou pelas janelas.
Meu pai sempre teve problemas com o gelo; todo ano, quando
eu era pequena, ele prometia que o gelo não lhe pregaria mais uma
peça. Ele falava com tanta convicção que fazia parecer que a água
congelada não era mais um fenômeno da natureza — um bem
natural, por assim dizer — meu pai agia como se fosse invencível o
tempo todo.
Acho que sempre foi o que mais apreciei nele; tentar não
perder, presumir que é inevitável, que é invencível, mesmo quando
logicamente é.
Quando ele falava isso, sempre era quando jantávamos todos
juntos, numa época bem afastada da atual, isso eu garanto.
O inverno se aproximava, quase no outono, e tudo mudava. Lá
estávamos todos nós, dentro de casa, amanhecendo em um dia e
tendo todas as principais vias da casa bloqueadas. Não existe outra
estação em Salt; não existe outono, nem primavera e nem verão.
Apenas o inverno, o tempo todo. Em alguns dias, é até mais
arriscado e gélido do que qualquer outra época “normal” do ano.
Sempre achei bastante divertido um forte feito de gelo. Como a
luz que vinha da janela era substituída por uma “noite” proposital.
Como meu irmão ria sem motivo algum, apenas por ser gelo. E,
conforme eu crescia, sempre me perguntava o motivo de meu pai
preferir viver em Salt, a cidade congelante das montanhas, do que
qualquer outro lugar no mundo. Apesar de sempre vê-lo namorar o
Havaí em companhias de viagens quando passeávamos no
shopping quando eu era mais nova, Salt sempre conseguia abraçar
meu pai de alguma forma que não consigo entender até hoje.
Viver na cidade é, com certeza, escolher qual hobby você quer
praticar sua vida inteira. Pode parecer um exagero, já que muito do
que aprendemos e quem somos não pode ser definido eternamente
quando novos. Mas em Salt as pessoas não estão preocupadas em
lógica, estão desesperadamente preocupadas em te colocar numa
caixinha, seja ela feita de hóquei ou não.
Todos na cidade possuem um hobby.
Todos na cidade patinam.
Absolutamente todos.
O ponto alto do meu ensino médio, de vez em quando, era
observar as líderes de torcida patinando em lagos congelados ou ir
às festas que aconteciam nas montanhas.
Os caras também possuem apenas uma característica. Ah, um
lembrete sobre os caras; eles preferem hóquei. É certo que, quando
somos crianças, ninguém se importa se um garoto veste um patim e
saí por aí, correndo, atrás de uma garota, apenas por diversão. Mas,
quando chegamos à dada idade, ele precisa decidir; um taco de
hóquei ou o fardo de gostar de dança no gelo?
Havia essas divisões em Salt; meninas com dança no gelo,
garotos no hóquei. Mães preocupadas com a quantidade de glitter
na roupa da garota, pais cuidadosos que levavam seus filhos para
os treinos.
Meu pai mesmo é um grande fã de hóquei, não sei se por gosto
de verdade, ou se um dia, meu avô decidiu que ele seria fã do
esporte. Não sei se meu pai entende as regras do hóquei, não sei
se meu irmão realmente gosta de assistir aos jogos ou participar de
um. Tudo a partir dos gostos dos moradores de Salt sempre me
deixa com uma questão em aberto.
As pessoas, definitivamente, gostavam do que faziam? Ou só
queriam agradar?
Mas quem?
E por quê?
Ou só queriam suprir exatamente aquilo que se esperam delas?
Felizmente, enquanto crescia, conheci pessoas que não
estavam se importando se Salt era gelada ou pequena o bastante
para alimentar boatos. Conheci garotas incríveis jogadoras de
hóquei e garotos que dançavam perfeitamente bem em cima de
patins. Mas eu não fui contra a maré. Apesar de apreciar um bom
jogo, seja ele qual for, me apaixonei perdidamente pela dança
quando meu pai me levou a um evento, quando eu tinha oito anos.
Naquela época, minha mãe estava tentando me convencer — e a
todos — que eu era espetacularmente bonita. Bem... eu sou bonita,
mas na ocasião, eu estava participando de quase todos concursos
de beleza da cidade.
Eu era uma Miss.
Minha mãe foi uma quando tinha a minha idade e cresceu se
arriscando como modelo. Quando teve sua primeira filha, a minha
irmã mais velha, a Nancy, até tentou fazê-la uma Miss, mas não
adiantou em muita coisa. E quando eu nasci, ela encontrou a
oportunidade perfeita de me acostumar desde pequena. Com três
anos, aprendi a desfilar. Aprendi a ter a postura exata, aprendi como
acenar e como esticar o queixo de um modo que os juízes
apreciassem. Depois, foi apenas história; diversas coroas de
plásticos e títulos falsos decoram meu quarto até hoje. Não me
orgulho muito deles, mas descreve quem eu fui por um tempo,
então... por que não me gabar deles um pouco?
Com oito anos, algumas misses precisavam ser mais esbeltas e
determinadas do que outras — e talentosas.
A busca pelo meu talento secreto não foi fácil.
Quero dizer, você tem uma filha. Com três anos, a coloca em
concursos de beleza que são completamente prejudiciais para o
crescimento dela. Sua filha, literalmente, só come cola, terra e areia
e participa dessas atrocidades, então, ela não tem muito tempo de
desabrochar seu talento — só consegue ler algumas palavras em
placas de comércio e nada além disso. Então, você simplesmente
desiste de fazê-la aprender a cantar ou a dançar em terra firme,
decide que é hora do seu marido agir e o manda tentar descobrir
qual talento sua filha tem o verdadeiro dom.
Meu pai não tinha ideia do que fazer comigo. Simplesmente, me
levou com ele aquele dia. Me colocou em sua caminhonete, cheia
de tacos de hóquei que costumava produzir artesanalmente e sorriu,
como se soubesse o que estava fazendo. Daquele mesmo modo
que todos os adultos fazem quando estão prestes a perder o
controle.
Felizmente, ele não perdeu.
Não naquela vez.
Lembro que ele sorriu para mim e tocou o alto da minha
cabeça. Como em todas as épocas do ano em Salt parece uma,
estávamos no outono, que mais parecia o auge do inverno em
qualquer parte do globo. Não consegui sentir seus dedos nos meus
cabelos por causa do gorro que usava, mas sabia que seria um dia
divertido. Ele me levou a esse evento, me deu cachorro-quente e
refrigerante, me deixou comer algodão doce e pegou um bichinho
de pelúcia numa máquina conhecida por golpes, para mim. Depois,
me levou para a arquibancada. Lembro que ele estava conversando
comigo, mas não consegui prestar atenção. Uma dançarina no gelo
estava se apresentando, enquanto as pessoas de Salt aplaudiam
veemente seu perfeito e impecável desempenho.
Ela era a pessoa mais linda do mundo.
Talvez ela seja até hoje. Não faço ideia do que aconteceu com
ela, tampouco sei seu nome. Mas, para mim, para a Nicola de oito
anos de idade, não importava. Aquela era, definitiva e
completamente, a mulher mais linda do mundo que eu já tinha visto
ou encontrado.
Negra. Como eu. De pele brilhante pela maquiagem, cabelos
crespos, mas que foram penteados de uma maneira estratégica
para trás, de modo que nenhum fio se movia ou saía do coque. Sua
postura parecia a minha quando eu desfilava nos concursos e seu
sorriso, meu Deus, com certeza seu sorriso não se parecia com o
meu. Era melhor. Muito melhor.
Vivo. Brilhante. Cheio de cor e luz.
Senti sua paixão pela patinação naquele momento.
E jurei a mim mesma que seria como ela.
Para todo o sempre.
2

BOM, SE EU CONHECESSE A NICOLA de oito anos, eu diria


que o “para sempre” chega e quando chega, não se parece nada
com anos de ternura que ela suspirava e imaginava em seu diário
quando mais nova.
— E como estão as coisas aí?
Gosto de falar com pessoas que não participam mais do
território de Salt. Sempre é melhor falar com desconhecidos,
estranhos ou até mesmo ex-moradores do que fazer amizades.
Infelizmente, com meu salário de vendedora de livros, não consigo
deixar de pensar em mover meu músculo todo — que é meu corpo
— para fora da cidade algum dia. Alavancar voo para fora dos
muros e das montanhas. Mas simplesmente não posso.
Então, preciso me contentar com o pouco que a cidade tem a
me oferecer.
Uma dessas ofertas é falar sempre que posso com Nancy Wolf,
minha irmã mais velha. Não que isso signifique muito. Passo
semanas ou até meses sem falar com Nancy. Podemos passar
muitos dias sem mencionar o nome uma da outra ou sentir saudade.
Sua forma quadriculada dentro do meu celular só mostra que as
coisas para Nancy deram certo de alguma forma. Ela se casará em
breve, com alguém que minha mãe apoia com todas as forças que
encobrem seus sentimentos. Minha parte favorita sobre minha irmã?
É que ela se tornou uma desconhecida para mim. Alguém estranho
que viveu em Salt apenas por um curto período de tempo, apenas
como se estivesse esperando em Salt algo acontecer de verdade,
tanto, que ela nem sequer consegue se lembrar onde ficam as
coisas em Salt, como mercados, livrarias, lanchonetes.
Nada.
Ela não se recorda de nada.
Deixar Nancy sozinha na cidade é o mesmo que a lançar aos
leões famintos em uma jaula minúscula.
— Estou bem. — Gosto de resumir meu tempo a Nancy. Com
os arranjos do casamento, ela precisa fingir que se interessa por
minha vida, e eu, finjo de volta que estou animada com a sua futura.
— E aí?
— Sim, estou bem. Alguns preparativos são bem melhores que
outros... — Nancy responde. A ligação falha um pouco. — Mas eu
gosto de Londres, podemos encontrar tudo o que queremos em um
piscar de olhos.
Limpo a poeira de um livro de capa dura. É uma coleção de
Sherlock Holmes que já vi dezenas de pessoas admirando,
erguendo seus pescoços até encontrarem a coleção, mas jamais a
levando. Estico um pouco meu ombro para alcançar o livro melhor.
Ele pinica, como um beliscar de mãos invisíveis, me avisando que
não posso me arriscar ou forçar meu corpo a agir mais do que ele
pode.
— Eu vou desligar. Ok? Tenho outras milhares de coisas para
decidir até dezembro. Mande um beijo para a mamãe e para o Barr.
Apenas confirmei com a cabeça. Eu sabia que Nancy
encontraria algo melhor para fazer do que apenas me ver limpando
uma estante, mas, algo dentro de mim se apega às pequenas
coisas. Quando desliga, desço da pequena escada que uso para
alcançar os livros que ficam ao alto de um apoio de plástico. Ser alta
pode facilitar bastante a minha vida.
Prendo o avental verde-brilhante ao redor de minha cintura,
mais um acessório que faz parte do uniforme da livraria Bird e
marcho para o lado de fora, para a calçada, onde uma placa de dois
lados está posta. Enfio os dedos no bolso da frente do avental, pego
o primeiro giz que encosta na minha pele e risco na placa; SARAU &
CAFÉ, A MELHOR COMBINAÇÃO. O vento solitário e sombrio do
começo da manhã beija minhas bochechas e a ponta do meu nariz.
Consigo perder meu olhar por alguns instantes. Duas pessoas,
do outro lado da rua, entregam panfletos cor de rosa para qualquer
pessoa que passe à frente delas. Algumas pegam, outras ignoram.
Nada de muito importante acontece em Salt.
Esse é o lema que descreve bastante a vida das pessoas por
aqui.
Logo, minha atenção é pregada diretamente a um Jeep, onde
duas garotas acenam na minha direção, moles de bêbadas, e
mostram os seios quando o semáforo passa do vermelho para o
verde.
Nego rapidamente com a cabeça.
— Bom dia, Nikki.
A voz que pode me acalmar finalmente chega.
Olhar Harvey Bird me traz uma paz imensa, apesar de me
trazer uma enxurrada de sentimentos embaralhados conjuntamente.
Harvey é meu colega de trabalho, meu melhor amigo desde os
nossos sete anos de idade. Ele é tudo o que eu tenho, da mesma
forma, que sou tudo o que ele tem.
— Bom dia, Harvey — respondo. Ele passa por mim, com o
avental da loja que carrega seu sobrenome, graças aos pais que
são os donos. Ele abre a porta da livraria, para eu poder passar
também. — O final de semana foi bom? Tenho certeza que consigo
encontrar vestígios dele por toda a parte.
Harvey sorri, porque sabe que não consegue escapar de uma
diversão quando vê uma. Entre seus dedos, há o mesmo panfleto
que vi as pessoas entregando do outro lado da rua.
— Foi bom. — Ele dá de ombros, conferindo o espaço
rapidamente. — Veja isto.
Ele balança o panfleto no ar e me permite dar uma boa olhada
no que traz. O panfleto cor de rosa com roxo — agora consigo ver
bem melhor — traz um slogan bastante precário sobre Salt; a cidade
gelada. Ainda diz que acontecerá um torneio em breve pela região,
chamado Salt-In.
— Legal? — Tento, arriscando enrugar minha testa.
— Você mesmo diz que nada acontece de divertido nessa
cidade.
— Ora. — Esboço um sorriso esperto. — Nada acontece de
legal nessa cidade. É sempre a mesma coisa. Como se
estivéssemos em um looping.
— Pode ser divertido. — Harvey aponta para o panfleto sob o
balcão que nos separa. — Terão competições, jogos, gincanas e
acontecerá no final do inverno. Todos na cidade parecem
interessados.
— Do que adianta negar? — Prendo meu rabo de cavalo para
fora do fecho do boné, também verde, que uso diariamente. —
Sempre irá me arrastar. Não importa o que eu disser.
Harvey Bird confirma com a cabeça, descaradamente.
Talvez a pessoa mais bonita que eu conheça no mundo, depois
da patinadora que me inspirou a vida toda, fosse Harvey. Ele
também é negro, tem lábios muito bem desenhados e usa um brinco
de diamante na orelha direita. Nele, o boné verde sem graça que
mais parece uma alface não fica ridículo, fica até estiloso.
— Adivinha o que iremos fazer hoje.
— Não faço ideia.
— Vamos lá, Nikki. — Ele coloca a mão rapidamente em meu
ombro. — Hoje é segunda-feira, não temos aula presencial. Sabe
que, antes de uma vida de trabalho, você tem uma vida. Certo?
— Para mim é a mesma coisa. — Subo meus ombros. O colar
de pérolas que tenho envolvido ao meu pescoço oscila para o lado.
— Por favor, que não seja outra fogueira!
— Uma fogueira! — Harvey responde com os olhos faiscantes,
como se os próprios fossem a fogueira que ele tanto diz. — Dessa
vez é diferente, me escute. Gwen Hallister nos convidou.
— Não, Harvey. Gwen Hallister te convidou, você apenas me
incluiu nessa.
— Dá no mesmo no meu ponto de vista. — Harvey toca apenas
um dente, como se fizesse menção de limpar qualquer coisa nele.
— Então, você não vai?
Sei que posso me arrepender. Qualquer que seja minha
resposta, nenhuma é boa o bastante para deixar Harvey Bird em
paz. Ele sabe convencer qualquer pessoa como ninguém.
Depois que parei de competir, Harvey se sente como meu
responsável. Às vezes, enquanto demoro a dormir, ou tento assistir
algo na TV, me recordo de quando acordei no hospital e o vi. Ele foi
a primeira pessoa que vi. Meu braço e ombro estavam enfaixados e
a minha perna doía como se estivessem queimando-a em carne
viva.
Mas Harvey estava lá.
E ainda está, por mais que eu o tenha puxado para a minha
mina de sonhos falidos igualmente.
— Sim. Nós vamos. — Suspiro.

Há uma parte de mim que não consegue dormir em paz


sabendo que Harvey Bird, a melhor pessoa que conheci na minha
vida, gerou uma dívida estudantil. E por minha culpa.
Depois de ser meu melhor amigo, a única pessoa que restou na
minha vida depois do ensino médio, Harvey também foi, durante
muitos e muitos anos, meu parceiro de dança. Nós começamos a
treinar com dez anos. Depois de eu ter me apresentado em vários
concursos de beleza com a intenção de apenas patinar, sorrir e
mandar um beijo para os jurados. Eu estava começando a crescer e
a paciência da minha mãe estava começando a ir para o ralo.
Depois de ter engravidado pela terceira e última vez do meu irmão,
o Barr, ela queria que eu finalmente chegasse ao topo de qualquer
concurso.
Na minha aula de ballet clássico havia esse garoto, Harvey, que
sempre possuiu cabelos crespos formados em black power e olhos
pretos de uma cor viva e simpática. Harvey sempre foi bom nas
duas coisas que Salt sempre se orgulhou; no hóquei e na dança no
gelo. Apesar de seu pai desejar que ele seguisse carreira como
jogador, Harvey teve um leve declínio ao perceber que na dança, ele
se divertia muito mais do que jogando.
Quando começamos a treinar, apenas fazíamos por diversão.
Em nossos tempos livres depois da escola e em lagos congelados.
Depois, passamos para a pista. Em seguida, abandonei os
concursos de beleza para total desespero da minha mãe e depois,
bem depois que estava acostumada ao Harvey e ele a mim, nos
tornamos uma dupla. Uma equipe. Ganhamos alguns torneios,
ganhamos foco, ganhamos destaque, toda a cidade sabia — e ainda
sabe — nossos nomes. Ganhamos prestígio, ganhamos tudo àquilo
que as pessoas mais almejam na vida, em pouco tempo.
Só até um dia.
Um dia que fiz péssimas escolhas, um dia que decidi que as
consequências não bastavam apenas a mim, teria que o levar junto.
Quando quebrei meu pé, desloquei e feri meu ombro, não fazia ideia
que Harvey Bird seria prejudicado. E foi. Tão carrasco e
violentamente, que sua vida não é mais a mesma desde o dia que
acordei no hospital. Não foi nenhum coma ou nada do tipo.
Porém, todos os dias em que acordo, todos os malditos dias em
que acordo, sinto a culpa me puxar novamente para a cama.
Fico minutos inteiros olhando para o meu pé, me observo no
espelho, vejo a cicatriz que percorre meu ombro direito e fico me
perguntando se poderia voltar no tempo. Se fosse magicamente e
cientificamente possível, as pessoas não veriam mais uma Nicola
que finge que tudo está bem, quando nitidamente não está. As
pessoas apenas me veriam como a Nicola Wolf, a patinadora que,
ao lado de Harvey Bird, conseguiu mais um estrelato. Mais um
recorde, mais uma dança fascinante para o seu portfólio, mais um
troféu. Mais um tudo.
Mas não foi o que aconteceu, certamente.
Harvey ficou sem uma parceira, demorou a se adaptar sozinho,
não conseguiu encontrar ninguém que estivesse tão bem quanto ele
— ou disposto a estar — e simplesmente parou de competir. Isso
resultou em sérios problemas; sem competir, Harvey ficou sem a
bolsa de estudos na United Salt, a universidade local. Sem a bolsa,
uma dívida imensa estudantil se iniciou. Uma que os pais de Harvey
não podem pagar enquanto ainda são donos de uma pequena e
empoeirada livraria no centro.
Sei que meu amigo diz que tudo está bem, que o importante é
eu estar saudável, inteira e viva. Mas eu digo que não mentalmente.
Se eu não tivesse sido tão estúpida ou tola, estaríamos bem melhor
do que hoje.
— Você vai sair?
Minha mãe perguntou me olhando do batente da porta.
Desde que saí do hospital, há um ano, ela gosta de observar de
longe e me pregar um susto sempre que pode. Acho que para dizer,
no fundo, que sempre estará lá por mim. Do jeito dela, é claro.
Estava quase pronta, só faltava o sobretudo, o gorro e o colar
de pérolas para sair. Espiei minha mãe. Ela também estava bonita e
bem vestida, com um sorriso bem espalhado pelo rosto que
chegavam até os olhos.
— Fogueira — resumi. — Harvey que ir novamente. Tem
problema?
— Não. Irei jantar com algumas amigas. — Minha mãe
respondeu, andando um pouco até parar atrás de mim, na frente do
espelho de corpo a corpo. — Você é tão bonita, Nicola. Tão esbelta
e bonita. Deveria voltar a ser modelo.
Consequentemente fujo dessas conversas. Às vezes engulo o
cereal matinal rapidamente, para não ter que responder. Às vezes
tento falar com Barr, emendo outro assunto ou simplesmente finjo
que não escutei. Mas, estar no quarto com ela, enquanto seus olhos
estão acessos de esperança, é complexo.
Não quero, jamais, me enfiar dentro de um vestido apertado,
espalhafatoso, acenar e sorrir de novo. E nem tirar fotos.
— Por favor, querida, não se atrase para o recital do Barr
amanhã à noite. — Ela tenta novamente, afagando meus cabelos.
Fico terrivelmente aliviada que ela tem um compromisso, que
essa conversa se torna apenas subentendida. Não quero que minha
mãe me leve a mal; não acho um saco ser modelo. Mas, de longe,
não é o que eu quero fazer.
Só não tenho certeza do que serei daqui para frente.
Confirmei pelo espelho, passei algumas gotas de perfume no
pescoço e me considerei pronta. Harvey costuma dizer que me visto
como uma política; pérolas, perfume, cabelo sempre muito bem
penteado e roupas impecáveis. Mas sei que é apenas um reflexo do
meu eu pequena, que “gostava” de se vestir seriamente.
Apenas desejei que minha mãe tivesse um bom jantar e
caminhei para a sala, onde Barr, meu irmão mais novo, estava
arranhando algumas notas no piano. Ele tocava com os cotovelos,
batendo nas teclas como um animal — de propósito. Meu pai, por
outro lado, tinha a paciência de falar para Barr ser um pouco mais
astuto e delicado com o instrumento.
Uma coberta e alguns copos de uísque e leite se encontravam
na sala. Desde o divórcio recente, meu pai se mudou para o sofá,
sem avisos ou medidas prévias de que iria arranjar outra casa.
Abaixo do homem de barba por fazer e olhar vago, ainda está o
homem que foi meu herói algum dia. Mas não tenho dever algum de
esculpi-lo.
— Vou sair, pessoal — disse a eles. — Não me esperem
acordados!
Meu pai sorriu e Barr achou a frase adulta demais. Vi em seus
olhos que ele desejava ter vinte e dois anos logo, assim poderia se
gabar de uma vez que pode sair e voltar a hora que quiser.
Do lado de fora, uma Salt tomada pela noite me acompanhou
até meu carro. A noite gelada e cheia de neblina não era atípica. Um
dia ensolarado e sem nuvens, com certeza, é um dia que jamais
presenciei. A caminhada até meu carro foi menos barulhenta do que
pensei.
Ao meu lado direito, minha vizinha estava engolindo o rosto de
sua nova conquista da semana. Ver Aster Campbell se atracar com
garotas diferentes todos os dias se tornou uma rotina. Às vezes, ela
até mesmo fingia que não se importava com nada e pedia para
minha irmã, a Nancy, falar que eram namoradas, assim uma garota
qualquer não ficaria mais ao seu encalço.
Só que, dessa vez, há algo diferente nessa garota. Talvez algo
conhecido. Talvez algo único que só Aster consegue.
Não me orgulho de ter parado no meio da minha caminhada
para tentar adivinhar quem Aster Campbell estava beijando hoje. As
duas, no escuro da varanda de Aster, enquanto os dedos da
primeira — que é a minha vizinha — enrolavam-se no cabelo ruivo e
sedoso da outra. Conheço aquelas costas, conheço aquele cabelo
ruivo.
Ah, certo.
Acho que sei.
Um sorriso se estendeu pelo meu rosto assim que entendi o
que estava acontecendo. Entendi perfeitamente, o que estava
acontecendo.
— Boa noite, meninas — cantarolei com prazer.
Em dias normais, jamais cumprimento Aster e sua má
educação, mas hoje, especialmente hoje, quero ser hospitaleira.
O som da minha voz causa o que eu queria; a garota ruiva que
está beijando Aster para, como se estivesse se culpando pela
varanda escura não ser obscura o suficiente para lhe esconder ou
engolir. Vejo seu corpo paralisar e ela entrar na casa de Aster
novamente, de uma vez, só como se não estivesse acreditando que
foi pega e pior, que foi reconhecida e flagrada.
Aster, por outro lado, não se deixa abalar. Seu cabelo preto e
cacheado, de raiz crespa, está jogado para trás nessa noite, com
uma bandana vermelha os prendendo como se pudesse se proteger
do inverno eterno da nossa cidade. Ao ouvir a porta bater, Aster
cruza os braços em total desprazer na minha direção.
— Não precisava disso.
— Achei que já tinha parado de brincar com as garotinhas
indefesas da cidade, Aster. — Me aproximei do meu carro, tentando
espiar dentro da casa dela, que continuava escura e fechada como
se não houvesse alguém lá dentro. — Sabe no que está se metendo
e sabe que é um erro.
— Certo, Nicola. — Aster sorriu para o chão. — Adoro seus
conselhos políticos. Quer que eu pegue um palanque lá dentro ou
um microfone? Os cidadãos de todo o país querem saber o que
você pensa sobre essa situação.
Sorri novamente. Algo que fez Aster suspirar e apenas vacilar
um pouco.
— Adoraria — pontuei. — Mas irei me atrasar. — Abri a porta
do banco da frente e acenei. — Beijinhos, Aster!
Pisquei e mandei alguns beijos, em repetidas vezes. Queria
acenar para a garota que fugiu assim que me viu, mas esse será um
deleite que terei apenas quando chegar à fogueira.
3

OS JOVENS DE SALT NÃO TÊM muita opção. Ou fazem um


churrasco de frente para um lago, ou patinam nas pistas de gelo, se
acomodam em cabanas nas montanhas ou fazem uma fogueira no
meio de uma reserva florestal. Entre eles — entre nós, quero dizer
— existe um lema chamado “Nada de legal ou importante acontece
em Salt”, talvez, porque no fundo, nós queremos acreditar que só
temos essas poucas opções.
A última opção sempre atraiu mais pessoas. Isso porque todos
os jovens de Salt pensam a mesma coisa; sexo em um lugar aberto
e isolado é excitante e proibido. Não é lá muito criativo, mas as
pessoas da cidade não querem ser criativas, de fato.
Sempre que chego à fogueira, me sinto uma idiota. Não por não
gostar de festas, eu gosto. Mas passei a detestá-las quando
comecei a encontrar defeitos na minha vida. Há uma Nicola antes
das festas e uma Nicola depois das festas. Agora que sou uma
ninguém como qualquer pessoa em Salt, não me importo com elas.
Harvey não. Ele consegue ser o centro das atenções por onde
passa. E, assim que chego ao novo local da fogueira, ele está
abraçado com Gwen Hallister, a melhor amiga de Aster Campbell.
Os dois estão sentados em um tronco velho de árvore envolta
da maior fogueira da campina aberta. Os dois trocam risinhos e
conversam tão próximos um do outro, que sinto a atração dos dois
ser completamente palpável. De vez em quando, as garotas não se
aproximam de Harvey com medo dele estar em um relacionamento
longo e duradouro comigo, depois que percebem que somos apenas
bons amigos, elas atacam.
Os garotos também, mas isso é sempre cômico de se ver.
— Ela chegou! — Harvey comemora ainda abraçado a Gwen.
Hallister, que tem cabelos loiros e poderosos olhos azuis, não
fica muito interessada pela minha presença. Mas, se me aturar quer
dizer que Harvey lhe dará mais atenção, ela saberá jogar.
— Vodca? Cerveja? Uísque? Não seja chata essa noite, pegue
algo que te esquente, Nikki. — Harvey aponta na minha direção.
Gwen dá uma gargalhada calorosa. — O que vai ser?
— Cerveja está bom. — Abafo as mãos. — Pode ser?
— Irei pegar. — Harvey pisca.
Ele se afasta de Gwen com um toque em seu nariz e ela afasta
um pouco do tronco de madeira que está sentada, para eu poder me
aconchegar melhor. É um ato bastante educado, mas é mecânico.
Estar numa fogueira é saber que, ao menos, a pessoa que
organizou tem noção que vivemos em uma cidade de apenas uma
estação.
Gosto de observar as pessoas também.
Todas elas possuem segredos que tentam esconder quando
estão numa festa.
Quase sempre fico sozinha, dependendo de quem Harvey Bird
está beijando em uma noite ou dançando, ou nem aparecendo. Já
descobri alguns casos que os jovens da cidade mantêm. Sei qual
deles vendem as drogas e sei qual batiza as bebidas. Sei qual deles
não deveria estar aqui essa noite e qual mentiu para estar. Qual
casal deseja terminar e qual casal deseja se formar. As pessoas são
tão transparentes que apenas um pouco de tempo observando-as
consigo definir mais do que quero.
Gwen fica em silêncio, o tempo todo em que Harvey se mantém
longe, e quando volta, posso até imaginar que ela pensa em algum
assunto para puxar. Felizmente, não encontra nada que possa
trazer à tona.
— Cerveja. — Harvey discorre me estendendo um copo. —
Mais alguma coisa, Rainha?
— Está ótimo, súdito. — Pisco. — Pode ir.
Quero que Harvey fique longe de mim. Que ele vá se divertir.
Às vezes, ele me deixa sozinha, porque acha que irei me
rebelar, que irei beber tanto que dançarei como uma garota
desesperada por atenção, que arrancarei as pérolas do meu
pescoço e pularei no colo do primeiro garoto que passar por mim.
Sei que estou acabando com a diversão dele, mas há certas coisas
que não posso evitar.
Decido que é hora de observar os outros na festa. Me levanto
do tronco em que estou e caminho até a mesa de bebidas. A
fogueira, a grande arremessa de troncos de árvores e madeira
velha, no centro de um vale aberto é até bonita de longe. As
pessoas se amontoam em grupos e bebem. Conversam e se
beijam. Até mesmo se apalpam.
Encontro quem eu não gostaria e até mesmo quem eu gostaria
de encontrar.
Em um grupo afastado dos demais, como se fizessem parte de
uma nobre realeza da campina, está Garret Cox e Taylor Moore.
Garret que segura Taylor pela cintura, não tira seus olhos de mim
enquanto a beija pelo pescoço. Os cabelos de Taylor chegam até a
cintura dela e ela os enrola nos dedos, enquanto o namorado
discorre algumas palavrinhas sacanas que conheço bem.
Conheço tão bem que chega a ser enjoativo.
Ergo meu copo de bebida discretamente para Garret Cox, meu
desprezível ex-namorado que sempre parece me vigiar. Como se
temesse que um dia eu dê com a língua nos dentes. Gosto de
brincar com a sanidade de Garret. De vez em quando, até finjo que
estou bêbada o bastante para falar com ele. Ou finjo esbarrar em
seus ombros.
Garret sente um pingo de medo de mim. No fundo, sei que não
sou capaz de fazer nada contra ele.
Mas enquanto ele não souber disso, ainda posso continuar a
me divertir.

Estou pisando em um panfleto do Salt-In.


Há alguns deles poluindo a campina por toda a parte que me
encontro. Sinto-me tentada a ler sobre o que se trata o tal torneio,
mas só de me imaginar lendo qualquer que seja o panfleto, me sinto
com tédio.
Estou no meu terceiro copo de cerveja, enquanto engulo alguns
punhados de amendoins e caminho sem rumo.
Harvey está no centro de um grupo, conversando
animadamente, enquanto fala sobre sua carreira longa e promissora
na dança no gelo. Quando éramos menores, as pessoas caçoavam
de Harvey o tempo todo. Quando passamos a ganhar torneios e
competições, todos passaram a venerá-lo, calando fortemente suas
bocas.
Em momentos como aquele, sou uma covarde.
Não me aproximo de Harvey e nem de sua legião de fãs que se
torturam por ouvir falar de algo que enche seu coração de saudade.
Me sinto a completa responsável por ninguém mais poder assistir
Harvey Bird no foco. Tento repetir a mim mesma que, se Harvey
quisesse uma nova parceira, ele teria encontrado. Mas desde que
meu médico me proibiu de qualquer movimento brusco, forçando
meu ombro e meu pé, sinto que eu sou a razão.
Que ele agarrou a consequência como sua.
Então me afasto.
Dou alguns passos para trás e seguro bem firme meu copo de
cerveja, não querendo ouvir mais nenhuma palavra que me lembre
o que fui e o que me tornei em um espaço de apenas um ano.
Mastigo ferozmente o amendoim e caminho até os carros. Sei que
não irei embora, não bebendo tanto, mas um momento sozinha para
respirar — sem sentir o cheiro de uma fogueira e madeira
queimando — é o que eu preciso.
Sentada no capô de um carro qualquer, Taylor Moore está
conversando com Aster. A primeira garota enrola a ponta dos dedos
no cabelo ruivo, enquanto Aster tenta controlar seus dedos na coxa
de Taylor. Se Aster quisesse e Taylor fosse corajosa, os dedos de
Aster estariam dentro de Taylor em apenas instantes.
Quando me aproximo e as duas percebem, Taylor ameaça
falsamente Aster; aponta o dedo na cara de Aster Campbell e avisa
que, se ela olhar novamente para Garret irá se ver com ela. Tento
me agarrar ao melhor teatro de pessoa inconveniente possível; se
eu desse risada, Taylor Moore iria perder seu tempo comigo — e eu
perderia o meu.
Aster, no entanto, não fica surpresa com o tom de ameaça,
apenas concorda. Sem esperar por mais nada, Taylor desfila para
longe de nós, rebolando os quadris e jogando o cabelo ruivo para os
lados. Até sumir entre as árvores, onde viveria seu romance intenso
e altamente estúpido com Garret.
— Ela é boa — elogio, apontando para o lado que Taylor
desapareceu com o copo de cerveja. — Como não está matriculada
no curso de artes cênicas da United Salt?
Aster enfia as mãos nos bolsos e me encara, impassível.
— Acho que precisamos trocar algumas palavrinhas. — Aster
diz séria.
Quero rir.
Não, na verdade, quero gargalhar. A detestável Aster Campbell
não quer mesmo falar comigo. Quer? Que favor ela pedirá? Sei até
como isso irá começar.
Não sei por que não quis vir à fogueira, sempre há algo para
me divertir. Seja um garoto socando o outro, ou uma garota
defendendo a namorada hétero dela.
— Pode falar — respondi, tentando esconder que estava
apreciando tudo aquilo.
— A Taylor, ela...
— Está traindo Garret com você — completei. Até mesmo fingi
que coloquei a mão na boca para esconder minha língua grande e
afiada. Como o esperado, Aster suspirou, exausta. — Sei. E daí?
— Ela sabe que você viu a gente.
— Se queriam privacidade, o melhor lugar não era uma
varanda, Aster. — Bebi um pouco mais da minha cerveja. — E aí?
Aster se aproximou de mim, dando um passo. Seus olhos estão
focados nos meus e eu tive que me conter para não rir mais.
Ela estava tentando me atrair. Atrair para sua teia de mentiras.
— Tô ligada que você tem motivo o suficiente para querer que o
Garret caía daquele cavalo dele. — Aster fez uma piada. Mas ao
meu silêncio, ela se conteve para não rir. — Sei que você e o Garret
namoraram por um tempo. — Aster começa novamente, coçando a
nuca. — Será que pode manter isso entre nós?
— Entre eu, você e a Taylor? — Fiz questão de perguntar. —
Não sei... Será que ela está bem com isso?
— Olha, Nicola. — Aster perdeu um pouco sua paciência. —
Sei o que está pensando, mas não sou idiota. Estou apenas me
divertindo e se a Taylor não aguenta aquele mané do Garret, quem
sou eu para culpá-la?
— Acha que ela é hétero, mesmo? Ou só quer atenção?
— Não importa o que ela é ou deixa de ser. Pode guardar esse
segredo por mim?
— É melhor pedir por Deus ou por qualquer outra pessoa, pedir
por você é uma péssima forma de me convencer.
Tudo em Aster Campbell me lembra um caos.
Seus cabelos, cacheados e bonitos, sempre vivem
embaraçados e embolados atrás de uma bandana. Os esmaltes
vivem descascados, nunca a vi usar um esmalte de unha completa.
Suas orelhas são preenchidas por furos, mais de cinco em cada.
Nunca está de batom — não que isso seja um defeito, mas é um
detalhe. Seus lábios sempre estão rachados pelo tempo péssimo.
Há sempre uma coleção de camisetas largas e manchadas de cloro
propositalmente. Aster e Harvey chamam aquilo de moda ou estilo,
já eu considero o cúmulo.
Porém, em Aster, toda aquela confusão de cores, desleixo e a
mistura de “não dou a mínima para nada” combinam perfeitamente.
Chega até ser harmonioso de se ver.
Aster também carrega um colar de cadeado em seu pescoço,
como um lembrete.
É como me olhar no espelho ao contrário. Dá até certos
calafrios pensar em não ter o cabelo organizado como o dela, ou até
mesmo usar uma distopia de cores. Mas em Aster até que fica legal.
Ela tem aquele jeito despreocupado que deixa quase tudo bastante
jovial e legal.
Toco meu colar de pérolas e dou de ombros.
— Faça o que quiser e com quem quiser, Aster. Mas não pense
que guardarei todos os seus segredinhos.
4

A FOGUEIRA SEMPRE LEVA mais tempo do que posso dar.


As pessoas realmente esperam que tudo aquilo que fazem em uma
festa seja socialmente aceito ou até mesmo escandalizado. Mas
tudo o que todos faziam eram sempre a mesma coisa. Ao final da
noite, agradeci por Harvey cambalear até o meu abraço e pedir para
levá-lo para casa. Descobri que ele não foi com seu carro e veio de
carona com Gwen, a quem teve que socorrer uma amiga que
bebera demais até esquecer o próprio nome.
Levar Harvey para casa sempre foi o ponto alto da nossa noite.
Ele conta comigo para ir para casa, eu conto com ele para
frequentar algum evento do qual sempre tentei evitar.
Adormecido ao meu lado no banco do passageiro, Harvey
dorme feito um anjo. Seu sono pesado e completamente alheio à
cidade até me contagiou. O relógio batia duas da madrugada e os
termômetros marcavam quase quatro graus. Era apenas outono. As
aulas na faculdade iriam se encerrar em breve e o Halloween ainda
nem tinha passado.
Quando cheguei à casa de Harvey, não muito longe da minha, o
acordei rapidamente. Ele se abraçou a mim e juntos, caminhamos
para dentro de sua casa mal iluminada. Cresci assistindo filmes em
que as pessoas deixavam seu lar para estudar, onde vivemos, não
precisamos disso. As pessoas se aconchegam com seus pais e
vivem bem.
Levo Harvey até seu quarto, subindo um a um os degraus.
Ainda preso ao meu corpo, ele se deita na cama. Está balbuciando
palavras embriagadas que apenas me deixam levemente risonha.
Há um panfleto do Salt-In preso em sua bota, o pego rapidamente o
amasso com uma mão, enfiando no meu bolso traseiro.
Lembrete para jogar fora mais tarde.
— Boa noite, Harvey. — Toco seus olhos, já fechados.
— Boa noite, Nikki. — Ele diz, murmurando e virando de lado
na cama, até cair no sono.
Penso em me aninhar ao seu lado e dormir. Mas também penso
em minha mãe me enchendo de perguntas pela manhã. Ter vinte e
dois anos ainda não é sinal de liberdade para mim.
Me aproximo da mesa de estudos de Harvey, onde uma
explosão de tintas e cores me convidam para dar uma espiada. Há
olhos que ele desenhou que julgo ser de Gwen; há uma foto minha
que Harvey pintou com carvão. Estou patinando, olhando para a
plateia, sendo viva. Suspiro, passando os próximos desenhos para o
lado.
Há algumas cartas da United Salt abaixo de tantos desenhos
bonitos. São cobranças e contas. Contas à mão e cobranças feitas
pela reitoria da faculdade. Leio todas aquelas letras minúsculas,
todos aqueles números que deveriam fazer uma família viver bem
por até um ou dois anos. Olho para Harvey, apenas com uma
chama de esperança que ele tenha me visto aqui, plantada, ainda
em seu quarto, no escuro, mas me apegando à pequena luz que
vem da janela.
Os lacres de todos os envelopes estão violados e alguns
carregam datas que provam que começaram a acumular apenas há
algum tempo. Quase sete meses de dívidas. Não sei definir se
felizmente ou infelizmente, mas Harvey não acorda. Ele continua
abraçado confortavelmente a um travesseiro, presumo que
sonhando num momento como esse.
A culpa arranha minha pele, me convidando para fazer algo
sobre isso ou apenas deixar meu melhor amigo se afundar aos
poucos.
A dívida estudantil de Harvey é bem maior do que eu pensava.
Passei uma noite toda em claro.
E quando cheguei ao meu turno na livraria na manhã seguinte,
Harvey Bird estava consciente, nem um pouco bêbado ou sonolento
e estava auxiliando uma garota a comprar um livro de poesia.
Quando Harvey termina de ajudá-la e a garota paga pelo livro,
ele se aproxima de mim. Alguns clientes estão bebendo café
enquanto desfrutam de suas leituras escolhidas, então precisamos
fazer silêncio. Ele sabe que quero falar alguma coisa pela maneira
que divido meu peso entre meus pés e estou sorrindo sem mostrar
os dentes desde o momento que Harvey me encontrou pela manhã.
— Já sei como você pode...
— Não quero seu dinheiro!
A frase me faz apertar os lábios.
Harvey sabe que tenho um fundo bastante generoso que
guardei depois de algumas competições que ganhamos. Mas jamais
quis aceitar. Nem quando as dívidas começaram. Ele se recusa.
Acha que uma solução divina cairá do céu em algum momento.
Qual eu não sei. E não estou nenhum pouco disposta a esperar por
uma.
Então, trato de colocar um sorriso perspicaz em rosto e dar de
ombros. Ajeito a aba do boné verde em cima da minha cabeça.
— Não é meu dinheiro, Harvey. — Enrugo o nariz. — Me deixe
terminar de falar, por favor. Me escute!
Harvey tem certeza que o que irei falar irá o insultar de muitas
maneiras imagináveis, mas como não há opção, ele apenas deixa
que eu prossiga.
— Serei rápida e franca. Ontem quando te deixei em casa, eu vi
as cobranças da faculdade na sua escrivaninha... — Me apresso a
dizer logo. Antes que Harvey exploda em sentimentos. Vejo olhar
para os lados, impaciente. — Vi quanto precisa pagar e...
— Já falei mil vezes, Nicola. — Harvey nunca me chama de
Nicola. A não ser quando quer ser sério e objetivo. — Não se sinta
culpada ou responsável por uma dívida que é minha. Irei fazer
algum acordo.
— Não precisa fazer acordo nenhum se me escutar!
Harvey engole em seco. Está um pouco receoso de discutir um
assunto tão sério em horário de trabalho. Ele estuda à tarde na
United Salt e eu, à noite. Duvido que encontre algum tempo ou
espaço para me escutar verdadeiramente.
Em silêncio, Harvey trava o maxilar, numa clara demonstração
que irá recusar qualquer que seja meu plano.
— Bem. — Suspiro. — Passei a noite toda pensando em
alguma coisa que pudesse ajudar. Alguma promoção na livraria, um
segundo emprego, que você aceite a parcela de dinheiro que ainda
tenho no banco, mas nenhuma seria possível. — Harvey nega com
a cabeça, só para pontuar o que eu já sei. — Então, eu pensei que,
se você quer realmente uma quantia de dinheiro que seja boa, terá
que partir de você mesmo. E além do mais, do seu próprio suor e
esforço. Estou certa? — pergunto, com esperança na voz.
— Depende. — Harvey retruca ilegível.
— Salt-In — digo de uma vez. Vejo meu amigo arquear uma
sobrancelha. — O torneio que você me convidou. Acontecerá no
final do inverno... li a noite toda sobre o evento. É o primeiro feito
aqui na cidade e terá algumas atrações e competições. Uma delas é
dança no gelo.
— Você não compete há um ano, Nicola.
— E você há seis meses — rebato com firmeza. — Não estou
falando de mim. Se você se inscrever nessa competição, poderá
ganhar um prêmio bastante generoso em dinheiro. — Aponto para o
panfleto que levei preso ao meu avental. Aponto para o primeiro
lugar, a quantia de noventa mil libras em dinheiro. — Não é
nenhuma pegadinha e nem nada do tipo. O segundo lugar leva
cinquenta mil libras e o terceiro, vinte mil. De qualquer forma, seja
qual lugar você conquistar, consegue pagar toda ou metade da
dívida.
— Esquece, Nikki. — Harvey suspira, passando a mão pelo
rosto. — Por mais que seja uma boa ideia, ainda não é a solução.
— Mas pode ser! — Sigo Harvey pela livraria, quando ele não
quer mais me escutar. — As inscrições irão se fechar nesse final de
semana, e todas as modalidades da dança no gelo que eles estão
escolhendo são todas que você adora competir ou gosta de inventar
alguma coisa nova ou melhor. Quando éramos parceiros!
— A resposta é não.
— Por quê? — Bato meu pé no chão. — Me diga ao menos um
motivo para não tentar, Harvey Bird?!
O fantasma de um sorriso ameaça aparecer nos lábios do meu
melhor amigo, mas é apenas uma enganação enquanto ele finge
conferir o preço de um livro já etiquetado.
— Porque... — Ele suspira novamente. — Não acho que seja
uma boa alternativa, Nikki. Pense comigo... — Harvey pede. — Terei
que treinar quase vinte e quatro horas por dia para queimar tudo o
que consumi nos últimos meses. Preciso voltar a comer melhor,
dormir melhor... Não posso nem pensar na possibilidade de me
envolver com alguém, todo meu tempo será tomado para algo que
não me garante em nada. Posso me inscrever nesse negócio e ficar
em último lugar. Estarei endividado e ainda, serei um perdedor. É
isso o que quer?
— O que eu quero — começo. — É que você não se sinta mal
todas as vezes que fala sobre a dança. Sobre nós.
— Quem disse que eu fico mal? — Harvey sorri genuinamente.
— Foi a melhor fase...
— Que foi interrompida! — Sobreponho sua voz. — E ainda de
uma maneira que nem ao menos lhe avisou que seria. Harvey, me
escute, como acha que conseguirá pagar um valor tão alto? As
livrarias estão fechando as portas ano após ano. Semestre após
semestre. Dia após dia. As pessoas não estão mais apegadas a
encontrar um livro pessoalmente. Em um clique, no conforto da casa
delas, ou até mesmo em qualquer lugar, elas podem ler ou comprar
um e-book.
Harvey me encara severamente, como se não acreditasse que
está tendo essa conversa comigo. Ele passa os olhos rapidamente
por cima dos meus ombros, para além das estantes de livro que
encobrem nosso debate — saudável.
— Eu... Irei me formar na faculdade em breve, Nikki. Posso
arranjar outro emprego se me mudar para Londres. Como a Nancy
fez.
Esbanjo um sorriso carregado de escárnio.
— Nancy teve sorte — discorro. — É aquela pessoa que teve
sorte uma em um milhão. Eu andei pesquisando, Harvey! Algumas
empresas, quase a maioria delas, não contratam pessoas que
possuem dívidas estudantis. É quase como se quisessem que elas
falhassem com suas próprias vidas.
— Nikki...
— Me escuta — peço de novo. — Se você começar a treinar, se
topar competir, nós podemos ao menos conseguir o top três.
Imagina, qualquer que fosse a posição, seria boa. Ajudaria não só
você como seus pais.
Nesse momento, julgo que toquei em um assunto delicado.
Estou prestes a pedir desculpa quando Harvey solta o ar todo do
corpo.
— Meus pais. — Harvey passa a pensar. — Eles só falam na
dívida o tempo todo...
— Então! — Pulo no lugar, vibrando por dentro. — Se nós
corrermos conseguimos encontrar uma parceira para você até
sábado.
— Mas treinar exige tempo e dinheiro, Nikki. Precisamos de
uma treinadora!
— Está olhando para ela! — Abro meus braços. Harvey me
lança uma risada carregada de desdém, mas deixo que ele deboche
de mim. Ao menos um pouco. — Tenho tantos anos de carreira
quanto você. Precisa de alguém que confie e preze nessa
enrascada. Essa sou eu!
— Ao menos concordamos que é uma enrascada! — Harvey
pisca, tocando na aba do meu boné e a colocando para baixo.
Harvey molha os lábios com a língua, ele apoia apenas um lado
do corpo e do peso em uma perna e olha para os lados, duas vezes,
antes de me encarar, por fim.
— Não irá desistir, não é? — Quer saber, sorrindo de lado e
demonstrando cansaço em argumentar.
— Nunca na vida — respondo, mordendo meus lábios.
— Faremos o seguinte. — Harvey aponta o dedo na altura do
meu nariz, apenas para tocá-lo. — Eu digo sim para esse torneio, se
você aceitar treinar quem eu quiser. Não importa se for uma mula
empacada ou uma garota que precisaremos ensinar como andar em
terra. Está me entendendo?
Não importavam quais eram as condições de Harvey. Ele
finalmente estava entendendo que só estou fazendo tudo isso para
seu próprio bem. Tento me convencer de que é apenas para seu
bem e não para diminuir a culpa que carrego constantemente todos
os dias.
— Entendido!
Posso jurar que meus olhos estão brilhando.

Nikki é meu apelido.


E também foi meu nome artístico.
Por muitos anos competi com meu nome, Nicola, nos concursos
de beleza, mas quando comecei a ser patinadora profissional, adotei
o apelido de Nikki. O apelido soa despojado e divertido ao meu ver.
Sempre achei curto e poderoso demais. As pessoas se lembrariam
do meu nome e não demorariam a falar dele quando necessário.
Nikki Wolf estampava a maioria dos meus prêmios e medalhas.
Havia uma jaqueta que a mãe de Harvey me deu quando ganhei
meu primeiro torneio.
Está escrito WOLF em letras brancas no tecido jeans preto.
Estou usando a jaqueta quando pego meu lugar na aula de
Introdução aos Originais na faculdade. Minha mãe acha que fazer
Literatura Inglesa é o mesmo que não fazer nada. Mas eu gosto do
meu curso. Não é o que eu julgue ser o ideal ou o perfeito para mim.
Mas gosto dele.
Por muito tempo achei que eu seria apenas patinadora
profissional, agora que não posso mais e não sou, estou em
constante busca do que posso ser além de ser uma dançarina.
Quero dizer, quando você encontra algum profissional em algo, você
não se pergunta o que ele é depois da profissão. Ou se pergunta,
depende quem você é. Eu não. Nunca me perguntei o que
jogadores de futebol fazem além de jogar, ou o que as modelos
preferem depois de tirar fotos com sorrisos genéricos.
Talvez essa não seja a história da garota que descobre que
pode, magicamente, voltar a patinar. Talvez essa seja a história da
garota que precisa descobrir quem ela é por baixo da camada de
medo e gelo.
A aula termina, não sem antes ter um último trabalho do
trimestre; escrever cinco capítulos do começo de algo que pode ser
um livro ou um manuscrito. Nessa aula, enquanto arrumo meus
livros, consigo avistar Aster ao lado de Taylor. Elas conversam,
como amigas. Quando a aula se encerra, Taylor corre na direção da
sombra que Garret Cox é para ela. Eles se beijam na frente de
todos, não se importando com nada.
No campus, encontro Harvey que me convence a ver uma
partida do jogo de hóquei do time da faculdade.
— Esqueci completamente que hoje é dia de jogo — lamento,
segurando um prato azul de nachos com bastante queijo derretido,
enquanto ando de lado para conseguir um lugar. — Assim as
pessoas podem ser os bárbaros que tanto gostam de ser.
— Temos que ficar de olho em qualquer pessoa que patine. —
Harvey me lembra. — É por isso que fiquei um pouco mais no
campus, se encontrarmos uma líder de torcida ou até mesmo uma
Tormenta que patine adequadamente, saberemos quem escolher.
Fito Harvey, que está com os olhos presos na pista de
patinação gelada que a United Salt é dona.
— Uhu. — Me animo, fazendo um bico. — Alguém está mesmo
se enlaçando no meu plano. Me sinto até melhor. — Suspiro alto e
falsamente.
Harvey revira os olhos apontando para a arena de patinação no
gelo à nossa frente com o queixo.
A faculdade possui alguns times importantes. Existe o time de
hóquei masculino, onde os jogos são violentos, barulhentos e
sempre caem na mesmice. É um bando de homens que amam
socar o rosto um do outro. Há sempre algum pedaço de dente ou
gotas de sangue por toda a extremidade do gelo. Já o feminino, é o
mais interessante. Além de elas serem mais comportadas,
talentosas e focadas, é mais emocionante. Uma vez, Harvey e eu
quase passamos mal de tanta tensão ao esperar que um jogo
desempatasse como precisamos que aquele acontecesse. No final,
as Tormentas venceram.
As Tormentas são o time principal.
Aster é uma delas. É a capitã, para ser exata.
Sua camisa larga e vermelha das Tormentas está conectada
com o número dez. O meu número da sorte, preso em suas costas,
desfilando para todos os lados. Não basta Aster ter o mesmo
número da sorte que o meu, ela se acha dona dele. Além do grande
número, está estampado o sobrenome Campbell em letras grandes
e destacadas. É uma daquelas camisetas que outras porções de
garotas se matam para vestir.
— O que acha da Taylor Moore? — Harvey aponta com o nariz
para a ruiva que acabara de pegar um lugar na frente do camarote
da arena para ver o jogo ao lado de Garret. — Ela é muito boa.
Patina por diversão, se você a aperfeiçoar pode ser...
— Garret não deixaria que Taylor passasse nem um segundo
perto de mim — digo interrompendo-o. Harvey me encara. — Não
que ele mande em algo, mas Taylor obedece, assim como ele a
obedece. Se quisermos Taylor no nosso time, precisaremos
convencer Garret primeiro e, definitivamente, não é algo eu quero.
— Mané. — Harvey murmura, enfiando o canudo branco e
vermelho entre a boca e puxando o conteúdo do copo plástico.
— E quanto a Gwen?
— Ah. — Ele engole o refrigerante. — Gwen disse que não é
muito boa. Apenas patina por patinar, para se considerar uma
cidadã oficial de Salt. Mas não é nada profissional.
— Que pena — minto descaradamente.
Nenhuma delas me dá vontade de acordar de manhã, no frio,
no auge de uma geada para treinar. Qualquer que fosse a escolha
de Harvey teria que valer à pena. Quase me esqueço que é ele que
escolherá a própria parceira. Eu sou apenas um apoio. O bichinho
vermelho do mau no ombro de Harvey contando os pequenos
podres de todo o mundo.
Essa é a diferença entre nós.
Harvey acredita em um universo melhor; já eu sei perfeitamente
quem o comanda.
O jogo começa.
Até Harvey e eu entrarmos em um acordo sobre as garotas que
tem nossa idade — ou uma idade avançada o bastante para
competir sem o consentimento dos pais. Até Aster, com um
capacete branco, fazer um zigue-zague, confundindo o time
adversário como se estivéssemos assistindo a um desenho
animado. Mal percebo quando solto um murmúrio impressionado,
como qualquer outra pessoa que assiste aos jogos das Tormentas.
De repente, não sou mais uma pessoa que sabe os defeitos e
detesta Aster Campbell, sou apenas mais uma que começa a
reconhecer seu talento dentro da arena.
Me sinto um pouco estranha. Tento procurar o motivo em
Harvey. Mas desisto.
Até ver o sorriso espantado que Harvey solta. Até ouvir como
as pessoas ficam animadas ao detectar Aster e seus movimentos
precisos e certeiros dentro da arena. Até sentir a vibração de uma
multidão universitária toda gritar por ela. Até pessoas imbecis como
Garret Cox sabem apreciar o talento puro quando encontram um.
Quando Aster faz o último e decisivo ponto, e ergue seu taco
para o alto para todos vibrarem — Todos mesmo — sinto que
Harvey tem algo a me falar. Preso em sua garganta, tentando sair o
mais rápido possível.
Por favor, ela não.
Por favor, ela não.
Por favor, ela não.
— E Aster? — Harvey sorri. Ele tem seus olhos fixos na garota
que arrancou o capacete e está comemorando, suada, enquanto
grita pela vitória. Ela recebe o apoio das líderes de torcida e de uma
garota que parece lacrimejar só por estar perto de Aster. — Ela é
ótima!
Relaxo meus ombros, arqueando minha sobrancelha e
comprimindo meus lábios.
5

PARA COMEÇAR, EU POSSO FAZER um monólogo bastante


ensaiado e completo sobre Aster Campbell.
Primeiro, que Aster e eu nos conhecemos quase a vida inteira.
Enquanto eu nasci e vivi em Salt sem conhecer o horizonte de
nenhuma outra cidade, Aster se mudou para cá quando tínhamos
apenas sete anos. Sua família vivia em Brighton. Então, posso
imaginar como foi o choque de se despedir das praias geladas, para
apenas asfalto e montanhas.
Aster vive sozinha com a avó desde que me conheço por gente.
Na época em que a “adorável” Aster Campbell se mudou para a
casa ao lado da minha, para a janela de frente para a minha, para o
outro lado do muro e da cerca que nos separa, sua avó havia lhe
colocado em quase todas as competições de concurso de beleza.
Então, sim, Aster e eu somos duas veteranas no mundo do laquê,
dos batons e das maquiagens excessivas apenas para crianças.
Se eu encontrava Aster enquanto caminhava para a escola, a
encontrava atrás de uma coxia, bocejando grosseiramente,
morrendo de tédio de estar ali.
Segundo, assim como eu, Aster desenvolveu uma extrema
repulsa quanto aos desfiles e aos concursos. Eu, propriamente dito,
fingia que gostava para agradar minha mãe. Mamãe ficava tão
animada quando me colocava em um vestido qualquer que
simplesmente não podia negar nada a ela. Já Aster só queria suprir
o tempo que a avó tinha de sobra; com uma aposentadoria
favorável, a sra. Campbell sempre demonstrou que Aster é sua
queridinha em uma vasta família. De vez em quando, minha mãe e
a sra. Campbell conversavam no jantar sobre Aster e eu,
competindo e sendo vizinhas. Elas prometerem que nenhuma
rivalidade entre nós iria se iniciar e que seriam adultas e maduras.
Bem.
Elas não foram.
Na primeira vez que Aster me venceu, mamãe ficou arrasada.
Lembro que ela comprou vinho barato na mercearia mais próxima e
bebeu tudo antes do meu pai voltar do trabalho. Quando eu venci
Aster pela primeira vez, a sra. Campbell se negou a falar conosco
por um ano inteiro. Mas naquela época, as duas garotinhas que
eram miss Salt, não estavam se importando com vitórias; sim, eu
sempre amei a cor do dourado de um troféu, porém, não era tudo na
minha vida.
Enquanto eu brincava de boneca e tentava não me sujar, Aster
sabotava os vestidos de outras concorrentes apenas por diversão.
Fazia caretas enquanto era maquiada, enfiava o dedo no nariz,
comia o que tinha conseguido dentro do nariz, chorava quando
penteavam seu cabelo e até mesmo corria atrás de mim, numa
brincadeira que, definitivamente, eu não queria participar.
Claro que, no momento, eu não entendia porque Aster era tão
horrível e encrenqueira. Mas com o tempo entendi que eu e ela não
queríamos estar ali, só queríamos ser e aproveitar a vida de duas
crianças de sete anos, mas que foram jogadas no mundo de
modelos e fotos perfeitas de uma vez só. Sem a intenção de uma
saída breve.
Novamente, apesar de entender o lado de Aster, não éramos
amigas. Nunca fomos. Sempre fui o tipo de criança cética e calada,
no meu canto, que adorava observar do que falar. Já Aster nunca
ficou parada ou quieta em silêncio por mais de dois segundos. A
sra. Campbell era chamada frequentemente no Jardim de Infância
que, sem surpresa, estávamos na mesma sala.
Preferia brincar sozinha ou com minhas bonecas do que sujar
meu cabelo de areia e lama como Aster sempre fez.
Outra coincidência, é que assim como eu, Aster é negra. Só
que seus cabelos são armados nas pontas e crespos na raiz. Fico
imaginando como deveria ser difícil para a sra. Campbell sempre
tirar areia dos fios de Aster. No colegial, Aster odiava usar as saias
do uniforme, usou calças todos os anos do ensino médio. Era pega
com uma garota diferente sempre que possível. Não dava a mínima
para o que os outros sussurravam dela pelos corredores. Não
aparecia nas festas mais badaladas e comentadas quando tínhamos
dezessete anos, mas quando aparecia, era a sensação de uma
noite inteira.
Só que entendi tardiamente que a sra. Campbell sempre amou
Aster do jeitinho que ela foi e ainda é.
Não era como mamãe que tentava moldar Barr e eu no mesmo
estilo de conduta do que o de Nancy.
Com o tempo, fomos crescendo. Aster em seu mundo, eu no
meu. Ela jogando hóquei, eu dançando. Ela com as garotas que
pareciam gemer mais para fora do que para dentro, eu com as
garotas que saiam escondido do meu quarto tarde da noite.
Ah, bem. Tem isso sobre mim que prefiro manter apenas dentro
do meu coração do que para minha família. Eu sou bissexual.
Se Nancy também fosse, seria mais fácil.
De vez em quando, minha mãe escuta rádio na cozinha, ouve
sobre o casamento de pessoas do mesmo gênero e se emociona.
Mas, às vezes, quando avista Aster com alguma menina, ela
simplesmente infla o peito e diz:
— Ainda bem que você não é como ela.
Sei que a frase pode significar um mar de opções,
probabilidades e características. Mas sei exatamente ao que mamãe
se refere. Bem, não sou exatamente igual à Aster, mas temos algo
em comum.
Entre uma fila de coisas que nos separam, ao menos sinto
inveja.
Ela é justamente a pessoa que sempre foi desde que nos
conhecemos. Jamais precisou se esconder atrás de um par de
saltos altos ou coroas de plástico para agradar alguém ou viver em
paz.
Novamente, Aster tem um ponto a mais; ela sabe quem é.
E eu ainda estou tentando me descobrir.
Harvey Bird foi sucinto e direto; ele queria Aster Campbell como
sua parceira. Mais do que tudo.
Tentei de todas as forças convencê-lo que até Taylor Moore
seria melhor do que a opção impossível que ele havia me dado.
Estava disposta 100% a falar com Garret primeiro. Mas Harvey
queria se vingar um pouco de mim; se eu o faria voltar aos treinos
diários, ele me faria suar para fazer Aster ser da nossa equipe. Só
tinha apenas quatro dias para trazê-la ao mundo do gelo artístico.
Da dança. O meu mundo. Do qual ela nunca entrou ou sequer
demonstrou interesse.
Só de pensar em Aster no meu dia a dia, é motivo para enrugar
meu nariz. Não consigo vê-la toda arrumada, nem metade de um
grão do que eu sou.
Mas tenho que admitir que ela é boa. Incompreensivelmente
boa quando patina.
Olhar para minha folha em branco sobre o que escrever em
Introdução aos Originais me deixa com tédio. Só irei me concentrar
em uma tarefa quando outra estiver encaminhada.
Como eu faria Aster dançar?
Meu Deus.
Até parece que Harvey só quer complicar tudo.
Ela não tem motivo algum para me ajudar, ela não é apegada
ao Harvey suficiente para abrir mão de sua má postura. E eu duvido
bastante que seja altruísta ao ponto de me ajudar apenas por me
ajudar. Apenas por querer guardar um cantinho especial ao lado de
Deus no céu — se é que ela acredita.
Posso usar o segredo de Taylor Moore ao meu favor, ou
qualquer outro segredo que ela queira saber. São muitos jovens em
Salt que são descuidados com suas próprias vidas e são muitos que
nem fazem ideia que eu sei algumas coisinhas sobre eles. Não me
importo em vender informações se isso fizer Harvey ganhar. Nem
me importo em abrir um pouco minha boca igual a minha mãe se
isso for me custar uma passagem só de ida para a primeira posição
dentro de um ranking.
Aliás, não medirei esforços algum que para fazer Harvey estar
no topo do pódio quando o torneio chegar.
Desisto de escrever qualquer coisa sobre meu trabalho e
decido focar em como chegar até Aster. Pego o panfleto do Salt-In
novamente, me avisando que as inscrições acabariam em breve.
Não teria nem tempo de planejar uma abordagem muito mais
natural ou séria.
Ela me consideraria uma desesperada? Com certeza.
Há defeito em tudo.
Uma mensagem qualquer não bastaria. Ou eu pagaria Aster
para estar lá ou usaria chantagem. Ou os dois.
Usar Taylor contra ela não é muito bom. Capaz de a própria
Aster contar a Garret que ele é enganado, só para se livrar de mim.
Deixo de lado o panfleto e desisto de começar o trabalho da
faculdade. A sra. Tent pode esperar um pouco.
No andar debaixo, Barr está assassinando os ouvidos da minha
mãe, enquanto a sequestra para ouvir o som gritante que sai do
piano na sala. Formo um “jóia” com meus dedos, elogiando
silenciosamente Barr por sua melhora. De melhora não tem nada,
mas jamais contarei a Barr que ele é péssimo no piano.
Se a música que sai de seus dedos lhe deixa feliz, quem sou eu
para estragar sua alegria?
Meu pai não está no sofá, mas usa seu habitual pijama de
inverno sempre. Está na garagem, nos fundos da casa, mexendo no
depósito de ferragens e madeira. Antes de tudo, antes de sermos
uma família que mal se fala, meu pai adorava construir casas nas
árvores para os filhos da vizinhança. Com o tempo, passou apenas
a desejar que ninguém mais o procurasse.
— Ei, gatinha. — Meu pai sorriu quando me viu. Eu estava
usando meu corriqueiro colar de bijuteria de pérolas, enquanto me
aquecia dentro de um suéter cinza. Ele não usava nada nos pés,
nem meias. — Tudo bem?
— Tudo. — Sorri um pouco.
— Quer algo?
— Só vim tentar espairecer. Preciso pensar em uma solução
para um probleminha.
— Será que posso ajudar? — Meu pai sorriu.
Ele era assustadoramente parecido com Barr. De todos os três
filhos, apenas Bartholomeu Wolf se parece com ele. Nancy e eu
somos cópias mais jovens e sérias de mamãe.
— Se isso for ajudar com uma serra, acredito que sim. —
Cruzei meus braços para me proteger do frio que vinha do depósito.
— O que está fazendo?
— Quero construir uma casa na árvore para o Barr. Depois do
recital, ele irá precisar de algo que o anime.
Algo dentro de mim amolece um pouco. Mas só um pouco.
Meu pai ainda era culpado por todas as suas atitudes, isso não
poderia negar. Mas talvez elas tenham o cegado. Barr tem quase
treze anos, não gosta de construções e nem de casas na árvore. Ele
saberia disso se conversasse mais com meu irmão.
Às vezes desejo que a papelada do divórcio chegue tão rápido
quanto um jornal pela manhã.
— Será bom — resumo o que sinto em apenas uma frase
idiota.
Ele sorri para mim, por cima dos ombros. Está na cara que ele
acredita que está sendo bom para Barr. Quem sabe funcione?
Dou uma espiada na casa ao lado. A construção em branco que
é casa das Campbell.
Então, me lembro de um grande detalhe.
— Pai? — pergunto, enquanto me aconchego no batente da
garagem. Ele acabou de pegar uma serra e está avaliando os
dentes da ferramenta.
— Sim, minha querida?
— A sra. Campbell ainda fala mais do que deveria?
Meu pai solta uma risada pelo nariz, ainda encarando a serra.
— Sim, Nicola. Ela fala.
É a minha vez de sorrir, arrumando minha postura.
— Obrigada!
Aster mora com a avó, a sra. Campbell, que foi uma atriz
famosa na época de ouro do cinema no nosso país. E como
qualquer outra pessoa, preferiu viver sua aposentadoria e o sossego
do anonimato em uma cidade como Salt; pequena, pacata e
desconhecida. A sra. Campbell gosta de ouvir jazz no último
volume, de falar com Barr quando passa ao lado de nosso muro e
sempre deseja que meu pai corte sua grama. Ela e minha mãe
ainda mantêm uma rixa sobre tudo o que passamos quando Aster e
eu éramos apenas competidoras mirins.
Mas ela não tem nada contra mim hoje em dia.
Então, antes de ir para a faculdade, caminho na direção da
porta principal da casa das Campbell. Primeiro, que a vantagem de
viver de frente para a janela de Aster é sempre saber quando ela
está em casa; quase nunca. Se a as cortinas estão abertas ela está
fora de casa, se estão fechadas, Aster está deitada na cama,
apenas existindo.
Com meu melhor perfume e minha melhor encenação, toco a
campainha da frente. Ouço-a ecoar gradativamente pela casa, até
escutar os passos astutos da sra. Campbell do lado de dentro.
Demora cerca de dois minutos até eu ser atendida.
A sra. Campbell não deve passar dos setenta anos. Tem a pele
negra de uma cor ébano, cabelos grisalhos que decidiu adotar,
assumindo uma cabeleira cinza de me fazer suspirar. Sempre usa
um pouco de maquiagem abaixo das maçãs do rosto e,
particularmente, me adora.
É por esse último motivo que ela sorri satisfatoriamente quando
me vê.
— Nicola Wolf! — Ela anuncia meu nome, numa voz de veludo
intensa e bonita. — Está tudo bem, meu bem?
— Olá, sra. Campbell, boa tarde! — Sorrio na mesma
entonação, cheia de dentes e charmes. — Estou bem. E a senhora?
— Estou fantástica! — responde, abrindo um pouco os braços.
— Se estivesse melhor, seria até mesmo um crime. — Sua risada
me contagia sem antes perceber. — Algo aconteceu de errado, meu
bem?
Ah, verdade.
Não posso jogar conversa fora com a sra. Campbell, por mais
que eu queira.
— Sim. Será que pode me ajudar? Preciso saber mais alguns
detalhes sobre sua neta. — Sorrio genericamente.
Como a miss adormecida que há dentro de mim.
6

TODOS NA VIDA DEVEM TER UM PAIXÃO.


Sei lá como. De repente, as pessoas têm alguma paixão,
alguma obsessão, algo para amar ou adorar mais do que deveriam,
mais do que ser do limite saudável. Eu falo “devem” porque fico
imaginando que todo mundo tem algo para amar ou idolatrar.
Não sei mesmo como começar essa analogia, às vezes me
apego as elas para me sentir um pouco melhor por desejar tanto um
carro quanto desejo o meu. É isso o que amo. É isso o que faz
certos pontos da minha vida valer um pouco à pena.
Ao meu redor, tenho plena certeza que as pessoas falam de
mim. A droga do tempo todo. Se pudesse apostar na mulher do
padeiro, ela diria que adoraria passar um pente fino no meu cabelo.
De vez em quando, ela me atende na padaria. Analiso seus olhos
passarem por meus fios desgrenhados e como ela julga
indiscretamente, se tenho piolho. Eu também poderia lhe falar que é
ela é uma preconceituosa de merda, que cabelos cacheados são
grandes e armados, que não há nada de errado com eles. E nem
um ninho de piolhos.
Aliás, posso me gabar que fui a única criança que não teve
piolho no Jardim da Infância que frequentei em Salt. A única.
Sempre sinto minha língua coçar, arder e pinicar para falar que a
princesinha de cabelo liso, que é a filha do padeiro, tem piolho. É
quase óbvio como a coitada da criança coça a cabeça e a nuca.
Mas não é um xingamento; qualquer pessoa pode ter lêndeas.
Então, apenas compro os bolinhos de canela favoritos da minha avó
e calo a minha boca.
As pessoas também acham que eu e minha avó nadamos em
dinheiro. Olha, até queria que fosse não só um boato, como um fato.
Mas é mentira.
Sim, minha avó esteve no cinema, nas capas de revistas, em
jornais, fez as melhores cenas de comédias que as pessoas iriam
querer ver em um determinado tempo. Mas graças aos jogos, ao
vício em bebida do meu falecido avô, restou apenas um pouco de
dinheiro e alguns sintomas de dores de cabeça. Cujo benefício
serviu para comprar uma boa casa e viver às custas de uma
aposentadoria que poderia ser mais generosa do que
verdadeiramente é.
Sempre que comento que estou juntando dinheiro para o meu
carro, as pessoas falam; “Nossa, mas sua avó é, tipo assim, uma
estrela do cinema e da TV.”
Não.
Ela foi uma estrela do cinema, que perdeu tudo quando se
apaixonou pelo idiota do meu avô. Não restou nada da sua
fantástica vida como celebridade para desfrutar, fora as lembranças
que ela me conta sempre quando jantamos. Ou sempre que
esquece que me contou e fala novamente. Pode até parecer
melancólico, mas Regina Campbell só pensa no melhor. Em que ela
foi e não quem é nesse momento.
Não é triste, é bem divertido, para falar a verdade.
Só não conto o que se passa dentro de casa. Prefiro que as
pessoas pensem que vovó é muquirana, que odeia me dar dinheiro,
do que imaginarem que uma ex-atriz, famosa até os dentes, não ter
mais dinheiro. Acho que ela morreria se todos soubessem. Se todos
imaginassem que a vida não é tão colorida quanto pensam.
Enquanto ninguém imagina, vovó continua a mesma.
Sobre querer um carro; preciso confessar.
Estou namorando um há mais de cinco anos.
Como?
Irei falar.
Adoro reviver a história de como o encontrei.
Eu estava voltando para a casa, a pé, havia esquecido de pegar
o ônibus e passei em frente à concessionária Torrier. Lá estava ele.
Ela, na verdade. Um modelo clássico e recriado de um Jaguar E-
Type, feito exclusivamente para festas e cerimônias. Depois, feito
para a corrida. Depois, se tornou esportivo. Um clássico e comum
carro britânico. Apesar de ser antigo, não está destruído. As duas
portas estão onde deveriam estar, os vidros também e a carcaça,
meu Deus, a carcaça chega a brilhar depois de polir. Com certeza,
se eu não tenho dinheiro hoje, na época constavam apenas cinco
libras no meu bolso — dinheiro único para os bolinhos de canela da
vovó.
Mas aquele Jaguar E-Type cantou o meu nome.
Me chamou.
Aster. Aster. Aster.
Três vezes. Ou quantas fossem precisos.
O preço não ajudou muito também. O carro tinha passado por
consertos intensos, porém precisos, e estava novo em folha. Dando
de dez a zero em qualquer outro carro na concessionária. Lembro
que corri para a casa e perguntei para a minha avó se poderíamos
comprar. Seria um investimento. Com um carro, ela não precisava
mais se arriscar andando ou pegando táxi para fazer qualquer coisa.
Lembro que vovó estava sentada no sofá, tragou seu cigarro e
disse:
— Impossível, minha querida.
E fim de papo.
Eu não ia insistir, simplesmente não ia. Por que iria importunar
a velha se eu poderia fazer algo em relação ao que queria?
Arranjei alguns bicos, juntando dinheiro ali e aqui. Depois,
gastei esse dinheiro no hóquei — tacos são caros e quebrá-los me
faz chorar de ódio por horas e horas. Depois, entrei na faculdade e
percebi que aquele dinheiro que vovó sustentava nossa casa, foi
direcionado para a minha bolsa, era um dinheiro de emergência.
Eu era sua emergência.
Me senti um pouco culpada, admito.
E agora, que estou livre de qualquer dívida, qualquer despesa,
não estou nem perto de conseguir a Betty — o carro.
Dei um nome a ele porque vovó disse que se dermos nomes às
coisas que queremos, elas se tornam nossas antes que possamos
notar.
Estou segurando meu celular agora, esperando Gwen aparecer.
A loja de discos em que ela trabalha é de frente para a
concessionária Torrier. Betty está no foco novamente. De frente para
a vitrine. O dono, o Dino, sempre aumenta o preço da Betty com o
passar dos anos. Se ele aumentar mais um pouco o preço, irei
surtar. Falo desse jeito porque nesse atual momento, nessa atual
situação das coisas, estou mais perto da Betty do que possam
imaginar.
— Ainda de olho nesse carro?
A voz que chega até meus ouvidos é cantarolada.
Viro sem precisar adivinhar que é Taylor.
— A Betty será minha. — Sorrio para Taylor, apontando para a
vitrine novamente com o dedo. — O que está fazendo aqui?
— Vou encontrar o Garret na cafeteria. — Taylor aponta para a
próxima esquina. Ela está dentro de um vestido preto, curto, que
ninguém consegue ver direito por causa do sobretudo. Apenas sei
que ele é curto porque já o tirei de seu corpo algumas vezes. — E
você?
— Gwen. — Aponto para a loja de discos do outro lado da rua.
— Vamos matar o tempo juntas.
Taylor assente com a cabeça. Ela comprime os lábios, como se
estivesse pensando em algo melhor para dizer.
A ruiva já se ofereceu para pagar Betty, me ajudar a comprar
logo o carro e não precisar viver indo até a minha casa
desprotegida. Quando ela diz “desprotegida”, está se referindo às
pessoas a encontrando na minha companhia. Imagina o que o
perfeitinho Garret diria, não é mesmo?
Mas sempre neguei sua ajuda.
Quero conseguir o carro com meu próprio dinheiro — ou
alguma bolada que eu ganhe do nada — não vindo de Taylor. Se ela
comprasse Betty, é como se me comprasse para sempre e
colocasse uma coleira ao redor do meu pescoço com seu nome
cravejado em cristais.
Enfim, ela desiste de dizer alguma coisa, apenas me manda um
beijo discreto quando Gwen Hallister se aproxima de nós.
Gwen prendeu os cabelos loiros em um rabo de cavalo e olha
desconfiada para Taylor enquanto a ruiva se afasta de nós,
desfilando.
Gwen vive desconfiada — de tudo e de todos.
— O que Taylor Moore queria com você? — Gwen pergunta
desgostosa quando para diante de mim. — Ela não fala com os
mortais. Quando digo mortais, estou falando de nós duas.
Dou risada, apenas sacudindo o queixo.
— Só queria saber as horas. — Mentir é o meu forte, mas
quando estou com preguiça, chega até ser ridículo. — Vamos?
Quero saber como e quando você começou a sair com o Harvey
Bird.
Minha melhor amiga ganha tons avermelhados na bochecha e
suspira, começando a tagarelar.
Há certas coisas que guardo dentro de mim.
Como um cadeado muito bem lacrado.

— E aí, velhinha. — Aponto para minha avó na sala de estar e


pisco. Está quase na hora de ir para faculdade e estou precisando
de um banho depois de andar a tarde toda com Gwen. — Cheguei.
Beijo o rosto da minha avó. A mulher mais foda que conheço no
mundo inteiro. Ela está sentada na sala, enquanto serve chá para...
a sem graça Nicola Wolf. Tento não fazer uma careta, tento não
demonstrar minha surpresa e desprezo em ela estar ali. Mas vovó é
boa com todos.
Até bocejo.
— E aí. — Aceno com o queixo.
— Olá. — Nicola responde. Bem como a típica princesa
educada, presa em uma torre de um castelo como é.
— Seguinte. — Retiro meus olhos de Nicola e olho para Regina
Campbell. Ela já deve ter reparado que odiei ser recebida desse
jeito. — Vou tomar banho antes de ir para a faculdade.
— Antes... — Vovó puxa a manga da minha camiseta,
impedindo que eu suba as escadas. A bandana entre meus cabelos
quase caí pela força dela. Não parece, mas Regina tem muita força
quando quer. — A Nicola quer falar com você. — Vovó sorri como se
fosse a rainha do nosso país. — E é um assunto que pode te
interessar, meu bem.
— Ah, é? — Sorrio para Nicola. Totalmente falsa. Ela devolve o
sorriso e então sei, de repente sei, que ela está aprontando alguma
coisa. Nicola Wolf jamais sorri para mim. Ou para qualquer outra
pessoa. — Meu interesse como?
— Bem, isso vocês vão conversar! — Vovó bate uma única
palma, se levantando da poltrona que está acomodada e pegando a
bandeja que serviu chá para nossa nem tão amada vizinha do lado.
— Nicola e você podem conversar no seu quarto.
Normalmente, vovó não faz ideia como essa frase pode causar
duplo sentido. Mas não se importa. Ela gosta das meninas que
costumo beijar e ficar sem compromisso, conta algumas coisas que
me enchem de vergonha? Sim. Mas me aceita e me ama de uma
maneira que jamais saberei agradecer.
Mas, quando ela diz isso sobre Nicola, só pude imaginar que é
uma pegadinha. Mas é verdade. A Wolf quer mesmo conversar
comigo. Tento não fazer uma careta, tento não franzir os lábios.
— Vamos. — Aponto para a escada atrás de mim e dou as
costas para Nicola antes que ela proteste.
Ela protesta?
Não!
O que é estranho.
Nicola sempre disse que odiaria ser uma das garotas dentro do
meu quarto. Sempre deixou o desdém que sente por mim bastante
claro. Não sei se ela é algum tipo de preconceituosa, mas parece.
Abro a porta com um toque de ombro e começo a me livrar das
peças do meu corpo arrancando fora a bandana dos meus cabelos.
Jogo em qualquer canto e vou direto fechar as cortinas do meu
quarto. Odeio cortinas abertas e vovó ama.
Sinto a presença de Nicola atrás de mim.
Diferente das pessoas normais, Nicola não fica reparando no
meu quarto. Não quer absorver qualquer informação que possa ter
de mim, não tenta espiar as fotos dos murais, nem comentar como
há alguns pôsteres de bandas de rock alternativo pregados nas
paredes. Nada. Ela não se interessa nenhum pouco em estar em
um ambiente desconhecido aos seus olhos.
Retiro minha camiseta, de costas para ela e suspiro, me
virando.
— Olha — começo. — Seja o que for, a resposta é não!
— Nem vem. — Nicola dá de ombros, elegante.
Como ela consegue fazer isso?
— Quê? — Agora tiro minhas calças. Ela não parece se
importar em eu estar me despindo na sua frente, não me olha e nem
cora abaixo dos olhos. — Como tem certeza?
— Sua avó. — Nicola responde. Agora outro sorriso preenche
seus lábios e posso ver como seus dois dentes da frente são um
pouco separados. Separadinhos. — Ela me contou algumas coisas
sobre você.
Pego uma toalha branca e me enrolo nela, terminando de me
despir totalmente atrás dela.
— Que sorte a minha — murmuro. Seleciono uma calcinha
limpa da minha gaveta e uma camiseta qualquer. — Pode falar.
— Só quero saber se...
Sorrio.
— Não, não e não.
Nesse momento, Nicola suspira, como se segurasse para não
surtar.
Ora, ora.
— Serei rápida de uma vez. — Nicola pontua. — Tenho dinheiro
o bastante para te pagar, te convencer e você conseguir seu maldito
carro!
Paro de procurar por minhas coisas.
— Como sabe da Betty?
Agora me sinto traída.
Valeu, vovó!
Valeu mesmo!
Demonstrar minha fraqueza faz com que Nicola ganhe uma
retaguarda que me deixa irritada em poucos segundos. Mas não
dou esse segundo gosto a ela. Demonstrar que Betty pode me
atingir é o suficiente.
— Regina. — Nicola responde. — Ela me disse tudo. Que a
coisa que você mais quer no mundo é o carro.
— O que quer?
— Quero que seja a parceira na dança no gelo com Harvey
Bird, meu ex-parceiro.
Fico esperando que Nicola diga que é mentira. Fico esperando
pelo momento que ela dirá que estava apenas com tédio e decidiu
passar seu tempo comigo. Mas nada acontece. Ela continua séria,
com os lábios comprimidos e um olhar severo como se quisesse me
punir por alguma coisa.
Por baixo da camada sem graça de Nicola — até que sua
seriedade é bonitinha.
Quero dizer, ela pode ir de 0 a 100 em segundos.
Porém, a espera da piada nunca chega. Então, popularmente,
sei que ela está querendo minha ajuda.
— Como é?
— Resumindo. — Nicola arfa. — Harvey precisa do dinheiro
que o Salt-In, o torneio, irá premiar. Eu, logicamente, não posso
competir porque me acidentei no ano passado, você deve saber.
Estou impossibilitada de competir, acho que... Para sempre. Nós a
vimos patinando no último jogo das Tormentas e gostaríamos de
saber se pode ser a parceira dele.
— Tá brincando, né?
— Adoraria que sim. — Nicola provoca. — Mas Harvey a viu
patinando. De alguma forma, você pode ter uma boa habilidade. E
com certeza, você não ajudaria apenas por ajudar. Pode conseguir a
Betty.
— Pelo menos você tem noção que não poderia ajudar de
graça — desdenho.
— Isso é um sim ou quer apenas me torturar?
— A última opção, eu diria.
Nicola suspira.
— Mais uma coisa... Se ganharem o torneio, o dinheiro dele
será totalmente de Harvey.
— Nicola, agora é algo impossível que você está me pedindo.
— Não. Eu estou disposta a lhe dar Betty, como diz. — Ela está
começando a ficar impaciente. — Então... Se me ajudar, se ajudar
Harvey a vencer, o carro é seu. Sem enrolações. Pode até conferir o
saldo no meu banco pelo aplicativo se quiser.
Ajusto minha toalha no corpo.
— Então, por que não dá esse dinheiro a ele? Se o Harvey
precisa tanto.
— Ele não quer. — Nicola revira os olhos, séria. — Se
quisesse, com certeza, não precisaria estar implorando por sua
ajuda. Vai por mim, nós duas sabemos que não gosto de estar aqui.
Mas estou, porque me importo com Harvey e não me importo de
usar meu dinheiro para um bem maior.
— Por que não ajuda seu pai?
— Ele não merece — responde de imediato. Espero que a voz
de Nicola oscile, que ela demonstre que está mal ou calejada com o
divórcio dos pais. Mas a impassibilidade reina nela. — Nem a minha
mãe. O dinheiro é meu e eu faço o que eu quiser. Quer a porcaria
do carro ou não?
Faço bico.
— Seja educada com a pessoa que pode te ajudar.
— Sim, mas não é a única.
— A única que Harvey quer, pelo visto.
Consigo calar a boca de Nicola Wolf. O que, ao meu ver e no
meu mundo, é um grande ponto.
Alguns segundos de puro silêncio se iniciam entre nós.
Vovó está ouvindo jazz na sala, o cachorro do vizinho da frente
está latindo e Nicola Wolf não quer me encarar diretamente nos
olhos.
Não faço ideia de como é ser privada de fazer algo que amo.
Conheço minha vizinha quase minha vida toda para saber que
ela amou dançar no gelo, da mesma forma intensa e louca que amo
jogar hóquei com as Tormentas. Se, de uma hora para outra, fosse
incapaz de fazer o que eu amo, eu estaria desesperada. Não estou
sentindo empatia por seu caso apenas por sentir. Sinto como se
fosse comigo.
Ela ainda não saberia que meus motivos por aceitar uma ideia
estúpida como aquela é, puramente, movida ao que eu posso fazer
por alguém. Não quero que Nicola Wolf sinta compaixão por mim.
Então, antes de entrar no banho, apenas avalio as opções que
tenho. Negar ajudar Harvey e Nicola e ficar sem a Betty, sem meu
carro e sem poder levar vovó ou Gwen para passeios decentes. Até
mesmo viagens.
E aceitar. Me vestir dentro de roupas apertadas, meias-calças,
penteados uniformes — como nos concursos de beleza — voltar a
usar maquiagem por alguns momentos e treinar todos os dias.
Vantagens: terei Betty.
— Está bem. — Ergo meus ombros. — Você venceu!
— Ótimo. — Nicola revira os olhos e sai do meu quarto sem
dizer mais nada.
Essa garota é um clássico dilema.
7

EU NASCI EM BRIGHTON.
Vim de uma família muito bem estruturada que não soube lidar
com o falecimento do meu avô — viva a ironia — e que preferiu não
lidar com a viúva.
Uma família que queria que minha avó se sentisse bem, mas
não... tanto. Uma família que se ofereceu para ajudá-la em qualquer
fase, mas que desistiu quando percebeu que a fortuna dela não
passava de algumas libras jogadas no fundo de um banco. Uma
família que a amava, mas só quando estava no auge de sua carreira
e ainda era convidada para dar entrevistas no rádio, depois, servia
apenas para lamentações. Uma família que queria ver minha avó
bem, mas melhor se houvesse dinheiro envolvido.
Eu tinha sete anos quando vovó perguntou à minha mãe se
poderia me criar.
Para famílias “normais” ou remotas, a pergunta poderia ser uma
ofensa. Um insulto gravíssimo. Para minha mãe, bem, acredito que
para minha mãe foi um alívio. Quase como “Ora, por que não
perguntou antes?”
Na época, queriam encontrar uma enfermeira para minha avó.
Ela não estava doente e nem nada disso, mas estava começando a
envelhecer e minha família não queria encarregar um tempo à
minha avó que não tinham. Quero dizer, eles tinham, mas Regina
Campbell não era mais a Regina Campbell, então não se
importaram com mais nada.
Vovó queria me criar porque eu dava trabalho para minha mãe.
Mordia as crianças na escola, era um pouco violenta, odiava ser
educada, odiava me comportar e vovó disse que poderia dar um
jeito em mim de uma vez por todas. O santo remédio que ela
passou a procurar e jamais encontrou. Enfim, minha mãe cedeu —
não que isso tenha custado muito caro ou muitas conversas, apenas
duas a convenceram.
Não me lembro muito bem dos meus reais sentimentos. Não sei
se prometi a mim mesma que daria o dobro de trabalho para vovó
Regina; não lembro o que queria na época. Só lembro de ir embora
de Brighton, com um ursinho de pelúcia entre as pernas e uma
mochila ao meu lado, vovó estava fumando com a janela aberta,
enquanto um motorista seguia em frente, com um caminhão de
mudanças logo atrás de nós.
Durante a viagem de Brighton até Salt, vovó disse que eu era a
neta mais bonita que ela tinha. Ninguém nunca havia me chamado
de bonita antes. Só encrenqueira e mal educada. Vovó disse que
meus cabelos cacheados eram meu verdadeiro charme. Ninguém
nunca disse que meus cabelos eram lindos ou charmosos, só
falavam que deveriam penteá-los e contê-los em um penteado
qualquer.
Vovó disse que meus lábios cheios, eram desenhados à mão
por anjos. Ninguém nunca tinha me contado uma história mística
sobre mim. Só que os lábios das outras garotinhas eram mais
discretos e, por isso, eu precisava ser boazinha para suprir minha
falta de beleza.
Então, fui amolecendo.
A criança que prometia tacar fogo em cortinas caras, só queria
saber o que mais ela podia ser de acordo com avó. Os primeiros
dias em Salt e na nova vizinhança foram horríveis. Minha vizinha de
janela era a perfeitinha Nicola Wolf, de cabelos arrumados e postura
intacta.
Ela odiava brincar na areia, na lama, não gostava de patinar por
diversão e sempre fazia careta quando preferia pular e dançar a
sentar e brincar de bonecas. Era a criança mais chata do mundo.
Um dia, ainda sem amigos, no Jardim de Infância, encontrei
uma garota, pequena e mirrada, fazendo seus ursinhos de pelúcia
caírem da Casa da Barbie.
— O que é isso? — Eu perguntei completamente curiosa.
— Eles estão pulando de bungee jump — respondeu Gwen.
Mas, para variar um pouco, Gwen ficou desconfiada de mim
durante duas semanas até decidir dividir alguns bolinhos de
baunilha comigo no recreio.
Sobre os concursos de beleza, eu gostava.
Meu Deus, eu me divertia para caralho sempre que precisava
fingir que não era eu. Graças à vovó, eu acreditei fielmente que
podia vencê-los. Como venci muitos. A maioria das pessoas acha
que vovó é quem me obrigou a participar de um concurso de beleza,
mas apenas quis.
Por conta própria.
Foi em um dia em que encontrei algumas fotos dela no sótão,
com a minha idade. Ela havia sido Miss Brighton e conseguiu uma
vaga no Miss Universo representando a Inglaterra aos vinte e um.
Ela me contou a história enquanto fazia panquecas pela manhã.
Então, sem esperar ela terminar, disse que queria tentar.
Lógico que a caminhada foi difícil; odiava que penteassem
meus cabelos, as maquiagens incomodavam e os vestidos eram
rosa demais. Mas depois, depois que eu desfilava, acenava para
vovó na plateia e sorria, eu percebia que, de fato, estava fazendo
algo divertido. Sabotar e provocar as outras misses eram a minha
parte favorita de tudo. Elas choravam com tanta facilidade que me
dava ainda mais vontade de continuar.
Só parei de competir quando não achei mais graça alguma.
Sempre era a mesma coisa; desfile, perguntas idiotas com
respostas prontas, exibição de talento, classificatórias, mais desfiles
e a vencedora. Pronto. Fim de papo. De volta para a casa.
Ah, sim. Os concursos serviram para fazer com que vovó e eu
tivéssemos um laço ainda mais forte, com certeza. Mas também
serviu para fazer com que meus troféus ficassem ao lado dos de
atuação de vovó. Nosso mural é a minha parte predileta da casa.
Fica abaixo da escada principal e tem nossas fotos, dispostas
abaixo de uma luz neon que muda de cor.
A ideia da luz foi minha.
Quando cresci e percebi que gostava de garotas — mais do
que importuná-las — vovó não ficou surpresa. Ela tragou um cigarro
e disse que tudo bem. Naquela noite, ela me deu seu colar favorito
de todo o mundo. Um colar de ouro branco com um pingente de
cadeado. Ela disse que aquele colar lhe acompanhou por muitos
anos; que ela o segurava sempre que precisava manter a calma e
que a ajudava sempre a descobrir quem ela era e a verdade sobre
si mesma.
Vovó, então, me disse que as pessoas iriam tentar me punir por
amar. Que as pessoas iriam testar minha paciência e que eu deveria
ser franca e manter a calma. Que, dali em diante, eu precisava
sempre saber quem eu era.
Nunca mais o tirei do pescoço.
Somos melhores amigas e graças à minha avó, soube desde
pequena que tenho um valor enorme no mundo.

— Não acredito!
— Pois acredite, porque não estou contando mentira nenhuma,
Gwen.
— Você odeia dança no gelo! — Gwen berrou do outro lado da
linha. — Tipo, desde que...
— Eu sei, eu sei. Mas a chatinha da Nicola Wolf irá me pagar. E
com o dinheiro irei conseguir a Betty de uma vez por todas. Nem
preciso agradecer. Danço, venço esse troço e ainda ganho um
carro. Está me entendendo?
Ouço minha melhor amiga suspirar do outro lado da linha.
— Está indo para lá agora? — Gwen quis saber.
— Estou. Chegando à arena de ensaios. Arena Palmer. —
Empurro a porta pesada a vácuo da arena pública da cidade.
Algumas pessoas podem treinar à vontade, outras precisam marcar
horário. — Eu prometi, não prometi?
— Certo... — A desconfiança de Gwen ataca novamente. — Me
conte tudo depois!
Desliguei o celular, enfiando na minha calça e abrindo uma
latinha de energético em seguida.
A Arena Palmer me recebeu rapidamente. Sem graça.
Algumas funções da cidade de Salt é sempre apoiar os
esportes de gelo. A pista de patinação estava vazia, por apenas
uma figura deslizando pelo gelo artificial de maneira leve e graciosa.
Dei um longo gole no energético e me aproximei das duas pessoas
que estavam me esperando.
Harvey Bird é quem estava patinando; de um lado e para o
outro, com um sorriso enorme no rosto que só fazia os olhos de
Nicola Wolf faiscarem. É até estranho perceber que Nicola tem
apreço por alguém neste mundo e ainda mais por Harvey. Alguém
absolutamente normal.
— E aí. — Desci alguns degraus da arquibancada, para chegar
até Nicola. Inteiramente de preto, Nicola também usava um rabo de
cavalo bem penteado e firme ao topo da cabeça. Ela me direcionou
apenas uma olhada e um aceno de queixo. Era o bastante. — E aí,
Harvey! — Acenei para ele, que havia acabado de girar mais de
cinco vezes no lugar.
— E aí, Aster! — gritou, girando novamente acima dos
calcanhares em patins.
— Bem... — Nicola passou seus olhos pelo energético na
minha mão e depois para o meu rosto. Quase entrando em colapso.
— Preciso dizer que está atrasada? — E fingiu um sorriso.
Joguei todo meu peso ao seu lado, me sentando e deixando
que minha mochila caísse entre minhas pernas.
Foram três dias interessantes.
Dias em que me vi obrigada a falar com Nicola Wolf; cada dia
por algum motivo diferente. Dei meu número a ela, afirmando que
poderia me ligar ou enviar uma mensagem sobre os treinos.
Até mesmo tive que falar com ela em uma aula!
Eu nem sabia que fazíamos uma aula na faculdade juntas, meu
Deus!
Agora, depois dessas setenta e duas horas, eu sou oficialmente
a parceira de Harvey Bird em uma competição no gelo.
O que não faço pela Betty?
— O que iria adiantar? — devolvi a provocação. — Você irá
falar do mesmo jeito.
— Precisa saber que somos pontuais. — Nicola arrebitou o
nariz. — Ser pontual te dá pontos, sabia disso?
— Não é a Olimpíada, Nicola. — Revirei os olhos. — É apenas
um torneio.
— Oh. — Ela murmurou incrédula. — Acha mesmo que eles
não irão julgar sua pontualidade, ou... Ou sua destreza...
— Nicola! — Harvey se aproximou de nós. Deslizou até a
barreira de madeira e plástico que separava a pista de patinação
das arquibancadas e apoiou os braços ali. — Não assuste a menina
logo no primeiro dia.
— Só estou dizendo... — Nicola engole em seco, empertigando
os ombros. — Que temos que ser levados a sério.
— Nem começamos. — Harvey sorriu. — Relaxa, por favor.
Nicola não discutiu com ele, apesar de querer.
Apenas enrugou o nariz e umedeceu os lábios, contrariada.
Sua atitude quase — eu disse quase — me faz sorrir. Garotas
teimosas ainda são garotas teimosas. Mas garotas prepotentes e
estressadas tinham uma parte de mim que ainda não conseguia
entender o porquê me atraíam tanto. Elas sempre encaram a vida
com uma pressa exagerada, enquanto apenas quero desacelerar.
— Então... — Nicola bate os pés de modo frenético e ansioso
na madeira abaixo de sua sola. — Não iremos explicar nada a ela?
Harvey Bird, que eu espero que saiba responder Nicola à altura,
apenas sorri serenamente. Sem um pingo de estresse.
— Ainda é o primeiro dia, Nikki. — Harvey garante, com um
sorriso de efeito que é capaz de acalmar Nicola Wolf. — Vamos
apenas conversar sobre os treinos diários e ver como nos damos
bem, hum? — Harvey abaixa um pouco o queixo, para encontrar os
olhos de Nicola.
Ela suspira, convencida e confirma com o queixo, silenciosa.
Solto uma risada nasal.
— Fofos — sibilo. — E então, como isso será feito?
— Trouxe seus patins? — Harvey pergunta para mim.
— Sim.
— Então só os coloque e vamos tentar encontrar nossa química
na pista e na dança.
Bato uma palma rítmica, confirmando.
Sinto Nicola inquieta ao meu lado.
Será que ela entraria em pane se passasse apenas um dia, um
diazinho, sem dar ordens em alguém?
Deixo o energético de lado — até digo que Nicola pode beber.
Veja como sou boazinha.
Retiro meus patins reservas da mochila, preparo meus pés e
minhas meias, e os coloco. Em pé, me arrasto até a entrada da pista
de patinação, Harvey me espera com uma mão estendida.
— Você não vem? — pergunto a Nicola.
Seus olhos estão presos em nós dois, em pé, diante de seu
corpo. Ela não trouxe nenhum patim, não trouxe nada para estar
conosco. Apenas está sentada, com as mãos reunidas ao joelho,
em silêncio, nos avaliando.
— Serei a treinadora — responde um pouco vaga nas palavras.
— Apenas isso.
Subo as sobrancelhas e a ignoro.
Eu sei que Nicola não pode competir, mas patinar deve ser uma
tarefa fácil, não é? É só zanzar de um lado e para o outro, deslizar
com equilíbrio, determinação.
Não deve exigir muito.
— Antes de começarmos a... — Coço minha nuca. —
Procurarmos nossa química. — Harvey, o médico, dá um sorriso.
Nicola, o monstro, enruga os lábios. — Por que é que você precisa
do dinheiro do prêmio?
Nicola inspira e abafa um gritinho, como se eu tivesse não só
lhe ofendido como toda sua família.
— Não precisa responder se não quiser, Harvey! — Nicola junta
as sobrancelhas, irritada.
— Não, tá tudo bem. — Ele garante ao gesticular para ela. —
Dívida estudantil — diz para mim. — É bem grande. E a minha bolsa
não cobre muito. Estou meio atrasado para um empréstimo
estudantil e pode ser ainda pior. O prêmio vai cobrir boa parte do
valor, ou ele todo. Depende da nossa posição.
Agora sinto um pouco de pressão.
— Bem. — Subo os ombros. — Se vamos fazer isso. É melhor
fazermos direito!
8

TENHO ABSOLUTA E FERVOROSA certeza que as pessoas,


quando me olham, enxergam uma pessoa destemida, corajosa e até
mesmo imprudente.
Só que o certo é bem longe do esperado.
Eu tenho medo.
Sinto muito medo.
O tempo todo.
Quase sempre sou arrebatada por esse sentimento que me faz
ficar mais minutos na cama do que o habitual. Tenho medo de um
dia acordar, cansada da minha família, e meu pai ainda estar
morando no sofá. Tenho medo de Barr crescer e meu pai ainda
estar vagando pela casa, como um espectro, alguém que não tem
vontade de evoluir ou se mudar para outra casa, outra região ou
estado. Tenho medo de Barr odiá-lo. Tenho medo de Barr odiar meu
pai. Tenho medo de Barr, um dia, me odiar.
Tenho medo de contar à minha mãe que as amigas que
sumiram daqui de casa não eram só amigas. Que eram garotas que
gostaram de mim e passamos ótimos momentos juntas. Tenho
medo de contar que gosto também de garotas. Tenho medo de me
apaixonar por uma, me enlaçar perdidamente com uma mulher e
querer me casar com ela. Tenho medo da minha mãe não aparecer
na cerimônia. Me crucificar, não me ver mais como sua filha.
Tenho medo de papai indo para longe. Procurando e buscando
uma nova vida depois do divórcio. Tenho medo que ele suma. Que
não conheça de verdade sua própria filha.
Tem medo de Nancy voltar para a casa um dia. Tenho medo de
Barr desejar ser como Nancy; querer ser perfeito e quase se torturar
quando não conseguir. Tenho medo de não ser aceita como uma
Wolf. Tenho medo dos jantares em famílias silenciosos, tenho medo
de muitas coisas.
Mas, o meu novo medo, é de patinar.
— Ele está indo bem, não é? — Mamãe está sorrindo, com o
celular ao ar, erguido, enquanto grava Barr jogando.
Ele está no grupo mirim e amador de hóquei da escola.
Ninguém marca pontos nesses eventos, mas como a maioria são
pais babões, todos comparecem como se todos estivessem
ganhando algo.
Mamãe está gravando porque ela adora — para não dizer que
ama — quando nós, seus filhos, fazemos algo que seja venerado ou
complexo. Mamãe acha hóquei e dança no gelo bastante
complexos, então ela ama essa nossa parte artística e esportiva.
Reparo nos pés de todos os jogadores, dentro de patins com
lâminas brilhantes e prateadas.
Sinto falta da sensação do vento superficial contra meu rosto,
de sentir o corpo deslizar e o som do gelo se cortando a cada vez
que freio. Às vezes, se eu fechar os olhos, sei descrever a sensação
de dançar e ser aplaudida de pé após uma apresentação. Mas não
faço ideia de como seja essa velha e corriqueira sensação depois
do que aconteceu.
Desejo patinar por diversão. Meu Deus, como desejo.
Apenas conversar com Harvey, no inverno, enquanto
passeamos pelos bosques infestados de neve e pelos lagos
congelados. Mas não consigo. Simplesmente não consigo.
Claro que adoraria que fosse eu a parceira de Harvey, mas fico
feliz que ele tenha se dado bem com Aster. Os dois apenas giraram
em círculos e correram um atrás do outro no primeiro treino, mas
Harvey gargalhou e posso jurar, de pé junto, que Aster também.
Então eles estavam se dando bem.
Acontece que tenho medo de coisas o bastante para me
considerar corajosa.
— Ele é um lindinho, não é? — Mamãe comenta sobre Barr.
Usando um capacete maior do que sua cabeça, próximo ao gol. —
Quando sairmos daqui pode comprar cachorro-quente se ele quiser.
— Ela recomendou.
— Pode deixar.
Meu pai não estava presente.
Ele foi ao recital de Barr ainda essa semana, onde não somente
Barr tocou piano, como declamou um poema. Agora, no hóquei, era
a vez de mamãe. Eles ficam revezando. Menos comigo. Eu
comparecia em todos.
— A sra. Campbell me disse que a Aster vai participar do
torneio Salt-In... Com Harvey. Isso é verdade?
Ah, mamãe.
Sutileza não é seu forte.
Apesar de estar com os olhos bem fixos e atentos ao jogo de
Barr e estar gravando com seu celular de última geração, detecto o
tom sarcástico e venenoso na voz de mamãe.
Não faço ideia se Aster dançar com Harvey é um segredo,
então apenas confirmo.
— Mesmo? — Mamãe indaga. — Que curioso. Jamais pensei
que Aster tivesse bom gosto.
Aquele comentário se parece bastante com algo que eu diria,
mas, dito por minha mãe, que sempre tem algo de ruim para falar —
de qualquer pessoa — apenas me faz ficar em silêncio.
— Como isso aconteceu? — Ela quer saber. Odeia ficar
curiosa. — Harvey está tão desesperado assim?
— Eles só se deram bem. Só isso, mãe.
— Bom... — Ela remexe as sobrancelhas, ainda pensando em
algo maldoso. — Será a primeira vez que verei Aster limpa e com os
cabelos penteados, hum? Será histórico!
Agradeço pelo time adversário tentar marcar um ponto, porque
é nesse momento que Barr defende, impedindo que o disco chegue
à rede do gol. Fazendo alguns pais corujas gritarem de emoção.
Incluindo mamãe, que esquece o assunto.

— Foi muito bom!


Pego o cachorro-quente que o dono da barraca de comidinhas
me estende e passo para Barr. Ele tem as bochechas coradas de
cansaço e um taco de hóquei dentro da proteção descansa em suas
costas, pendurado.
— Gostou mesmo? — Barr pergunta. Há certa insegurança em
sua voz. Ele espera a minha resposta para dar a primeira mordida
no cachorro-quente. — Tipo... Não foi horrível? Ou patético?
— Não repita isso. — Apontei rapidamente. Ele finalmente
abocanhou o lanche e sujou a boca de mostarda. — Foi ótimo! Me
senti assistindo aos profissionais.
— Também não precisa mentir — respondeu Barr com a boca
cheia. — Queria que o papai tivesse vindo.
— Ele vem na próxima. — Fiz carinho nos cabelos de Barr. —
Tenho certeza que ele vai adorar.
— Na próxima, o treinador Miti disse que posso sair do gol. Irei
marcar alguns pontos, pode apostar! — Barr prometeu, comendo
novamente e falando de boca cheia. Tudo ao mesmo tempo.
Meus olhos escapam para um time que está presente no campo
de lacrosse, que fora transformado numa feira de comidas e
apresentações de todos os anos na escola de Barr. Alguns times de
hóquei iriam se apresentar apenas experimentalmente e um em
especial tomou toda a minha atenção. Claro que meu irmão já tinha
parado de falar quando identifiquei Aster Campbell ao meio das
Tormentas.
Elas estavam usando o uniforme inteiramente cor de rosa, a
favor do Outubro Rosa que a cidade, as escolas e as faculdades
locais, sempre pregam. Ela estava sorrindo e conversando com uma
amiga do time. Aster sorria e fazia trejeitos, gesticulava.
Lembro dela patinando com Harvey.
Foi tão livre e legal de ver, que quase pedi algum patim
emprestado para me juntar a eles.
— Ei. — Barr me chamou. Tratei de tirar meus olhos de Aster
para ouvi-lo. — Com quem a mamãe está falando?
Barr apontava para uma direção contrária da de Aster e das
Tormentas. Minha mãe estava na fila do algodão doce, com seu
próprio doce entre as mãos, da cor azul claro. Ela estava falando
com um homem, de aparência bonita, belo sorriso e que usava
terno. Acredito que Salt seja fria o bastante para todos sempre
serem pálidos e usarem roupas compridas, mas terno? Em um
evento infanto-juvenil? Sério?
— Não sei — digo a Barr.
Não estou mentindo.
Mamãe coloca o cabelo atrás das orelhas e sorri, flertando.
— Deve ser algum amigo! — Quero que Barr pare de olhá-los.
Dependendo de qual for a pergunta, poderá ser drástica.
— Ah! — Ele solta, animado. — Olha lá a Aster! Posso ir falar
com ela? — Barr pergunta com empolgação, sem se conter.
— Claro. — Toco sua bochecha.
Percebo que ele já terminou de devorar o cachorro-quente e
corre na direção de Aster, repetindo o nome dela
desesperadamente.
Aster, quando avista meu irmão, sorri de todos os dentes. Seus
olhos se enchem de entusiasmo e ela acena, na mesma entonação
divertida de Barr.
— E aí, pirralho! — Aster o cumprimenta.
— Você viu o meu jogo? — Barr quer saber, quase gritando de
empolgação.
— Se eu vi? — Aster rebate. — Estava na primeira fila.
Então, não consigo ouvir mais nada do que os dois estão
conversando, porque simplesmente param de gritar um com o outro.
Olho novamente para a fila do algodão doce, onde mamãe
deveria estar. Mas não há ninguém que se pareça com ela ou o cara
misterioso que estava conversando. Varro meus olhos pelo festival,
à procura dela — ou dele.
Mas não os encontro.
Percebo que será tarefa minha levar Barr para casa e terei que
inventar qualquer desculpa para fazê-lo acreditar que mamãe teve
uma emergência no escritório. Tento não demonstrar minha
infelicidade em ser dessa família — não na frente de tantas pessoas
felizes. Penso em mandar mensagem para Harvey, mas ele já está
cobrindo um turno na livraria que deveria ser meu.
Quando as pessoas descobrem que eu tenho vinte e dois anos
e ainda moro com meus pais, eles pensam nas hipóteses mais
doidas. Mas a fama de preguiçosa sempre fica. Têm algumas
pessoas que comentam que, por causa do meu acidente, acabei
ficando em casa e me acomodando. Outras têm certeza que apenas
gosto de onde vivo.
O motivo de ainda viver com meus pais, enquanto há um
dormitório bom e particular na United Salt, é único e simplesmente
por Barr. Não consigo imaginar vivendo em algum lugar, longe dele,
e meu irmão caçula tendo que lidar com nossos pais. Não sozinho.
Barr é jovem demais para tentar saber controlar as brigas que
explodem do nada. As provocações e as alfinetadas pesadas que
acontecem.
De vez em quando, desejo que Barr tenha doze anos para
sempre. Que viva na crista da inocência pelo resto de seus anos.
Mas estou sendo injusta com meu próprio irmão ao desejar que ele
nunca siga em frente. E, enquanto o divórcio não sai, prometi a mim
mesma que jamais o deixaria sozinho com eles. Não me importo de
estar dando todo o meu dinheiro economizado por anos dançando
se isso irá custar a felicidade de Harvey.
Quando meu pai ou minha mãe saírem de casa, saberei que
será o começo do “feliz para sempre.”
Quando desisto de procurar por minha mãe, me aproximo de
Barr e Aster — meu irmão, por sua vez, está totalmente entretido
com as Tormentas.
— Ah. — Aster solta quando me vê. — Você veio!
— Acho que sim. Ou posso ser um holograma. Depende do
ponto de vista. — Forço um sorriso. Aquele mesmo sorriso amarelo
que a pessoa sabe que é apenas uma falsa cordialidade.
— É, mesmo que eu havia desconfiado que você estava se
divertindo demais. — Aster sibila. — Não combina com você!
Não respondo, porque não tem nada para responder ou
retrucar.
As Tormentas estão conversando com meu irmão, sobre
técnicas e faltas que podem acontecer no hóquei. Há algumas delas
que reconheço de boatos ardilosos que descubro nas festas em que
frequento e ninguém repara na minha presença.
Quando quero falar algo para Aster — não sei o motivo — Barr
dispara:
— Nikki! — diz desesperado. — Eu posso ver as Tormentas
jogarem?
— Entraremos a pouco. — Uma delas diz para mim.
Olho para Aster, que está sorrindo orgulhosamente para Barr.
— Acho que sua irmã não gostou da ideia, pirralho. — Aster
desafia.
Em outros momentos, mamãe falaria para eu não deixar Barr
tanto tempo fora de casa. Longe das Tormentas, Barr estaria
ansioso para ir para casa e narrar tudo o que fez para nosso pai.
Mas com elas, tendo atenção delas, suas ídolas, e da própria Aster
que de vez em quando o leva para treinar, não há como negar.
E, bom, mamãe está longe, quanto mais eu distrair meu irmão,
melhor.
— Claro! — Até finjo que estou animada. As Tormentas e Barr
comemoram, como se minha resposta fosse a melhor coisa do
mundo. O time e Barr saem na frente, conversando, é claro, sobre
hóquei. Reparo em Aster me olhando. — O que foi?
— Desde quando gosta tanto assim de hóquei? — Aster cruza
os braços e sorri de lado. É um meio sorriso até que bonitinho se
levarmos em conta que ela quase nunca demonstra nada bom para
mim.
— Não gosto. — Arrumo meus ombros. — Mas amo Barr.
9

ANTES DE TUDO O QUE ME COMPÕE hoje em dia, participei


do time de hóquei da escola antes de perceber que poderia fazer o
mesmo na faculdade.
Veja bem, quase tudo o que me comprometo a fazer é apenas
diversão para mim antes de perceber que realmente gosto.
Concursos de beleza, brincadeiras com ursinhos de pelúcia,
construir uma caixinha de música com madeira velha, o hóquei ou
qualquer coisa. Qualquer coisa mesmo. Na escola, apenas me
comprometia aos treinos porque não tinha nada melhor para fazer
depois das aulas. O time era misto e eu me divertia muito quando
viajávamos ou saíamos de Salt para as competições em cidades
vizinhas.
Acontece que deu certo.
Ao ponto de eu conseguir uma bolsa na universidade local
graças ao hóquei e meu desempenho no time misto da escola. Mal
pude acreditar que a minha diversão estava dando lucro
simplesmente porque sou boa e tenho talento. A bolsa veio bem a
calhar; achei que ia voltar para Brighton. Achei que minha avó fosse
se dar conta que cheguei à uma idade que, quem sabe, minha mãe
pudesse me ter de volta em casa. A bolsa de setenta por cento me
fez ficar em Salt. O time, diferente do colégio, não era misto.
As Tormentas são compostas apenas por garotas. O time
feminino e modéstia à parte, o mais interessante. Comecei como
reserva no primeiro semestre e ano que comecei. Depois fui
conseguindo meu lugar ao sol, até dividindo a liderança com outra
garota, a Ted Farmer, mas que se formou, deixando o cargo apenas
comigo no ano passado.
O hóquei não é o que eu quero para sempre.
Sei disso.
Algo dentro de mim sabe também.
Mas não tenho noção do que seguir; nenhuma profissão me
parece boa. E falar isso aos vinte e dois anos, me dá a falsa
sensação de estar vivendo em um limbo. As pessoas esperam que
você tenha essa nata confusão quando tem dezoito — ou menos —
mas depois dos vinte, elas esperam que você esteja com um
cronograma perfeito sobre sua vida pelos próximos cinquenta anos.
Sempre gostei — pode parecer mentira — de ajudar algumas
pessoas. Minha avó sugeriu o curso de Enfermagem, em Londres,
enquanto apenas estudo para conseguir um diploma da United Salt.
Ir para Londres, quer dizer ir sozinha ou ir com a minha avó?
Ainda não chegamos a esse detalhe.
Para variar um pouco, não conversei com ninguém sobre isso.
Nem com Gwen, que estuda Arquitetura e nem com qualquer outra
garota das Tormentas. Às vezes elas dizem que me conhecem, mas
ao mesmo tempo em que não fazem ideia de quem sou eu.
— Isso é verdade? — Taylor Moore se aproxima de mim,
pegando uma cadeira de frente à minha, na biblioteca da faculdade.
Há um livro de enfermagem aberto diante de mim, o clássico
Enfermagem para leigos. Felizmente, Taylor não é curiosa o
bastante para tentar definir o que “quero ser quando crescer”. — Vai
mesmo competir com Harvey Bird?
— Uau — disparo. — Essa cidade é pequena mesmo, hein?!
— É algum tipo de piada? — Os lábios de Taylor se formam em
um sorriso doce e prestativo. Ela parece querer rir, dependendo da
minha resposta. Apenas nego com o queixo. — Por que está nessa?
— Assuntos pessoais — resumo. — E assuntos que não são da
sua conta. E nem da minha. Apenas estou nessa, fazendo por
diversão. É o que mais faço nessa vida.
Taylor não gosta da resposta.
Como uma nítida desbravadora da vida dos outros, ela parece
até mesmo desgostosa com a minha resposta.
Não sei definir nossa relação.
Não somos amigas. Taylor nunca falou comigo quando
estudávamos na mesma escola e até mesmo ouvia cochichos seus
falando sobre mim e a aparência de Gwen quase o tempo todo. Não
sei julgar se ela é uma boa pessoa ou apenas finge que é quando
estamos juntas. Não sei como anda sua relação com Garret Cox. O
que sei dele é baseado em uma reputação de incorrigível e distante.
Mas que faz algumas garotas o desejarem facilmente — mesmo que
sempre esteja comprometido e não seja lá muito agradável de
conviver. Gwen me explicou que pode ser pela aparência dele ou a
influência da família Cox em Salt.
Até mesmo Nicola Wolf foi sua namorada. Acho que por três
anos. Ou quatro. Não sei dizer. Mas foi tempo o bastante para vê-los
brigarem no jardim dos fundos da casa de Nicola e vê-la chorar
quase sempre, quando Garret gritava ou a ofendia sem pensar.
Posso contar nos dedos quantas vezes vi Garret pedir desculpa,
segurando um buquê de flores à porta da casa dos Wolf, com cara
de cachorro abandonado, implorando por perdão.
E perdi as contas de quantas vezes vi Nicola chorar por ele.
Ser vizinha de janela de alguém tem lá suas inúmeras
desvantagens.
Mas não ouço essas reclamações vindo de Taylor, com quem
Garret namora há nove meses.
— Enfim... — Taylor toca os lábios. — Podemos nos reunir, na
minha casa, para fazermos o começo do trabalho da sra. Tent
juntas?
Nunca fui à casa dos Moore.
Se Taylor está me convidando, estaremos sozinhas.
— Pode ser.
— Estou sem ideias. Mas você é tão criativa que pode me
ajudar.
Às vezes Taylor me enche de elogios, como se quisesse
compensar alguma coisa passada.
— Sim. Está tudo bem.
Suas unhas longas batem contra a madeira da mesa, insistente.
Ela deve estar pensando sem parar em alguma coisa. Sem coragem
o suficiente para botar para fora.
— Você... — Taylor morde os lábios. Aflita. — Você me contaria
se Nicola quisesse voltar com o Garret, não é?
Sua frase me faz ter vontade de gargalhar, até a barriga doer e
poder limpar uma lágrima teimosa do canto dos meus olhos. Agora
entendi o que ela quer dizer. Não importa se estou nessa com
Harvey Bird, o que importa é que estou passando muito mais tempo
com Nicola Wolf agora. Mas Taylor Moore fala sério. De alguma
forma, mesmo estando sempre comigo às escondidas, ela gosta de
Garret. Como e por que, aí é um tremendo mistério.
Só de pensar em dever justificativas a alguém me sinto fora de
órbita. Não estou namorando justamente por isso.
Meu casinho com Taylor começou há três meses.
Estávamos na fogueira, tinha acabado de beber um pouco e
Taylor estava dançando com as amigas. Se aproximou de mim e
quase começamos uma briga. Me afastei do grupo e da fogueira,
indo parar em uma pedra lascada. Esperei ali até estar sóbria, e na
volta, por um bosque fechado e denso, Taylor me encontrou. Pediu
desculpa sobre a possível briga ou os insultos que tinha feito. Ela
estava estranha. Mais sorridente, mais charmosa, flertando comigo
como se não tivesse um namorado. Ou como se não fosse hétero.
Quando ela me beijou, eu a afastei, assustada.
Depois, a beijei novamente.
Taylor significa diversão para mim. Como tudo.
— Nicola não quer voltar com Garret — garanto, mesmo não
sabendo a verdadeira resposta. — Ninguém o quer.

— Está bem! — Gwen segura meu cotovelo, antes que eu entre


definitivamente na Arena Palmer. Ela está usando o boné da loja de
discos e segura seu sabor favorito de smoothie, morango com
banana. — Eu vi você conversando com a Taylor Moore de novo na
biblioteca. O que está acontecendo, Ast?
— Anda me espionando? — Brinco, sorrindo para Gwen.
Desconfiada, ela não emite nenhuma outra reação.
— Sou sua única amiga de verdade. — Gwen arrebita o nariz.
O comentário poderia me ofender se não fosse verdade. — A única.
Então... Pode me contar?
Não há escapatória.
E não sei como não falei isso antes.
— Ah, meu Deus. — Gwen dá um passo para trás. Depois do
meu silêncio, sei que uma tese dela fez sentido dentro de sua
mente. — Está pegando a Taylor?
— É?!
— Aster! — Gwen brada, batendo o pé no chão. — Que merda.
Ela odiava...
— Não parece me odiar enquanto me beija ou quando me deixa
fazer...
— Não quero ouvir detalhes! — Gwen me repreende, mas quer
sorrir ao meio da bronca. — Não mesmo. Como... Como isso
aconteceu? E como escondeu isso tão bem de mim?
— Aparentemente fui péssima escondendo, se você deduziu
em apenas segundos de silêncio, não é? — Ironizo, abraçando
Gwen pelos ombros e caminhando com ela para dentro da Arena
Palmer. O segundo dia de treino irá começar. — Olha, o que precisa
saber é que às vezes nos beijamos e que Garret Cox não sonha
com isso.
Gwen Hallister está inconformada com a falta de detalhes que
lhe dou. Nem pergunto o motivo dela estar aqui também, sendo que
o “motivo”, está dançando, sozinho e solitário, na pista de patinação
vazia. O caminho até lá, continuo abraçada à Gwen, contando o que
guardei comigo — e com meu colar de cadeado esse tempo todo.
Gosto do fato de Gwen não ser frágil ao ponto de exigir que eu
sempre esteja disposta a falar sobre minha vida, mesmo que isso
demore três meses ou um ano. Ela me escuta e, até mesmo pela
surpresa imediata, que sempre dura apenas dois minutos ou menos,
Gwen está lá.
— Só toma cuidado, tá legal? — Gwen diz, tocando meus
ombros quando eu coloquei meus patins e estava pronta para
deslizar até Harvey.
Nicola Wolf estava a metros de nós, falando com Harvey. Ela na
arquibancada, ele do outro lado. Ela ainda sem colocar um patim
nos pés, ele esperando suas recomendações como treinadora.
— Todo mundo sabe quão instável o Garret Cox é. — Gwen
disse ainda mais baixo, engolindo um seco. — Odiaria...
— Ele não fará nada. — Termino de arrumar o laço do meu
patim. — Esse negócio com Taylor irá acabar. Sério. Nem é mais tão
divertido. Agora que mais pessoas sabem, como você e a Nicola,
perdeu a graça. — Pisco.
— A Nicola sabe? — Gwen pergunta estática.
— Ela é a minha vizinha. — Suspiro. — O que mais ela não
sabe sobre mim?
Pisco novamente, apenas para dar o efeito desejado em Gwen
Hallister; ela apenas sorri e bate palma, me animando para o
próximo ensaio e treino. Entro na pista, deslizando até Harvey e
cumprimentando os dois.
— Os treinos serão diários. — Nicola ignora meu “oi” e diz
assim que me aproximo. O típico colar de pérolas que não sai de
seu pescoço reluz contra mim. — E você estar aqui na hora
marcada, Aster. Competidores sempre precisam ser...
— ... pontuais — completo, segurando para não rolar os olhos.
— Estou aqui, não estou? Até o fim do inverno prometo que serei
mais firme. Aliás, nem no inverno estamos.
— Ainda — pontua Harvey, brincando e sorrindo. — Agora,
precisamos te ensinar algumas coisas.
— Será que consegue guardar tudo? — Nicola provoca,
destilando seu próprio veneno e ego. — Por exemplo, você
pesquisou algo sobre a dança no gelo? — Dou de ombros em forma
de resposta, o que quer dizer “não”. Nicola Wolf suspira
pesadamente, como se odiasse lidar com pessoas iniciantes. —
Você tem bons movimentos e atitudes em cima de patins. Ou seja,
você sabe o que está fazendo o tempo todo.
— E então?
— Treino passado nós ficamos apenas um do lado do outro,
mas na dança, você não pode se separar de mim. — Harvey Bird
retoma o que Nicola começou. — É uma regra. Os parceiros
precisam estar juntos, sempre, ou longe, em até dois braços de
comprimento. Mais que isso, perdemos pontos, menos que isso,
podemos atrapalhar e interferir no processo do nosso parceiro.
— Não é como no hóquei. — Nicola sorri, adorando estar no
controle. — Aqui você é um time. Uma pessoa só com Harvey. E ele
com você. Consegue entender?
— Não sou idiota. — Semicerro os olhos para Nicola e me volto
para Harvey. A única pessoa que consegue explicar as coisas sem
autoridade nítida. — E como funciona essa coisa... Dos braços?
— Simples. Quando precisamos fazer movimentos que exijam
nossa separação, então, irei ficar atrás de você, sempre um pouco à
sua direita ou esquerda, mas sempre, sempre mesmo, a dois braços
de distância. E você de mim.
Sinto minha língua secar por um momento.
Achei que era mais fácil.
Gostar do parceiro, escolher a música, coreografar, dançar e
pronto. Não é assim que as pessoas fazem parecer na TV?
— E o que mais? — Quero saber, olhando para os dois.
— Você sempre tem que estar no ritmo da música e não no
ritmo da letra. — Nicola diz. — Às vezes, há pessoas que escolhem
apenas o instrumental por isso, outros que precisam ignorar o que a
letra diz, para ouvir apenas a melodia.
— Não murmure. — Harvey aconselha. — Podemos perder
pontos, dependendo do que o torneio pede ou os organizadores da
competição. Em via das dúvidas, não cante com a música.
— Dois braços, ritmo da música, não cantar... — repito, usando
meus dedos para contar. — Acho que posso lidar com isso.
— Não acabou. — Nicola nega com o dedo. — Quando você
estiver com Harvey, no Salt-In, todo o tamanho da Arena Palmer
terá que ser coberto na coreografia. Não pode ficar dançando no
meio...
— E nem rodando em círculos achando que está fazendo algo.
— Harvey emenda. — Temos que preencher até metade da pista
completa ou ela por inteiro.
Nicola concorda com Harvey, pegando o panfleto do Salt-In e
me mostrando.
— Aqui tem três modalidades. — Nicola aponta. — A short
dance, a free dance e a valsa de ouro. Normalmente, sempre
descobrimos antes o que os organizadores escolheram, mas esse
ano é livre. Então inscrevi vocês dois em todas. A short dance é
ótima para mostrar como você é capaz, a dança livre normalmente é
usada para desempate, então caso algum outro casal esteja se
dando bem, teremos que pensar em uma coreografia leve, porém
elaborada para vocês. E por último, a valsa de ouro. Aquela
coreografia que temos que fazer tudo ser fantástico e perfeito.
Silêncio.
Não há mais nada para dizer.
Ou ainda tem, mas podem pensar que sou burra demais para
tentar definir se eles já estão com pena de mim. Infelizmente, Gwen
está longe de nós o suficiente para não saber nada do que eles
acabaram de despejar nos meus ouvidos – e na minha capacidade.
Talvez Harvey esteja confiando demais.
Quando eu disse que conseguiria Betty com o meu próprio suor,
não sabia que estava sendo completamente literal.
— E hoje? — Quase gaguejo. Harvey sorri.
— Preparei uma música especial para você e o Harvey
esboçarem alguns passos. O básico. — Nicola piscou, pegando um
aparelho de som e seu controle remoto. — Vocês podem começar
no centro. — Ela me olha, séria. — E siga o Harvey, ele te ensinará.
Concordei, sem ter o que acrescentar — sem nenhuma
brincadeira, aliás.
Quando a música começa, tenho que sorrir.
— Let It Go? De Frozen? Sério?
— Quando você conhece a música clássica. — Harvey começa
pegando a minha mão. — É mais fácil. Ensinamos crianças a gostar
de música clássica desse jeito, pegando algo que elas conhecem e
transformando em uma música sem letra, apenas a melodia. Elas
irão perceber que gostam e podem descobrir os clássicos de
verdade.
— Estão me chamando de criança? — Enrugo a testa.
Harvey esbanja uma risada tranquila, enquanto Nicola confirma
com o queixo.
— É só um teste. — Nicola sobe e desce os ombros. — Pronta?
Nicola é esnobe. Isso sempre foi comprovado. Mas hoje piorou
de alguma forma que me incomoda.
— Estou — respondo firme. — Isso é fácil!
10

— ISSO NÃO É FÁCIL!


Aster Campbell se apoiou no banco ao lado de Gwen Hallister.
A última garota, por sua vez, analisou nosso segundo treino com
curiosidade. Longe da habitual careta que Gwen sempre sustenta
em rosto, ou longe de qualquer desavença que possa ter comigo.
Mas, sério, não dá para acreditar que Gwen goste de alguém.
Ela parece detestar até mesmo a presença de Aster. Ou é apenas o
seu jeito?
Deixo de pensar sobre ela e sorrio, triunfal, para Aster, que
bebe a água gelada mais de cinco vezes por pausa. Há suor
respingando de sua testa, e isso porque Harvey lhe apresentou os
passos mais fáceis, como se apresentar para os jurados com
graciosidade e classe, como olhá-los e como conquistá-los. Sem
precisar ser tão caricata quanto um concurso de beleza. Harvey
também lhe mostrou como se portar ao seu lado, não deixando
Aster ter uma pausa nem quando ela pediu com carinho.
— Aqui não é o hóquei — falo. Às vezes tento evitar ser tão
mesquinha e quando vejo, já comecei a falar. Sento ao seu lado,
enquanto me sirvo de água gelada também. — Não pode pedir para
parar sem antes realmente precisar. A dança não é para os fracos.
— Mas talvez seja para os esnobes. — Aster sibila, erguendo
uma sobrancelha. Ela arfa, retirando os patins dos pés. — Não
estou reclamando e não sou de desistir. — Me garante, imprudente.
— Sabe. — Aster comenta, se apoiando em apenas uma mão. — É
estranho como você quer ajudar o Harvey — comenta, com um
sorriso ardiloso trilhando sua boca.
É uma boca bonita, para falar a verdade.
Mas que nesse momento só consegue me irritar.
Evito segurar meu colar, sempre toco nele quando algo me
incomoda.
— Como é?
Harvey e Gwen estão numa conversa, alheios ao que acontece
entre mim e Aster Campbell. Eles estão em um diálogo civilizado,
não é como as farpas que jogo contra Aster e ela dispara de volta.
Eles sabem se comportar. Logicamente porque se gostam, dá para
ver como se olham e como se tocam. Aquele começo de flerte que
qualquer ação da pessoa dá um gostoso frio na barriga.
Faz anos que não sinto isso.
No meu relacionamento com Garret, senti a ótima sensação
apenas no começo. Os três anos e meio que fiquei trancafiada na
nossa relação não foram das melhores épocas — e nem das mais
saudáveis.
Aster alarga o sorriso.
É aquele mesmo sorriso que nós sabemos que a pessoa está
sendo genericamente verdadeira.
— Ora — diz. — Você quer me assustar de alguma maneira.
Parece que deseja que eu saia desse torneio o quanto antes. Me
diga, você quer ajudar o Harvey ou não? — Aster apoia seu rosto na
mão. Estou pronta para falar, quando ela me interrompe. — Já sei!
Você quer o ajudar, mas não suporta a ideia de ver outra pessoa
fazendo aquilo que você gostaria de estar fazendo. Não é?
Se Aster Campbell tivesse me insultado ou me dado um soco
bem no meio do rosto, teria doído menos. E, talvez, nem tenha feito
tanto efeito, mas ela acertou em cheio. É exatamente o que sinto. É
inveja pura que corrói meus pensamentos e percorre minhas veias
cheias de sangue. São os piores sentimentos que alguém poderia
nutrir, se quer mesmo auxiliar alguém que ama.
E eu amo Harvey Bird, não deveria estar tentando afugentar
Aster. Sem ela seremos apenas duas pessoas novamente, e não
uma equipe. Logo agora que ele decidiu fazer algo por si mesmo e a
dívida estudantil.
É por esse motivo — talvez — que pego minhas coisas às
pressas. Recolho meu aparelho de som, pego minha mochila e a
coloco em cima do ombro sem esperar por mais uma de suas
frases. Por mais que ela tenha acertado, ainda não me sinto bem e
nem à vontade de entrar em uma pista de gelo novamente. Quanto
mais em uma discussão que saberei que vou perder.
Saio da arquibancada ouvindo os gritos de Harvey pedindo para
eu voltar.
Não estou me importando para a cena dramática que estou
dando a eles. Não me importo mesmo. Só quero sair o mais rápido
possível de perto de alguém que consegue me desvendar de uma
maneira tão objetiva.
Quero me livrar das lágrimas que percorrem meu rosto também,
mas isso é apenas assunto para a cabine vazia do meu carro
resolver.

Limpo os vestígios de rímel borrado da minha bochecha e


abaixo dos meus olhos com ajuda do retrovisor central. Fungo
algumas vezes e preciso definir que acabei de fazer uma cena digna
de uma novela. Odeio ser idiota. Odeio ser frágil ao ponto de
explodir de uma maneira tão fútil como essa. Mas já fiz.
O que preciso fazer agora é ir para casa.
Já está de noite quando dou a partida no estacionamento de
um Mc Donalds’s vinte e quatro horas. O único de Salt.
Quando fico triste ou brava, enfio na cabeça que “mereço” me
presentear com algo gostoso para comer. É claro que isso só deixa
ainda mais específico que sei que fiz algo de errado, então apenas
faço uma chantagem emocional comigo mesmo e acredito fielmente
que mereço um hambúrguer cheio de caloria, corantes e gordura
artificial para me fazer sorrir. Isso com mais um pouco de Coca-Cola
e batatas-fritas salgadas.
Dirijo até a minha casa ignorando as chamadas de Harvey. São
poucas. Ele não é de insistir. Já me conhece.
Odeio admitir que alguém tem razão, é quase como se um
vulcão entrasse em erupção dentro de mim.
Viro na esquina de casa e dou uma última olhada no vidro do
carro e no visor desligado de meu celular quando estaciono. Tudo
para checar e garantir que ninguém perceba que chorei. Por mais
ridículo que seja o motivo.
Saio do meu carro, tirando apenas minha mochila do banco de
trás. É bem no instante em que fecho a porta de meu Logan popular,
que um carro para ao lado da minha casa. O carro, de vidro filmado
e escuro, não estaciona de verdade. Apenas para no meio-fio. A
porta do passageiro, ao lado do motorista, se abre, revelando uma
perna lisa e bonita. Depois, mamãe sai cambaleando do carro,
acenando e se despedindo de alguém que se chama Anwer. Ela
está bêbada. Terrível e assustadoramente bêbada.
Não.
Ela está fora de si pelo estado que se encontra.
Um salto alto está no seu pé, outro, pendurado entre os dedos
trêmulos que tentam encontrar a chave da casa. O carro buzina e se
vai, cantando pneu. Ela não consegue me ver de onde está,
brigando com a própria bolsa e o molho de chaves que tilintam ao
fundo. Duvido que consiga pelo estado que se encontra.
São algumas opções que tenho; entrar em casa e fingir que não
a vi e interpretar surpresa quando todos na casa, meu pai e Barr, a
virem caindo de bêbada e tola no chão da sala e arcar com os gritos
dos dois — que irão começar uma guerra. Ou a outra opção, ajudar
minha mãe a entrar em casa, sem chamar a atenção de meu pai,
colocá-la na cama e esperar que o melhor aconteça pela manhã.
Checo o relógio. Não passa das sete horas da noite, de um dia
de semana. E minha mãe parece irreconhecível.
Há abóboras em algumas partes da vizinhança, pelo Halloween
no fim do mês. Tenho a opção de entrar no carro novamente, dar a
ré e passar o resto da noite na casa de Harvey. Ou posso ir para a
faculdade e vagar de aula em aula, apenas no dia em que não tenho
aulas presenciais à noite.
Mas todas as opções me fazem sentir ódio. E raiva.
Ódio de mamãe por agir feito uma irresponsável e raiva de
papai que irá atrás de uma briga daquelas.
E pelo meu amor a Barr, que não merece escutar gritos e ser
tirado de sua paz, é que corro até minha mãe.
— Oi, lindinha! — Mamãe sorri bobamente na minha direção.
Ela se apoia em um arbusto de galhos pontudos. Ela não sente dor
agora, mas irá quando amanhecer. — Nem te vi aí. De onde veio?
— O que você fez? — pergunto, olhando para a entrada da
nossa casa. A janela da sala indica que meu pai está em casa,
como sempre. — Mãe, você está...
— Estou ótima! — Ela abana as mãos. — Sério. Vamos entrar e
comer um bolo. Ei... Não deveria estar na faculdade?
— Hoje é segunda — respondo. Não sei o motivo de estar
explicando isso a ela, não irá entender. — Tenho apenas matérias
online de segunda. Será que podemos...
Entrar?
Como entrarei com a minha mãe nesse estado?
Barr irá ver.
É nesse momento que cogito a ideia de colocá-la no meu carro
e levá-la para qualquer lugar em Salt. Qualquer um que aceite uma
mulher bêbada e falante. E as opções são apenas as localizações
que mamãe já deve ter passado hoje.
Busco por uma resposta na noite. Qualquer uma.
Até que vejo as luzes acessas da casa das Campbell. Teria que
funcionar.
— Mãe. — Seguro seu rosto. — Me espera nos fundos de casa.
Eu vou te ajudar a entrar. Rapidinho. Consegue me escutar ou
entender?
— Que isso, lindinha. — Mamãe sorri. Ela só me chama de
“lindinha” quando bebe. — Vamos entrar!
— Mãe. — Quase grito, impaciente. — Vamos sair! — sugiro.
Algo nela se anima. — Vou apenas entrar e... Mentir para o papai e
depois volto. Podemos beber mais. Uma noite mãe e filha. Que tal?
Minha mãe sorri.
É quase um sorriso bonito se todo o seu rosto não estivesse
desfigurado pela maquiagem que derreteu.
Quase me vejo como um espelho.
Mamãe igual a mim.
Negra, de pescoço longo, cabelos lisos naturais, olhos
castanhos poderosos, algumas marcas de idade e um sorriso
estúpido pela bebida. Não me encontro nela. E desejo que, ao
menos, meu futuro casamento seja bem sucedido. Me odiaria se eu
me transformasse em alguém que não fosse eu mesma.
— Vamos! — diz mole. — Vamos, lindinha. Vamos!
Peço que ela me espere do lado do meu carro e ela confirma –
a faço prometer que não entrará em casa por nada nesse mundo -,
cambaleando até ele. Quando percebo que ela ficará parada, corro
para a porta principal da casa.
Meu pai assiste ao jogo de futebol quando entro. Há uma
garrafa de uísque ao seu lado. Então sei que a noite será difícil se
mamãe aparecer em minutos. Ele não repara na minha presença,
ou talvez finge não reparar nela quando subo as escadas correndo.
Felizmente, Barr está no videogame, com os amigos.
— Barr. — Inspiro me apoiando na porta. Chamo sua atenção
que só é do monitor que mantém gráficos bons de zumbis e aliens.
— Barr!
Ele retira os fones dos ouvidos, confuso.
— Sim?
— Quer dormir na casa da Aster hoje? — Não espero sua
resposta, começo a recolher a mochila de Barr do chão e a encher
de cuecas.
Será apenas uma noite, mas estou desesperada e preciso ser
rápida.
— Posso mesmo? — Barr se desprende rapidamente do
videogame, como se fosse uma dádiva divina eu ter feito um convite
que nem a própria dona da casa sabe que fez. Meu irmão nem
repara que recolho suas roupas como se fossemos fugitivos. — Jura
mesmo que posso?
— Sim. — Sorrio. O meu melhor sorriso. — Aster te convidou.
Me prometa que acordará às...
— Sete, e estarei na escola às oito. — Barr completa, eufórico.
Ele adora Aster. — Que legal. A Aster me convidou! Posso falar com
ela sobre o hóquei. E sobre o meu jogo e sobre, sobre...
Meu irmão de doze anos entra um monólogo sobre seus planos
essa noite.
— Tudo. Falará sobre tudo. — Toco sua bochecha. Ele me
ajuda a fazer sua mochila. Coloca sua escova de dente, gel favorito
e avisa os amigos que não entrará no videogame pelo restante da
noite. — Pegou tudo o que precisa?
— Sim. — Barr sorri, não se contendo de felicidade. — Quando
ela me convidou?
— Hoje mesmo. — Fecho rapidamente sua porta e tranco sem
ele perceber. — Quando estávamos ensaiando. Vim correndo te
contar!
— Que legal! — Barr passa os braços pelas alças da mochila e
desce as escadas comigo. Seguro seus ombros, indicando para
sairmos pelos fundos. — E por quê?
— Melhor. — É o que eu respondo, pegando uma maçã da
fruteira e dando a ele. — A sra. Campbell ama maçãs, lembra?
— E canela. — Barr faz um rápido malabarismo com a maçã e
corremos pelo quintal.
Pulamos a cerca dos fundos das Campbell e batemos em sua
porta dois minutos depois. Estou ansiosa e olhando para todos os
lados. Não me perdoaria se Barr visse mamãe naquele estado.
Quem atende a porta é Aster, segundos depois. Talvez tenha
passado muito tempo ao lado de Gwen, porque seu semblante é
pura desconfiança agora.
— Oi?!
— Oi! — Faço minha melhor imitação de felicidade e simpatia.
— Trouxe o Barr. Como você disse. Que convidou ele para... Dormir
aqui. Hoje no ensaio... Lembra?
A sra. Campbell está fumando um cigarro na cozinha, próxima à
janela. Ela bate a bituca no canteiro da janela e as cinzas
despencam do bico.
— É... — Aster tenta.
— Eu trouxe Barr! — falo novamente. Estou sorrindo de um
jeito estranho e não tem como explicar agora. — Ele... — Se ao
menos Aster lesse mentes ou olhos, ela entenderia de uma vez.
— Valeu por me convidar, Aster! — Barr me interrompe, com
um sorriso límpido no rosto.
Aster ainda está confusa, mas sorri genuinamente para o meu
irmão.
— Ora, criança. — Felizmente, a sra. Campbell me olha séria.
Está nervosa, mas não comigo. — Entre, entre. Vamos jantar em
breve. Gosta de salsicha com feijão vermelho? — Ela se livra do
cigarro.
— Gosto! — Barr responde, educado. – Trouxe uma maçã para
você, sra. Campbell. — Barr estende a fruta vermelha na direção de
Regina Campbell, que sorri agradecida.
— Obrigada, criança. Você é muito gentil! — Ela pisca, pegando
a maçã nos dedos trêmulos pela idade. — Então será isso. — A sra.
Cambpell decreta. Barr entra passando por Aster, que continua
confusa. — Ele irá para a escola amanhã cedo, Nicola. Te prometo!
— Ela faz um sinal com o rosto.
Quando Barr e a sra. Campbell desaparecem pela cozinha ou
pela casa, Aster sibila.
— O que houve?
Coço minha testa.
— Depois te explico. Só... Obrigada. Qualquer coisa me liga.
Mas eu trouxe tudo o que o Barr precisa.
Aster assente, engolindo em seco.
— Nicola, eu...
— Só cuida do meu irmão. Depois nos falamos.
Ela concorda novamente, em silêncio e se afasta da porta,
pronta para fechá-la. Volto pelo mesmo caminho que fiz, pulo a
cerca e entro em minha casa pelos fundos. Meu pai está na cozinha,
remexendo a geladeira. Ele nem repara que Barr não está mais
aqui.
— Você não deveria estar na faculdade? — pergunta,
seriamente.
— Hoje é segunda, pai.
Ele sorri um pouco zonzo de sono pelo uísque.
Pego meu celular e tento ligar para Nancy. O telefone toca,
algumas vezes, até cair a chamada e me brindar com um vazio
silencioso. Tento três vezes até me dar conta que ela não irá
atender. Ligações pela noite só podem significar uma coisa e Nancy
sabe melhor do que ninguém.
Estou pronta para a segunda parte do plano, mas sou
bruscamente interrompida quando a porta da frente bate com força.
11

A PRIMEIRA BRIGA DOS MEUS pais em que vi e presenciei,


quando o tenebroso ciclo começou, eu tinha apenas nove anos de
idade. Não consigo me lembrar quantos anos Nancy tinha, mas não
deveria ser tão mais velha do que eu. Barr, meu Deus, não faço
ideia se Barr já tinha nascido. É mais uma daquelas lembranças que
ficam corroídas com o passar dos anos, que cada hora um novo
detalhe aparece, um novo fato que te faz pensar “Nossa, é mesmo.
Isso aconteceu de verdade”.
Aquelas que revivemos tantas vezes, que um ou outro detalhe
deixam escapar. Não me recordo se minha mãe estava grávida ou
não, se estava pensando em ter Barr ou achava que duas filhas
eram o bastante para o seu casamento. As brigas começaram muito
antes de pensarem em ter um terceiro filho, acho que esse fato é o
verdadeiro.
Eu acho.
Julgo até mesmo que tenham começado a se desentenderem
muito antes de Nancy ou eu estarmos nesse mundo. Chutando alto,
é claro.
Não lembro como começou ou por qual motivo.
Só sei que eles estavam brigando por um tempo, na sala,
depois ouvi seus passos severos e pesados caminhando para a
cozinha, da cozinha para a escada, da escada para o quatro, onde
se trancaram e ficaram o restante da noite e depois os gritos
terminaram. Com o tempo, achei que todas as famílias eram iguais
as minhas. Que meu pai ficava quieto e retraído quando acontecia
uma briga e que minha mãe mordia os lábios sem ter a intenção de
parar sempre que um pensamento a assolava por muito tempo.
Nancy sempre comia seu cereal matinal com os olhos presos na
tigela e eu tentava adivinhar se iria acontecer de novo, ali na nossa
frente, ou se eles iriam mentir que tudo estava bem — ou que era a
última vez que se desentendiam.
Acontecia sempre a última opção.
Aprendi cedo demais que os adultos mentem. Que por acharam
que possuem uma certa idade, eles estão livres para ocultar a
verdade sempre que possível. Que eles não gostam de jogar com a
verdade e que quase sempre esperam que seus filhos sejam
reflexos deles mesmos no passado ou no presente, visando o
futuro. Esperam que nós possamos sonhar, mas só os que eles
permitiram, ou até mesmo retomar de onde eles pararam. De onde
seus sonhos foram interrompidos e por que não, deixá-los de
herança para seus filhos. Talvez tenha acontecido isso com os dois.
Talvez mamãe sempre quisera ganhar muito dinheiro sendo modelo,
ou vivendo da beleza.
Não sei.
Não sei mesmo.
Mas naquela briga, eu saí do meu quarto e Nancy saiu do dela,
sempre nos orgulhávamos de dormir lado a lado. Nós nunca
espiávamos as brigas por causa dos gritos. Sempre odiamos gritos
de raiva e de fúria.
Nós nos encaramos e pensamos que era só mais um momento
de distração entre eles. Que logo passaria.
Depois veio Barr, e as coisas deveriam melhorar quando há um
bebê a caminho. É o que todos pensam. Meu irmão foi criado no
meio de uma família que parecia perfeita em fotos, mas que vivia a
base de medo, mentiras e brigas.
Só que chega um momento que ficamos fartos desses
sentimentos que não se conectam.

Meu pé direito está enfaixado.


De uma maneira exagerada mesmo. Quando quebramos ossos,
eles engessam a parte quebrada de seu corpo e você fica por
semanas esperando que se recupere. Nesse momento, não vejo
diferença alguma entre o gesso e a faixa de pano branco que está
envolta do meu pé direito impedindo que eu pise direito.
Estou varrendo os cacos de porcelana e de vidro da casa
assustadoramente silenciosa que moro. O dia amanheceu faz
alguns minutos. Fiquei a madrugada toda acordada, nem pensando
na possibilidade de dormir como Harvey está adormecido na
poltrona de casa. A única poltrona que não tem respingos de uísque
ou que parece revirada. Ele está com o pescoço pendendo, a boca
aberta, cansado.
Sei que Harvey me mandaria para a cama de novo, justamente
pela noite difícil que eu tive e pelo pé machucado. Não bastasse o
pé esquerdo ser um tanto falho, agora preciso me adaptar ao
direito.
Suspiro em cima da minha mão, ela está apoiada no cabo da
vassoura enquanto junto os caquinhos.
Noite passada, é claro, não sai da minha cabeça. Os
acontecimentos ficam voltando para a minha mente como um filme.
Um possível ganhador de drama numa categoria do Oscar se
formos contratar ótimas atores para viver Celia e Justus Wolf, meus
pais.
Depois que deixei Barr na casa das Campbell, voltei à minha.
Meu pai estava na cozinha e ouvi a porta da frente bater como se
alguém tivesse chegando. Desejei e rezei para ser Nancy Wolf —
mesmo que essa possibilidade seja impossível em um milhão de
finais tristes —, a minha irmã que quase nunca telefona. Desejei até
mesmo ser o Diabo em pessoa, mas não poderia, nem em sonho,
ser minha mãe.
No estado em que minha mãe se encontrava, tenho certeza que
ela esqueceu que eu disse que iríamos sair, deve ter vagado pela
mente embriaga de bêbada e decidiu entrar. Ela veio se arrastando
pelo corredor, com a ajuda da parede e das mãos trêmulas, o salto
alto pendurado não estava mais entre seus dedos, denunciando que
minha mãe os perdeu no jardim da frente.
Meu pai estava mexendo no congelador, e quando parou de
remexer o gelo e os aspargos esquecidos no fundo do freezer,
encontrou um pedaço de pizza congelada.
O encontro dos dois foi mantido por mim.
Porque não sabia mais o que fazer para distraí-los e quando
mamãe cuspiu xingamentos para meu pai sem esperar outro
momento, apenas fechei os olhos e respirei para dentro.
Seria uma longa, longa noite.
De primeiro relance, meu pai não entendeu muito bem o que
estava acontecendo. Mas ele não estava embriagado o bastante
para não entender que ela estava fora de si. Ele compreendeu muito
bem.
A pizza de sua mão voou por cima dos ombros de minha mãe,
numa clara e falha tentativa de acertá-la.
— É isso o que acontece, não é? — Meu pai queria saber,
furioso. — Você fica o dia todo fora como uma vagabunda e volta
como se nada tivesse acontecido. E ainda tem a audácia de me
tratar dessa forma!
Há esse detalhe em minha mãe que não reparo e só reparo
porque meu pai apontou para eles incontáveis vezes; seus cabelos
estavam molhados.
Ah, não.
Pedir calma é ridículo, então apenas decidi ir pelo caminho
mais fácil. Andei até minha mãe, afastando o que podia de meu pai.
Sou apenas uma pessoa e eles são duas, magicamente fortes pela
bebida. Se tivesse Nancy por perto, ela poderia tentar conversar
com meu pai. Ele a escutaria. Todos escutam Nancy.
Mamãe é bem rápida para alguém tonta demais para se manter
em pé. Mas ela conseguiu se desvencilhar de mim e atingir um tapa
no meu pai, acusando que ele a destruiu e essa família. Consegui
puxá-la pelo quadril e notei que meu pai se controlou bons
segundos para não avançar. Se ele avançasse, estaria perdida e no
meio deles. Se ele avançasse, poderia ser o fim de tudo.
Havia um pouco de sanidade entre seus olhos brilhantes de
ódio. Mesmo que um pouco.
Consegui arrastar minha mãe até as escadas, onde ela se
debateu dura e severamente, querendo voltar de todas as formas
para a cozinha. Algo nela estava brilhando um instinto vingativo e
ela não poderia falhar com todos. Ela queria acertá-lo. Magoá-lo do
jeito que ele a magoou primeiro. Havia lágrimas concentradas em
seus olhos quando ela implorou para soltá-la, mas simplesmente
não consegui.
Estive apenas torcendo para Barr estar distraído, torcendo para
Aster tê-lo enfiado em algum jogo maluco de hóquei. Que os gritos
de minha mãe estivessem altos apenas porque estava perto demais.
Apenas desejei.
Até almejei que Nancy estivesse em Londres, feliz com o noivo,
nem pensando nos momentos de aflição que passou com eles antes
de mim.
No quarto, em que consigo trancar minha mãe dentro dele,
percebo que é o antigo e sagrado quarto de Nancy. O quarto dela
jamais fora tocado ou transformado em um cômodo de lazer. Na
minha família, qualquer tarefa ao ar livre pode ser melhor do que
ficarmos dentro de casa. Os pôsteres da One Direction e dos The
Stiff Dylans ainda decoram o quarto dela. O papel de parede cor de
rosa e a penteadeira branca com gavetas azuis, também.
Por algum motivo, minha mãe chorava e tentava, de algum
jeito, detonar meu pai.
Eu estava esperando o pior, que ele estivesse subindo a
escada ao nosso encontro e que derrubasse a porta do quarto de
Nancy aos pontapés. Felizmente, o silêncio que brindou a casa não
é perigoso. E nem calmante. É apenas cauteloso. Como se uma
bomba fosse explodir a qualquer segundo.
Lembro que tirei os sapatos de minha mãe e os meus. Porque
iria lhe dar um banho gelado para acalmá-la e fazê-la se sentir
melhor. Lembro que ela tentou me alcançar e puxou meu cabelo.
— Você jamais, jamais será como Nancy! — Ela berrou,
chorosa. — Ela é perfeita. A filha perfeita!
Eu queria negar.
Mas não poderia. Estaria mentindo.
Nancy Wolf andou em todos os trilhos que meus pais
dispuseram a ela sem causar reboliços ou protestos. Talvez seja por
isso que eles a adoravam tanto.
E talvez seja por isso que não conhecemos a real vida de
Nancy em Londres. Porque, de fato, jamais soubemos quem ela era
de verdade.
Enquanto eu afastava as palavras duras de mamãe que podiam
magoar mesmo ditas ao vento, ela não deixava barato. Não
conseguia ficar quieta e não deixava que seu vestido saísse de seu
corpo. Mesmo eu dizendo que lhe daria um banho.
Então, quando iria tentar um jogo emocional, implorar para que
ela me ajudasse, mamãe segurou meu rosto em um rápido
momento em que vacilei. Havia lágrimas presas em seus olhos e
naquele momento, percebi que havia derramado uma ou duas
lágrimas involuntárias.
— Diga a ele, Nicola! — Mamãe suplicou. — Diga a ele que
estava comigo. Que eu estava bebendo com as minhas amigas e
que fomos escolher as roupas do casamento da Nancy! Diga!
Me afastei do seu toque.
Descalça, senti o carpete fofo e macio abaixo dos meus pés.
Nancy tinha bom gosto.
— Você estava? — Quis saber, fitando-a. — Você estava
mesmo com suas amigas? Bebendo naquelas lojas que servem
champanhe?
Mamãe suspirou, como se odiasse lidar com principiantes.
— Não importa, querida. — Ela abafou o ar. — Apenas diga
isso a ele. Afinal, é quase verdade. O casamento de Nancy será
antes do Natal. Será uma ótima, ótima oportunidade de
conhecermos o noivo e a família dele. Precisamos estar perfeitos!
Lembro que sorri. Sorri apenas um pouco, menos sem vontade
alguma de sorrir.
— Não conhecemos o noivo de Nancy, mamãe. — Sorri sem
humor. — Por que Nancy não irá nos apresentar antes do
casamento. Por qual motivo ela faria isso? — Me apoiei nos meus
joelhos, encarando-a com seriedade. — Não temos nada a oferecer.
Somos uma família destruída. Destruída.
Lembro também que minha mãe enxugou as lágrimas e com os
dedos ágeis, segurou meu rosto. Foi rápido e pouco doloroso.
Talvez ela não tenha reparado que me agarrou tão forte, ou talvez
tenha feito força de propósito.
— Se eu falasse com a minha mãe desse jeito, dessa maneira,
quando ela me pedisse ajuda, eu teria levado um tapa tão bem
dado, que me lembraria dele para sempre, Nicola. — Sua boca
falava, mas eram seus olhos que me queimavam. — Seja boazinha.
Seja como Nancy, seja a filha perfeita, fale para seu pai que estava
comigo. Que bebi mais do que deveria e que achei uma roupa
belíssima para o maldito casamento.
O hálito de bebida me cumprimentou, arranhando o meu olfato.
Poderia bater em sua mão para me largar, mas simplesmente
deixei.
— Falarei o que fará — disse pausadamente. — Vá e diga a ele
o que lhe pedi.
— E se eu não for?
— Você nunca será como Nancy! — Ela voltou a repetir. Me
afastei e como mole que estava, minha mãe apenas cambaleou
para frente. — Ela mentiria por mim!
— Então você não estava com suas amigas? — Eu sabia a
resposta. Não sou nenhuma idiota. Mas queria que minha mãe
assumisse.
— Nicola... — Mamãe sorriu. — Você é uma imbecil. Claro que
não estava com minhas amigas. Eu estava com o Anwer, um cara
decente e inteligente. Que pode muito bem colocar um anel de
noivado no meu dedo. Partiremos para longe. Longe dessa cidade
gelada, longe dele, longe de todos vocês!
— Espero que tenha sorte, mamãe.
— Terei! — Ela se ofendeu com meu tom. Se ergueu da cama e
caminhou sem muita pressa. — Terei uma sorte tremenda. Você
verá, sua vadiazinha!
Ergui meu queixo, já trêmulo para encará-la. Qualquer que
fosse meu tom nessa conversa, não iria surtir efeito.
Tentei encontrar a mulher que minha mãe era por baixo da
camada de vodca pura, mas não encontrei. Lembro que me afastei
dela e abri a porta, no mesmo momento que meu pai subia as
escadas. Ele parou no batente e seus olhos estavam vermelhos de
cansaço e raiva.
Lembro que olhou minha mãe como se pudesse matá-la, minha
mãe olhou de volta como se morrer não fosse um medo, mas que
ela voltaria do inferno caso algo acontecesse.
Meu pai estava segurando uma garrafa de cerveja, mas não
lembro o que ele disse. Só lembro que mamãe passou por nós
rapidamente, alegando que moraria com Anwer de agora em diante.
Que era para arrumarmos as coisas de Barr e que os três viveriam
juntos, numa casa muito melhor que aquela. Meu pai a seguiu e na
ponta da escada, a garrafa de vidro de cerveja caiu. Quicou por
todos os degraus até parar no meio da sala, se partindo em
inúmeros caquinhos. Minha mãe, assustada com o vidro ruindo,
jogou ao chão dois de seus vasos de flores favoritos.
Presente de casamento e presente de vovó, respectivamente.
Naquele momento, soube que apenas um dos dois sairia
daquela situação vivo. Eu corri pelas escadas, só para afastá-los.
Não senti quando pisei em um enorme caco de vidro. Não sei
se foi da cerveja ou dos vasos, mas pisei. Bem na sola. Lembro que
gritei de dor e caí no sofá mais próximo para me apoiar.
No mesmo instante, na hora em que gritei de dor, meu pai
relaxou os ombros e as sobrancelhas. E minha mãe tomou um
baque sóbrio de uma vez.
Eles tentaram me ajudar, mas afastei seus braços de mim e
manquei até meu celular, chamando por Harvey.
— Se matem agora! — disse quando Harvey chegou e me
ajudou a caminhar até seu carro.

A sola do meu pé lateja um pouco. Me recusei a ver o estrago


que o vidro tinha feito assim que cheguei ao hospital de Salt. Me
recusei a olhá-lo e me recusei a contar todos os detalhes para
Harvey, por mais que ele soubesse. Fiquei o tempo todo assistindo
a um programa policial, deitada na maca, enquanto sentia o sangue
quente e a agulha da anestesia para tirar o caco de vidro da sola.
Não lembro o que o médico disse. Foi apenas uma imagem
sem som, com seus lábios se mexendo no ritmo.
— O que ele disse? — perguntei a Harvey, quando estávamos
voltando, quase a meia-noite para minha casa.
— Que seu pé ficará enfaixado por três semanas ou mais e que
pode tirar o curativo em casa. Mas nada de movimentos bruscos e
nem caminhadas longas enquanto isso.
Sorri, amarga, com as recomendações.
— Ou seja, ser exatamente quem eu sou há um ano —
respondi, me afundando no assento.
Harvey sorriu.
Ele tentou passar calma e amor naquele momento. Pousou sua
mão vaga no meu joelho e disse que me amava, que seria meu
melhor amigo para todo o sempre. Respondi de volta, sendo
sincera. Harvey insistiu que eu dormisse na sua casa esta noite,
apenas por um dia. Mas simplesmente sabia que não pregaria meus
olhos.
Queria voltar para casa só para garantir que Barr estivesse
bem. Para a minha felicidade, as luzes da casa das Campbell
estavam apagadas, sinalizando que já dormiam. Quando entrei em
casa, o silêncio me recebeu como se toda a residência fosse
tranquila e meiga. O tempo todo.
Meu pai dormiu no quarto de Nancy, em sua cama arrumada.
Mamãe estava adormecida no dela. De vestido, maquiagem e tudo.
Eu quis arrumar a sala, que ainda se parecia com uma zona de
guerra, mas Harvey não deixou, alegando que eu precisava dormir e
descansar. Subi as escadas com sua ajuda. Mas horas depois,
ainda estava acordada. Olhando para o teto, pensando em nada
além de não ser Nancy e ter ferrado o meu outro pé bom.
Não que eu fosse patinar, mas talvez agora seja um sinal do
destino e do universo para “Arranje outra atividade ou seja outra
pessoa. Jamais dançará novamente”.
Faltando pouco para amanhecer, desci as escadas. Descobri
onde Harvey estava dormindo; na poltrona. Fui até a cozinha e comi
outra pizza congelada. Foi meu jantar e café da manhã. Depois, me
arrastei até a sala e peguei uma vassoura, onde fiquei e ainda
estou, observando Harvey dormir e assisti o sol nascer, recolhendo
pedacinhos afiados de vidro do chão em jornais velhos que
encontrei na cozinha.
De todas as brigas de meus pais, talvez essa tenha sido a pior.
Mas é o primeiro machucado em anos que aparto uma briga
deles.

Às sete e meia, vou até a janela. Estou com o saco de papel


com os pedaços de vidros embrulhados. Barr está saindo da casa
das Campbell porque o ônibus da escola acabou de buzinar,
chamando por ele.
Barr sai da casa delas, acenando para a sra. Campbell e para
uma Aster surpreendentemente acordada. As duas mandam beijos
para ele e enfim, meu irmão corre até o ônibus, sobe seus degraus
e some atrás da porta sanfonada.
Aperto o cabo de vassoura entre meus dedos e manco até a
cozinha, deixando em uma parte isolada, no canto ao lado da porta
para me lembrar de reciclar e não simplesmente jogar fora. Me
apoio na pia da cozinha, para começar a lavar as únicas louças que
restam.
Alguém bate na porta dos fundos e me arrasto para atender,
mesmo sabendo que darei de cara com Aster.
Não estou com humor para suas piadinhas, e nem seu estilo
todo de vida. Mas atendo, porque Aster acolheu meu irmão e quero
perguntar a ela se os gritos foram audíveis.
Quando atendo, Aster está usando um coque bagunçado e
proposital. Os cabelos cacheados saltam do penteado e tem duas
mechas na frente, cada uma do lado de um olho. Está de pijama,
um de inverno com mangas longas e pantufas que parecem aquecer
seus pés.
Não queria ter comprimido os lábios. Mas comprimi para
segurar minha respiração.
Percebi que na pele de Aster há pintas pretas, que são muito
bem visíveis quando as mechas destacam seu rosto. Ela está muito
bonita e me odeio por achá-la tão atraente de um jeito tão natural.
— Cara. — Aster diz, depois de tentar sorrir para amenizar as
coisas. Seus olhos escapam para meu pé direito enfaixado e ela
entra na minha cozinha, depois que me arrasto para o lado. — O
que aconteceu? Quem fez isso com você?
Fecho a porta, me encostando nela. Um minuto para um
descanso.
Talvez eu falte na faculdade hoje.
— Bem, eu diria que eu mesma fiz isso comigo — sibilo.
Aster não gosta da resposta.
Seus olhos se movem novamente para o meu pé direito e ela
se agacha.
— Nicola Wolf, o que aconteceu? — Ela pergunta debaixo.
Prendo de novo a respiração.
Nunca fui tão sacana, mas vê-la tão perto de mim e debaixo,
me causa um aperto no estômago desconfortável. Minha mente
imagina coisas que não concordo em um momento como esse.
— Vidro — respondo a contra gosto. — Pisei em um pedaço de
vidro e aconteceu o óbvio. Sou uma idiota.
— Você não é uma idiota. — Aster consegue finalmente sorrir
de lado com a constatação. Ela se ergue do chão e para de frente
para mim, agora muito mais perto. — Pode me dizer o que houve?
— Aster coloca a mão nos bolsos, sem saber o que fazer.
Há sérios problemas em falar. Adoraria que ela pudesse
passear pela minha mente, assim saberia de uma vez e me
pouparia de detalhes. Então, percebo que só estou cansada de
repetir — mesmo não mentalmente — o que houve pela noite
passada.
Suspiro, mostrando a Aster que até a minha respiração está
pesada.
— Posso. Não tem problema — respondo, olhando para baixo e
depois para cima. — Só não quero falar agora.
— Respeito. — Aster concorda rapidamente, sem um pingo de
receio ou remorso. — Quer ajuda? Com alguma coisa? E os
treinos?
— Ainda serei uma idiota comprometida, acredite em mim. —
Pisco. Aster gargalha frouxamente. — Só tirarei daqui a algumas
semanas. Não quebrei e nem nada disso. — Mordo meus lábios. —
O Barr se comportou?
— Ele é maneiro. — Aster confirma com o queixo. — Ficamos
jogando Tranca, Ludo e tudo o que encontrei no sótão. Fiquei me
perguntando porque nunca fiz nada antes com o pirralho.
— Sempre que quiser e eu estiver cheia de trabalhos para
fazer, sinta-se dona de Barr. — Abro os braços. Aster volta a rir. —
Sério. Obrigada. De verdade.
— Acho que... como forma de mostrar que está bem grata,
poderíamos trocar os bancos da Betty, não é mesmo? — Aster
brinca, erguendo os ombros. — Com aqueles de couros chique. O
que acha?
— Um carro me parece bom o bastante.
— O nome do carro é Betty, por favor. Respeite! — Aster pede,
com o olho aberto e outro fechado. — Já basta Gwen se recusar a
falar o nome dela.
— Talvez Gwen não goste do nome Betty — observo.
Percebo que acabei de falar um pré-conceito meu sobre Gwen
Hallister. E ainda melhor, para a melhor amiga dela.
Logicamente, Aster Campbell não entende o que quero dizer.
— Ah. — Coço minha pálpebra. — Serei franca. — Desisto de
enrolar. — Às vezes acho que Gwen não gosta de muita coisa.
Especialmente de mim.
— Por que acha isso? — Aster cruza os braços, investigando.
— Ela parece não gostar de todo mundo que não seja o Harvey.
É nesse momento que espero que Aster e eu entremos em um
pé de guerra total. Mas, ao contrário do que eu penso, Aster
descruza os braços e ri, enfiando novamente as mãos nos bolsos do
pijama e sorrindo de uma maneira descontraída. Como se fossemos
amigas.
— A Gwen é assim. — Aster garante. — Desde pequena. Ela
matava os ursos de pelúcia dela e depois acusava com os olhos
qualquer pessoa. Todo mundo julga que Gwen não gosta de
ninguém. Mas gosta. E quanto a você, ela não tem nada contra.
— E nem a favor.
— Diria que mais a favor do que contra. — Aster remexe os
lábios. — Ela gosta mesmo é do Harvey.
— Estaria errada se não gostasse.
— Sim. Mas o caso é que até eu mesma tinha dúvidas de que
Gwen gostava de mim. Fui conhecendo e sabendo que ela tem esse
mal consigo; transparecer antipatia apenas pelo olhar quando, na
realidade, está pensando apenas em nada. Literalmente falando. —
Aster me aconselha e pisca ao final da frase.
É a minha vez de sorrir.
Não.
De rir!
— Olha. — Aster começa novamente, engolindo em seco. —
Não quero parecer repetitiva, mas você foi sozinha ao hospital?
Quero debochar desse momento — como sempre faço quando
não consigo lidar com uma situação.
— Harvey — digo. — Ele é meu super herói. Está dormindo na
sala.
Felizmente, o único cômodo da casa que não parece mal
arrumado é a cozinha.
— Diga a ele que estou treinando mentalmente todos os dias.
— Aster bate continência. — Ele é uma boa pessoa, estou feliz que
Gwen esteja gostando dele.
— Gwen é uma ótima pessoa para o Harvey, acredito que sim.
— Confirmo. — É isso o que ele gosta, na verdade, de pessoas.
Aster ergue as sobrancelhas, como se não tivesse pensado por
esse lado.
— Harvey é pan.
— Sério? — Aster está sorrindo, embora esteja desacreditada
também. — Não sabia. Isso é bom... gosto de pessoas que saibam
quem são.
— Sim, ele é ótimo!
Faço algo que não queria; bocejo. E assim que termino de me
espreguiçar involuntariamente, Aster bate uma palma.
— Eu vou indo, deve ter sido uma noite cansativa. — Ela se
apressa até a porta. Com a mão já na maçaneta, Aster me olha por
cima dos ombros. — Só queria dizer também... que quero pedir
desculpa sobre o que disse na arena. Não quero roubar o lugar de
ninguém e nem ser heroína. Acho que os créditos tem que ser de
todos seus.
— Não precisa pedir desculpa quando você tem razão.
O semblante de Aster muda.
— Realmente desejo estar no seu lugar, ser a pessoa que
levará Harvey ao pódio. Mas não posso ser e preciso me conformar
para nossa equipe dar certo. — Sorrio, sendo verdadeira com
minhas palavras e com o que quero demonstrar. — Aceito suas
desculpas se aceitar as minhas. Eu também preciso rever meu
comportamento nos treinos!
Aster Campbell demonstra surpresa, mas não de uma maneira
ofensiva. Ela apenas assente com o rosto e retira a mão da
maçaneta.
— Uma trégua? — sugere, me estendendo a mão. — Pela paz.
E pelo Harvey. Seria bom.
— Pelo Harvey. — Seguro sua mão e nós duas trocamos um
cumprimento. Selando nossa paz declarada. — Serei boazinha.
— Irei me focar. — Aster umedece os lábios e solta minha mão.
Agora, voltando a pousa-la na maçaneta novamente. — Agora vou
indo. Mas antes preciso fazer uma piadinha, só para mostrar que
posso entrar na trégua em paz. — Ela desce os degraus pequenos
do lado de fora e eu me apoio na porta, esperando para fechá-la. —
Como se sente sendo amiga de uma pessoa tão interessante? Vou
perguntar para a Gwen e você me responde também. Ok?
— Ah, Aster. — Sorrio negando com a cabeça. — Você sempre
acha que me conhece.
— Poderia fazer um livro sobre você. — Aster abre os braços.
— Então não esqueça de acrescentar que sou bissexual, assim
ficará mais real os termos da personagem. — Faço um som com a
boca que, com certeza, cala a de Aster.
Bato uma continência, ao meio de protestos de Aster
perguntando se é verdade ou mentira. Mas fecho a porta mesmo
assim, embora esteja sorrindo e tendo plena consciência que quem
me fez sorrir foi ela.
12

UMA DAS REGRAS OFICIAIS DA ENFERMAGEM — em que


li em Enfermagem para leigos — é que você sempre precisa atender
um paciente, não importa a hipótese. Independente da sua crença,
da dele, ou de qualquer pessoa. Precisa estar apto a cuidar das
pessoas, sendo elas do seu grupo social ou não. Quanto mais eu lia
as páginas amareladas do livro, mais me enxergava na profissão
que às vezes parece ser tão esquecida.
Às vezes as pessoas querem ser médicas, mas nunca
enfermeiras. Ou às vezes elas se vestem de enfermeira de uma
maneira provocativa e sexy, mais do que deveriam e acham que
aquilo é tudo o que precisamos saber da profissão. Ou essa
analogia não faz tanto sentido, mas tudo bem.
Estou sentada no tapete persa da casa de Taylor Moore,
enquanto estou lendo o livro. Peguei da biblioteca da faculdade e
agora estou lendo sempre que posso. Em intervalos de séries, antes
das refeições, ou nas refeições. Não que eu esteja devorando
páginas e páginas, estou ainda no começo. Mas fico relendo, mais
para tentar adivinhar ou descobrir se não deixei nada passar diante
dos meus olhos.
Quero ser justamente alguma coisa que as pessoas deixam de
lado, ou deixam passar despercebidas. E, uma profissão em que
precisamos respeitar a todos, sem precisar definir um detalhe
marcante sobre você e esse detalhe ser seu rótulo para sempre, é
algo que eu deva fazer.
Releio a página sobre as condições financeiras de um
enfermeiro quando Taylor Moore volta da cozinha. Ela me chamou
para estudarmos e começarmos os primeiros capítulos dos originais
que a sra. Tent quer. A convivência com Taylor me parece chata
agora.
Tudo na casa dela parece velho e sofisticado demais — não
nessa ordem. As poltronas parecem desconfortáveis por serem
retas e incômodas. Fico imaginando quantas vezes Garret Cox
esteve aqui, perto da lareira de Taylor e os dois, sozinhos.
Toda essa confusão está me dando vontade de cair fora.
Mas tenho que fazer isso com jeito. Não simplesmente parar de
responder Taylor ou torcer para ela me esquecer. Posso definir que
podemos ser amigas, apesar dessa possibilidade ser de um tanto
quanto impossível. O jeito que ela me trata pessoalmente, ao lado
de seus fiéis companheiros, me parece o jeito idêntico e escrachado
em que ela me tratava no ensino médio.
— Trouxe pipoca. — Taylor fala cantarolando quando está feliz
ou satisfeita de algo estar acontecendo em sua vida. Ela se senta ao
meu lado, mesmo que tenha odiado a ideia de sentarmos no chão.
Ainda mais em um tapete persa. — Começou?
— Ah, sim. Mas em casa. — Fecho o livro e o guardo
rapidamente na minha mochila. — Escrevi apenas um capítulo.
— Sobre o quê? — Taylor quer saber, espiando meu caderno.
Ela abre o dela e pesca uma pipoca, levando até a boca de maneira
charmosa e contida. Taylor toda é um charme. Um charme perigoso.
— Eu comecei o meu. Fala sobre uma garota que conhece um
garoto em uma cafeteria.
— E esse garoto nada mais era que o Harry Styles — completo,
divertida. Taylor sorri, embora não tenha entendido o teor da piada.
— É apenas uma piada.
Taylor fica visivelmente receosa.
— Pode me falar.
— Não sou tão inteligente feito você. — Taylor toca minha
bochecha. Sei que se eu olhar para ela, Taylor me roubará um beijo.
Então mantenho meus olhos no meu caderno. A garota espera mais
alguns segundos, com a esperança cravada ao peito para poder me
tocar finalmente. — Voltando. — Ela desiste de me beijar e batuca
as unhas na agenda de anotações dela. — Só pensei nisso. Um
romance. É o que gosto de ler e possivelmente escrever. Tem algum
mal nisso?
— Não. Mas pode ficar mais interessante. O cara pode ser um
milionário que quer passar algum tempo “normal” com pessoas que
não tem a mesma quantidade de libras do que ele. Ou a garota
pode ser uma celebridade disfarçada.
— Ah. — Taylor sibila surpresa. — Você tem tanta criatividade!
— Ou muito tempo vago. — Dou de ombros.
— Não. — Manhosa, Taylor me abraça de lado e consegue
beijar minha bochecha de modo sensual. — Você é talentosa.
Aposto que seus capítulos são bons!
— Não precisa se cobrar. É apenas uma introdução aos
originais. É dever da sra. Tent nos auxiliar na escrita de um —
rebato, fortificando minha tese.
— Anda. — Taylor bate palminhas. — Quero ver.
Quero arfar. Pesadamente. Do tipo de estar arrependida de
algo. Porque estou.
Estou tão enlaçada agora em Taylor que mal consigo respirar.
Ela me parece tão simples e odiosa agora, que só fico me
perguntando o motivo de estar aqui. Sexo não é o bastante e até
para manter algo casual preciso, ao menos, gostar da pessoa.
Taylor demonstra seriamente me detestar em público.
Então, por que preciso ser legal com ela nos bastidores?
E por que eu?
O relacionamento dela com Garret deve ser uma merda, não é?
— É sobre uma garota — começo. — Que vai morrer. Câncer
no cérebro. Ela quer ser astronauta e ao menos ver o espaço antes
de morrer. Só uma vez. Assim poderá morrer em paz. Mas todas as
condições parecem horríveis para isso. Então os meus cinco
capítulos são apenas monólogos sobre o desejo dela de conhecer
as estrelas de perto. E são rascunhos. Só fiz um oficial.
— Me parece ótimo. — Taylor sussurra, pasma. — Posso ler?
Sem antes eu responder, Taylor pega da minha mão o
manuscrito e passa seus olhos verdes por ele. Quero, de alguma
maneira, pegar o caderno de volta. Acontece que são apenas
alguns capítulos ali e aqui, anotações e rabiscos vezes ou outras.
Não é o bastante para ser entregue. Quero dizer, o texto precisa ser
lapidado.
Enquanto lê, Taylor interage com suas próprias reações; ela
sorri, ela vibra, ela fica feliz ao ler determinada frase e se contém
com o final pouco rascunhado que criei. Convencida que sou um
gênio, Taylor Moore propõe que eu seja sua tutora oficial. Visto que
o cargo tem nítidas e segundas intenções, me sinto cansada por
dentro. Aquele seria meu último encontro às escondidas com Taylor.
É uma promessa, na verdade.
— Não posso — respondo, pegando o caderno de sua mão e
batendo o lápis na folha. — Vou terminar isso e preciso treinar todos
os dias. Só estou aqui hoje, porque... — Eu me calo aos poucos.
Taylor deve saber o motivo de eu estar aqui.
A maldita cidade de Salt, quase nada de legal ou importante
acontece, já sabe da existência de uma Nicola Wolf com o pé
enfaixado. Gwen me ligou hoje mais cedo me perguntando o que
havia acontecido, mas como explicar algo que nem ao menos sei?
Todos na vizinhança sabem que os Wolfs não são a família perfeita,
que há um casamento de aparências, à beira de um divórcio
deprimente. Sim, isso todos nós sabemos. Mas o que realmente
acontece naquela casa, esse é o verdadeiro mistério.
Sou a vizinha deles, mas não desconfio de nada. Barr é um
ótimo garoto, Nicola também — muito bem educada, tal qual uma
princesa no século 21 — Nancy é a filha predileta. Por mais que
eles mintam na cara dos outros dois, sei que os pais de Nicola
preferem Nancy por algum motivo que não sei explicar.
— Ah, sim. — Taylor diz, pegando um lápis de seu estojo de
escrita e começando a escrever à mão. — Nicola está
machucadinha de novo.
— Não foi nada sério — resmungo baixo. Mas Taylor escutou e
me encara como se eu pudesse lhe dar mais informações. — Só sei
isso!
— Você deveria saber mais. — Taylor volta a sorrir, olhando
para o papel. — Sei cada coisa que pode te deixar de cabelo em pé.
É nesse momento que sorrio de lado. Taylor pode até saber das
coisas. Mas sabe o que real acontece na casa dos Wolf?
Ao que me leva que; Nicola me disse ontem que é bissexual.
Como não reparei nisso antes? Ou como nunca me atendei a um
fato que a deixa mais interessante?
Meu Deus.
Acabei de pensar que “Nicola não parece bi”.
E o que seria um perfil bi, Aster? Não existe. As pessoas são
como são. Preciso me dar essa bronca mentalmente por pensar em
algo tão banal e clichê. É como se cada pessoa andasse com seu
rótulo e aqueles que não conseguem ver ou definir, logo acham que
não são nada. Ou são mais do mesmo. Mas não Nicola. Esse
pensamento realmente me faz morder os lábios e desejar abrir mais
a porcaria da minha mente que se manteve fechada durante algum
tempo.
— Como saberia? — debochei, sem antes perceber que Taylor
estava escrevendo.
No entanto, ela para de rabiscar sua letra cursiva e bonita nas
linhas do caderno e sorri, como se eu fosse bastante inocente.
— Sou namorada de Garret, bobinha. — Taylor para de
escrever e pega o meu caderno. — Posso ficar com os rascunhos?
— Para o quê?
— Vou apenas me inspirar da maneira que você escreve e só.
Posso? — Taylor fez bico.
Desviei de outro beijo e abri mão das minhas anotações.
— Como sabe... — Escolho bem minhas palavras. Ofender
Garret Cox pode ser um ótimo passatempo, mas não quando a
namorada dele está logo ali. Cujo relacionamento é bem duvidoso.
— Como pode ter certeza que Garret falou a verdade esse tempo
todo?
— Muitas pessoas falam a mesma coisa. — Taylor se recosta
nas pernas do sofá e pesca mais uma pipoca. — Que os pais dela
são separados, mas vivem na mesma casa. Que as brigas são
violentas, de ambos os lados. Não iria ficar surpresa se Nicola
fosse... Ah, você sabe.
— Acha que tocaram nela?
— Quem sabe?
— Taylor...
— Garret me disse que Nicola ligava para ele sempre tarde da
noite. Pedindo ajuda com aquele pai bêbado que ela tem, e a mãe
sem noção. Até parece novela, não é? — Impressionantemente,
Taylor estava achando engraçado. Um assunto divertido. — Bom. —
Ela suspira. — O que eu sei é isso. Que pode rolar mais do que
apenas gritos e xingamentos. Acho que pode ser apenas azar.
— Azar?
— Viver nessa família. — Taylor arfa, começando a ficar com
tédio. — Ao menos a Nancy era a mais interessante.
Não me orgulho de estar ouvindo fofocas que não podem ser
reais, mas estou envolvida demais no assunto para recuar. Seguro o
pingente de cadeado entre meus dedos. Isso significa que, o que eu
escutar aqui, no tapete persa dos Moore, ficará aqui. Não sairá
comigo. Eu trancarei qualquer que seja o boato maldoso sobre a
família de Nicola Wolf e não levarei em conta.
Em nada.
— O que mais você sabe?
Taylor sorri.
Satisfeita.
— Sei que os pais tem um casamento de aparências, algo não
deu certo. Isso só Garret sabe, mas nunca me contou. Eles não se
amam, mas vivem brigando. O tempo todo. O divórcio sairá em
breve e pode ser que os dois se batam. — Taylor recita tudo com
bastante naturalidade. — Garret disse que uma vez teve que
segurar a sra. Celia Wolf de cima do sr. Justus Wolf. Que foi feia a
briga e que a Nicola passou uma semana na casa dele, se
recusando a voltar.
— Quando foi isso? — Me apresso.
— Isso o quê?
— Que Nicola ficou na casa de Garret.
Taylor parece tentar recuar. A imagem de Garret com outra lhe
dá a breve sensação de perda. O que é bastante irônico vindo dela.
— Acho que três meses antes do acidente de Nicola. — Taylor
dá de ombros. — Lembro que ele disse que não faltava muito para
ela cair e quebrar o pé. E deslocar violentamente o ombro.
Me lembro desse dia.
Me lembro dessa semana, na verdade.
Eu estava tendo uma ótima temporada com as Tormentas. A
janela de Nicola, de frente para a minha, ficou com as cortinas
fechadas o tempo todo. Ela é meu contrário. As cortinas, no quarto
de Nicola, fechadas, significam que ninguém está por perto.
Abertas, quer dizer que Nicola quer ver o mundo lá fora.
Barr foi para a escola com a cabeça baixa todos os dias
daquele mês, não correu e nem enviou beijos invisíveis pelo ar em
nenhum momento. Porque não tinha clima e nem pessoas para vê-
lo ir à escola.
— Sabe. — Taylor diz. — Às vezes eu tenho dó da Nicola.
Seus braços se esticam até meus ombros e ela se aproxima.
Sinto seu cheiro irritante de maçã — que agora é irritante — e
ignoro. Há um caos de informações dentro de mim, se conectando.
Sempre achei que Nicola fosse a pessoa mais chata e sem graça do
mundo.
Em menos de dois dias, descubro que ela enfrenta várias
tempestades de uma vez só. Esse fato, o fato de que Nicola é
humana, me faz sentir apego por ela. Não cruelmente. Não preciso
vê-la sofrer para definir que é uma boa pessoa. Só estou dizendo
que é bom, finalmente, enxergá-la como uma pessoa. E não apenas
como uma conhecida, uma vizinha ou simplesmente, só como
Nicola Wolf.
Quero conhecê-la cada vez mais.
Por um motivo que ainda não encontrei, mas tem a ver com o
momento em sua cozinha ontem. Mesmo machucada, estava bem,
leve e forte. Sempre forte.
O tempo todo.
Taylor não se acanha pelo meu silêncio, seus dedos tocam
meus ombros e minhas clavículas e seus beijos começam ao pé do
meu ouvido.
— Ela não importa. — Taylor diz. — Não importa mesmo.
Me afasto um pouco dela e fungo, apontando para nosso
trabalho.
— Você me chamou aqui para estudarmos — falo, séria. — E
iremos fazer isso.
Nada de legal ou muito importante acontece em Salt.
— Cheguei — anuncio para a casa que está envolta de jazz
essa noite.
Infelizmente, Barr voltou para casa, não o encontro à mesa
jogando Truco com vovó ou Caça Palavras. Dentro de casa, vovó
está sentada na sua poltrona favorita, ouvindo seu disco de jazz
favorito, enquanto fuma seu cigarro favorito.
— Olá, Aster. — Ela me cumprimentou com um aceno de rosto.
— Tem comida na geladeira.
— Vou tomar banho e comer — respondo rapidamente.
Caminho até as escadas, mas desisto. Desço um degrau e olho
para vovó, que está em seus momentos de delírios nostálgicos. E
não gosta de ser interrompida. — Vovó?
— Sim, meu amor?
— Por que nunca me contou o que acontecia na casa dos
Wolf?
A música não para como nos filmes. Ela continua. Sussurrando
que um homem encontrará seu amor verdadeiro abaixo de uma
árvore, e que seu amor lhe esperará com uma carta entre seus
dedos trêmulos de saudade.
Vovó pendura o cigarro em sua boca, como se pensasse em
qual resposta me dar antes de finalizar uma conversa que não
teremos.
— Eu já estive na pele de Celia Wolf, uma vez. Presa a um
homem que me fazia perder a razão e os sentidos. — Vovó observa.
— Não lhe contei porque odiaria que alguém comentasse sobre
mim, ou dissesse algo maldoso apenas pelo ar esnobe de uma
fofoca e não sem querer ajudar. — Ela me encara por cima dos
ombros. — Consegue entender, meu amor?
— Perfeitamente, vovó.
13

SEMPRE ME GABEI QUE NUNCA havia quebrado nada do


meu corpo. Nem um osso sequer. Eu tinha um recorde mental ou
nenhuma história para contar quando me perguntavam sobre minha
infância. Ou se eu era uma criança muito agitada ou se sempre caía
ou me machucava com facilidade. A resposta é não.
Mas agora, posso falar com “orgulho” que meus dois pés
passaram por situações nada legais. Por exemplo, o esquerdo me
impede de competir, e agora o direito está interditado por alguns
dias.
Quando meus pais me viram com o pé enfaixado, um pouco de
culpa misturada com remorso atingiu os rostos deles. Sei que sim.
Pela maneira que meu pai não conseguia mastigar a comida sempre
que eu me arrastava até a mesa, ou pela maneira rápida, prática e
indolor que passei a mentir para Barr. Para ele, disse que derrubei
uma garrafa de vidro de Coca-Cola, e sendo um imbecil, acabei
pisando em um caco de vidro.
Senti que todo o jantar minha mãe prendia a respiração e meu
pai só olhava as ervilhas e as cenouras cozidas dentro de seu prato.
Nada além disso. Nem um pedido de desculpa, e nem uma ajuda a
mais. Quero dizer, eles estavam me ajudando. Depois da briga em
que eu levei a pior, eles passaram a falar mais com Barr. Pediram
para que ele tocasse mais piano e falasse sobre hóquei. Todos —
os três — falaram sobre o casamento de Nancy em breve e como
precisávamos encontrar uma roupa adequada para estarmos lá.
Já que somos a família da noiva.
Barr estava animado em visitar Londres, por outros milhões de
motivos que pode ser difícil definir. Mas na idade dele, qualquer
viagem é uma viagem mágica. Então, não quis estragar ou manchar
sua diversão apenas pela falta da minha.
A cidade inteira já sabia o que tinha acontecido comigo. As
pessoas abriam espaço para eu poder passar em seções do
mercado, me ajudavam no corredor da escola e sempre
cochichavam. Talvez falando que o azar decidiu sentar no meu
ombro e me acompanhar pelo restante da vida. Ou apenas sendo
dramáticos. É complexo saber.
Os treinos com Aster e Harvey melhoraram, significantemente.
Gwen Hallister sempre aparecia pelos ensaios quando
terminava seu turno na loja de discos. Harvey me disse que ela não
tem muito o que fazer numa loja que ainda vende CD’s e vinis. Que
alguns clientes apenas escutam música pelos fones acoplados em
estantes e depois vão embora. Que é um emprego de meio período
e que ainda paga bem, mas não o bastante para valer à pena mofar
em uma loja.
Eu gostava — no fundo — que Gwen tivesse um senso crítico
de opinião; se Aster deslizava para longe de Harvey, Gwen me
falava imediatamente. Não de propósito, mas para me ajudar. Aster
não pode, de jeito nenhum, patinar para longe de Harvey e vice e
versa. E, talvez — apenas talvez — um cargo de treinadora sozinha
seja um pouco difícil. Só estou dizendo. Estou em desvantagem.
Prestar atenção nos dois é difícil.
Não sabia como me aproximar de Gwen. Embora ela seja a
pessoa que Harvey esteja gostando nesse momento. Não sei me
aproximar de ninguém. O que é ridículo. Eu sei me aproximar de
Harvey Bird, por isso ele é meu único e melhor amigo. Mas o
restante das pessoas? Não sei!
Não me lembro como me relacionei com Garret, mas é bem
provável que tenha sido ele o exemplo de socialidade entre nós dois
e tenha falado comigo primeiro. Acontece que me esqueci, de
verdade, como tudo aconteceu. Mas gosto de me apegar a ideia de
que foi Garret quem me convidou para sair, e não ao contrário.
Eu estaria sendo bastante estúpida.
Na véspera do Halloween, Gwen, Harvey, Aster e eu estávamos
na Arena Palmer. Eu tinha escolhido um instrumental de John
Williams em Star Wars, e Harvey e Aster estavam arriscando
passos livres. Aster ainda tem uma brutalidade e uma maneira
ríspida de se mover na pista; como se estivesse defendendo a si
mesma de um disco voador e perigoso. Preciso lembrar a ela
constantemente que não estamos em um jogo de hóquei, que ela
não precisa cerrar os dentes sempre que erra um passo e que
precisa manter o rosto neutro e sorrir só quando precisar.
É como lapidar do zero um diamante bruto.
Poético, não é?
Mas é somente a verdade.
Meu pé continuava enfaixado, mas me locomover com ele
estava sendo mais fácil dos que nos primeiros dias. Consigo ficar
sentada sempre na arquibancada, com um megafone que Harvey
encontrou na garagem dele. Disse que pode me ajudar nas
instruções.
Nesse momento, Aster está patinando, suavemente, para ao
lado de Harvey. Eles sorriem um para o outro e Aster toca a mão
dele. Leva até o ombro, no ritmo da melodia, tranquila e serena. Ela
fecha os olhos e deixa Harvey a conduzir, de costas, entre a pista
muito bem iluminada. Aster continua em ré, de costas para onde
Harvey estava a guiando. Seus cabelos cacheados tocam
delicadamente sua pele. Os fios teimosos que insistem em escapar
do seu coque. Mas, estamos ensaiando há duas horas, é até
compreensível.
Seguro a haste do megafone entre meus dedos, com a intenção
de gritar a eles para tomarem cuidado. Que nenhum dos dois
podem cair ou se ferir. Mas me contenho. Não quero ser chata e não
quero estragar esse momento de tanta serenidade entre os dois.
Harvey sabe o que está fazendo. Esse é o primeiro passo para
conseguir enxergar que ele não é nenhum garotinho de seis anos de
idade. Ele é profissional, assim como eu.
Ou assim como eu fui, é claro.
Solto o megafone dos meus dedos, desistindo da vontade de
encerrar o momento.
Eles dão uma volta completa, com Aster Campbell de olhos
fechados. Infelizmente, sinto a mesma sensação de quando
estávamos na minha cozinha na semana retrasada. Que ela é
bonita e sempre sabe o que está fazendo.
Pisco meus olhos, me desprendendo desse fato sobre Aster.
— Eles são bons, não é? — Gwen desliza para perto de mim,
na arquibancada. Seus olhos brilham por Harvey e depois passam
para mim. — Até fiquei sem palavras.
Sinto uma pequena irritação pela última frase. É quase como
ser pega em flagrante admirando Aster; pois Gwen está babando
por Harvey e a única pessoa que resta é... a pessoa que realmente
me parece muito bem vista daqui.
— Sim. Para treinos simples, sim. Quero ver quando
começarmos os ensaios pesados. Quando Harvey começar a rodar
ou erguer Aster. — Finjo um sorriso, do qual faz Gwen juntar
levemente as sobrancelhas. Provavelmente se perguntando o que
tinha dito de errado. — Fim do ensaio! — falo pelo megafone. —
Podem relaxar.
Aster abre os olhos como se despertasse uma princesa de seu
sono; com calma e graciosidade. Quero revirar meus olhos
fortemente a cada detalhe nela que passo a reparar e me coloco em
pé. Harvey e Aster se direcionam até a porta, que mais parece uma
passagem entre a pista e a arquibancada. Eles tiram os patins longe
de nós e caminham com eles pendurados entre os dedos.
— Só estávamos fazendo um teste de confiança. — Harvey
está suado, ele limpa os respingos de suor da testa com o dorso da
mão. — O que achou? Logo começaremos as partes perigosas.
— Sei disso. — Sorrio, erguendo meus ombros. — Mas irei
encerrar. Amanhã é Halloween e não quero prender todos nós
nesse feriado. Sou ou não sou boazinha? — Faço a piada para
Harvey escutar, mas Aster quem dá risada.
Não nos falamos muito desde o dia em que ela pediu desculpa
e aceitamos e declaramos uma trégua. Pela paz e por Harvey. Ela
está chegando aos treinos pontualmente. Houve até mesmo um dia
na semana passada em que Aster já estava aqui quando chegamos.
Ela acenou e sorriu, perguntando o motivo de termos demorado
tanto.
Enquanto recolho minhas coisas, Harvey e Gwen se afastam,
deixando Aster e eu sozinhas. Recolho algumas partes das minhas
anotações e sobre as melhoras consideráveis na postura da
Campbell, quando ela se senta ao meu lado, prestes a falar.
— O que fará amanhã? — Aster pergunta.
Ela está puxando assunto?
— Levarei Barr para pedir doces na vizinhança. E depois,
assistirei algum filme de terror, só para falar que curti a festa. E
você?
— Pedir doces? — Aster franze o nariz e a testa ao mesmo
tempo.
— Você nem parece que mora na nossa rua. — É uma piada.
Uma frase que faz Aster dar de ombros. — Alguns dos nossos
vizinhos tiveram a ideia de dar um Halloween incrível para as
crianças do bairro, como nos filmes. Pedir doces, travessuras, andar
fantasiados pelas ruas e avenidas. Essas coisas. Então o Barr está
animado de bater em porta em porta.
— Maneiro. — Aster murcha os lábios ao reconhecer. — Na
minha época não tinha nada disso. Fofo. Queria que tivessem feito
algo parecido. Tenho uma lista de fantasias ótimas que poderia ter
me vestido.
— Sim, ele está muito animado. — Recolho tudo o que espalhei
em outros bancos na minha mochila. Aster me encara, enquanto
levanto. Parece cuidado e cautela, e limpo minha garganta,
desconfortável com o olhar. — E você?
— Ah. — Ela se levanta também, ainda com os patins
pendurados entre os cadarços amarrados ao redor de seu pescoço.
— Gwen dará uma festa à fantasia.
— Harvey comentou. — E inclusive, me convidou. Mas neguei.
— Você vai?
— Sim. — Aster enfia as mãos nos bolsos logo após colocar a
mochila em suas costas. — Mas antes da festa estou livre. Posso ir
com vocês pegar alguns doces?
Minha garganta e língua estão totalmente secas.
Avisto Gwen e Harvey à porta da Arena Palmer. Conversando e
sorrindo. Harvey me disse que Gwen convidou muitas pessoas para
a festa e que essas pessoas convidaram outras e que será a festa
do ano.
Por que pedir doces comigo e com Barr é mais interessante do
que chegar mais cedo na festa da sua melhor amiga?
— Pode. — Dou de ombros também. Quero parecer natural e
não desaprovando essa ideia. — Claro que pode. O Barr vai adorar.
— Combinado, então. — Aster pisca, apressando seu passo
para pular nas costas de Gwen e exigir que as duas fossem tomar
um pouco de café na confeitaria favorita delas.

— Está bom?
Barr está aflito com sua fantasia, ele quer que tudo esteja nos
mínimos detalhes perfeitos que imaginou. Ele tem uma festa para ir.
Sua primeira festa do ensino fundamental e a primeira que irá
sozinho. Um garoto de sua sala, alguém chamado Luc, o convidou
hoje à tarde. Ele pediu para mamãe e ela deixou. Barr irá dormir na
casa de Luc depois que a mãe dele vier buscá-lo antes da meia-
noite. Barr tem planos de comer muito chocolate, assistir filmes com
muito sangue e só dormir depois das três da manhã.
— Está melhor do que todas as fantasias que já vi — elogio-o
observando que a rua estava movimentada para um feriado que Salt
não comemora muito bem.
Nada de legal ou muito importante acontece por aqui mesmo.
Barr Wolf está fantasiado de Grover, de Percy Jackson.
Colocou pequenos chifres falsos entre o cabelo crespo e baixo,
pintou à mão com a ajuda de papai, os emblemas as letras do
Acampamento Meio-Sangue, colocou uma calça jeans preta de
lavagem totalmente nova — que eu nem sabia que ele a tinha.
— Podemos ir? — Barr pergunta de uma vez, pegando uma
sacola plástica com uma abóbora que está fumando um cigarro.
— Vamos. — Me apresso em dizer.
Porque mamãe está com aquele olhar que quer me pedir
alguma coisa. E irei prontamente negar.
Quando Barr desce as escadarias primeiro, mamãe me chama,
tranquila, sem levantar suspeitas. Ela se encosta no batente da
porta e ainda envergonhada — sem encarar meu pé ferido — ela
sorri. Ou ao menos tenta.
— Será que podemos conversar? Quando Barr for até a casa
do amigo?
Eu poderia dizer “sim” se já não soubesse o que “conversar”
significa em outras palavras. Então apenas sorrio, de volta.
— Não — simplifico. — Irei à uma festa.
É mentira.
Neguei todos os convites de Harvey e de Gwen para aparecer.
Mas agora que estou falando com mamãe, terei que ir.
— Te vejo amanhã. — Encerro nossa pequena conversa e
desço as escadas.
Barr já está falando com Aster Campbell, de frente para o
jardim da casa dela. Todos na vizinhança não pouparam gastos para
oferecer um dia inteiro de horror e “magia” para seus filhos. Todas
as casas possuem pelo menos duas abóboras luminárias. Sangue
falso em caixas de correio e ou alguns Condes Dráculas de fantoche
sentados em uma cadeira na varanda.
Me aproximo dos dois e percebo que Aster está fantasiada
também. Sei que estamos indo à uma festa, mas não imaginava que
ela levaria a sério.
Está bonita.
Bem bonita.
Dentro de uma fantasia dos Caça-Fantasmas, até mesmo o
macacão de cor marrom-papelão e uma caixa de alumínio presa às
suas costas. Cabelos em um rabo de cavalo que deixa os cachos
soltos e bufantes do lado de trás.
Ao me ver, Aster tem duas reações; sorrir e depois negar com a
cabeça.
— Não está fantasiada, Nicola. — Ela reclama assim que me
aproximo. — Aposto que pegou o primeiro vestido preto que
encontrou e acha que está.
Meio que me vesti de Wednesday Addams. Estou usando um
vestido preto, não muito longo até os joelhos, meia-calça e
sapatilhas baixas, também pretas. Uma maquiagem ao redor dos
olhos, muito mal feita e cadavérica. Tranças dos dois lados caem
em meu busto. E as pessoas não precisam saber o que são olheiras
e o que é maquiagem pura.
— Sim, estou — defendo minha fantasia. — Achei um tutorial
fácil. Não estrague a brincadeira, Aster. Sou a própria Wednesday!
— Não irei discordar! — Aster ergue as mãos em rendição. —
Vamos nessa, pirralho?
— Vamos! — Barr comemora e corre na frente.
Aster me olha e aponta para frente, para eu poder passar
primeiro. Então, dou um passo e nossos ombros se chocam.
Decididas a caminharmos uma do lado da outra, ficamos em silêncio
pelos primeiros cinco minutos.

Barr conseguiu três barras de chocolate Hershey’s e uma pilha


de pirulitos só na primeira volta de casas que compõe a minha rua.
Aster e ele estavam pedindo doces. Não fazia ideia que aquela
caixa de alumínio em suas costas também servia para armazenar
doces. Ela foi bastante inteligente e perspicaz.
Quando Barr estava caminhando muito à frente de nós, sem
poder escutar nem um espirro nosso, limpei a garganta para
começar a falar.
— Vou à festa da Gwen, então.
Aster, que estava chupando um pirulito de coração, apenas
sorriu.
— E por que mudou de ideia?
Suspirei.
— Minha mãe quer conversar comigo. E eu não quero. Sei que
será mais do mesmo e que não irá adiantar nada. Então... —
Arrumo meus ombros. Barr acabou de comer uma barra de cereal
com chocolate que ganhou da última casa. — Será que ainda posso
ir?
— Vai mudar de fantasia? — Aster provocou.
— Não mesmo.
— Pode, então. — Ela se deu por convencida. — Ninguém irá
acreditar que você é a Wednesday Addams, mas posso fingir se
você me der cinco libras.
— Sem libras e você pode desdenhar de mim à noite toda se
preferir — digo.
— Feito!
Aster e eu rimos.
Gargalhamos um pouco sobre a última frase. E outro momento
leve que estamos vivendo.
— Ãn. — Aster começa. — Está tudo bem na sua casa?
— Sempre e nunca está. Fica oscilando — respondo de
imediato. — Sei que você deve estar curiosa, mas o que precisa
saber é que irei vivendo desse jeito.
— Acho que posso tentar adivinhar. — Aster sugere.
— Ou quer ouvir a história verdadeira do que apenas fofocas?
Aster, ao contrário do que espero, não fica ofendida. Apenas
concorda com o queixo, sendo uma extrema ouvinte.
Tomo coragem para abrir a boca e começo.
— Meus pais sempre brigaram. Sempre mesmo. Desde que me
entendo por gente, nunca os vi mais de duas semanas sem brigar
— pontuo. — Mas o que vem acontecendo é bem pior do que brigas
e gritos. — Arfo. — Quando Barr tinha apenas dois anos, meu pai
traiu minha mãe com a chefe dela. — Aster ergue as sobrancelhas,
impressionada. — É, eu sei. Péssimo.
— Bem pior do que pensava.
— Só foi o começo. — Dou uma risada amarga. — Na época,
minha mãe trabalhava como gerente do jornal de Salt, e a chefe
dela estudou com meu pai na faculdade. Eles se conheciam há anos
e foi ela quem ofereceu o emprego para a minha mãe.
“Depois de um tempo, ela chegava tarde em casa, afirmando
que a chefe nunca estava em casa. Naquele momento, o meu pai
trabalhava em uma ótima construtora de móveis de madeira. Não
sei se você se lembra, mas meu pai é ótimo fazendo coisas
artesanais. Ele faz casas nas árvores, balanços, casas de bonecas,
móveis, tudo o que você pode imaginar. Ele ainda trabalha na
construtora, mas tirou uma licença misturada com férias para lidar
com o divórcio melhor. Ao menos as pessoas entendem que ele
precisa estar bem para trabalhar.
E como meu pai vivia trabalhando e mamãe chegava tarde, a
Nancy cuidava da gente na maior parte do tempo. E nós duas
cuidávamos do Barr sempre que possível. Afinal, ele só tinha dois
anos. Mas a história não acaba aí. Não é como se nós tivéssemos
descoberto a traição quando meu irmão era pequeno. Descobrimos
faz pouco mais de um ano. Eu tinha acabado de sair do hospital,
depois de alguns dias presa na contenção de acidentes no gelo.
Achamos algumas mensagens no celular de meu pai e minha mãe
descobriu.
Ou seja, meu pai estava com a chefe dela há mais de dez anos.
Se tudo começou quando Barr tinha dois, agora ele tem doze. Meu
pai confessou tudo para mim e para Nancy. Ela estava aqui, veio me
visitar. Escondemos de Barr, por mais que ele seja esperto o
bastante para desconfiar que não é um casamento bom ou
saudável.
Por mais que eles briguem, mamãe disse que nunca foi tão
baixa ao ponto de trair meu pai. Ou ter uma segunda pessoa por
tanto tempo. Meu pai chorou e disse que era apenas sexo. Nada
mais que isso. Mas ele manteve ‘apenas sexo’ por dez anos. Não
acho que seja somente isso. Acho que foi má índole, preguiça de
consertar um casamento com três filhos e o desejo de esconder
algo tão errado e perigoso.
Mamãe entrou com o pedido de divórcio na mesma hora, meu
pai se mudou para o sofá de casa, esperando a papelada e
esperando que os dois entrassem em um acordo. Quem fica com a
casa e coisa e tal. Ele pediu uma licença temporária do emprego faz
três meses. Fica apenas assistindo esportes nos canais pagos e
bebendo, o dia todo. A chefe da minha mãe a demitiu, logo após
meu pai terminar o que eles tinham. Minha mãe encontrou um bom
emprego como contadora de uma empresa de imóveis graças à
família de Garret, que é do ramo.
E vivemos assim. Esperando pelo divórcio ansiosamente, dia
após dia. Esperando qual dos dois irá sair primeiro. O vencedor leva
a casa, o perdedor desaparece para sempre. E tento, todos os dias,
fazer com que Barr não saiba que nossos pais são podres e que no
fundo, ainda há uma falha de esperança em melhora. Mas não
como uma família.”
— Vocês são a primeira família que eu vejo que preferem o
divórcio.
Sei que Aster não tem nada para falar. Ela não gosta de mim o
bastante para falar algo bom ou solidário e nem precisa, para falar a
verdade.
— Olha, Nicola. — Aster engole em seco, continuando a andar.
— Eu também tenho problemas com a minha família.
Barr está acenando para mim, desesperadamente do outro lado
da rua. Feliz e desesperado, quero dizer.
— Me conte na festa. — Pisco a ela, atravessando a rua para
saber o que meu irmão quer.
— Ótimo. — Aster me segue, sorrindo. — Iremos no seu carro.
Antes de marchamos para a última casa, trocamos um sorriso.
Aquele sorriso que quer dizer que cada uma entende a dor da
outra, mas que não vamos julgar.
Nada além de compreensão mútua nos abraça e nos acolhe.
14

NA MINHA HUMILDE OPINIÃO, não há nada mais atraente do


que uma mulher que sabe o que faz.
Uma garota decidida e determinada. E, talvez, pelo meu desejo
de conseguir Betty algum dia, eu sinta atração por garotas que
dirigem ou quando dirigem. É a primeira vez que vejo Nicola Wolf
dirigir. E é a primeira vez que estou dentro do seu carro, um Logan
de alguns anos atrás que ela comprou quando tínhamos dezoito
anos, após ganhar uma competição estadual. Sei disso, porque a
competição movimentou Salt de um jeito inesquecível.
Naquela época, as pessoas eram fascinadas por Harvey Bird e
Nicola Wolf de uma maneira que me fazia sentir enjoo. Não era
inveja, não. Só consigo detectar falsidade que emana dos cidadãos
dessa cidade quando a vejo. E, por mais que o foco tenha sido
Nicola, ela não se importava com sua popularidade. Usava para
benefício próprio, isso não tem como culpá-la ou jogá-la aos lobos;
eu faço o mesmo. O que estou dizendo, é que Nicola sempre soube
se divertir — muito antes de não poder competir, é claro. Sempre
soube definir quais pessoas seriam apenas diversão e quais seriam
para sempre.
Agora, estou ao seu lado, no banco do passageiro, quando sua
mãe já se despediu de nós com um olhar estranho. Sei que nunca a
viu comigo, nem trocando palavras de cumprimentos cordiais e nem
nada do tipo. Talvez, a sra. Wolf tenha medo que eu seja má
influência para sua amada e idolatrada Nicola. Que, se eu sorrir, ela
acabe gostando de meninas em um passe de mágica.
Bem, Celia Wolf, não preciso fazer nada.
Nicola já gosta de meninas.
E é até absurdo a maneira como ela fica atraente atrás de um
volante. Me apego a pensar que tenha tido algo a ver com Betty,
meu fascínio por carros e velocidade, e não por Nicola. Apesar de
admitir que ela tem olhos misteriosos e um sorriso — quando dá um
— bastante bonito e sincero. Não é um sorriso vazio, é um bem
preenchido e perspicaz.
— Nunca pensei que estaria no seu carro — comento,
observando a paisagem laranja e roxa de Salt se misturar em algo
divertido e colorido. Deveriam haver mais eventos como esse. —
Sempre achei que me queria longe.
— E quero. — Nicola diz séria. Quando a encaro, com a
sobrancelha erguida, ela sorri de lado. Ainda com os olhos presos à
rua. — Estou brincando. Por mais que tenha lá seu fundo de
verdade.
Umedeço meus lábios e me afundo no banco.
— Verdade. Nunca soube o motivo de você me evitar tanto!
— Bom. — Nicola para no semáforo, no justo momento em que
troca de rádio. Ex’s and Oh’s, da Elle King, está preenchendo todos
os carros. — Nem eu sei dizer ao todo. Só sei que você foi o tipo de
criança que eu detestava brincar. Barulhenta demais, energia
demais. Não podia simplesmente sentar e brincar de boneca? Como
qualquer outra?
— Ah, não. — Sorrio ao sentir um prazer imenso por despertar
algum sentimento em Nicola. Seja ele bom ou ruim. — Sempre odiei
ficar em apenas um lugar. Não faço ideia o motivo de ainda estar em
Salt.
— Penso o mesmo. — Nicola concorda prontamente, dando
partida no seu carro. Espio seu pé enfaixado, me perguntando se
não dói dirigir com faixas neles, ou se é legalmente permitido. —
Continue. Agora me fala como não gostava de mim?
— Você sempre estava com a cara fechada. — Volto a olhar
pela janela. — O tempo todo. Até feliz está com a cara fechada.
Como lidar com uma coisa dessas? Então, simplesmente me
afastava, da mesma forma que você corria bem longe de mim.
— É. — Nicola concorda. — Mas tem um tempo que... hum...
você vem se tornando menos detestável. Ou menos aventureira.
— Sempre serei uma — admito em voz alta. — Meu maior
sonho é andar de bicicleta pelas ruas da Escócia. Viver em um
casebre, no campo, e sempre precisar me locomover ou de carro ou
de bicicleta. Depois de viver na Escócia, eu ia para outro lugar.
Cada ano, um lugar diferente.
Nicola nega com o queixo, como se fosse impossível tal
vivência.
— Admiro — assume. — Eu não. Sempre me vi morando em
uma cidade grande. Como Londres, São Paulo ou até mesmo Nova
York. Não importa qual seja. Mas irei me adaptar com o ritmo
frenético se jamais for parecida com essa cidade.
— Assim como Nancy fez? — Me arrependo da pergunta no
instante em que ela sobrepõe a voz de Elle King na música. — Foi
mal. — Reparo em Nicola se remexendo desconfortavelmente ao
meu lado.
— Não, está tudo bem — garante, sendo completamente
sincera. — É a verdade. Nancy fez exatamente isso. O que posso
fazer? — Ela ergue seus ombros e segue minhas coordenadas até a
casa de Gwen Hallister, do outro lado da cidade. — Mas, você me
disse que me falaria sobre sua família. Estamos chegando na festa
e participamos de mundos diferentes, pode me dizer agora?
— E se eu fizer um mistério? — debocho, retirando meus olhos
dos prédios e olhando para ela. — Será mais interessante?
Nicola sorri de lábios unidos.
— Com toda a certeza.
— Então, irei esperar.
— Você que sabe. — Nicola desconversa. — Mas não
esperarei para sempre. Chegando na festa, cada uma vai para um
lado.
Abro a boca imediatamente para contestar. Mas é a mais pura
verdade. Por que eu ficaria ao lado de Nicola Wolf? É, justamente, a
Nicola Wolf que nunca me quis por perto e vice e versa.
— Certo, se você insiste! — Ergo meus ombros. Outro sorriso
surge em seus lábios e fico satisfeita. É bom fazer alguém sorrir de
vez em quando. — Minha mãe sempre odiou me ver crescer e
quando falei que gostava de meninas isso apenas piorou.
— Prossiga, por favor. — A voz de Nicola demonstrava
seriedade e diversão. Os dois juntos.
— Bem, ela não sabe como ser mãe. — Inspiro rápido. —
Existem as pessoas que desejam a maternidade e pessoas que
não. A minha é o último caso. Ela quis seguir em frente a gestação,
mas achava que seria como nos filmes. Meu pai também. Os dois
achavam que o mar de rosas seria se mostrassem autoridade. Nada
além de autoridade.
“Minha avó dizia que minha mãe me deixava sozinha no quarto,
chorando, até gritar. Ficava rouca e fraca. Depois, quando comecei
a crescer, só queria brincar e correr. E minha mãe não ficava de
olho em mim. Nem meu pai. Dizia que não tinha ‘paciência’. Isso
mesmo. A pessoa que me fez não tinha paciência para cuidar de
mim como se eu não fosse unicamente um ser humano. Essas
coisas idiotas, sabe como é?
Na escola, na pré-escola, para ser mais franca, as coisas
começaram a piorar quando eu não tinha mais limites. Xingava a
professora, puxava o cabelo de outras crianças, mordia funcionários
da escola, fingia estar doente, tudo para ganhar um pouco de
atenção. Claro que, naquela época não entendia que meus reflexos
violentos de comportamento eram, exclusivamente, para ter um
pouco de atenção, cuidado e carinho.
Houve esse tempo, em que minha família não sabia mais o que
fazer comigo. Gritos não resolviam e nem tapas nas mãos. Eu
estava começando a pensar em ser pior. Talvez chorar sem motivo
nas aulas ou cortar os cabelos dos meus colegas. Não consigo me
lembrar. Então, minha avó perdeu meu avô e um processo de bens
na justiça. Ela teria que pagar as dívidas que meu avô fez em vida.
Com a morte recente dele, ela estava arrasada. Mais puta da vida
do que triste, é claro.
Sem dinheiro, o suado dinheiro que conseguiu no cinema e nos
filmes, vovó decidiu que se mudaria para uma cidade que não
precisaria exigir muito custo benefício. O que é apenas uma frase
bastante vaga. Nosso bairro é um dos melhores de Salt. Mas para
vovó, é apenas uma casa. Sem tanto dinheiro, ela perguntou à
minha mãe se poderia me criar. Não ajudar, não beneficiar de longe.
Me criar mesmo. Me levar embora de Brighton e de todos que
conheço para uma nova vida.
Lembro até hoje da minha mãe arrumando meu quarto,
empacotando meus quadros infantis do Toy Story e falando que
minha vida seria muito mais divertida e melhor com a presença de
vovó Regina nela. Eu não entendia o motivo de não ser bem-vinda
na minha própria casa. Não mesmo. Até hoje não entendo bem.
Mas fico feliz que escolheu. Não agradecida, estarei colocando no
pedestal que não merece. Fico apenas... feliz por vovó Regina e eu
sermos quem somos.
E quando disse que gostava de meninas, minha mãe decidiu
falar comigo apenas no Natal. Já que ela ama Jesus e tudo o que
Ele criou.”
Quando termino de falar, percebo que Nicola acabara de chegar
à residência dos Hallister. Uma construção moderna de madeira e
vidro, ao começo da estrada principal da cidade, com uma
estradinha de terra particular.
— Você está muito melhor em Salt. — Nicola diz ao estacionar.
— Muito, muito melhor.
— Eu sei. — Pego minha caixa de alumínio, em que coloquei
doces o começo da noite. — Chocolate?
— Ah, não. — Nicola recusa. — Irei tentar comer algo aqui.
Novamente recai um silêncio.
Nenhuma de nós abre a porta do carro, só ficamos dentro dele,
uma do lado da outra, encarando uma parede de pedra que Nicola
estacionou de frente. Ela como Wednesday Addams, eu como Caça
Fantasmas.
— Pensa em voltar para Brighton algum dia?
Fico realizada que Nicola Wolf decidiu falar alguma coisa.
Penso na possibilidade de um dia visitar a minha mãe, ou meu
pai, ou os parentes que vovó Regina e eu deixamos para trás. Mas
tudo isso me parece algo para fazermos em apenas um dia. Dentro
de vinte e quatro horas. Nada além disso, nada muito menos que
isso.
Viver em Brighton é como uma meta distante, seria a minha
última alternativa, de uma vida totalmente feliz se meu sonho em
viver na Escócia ou na Irlanda fossem devastados de algum jeito.
— Não mesmo.
Nicola sorri.
— Ótimo. Porque não deveria ir.

A festa de Gwen Hallister está muito cheia.


Nada parecida com as festas íntimas e particulares que Gwen
deu no ensino médio, ou quando não tínhamos nada para fazer e
ficávamos um do lado do outro apenas encarando um tabuleiro de
Banco Imobiliário. Não se parece nada com o ensino fundamental e
o médio. Se parece exatamente como uma festa universitária seria.
Quando entrei com Nicola na festa, ela logo encontrou Harvey e eu
logo fui guiada para um grupo de garotas que bebiam em uma roda,
as Tormentas. Todas estavam fantasias. Duas de M&M’s, outras
com a criatividade nas alturas.
— Quase não sai mais com a gente depois que decidiu virar
uma Barbie. — Anne Walkins diz, erguendo um coro de vozes e
risadas no grupo que consome vodca e ponche. Ainda não encontrei
Gwen pela festa, mas se bem conheço minha melhor amiga, ela
está fazendo de tudo para ninguém quebrar nada. — Foi liberada?
— E o que iriamos fazer? — devolvo a provocação. É amigável.
— Eu quero ganhar o Salt-In, tem sorte que ainda apareço nos
treinos matutinos, Anne.
— Sim, nós temos!
As Tormentas, por mais que sejam um time bem diferente
daquilo que venho fazendo nas minhas tardes, afirmam que irão me
apoiar. Mesmo que eu seja uma “traidora” e tenha passado para o
lado “péssimo” da força.
Enquanto ainda mato meu tempo tentando comer um petisco
aqui e um ali, percebo que os amigos de Garret Cox estão junto com
o próprio. Eles são os responsáveis pelos barris de cerveja e o
restante das bebidas diferentes que encontro pela casa ou
espalhadas pela mesa de centro da sala de estar. Fico surpresa por
Garret estar presente, fico ainda mais surpresa por Taylor estar aqui.
Garret, que tem um semblante alto e forte, veste uma roupa branca
de anjo e Taylor vem ao seu encalço, vestida de Diabo. Até com
chifres e um rabo.
— Não sabia que o Sr. e a Sra. Smith iriam se juntar a nós hoje.
— Anne debocha. — Acho que está na hora de circular um pouco
pela festa.
— Ficar olhando essa cara de paspalho de Garret não é meu
momento favorito — completo por ela. Já que sempre pensamos a
mesma coisa.
Nós, do time, levantamos de onde estamos, começando a
caminhar até a piscina, onde todas nós nos separamos por motivos
diferentes. Seja para beber mais, dançar, ir embora ou encontrar
alguém para trocar alguns beijos. Encontro Gwen Hallister nas
espreguiçadeiras, conversando com um cara que é meio que seu
amigo, meio que não. Sabe aquelas pessoas que gostamos,
gostamos muito, mas não temos assunto? Mas continuamos
conversando porque algo nela te traz alguma coisa boa? Então.
Enquanto me aproximo, o cara se despede de Gwen com um
toque em seu ombro.
— Garret e a turma de idiotas dele estão aqui. Sua casa já foi
bem frequentada, Hallister. Sabia disso?
— Muito engraçado. — Gwen resmunga. Ela está vestida com
um terno preto. Algo me diz que é alguma referência a Pulp Fiction.
— Eu não sabia que todos iriam prestar atenção em mim. Ninguém
prestou nesses anos todos.
— Acho que você deu a única festa jovem da cidade toda.
Gwen cruza os braços.
— Não. — Ela assopra o cabelo para longe de seus olhos. —
Outra pessoa deu uma festa, mas falaram que foi uma piada e
vieram para cá. Como eu digo que não quero essa gente em casa
quando já estão tão acomodados?
— Realmente, é uma lástima.
— Não preciso das suas falsas condolências, Aster! — Gwen
brada, inconformada. — Não queria comemorar meu Halloween
com pessoas desse tipo.
— Eles trouxeram fogos de artifício — digo em sua maioria. —
Olhe pelo lado bom, se é que tem um. Ainda manteremos uma
tradição do país todo; fogos no Halloween.
— Essa porra nem faz sentido. — Gwen faz um bico manhoso.
Abraço minha amiga de lado. — Eu só queria beber um pouco, rir
com Harvey e dançar. Mas tudo na minha casa está cheio.
— Eu irei arranjar algo para fazer antes que eu ria mais da sua
situação! — Me afasto dela, dando passos em ré.
— Você é péssima, Aster. Péssima! — Gwen acusa enquanto
lhe envio alguns beijos pelo ar.
De volta à casa, encontro Nicola bebendo sozinha enquanto
Harvey está conversando animadamente em um grupo grande de
pessoas. Nicola não tem aquela expressão desgostosa que as
pessoas sempre assumem quando ficam sozinhas ou esperam por
companhia. Ela está assustadoramente confortável e satisfeita por
estar aproveitando sua própria presença. Ela segura um copo preto,
possivelmente com água. Jamais a vi colocar uma gota de álcool na
boca. Duvido que hoje será o primeiro dia.
Ela passa seus olhos, atentos, pelas pessoas que se espremem
em uma falsa pista de dança.
Quando varre seus olhos pela última vez, ela os coloca em
mim. Nicola sorri, um pouco — bem pouco, quase imperceptível —
para mim. Ela acena discretamente, como se fosse um crime falar
comigo. Devolvo o aceno e ela volta para seu mundo
completamente aconchegante.
Fico parada próxima à escada, decidindo meus próximos
passos. Ir até lá, falar com ela ou arranjar algo para fazer? Ela pode
achar que estou com pena dela. O que é, completamente, mentira.
Não estou. Entendo perfeitamente que Nicola é dessa maneira.
Eu falarei sobre o quê?
Tudo o que viemos conversando nos últimos dias não servem
de muita coisa. Quero dizer, as coisas são intuitivas. E sérias. Tão
sérias que sempre ficamos em silêncio depois. Volto a encarar
Nicola Wolf quando desisto de todas as alternativas. Seu colar de
pérolas favorito ainda está em seu pescoço, como se Wednesday
Addams de seu perfil fosse um pouco mais cuidadosa. Entre a meia
calça consigo ver seu pé enfaixado e fico me perguntando quando
Nicola irá tirá-lo. Por mais que fique bem bonitinho e charmoso.
Reviro os olhos quando giro nos calcanhares, me
desprendendo de uma imagem em que estou nitidamente babando
por ela. Resta saber se é somente interesse ou se estou com tédio.
Quero dizer, qualquer pessoa poderia se interessar por Nicola Wolf
— e eu tenho uma remota chance desde que descobri que ela
também gosta de garotas. O que estou dizendo é que pode ser tédio
por ainda não ter beijado ninguém em um grande espaço de tempo.
Tenho receio de quem sabe, conseguir beijá-la e depois encarar
tudo apenas como diversão.
Acho que ela não quer se divertir.
Bom, pelo menos não por enquanto.
Percebo que estou pulando em meus próprios pensamentos,
tão absorta que mal reparo quando chego ao andar de cima.
Deserto, sem som, sem alguma pessoa ou barulho para me
acompanhar. Quando decido voltar para baixo — e me divertir —
sinto uma mão me puxar. Depois um abraço, depois um aroma
conhecido e depois um baque. Leva dez segundos para perceber
que; Taylor me trancou em um armário de casacos com ela. Sinto
sua proximidade na minha barriga, seus seios roçam levemente os
meus e seu aroma está cada vez mais forte pelo perfume que é o
favorito de Garret. Sei disso, porque ela sempre se gaba disso.
Taylor arranha minhas costas quando enlaça seus braços em
mim. Então, desisto de hesitar e a beijo. Seguro sua nuca e a beijo
como em todas as vezes que cometemos esse momento. Sinto o
gosto de morango de algum drinque em sua língua e sugo o sabor.
Aproveito de seus lábios nos meus e enfim, arfo. Mas não de
amistosidade ou excitação, mas sim de tédio.
Me separo de Taylor com cuidado e, apesar de não a enxergar
no escuro em que nos encontramos, apenas encosto minhas costas
na parede atrás de mim e seguro sua cintura para longe.
— Acho que não dá — digo.
— O que?
— Nós — falo da forma mais clichê possível. Porque com
certeza nunca existiu um “nós”. — Não acho que devemos.
Taylor ri pelo nariz — consigo imaginar sua expressão
desacreditada.
— Desde quando?
— Só não acho justo...
— Com o Garret? — Taylor completa incrédula. — Acha que ele
não me trai? Acha que ele é um santo?
— O que eu acho de Garret deve ser censurado de alguns
países. — Reprimo minha vontade de rir. — Não. Mas acho que
todo esse caso não é quem eu sou, ou a pessoa que quero ser. Ou
a pessoa que eu deveria estar sendo em base a tudo aquilo que
acredito. Então... não quero mais te ver se isso significar beijos
escondidos e ameaças públicas.
Taylor fica em silêncio. Posso fantasiar que ela esteja mordendo
os lábios.
— Está pensando em me assumir?
Não é bem o que espero de sua reação. Mas seria bom beijá-la
sem ter medo de suas atuações quando estamos perto uma da
outra no mesmo ambiente.
— E se sim? — Não, não estava pensando em nada disso. Por
mais que fosse bom, não é a melhor opção e nem a mais viável.
Mas é a que mais faz sentido depois da saída que quero. — Só
acho que não tenho cabeça e nem idade para me submeter a isso.
Sendo sincera com você.
— Meus pais... — Taylor começa, posso jurar que fungou. —
Eles não fazem ideia...
— Não estou te forçando a se revelar ou assumir. Só que estou
acabando com esse caso. — Me aproximo da porta e a empurro do
batente. — E, outra coisa, você também gosta de meninas?
Taylor Moore fica em silêncio, parece pensar, parece medir
suas próprias palavras.
— G-Gosto — gagueja.
— Tem certeza?
— Acho que não. — Vacila um pouco. — Mas... você me dá...
— Aquilo o que o Garret não te dá — completo finalmente. —
Atenção.
Saio do armário antes que Taylor faça algo; entre mudar minha
mente, ou me puxar novamente. Graças à festa lá embaixo não tem
ninguém no segundo andar, então desço o mais rápido possível.
Choco-me acidentalmente com Harvey Bird, que sorri para amenizar
o baque. Ele derruba seu ponche de frutas, mas está feliz em me
ver.
— Parceira! — Harvey comemora. — De boa?
Harvey está vestido de jogador de basquete da NBA, ele está
bastante bonito e cheiroso.
— De boa.
— Quer beber?
Eu aceito a sugestão. A ideia de me livrar do gosto de morango
da minha boca. É bom, mas não o bastante. Encontro Garret, ele
esbarra em mim e não pede desculpa. Só quando Harvey reclama.
— Foi mal aí.
Me espanto como sua voz é grossa, feito de um trovão raivoso.
Mas Garret não se importa se esbarrou em mim, ele só seguirá seu
caminho e jamais entrará numa discussão com Harvey.
Na cozinha, vejo quando Taylor desce as escadas e se enlaça
em Garret como um grude. Não sinto nada tendo a visão de onde
estou, apenas que fiz a coisa certa. Me sinto bastante aliviada e me
sinto, de alguma maneira, menos estúpida.
— Aqui está. — Harvey me passa um copo novo em folha de
ponche de frutas.
Enquanto bebo, vejo pela borda do copo o momento exato que
Nicola beija uma garota. E quando o primeiro fogo de artificio rasga
o céu da cidade.
Mesmo bebendo, minha garganta seca.
15

COM A BREVE PASSAGEM DO HALLOWEN em Salt, os


ânimos das pessoas estavam altos. Naquela semana em que não
tínhamos mais nenhum evento, os jovens de Salt queriam arranjar
algum outro motivo para saírem, beberem e beijarem pessoas
desconhecidas — como uma competição. Como tinha observado
antes, eles não têm muita criatividade, então, perdi as contas de
quantos convites neguei e fingi não receber para ir à fogueira.
Novembro entrou com bastante chuva na cidade.
Dias cinzentos e coloridos apenas pelos galhos secos das
árvores e das folhas ressecadas de um outono que começava a
perder força. O inverno queria dizer que o torneio estava chegando,
mesmo que sua estreia estivesse marcada para apenas daqui há
alguns meses. Quando chove na cidade, as ruas ficam quase
irreconhecíveis e se locomover na cidade se torna perigoso com o
asfalto escorregadio. Sair em Salt é apenas em uma emergência
quando se está chovendo.
Arranquei a faixa do meu pé no dia dez de novembro. Harvey
foi comigo, depois de um turno na livraria Bird, da qual eu voltaria
assim que me familiarizasse com meu pé sem qualquer outro
impedimento que não fosse um pano ou uma faixa. A sola de meu
pé ganhou uma cicatriz pequena e fosca, para a coleção de
cicatrizes que tenho no ombro e no outro pé. As cicatrizes de gelo
cortante nas minhas costas e as finas dos meus braços.
Na terceira semana de novembro, Aster e Harvey se
desentenderam. Não literalmente, mas na patinação. Eles tinham
uma boa química e uma troca de olhares que poderia enganar até o
mais crítico dos jurados. Só que ainda não tínhamos começado os
passos mais arriscados, nem suspender Aster em um abraço
giratório. Ainda parecia arriscado. Por mais que eles estivessem
bem, faltava algo na coreografia que parecia simples demais. La vi
en Rose, instrumental, não poderia nos salvar se não fizessemos
algo em troca.
Aster já fazia um perfeito camel spin, quando precisava levantar
a perna direita ou esquerda e se movimentar em três segundos com
ela erguida. Mas eu queria mais. Queria que eles estivessem juntos
no dance lift; quando o parceiro roda com sua parceira a
centímetros exatos do chão. Pode dar uma sensação que, no fundo,
ela poderia cair, mas é um movimento tão limpo e bonito —
dependendo da roupa que Aster usar — que sempre perco o fôlego.
Pensando sobre isso — e escrevendo arrastadamente o artigo
de cinco capítulos da sra. Tent sobre uma garota texana que quer
trabalhar como garçonete em um bar de Nova York — soube
exatamente o que fazer para introduzir os passos mais arriscados
entre Aster e Harvey. Em uma quinta-feira, em que anotava o
endereço em minha agenda particular, mal reparei que minha mãe
havia chegado ao meu quarto.
Desde o Halloween venho evitando todos na casa que não
fossem Barr. Isso incluía sempre sair do mesmo cômodo quando
mamãe me olhava como se desejasse conversar. Aquela mesma
conversa que estou ponderando em ter. Mas, no meu quarto, antes
de ir para seu emprego, ela praticamente me encurralou e sabe que
sim.
No entanto, ela é serena e neutra, por mais que eu saiba que
há ansiedade por baixo de toda sua camada de auto controle.
— Oi, minha linda. — Mamãe disse, sorrindo.
— Oi — respondi áspera.
— Só queria saber se... irá comigo e com o Barr hoje... hum...
vermos roupas de gala para alugar. O casamento de Nancy está
chegando...
Lembro que faz dias e semanas que Nancy não me liga e eu
não ligo para ela. Bem, eu liguei para ela há três dias, novamente,
ela não me atendeu. Gostaria de saber se minha irmã está viva.
— Sem roupas para mim — digo. — Irei com meu clássico
vestido azul. Está ótimo. Se Nancy quiser outra roupa, posso fazer
compras com ela em Londres. Quando formos.
Mamãe comprime os lábios.
— Ah, certo. Está ótimo, minha linda. — Ela segura suas
próprias mãos e dá um passo à frente. — Posso falar com você,
Nikki?
Mamãe quase nunca me chamava de Nikki. Isso significava que
ela queria me agradar, ela sabe o quanto aprecio as pessoas que
me chamam de Nikki. E Harvey sempre faz isso.
Quero lhe dizer que marquei horário na academia mais
próxima, mas pela forma que Celia Wolf impede minha passagem
até a porta, decido me manter sentada à frente da minha mesa de
estudos.
— Sobre?
— Primeiro, antes de tudo, quero te perguntar algumas coisas.
— Ela morde os lábios, pensando. Ergo as sobrancelhas,
incentivando que ela fale logo de uma vez. — Você... você nunca
andou com Aster Campbell. Nunca na vida, nem quando
frequentavam a mesma escola. Agora que ela está ajudando o
Harvey, você... aparece com ela?
— Bem. — Sorrio. — Sou a treinadora dela.
— Não é isso. — Ela sacode a cabeça. — Quero te perguntar...
— Ela respira fundo e solta o ar. — Olha, Nikki, preciso dizer que
não gosto da ideia de você andando com a Aster. Sei que tem vinte
e dois anos e sabe muito bem o que quer. Mas ela é... ela é...
Estendo meu sorriso.
— Má influência?
Talvez meu tom de deboche e prazer tenha sido muito nítido,
porque posso jurar que mamãe se segura para não falar mais nada.
E, bem, ela pode estar desconfiando de algo.
No Halloween, fiz a besteira de beijar uma garota desconhecida
na frente de todos. Se tem algo que eu odeio são pessoas em
festas. E pior, pessoas em festas curiosas com a minha própria vida.
Todo mundo viu. Por mais normal que seja, as pessoas não
esperavam que eu, Nicola, gostasse de meninas.
Também.
É tão idiota pensar que me tornei assunto na cidade que fico
surpresa por mamãe não ter surtado. Quero dizer, ela pode estar na
fase da negação; “Ah, não acho que seja Nicola. Pode estar se
confundindo” ou até mesmo “Ah, por que ela faria isso? Acho que
não. A minha filha namorou caras a vida toda.”
Logicamente, ser a protagonista de um boato não é a melhor
forma para assumir para sua família inteira que você é bissexual.
Obviamente você espera aqueles discursos que vemos em filmes e
em séries. O pai emocionado, abraçando o filho e falando “Ah,
sempre soube.” Sim, é bastante bonito. Bonito e poético e nos
enche de esperança. Mas na vida real é diferente. Na vida real sua
mãe tenta retirar alguma informação sua, e dependendo de qual ou
dá a ela, pode ser uma catástrofe.
Mas passei da fase de me importar.
Quero dizer, eu não estou falando com meus pais. Queria ter
paciência de apenas viver. Mas agora que tem um boato me
rondando e uma dúvida pairando sobre mim, espero que mamãe
perca o tempo dela pensando se é verdade ou mentira. Não irei
amaciar seu ego e nem nada do tipo.
— Aster ela...
— É lésbica. — Sorrio novamente. — Você pode dizer a palavra
mãe. Não aparecerá uma lésbica querendo te morder. Se torna
normal se dita com respeito, aliás.
— Não acha que isso pode... — Me ignorando um pouco, minha
mãe volta a falar.
— Me influenciar a gostar de meninas? — desdenho.
Celia Wolf, eu tenho uma notícia para você.
Penso em ser petulante, penso em não ligar para mais nada.
Penso que é uma boa hora para me libertar logo de uma vez e ouvir
o que tiver que ouvir. Mas olhá-la, me dá uma enorme e gritante
preguiça.
Simplesmente sei que não vale à pena.
— Relaxa, mãe. — Pisco, sendo misteriosa. Pego minha bolsa
e minha agenda. Alguns itens para malhar e uma calça simples de
legging. — Aster não precisa fazer nada.
— Achei que o intuito de ser uma patinadora cheia de frufru
agora é, justamente, patinar.
Aster Campbell está com os braços cruzados diante de mim.
Suas bochechas estão vermelhas porque disse que perdeu o ônibus
e que os táxis, quando chovem, dobram o valor de uma corrida.
Então precisou vir de sua casa a pé até a academia em que
estamos. A Gim Gym, é a única academia de Salt. É grande e
ampla, tem muitos aparelhos e seções organizadas de acordo com
o que você deseja. Harvey e eu treinávamos todos os dias em que
podíamos aqui. Seja correndo na esteira, levantando alguns pesos
pequenos ou apenas batendo papo quando deveríamos estar
malhando, é claro.
Estar na academia novamente, não para treinar, me traz uma
sensação completamente estranha. Mas boa. Estou usando uma
calça legging preta, com uma camiseta que ultrapassa o limite da
minha coxa e esconde minha bunda reta. Harvey, como conhece o
treinamento de hoje, está usando sua própria calça de malhação e
uma regata — por mais que o clima lá fora seja chuvoso. Já Aster,
está com os cabelos cacheados e crespos presos em um rabo de
cavalo. Parece extremamente desgostosa por ser tirada da Arena
Palmer. Sei o que deve pensar; quando finalmente estou me
acostumando com toda essa ideia, Nicola me tira de lá?
— O que uma academia pode ajudar?
— Entre muitas coisas, Aster — reparo, semicerrando os olhos.
— O que menos gosto em você é a maneira pequena que encara
uma oportunidade.
Aster não gosta do que ouve, então projeta sua melhor
expressão “Sério mesmo?”.
Não sei o motivo, mas sorrio de lado, deixando claro que ela irá
se surpreender. Digo para ela seguir Harvey e eu pela academia,
porque aluguei um horário em um espaço especial de luta corporal.
A sala está preenchida por algumas pessoas que treinam saltos,
pulos, acrobacias e lutas corporais que exigem muita força da mente
e dos braços. Deixo minhas coisas jogadas em um canto, nos
afastando do limite de pessoas possíveis.
— Você quer explicar a ela, Harvey? — discorro. — Ou terei
esse prazer?
Harvey sorri, mas diz que o palco é todo o meu.
Junto minhas mãos e olho para Aster.
— Você deve ter percebido que, para vencermos, precisamos
fazer mais do que simplesmente patinar em círculos e esperar
ganharmos pontos. Certo? — Aster dá de ombros. Mas sim, ela
sabe perfeitamente do que estou falando. — E para isso, não
podemos introduzir você diretamente para um trejeito arriscado.
Você pode cair e deslocar algum osso ou quebrá-lo. Você não quer
ser uma segunda eu.
Sentada, Aster apoia os cotovelos nos joelhos.
— Então, para isso, você precisa estabelecer confiança no
Harvey. Saber que ele não te deixará cair por nada nesse mundo.
Ok?
— Vamos fazer alguns movimentos oficiais para que você saiba
do que estamos falando. Mas em terra firme primeiro, sem patinar
para você sentir confiança em mim. Total confiança. — Harvey diz
ao meu lado. — Por exemplo, para ensinarmos um death spiral,
você precisa acreditar em mim e ter flexibilidade.
— Certo, certo. — Aster diz. — Adoraria fazer um death spiral
ou até mesmo um life spiral, se eu soubesse o que é um.
Eu suspiro, Harvey morde os lábios ao sorrir.
— É quando o parceiro, no caso, flexiona os joelhos como se
estivesse sentado, com a força de uma das minhas mãos, irei rodar
você em círculos, enquanto você está levemente curvada para trás,
flexionando as costas e está numa posição graciosa ao mesmo
tempo. — Meu melhor amigo explica rapidamente.
Aster murcha os lábios.
— Me parece complicado — resmunga.
— Era o favorito de Nicola. — Harvey se aproxima de Aster,
pegando-a pela mão e a levando até o centro do piso feito de
borracha e acolchoado. — Para fazermos isso, primeiro, você
precisa ficar de costas para mim e cair.
— Cair?! — Aster brada.
— Sim. De costas!
— Não!
— Então podemos parar por aqui!
— Não! — Aster protesta. — Ok. Já vi isso antes.
Harvey coloca a mão na cintura de Aster e aponta para mim
com o queixo.
— A Nikki pode vir primeiro.
— Não irá funcionar. — Desfilo até Harvey, já que Aster se
afastou dele para me dar passagem. — Já confio em você, Har.
— Só mostra como a Aster precisa fazer, Nikki. — Harvey
responde tranquilo.
Revirando meus olhos, giro nos calcanhares.
Aster está me olhando, atentamente nesse momento. Seus
olhos castanhos bem fixos em mim, como se não pudesse perder
nem um segundo sequer de mim e de meu corpo. Divido meu peso
entre os pés, me convencendo que é apenas uma impressão. O
charme de Aster Campbell é sempre dar a entender que você faz
parte de um flerte, mesmo quando ela não tem intenção alguma em
levá-lo a diante.
Abro os braços — acho que de uma forma mais graciosa do
que realmente necessário. Ergo meu queixo e estico meus ombros.
Olho para frente e impulsiono meu corpo para trás, com leveza.
Sinto meu corpo cair, despencar de costas até o chão. Exceto, pelo
fato de que Harvey me segura pelas axilas, muito antes de atingir o
chão e me machucar. É automático sorrir quando sinto que fui pega.
É um teste bastante comum de afinidade.
— Sua vez. — Levanto totalmente e digo para Aster, que já está
em pé novamente.
Ela se dirige a Harvey e fica na mesma posição da qual eu
fiquei. Ela ergue os braços, na altura dos ombros, fecha os olhos de
uma maneira que a faz parecer como uma pintura. Aquelas
alternativas que encontramos, de garotas curtindo a vida de um jeito
poético que nos faz parecer que queremos enxergá-la de uma
maneira mais poética. Aster vai para trás, lentamente, como se
alguém estivesse com um controle remoto do meu lado, pausando a
cena de uma maneira torturante. Quando acho que ela cairá
totalmente, Harvey a sustenta, como fez comigo.
Seu sorriso é doce quando seus olhos se abrem.
É um sorriso impressionado e nervoso, de um jeito que damos
quando algo dá certo, mas ainda não acreditamos. É uma ótima
risada para ser honesta, é uma parte de Aster Campbell que
começo a admirar a partir daquele momento.
Desvio o olho quando percebo que eles farão de novo, de novo
e de novo, até enjoarem da brincadeira que une meu melhor amigo
com a minha vizinha mais do que nunca.

Harvey ajuda Aster a fazer cambalhotas.


Daquelas bem infantis que qualquer pessoa consegue fazer.
Fico ali, sobrando um pouco da sintonia que os dois precisam
construir. Mas, aposto que, qualquer jurado que assistisse aos
nossos ensaios e treinos, saberiam que o esforço que estamos
colocando em todo o torneio é o suficiente para o primeiro lugar.
Claro que, muitas das vezes estou sendo apenas boazinha ou até
mesmo iludida ao pensar que as outras pessoas que viajarão de
suas cidades até Salt para competir não estejam dando sangue e
suor nesse momento.
Acontece que preciso focar sempre em outro lugar.
Parece que a gargalhada de Aster me chama!
Como se pedisse e me instigasse a dar uma espiada em como
ela está se divertindo, puxando e abraçando Harvey, em como cai
em suas costas ou como desenvolveu tanta confiança nele que cai
até de olhos fechados. De vez em quando bebo água, passeio pela
seção de treinamento. Mas não adianta. Fui fisgada ao ponto de
tombar a cabeça levemente para a cena e achá-la fofa e divertida.
Até mesmo meiga.
Eles só param quando o celular de Harvey toca incisivamente.
Ele solta os pés de Aster e corre na direção de sua mochila. Ao
atender, resta apenas ela e eu. Que não trocamos nenhuma palavra
enquanto Harvey franze o cenho, resmunga, retruca e no final, cede
algo.
— Preciso ir, Nikki. — Ele pega sua mochila de onde está
apoiada e coloca nas costas rapidamente. Aster se ergue do chão
rapidamente. — Meus pais precisam de mim na livraria.
— Porra — praguejo. — Sério? Vocês estavam indo muito bem!
Os dois esboçam sorrisos orgulhosos.
— Sim. — Harvey passa o braço direito pelos ombros de Aster.
— Mas preciso mesmo ir.
— Tudo bem. Acho melhor...
— Podemos ficar. — Aster me interrompe. Ela me olha
rapidamente e depois para Harvey. — Pode me explicar mais sobre
os movimentos que ainda sou bastante atrasada e podemos tentar
alguns que possa me ensinar.
Harvey gosta dessa determinação e sabe que, em outro
momento, odiaria ficar sozinha com ela. Acho que é por esse motivo
que ele sorri, após murchar os lábios de maneira provocativa e
cretina.
— Vocês estão bem acompanhadas, então. — Harvey solta
Aster e beija sua bochecha ao se despedir. — Me mandem
mensagem qualquer coisa. — Ele diz para mim e beija a ponta do
meu nariz. — Te amo, garota.
— Também te amo, Har. — Aceno, quando ele já se afasta a
passos largos e decididos.
Uma vez sozinhas, ouvindo apenas os gemidos e os urros dos
demais competidores de lutas na academia, Aster sorri de lábios
comprimidos. Sem graça. Ela enfia as mãos nos bolsos do moletom
cinza que veste.
— Eu... — Ela começa, com a voz rouca. Ela pigarreia. —
Podemos tentar o que o Harvey fez.
— Ir embora?
Aster ri.
— Não. O teste de confiança.
Estreito os olhos e Aster sorri, mordendo a pontinha da língua.
— Qual é, Nicola. Já contamos muito mais da vida da outra
para perdemos essa oportunidade. Não acha?
— Pode ser. — Não quero ponderar muito.
Pode parecer bastante mal educado da minha parte.
Aster dá um passo para trás e eu um a frente. Giro nos
calcanhares e fico de costas para ela.
— Quando quiser. — Aster diz atrás de mim.
Olho para a parede cinza do ginásio que é testemunha que
estou tentando me manter longe. Ou não ser apenas mais uma
dentro de suas façanhas.
Conto até três mentalmente e quando a contagem acaba, ergo
meus braços, como se fosse me apresentar para uma plateia
enorme. Embora só tenha Aster e algumas pessoas desconhecidas
que insistem em lutar ao nosso redor.
— Quando quiser, Nicola.
Respiro fundo e vou para trás.
Apenas solto meu corpo, minha mente e meu peso. Apenas
vou. Sinto que irei falhar, que irei atingir o chão. Mas sou salva
quando sinto suas mãos em mim, me colocando para cima e em pé
novamente.
Estou sorrindo quando me viro para ela.
— Minha vez. — Aster pisca, dando um passo certeiro a frente.
Diferente de mim, Aster não espera que eu diga que pode vir,
ela simplesmente se joga. Sinto suas costas baterem de contra meu
peito e minhas pernas vacilarem, totalmente despreparadas para
recebê-la. Caímos juntas ao chão. E, ao invés de sentir qualquer
outro sentimento estranho, estamos bem o bastante para gargalhar.
Gargalhar tanto de nossa queda, que sinto minha barriga doer e
formigar. Sei que os olhos das demais pessoas estão em nós, mas
não posso evitar a maneira de rir e declarar o quão idiotas fomos
nesse momento.
— Achei que ia me segurar! — Aster, que está entre minha
barriga, se arrasta para o meu lado. Deitando-se de barriga para
cima. — Péssima, Nicola. Você é péssima!
— Perdão. — Limpo uma lágrima de tanto rir do canto do olho e
apoio minhas mãos na barriga, também deitada. — Sério. Não
estava esperando!
— Só irei desculpar porque você é a mais nova vadia de Salt.
— Sou? — Arregalo os olhos ao sorrir mais. Aster assente, vejo
pelo canto do olho. — Finalmente — brado. — Estava cansada de
ser a puritana esse tempo todo.
— As pérolas não devem ajudar, sabe.
— Verdade. — Olho para o colar falso que ainda está pregado
ao meu pescoço. Como todos os outros dias. — Eu deveria usar
uma coisa mais ousada.
— E se... — Aster vira-se na minha direção, ficando de lado. —
Trocarmos? Eu uso seu colar de pérolas por um tempo e você o
meu de cadeado. Só... se prometer cuidar dele com a sua vida.
— Só se você der seu sangue pelo o meu.
Aster e eu nos encaramos pelo o que eu diria ser uma breve
eternidade. Nossos colares podem ser uma das nossas marcas
mais fortes.
— Tudo bem.
Me levanto com ajuda das mãos.
Em pé, Aster já começa a tirar seu famoso colar de cadeado.
Quando se desprende do seu pescoço, percebo que preciso fazer o
mesmo com o meu. Retiro o meu e o repouso em sua mão. É
estranho sentir um vazio no meu pescoço, mas é de um jeito
extremamente bom.
Sinto o pingente de cadeado esquentar na minha mão. Coloco
rapidamente, sem deixar pistas que uma pode colocar na outra. Isso
estaria passando dos meus limites. E sentir Aster tão perto é o
bastante para apenas um dia.
Quando vejo as pérolas nela, tenho certeza que tudo,
absolutamente tudo, fica bem em Aster Campbell. Mesmo com os
cabelos bagunçados e o esmalte da unha lascado. Quero saber se
fico tão bem assim usando seu fabuloso colar, mas pela maneira
que Aster pisca e sorri de lado, posso considerar que estou bem.
Muito bem com ele.
16

MINHA PARTE FAVORITA EM PRODUZIR alguma coisa é; os


treinos.
Ok, ok, ok.
Pode até ser bastante irônico ou debochado da minha parte
falar que adoro treinos quando sou uma das últimas a chegar
sempre na Arena Palmer ou quando as Tormentas decidem fazer
um encontro antes dos jogos semanais, sei disso. Mas gosto,
acredite em mim.
Faz algumas horas, desde que acordei, que simplesmente
assumi a mim mesma que só faço isso — me atrasar — porque
adoro chamar a atenção de Nicola.
Pronto.
Eu disse.
Tanto mentalmente, quanto em voz alta de frente para o meu
maldito espelho quando acordei esta manhã; estou interessada em
Nicola Wolf, cada dia mais do que o outro.
Sem essa de paixão ou me apaixonar perdidamente pela minha
treinadora, mas, preciso dizer e assumir que a minha treinadora é
uma bela garota, uma decidida mulher e uma das pessoas mais
inteligentes que já conheci. Só que não quero colocar tudo a perder
como sempre estou acostumada a fazer.
Quero... não sei o que quero.
Não sei se quero Nicola ou deixar as coisas exatamente como
elas estão. Não preciso de outra circunstância para...
— Aster!
O disco me atinge nos joelhos.
Felizmente, não é um ponto marcado no treino, mas é o
bastante para eu ser arrancada dos meus pensamentos. Anne, que
patina com os olhos inflamados de decepção, segura seu taco de
maneira irritada ao se apoiar ao meu lado. O restante das quatro
garotas me encara como se eu estivesse pecando em algo.
Faço um sinal, apontando para um falso bocejo e elas voltam a
treinar com outros discos de borrachas. Uma borracha tão pesada
que é uma sorte ter me atingido no joelho, e não na boca do
estômago.
— Tá pensando em que, porra? — Anne brada, parando ao
meu lado. Sei que sua mão coça para não me dar um tapa na nuca.
— Presta atenção, Aster!
— Foi mal. — Ergo a palma da minha mão. — Só estava... só
estava desatenta. Não vai se repetir.
—Não fica perdendo o rumo, hein. — Anne aconselha,
enquanto é apoiada pelas outras garotas do time na pista de
patinação. — Só porque você virou uma garota da dança artística,
não quer dizer que você perdeu o compromisso conosco.
Eu não levaria a sério. Qualquer pessoa que conhecesse Anne
poderia ficar com medo, mas eu apenas esbanjo um sorrisinho de
lado que a pode fazer se acalmar de uma vez. Curvo meu corpo
diante do gol e da rede e pisco a ela — ou para quem quiser ganhar
uma piscadela minha.
— Para de falar, Anne — debocho. — Vamos treinar, hum?
As demais garotas do time ainda estão pensando piadinhas.
Sou uma das poucas que não usa capacete nos treinos, então levar
um disco no meio da cara deve doer. Os dentes ficam moles e você
tem a impressão que eles irão ganhar de tanta força e pressão que
antecedeu o baque. Sei perfeitamente disso, porque no colégio levei
alguns tombos. Mas não nas Tormentas, aqui sou mais cuidadosa.
Patino ao lado de Anne, para o centro da pista, onde ela recita
alguns conselhos que conseguiu graças à namorada, que também
joga hóquei. Mas em uma pista seca, de madeira, em outra cidade.
Hóquei sem gelo é bastante estranho, chega até mesmo a ser
carente, mas não falarei isso a Anne. Claro que não.
Quando é a minha vez de lembrar que precisamos treinar todos
os dias, agora que os jogos são semanais, uma delas olha para a
arquibancada. Mas logo volta sua atenção para mim. Espio o que
pode ter tirado a atenção dela, mas apenas vejo uma figura
masculina e alta, aninhada aos bancos do meio.
Volto minha atenção a elas, segurando o taco para me manter
em pé. Retorno para a rede do gol.
Antes de voltar ao seu posto, Anne desliza rapidamente para
uma haste do gol, se apoiando nela e no taco que segura.
— Estava pensando na Nicola, não é?
Uma ergo uma sobrancelha.
— Mesmo se tivesse, você seria a última pessoa que saberia
disso, Na — zombo de uma vez. Embora ela tenha razão. Fungo um
pouco e toco o meu nariz, me aproximando dela. — Diz para mim
que não está tão na cara, vai.
— Até que não. — Anne junta as sobrancelhas. — Mas eu sou
observadora, sabe como é?
— Ou apenas intrometida.
— Também. — Anne dá alguns tapinhas nos meus ombros. —
Mas se quiser perguntar algumas dicas sobre Nicola, é melhor ser
rápida. O ex-namorado dela está na arquibancada. — E apontou
para o meu lado direito.
Garret Cox está mesmo sentado nas arquibancadas vazias da
arena principal da faculdade. Como não o reconheci antes?
Seu cabelo louro está mais curto do que semanas atrás.
Possivelmente, porque cortou. Ele tem seus olhos presos em mim e
bebe algum a coisa de um recipiente que não consigo ver de onde
estou.
Sei que seus olhos estão fixos em mim porque sou rosto está
virado levemente na direção do gol. O gol onde eu estou.
É mais do que estranho vê-lo por aqui.
Até perverso e sombrio. Garret jamais esteve nos meus treinos,
só em jogos — unicamente pela pressão da faculdade que ama o
dinheiro e a verba estudantil que as Tormentas trazem. Mas se
fossemos um time de bairro, Garret nunca nos olharia por mais que
um segundo.
O que ele quer?
Anne patina para longe, depois de me pregar uma dúvida
colossal sobre a presença dele aqui.
Finalmente — não sei dizer — Garret acena com dois dedos na
minha direção. Como se fossemos amigos ou íntimos. Ele nunca fez
nada parecido, então me limito a pegar meu capacete do chão e
ignorar sua presença mais do que macabra.

Depois de um banho no vestiário, em que tomei no nível mais


gelado possível, saí do treino com a intenção de chegar em casa e
dormir. Ou até mesmo visitar o Dino, na concessionária e dar uma
olhada em Betty. Ela seria minha em poucas semanas. Eu estaria
com ela pelas ruas. Poderia ir até Londres, encontrar os cursos de
Enfermagem que procurei pelo Google. Posso fazer milhares de
coisas só com a narrativa de ter Betty em mãos de uma vez só.
Quando chego ao corredor principal, do lado de fora, noto que o
céu derrama uma chuva preguiçosa e gelada. Tão fria que não se
parece nada com o outono que tivemos em meados de outubro. O
que é um fato; já que a cidade até parece saída do inverno eterno
de As Crônicas de Nárnia.
Ao final do corredor, Gwen Hallister está conversando com
Harvey Bird. Ela está abraçada a um livro, segurando rente ao
busto. Tem seus olhos brilhantes e cabeça tombada levemente para
o lado, analisando Harvey como se ele fosse a coisa mais bela do
mundo.
Corrigindo, no mundo de Gwen, isto é verdade.
Os dois se conheceram na aula de Química da faculdade de
United Salt, por mais que sempre estivessem lá, um perto do outro
durante anos. Na mesma escola, mesmo bairro, mesmo tudo. Mais
uma daquelas histórias que nós sabemos que é o tempo que age.
Infelizmente, Gwen não me vê chegando, ela toca o ombro de
Harvey e se afasta dele, caminhando até o estacionamento coberto.
Desisto de alcançá-la. Harvey me vê, ele começa a caminhar na
minha direção. Logo, Nicola vira o corredor oposto do dele,
carregando seus cadernos. Meu coração bate um pouco, me
avisando que é ela.
Como se não houvesse notado e nem percebido que sim,
maldito coração, é ela!
Mas a imagem de Nicola e Harvey é rapidamente cortada
quando Garret Cox aparece, do corredor a diante. Ele está com os
punhos fechados e os olhos faiscando de uma força incomum. Não
tenho tempo de desviar de seu caminho, porque eu sou seu foco.
Ele consegue me pegar pelo colarinho de meu moletom e logo sinto
o concreto violento e áspero da parede mais próxima contra minhas
costas e minha pele. A dor na minha coluna estala, como um
zumbindo chato, apenas me avisando de que fui machucada. Ou só
levemente assustada.
Garret está bem próximo de mim, gritando palavras desconexas
que só devem fazer sentido a ele. Quero muito saber o que ele está
falando. Mas, na minha cabeça, a cena se desenvolve de uma
maneira lenta e desenrolada em uma câmera de percepções de
sentidos. Vejo o exato momento que Nicola corre e Harvey aperta o
passo. Mas Garret consegue chegar tão perto que sinto o hálito de
bebida. Forte, poderoso. Como se sua língua tivesse marcado para
sempre aquele sabor brusco.
Taylor Moore tenta, de alguma forma, tirar Garret de cima de
mim. Mas ele é grande, alto e forte, e parece movido por uma raiva
que só ele pode explicar a si mesmo. Quando as pessoas começam
a se amontoar ao nosso lado e Harvey me libera do toque dele,
volto a vida — ou volto à cena, depende de como quero enxergar as
coisas.
Caio de joelhos ao chão, sentindo uma extrema falta de ar.
Nicola se ajoelha ao meu lado, segurando minhas costas
enquanto espalma os dedos longos por ela. Está doendo, apenas
latejando, não é nada tão sério — creio eu — mas sinto o colarinho
que apertou meu pescoço, deixando as pérolas marcadas na pele e
até grudadas. Felizmente, o colar de Nicola está bem — e eu,
inclusive. O colar de cadeado no pescoço dela balança, entre o
pingente gelado. Nicola o guarda para dentro do suéter de linho
salpicado que gosta de usar.
Busco todo o meu fôlego e tento compreender o que aconteceu.
— Nunca, nunca mais chegue perto da minha namorada! —
Garret gritou, apontando seu dedo para mim, enquanto Harvey
tentava o afastar. Seu rosto, que normalmente é banhado por um
tom de branco sem graça e pálido, está completamente vermelho e
inchado de fúria e ódio. — Você é uma cretina, Aster!
Ah.
Entendo.
Taylor.
Que está chorando arrependida, enquanto as amigas afagam
suas costas como se ela não tivesse culpa de nada. Bem, a coitada
não tem. Se Garret é explosivo e violento, a culpa é totalmente dele.
Consigo me levantar com a ajuda da parede — a mesma que
recebeu as minhas costas como um carimbo — estou respirando
melhor, estou me focando no que acontece ao meu redor. A roda de
pessoas se intensifica, somente curiosos que param suas vidas
idiotas para enxergar o que acontece com a minha. Bom,
independente se fosse a minha ou não, eles estariam lá. Mas a
chuva do lado de fora não para, ela continua. Densa e firme.
Aumentou agora.
— Você está me entendendo? — Garret está sendo segurado
pelos amigos agora, enquanto Harvey briga com outro. — Fica
longe de nós!
— Você sabe como as coisas acontecem? — Ergo meu queixo,
arrumando minha postura. — Deixa de cena, Garret. É melhor para
você e para mim. Do que está falando, afinal?
— Você sabe do que eu estou falando. — Ele cospe no chão.
Olho para Nicola, que arregala discretamente os olhos e
murmura para eu não dizer nada. Mas estou cega de raiva agora.
Cega por não ter um taco de hóquei e acabar com toda a graça de
valentão que Garret tem. Cega de ódio por ele ter tocado em mim,
por ter me rondado a manhã toda, com a intenção de me
amedrontar. Ódio e medo do que ele faria se não estivesse tantas
pessoas por perto. Não consigo ser racional quando uma pessoa
dessa acha que tem o direito de me afugentar, de me ameaçar, de
tocar em mim sem a merda da minha permissão.
De tentar resolver algo com as mãos, com a violência, sem
antes perceber o quão ridículo é em toda a sua existência como ser
humano.
— Sim, eu sei o que fiz. — Arrumo ainda mais minha postura.
Embora meu rosto esteja tremendo e eu sinta meus dentes baterem
um no outro de tanta ira, não consigo parar. — Por que não conta a
eles que foi traído?
Eu sei o que eu fiz foi péssimo.
Tanto pela multidão que vibra com a fofoca, quanto pelos
amigos de Garret que afrouxam o aperto ao seu redor. Eles
parecem pasmos que Garret, o Garret Cox, foi traído, quando, todos
sabem que é quem “manda.” Sei que fiz uma besteira enorme,
especialmente, pela maneira que Taylor parece chocada e as
demais pessoas gritam que adoraram saber uma coisa dessas.
A cidade é pequena, todos saberiam do que aconteceu em
pouco menos que uma tarde.
Nada de legal ou importante acontece em Salt, eles dizem.
— Sua...
Garret avança e eu não fujo, dou um passo à frente. Se ele irá
me bater, então que bata. Estou pronta para oferecer meu rosto
para receber um soco, com os olhos marejados de dor e repulsa por
uma pessoa que conheço tão pouco, mas que não preciso saber
outro detalhe para odiar.
No entanto, o soco de Garret não vem. Nem seu xingamento,
nem nada do tipo.
Nicola está parada diante de mim, impedindo que Garret e eu
nos choquemos violentamente um com o outro.
— Garret! — Seu grito é poderoso. É capaz de fazer a multidão
parar de rir e de gravar. É capaz de fazer Taylor apenas fungar e os
amigos de Garret Cox apenas observarem, sem especificar o que
sentem. — Não faça isso!
As narinas de Garret dilatam quando ele olha para Nicola.
Como seu queixo está em um caminho reto e firme, e como ela
esbanja coragem enquanto sabe que poderia ser atingida se ele não
medisse o tempo e sua força. Mas isso não importa. Dar um passo
para trás nunca fez o feito de Nicola Wolf, e Garret e eu sabemos
disso.
Como ninguém.
— Tem certeza? — O maxilar de Garret trava.
— Você está bêbado! — Nicola o empurra com certa delicadeza
para trás. — O que tiver que resolver, converse com a sua
namorada. E não com Aster.
— Por que você sempre defende todos e não a mim?
— Quer reviver assuntos passados, Garret Cox? — Ela dá um
passo à frente. — Se quiser, posso pedir para que todos gravem o
que eu tenho a dizer. Dessa vez, irei falar tudo.
Garret Cox, se é que posso dizer isso sem corroer minha
integridade, tem um pouco de destreza em recuar. Ele funga,
demonstrando que essa “história não acabou”, mas é um aviso que
não irá se repetir novamente. Ele passa pela multidão e pelos
amigos sem falar mais nada.
Mas, um deles, está segurando minha mochila. Mal vejo
quando ele retira o livro de enfermagem que estou lendo há
semanas e joga no gramado, na lama mole e recente pela chuva. A
confusão se dissipa e eu marcho na direção da chuva, com um
pouco de esperança de recuperar o que acabei de perder.
A água me banha e o frio da cidade me abraça, avisando que
os erros do passado sempre voltam para cobrar o presente.

— Deita. — Harvey pede, me colocando em seu sofá.


Implorei que não me levassem para casa, isso significaria que
vovó estaria por perto. E se ela estivesse por perto, adoraria acabar
com a família Cox. E todos sabem que querer não é poder, e retirar
os Cox do reinado iria significar uma guerra. E bem, sem exagero,
não acho que Salt esteja preparada para uma guerra civil
atualmente.
Estou brincando, é claro.
Não é tão sério assim. Seria clichê se fosse. Mas conheço
algumas pessoas que tentaram e não moram mais aqui. Talvez esse
seja meu destino, afinal. Ir mesmo embora, com vovó, para Londres
e esquecer de tudo. Ou talvez só seja o baque sentimentalista de ter
sido pressionada contra uma parede por um bêbado, que mais
parece um bebê chorão por ter sido traído. Quando, explicitamente,
também trai sua namorada.
— Consegue se manter inteira? — Nicola pergunta, me
ajudando a me instalar no sofá de Harvey com algumas almofadas
nas minhas costas. — Ou quer brincar com a sorte?
— Eu sabia que isso não ia dar certo — murmuro.
— Mas parece que continuou, o que colocou a própria corda no
pescoço, eu diria. — Nicola arfa, nervosa. Ela pisca algumas vezes
e segura o pingente de cadeado. — Me desculpe. Não estou
colocando a culpa em você, mas sempre soube que isso não
acabaria bem.
— Podem me explicar o que aconteceu? — Harvey colocou a
mão no quadril. Ele prometeu que consertaria o livro para mim, já
que os pais são donos de uma livraria. — Por que o Garret estava
tão fora de si e a Taylor chorando?
Olho para Nicola, sorrindo.
— Você não contou a ele mesmo, hein? — Brinco.
Ela dá de ombros, sentando na mesa de centro da sala dos Bird
para ficar perto de mim.
— Não gosto de fofocas — discorre simplesmente. — Por mais
que que dessa vez elas sejam fatos concretos.
Eu suspiro. Só não sei pelo ar do drama ou por realmente estar
cansada de toda essa conversa — e situação.
— Eu estava com a Taylor — falo. Harvey ergue as grossas
sobrancelhas em disparata, totalmente surpreso. — Não estava,
estava. Literalmente falando não. Mas às vezes nos encontrávamos
escondidas de todo o mundo...
— Nem tão escondidas, se eu descobri indo à minha varanda.
— Nicola me interrompe, com uma careta que queria dizer “Por
favor, né, Aster.”
— Sério mesmo?
— Sim. Acho que é por esse motivo que Garret gritou a todos
os ventos que não me queria perto da namorada dele — completo.
— Taylor deve ter falado com ele. — Nicola diz.
— Garret foi ao meu treino hoje cedo. — Me arrumo no sofá.
Não estou debilitada, não preciso ficar deitada o tempo todo.
Parecer frágil me irrita, de uma forma que não sei explicar. — Ele
estava lá, na arquibancada. Acho que estava bebendo desde então.
Até acenou na minha direção quando eu o vi.
— Que cara estranho. — Harvey comenta. — Nunca gostei
dele.
Nicola não diz nada. Apenas segura as próprias mãos como se
temesse que o assunto volte a ela. Como ex-namorada dele, talvez
ela saiba como ninguém o quão instável ele sempre foi.
Sinto vontade de segurar as mãos de Nicola, dizer qualquer
coisa. Mas acho que a pessoa que tem que ser consolada sou eu.
Não digo isso ironicamente, estou falando sério. Os dois devem
achar que preciso de palavras de apoio quando só estou brava por
Garret ter me ameaçado publicamente e totalmente aliviada por não
ser mais nada de Taylor. Nem amiga, nem nada.
Nada mesmo.
A campainha da porta toca, ecoando pela casa toda. Harvey se
apressa em atendê-la, enquanto Nicola continua segurando as
mãos.
— Posso te chamar de Nikki?
Fico surpresa com a minha pergunta. Por mais que seja um
desejo, não faço ideia se é o melhor momento.
Ainda olhando para baixo, Nicola sorri. Ela estica os dedos e os
dobra. Depois, me encara. Ainda sorrindo de lado, discreta.
— Claro!
— Certo — respondo. — Nikki.
— Ah, aí está você! — Gwen Hallister vem correndo do hall
principal da casa de Harvey Bird. Ela está usando o boné que não a
favorece da loja de discos e o rabo de cavalo escapando pela fivela
do lado de trás. — Que que aconteceu?
—Vou pegar uma limonada. — Nicola informa com Harvey,
segurando seu cotovelo para os dois nos deixarem sozinhas.
— Cara — resmungo, enrugando a testa. — Sem paciência
para falar tudo de novo, Gwen. Só precisa saber que o Garret é um
merda.
— Eu preciso saber o que aconteceu com a minha melhor
amiga, sua sem noção! — Gwen rebate.
— Gwen Hallister, eu estou bem!
— Aster Campbell, eu quero saber de tudo!
Então, desisto. Ela se senta no antigo lugar que Nicola estava
sentada, na mesa de centro e junta as pernas, apreensiva e
mordendo os lábios sempre que falava cada detalhe. Gwen se sente
rapidamente culpada por não ter estado perto.
— O que você poderia ter feito?
— Chamado a polícia, ora essa! — Gwen arrebita o nariz. —
Que idiota. Que filho da puta desalmado. Por que ele acha que é o
rei dessa porra?
— As pessoas fazem acreditar que ele é. Por isso Garret age
do jeito que age. Quando não só passa de um riquinho mimado de
cérebro de meleca.
Gwen relaxa os ombros ao sorrir.
— Cérebro de meleca? — indaga. Confirmo com o polegar. —
Você xingava assim quando éramos crianças. — Gwen nega com o
queixo, nostálgica.
Estendo os braços para ela poder me abraçar. Quando se
aproxima, Gwen me aperta muito, muito forte. Deixando totalmente
marcado seu amor e zelo por mim.
— Não quero acordar um dia e você estar arrebentada por Salt.
— Gwen segura meus dedos.
— Não estarei — prometo a ela.
Gwen me encara séria, como se não acreditasse em mim. Mas
depois retoma um tom relaxado e desmancha a postura dos
ombros.
— Ei, me fala. — Gwen toca meus ombros. —Você e a Nicola...
— Como você sabe? Eu não te contei nada!
— Não é preciso me contar nada. — Gwen assume. — Eu vejo.
Tenho meus próprios olhos.
— Gwen, eu...
Mas não termino minha frase porque Nicola volta com uma
bandeja de limonada da cozinha. Ela serve Gwen e Harvey, deixa a
bandeja descansar na mesa de centro e me oferece um copo.
Gwen e eu trocamos olhares rígidos até que Harvey se
intromete e diz que poderia contar tudo o que sabia para Gwen, na
cozinha, onde ele tentaria consertar e secar o livro do qual o
capanga imbecil de Garret Cox destruiu.
— Não escapou das minhas perguntas, ok? — Gwen aponta
determinadamente o dedo na minha direção, me ameaçando. —
Quero saber o seu ponto de vista, srta. Campbell.
— Te amo, srta. Hallister! — Grito conforme ela anda pela casa,
seguindo Harvey e ainda um pouco tensa.
Nicola ainda está sorrindo um pouco, mas voltou a encarar suas
próprias palmas das mãos. Me arrumo no sofá e cruzo os braços,
fitando-a. Ela senta-se de frente para mim e deixa seu copo de
limonada de lado, sem sede.
— Vai. Me fala — continuo. Nicola sobe o olhar novamente para
mim. O colar de cadeado fica muito bem nela. — O que houve entre
Garret e você? Por que o namorou? Ele é ridículo, Nicola. — Reviro
os olhos, incrédula. — Estou surpresa que namorou um cara como
esse.
Nicola Wolf não diz nada. Talvez porque eu esteja falando
demais.
— Desculpe — peço, sussurrando. — Seja o que o que for. Não
estou colocando a culpa em você.
— Ah, eu sei. — Nicola garantiu. — Mas é que as coisas com
Garret eram bem piores do que eu poderia imaginar. Mas ele era a
única pessoa que eu tinha por perto, então... — Ela dá de ombros.
— Eu aceitava.
— Então... — Começo a refletir. — Me conte as partes antes
das ruínas. Toda história tem uma parte boa, e por mais que seja
vindo dele, eu duvido que haja uma... Me conte as partes boas que
você lembra.
Nicola sorri mais para si do que para mim.
— Garret era o cara que ficava me vendo estudar na biblioteca
da escola e queria falar comigo, mas não sabia como.
— Eca. — Não me controlo. Sei que deveria, mas não me
controlo. — O famoso vigilante? É esse seu tipo?
Nicola abre a boca para retrucar, do jeito que ela sabe, mas
desiste. Vejo quando sua boca abre e fecha e como pondera,
desistindo.
— Bem, na época me pareceu incrível. — Nicola assente com o
rosto. — Eu estava no auge da patinação artística, as pessoas iam
às minhas competições como se desejassem que eu fosse a
próxima Beyoncé em cima de uns patins. Como poderia recusar
toda essa atenção, sabe?
— Continue — peço.
— Então, não me lembro como. Mas passamos a conversar no
último ano do ensino médio. Depois, ele me levou de trem para
Londres, foi a primeira vez que vi a cidade sem a presença dos
meus pais ou dos meus irmãos. Não fizéssemos muita coisa, só
ficamos andando pela Oxford Street até ficar de noite e ele me
trazer de volta. Nos beijamos no gramado da minha casa e foi
bastante mágico e gostoso. Garret me elogiava bastante, então para
o meu ego, julgava que aquilo fosse amor.
“Mas bem, não era.
As partes boas de Garret eram o que ele fazia para me animar
sempre que algo de errado acontecia em casa. Ele me deixava
dormir na sua casa o tempo que fosse necessário até eu voltar. Ele
levava Barr ao shopping e nunca esquecia do aniversário dele e do
aniversário de Nancy. Se oferecia para me levar até Londres e
visitá-la. Ele assistia aos meus treinos, me esperando com caixas de
chocolate e me apresentava aos seus amigos como ‘a melhor
garota que já conheci’. Ele me levava aos eventos da família dele e
não tirava a mão da minha. Dançava comigo na chuva e fazia
carinho até eu adormecer depois de um dia difícil.
Garret falava que logo iríamos nos casar, que seriámos como
aqueles casais que duram depois do ensino médio. Ele queria filhos,
queria casas grandes e queria ir embora de Salt, como eu, ou
qualquer pessoa com um pouco de senso. Ele gostava de dar
presentes e de me buscar em casa sempre que eu espirrava
diferente. Ele dirigia com as mãos sob os meus joelhos e sempre
sorria quando parávamos em um semáforo.
Todas essas partes eram as partes boas de Garret, que
conviviam com seu lado totalmente oposto. Que tive que aprender a
re, afinal de contas, eu queria ser amada. Desejava não ter um
casamento como os dos meus pais e Garret dizia que me amava
todos os dias. Sem falta. Todos os dias antes de dormir, todos os
dias após acordar.
Como eu poderia desejar menos que isso quando, nitidamente,
eu o tinha?
É claro que essas são apenas as partes não detalhadas do
nosso relacionamento. E vendo assim, Garret até parece um sonho
de cara que deixei escapar entre minhas mãos.”
Não consigo imaginar Garret sendo bom. Apesar de saber que
há partes na história das quais Nicola ocultou.
Engulo em seco, não sabendo que falar. Totalmente a imagem
que tenho dele, não casa com o que eu acabei de saber.
— Você acha que as pessoas mudam? — pergunto.
Nicola hesita.
— Não precisa dizer nada — diz. — Não acho que seja esse o
caso. Acho que as pessoas se revelam aos poucos. — Ela me
garante, se levantando da mesa de centro e suspirando. — Vou
trazer algo para você comer.
17

O TOM LARANJA DO OUTONO e do Halloween foram embora


da cidade, trazendo algumas decorações de Natal que já apareciam
pelas vitrines das lojas mais atentas. Isso significava que as coisas
estavam avançando, ganhando seu tempo e seus destinos.
Uma coisa de diferente aconteceu em Salt: Garret Cox foi
embora da cidade.
Em uma manhã na aula da sra. Tent, Taylor apareceu chorando
e fungando alto. Eu estava sentada atrás de Aster, que deixava seus
cabelos caírem sob a folha do meu caderno e que cheiravam à
morangos. Lembro que estava gostando daquele aroma e que
poderia tocá-los apenas para amaciá-los entre os meus dedos.
Adoraria que eu não fosse interrompida no meu momento, mas
Taylor conseguia trazer toda sua atenção para si mesma. Aster, por
sua vez, me olhou por cima dos ombros, como quem diz “O que
houve agora?”. Mas eu não sabia responder sem precisar enrugar
meus lábios.
Então, Taylor chorou a aula toda, encostada em um canto,
demonstrando todo o seu sofrimento.
No dia seguinte, minha mãe trouxe a notícia fresca do salão de
beleza que frequenta. Disse que investigou o que estava
acontecendo com os Moore. Mamãe narrou que os Moore estavam
infelizes após descobrirem algo terrível vindo de Taylor que nem a
cidade conseguia saber o que é. Sim, beijos escondidos foram
dados como algo “horroroso”. Então, os Cox queriam esconder o
que tivesse acontecido com Garret bem longe de Salt. Então, sem
mais e nem menos, uma semana após Garret ter ameaçado
publicamente Aster — e alguns vídeos terem circulado pelo
Facebook e pelo Twitter — ele se foi. Minha mãe disse que a família
tem grandes residências nos Hamptons, nos Estados Unidos. E que
Garret iria ter uma temporada toda estudando em outro país,
terminando e adquirindo um diploma.
Acredito que não.
Visto que Aster fez uma ocorrência à faculdade, provando seus
fatos com os vídeos. O real significado de abandonar Salt; Garret foi
expulso e banido da United Salt. A reitoria checou as imagens que
Aster Campbell apresentou e não pensou mais do que breves
momentos em expulsar Cox da faculdade. Parte de mim ficou
realmente surpresa pelo efeito ter passado tão rápido.
Ao que parece, os Cox não pagaram a dívida que possuem
com a faculdade – e nem a propina anual – então, foi apenas
“Adeus, Garret” e uma cobrança imensa que pode rondar a família
por anos.
Ao final, as pessoas não queriam saber o motivo de Garret ter
ido embora. Primeiro, que sua família influente não precisa de Salt,
mas a comanda como se precisasse. As pessoas não estariam se
importando se soubessem os reais fatos das coisas. E que uma
expulsão, no mundo acadêmico das faculdades, é grave. Não só
pode impedir que Garret estude no próximo semestre, como daqui
anos e anos, até lembrarem o ocorrido no seu histórico.
Mas os outros dias foram bastante tranquilos.
É como se Salt tivesse amanhecido com um peso a menos.
Nada de legal ou importante acontece em Salt, mas aconteceu!
Pensei comigo mesma enquanto ia aos treinos; que as coisas
aconteciam às pessoas ruins com muito mais facilidade e bondade
do que com as pessoas puras. As que desejam um bom futuro,
quase sempre nunca tem. As que só cometem erros e não
aprendem com suas atitudes são as que mais são premiadas pela
vida.
Se é que faz sentido, se é que existe uma vida justa, eu
gostaria de saber aonde ela fica.
Aster continuava com o meu colar de pérolas.
Ela usava todos os dias; assim como eu usava o dela.
É certo que não ficava melhor com os meus suéteres, mas
aprendi a gostar do peso do pingente sob minha pele. As coisas
pareciam bem melhores dentro de casa. Meu pai continuava a ver
os esportes na TV, no sofá, minha mãe continuava vivendo uma
vida completamente alheia aos que seus filhos queriam. Ela não
disse mais nenhuma palavra sobre Anwer e nem o mencionou.
O que eu presumo que seja a mesma coisa de sempre; ela
achou que seria algo sério, mas o cara só queria sexo e ponto final.
— Ei!
Me aproximo de Harvey, com as chaves entre meus dedos. O
estacionamento da Arena Palmer está vazio, com apenas alguns
carros preenchendo as vagas de linha amarela. Harvey está
sentado com as costas encostadas na porta principal, que está
fechada. O céu está se abrindo um pouco, fazendo com o que sol
diga um “oi” tímido para as pessoas. A sombra está gostosa e as
partes iluminadas do estacionamento esbanjam alguns raios de sol
deliciosos de sentir na pele.
— O que está fazendo aqui?
— Ainda não abriram. — Harvey diz, tomando um pouco de
café. Está escrito “Harry Bird” na embalagem plástica. — Está
atrasada!
— Se nem as pessoas lá de dentro chegaram, imagine eu. —
Me acomodo ao seu lado, arrancando o boné verde da livraria Bird
dos meus cabelos. — Mas, sempre é tempo de estar na hora
quando falamos sobre Aster.
Harvey sorri, olhando para frente.
— É. — Ele diz. — Que tal falarmos sobre Aster?
— Por quê?
— Bom — murcho os lábios. — Primeiro, que vocês andam
bem melhores do que anos e anos de convivência. Segundo que
você nunca deixou de usar seu colar de pérolas desde o dia que
ganhou. Terceiro, agora está usando o dela. Tem algo a me
explicar? Ou me dizer?
— Ah, não.
— Está mentindo! — Harvey diz ofendido. — Completamente e
inteiramente mentindo!
— Como pode saber? — Rio pelo nariz. — Não pode definir...
— Claro que posso! — Harvey me interrompe. — Sempre que
você gosta de uma pessoa, você fica toda boba.
— “Toda boba”? — Agora ele pegou pesado. — Como assim
toda boba?
— Você fica cheia de sorrisinhos para lá, faz o que a pessoa
pede. Sei disso porque você passou a pagar o almoço da Cyndi
Thorne quando começou a gostar dela. Sei disso porque quando
você beijou o Marick Collins você deixou que ele te buscasse todos
os dias depois dos ensaios, mesmo odiando andar na bicicleta dele.
— Harvey recita, como um ótimo melhor amigo que me conhece. —
E nem preciso falar sobre o Garret. O começo de namoro de vocês
dois foi enjoativo.
— Bem. — Espalmo minhas mãos. — Se você sabe de tudo,
não preciso dizer mais nada, hum?
— Não vem com essa, Nikki! — Harvey morde os lábios. —
Está mesmo gostando da Aster? A pessoa que nunca, nunca
mesmo te deixou confortável com nada? A pessoa que você jurou
detestar sem motivo algum, apenas implicância? Ela mesmo?
Empurro Harvey para o lado, sei que ele está brincando
comigo. Que quer me ver falar logo de uma vez.
— Gostando ainda é uma palavra muito forte. — Junto meus
joelhos, querendo fechar meus olhos para me poupar de uma
possível vergonha. Ou poupar minhas bochechas de esquentarem.
— Interessada é a melhor palavra.
— Bobagem. — Harvey pragueja. — Apenas você sendo
cuidadosa demais. Sei disso. Aposto nesta alternativa, na verdade.
— O que quer de mim, afinal? — Aperto meus olhos ao encará-
lo.
Harvey toca nossos joelhos, quando vê um carro bastante
conhecido por todos na cidade parar ao lado do estacionamento; é
um táxi. Aster sai dele, arrumando a postura logo após colocar a
mochila sobre os ombros.
— Só quero que seja feliz. — Harvey entona rapidamente, com
uma piscadela meiga e discreta. Ele abre espaço entre nós dois,
sentados no chão, esperando a Arena Palmer abrir. — Ei, e aí,
Aster!
— Por que vocês estão aqui fora?
Aster — talvez — jamais diga em voz alta, mas há certo alívio
nela ao saber que Garret Cox não mora mais em Salt.
— Ainda não abriram — resumo, deslizando para o lado para
abrir espaço para Aster sentar-se conosco. Ela se acomoda no meio
de nós. Seu cheiro de morango invade meu nariz como se dissesse
“Oi, cheguei.” — Estamos esperando. Harvey ligou para o...
— Vocês treinam tanto aqui, que sabem o número da pessoa
que cuida da Arena Palmer? — Aster se espanta, olhando para
mim. Ela está bem próxima.
— Praticamente. — Olho para frente. — Não é exatamente
como você e o Dino?
— Mas o Dino tem algo que eu quero mais do que tudo. —
Aster suspira. — Acho que consigo entender o que você está
falando, então.
Aster me encara rapidamente e depois também olha para
frente. Sei que Harvey, nesse momento, está tentando olhar para
frente e segurar sua risada no fundo da garganta. Mas eu só me
sinto idiota mesmo.
Agora eu sei um fato sobre Aster que me deixa bastante
impressionada. Ela quer ser enfermeira. Depois do que aconteceu
na faculdade, nos corredores da famosa United Salt, encontramos o
livro que o Donovan, o amigo de Garret estragou.
— Quero ajudar as pessoas. — Ela me disse naquele dia,
pegando o livro recém restaurado que Harvey conseguiu arrumar
aos fundos da livraria. — Ainda estou pensando. Mas quanto mais
eu leio, mais eu quero seguir com o curso. E você?
E eu?
Não sei!
Estou cursando Literatura Inglesa, mas não me vejo na
profissão. Nem como professora e nem como redatora.
Absolutamente nada.
Acho que chegou a hora de fazer um teste vocacional.
Ainda no silêncio — eu pensando em puxar meu celular para
pesquisar quem eu quero ser na vida e Aster comendo balinhas de
cereja — Harvey se levantou, afirmando que iria atravessar a rua,
na intenção de comprar um smoothie de banana com maçã. Estou
prestes a falar que ele estava bebendo café há pouco, mas só
parece um plano para fazer Aster e eu ficarmos sozinhas.
— Quer algum?
Negamos com a cabeça e, enquanto Harvey se afastava, Aster
se aproximava. Seu ombro tocou o meu e ela virou seu rosto na
minha direção.
— Qual história saberei hoje sua?
— A que falta. — Roubo uma bala sua e levo até a boca,
mastigando. — Como terminei com o Garret.
— Tem certeza? — Aster pergunta. — Não quero acabar com o
clima de nada.
— Não precisa se preocupar — garanto. — Tudo o que vem de
Garret eu já superei. — Sorrio em sua direção e, felizmente, Aster
me devolve um sorriso.
Me arrumo ao seu lado, sabendo que seu ombro está tocando o
meu e não querendo que essa sensação nunca vá embora. Pode
até ser exagero e um eufemismo — o que verdadeiramente é —
mas não me importo de estar parecendo uma tola.
— Garret, como você bem sabe da última vez, parecia um
sonho. Certo?
— Só para você. Para mim, ele sempre foi um pesadelo. —
Aster diz.
— Tenho que concordar. — Damos um pouco de risada. —
Bem, o que eu não sabia o que aconteceria no relacionamento com
ele é que teriam punições.
Aster me encara apressadamente.
— Punições? — indaga. — Do tipo...?
— Sim e não. — Meneio a cabeça. — Garret sempre foi muito
sensível e mimado. Então, se ele ouvia alguma coisa que não
gostasse, ele me fazia pagar por aquilo que fiz primeiro. Ele nunca
chegou a tocar em mim, mas não precisava. Eram punições o
bastante para eu andar na “linha” — Uso os dedos em aspas.
Aster aperta seus dedos um no outro; vejo com as pontas de
seus dedos ficam brancas, de tanto pressioná-los na palma da mão.
— Nunca contei isso a ninguém, Aster. Se puder...
Sua mão voa para o meu joelho, em um semblante de conforto
que me deixa radiante por dentro.
— Não falarei a ninguém. — Aster me promete, encarando
diretamente dentro do meu olho. — Tem a minha palavra.
— Sei que sim. — Tomo uma coragem que não é a minha e
embrulho sua mão na minha, por cima do joelho. — Voltando. Garret
e punições. Ele fazia isso para poder se sentir bem.
— O que, exatamente?
— Por exemplo, quando eu demorava para responder alguma
mensagem de texto, quando estava treinando, ele ficava dias e dias
sem falar comigo de volta. Eu ficava desesperada, pensando que
ele estava mal, ou passando por problemas, quando na verdade,
era apenas raiva de mim. Por algo que não conseguia evitar. —
Narro, sentindo um bolo se formar na minha garganta. — Garret
nunca entendeu Harvey, então sempre deixou a sexualidade do meu
melhor amigo a primeiro plano. O motivo de Harvey ficar com caras
foi o bastante para Garret o definir como “gay”. E pronto. Julgo que
seja por isso que eu podia ver tanto Harvey.
“Nunca tive amigas. Não sei o motivo, mas como o
relacionamento com Garret piorou, não havia motivo para conhecer
mais pessoas. Ele me apresentava algumas garotas, que eram
legais e divertidas no começo, mas que sempre acabavam na cama
dele depois. Garret dizia que não podia evitar, que aquelas garotas
davam em cima dele primeiro e que ele era homem. Que errava,
sabia que sim, mas me amava mais do que tudo. Cheguei um dia a
chorar na frente dele, suplicando para ele dizer o que eu era, afinal.
Garret disse que me amava, mais do que tudo, mais do que amou
qualquer outra pessoa. E que sexo ele poderia ter com qualquer
uma, mas comigo era amor puro e de verdade. Que iria casar-se
comigo e que elas não se importavam.
Bem, o relacionamento dele com Taylor começou muito antes
deles assumirem para toda a cidade. Creio que Taylor e ele saíam
juntos enquanto eu me recuperava do acidente. Ter Taylor e me trair
com ela, foi uma punição. Garret queria que eu ficasse na sua casa,
assim ele poderia cuidar de mim com mais facilidade. Mas quis ficar
em casa, por Barr. Logicamente, ele não gostou nada daquilo.
Ficava me mandando fotos privadas no Instagram, beijando
Taylor, tocando Taylor, falando o quanto ela era linda. Quando eu
decidia terminar, Garret voltava. Implorando, falando que seria
diferente. Obviamente, nunca deixei que ele chegasse tão perto de
mim em casa. Não queria que as pessoas vissem que meu namoro
não era perfeito e estável como nós dois fazíamos parecer. Mas ,
daquela vez, eu não voltei. Estava ferida e exausta, então, decidi
terminar de vez com Garret.
Ele implorou. Meu Deus, ele suplicou por semanas que eu
voltasse para ele. Quase voltei, quase quis fazer com que fossemos
diferente da minha mãe e do meu pai, quase achei que ele me
amasse. Mas desisti. Apenas o ameacei a ficar longe de mim,
senão, contaria tudo o que eu sabia sobre o meu acidente.
Dito isso, Garret me deixou em paz. Mas sempre viveu
cauteloso.
Meu acidente, como as pessoas da cidade pensam que sabem,
aconteceu de uma forma; eu estava patinando por lazer, caí em uma
vala aberta de gelo e me feri. Desloquei o ombro e quebrei o pé
esquerdo. Pronto. Fim de papo.
Mas não foi bem assim.
Eu estava patinando por causa de uma punição que Garret me
fez cumprir.
Estávamos em uma festa. Garret estava com seus amigos e eu
estava por perto, comemorando que eu estava indo muito bem na
patinação artística com Harvey. Lembro que passei a festa toda do
lado do meu amigo. Mas eu sabia, eu sabia que os olhos de Garret
estavam me queimando. Não importava aonde eu ia. Eu sabia que
estava sendo queimada viva e que eu iria pagar por ‘tudo’ o que eu
estava fazendo com ele. Lembro que Harvey foi embora e se
despediu, foi quando decidi voltar para o lado de Garret.
Ele me abraçou e me beijou na frente de todo o mundo. Seu
hálito estava forte, seus dentes mordiam minha língua e minha boca
e suas mãos intrusas estavam na minha bunda. Nada romântico,
mas sim possesivo. Ele segurou meu queixo e disse; ‘Você é
minha.’ Aquilo aqueceu meu coração de alguma forma. Eu estava
apaixonada.
No carro, ele gritou comigo.
Disse que fez papel de idiota a festa toda, que as pessoas iriam
pensar outra coisa de mim, andando de um lado para o outro com
Harvey à minha cola. Disse que as pessoas poderiam pensar errado
sobre minha reputação. Ele não estava me levando para casa, mas
sim, para a dele. Na casa de Garret, há um pequeno lago que
sempre congela na época mais fria do ano. Ele disse que poderia
me desculpar se eu fizesse apenas uma coisa para ele.
Eu disse que sim, desesperada, procurando seu perdão.
Garret me levou até os fundos da sua casa, colocou os patins
nos meus pés e me encaminhou até o lago. Estávamos de mãos
dadas e ele também iria patinar. Só que, Garret queria que eu
pagasse, que eu sofresse uma humilhação tal qual o “fiz” sofrer.
Lembro que ele me deixou sozinha no lago.
Quando voltou, estava com uma tesoura. Ele cortou meu
vestido. Fiquei apenas com minhas roupas íntimas, no frio e na
neve. Lembro que o gelo dilatava, frouxo, a cada passo patinando
que eu dava. A cada deslize.
Então, uma vala se abriu, o lago tinha acabado de congelar,
não estava propício para haver uma pessoa nele. Lembro que gritei
por Garret, me engasgando com as lágrimas e com a neve que caía
do céu. Ele não se moveu, apenas disse para eu continuar. Eu
continuei. E a vala aumentou, aumentou e quase me engoliu. Foi
quando eu caí, em cima do meu ombro. Meu pé se torceu. Só me
recordo de Garret demorando para me ajudar, presumindo que
fosse uma cena dramática minha. Recordo que ele me colocou no
colo e disse que poderia resolver na sua casa. Mas eu não parava
de chorar e sentir dor. Somente horas depois, em que eu insistia
que ele me levasse à ajuda, foi quando Garret cedeu.
Colocou roupas novas em mim e me fez prometer nunca, nunca
falar sobre o ocorrido.
Claro que pensei em falar, claro que sempre tive vontade disso.
Mas nunca consegui. Pelo simples fato de achar que ninguém
acreditaria em mim e por saber que estava sofrendo. As pessoas
acham que apenas caí e tive má sorte.
Mas eu tive Garret na minha vida, a própria personificação do
azar e do mal.”
— E ele foi embora? — Aster se levanta. Ela está andando de
um lado para o outro. Incrédula. — É isso o que acontece com as
pessoas? Elas simplesmente partem?
— Não acho que ele vá ter uma vida boa. — Me levanto
também. — Mas é o meu ferimento, Aster.
— Sim! — Aster brada. — Mas ele te tirou tudo aquilo que você
ama!
— Não acha que não sinto raiva? — indago. — Acha que adoro
estar aonde estou? Não. Eu odeio. Odeio mais ao perceber que não
sou nada sem isso aqui. O que serei daqui para frente? Que talento
eu tenho?
— Nicola. — Aster anda rapidamente, segurando minhas mãos.
— Encontre algo que seja tão boa, mas me deixe sentir raiva de
uma situação que nunca irá se resolver.
— Não estou conformada. — Aperto sua mão na minha. —
Quero que entenda que, onde há poder, não há uma palavra que
resista. Pensei em milhares de formas de calar Garret ou fazê-lo
pagar. Eu ouvi da polícia que uma brincadeira entre namorados não
era o bastante, ouvi dos meus pais que estava exagerando, ouvi da
mãe do Garret que ele poderia estar bêbado. Perceba, Aster, estou
sozinha nessa desde o dia que feri meu pé. Apenas sozinha,
apenas lidando dia após dia que não sou mais a mesma Nicola. Não
mais! — Sinto vontade de derramar algumas lágrimas, mas me
contenho. — O que estou querendo dizer é que sou mais uma
garota, em uma lista imensa, de uma estatística enorme, que não
pode falar e nem ser ouvida, porque o poder de homens e a palavra
deles contam mais. Muito mais do que a minha!
— Não para mim. — Aster sussurra. — A sua palavra vale mais
do que qualquer uma. Acredito cegamente em você, Nikki Wolf.
Fecho os olhos, sabendo que acabei de liberar uma lágrima.
— Obrigada, Aster. — Seguro, agora, seus dedos nos meus.
Sinto que eles se entrelaçam.
— Mas você disse, não é? — Aster tinha os lábios trêmulos. —
Você falou sobre o que sentia e essas pessoas não te ouviram.
— Eu sei que falei. Mas não cansei de lutar... — falo
rapidamente. — Eu disse, abri meu coração e meus sentimentos.
Falei o que aconteceu e jamais deixei que Garret tocasse em mim
novamente. Acredito fielmente que a vida dele não será boa. Ir
embora de Salt não significa que ele está bem, só que está fugindo
de tudo de mal que criou. Mas uma hora. — Arrumo meus ombros.
— Uma hora tudo volta.
Aster e eu nos entreolhamos.
Por uma fração de tempo que sei que foi pouca em comparação
à real sensação. Sei que seus dedos trilharam um caminho muito
mais seguro no meu passo e que eu dei um passo para frente,
tentando me estabelecer. Sou um pouco mais alta do que Aster,
mas isso não me impede de visualizar sua boca tão bem torneada
de frente para minha. Sei que pareço vacilante e até mesmo que irei
dar para trás, mas sinto que sou a pessoa que mais quer beijá-la.
Ou ter um beijo entre nós duas.
Mas é ela quem quebra nosso contato, avisando que Harvey
está voltando com companhia. Provavelmente com o Mason, o
gerente da Arena Palmer.
Soltamos nossas mãos rapidamente — mas não de um jeito
envergonhado ou afoito.
— Perdão, pessoal! — Mason, um homem de quase quarenta
anos diz, com um molho de chave em mãos. — Meu marido
precisava de mim.
Sorrio, afastando outra lágrima teimosa que escorreu dos meus
olhos.
— Está tudo bem, Mason!

Naquela noite, antes de dormir, antes de olhar o relógio do meu


computador, apaguei tudo o que escrevi para a aula da sra. Tent.
Para o trabalho que iremos entregar daqui há alguns dias. Apaguei
e comecei outro.
Tudo do zero.
E, antes de dormir e espiar a janela de Aster por cima da borda
do meu computador, decidi fazer um teste vocacional.
O resultado deu Biblioteconomia.
E qual faculdade abriria um semestre experimental, com
associação com os alunos da United Salt?
A United Yesterday.
Na Escócia.
18

— VOCÊ ESTÁ BRINCANDO COMIGO! — Ando


apressadamente pela calçada, pela rua movimentada de um dia de
semana em que a chuva deu uma trégua. As pessoas aproveitam
qualquer brecha que encontram no tempo. — Harvey, preciso de
você hoje mesmo!
Harvey Bird está sendo malvado.
Pior! Ele está sendo completamente mesquinho nesse instante.
O que é uma tragédia, visto que ele não parece se importar, do
outro lado da linha, que estou prestes a entrar em um colapso.
— Sabe quanto tempo eu demorei para conseguir um horário
com a Colly? — Paro de andar, sentindo minha irritação se tornar
palpável. — Sabe o que é isso? Colly é a melhor costureira que
podemos encontrar em Salt, porque ela é a única. Está me
entendendo? Estou na lista de espera dela desde que conseguimos
Aster, preciso que você apareça!
— Não vai dar. — Harvey suspira do outro lado da linha. Não
parece arfar como quem diz “Sinto muito” é mais um “Quero me
livrar dessa.” — A Colly nos ama. O que quer dizer que ela me ama,
então, eu estou marcando para outro dia, outro horário.
— O que isso quer dizer, afinal?
— Que deixei vocês duas. Sozinhas. Um tempinho a sós. —
Consigo imaginar Harvey sorrindo e piscando. — Não me agradeça.
Agradeça a Gwen, ela quem teve a ideia.
— Não vou agradecer nenhum dos dois! — brado, incrédula. —
Preciso da sua medida exata para confeccionar as roupas!
— E eu prometo que perguntarei qual estilo de roupa você
pediu para a Colly quando eu for, cujo dia jamais irei te contar! —
Harvey contra argumenta, sereno. — Agora eu preciso ir, Nikki.
Turno da livraria. Aquela mesmo que você esqueceu que trabalha.
— Harvey! — Esbravejo novamente. — Harvey! — Mas já é
tarde demais quando escuto o chiado do final de uma ligação.
Vejo o nome de Harvey Bird morrer na tela de meu celular e fico
me perguntando se ligar novamente para ele vale a pena, ou se
serei só jogada ao mar vasto da “caixa postal.”
A cidade está começando a ganhar cor pelo Natal e pelo torneio
Salt-In; alguns postes estão completamente pretos e brancos, com
os dizeres do torneio, convidando as pessoas locais para assistir
todas as competições. Há pontos de ônibus que contam com
bancos coloridos, também do torneio.
Batuco meus dedos na tela do meu celular desligado e volto a
marchar pela rua — acho que falo sozinha, pela expressão que as
pessoas me olham.
Assim que viro a esquina, pois a lojinha de costura de Colly fica
em uma rua sem saída, percebo que Aster Campbell já chegou. O
que condiz em duas opções; ou eu que estou ridiculamente
atrasada ou ela adiantada. E a primeira opção me parece horrível.
Me aproximo com cautela, respirando cuidadosamente sem que
pudesse me entregar de uma vez por todas. Sem que desse
totalmente na cara que... bem, você sabe.
— Aster — cumprimento assim que me aproximo dela. O que é
ridículo, me faz parecer uma adulta de quarenta anos nas costas. —
Oi. — Tento novamente.
Aster está encostada na parede, ao lado da vitrine que exibe
uma roupinha de patinação artística de uma criança. Entre dez a
doze anos, presumo.
— Oi, Nikki. — Ela diz, sorrindo. — Cheguei muito na frente?
— Não, até que é bom ver você no horário.
— Então, levarei essa resposta como “Aster, você está
assustadoramente no horário”. Pode ser?
Sorrio.
— Claro!
Aponto para a porta de madeira da loja e entro primeiro,
segurando a porta para Aster passar depois. Colly é a costureira
mais velha e mais conhecida de Salt. Ela produziu minhas roupas
para os concursos de beleza e para a patinação artística por anos.
Ela é o melhor se quisermos seguir todas as regras e
recomendações à risca.
— O que eu preciso saber? — Aster pergunta, tocando os
manequins onde estão expostos e os modelitos mais famosos de
Colly. Um deles é o meu. Um vestido totalmente em branco, feito
com mangas bufantes em que dancei em uma apresentação solo.
Arranquei suspiros enormes da plateia e dos jurados. — Sobre as
roupas.
— Algumas coisinhas.
Ando na direção do balcão e toco no sino de estrutura
dançante, que ecoa pela loja e pelos fundos dela. Dentro de
minutos, Colly se arrasta com a ajuda de sua bengala. Sua pele
negra brilha com a pouca luz que vem do balcão da frente, seus
cabelos brancos pela idade, platinados por opção, estão presos em
um coque alto com a ajuda de um lápis — aquele mesmo que Colly
usa para desenhar e medir — ela sorri assim que me vê, como se
eu fosse uma boa miragem em um deserto escaldante.
— Nicola Wolf. — Colly suspira, orgulhosa de si mesma por me
vestir há anos. — Jamais pensei que colocaria meus olhos em você
novamente. Mas quando a vi na fila de espera, sabia que estava
aprontando alguma. E o que vai ser?
— Não é para mim, Colly — respondo, tocando os ombros de
Aster e a colocando a frente. — Esta é a minha... minha... minha
amiga, Aster Campbell. Ela irá competir com Harvey no torneio Salt-
In no final de janeiro.
Colly parece surpresa, mas nem tanto. Não sei se para ser
educada ou se nada mais lhe atinge.
— É um prazer conhecê-la, srta. Campbell. — Colly faz um
aceno simples de cabeça.
— Ah, pode me chamar de Aster. — A garota à minha frente
diz. — Odeio essa coisa de senhorita.
Colly sorri de lado.
— Está certo, então. — Ela mede seus olhos novamente em
Aster e depois em mim. — Tem algo em mente, Nicola?
— Sempre tenho.

Colly nos levou para os provadores aos fundos; um pódio


redondo e alto, que as pessoas sobem para tirarem as medidas
certas das pernas, panturrilhas e coxas. O provador central de Colly
tem um magnífico espelho corpo a corpo, que permite ter uma visão
fantástica das roupas. Ainda com a opção de um pequeno sofá para
pessoas que trouxeram um acompanhante ou mais. Estou em pé,
analisando uma roupa divina que Colly confeccionou. É de um azul
marcante e com pedrarias que parecem diamantes em uma mina.
Ou bem melhor ou mais bonito do que minha imaginação possa
descrever.
Aster está atrás de mim, se observando no espelho.
Agora, sou invadida por um sentimento de “Que bom que fiz
parte disso” — a dança, no caso —, apesar de não ser o melhor
sentimento nesse justo e curioso momento.
Quando desisto de fantasiar sobre os modelitos — e eu dentro
deles — Aster está com o celular na mão, com os olhos
arregalados.
— Isso é verdade? — Aster ergue um jornal digital na tela de
seu celular. — Há mesmo pessoas que compram parceiros de
patinação artística?
Ela está usando um rabo de cavalo, que está decorado com
uma bandana amarrada ao topo. É o máximo de “arrumada” que
vejo Aster usar e, não posso negar que está linda.
— Sim. É verdade. — Espio suas informações que ela anda
pesquisando. — Há muitas mulheres que patinam, e poucos
homens. Então, a maioria oferece dinheiro, ou oferece algo que eles
queiram. Praticamente o que fiz com Harvey, obrigando que ele
receba o dinheiro do prêmio quando tudo isso acabar.
— Certo. O que mais preciso saber?
Colly retorna no mesmo segundo, ela está carregando um
caderno grosso e cheio de tiras de tecidos, amostras de como o
vestido ficará e quais pedrarias escolher.
— Bem, as roupas. — Aponto para uma decidida Colly
passando entre nós com o caderno de amostras de tecidos. — Elas
precisam ser perfeitas. Sem mais e nem menos.
— As competições podem ser cruéis, minha cara. — Colly
completa por mim. — Apenas vestidos e maiôs com saias.
— Não pode mostrar demais. E sem decotes.
— Ótimo. — Aster diz. — Odeio decotes.
— O que estou dizendo é que todas as roupas precisam ser
chamativas e deslumbrantes. Na medida certa. — Mostro a ela uma
pedraria dourada que brilha muito abaixo da luz. — Não pode
mostrar muito a barriga e nem o abdômen. Se possível, nada disso.
Os jurados consideram uma nítida provocação se a patinadora usa
um traje muito provocativo.
— Sério?
Reviro meus olhos ao concordar.
— Então... posso mostrar os braços?
— Pode. Mas seria ideal se escondesse o pescoço com um tira
de tecido que vem do vestido. — Cubro o meu pescoço com as
mãos, tocando rapidamente no colar de cadeado que continua
comigo. — Se possível, podemos experimentar algum colar, mas
acho que seria impossível. O torneio é flexível, mas acredito que
nem tanto.
— Mais alguma coisa?
— O vestido não pode ser muito curto. — Aponto para os
vestidos expostos atrás de nós. — É uma regra bastante comum.
Em 1988, houve uma patinadora artística que não deixou uma
impressão muito boa. O nome dela é Katharina Witt, e foi decretada
uma regra com seu nome para que todas as patinadoras a partir
daquele ano, usassem trajes que cobrissem coxas e virilhas —
recito. — Katharina usou um traje vermelho forte, quase beirando ao
carmim. Sua apresentação foi ótima, mas o maiô estava muito
apertado e a saia muito, muito curta. Disseram que os jurados
ficaram constrangidos.
— Nada muito longo e nada muito curto? — indaga Aster.
— Muito longo pode te fazer tropeçar, ou embolar enquanto faz
um spin. Ou fazer Harvey se atrapalhar. Tem que ser na medida
certa. Que não atrapalhe nenhum dos dois e que não faça os juízes
se sentirem... — Uso aspas. — “Envergonhados.”
— Mais alguma coisa?
— Escolher bem seus trajes íntimos.
Aster fez um “joia” com o polegar.
— Demorou anos para você decorar tudo isso? — Aster
pergunta. E posso notar o tom maravilhado de sua voz.
Engulo em seco e desconverso.
— Acho que...
— Nicola é o melhor que temos em Salt. — Colly diz. Mal
reparo que ela estava lá o tempo todo. — Sinto muito que não possa
mais competir.
— Estarei torcendo por Aster e Harvey como se estivesse —
garanto para Colly. — Vamos começar?
Colly pede, então, que Aster suba no pódio, que tire seu casaco
de frio e fique com a coluna reta olhando para frente e para o
espelho. Colly elogia o físico de Aster — logo recebendo a
informação que Aster é jogadora em um time de hóquei na
faculdade. Os minutos que se arrastam são preenchidos por
informações sobre as Tormentas. Confesso que se fosse em outros
tempos, odiaria ficar ouvindo sobre um esporte que sei minha vida
toda. Mas é bastante contagiante ouvir Aster Campbell falar sobre o
time que tanto aprendeu a amar nos últimos anos.
Ela fala sobre sua experiência nos jogos, sobre as garotas do
time e sobre suas amigas dentro dele. Sei que estou sentada, no
sofá, com os olhos presos em Aster como se ela fosse uma atração
monumental no meu dia. É até bonito que seus olhos brilhem e pela
maneira fácil e ágil que explica tudo para Colly.
— Medidas feitas. — Colly diz, guardando a fica métrica no
bolso do avental funcional. — Irei rabiscar alguns modelos e depois
decidimos o tecido. Certo, Nicola?
— Estaremos esperando, Colly — afirmo, cruzando minhas
pernas.
— Foi um prazer novamente, srta... Aster. — Colly faz um
meneio simpático de cabeça para Aster, que contribui no mesmo
instante.
Ela se vai, atrás de uma cortina do provador.
— Terei que pentear meu cabelo muito bem, não é? — Aster se
admira no espelho. — Soube que qualquer coisa que caia dele ou
da minha roupa, pode causar danos. Ou perda de pontos.
— Soube? — debocho.
Ela rola os olhos.
— Eu andei pesquisando — responde, voltando a se encarar no
espelho. Fingindo prender os rebeldes cabelos para cima e depois
para baixo. — Li que muitos grampos ficam soltos e podem fazer os
patinadores caírem. Me prometa que sairei viva disso, Nikki!
Gosto de ouvi-la me chamar de Nikki.
— Se você não usar nenhuma pena. — Ergo meus ombros, me
levantando do sofá. — Prometo que sairá viva e ainda sendo
exatamente quem é.
— Ótimo. — Aster dá as costas para o espelho, ficando de
frente para mim. — Acha que ficarei ridícula nessas roupas? — Ela
aponta para os manequins ao nosso redor. — E as luvas?
Ela corre na direção de um manequim, segurando seu esbelto
braço coberto por uma camada de pano prateado.
— É para se proteger de cortes causados pelo gelo. Mas eu
não pretendo colocar um passo que a coloque em contato direto
com ele. Fique tranquila.
— Sabe. — Aster coloca o braço do manequim no lugar. —
Ainda não sei o que pensar sobre mim. Quero dizer, nessa
competição. A ficha ainda não caiu, pode ser que caia no dia.
— É bastante normal.
— Não, Nicola. Acho que não entendeu. — Aster morde os
lábios, pegando seu casaco de volta, mas segurando entre os
cotovelos dobrados. — Acha... me diga sinceramente, por favor...
acha que sou capaz de vencer?
— Você é uma patinadora incrível.
— Não estou perguntando isso. — Aster sorri se aproximando
de mim. Ela quer seriedade nesse momento e preciso ser honesta
em dar isso a ela. — Acha mesmo que eu tenho chances? Ou
estamos apenas brincando com a sorte?
Faço algo que não estou acostumada; simplesmente, seguro
sua mão na minha, até seus olhos encontrarem o caminho dos
meus.
— Acho. De verdade. — Sinto que seus dedos firmam nos
meus e sei que é tarde demais para retirá-los. Não que eu queira,
mas Aster aceita essa oferta de uma vez só. Ela não espera por
outra. — No começo achei que não, mas estamos há semanas
nessa para saber e crer que você conseguirá.
— E se eu não conseguir?
Seus dedos se entrelaçam nos meus, pedem caminho pelas
brechas e eu deixo que se firmem ali.
— Não temos essa possibilidade. — Faço Aster sorrir. E sinto
meu coração errar cada maldita batida. — Acredito demais em você
e em Harvey para saber que ao menos, estarão no pódio.
— E eu acredito em você. — Aster sussurra. — Muito.
— Mesmo? — Sorrio. — Não quer outra treinadora ou alguém
mais simpática?
Aster nega.
— Não, Nicola — diz. — Eu quero você.
— Está me chamando de mal educada?
Aster ri pelo nariz, revira os olhos e perde a paciência.
Ela coloca sua mão na minha nuca e me beija. Bem ali. Sem
mais e nem menos. Ainda com vestígios de riso em nossos lábios,
eles se tocam. Até se tornarem sérios e meticulosos. Até sentir os
lábios delas nos meus e sentir meu coração errar até a verdadeira
forma sobre si mesmo. E tudo o que compõe o beijo de Aster
Campbell me parece a coisa mais real e verdadeira do que posso
imaginar.
Real, porque ela está lá, perto de mim, me abraçando com a
outra mão pela cintura, enquanto a outra, bem firme, está na minha
nuca, como se temesse que eu fosse fugir. Não irei fugir. Porque
estou verdadeiramente aqui. E eu não sabia que poderia sentir
borboletas no estômago já beijando uma pessoa. Até parece um
conto que nem ao menos sei ditar ou narrar. Só simplesmente
acontece e como acontece.
Decido fazer algo com as minhas mãos e seguro o rosto de
Aster. Sua pele macia e gostosa de sentir roça meus dedos, para
um claro convite em intensificar o beijo. Um convite que seria muita
falta de educação negar. Consigo perceber que dou um mínimo
passo à frente, deixando que seu peito se choque contra o meu, até
soltar uma pequena arfada quando percebo que sua mão aperta
minha cintura. Em beliscos pequenos apenas para definirmos que
dessa vez, não estamos sonhando ou fantasiando com nada.
O sabor do beijo de Aster é de chiclete, talvez porque ela
estivesse mascando alguns minutos atrás. Mas não me prendo ao
sabor que pode variar de acordo com o tempo. Sua língua se
encontra com a minha, em um tímido toque que deixo claro que não
iremos atravessar uma barreira maior da qual queremos. Dedilho
meu dedo em sua bochecha, sentindo seu cheiro natural me deixar
com as pernas bambas. Sinto quando Aster mordisca a pontinha
dos meus lábios, e viramos a cabeça para os lados contrários,
procurando uma a outra até nosso fôlego acabar.

Aster pegou uma carona comigo, ela precisava passar em casa


antes da faculdade. Foi estranho tê-la ao meu lado. Nós não
falamos sobre o beijo e torcemos para Colly não ter visto. Não por
nada. Mas ela pode achar que queríamos ficar sozinhas em um
provador apenas para, justamente, nos beijarmos. E não foi o que
aconteceu.
Mas não adiantou, porque assim que viramos a esquina e
identificamos meu carro, Aster me beijou novamente. Minhas costas
bateram contra o vidro e senti sua boca na minha novamente.
Então... como poderia parar algo que eu estava gostando?
Mas não houve nenhum assunto quando decidimos ir para
casa. Só conseguíamos rir quando olhávamos uma para outra e
pressentir Aster se segurando para não me beijar novamente ao
meu lado. Todos os semáforos eram sinal de risadas altas,
desacreditadas e bonitas. Bastante bonitas.
Na rua de nossa casa é que as coisas se tornaram mais
estranhas.
Não haveria um beijo de despedida na frente de nossas casas,
não quando minha família não sabia nada sobre mim. Felizmente,
Aster apenas fez um sinal com os dedos, que significava “Te vejo
mais tarde” e entrou em sua casa.
Claro que, como uma idiota que está em sua teia de conquistas,
fiquei esperando Aster entrar em casa até decidir entrar na minha.
Segurei o pingente de cadeado por minutos antes de abrir a porta
da frente.
Ao contrário de dias comuns, a TV estava desligada e o lençol
em cima do sofá estava dobrado na ponta dele. Até parecia uma
sala de estar bastante corriqueira. Mamãe estava fora, sei disso
porque Barr está gritando, comemorando do quintal dos fundos.
Deixo minha bolsa ao pé de um móvel qualquer e ando pelo
corredor, até chegar à cozinha e à porta dos fundos que está aberta.
Barr está em uma casa na árvore, em um grande orvalho que
fica aos fundos.
Me encontro bastante surpresa por não ter reparado que agora
tínhamos uma casa na árvore. Que devo ter ficado tão absorta na
minha própria vida, que nem reparava na vida da minha casa. Barr
acenava para mim, da pequena janela à frente de uma escada de
madeira. Meu pai estava com as mãos no quadril, orgulhoso de seu
feito e feliz por Barr.
— Olha, Nicola! — Barr disse. — Bem mais alta dos que as
outras!
— Estou vendo. — Sorrio.
Julguei que Barr não fosse gostar de uma casa na árvore. Não
nessa idade.
Mas ele gostou.
Não!
Ele amou.
Acho que nem eu sei explicar o que Barr tanto gosta nela; se é
realmente o que queria ou se foi construída pelo nosso pai. Alguém
que sempre foi muito talentoso, mas que deixara de lado a
produção. Bem, de qualquer forma, não importa o motivo de Barr
Wolf ter gostado dela. O que importa é que gosta.
— Fez um ótimo trabalho — elogio meu pai.
Ele sorri de lado, ainda bastante tristonho.
— Será uma ótima lembrança para ele. — Escolhe dizer.
Apenas confirmo com o queixo e projeto um sorriso ainda maior
para o meu irmão.
Afinal, meu pai tem razão.
19

UMA DAS MINHAS PARTES FAVORITAS EM em fim de


semestre é quando entregamos os últimos trabalhos que
precisamos angariar para as notas de fechamento. É claro que
houveram provas e trabalhos, mas o último, o encadernado e
especial que entreguei para a sra. Tent antes do prazo, me fez ter
uma ótima e incrível sensação de dever comprido. Algumas
pessoas, as últimas que esquecem quando uma data é estipulada,
sempre ficam aos nervos.
Seus olhos ficam arregalados e as sobrancelhas franzidas junto
com a testa. Dá para ver o desespero e senti-lo de onde estou.
Enquanto a aula não começa, coloco minha mochila em cima da
minha mesa. Aster ainda não chegou. Ela costuma sentar-se à
minha frente agora, deixando que as madeixas fiquem soltas diante
de mim.
Retiro meu caderno e meu notebook para a aula de hoje, mas
percebo que estou sendo observada quando retiro meus olhos da
tela que começa a se abrir. A sra. Tent está com um sorrisinho de
lado, bastante cúmplice. Ela faz um sinal com o dedo, para que eu
me aproxime dela. Deixo minhas coisas de lado e desço os degraus
da plateia-classe. Ela segura uma pasta da cor preta, onde sei que
meu trabalho está.
— Srta. Wolf. Como vai?
— Muito bem, sra. Tent. E você?
Ela concorda com o queixo.
A sra. Tent tem um cabelo liso e quebradiço nas pontas, tingido
de loiro forte, quase gema de um ovo. Tem uma franja mal cortada e
olhos belíssimos que são bondosos e atentos.
— Estou ótima, sra. Wolf. — Ela me garante e sorri novamente.
— Bem, como você deve saber, quando um aluno solicita uma bolsa
em outra faculdade, os professores e a reitoria são rapidamente
notificados. Temos que enviar alguns trabalhos como amostra de
seu intelecto e dedicação. E se me permite, acabei de enviar uma
cópia do seu último trabalho a eles.
Fico apreensiva logo de uma vez.
Há inúmeros fatores que me impedem de ir à Escócia; ir para o
país não é o meu sonho, é o sonho de Aster. Tem Barr, tem minha
mãe e meu pai. Tem Nancy que anda sumida e completamente sem
a intenção de me ligar. Tem o fato de não ter muito dinheiro, tem o
fato de que me candidatei à vaga de Biblioteconomia por impulso,
apenas por me candidatar. Não fazia ideia que eles iriam me querer,
que iam notificar a United Salt tão rapidamente.
Mas há essa parte em mim que coloca todos esses empecilhos
debaixo de um tapete bem costurado e pesado. Bem debaixo, sem
a intenção de sair.
Sinto que a bolsa na United Yesterday é como uma mão
invisível, que toca meu queixo e minhas costas, afagando a região
com um sorriso no canto da minha orelha, dizendo e murmurando
“Vamos, Nicola. É só aceitar e deixar o destino cuidar de tudo!”.
Acontece que não consigo deixar que o destino seja bonzinho
comigo. Ele não anda sendo muito bom nos últimos anos. Então, se
eu tenho que fazer agora, preciso agir primeiro.
Posso dizer a sra. Tent que não estou mais interessada, que
não tenho vislumbre algum de querer me colocar dentro de um trem
ou avião, à caminho de Aberdeen e para uma outra faculdade, onde
começaria do zero, com apenas uma bolsa em Biblioteconomia, que
nem ao menos sei se quero.
É mesmo o curso que quero ocupar minha mente?
É o mesmo semestre que quero largar Literatura Inglesa de
uma vez, o curso que só fiz por fazer e seguir ao novo?
Todas as respostas começam com “n”, mas elas não saem da
minha garganta nem com um pouco de custo. O que eu respondo
para a sra. Tent é muito além de um simples desejo, é somente:
— Espero que eu seja escolhida.
20

QUANDO CHEGO À SALA de Introdução aos Originais, avisto


Nicola Wolf falando com a professora Tent. Ela está segurando sua
mão rente ao corpo e parece um pouco assustada ou
impressionada. Seus ombros estão retraídos e ela passa a pensar
consigo mesma daquele momento em diante.
Entreguei meu trabalho para a professora na semana passada,
então não preciso me preocupar em ser uma aluna desesperada
nesse momento, implorando por mais tempo para a confecção de
um trabalho.
Me aconchego no lugar de sempre, à frente de Nicola. Eu sorrio
a ela quando a observo por cima dos ombros, embora minha
vontade seja de segurar seu rosto e lhe beijar na frente de todos.
Assim como espero fazer quando estivermos sozinhas, em qualquer
momento, eu espero. Também sinto vontade em segurar sua mão
por cima da mesa, e não abaixo de uma.
Sinto vontade de sentir seu rosto tocar o meu, pegarmos sol no
gramado da faculdade, como os outros casais fazem. Adoraria
poder segurar as mechas do cabelo de Nicola e vê-la brilhar no sol,
ou até mesmo dividir um almoço. Tudo publicamente. Nada
escondido.
Estou cansada de me esconder e ser ocultada. Estou cansada
de as pessoas não olharem para mim e assumirem com quem
estão. Mas com Nicola é amplamente diferente. Não quero que sua
vida se torne um inferno dentro de casa por eu estar lhe mostrando
o paraíso. Não irei interferir em suas condições dentro de um lar que
já não é fácil. Irei esperar o tempo certo e estarei lá para leva-la
para passear no centro de Salt, apenas de mãos dadas.
Sem o desejo de nada além de mãos dadas e beijinhos.
Merda.
Olhe só para mim, virei uma maldita...
— Ei. — Nicola toca meus ombros. Viro-me para poder encará-
la. Ela está sorrindo, ainda mecanicamente. Mas é um sorriso. —
Temos ensaio amanhã mais cedo do que hoje, logo após o almoço.
Não sei o que somos uma da outra.
Nitidamente não somos namoradas, mas também não somos
amigas. Nunca fomos amigas.
O que eu sei é que estamos nos beijando com frequência, que
Nicola me dá carona sempre que pode, que segura meu rosto como
se sua vida dependesse da maciez da minha pele. Que faz carinho
no dorso da minha mão e que me beija e me abraça na frente de
Gwen e Harvey. As duas pessoas mais importantes para nós duas.
Ou seja, somos algo uma da outra.
Só não sei o que é.
— Ei, Nikkis — cumprimento com um aceno. — Ok, tudo certo.
Irá me dar carona?
Nicola sorri, se recostando na cadeira.
— Ainda pergunta?
Ela faz um toque no meu ombro, o mesmo que me permite
olhar para sra. Tent que me encara extremamente confusa. Ela faz
um sinal com os dedos e me chama à frente da classe. Muitas
pessoas ainda não sentaram, então é o momento perfeito de falar
com alguém sem levantar suspeitas.
— Algum problema, sra. Tent? — Me aproximo dela enfiando as
mãos nos bolsos.
— Sim, sim, srta. Campbell. Poderia seguir até a minha sala?
Neste momento? — a sra. Campbell pergunta, apontando para uma
porta que somente professores podem entrar. — Preciso conversar
com você o quanto antes e é um assunto de extrema confidência.
Não tem o que responder em um momento como esse.
Apenas olho por cima dos ombros, para uma Nicola Wolf que
me encara confusa. Ergo minhas sobrancelhas, como quem diz
“Não sei” e Nicola devolve com os olhos arregalados de
preocupação.
Escolho ser rápida e prática e sigo para a porta da qual ela
aponta. Giro a maçaneta e entro em um escritório pequeno e
estreito, de pouca luz. A que vem, é projetada por uma lâmpada
presa ao teto. Há trabalhos em cima da mesa de escritório e deixo a
porta aberta, para o caso da sra. Tent entrar.
Pego uma cadeira à frente da mesa equipada com um notebook
velho e pastas de couro, que estão protegendo documentos e
provas.
Alguns segundos depois, a sra. Tent aparece. Ela está bastante
preocupada pelo modo que não olha dentro dos meus olhos.
— Algo aconteceu? — pergunto de uma vez.
— Srta. Campbell. — A sra. Tent se acomoda em sua poltrona.
— Serei franca. Mas preciso comunicar a reitoria da United Salt,
pelo plágio que a senhora cometeu em um trabalho que pedi.
— Como é?
A sra. Tent pisca, desconcertada.
Ela remexe em algumas pastas e pega duas. Uma cor de rosa,
que tem o nome de Taylor Moore em uma etiqueta e a outra verde-
água, que possui o meu nome.
— A srta. Moore me entregou um texto parecido com o seu na
semana retrasada. Sobre uma garota que irá morrer, mas tem o
sonho fantástico de ser uma astronauta. — Ela explica rapidamente,
apontando para a pasta de Taylor. Minha barriga afunda. — E na
semana passada, você me entregou o mesmo enredo.
Pisco.
Pisco tantas vezes que nem consigo formular nada para dizer.
— Sabe que pode perder sua bolsa, não é? — A sra. Tent
indaga. — Sabe que plágio é crime, certo?
— Sra. Tent eu sei de tudo isso, é por esse motivo que o meu é
a obra original! — Me apresso em dizer, indo para frente. — Sei que
ouviria exatamente isso de uma pessoa que cometeu um plágio,
mas sei exatamente aonde minha obra iria chegar. Na morte da
protagonista e seu sonho de ver estrelas. Eu sei... Caramba, eu sei
exatamente tudo o que essa obra resultou. Pode me fazer qualquer
pergunta!
— Acontece que a srta. Moore...
— Só porque Taylor entregou primeiro, não significa que seja
dela. Só que ela foi esperta o bastante em entregar de uma vez. —
Interrompo a sra. Tent sem medo algum. — Não pode cancelar
minha bolsa por algo que outra pessoa fez. Não pode mesmo!
Começo a me desesperar dentro de mim.
Penso em Londres, penso no curso que quero fazer na cidade.
Penso em como uma mancha no currículo como essa pode detonar
meu futuro profissional e acadêmico.
Um furo que nem ao menos fiz.
A sra. Tent respira fundo, ela tem plena certeza que eu sou a
farsa completa aqui.
— Srta. Tent. — Interrompo-a novamente, quando estava
prestes a falar. — Aconselho que chame Taylor aqui. — Escolho
muito bem minhas as palavras. — Adoraria que ela fosse
interrogada sobre a narrativa, o que ela queria dizer com todos os
cinco capítulos em que a Frida está viva e depois morre. Por favor.
Tem uma moral nesses capítulos, logo no fim, gostaria que
perguntasse a Taylor se ela sabe qual é. Se a Taylor souber, pode
me acusar e levar o caso até a reitoria, mas me deixe, ao menos,
provar que sou inocente.
A srta. Tent mede seus olhos em mim e, com um suspiro,
decide sair de seu escritório.

Ela volta minutos depois, com Taylor Moore ao seu encalço. A


ruiva está vestindo um casaco longo e sem maquiagem. Desde que
Garret foi embora, ela vive desse jeito.
A própria viúva dele.
— Vamos lá. — A sra. Tent indica que Taylor se sente ao meu
lado. Ela se recusa, falando que ficará em pé. — Srta, Moore, como
deve saber, você me entregou um trabalho na semana retrasada
que fala sobre a Frida, uma garotinha de treze anos que sonha em
ser astronauta, mas que acaba descobrindo que tem câncer. Certo?
— Correto. — Taylor Moore sorri de lado, um breve sorriso.
— Pode me falar um pouco mais sobre a sua obra? — A sra.
Tent pergunta, apoiando o queixo entre as mãos pousadas sob à
mesa.
— Bom. — Taylor dispara. — Frida tem quinze anos...
— Achei que ela tivesse treze — digo.
Taylor me olha rapidamente, como se notasse minha presença
somente naquele instante.
— Verdade. — Taylor sorri superiormente. — Estava me
esquecendo. São tantas coisas para pensar ultimamente, sra. Tent.
Sabe? Com a ida...
— A partida de Garret Cox não é pauta aqui, srta. Moore.
Taylor parece engolir cimento, mas não protesta.
— Frida tem treze anos e irá morrer. Mas quer ser astronauta.
Sonha mais do que tudo em voar e alcançar as estrelas, antes que a
morte chegue. — Taylor recita tudo ao esbanjar um sorriso falso de
triunfo.
A sra. Tent assente com o queixo e logo depois, emenda:
— E qual é moral da história?
O sorriso de Taylor oscila, mas não se fecha.
— A moral? — questiona.
— A moral. — Insisto. — Sabe? — Me levanto. — Quando
começamos a estudar Introdução aos Originais, a professora, a cara
srta. Tent, disse que podíamos colocar uma moral ao final de nossas
histórias. Então me responda, srta. Moore, qual é a moral da história
da Frida?
Silêncio no escritório.
Os olhos de Taylor vacilam da nossa professora para mim
rápidas vezes em poucos segundos.
— Estão me acusando de alguma coisa? — A voz de Taylor
treme.
— Responda à pergunta da srta. Campbell.
Taylor fecha os punhos e os abre.
— Não tinha moral. — Taylor arruma os ombros. — É uma...
uma história. Optei por não fazer uma moral.
Relaxo meus ombros, rindo para dentro do nariz.
— A moral é que todos os sonhos são válidos. Não importa qual
seja nossa condição de vida ou de saúde, que sonhar nos faz vivos
e nos faz traçar objetivos concretos em vida — declamo. — Frida
tem o sonho de ser astronauta, mas ele não é impossível apenas
porque ela irá morrer. Ele é bastante lúcido e bonito, e poético. E o
que a faz ficar viva por um longo tempo.
— E a moral está escrita ao final do seu trabalho, srta. Moore!
— A professora Tent indica com o dedo, ao final de uma página
metade em branco, metade transcrita à mão. — Acho que preciso
conversar com a senhorita. — A sra. Tent fica sério. — Aster — diz.
— Me perdoe pelo mal entendido. Tenha certeza que levaremos
essa questão até o fim.
— Obrigada, sra. Tent.
— Taylor, sente-se, por favor!
Taylor Moore estava quase chorando, mas não era hora de
sentir pena.

— O que houve?
O braço de Nicola me segurou na saída da aula. Da qual não
tivemos. A sra. Tent teve que se ausentar pelo caso de Taylor e
todos fomos liberados mais cedo.
Apenas me encostei à parede, segurando Nicola pela cintura.
Ela, incrivelmente, deixou ser tocada de maneira tão íntima na
faculdade. Em um mar de pessoas que poderiam comentar.
Mas ela não se importava, conforme contava tudo o que tinha
acontecido dentro daquele escritório fechado e sinistro.
— Ela te plagiou?
— Aham.
— Meu Deus!
— Mas a burrinha não sabia que precisava memorizar tudo de
uma vez. Ou pelo menos o sentido da história. Se Taylor fosse mais
inteligente, eu estaria encrencada para caralho.
— Se ela fosse inteligente, teria feito o próprio trabalho. —
Nicola resumiu.
Aperto sua cintura ao perceber que não estou participando de
uma miragem. Nicola está em meus braços.
— Sim. Mas a sra. Tent irá resolver. Sei que sim. — Mordo
meus lábios, me segurando para não a beijar. — E o seu trabalho?
Como foi? — Mudo de assunto.
— Quer ler? — Nicola o retira da mochila atrás de seu corpo. —
A sra. Tent gostou muito e... bem... — Ela umedece os lábios,
insegura por algum motivo. — Ela adorou. Enfim, gostaria da sua
opinião. Não é fictício, mas também não é biográfico.
— Claro que quero ler. — Pego o trabalho de sua mão e o abro.
Nicola se desvencilha de mim — o que é uma pena — e espera
pacientemente do meu lado, conforme abro a primeira página de
uma pasta. É a cópia. Vejo pela xerox mal feita da biblioteca da
United Salt.
“SOBRE BASTIDORES DESTRUTIVOS E COMO UM DELES
ME PRIVOU DO MUNDO
POR Nicola Wolf
Sei que quando estamos apaixonados tudo é um motivo
enorme para estarmos com a pessoa que amamos ou que
passamos a adorar e a confiar. Acho que quando as pessoas me
falam que estão namorando, sempre me pergunto como é nos
‘bastidores’.
A família da minha mãe sempre fala que, se querermos saber
como uma coisa funciona, precisamos conhecer seu bastidor.
Mas o que é um bastidor, afinal?
Em séries e filmes, são as câmeras, são o que acontecem para
aquela cena ir ao ar ou ser feita. São a computação gráfica, o IA,
são os diretores que ficam atrás das câmeras. Um bastidor é tudo
aquilo de grandioso que acontece e ninguém mais vê. O que
enxergamos na tela do cinema é o resultado de um trabalho duro de
uma equipe de dezenas de pessoas, que são creditadas em letras
minúsculas ao final do filme que a maioria não assiste ou nem
presta atenção. Nós somos forçados a esperar os créditos
acabarem quando alguma cena extra é prometida. Fora isso, quem
liga para os bastidores?
Talvez as pessoas que façam parte dele.
Mas o que quero dizer, é que existem os bastidores de qualquer
relação. Quando vemos uma foto nas redes sociais, de um casal
sorridente, companheiro e fiel, somos levados a pensar que
adoraríamos ter aquilo o que eles têm. Mas, nós querermos mesmo,
ou queremos o que eles mostram online? Quero dizer, quantos
casais famosos adoramos, mas iriámos detestar se soubéssemos o
que acontece nos bastidores deles?
Quantas pessoas não deixam transparecer o que realmente
acontece dentro e fora de uma relação?
Eu diria que quase nenhuma. Ao nosso redor, jamais iremos
saber o que acontece, da mesma forma que jamais saberão o que
acontece dentro de nós.
Fico me perguntando, de vez em quando, quantos casais que
vemos na rua são verdadeiramente bons? Quantos caras que
seguram as bolsas de suas namoradas na rua estão realmente
preocupados com elas? Quantos casais de pessoas deixam de
segurar um na mão do outro, com medo de sofrer represálias?
Quantos amigos vemos passear no shopping e, na verdade, são um
casal?
O que eu sei sobre o meu é que ele é horrível.
Bem, o meu namorado é incrível. Mas o bastidor dele, não é.
Ele promete que as coisas irão ficar bem, que ele jamais
levantará a mão para mim novamente – nunca chegou a me bater,
mas uma breve ameaçada, sim. Enche meu rosto de beijos e eu me
sinto tão amada, que decido que ele é o que quero para sempre.
Não sua violência, não sua forma de mentir para mim, não a
maneira fria com que me olha quando decide que irá me punir, não
quando sua mão aperta meu pescoço com mais força na hora do
sexo e nem quando seu pulso encontra o meu punho de maneira
nada além de protetora. Nada disso.
Mas eu o quero.
Por algum motivo?
Bem...
Tenho certeza que ele não é igual aos outros. Sei que as
pessoas vivem falando que uma mudança só é certa quando a
vemos, mas acho que... discordo. Eu o quero na mesma intenção
que ele me quer.
Veja com cuidado, ele quer se casar comigo!
Não é como as outras garotas que se tornam diversão para ele.
Eu sou a garota. Eu sou a mulher que ele quer levar ao altar e não a
tirar mais de lá.
(Ou talvez a aliança seja o fator definitivo que possa me chamar
de “minha” para sempre)
Mas ele não é assim! Ele é diferente.
(Como diferente se ele te insulta?)
Ele pede desculpa.
(Os outros também).
Não, não, não. Você não está entendendo. Os outros
relacionamentos são destrutivos, o meu é apenas... um bastidor. Um
mal entendido. Uma briga de casais como qualquer outro cônjuge
tem.
(Mas se ele promete que nunca mais fará nada parecido e faz,
ele é uma farsa. É um mentiroso)
Não, ele não é! É apenas um garoto.
(De vinte e poucos anos? Ele deixou de ser um garoto faz anos,
temo em te contar)
Você ainda não entendeu!
(Então, me conte)
Ele me faz bem, me faz sentir amada. Quer um futuro comigo.
(Mas te bate...)
Ele não me bate. De onde tirou isso?
(Mas te pune. Te insulta, faz a achar que ninguém iria amá-la
novamente)
Mas ninguém irá me amar. Ele mesmo diz. Que sou chorona
demais, que sou sensível demais, que sou maluca, ciumenta,
apegada, mandona e instável. Talvez ele tenha razão. Talvez só ele
me ame... são defeitos demais. Ele tem razão, não tem?
(Não, ele não tem. No fundo você sabe que ele não tem)
Mas eu sou a garota certa para ele.
Ele só quer diversão com as outras.
(Você poderia querer se fosse conversado ou se fosse um
relacionamento aberto. Mas... hum... não é)
Não poderia ser. Ele tem ciúme de outros caras comigo.
(Espera... você não tem amigos?)
Amigas, sim. Mas muita das vezes ele não gosta delas. Quero
dizer. É o que eu estava explicando lá em cima antes de você me
interromper; existem os bas...
(Sim, os bastidores. Eu sei, eu sei. Como irá passar por cima do
fato de que você não tem amigos?)
Amigas, sim.
(Não estou falando delas)
Ele tem certeza que amigos podem me fazer ser falada pela
cidade. Vivemos em uma cidade pequena, não quero dar motivo a
ele...
(Dar motivo a ele sobre o quê?)
Você sabe...
(Adoraria que falasse em voz alta)
Não precisa. Você sabe. A única parte que não gosto dele.
(As pessoas não são quebra-cabeças. Elas têm seus defeitos,
mas quando um deles te assusta, sinto em lhe dizer, mas não é
mais...)
Nem pense em dizer a palavra “saudável”, me cansei dela.
(Entendo)
Posso continuar?
(Pode)
Bem, para finalizar. Acredito que as pessoas vivem cercadas
por mundos que não fazem parte.
O bastidor do meu relacionamento é horrível, eu sei.
Mas é normal como qualquer outra relação.
Sei disso.
(Não, você não sabe)”
21

SABE NOS FILMES?


Quando vemos jovens infratores levando a pior, finalmente? E
aí, ficamos nos perguntando como as coisas podem se encaixar?
Bem, isso aconteceu em Salt na última semana.
Veja bem, eu tenho Introdução aos Originais uma vez por
semana, toda terça-feira, e sabemos o que acontece no restante da
faculdade graças a sra. Tent. Agora, imagine só, descobrir que
Garret Cox e Taylor Moore tinham um esquema de plágio de
trabalhos o tempo todo?
Depois que a sra. Tent levou o trabalho e a denúncia contra
Taylor até a reitoria, perceberam que existiam outras ocorrências de
plágio que os Moore e os Cox apagavam com um pouco de dinheiro
— se é que você me entende. Então, eles, praticamente, fizeram um
paraíso dentro da United Salt, com a narrativa de serem ótimos
alunos, quando, na verdade, não passavam de bons plagiadores de
merda.
Não sei como a frase “Bons plagiadores de merda” pode
funcionar, mas você me entendeu, não é?
Em um dia, Taylor estava indo à faculdade, no outro ela havia
sido expulsa, com a bolsa cancelada e um visto negado para sair do
país.
Isso mesmo.
Crimes.
Eles acontecem o tempo todo.
Soube até mesmo que as faculdades locais aonde Garret está
— seja lá qual inferno ele tenha caído — o recusaram
permanentemente quando souberam das acusações — verdadeiras.
Garret e Taylor estão banidos de qualquer faculdade que tenha o
conhecimento que tê-los no corpo estudantil é problema — e plágio
na certa. Os dois foram processados por outros alunos que, ao
verem que eu me manifestei, tomaram coragem de denunciar
novamente. Os Cox e os Moore não estão mais na cidade, visto que
decidiram se mudar para as cidades grandes com a perspectiva de
tratar o caso dos filhos o mais discreto possível.
E não será bem feito na cidade.
Afinal...
Nada de legal ou importante acontece em Salt.

Mas eu sou rancorosa.


Para mim é pouco.
Quero dizer, tudo é pouco. Não acho que apenas processos
podem demonstrar todo o meu ódio que sinto apenas por um deles.
Tenho apenas pena e raiva de Taylor, mas não chego a odiá-la. Ela
pode ficar aonde quer que esteja, mas não perto de mim e nem
perto de qualquer outra garota que ela poderá iludir em uma teia de
conquistas e mentiras. Não me importo com nada.
Apenas que acho pouco o que estava acontecendo.
— Agora gire graciosamente!
Harvey pede, enquanto junto minhas mãos ao corpo e giro no
lugar. Giro cinco vezes. Mantendo meu foco em apenas um ponto
fixo na arquibancada vazia da Arena Palmer.
O Natal é daqui poucas semanas. As ruas começaram a tomar
lamparinas como a real decoração, um Papai Noel de espuma foi
instalado no shopping e outro em uma poltrona no centro da
passagem.
Até mesmo a Arena Palmer está começando a tomar toda a sua
posição como uma obra natalina. Até mesmo Harvey, que veio
treinar com um gorro vermelho com um pompom branco na ponta.
Mas Nicola não está aqui hoje, talvez eu esteja dispersa por
esse motivo.
— Sério que ela não vem?
— De novo. — Harvey bate palma, me ignorando. Ele está me
circulando, apenas para garantir que estou fazendo um spin simples
com graciosidade. Ou aquela que ele quer que eu tenha, é claro. —
Rode cinco vezes, no lugar e vá erguendo seu braço a cada giro
completo. Ok?
Tomo distância dele, revirando os olhos por ter sido
completamente ignorada. Deslizo até o centro e impulsiono meu
ombro. Estou girando uma, duas, três, quatro, cinco vezes. Quando
termino, meus braços estão suspensos ao alto de minha cabeça e
eu sorrio de lado, agradecendo os jurados com uma breve
referência que vovó ensinou para mim quando fui uma miss.
Essas coisas até que funcionam com o passar dos anos.
— Por que não me responde? — Rondo Harvey, dançando
sozinha uma coreografia que deve ser para dois. Não sei como o
Papai Noel Harvey está treinando quando só está mandando em
mim. — Não farei spin algum se não me falar se Nicola está bem.
— Vocês duas são tão dramáticas! — Harvey revira os olhos.
Ele estende sua mão para mim, entrelaçando nossos dedos. — E
quando chegarmos nesse momento, precisamos sorrir ao mesmo
tempo.
— Certo.
— Um, dois e...
Fingimos um sorriso superior e cético para ninguém em
especial, apenas na nossa imaginação em que jurados precisam
perceber que somos gentis, simpáticos e que temos química — e
física — dentro de uma pista. Dançar só me faz ter certeza que meu
negócio é mesmo o hóquei. Espero mesmo que Harvey Bird ganhe,
ele merece. Tanto pelo meu esforço físico, quantos pelos
hamburgueres que deixei de comer com a nova redução alimentar
que Nicola fez eu seguir.
Acho que a primeira coisa que farei após sair do Salt-In —
como vencedora, é claro — é comemorar em uma lanchonete. O
pior e mais gorduroso da cidade. Irei pedir uma porção de batata-
frita com bastante cheddar e bacon, com uma caneca alemã de
cerveja, no talo, bem gelada e bem cheia, até a borda. Até a
espuma ondular enquanto a pego e um enorme hamburguer com
queijo derretido pelas bordas.
É exatamente isso o que irei fazer e ninguém irá me impedir.
— Agora uma valsa simples. — Harvey fala.
Ele pega minha mão e depois me conduz para o centro
novamente. Sou retirada de meus pensamentos enquanto me divirto
com ele.
Talvez, sentirei falta disso.
Dele, no caso.
Harvey tem uma aura muito boa e contagiante. Talvez ele não
faça mal nem à uma mosca. Então, deixo de ser rabugenta — e me
perguntar se fiz algo de errado para Nicola Wolf não ter aparecido
hoje no ensaio — e deixo que apenas meu corpo seja guiado por
um Harvey Noel. Ele faz caretas enquanto deslizamos
conjuntamente. Até se afastar um pouco de mim.
A primeira regra.
Não ficarmos muito tempo longe um do outro.
— Excelente, Aster! — Harvey brada, batendo palma e
patinando para perto de mim. — Quer tentar fazer um layback spin?
Faço uma careta expressiva.
Isso quer dizer; mais giros.
Um layback spin é quando rodamos em apenas em um pé, com
as costas quase totalmente curvadas para trás. Quase formando um
C perfeito. Minha flexibilidade é boa, mas jamais serei como Nicola.
Ninguém será.
Concordo com Harvey, ajustando meu queixo e sendo corajosa.
Patino para um lado e para o outro, sorrio falsamente
novamente ao ritmo da música e curvo minhas costas, depois ergo
um pouco minha perna esquerda e coloco todo meu peso na direita.
Sei que estou girando agora, mas não faço ideia se estou fazendo
certo. Harvey é apenas um borrão colorido pelo gorro e, quando
paro, ele está me aplaudindo.
— O melhor até agora!
— Isso quer dizer que iremos vencer?
— Isso quer dizer que foi o melhor até agora. — Harvey toca
meu nariz. — Agora, terei que ser mau.
— Throw jump, não!
— Throw jump, sim! — Harvey ergue o canto dos lábios. —
Vamos lá, desde que começamos a treinar, você só caiu uma vez.
— De todas as vezes que treinamos, que foram as duas vezes
no caso.
Harvey coloca a mão em meus ombros.
— Estarei bem aqui, Aster.
Confirmo novamente com o queixo.
Penso em como os movimentos do hóquei não se parecem
nada com isso, mas lembro que não estou sofrendo. Estou me
divertindo e que posso e irei conseguir. Harvey coloca a música de
novo. Começamos os primeiros passos da coreografia, que
consistem em olhá-lo apaixonadamente no começo e depois recusar
todo o seu amor.
Harvey patina atrás de mim, como se implorasse por uma
chance e toda a coreografia é composta por sorrisos e caretas que
precisamos intensificar a cada camada da música. Consigo fazer
todos os outros passos, mas quando Harvey toca minha cintura,
simplesmente sei que não conseguirei.
O throw jump é um salto lançado.
Harvey irá me segurar pela cintura e me lançar ao alto, terei
que girar enquanto estou no ar e pousar ao chão, patinando,
seguindo em círculo.
Quando sinto que seus dedos estão prontos, bato rapidamente
em suas mãos, pedindo para que me solte.
— Não consigo. — Sinto minha garganta se fechar e minha
respiração falhar. — Só penso que irei cair. Não consigo mesmo.
— Quer que eu peça para Nicola tirar o passo da sequência?
Harvey está perguntando de boa vontade, sem me olhar como
se eu fosse uma idiota, ou uma garotinha indefesa. Coisa que eu,
completamente, não sou. Ele só me olha, com compaixão e visando
o meu melhor.
Mas...
Se eu não o fizer, Harvey não tem chances de ganhar.
E ele precisa ganhar.
Nós dois!
Sorrio.
— Farei questão de manter — garanto, colocando a mão na
cintura. — Vamos. De novo. Até eu acertar!

Não acertei nenhuma vez.


Nenhuma.
Mas foi engraçado, serviu para rir um pouco.
Só que, depois que o ensaio acabou e bebi minha água e tirei
os patins, meus pensamentos correram para Nicola novamente.
Será que eu fiz algo?
— Vamos para a minha casa? — Harvey perguntou, tocando
meus ombros com o dele. — Podemos chamar a Gwen.
— Eu fiz algo? — Paro de andar ao seu lado, segurando minha
garrafa de água e desejando um banho. Estou suada e
possivelmente fedendo. — Para a Nikkis.
— Creio que não. — Harvey responde.
— Então, por que ela não veio?
— Pergunte a ela. — Harvey desconversa, falando para eu
andar logo.
Do lado de fora da Arena Palmer, o estacionamento se encontra
um gelo. Mas não sinto a temperatura atingir meu corpo pela forma
que me encontro quente pelo ensaio. Entre os carros, avisto Nicola
Wolf, que acena animadamente para nós.
Aceno de volta, me sentindo contente por ela não estar brava
comigo — por alguma coisa. Mas, reparo então, o que tem atrás de
Nicola.
É um carro.
É a Betty!
Ela segura o pompom do chaveiro enquanto acena e pula no
lugar.
Olho de Harvey para Nicola diversas vezes, até meu amigo
colocar as mãos nos meus ombros e me empurrar para a garota
mais sensacional do mundo e o carro mais estiloso da cidade. Corro
na direção dela, por mais que o asfalto esteja úmido. Abraço Nicola
assim que chego perto dela. Betty pode esperar.
Ela me esperou por cinco anos.
E eu esperei por Nicola quase a vida inteira.
— Achei que estava brava comigo, Nikkis. Isso não se faz,
sabia disso?
— Eu precisava agir. — Nicola me abraçou de lado, deixando
que seus lábios tocassem os meus. Ela não estava ligando se eu
estava suada, não mesmo. — Afinal, você precisa parar de andar de
táxi. É ridículo!
— Achei que ia ganhar apenas depois que ganhássemos.
— É. — Nicola deu de ombros. — Mas Harvey e eu
conversamos e achamos que você merece. Então... — Nicola dá um
tapinha na lataria de Betty. — Não vai me levar para dar uma volta?
— Com certeza. — Retiro as chaves de sua mão e sorrio.
Betty está tão bonita quanto a última vez que a vi.
E agora ela era minha. Com o meu esforço, de modo que a
mereci.
Beijo a minha garota e buzino para Harvey, fazendo o maior
escândalo do mundo.

Infelizmente, cheguei em casa sem Nikkis, que preferiu ficar na


livraria Bird. A fiz prometer que ela nunca mais me deixaria em um
ensaio e, então, percebi que estava mais rendida do que deveria ter
estado nesses últimos anos.
Ela teria que ser minha namorada.
Quando cheguei à sala — ainda suada — exigi que vovó
largasse o cigarro e que passeasse comigo. Afinal, eu tinha uma
surpresa. Vovó ficou imensamente feliz quando viu Betty
estacionada na nossa garagem que só haviam tralhas e coisas
velhas. Vi que seus olhinhos se encheram de água como se o seu
sonho tivesse sido realizado também.
Naquele dia, levei vovó ao supermercado, ao parque da cidade,
passeamos até a padaria, compramos seus bolinhos especiais de
canela, rodamos por Salt apenas por rodar e, quando estávamos
chegando e passamos no último semáforo até nossa casa, eu disse:
— Estou apaixonada pela Nicola, vó.
Ela ficou em silêncio.
Tragou seu cigarro para a janela e derramou as cinzas pelo
asfalto. Pensei em lhe dar uma bronca, mas vovó apenas sorriu e
piscou.
— Que maravilhoso, Aster. — Ela tocou meu rosto. — É
maravilhoso ser uma jovem apaixonada. Ainda mais quando se tem
reciprocidade.
E, naquele vasto momento de felicidade e coração quente de
alegria e amor, tive certeza que a Regina Campbell era a minha
família para todo o sempre.
A única que eu precisava.
22

CONFORME O TEMPO FOI PASSANDO, a ideia de viver na


Escócia se tornava cada vez mais íntegra na minha mente. Claro,
não sei se serei aceita, também não sei como eles irão me avisar
que passei ou que não. Mas a ideia me parecia tão boa que às
vezes perdia o fio de várias situações, apenas fantasiando uma vida
bem melhor do que a atual.
Obviamente, não estou me referindo a Aster.
Ironicamente, qualquer fantasia sobre a Escócia e sua cultura,
Aster Campbell estava ao meu lado, de mãos dadas. Acho que é
assim que sabemos que estamos apaixonadas. Quando não
podemos nem ao menos pensar em um futuro sozinhas, porque
gostamos tanta da presença da pessoa que acaba se tornando
impossível.
Não que eu tenha entregado minha felicidade à Aster, nem ela
a mim — sei sobre seus planos de ir para Londres — mas ela não
sabe os meus planos de ir para longe. Depois de anos sendo
apenas uma coisa, finalmente decidi que serei várias.
Pensar nisso até faz o peso do pinheiro que estou carregando
se tornar apenas um trabalho manual. Barr me chamou para
comprar uma árvore de Natal com nosso pai. Ele iria usar sua
caminhonete do trabalho, quando avisou que voltaria ao emprego
ainda em dezembro. O que é bastante curioso, as pessoas esperam
trabalhar só depois do Natal, mas meu pai quer voltar o quanto
antes.
Mamãe voltou a fazer ligações tarde da noite e a sair
misteriosamente às sextas-feiras.
Aster e eu ficávamos o tempo todo com Barr, seja estourando
pipoca na nossa cozinha e assistindo aos filmes que ele mais gosta,
seja dentro de sua casa na árvore, comendo brownies que a sra.
Campbell fez para nós depois de cortarmos sua grama na tarde
passada.
— Pega embaixo, Barr! — Eu estava rindo, meio temendo que
iria deixar o pinheiro cair, conforme Barr me ajudava.
As nuvens carregadas acima de nós pareciam feias e sérias,
quase como uma ameaça que iria começar a nevar. O que era
apenas uma impressão. Em Salt só neva exatamente quando o
inverno chega.
— Estou colocando toda a minha força nisso! — Barr diz,
ofegante.
Passo por cima do jornal da manhã, com minhas botas de
inverno que já foram prontamente tiradas do meu armário após uma
queda na temperatura. Isso porque estamos no outono ainda. Barr
está usando um gorro lindinho roxo beterraba que a sra. Campbell
fez a ele, esconde todo o seu cabelo e ainda deixa as bochechas
deles aparente. Mas Barr não tem mais a cara de criança que
costumava ter no começo do ano.
Parece até mais sério e concentrado.
Deixei o pinheiro na sala, ao lado do sofá.
Barr ficou satisfeito, pois o pinheiro estava perto da lareira e
poderíamos começar a arrumar logo.
— Irei pegar os enfeites com o papai na garagem. — Barr me
informou, saindo correndo pela porta.
Girei nos meus calcanhares em direção à cozinha, minha mãe
estava falando em seu celular, rindo e enrolando os cabelos nas
pontas dos dedos. Ela piscou para mim, como quem diz “Só um
momento, querida, irei desligar em breve.”
Marcho até a geladeira e pego um pouco de chá gelado de
pêssego.
Meu celular vibra assim que encontro um copo limpo no
armário.
É Aster.

ASTER: lanchonete agora. Hein?


NICOLA: não.
ASTER: quero levar você para sair.
NICOLA: que seja um restaurante saudável. Ou vegano. Nada
de lanchonete até segundas ordens.
NICOLA: segundas ordens = minhas ordens.
ASTER: idiota.
NICOLA: molenga

— Nikki? — Mamãe me chama. Deixo de sorrir para a tela do


celular e o guardo no bolso jeans. — Compraram um pinheiro?
— Sim. — Dou um gole na minha bebida. Chega outra
mensagem de Aster, mas prefiro não pegar meu celular. — Barr está
animado. Ele ama o Natal.
— Eu também amava na idade dele. — Mamãe guarda seu
celular na bolsa dela, em cima da mesa de jantar. — Enfim... se
divertiram? — Assinto com a cabeça. — Ótimo, ótimo. Queria ter
ido...
Sei...
— Lindinha. — Mamãe suspira. Ela quer me perguntar uma
coisa. — Não sabia que a amizade entre você e Aster seria tão
forte.
— Para você ver como podemos morder nossa língua quando
prometemos algo banal.
Mamãe finge sorrir; finge ter notado o tom de ironia dentro da
minha voz.
— Agora que ela ganhou aquele carro... — Ela revira os olhos.
— Deve estar se exibindo por aí.
— Não sei. — Dou de ombros.
— Queria saber como a velha Campbell conseguiu dinheiro.
Quero dizer, ela sempre se gabou que fez filmes internacionais. Eu
lembro dela quando eu era jovem. A mulher tinha grana, sabe,
lindinha? — Mamãe comenta e começa a olhar para o teto,
refletindo. — Mas como isso aconteceu de uma hora para outra?
— O carro de Aster é somente dela. Que tal perguntar a ela?
Mamãe, de repente, retoma um semblante ofendido.
Às vezes fico me perguntando se ela amaria que eu tivesse me
casado com alguém rico. Alguém não. Um homem rico.
Deve se lamentar até hoje pelo término com Garret Cox.
— Por que anda tão sensível, lindinha?
— Não me chame de “lindinha”. Soa falso, mãe — peço,
deixando o copo em cima da pia. — Eu vou ajudar o papai com o
Barr, ok?
— É por causa daquela garota, não é? — Mamãe impede que
eu saía da cozinha, segurando meu pulso, bloqueando a minha
passagem. — É por causa de Aster. Você anda estranha, você anda
chegando tarde. Ontem mesmo, você deu carona para ela depois do
ensaio. Eu sabia que essa história dessa... dessa desmiolada te
ajudar acabaria mal.
Meus lábios tremem.
— Eu gosto de Aster, mãe.
— Estou percebendo, se são tão amigas... — Ela larga meu
pulso.
— Não, sua tremenda imbecil! — grito, segurando o ferimento
ao arranhar minha pele que ela fez. — Eu gosto de Aster. Estou com
Aster, estou beijando Aster, estou namorando com a Aster. Eu sou
da Aster. Eu gosto de meninas, mãe. Gosto também de meninas, de
caras, de pessoas e adoro, especialmente, a Aster.
O silêncio nos abraça como se desse uma risada cruel após o
que acabei de dizer.
As lágrimas que escorrem em minha bochecha são apenas
pingos que tocam minha pele e passam direto para o queixo.
Odeio que me toquem, odeio ter que me esconder, odeio falar
baixo.
E odeio toda essa situação.
Já chega.
— Como é? — Mamãe dá um passo para trás. — Quando isso
começou?
— Sempre. — Arrumo bem meu queixo e minha postura. Não
iria mais abaixar a cabeça. — Sempre gostei de garotas. Assim
como gosto dos garotos. Assim como sempre gostei a minha vida
toda.
— Impossível. — Mamãe nega, balançando a cabeça sem
querer me escutar. — Nunca apareceu com uma namoradinha.
— Preferia manter em segredo do que ter que te suportar —
respondo entre dentes. — Ainda acho que fui estúpida em falar
nesse momento. Mas sabe o que que é, mamãe? Eu cansei de não
ser a filha perfeita. E, tudo o que eu fizer, serei comparada com a
doce, incrível e perfeita Nancy, que não liga para você desde que foi
para Londres!
— Nancy é uma garota ocupada e noiva.
— A Nancy te odeia! — berro perdendo minha paciência. —
Assim como eu odeio e assim como Barr irá odiar se continuar
crescendo nessa casa! Nessa família que finge se entender, mas
não se entende. É apenas gritos, dor e insultos.
— Sabe o que sua avó faria se eu falasse com ela desse jeito?
— Vai me bater? — Me aproximo dela. Até nossos rostos
estarem quase colados e nossos narizes quase se chocando. —
Tente. Tente novamente. Faça como fez aquele dia. Um pé já foi.
Um ombro também. Faça o que tiver que fazer, mas jamais coloque
a culpa da sua infelicidade em mim, mamãe.
— Um tapa não caberia dentro do que quero te ensinar, Nicola.
— Ela diz com cuidado na voz. — Você merece aquelas surras que
vemos na TV.
— Não perca seu tempo. — Cerro meus dentes e meus
punhos. — Experimente tocar em mim. Ao menos um pouco.
Experimente brincar com tudo o que já fez comigo. Se eu começar a
falar, não irei parar mais.
— Você não passa de uma garota idiota e imbecil que está
achando que está apaixonada por outra. — Ela sorri, totalmente
amarga. — Eu vi essa garota... ainda esse ano, beijando várias e
várias garotas. Acha que será diferente com você, Nicola? — Ela
entorta a cabeça, dócil. — Acredite em mim. Já segui o amor
cegamente, e onde estou agora? Falida, mal amada, amargurada,
brigando com a minha própria filha porque ela não quer me ouvir.
Acha que Aster gosta mesmo de você? — Mamãe volta a sorrir. —
Meu bem, sua chance de felicidade estava no bolso de Garret Cox.
E como a idiota que é, o deixou escapar.
Fecho meus olhos e os abro, tentando respirar.
— Você não ama essa garota. Não ama garota nenhuma,
lindinha. Você só quer um pouco de atenção!
Sei que irei avançar em mamãe quando ela termina a frase, e
ela está pronta para avançar em mim quando me provoca até o
último fio de cabelo.
Mas paro no meio do caminho, paro bruscamente quando vejo
Barr Wolf entrando na cozinha. Ele carrega um jornal da cidade, o
da manhã. Seus olhos estão cheios de água e ele estende o jornal
na minha direção.
— Por que a Nancy nos odeia?
Sua frase me faz parar. Até meu coração sinto que parou por
um momento. Me aproximo dele, porque mamãe acabou de revirar
os olhos discretamente — como se Barr e eu fossemos uma dupla
de dramáticos.
— Do que está falando, Barr? — Sei que minha voz está
tremida e gaguejante e tento ser o mais firme possível com ele. —
De onde tirou isso?
Ele não responde, apenas estende o jornal para mim.
Nele está escrito que um casamento em Londres aconteceu. O
jornal está com uma foto em preto e branco da noiva, que sorri para
uma multidão de fãs de seu noivo, um jovem cantor que está
começando a fazer sucesso.
O que de familiar há na noiva?
É Nancy.
Nancy casou. Há três dias.
Ela está muito bonita dentro de um vestido branco, rodado,
como se fosse uma princesa moderna. Com mangas longas e
rendadas, o véu recai sobre seu cabelo escorrido pelos ombros e
busto. Sua pele negra parece ter sido pintada por anjos que
decidiram fazer sua maquiagem. Seu sorriso é para os fãs, mas
seus olhos estão presos no noivo que... meu Deus, a olha como se
Nancy pudesse quebrar de tão preciosa.
Os dois estão de mãos dadas. Dedos fortes e seguros que
apertam um ao outro, em uma clara narrativa que eles não
deixariam nada abalar aquele elo que construíram por meses ou
anos. Percebo que a princesa que acabou de se casar é minha
irmã, mas não consigo ver nada de Nancy nela.
Nunca vi Nancy feliz em Salt, nem dentro de casa, nem com
nossos pais.
Só quando eles trabalhavam e Nancy se arriscava em fazer
panquecas na hora do almoço para Barr e para mim.
Não posso culpar Nancy por não ter nos convidado para seu
casamento.
O que seu passado tenebroso iria fazer no seu presente
glorioso?
Mas jamais irei perdoar Nancy por ter deixado Barr fora de algo
tão singelo e bonito. Meu irmão merecia conhecer o amor de
verdade. Ele estava tão animado. Se pudesse, levaria Barr para
Londres. Só nós dois. Assistindo ao casamento de Nancy e
conhecendo a família do homem que a faz feliz como ninguém.
Meus pais não precisam disso. Eles não merecem.
Mas Barr não fez nada de errado.
Mamãe pega o jornal violentamente da minha mão. Sinto o
papel arranhar a pele dos meus dedos e uma gota de sangue cai ao
chão. Não me importo com ela.
— Nancy não nos odeia, Barr. — Enxugo suas lágrimas. —
Aposto que o casamento foi antecipado e a informação demorou
para chegar para nós.
— A maldita casou! — Mamãe bradou, batendo o punho na
parede. — Aquela cretininha casou. “Os pais de Beau Jonns
desejam que o filho seja muito feliz ao lado de Nancy Wolf.” — Ela
amassa o jornal e o joga no lixo. — Esse é o nome dele. Beau
Jonns? Nome de idiota.
Aperto meus dedos.
— Barr? — Seguro seu ombro. — Você confia em mim?
Barr assente.
— Então vá para o seu quarto, que irei te chamar em breve. De
qualquer forma, você pode me perdoar?
— Pelo o quê, Nicola?
— Você saberá.
Barr, ainda bastante inseguro, vai para o seu quarto. Ele
esbarra em papai no corredor. Meu pai entra na cozinha e é logo
informado que sua filha mais velha casou.
Os dois, então, entram em uma discussão.
Está totalmente explícito que Nancy sente vergonha de nós,
principalmente deles, mas está na hora de agir. Tomar uma dose de
coragem.
Saio da cozinha e vou para a varanda. Ligo para Harvey, que
atende apenas três tentativas depois.
— Nicola? Aconteceu alguma coisa?
— Sempre acontece. — Mordo a pontinha da minha unha. —
Será que seus pais podem me dar um turno maior na livraria?
— Ahn... acho que sim. Por quê?
— Precisarei de dinheiro extra a partir de hoje.
E desligo.
Se bem conheço meu melhor amigo, ele está aflito e deve dirigir
até aqui em breve. O que me resta apenas dez minutos para
terminar com tudo. Entro em casa novamente, ouvindo os gritos e
os xingamentos sobre quem é o culpado de ter feito Nancy tão
mimada assim.
Pego um taco de beisebol de Barr, um que ele sempre deixa
caído ao chão. Entro na cozinha, ao meio dos berros dos dois que,
nem reparam que estou presente. Miro na janela da cozinha e
quebro o vidro. Os dois se calam.
Minha barriga afunda e minha respiração se controla.
— Agora. — Aponto o taco de beisebol. — Vocês vão me
escutar!
Mamãe ri ironicamente, como se fosse mais uma parte do meu
show. Com o taco de beisebol, bato incontáveis vezes em sua bolsa,
até ouvir um estalo, que significa que a tela de seu celular quebrou.
Assim como o restante do aparelho.
— Quer que eu destrua mais alguma coisa? — ameaço.
Mamãe não diz mais nada e sim, dá um passo para trás.
— Vocês dois estragaram a vida da Nancy! — falo alto. Há
lágrimas que irão me fazer engasgar de tanta mágoa e destruição
dentro de mim, mas não me importo. — Deixaram que uma garota
tivesse uma enorme responsabilidade em cima dos sonhos de
vocês só porque foram impedidos. Deixaram que uma garota
tomasse conta de seus irmãos todos os dias, impedindo que ela
brincasse como uma garota normal. Ou que tivesse uma vida. Não
me importo se Nancy me convidou para a data errada do seu
casamento, com vocês dois como pais, eu teria feito o mesmo. —
Aperto a haste do taco entre meus dedos. — Me importo com Barr,
ele é quem não merece. Mas se isso o que irei fazer, fizer Barr me
odiar, terei que conviver com a culpa.
Respiro fundo.
— Vocês vão embora dessa casa! — resumo. — Não quero
sorrisos, não quero saber de quem é a casa. Mas vocês dois irão
embora. Não quero saber se é apenas um o combinado. Não quero
mesmo! Não quero entender que o último a sair é o perdedor, não
me importo. Não quero vê-los no gramado, nem ao redor e nem na
rua. Quero vocês fora!
— Nicola, o divórcio precisa sair... — Meu pai tenta. Rouco de
tanto gritar.
— E sairá bem longe de mim e de Barr! — Aperto o taco. —
Bem longe. Estou cansada disso. Minha vida toda foi isso... se
vocês se importam conosco...
— Nos importamos, lindinha! — Mamãe diz.
— Para de me chamar de “lindinha”. — As lágrimas saem de
meus olhos e minha boca treme, não irei conseguir falar mais nada
sem gaguejar. Estou me aguentando por anos. — Se vocês d-dizem
que se importam tanto comigo e com o Barr, vão embora. Se vocês
acham que nos amam, façam algo decente e abandonem essa
casa. Não olhem para trás sem que haja uma melhora, porque
jamais irei permitir que Barr os veja novamente se agirem feito dois
tontos, de egos enormes que não conseguem assumir e nem
acreditar que a merda do casamento de vocês nunca existiu!
Meu peito sobe e desce, carregado de pavor e sentimentos que
estão embaralhados.
Meu pai é o primeiro a sair da cozinha, seguido de mamãe.
Sigo apenas minha mãe, que pode ir até o quarto de Barr fazer
um pouco de pressão psicológica nele. Espero que ela arrume os
vestidos em duas malas. As roupas que mais gosta e detesta, todas
juntas. Espero que ela coloque os produtos de beleza, as
maquiagens e os sapatos em outra.
Escolto minha mãe até o andar debaixo, em um momento que
Harvey já chegou. Ele está ajudando meu pai a empacotar seus
artefatos de madeira que fez pela casa enquanto estava de licença.
Mamãe pede uma carona a Harvey, mas ele nega, afirmando que irá
cuidar de mim está noite.
Ouço mamãe resmungar que Anwer nunca iria aparecer para
buscá-la, mas isso não é problema nem de mim e nem de Harvey.
— Posso me despedir do Barr? — Papai pergunta.
Dou de ombros, mas falo que é algo rápido.
Ele cumpre com o combinado, voltando cinco minutos depois.
Mamãe não se despede quando o táxi dela chega e ela
desaparece da rua e de nossas vidas com mais de cinco malas.
Meu pai faz um sinal de respeito para Harvey e pega sua
caminhonete, enfia suas coisas dentro da lataria e parte pelo lado
contrário do qual mamãe se foi.
Harvey coloca as mãos em meus ombros e suspira.
— Vou até o Barr.
Subo as escadas correndo e bato na porta de Barr, ele grita que
está aberta.
Meu irmão está chorando, olhando para a parede, segurando
as pequenas mãos.
— Quer jantar? — Não sei o que perguntar, então questiono a
primeira coisa que passa na minha mente. Barr nega. — Você quer
ficar sozinho? — Ele também nega. — Você me odeia? — Barr
sacode a cabeça de maneira negativa. — Barr Wolf, sabe que eu te
amo, não é mesmo?
Ele confirma com o polegar e suspira.
— Sei que os gritos acabaram — diz, num fio de voz que é
difícil ouvir. — Mas só quero ficar sozinho por um momento. Pode
ser, Nikki?
Nikki!
Ele me chamou de Nikki.
Barr não me odeia.
— Claro que pode, Barr. Harvey está aqui. Podemos dormir
todos na sala se quiser.
Ele não responde, mas também não quero exigir demais.
Fecho sua porta novamente, do jeito que estava e pego meu
celular no bolso traseiro.
No quinto toque, sou atendida.
— Nancy? — Disparo. — Me escute. — Peço. — Não faça
merda com quem te ama de verdade.
Meus pais assinaram o divórcio no dia vinte e um de dezembro
de 2019, às dez horas da manhã, em Salt.
E, sem esperar o relógio bater certamente onze da matina,
começou a nevar na cidade.
23

ASTER QUERIA DEVOLVER BETTY para Dino ou vender


novamente o carro que, por mérito, é dela. Fiquei amplamente
confusa quando Aster descobriu que meus pais não moravam mais
na mesma casa que eu e se dispôs a vender Betty para me ajudar.
— Eu posso vender a Betty! — Ela disse sussurrando
totalmente baixo para que Barr não escutasse. — Você vai precisar
de todo o dinheiro possível nesse momento.
É verdade, eu iria precisar.
Mas não queria que dependesse de Aster, não abrindo mão de
algo que tanto quis. Então, apenas recusei e afirmei que, se ela
vendesse Betty, não iria aceitar o dinheiro de jeito nenhum.
No começo, nos primeiros dias em que percebi que meus pais
não estavam mais no mesmo recinto que o meu, fiquei estranha e
atordoada. Eu acordava todo o dia cedo, para despertar Barr. Ele,
como um verdadeiro anjo, disse que não precisava lhe acordar. Ele
conseguia sozinho. Eu beijei a testa dele e acompanhei Barr até o
ônibus todos os dias. Mas na primeira semana, eu ainda sentia que
ele me odiava. Ao menos um pouco e não queria admitir.
Comecei a abrir a livraria e sair de lá apenas para ensaiar com
Aster e Harvey na Arena Palmer. Voltava dos treinos e ficava na
livraria até o horário de ir para a faculdade. Barr ficava com a sra.
Regina Cambell que se ofereceu para cuidar de Barr integralmente,
não se importando, qual fosse a circunstância.
Em uma das tardes que liguei para saber como os dois estavam
indo, a sra. Campbell me disse que estava ensinando Barr a fazer
pulseiras de miçangas logo após ele fazer os últimos deveres de
casa. Quando começou a nevar, Barr disse que preferia me ajudar
dentro de casa. Então, começamos a jantar todos os dias, um perto
do outro. Ele ainda não falava muitas coisas, optava por assuntos
que não fossem nossos pais.
Às vésperas do Natal, meus pais mandaram dinheiro,
depositaram na minha conta, o suficiente para algumas semanas,
mas ainda precisava manter o turno acirrado na livraria — e, quem
sabe, conseguir outro emprego. As ligações dos meus pais eram
apenas para Barr. Ele ficava um bom tempo, subindo e descendo a
escada, com o telefone pregado à orelha.
Barr me contou que mamãe está com uma amiga dela,
esperando conseguir um bom salário para se mudar de Salt. Ele não
me disse se ela tinha a intenção de levá-lo consigo. Depois, meu
irmão me disse que nosso pai estava ficando em um hotel de
estrada, com saída de Salt; ele adoraria pegar uma promoção na
construtora ou ser transferido para uma filial em Yorkshire. Os dois
tinham planos de ir definitivamente embora, mas não sabia qual
deles tinha a intenção de levar meu irmão.
Na véspera de Natal, acordei com um pouco de neve
acumulada na minha janela. Enquanto Barr dormia, percebi que
aquele era o primeiro dia que eu não deveria trabalhar igual à uma
desesperada — a desesperada que eu sou, na verdade. Acordei
com bastante preguiça, coçando meus olhos com o dorso da mão e
sem a intenção de fazer nada tão interessante. Recusei o convite
das Campbell de fazer uma ceia de Natal com elas e tive que negar
o convite da família de Harvey e da de Gwen. Não queria aparecer
por ser mesquinha, mas só queria um tempo a sós com o Barr.
Preparei panquecas e suco de laranja natural, e quando Barr
acordou ele comeu tudo, falando sem parar que adoraria somente
um jogo novo de videogame. Acabei comprando um jogo novo, um
tênis novo e um taco de beisebol novo, mas Barr não precisa saber
que extrapolei nas compras apenas porque ele merece.
— Quer que eu busque o correio? — Ele se levantou da mesa e
pegou os utensílios que sujou.
— Por favor. — Continuei sentada, esticando minhas pernas
por baixo da mesa.
Barr saiu saltitante da cozinha, porque acabei me esquecendo
que ele ama o Natal; ama tanto que decoramos o pinheiro com
ajuda de Aster e ele adorou ser a pessoa que colocou a estrela no
topo.
Quando Barr voltou havia apenas duas cartas com ele. As duas
estavam congeladas, então me lembrei que devo ter esquecido de
buscá-las na nossa caixa do correio na semana passada. Ele me
passou as duas. Uma com uma promoção absurda de cartão de
crédito e a outra...
— Posso ir para o meu quarto? — Barr perguntou, pegando um
pacote de chocolate do armário.
— C-Claro — gaguejei, tremendo um pouco.
Barr sorriu e correu, desaparecendo pela casa.
A carta gelada e com vestígios de neve me cumprimentou. A
United Yesterday, a faculdade parceira da minha, havia me
respondido. Era uma carta normal, com uma pequena janela de
plástico que indicava meu nome. Abri rapidamente, quase
amassando por completo. Reli algumas vezes, tentando captar o
que aquelas palavras queriam dizer.
Mas apenas se configuraram em ACEITA.

Encomendei o jantar da ceia em um buffet da cidade,


logicamente não tenho capacidade motora e nem específica para
cozinhar sozinha. Barr estava com os olhos curiosos, feliz por ver
nossa mesa cheia.
Quando a campainha tocou, comecei a pensar que tudo o que
pensei fosse uma péssima ideia. Barr se ofereceu para abrir a porta
e eu deixei. Esperei pacientemente na sala, enquanto o observava
abrir a porta e dar de cara com Nancy, nossa irmã mais velha.
Nancy tinha um sorriso e um brilho natural invejável, ela estava
muito feliz, segurando alguns embrulhos que eram para Barr.
— Oi, Barr. — Nancy tentou sorrir, ainda um pouco insegura.
Barr não tinha dado passagem ainda para ela passar. — Feliz
véspera de Natal.
Nada.
Barr não dizia mais nada. E eu nem conseguia observar a
expressão de seu rosto.
Vi quando seus ombros se relaxaram.
— Oi, Nan. — Ele disse, abraçando-a, como se estivesse
cansado e totalmente exausto de brigar, iria apenas aceitar o que a
vida iria lhe dar. — Feliz véspera de Natal.
Nancy Wolf comprimiu os lábios, prestes a cair em lágrimas.
Abraçou Barr novamente quando deixou os presentes em cima de
uma poltrona. Percebi que Beau, seu marido, vinha logo atrás. Um
de seus olhos era branco, completamente.
— Nicole? — Beau estendeu sua mão para mim quando fechei
a porta.
— Nicola — corrigi sorrindo. — Mas tudo bem.
— Desculpe. Sou Beau.
— Olá, Beau. Seja bem-vindo à minha casa!
Beau sorriu, demonstrando que ele não seria ruim para mim —
e nem para a minha irmã.
Barr e Nancy passaram a noite de Natal toda juntos, sem
deixaram qualquer brecha para mim.
Não me importei, aquele seria o primeiro Natal bom em anos.

Frango tostado e torta de morango estavam presos em restos


nos pratos de louças. Não vou lavar nada enquanto estou decaindo
de sono, mas apenas irei tirar o excesso de comida.
Eu ainda não tinha visto Aster, passei a noite toda ocupada com
Nancy, Beau e Barr, mas uma ligação antes de dormir deve bastar.
Já passa da meia-noite, é oficialmente Natal.
— Ei. — Nancy apareceu na cozinha. Ela estava dentro de um
pijama de inverno. Ela deu novas roupas para Barr, controle de
videogame e uma mini guitarra, que foi ideia de Beau. — Precisa de
ajuda?
— Não, eu... — Bocejo. — Só tirando o excesso. Amanhã de
manhã eu vou limpar tudo.
O anel dourado brilhava no dedo de Nancy.
Agora ela era uma pessoa casada. Totalmente casada.
— Eu... — Viro-me para, me encostando na pia. — Não irei te
perdoar tão cedo. Muito legal que veio para o Natal, que trouxe
presentes para o Barr, mas ele ficou muito chateado. Devastado, eu
diria.
Nancy engoliu em seco.
— E você? Ficou como?
— Indiferente. — Dei de ombros. — Claro, amaria vê-la se
casar. Você é a minha irmã. Mas nada que vem dessa família me
abala mais.
— Não quero que me perdoe. — Nancy confessa. — Sei o que
fiz e sei quão errado escolhi ser nessa história. Você e Barr não
tinham nada a ver com a minha escolha.
— Eu sei — admito. — Aliás, eu faria a mesma coisa. Não os
chamar.
— Entendo.
Nancy cruza os braços.
Ela me deu um colar de ouro branco, com um pingente de
pérola na ponta e um conjunto de dois suéteres, tal qual meu estilo.
Não comprei nada a ela por não querer.
— Você está namorando? — Nancy me lançou um sorriso.
— Acho que sim.
— Acha?
— Ainda não falamos sobre isso. Aster e eu.
Nancy entende rapidamente com a cabeça. Possivelmente
porque Barr lhe contou.
Quando disse ao meu irmão que estava saindo com Aster, ele
me abraçou e disse que Aster era a garota mais legal que ele
conhecia. Fiquei um pouco enciumada com isso.
Aster é a garota mais legal que ele conhece?
E eu?
Barr disse que eu sou a mais durona e corajosa, então, deixei
que ele se safasse.
— Preciso me acostumar. — Nancy acrescenta.
— É quem eu sou. Gosto de pessoas. Gosto delas, estou
aberta a elas. E Aster é ótima. — Cruzo meus braços. — Quando a
conhece, com certeza é.
— Tenho certeza que se ela está com você, ela tem bom gosto.
— Nancy diz antes de ficarmos em silêncio novamente.
Olho para os meus pés, dentro de pantufas e me sinto um
pouco deslocada. Há milhares de coisas que queremos dizer nesse
silêncio, mas que iremos preferir dizer apenas o essencial.
— Sei que não teremos a mesma relação de antes. — Nancy
começa. — Mas eu vim para Salt com uma intenção, Nicola. Duas,
na verdade.
— Pode falar.
— Estar em paz com você. — Nancy pontua. — E te ajudar
com toda essa situação — diz. — Sejamos francas, Nikki. Nossos
pais não vão voltar.
— Sei disso. — Arrumo meus ombros, desconfortável.
— E você não é a mãe do Barr. — Nancy continua.
— Também sei disso.
— E não pode cuidar dele para sempre.
Solto o ar, começando a ficar irritada.
— Aonde quer chegar, Nancy?
Ela, um poço de tranquilidade, dá de ombros.
— Estava conversando com o Beau enquanto estávamos vindo
para cá. — Ela morde os lábios, pensativa. — E acho que seria uma
boa ideia que eu cuidasse do Barr, enquanto você estuda.
Fico sem palavras.
Não achei que Nancy seria radical. Sempre pensei que Nancy
iria se apegar a Londres ou qualquer cidade, para nunca mais
precisar cuidar de alguém que não fosse ela mesma. Achei que ela
falaria que mandaria alguma mesada, que me ajudaria
financeiramente. Não que Barr fosse com ela para Londres.
— Ele não iria. — Me sinto insegura. Totalmente. — A vida dele
é aqui.
— Mas pode ser lá. — Nancy rebate. — Londres é ótima. Barr
pode ir para a mesma escola que o irmão mais novo do Beau vai. É
uma escola modelo, apenas para garotos. Ou uma mista, Barr
escolhe. Ele pode treinar hóquei em diversas arenas. Na idade dele,
ele consegue fazer amigos.
— Está preocupada com Barr ou com sua consciência? —
retruco baixo.
— Como é?
— Está mesmo preocupada com o Barr ou só quer cuidar dele
para se sentir menos mal? Porque se for, pode ir embora agora,
Nancy!
Nancy me olha rapidamente, desacreditada com minha pouca
fé nela. Acredito fielmente que ela tenha me dado motivo nos
últimos meses.
— Não é uma decisão nossa, ok? — Nancy diz. — Adoraria
falar o que sinto, mas acho que é apenas uma recente mágoa por
tudo. Não te odeio, Nicola. Odeio nossos pais e quem eles me
transformaram dentro dessa cidade. Não odeio o Barr. Pelo
contrário, amo ele. — Nancy junta os lábios. — Sinto muito que eu
tenha feito o que fiz, não irei me casar novamente apenas para Barr
saber o que é uma cerimônia de casamento. — Ela faz uma
piadinha, empurro uma lágrima para o lado, me recusando a rir. —
Mas quero dar a vida que não deram a mim ao Barr. Não pretendo
ter filhos e não posso viver sabendo que meus irmãos estão lutando
todos os dias. Não irei colocar minha cabeça no travesseiro com
tranquilidade, com a ideia de estar vivendo em uma grande casa,
enquanto meus irmãos precisam se desdobrar para manter essa
casa.
Absorvo suas palavras para dentro de mim e concordo.
— A decisão é de Barr. Não nossa — falo novamente.
— Ele é quem irá decidir. — Nancy fala com convicção. —
Somente ele. Vou conversar com Barr amanhã de manhã.
— Se ele for — digo, antes de Nancy sair da cozinha. —
Promete que o fará ligar para mim?
Ela sorri.
— Todos os dias. — Nancy promete.
24

— HEY, NIKKIS. O Natal ainda não acabou!


Estou olhando para Aster, que tem seus cabelos presos dentro
de um gorro feito de lã, enquanto bate seus dentes um no outro pelo
frio que invade minha casa pela porta dos fundos. Todos na casa
estão dormindo, depois de uma ceia de Natal recheada de risadas e
lembranças da infância. Certo que não consegui dormir depois da
conversa com Nancy. Fiquei pensando em qual momento do dia
seguinte ela falaria com Barr, e como meu coração dizia que ele iria
aceitar.
Mas tudo se dissipou em névoa quando vi Aster, parada à
minha frente, segurando nada além das chaves de Betty entre seus
dedos. Combinamos que não iriamos trocar presentes, apesar de
sua vontade inegável de querer me comprar alguma coisa. Mas
apenas disse que não, que não poderia gastar tanto, visto que Aster
merece quase tudo o que o dinheiro pode comprar — e o que ela
pode querer, é claro.
— O que tem em mente? — Entre tantas perguntas, só
consegui me mostrar totalmente rendida a ela.
— Coloque um casaco e venha comigo.
Não demorei para voltar para dentro de casa, enfiar meus pés
em botas e meus braços no meu casaco favorito. Nos fundos, Aster
ainda me esperava. A neve caía tímida do céu, como se fossem
beijos sutis de anjos. Alguns flocos ficavam presos nas linhas de lã
e estava tão gelado que o nariz de Aster estava avermelhado na
ponta.
Ela pegou minha mão que estava coberta por uma luva e me
guiou pelas laterais da minha casa, até Betty, estacionada na rua,
ao lado do gelo que deixava tudo cada vez mais solitário e frio. Ela
abriu a porta para mim e quando entrei no carro, senti uma rajada
de vento quente. Com certeza, poderia dormir em qualquer lugar de
Betty.
— Passeio noturno natalino? — perguntei assim que Aster se
jogou ao meu lado, no banco do motorista.
— Passeio noturno natalino! — Ela disse em seguida,
colocando as chaves na ignição e dando partida.
O motor de Betty rugiu, me avisando que era apenas barulhento
quando ligada, mas quando iniciada, era apenas uma sensação de
deslizamento pelo asfalto. Aquele, com certeza, tinha sido um bom
investimento em se tratando de carros. Aster Campbell ficava
espetacularmente bonita atrás do volante de Betty, um grande e
acobertado por marcas de dedos.
— Vamos para...?
— Surpresa.
— Estranho. — Me afundei no banco. — Não conheço nenhum
lugar com esse nome.
— Não seja engraçadinha. — Aster pediu, colocando sua mão
no meu joelho. — Só o que precisa saber é que podemos ter um
pouco de paz. E quero saber tudo sobre seu Natal. Como foi?
— Bom — admiti, me aventurando em observar a vida do outro
lado do vidro do carro. — Nancy veio. Eu conheci o marido dela, o
Beau. Ele é muito legal e sossegado. Barr o adorou. Ele gostou que
Nancy veio, mas ainda parecia meio ressentido pelo casamento.
Mas... — Prolonguei a sílaba. — Barr não perguntou em momento
algum sobre os nossos pais, o que eu considero isso uma extrema
vitória.
— Mais alguma coisa?
— Bem... — Suspirei novamente. — A Nancy quer que o Barr
more com ela. Minha irmã não acha justo que eu tenha ficado
sozinha com ele, ainda mais que ela pode dar um futuro muito mais
certo para ele, do que eu.
— Não achou ofensivo? — Aster quis saber, neutra.
— Achei sensato — retruquei, me apoiando nos joelhos. —
Nancy pode mesmo dar a Barr uma vida melhor. Mas isso será
escolha dele. Apenas dele!
— E você acha que ele...
— Irá. — Sussurro. — Quero dizer, Londres é incrível. É o
sonho de qualquer pessoa que quer esquecer uma vida numa
cidade pequena. Nancy e Beau possuem empregos decentes, ele
tem uma família bem estruturada e Barr iria para uma escola modelo
da região... eu mesma iria escolher viver sob o mesmo teto de
Nancy se ela me convidasse.
Aster riu, desferindo carinhos no meu joelho.
— E o seu? — Me virei para encará-la.
— Fomos ao asilo da cidade. — Aster disse. — Vovó conhece
algumas pessoas lá. Ela ficou o tempo todo bebendo vinho e
falando de quando era atriz. Bem, foi maravilhoso de qualquer
forma. Gosto de passar feriados e festas ao meio de muitas
pessoas. Você teria gostado!
— É por isso que decidiu me sequestrar? — Brinquei. — Passar
um momento comigo?
— Também!
— Também? — Sorrio. — Quer dizer que tem mais alguma
coisa que deveria saber?
— Por que as pessoas nunca sossegam quando dizemos que
temos uma surpresa, hein? — Aster devolve, na mesma entonação.
— Apenas fique em silêncio, Nikkis.
Me apego ao que ela disse e fico quieta, observando uma
silenciosa e vazia Salt em uma madrugada de Natal. Observo como
a neve cai e como ela preenche cada parte de uma calçada que não
havia mais nada branco, mas agora tem. Reconheço o caminho
mentalmente, enquanto me lembro que estamos indo até à Arena
Palmer. Mas tento ficar neutra. Esse pode ser o plano de Aster;
mostrar que estou certa, logo depois, terrivelmente errada.
Acabo que estou certa.
Ela entra no estacionamento ainda mais vazio da Arena e
estaciona Betty em qualquer vaga próxima à porta.
— Como isso? — Me agito ao seu lado. — Como conseguiu
isso?
— Treinar todos os dias na Arena me deu algumas vantagens.
Como sempre comprar smoothie do outro lado da rua e ter me
tornado amiga do Mason.
— Aster...?
— Nikkis...!
Ela abre a porta de Betty rapidamente, antes que eu tenha
tempo de formular uma pergunta muito melhor e mais expressiva do
que “O que está acontecendo” pela quinta vez naquela noite.
Abro a porta também, saindo logo atrás de Aster que está
correndo para a entrada principal da Arena Palmer. Os primeiros
preparativos do Salt-In começaram e alguns pôsteres estão do lado
de fora. Aster abre facilmente a porta principal com uma chave que
ela diz que “Precisa devolver ao Mason”. Dou risada quando entro
no lugar que é completamente normal aos meus olhos. Mas que se
torna em um tom especial quando estou sozinha com Aster.
Não tem nada de especial dentro dele, nem uma decoração,
nem algo que implica que seja um presente. Mas quando Aster
fecha a porta e pega minhas mãos, seu sorriso é o mais bonito que
já vi em anos.
— Não irei te dar um presente tão cedo. — Aster diz. — Mas
irei te pedir algo. E como é Natal, espero que você não diga não.
— Irei avaliar. Antes...
Ela ergue o dedo.
— Acho que quero meu colar de cadeado de volta. Senti falta
dele!
— Também quero as minhas pérolas!
Retiramos nossos colares ao mesmo tempo, mas, diferente do
dia em que trocamos, Aster vira-se de costas para mim e segura
seus cabelos que escaparam do gorro. Ela afasta as mechas e eu
prendo seu típico colar ali. Depois, é a minha vez de receber minhas
pérolas. Aster beija minha nuca antes de se afastar de mim e sinto
que irei me derramar nela.
Aster segura minhas mãos e me olha bem dentro dos olhos.
— Nicola Wolf — diz. — Patine comigo.
É rápido quando percebo o que aquilo significa. Uma Arena
inteira de patinação vazia, apenas com duas pessoas. Pessoas
essas que dominam a arte de patinar. Percebo o que aquilo
significa, o presente que Aster escolheu me dar, quando nem ao
menos pedi.
— Não sei. — Solto delicadamente minhas mãos das suas. —
Acho que não consigo.
— Não estou pedindo que esteja pulando em um pé só. —
Prontamente Aster responde. — Estou falando para que patine
comigo. Por diversão. Que ande naquela pista lado a lado comigo,
de mãos dadas. Sem passos arriscados, sem nada do tipo. Só
quero te dar algo que te divertia há anos, que ainda pode ser
diversão se você quiser. Estarei aqui, bem aqui, Nicola, segurando
sua mão. — Aster dá um passo à frente. — Eu prometo mais que
tudo.
— Não me deixará cair?
— Nunca.
Ainda meio insegura, deixei que Aster andasse na frente. Ela
me levou até a arquibancada, depois para um banco, onde havia
colocado meus antigos patins. Claro que a ajuda de Harvey nesse
momento foi bem-vinda e completamente solicitada. Ela colocou os
patins em mim, como um príncipe coloca um sapatinho de cristal na
sua princesa. Ou a princesa que encontra sua princesa depois de
tanto procurar pelo vilarejo.
Ela coloca os seus, aqueles patins surrados de tantas partidas
de hóquei.
A sensação de vesti-los me traz sensações ótimas, misturadas
com medo, mas que logo se transformam em apenas curiosidade.
Ela pega minha mão novamente e me guia até a portinha da pista.
Aster passa por ela primeiro e ficando de frente para mim, me
conduz para frente. A primeiro momento, sinto que irei dar de cara
no chão como uma iniciante. Quase realmente dou, quando piso em
falso. Mas logo estou de pé, patinando com Aster até o centro, ainda
de mãos dadas, sem coragem o bastante para soltá-la.
Ou nem com vontade de soltá-la — leia como quiser.
Bem no centro, bem quando estou no justo lugar que Harvey
sempre fica com Aster e eu apenas observo de longe, é que seguro
seus dedos.
— Não estou sendo justa com você — digo.
— Sim?
— Aster, eu... — Olho para ela. Vejo como ela está linda, como
está me segurando, mesmo parada. — Eu me candidatei à uma
bolsa na Escócia. Sei que esse é o seu sonho, mas se Barr for,
quem sabe eu possa ir? Me manter nessa cidade nunca foi meu
plano ou me manter no alojamento da United Salt. Se me odiar irei
entender...
— Por que iria te odiar?
— Ir para Escócia é seu sonho.
Aster ri, entrelaçando nossos dedos.
— Acha que eu sou apenas a única pessoa no mundo que
deseja visitar a Escócia? — Ela quer saber, sorrindo. — Os sonhos
não esgotam. Não existe uma senha ou uma determinada
quantidade de pessoas que possam sonhar com a Escócia e uma
faculdade lá. — Ela umedece os lábios. — Nikkis. — Ela coloca uma
mecha do meu cabelo atrás da cabeça. — Meu amor por você não é
nem um pouco frágil ao ponto de dizer com o que você tem que
sonhar ou não.
— Não está brava?
— Não mesmo. — Aster aperta ainda mais nossos dedos. —
Fico feliz que você tenha começado a sonhar mais do que apenas
uma cidade. De verdade.
— E se eu for mesmo?
— Então, terei que pegar sempre um trem de Londres até
Aberdeen, soube que demora algumas horas.
Não tenho mais nada a falar.
Apenas puxo Aster pela nuca e a beijo, sentindo suas mãos
pousarem em minhas costas, ao me abraçar, enlaçando ainda mais
minha boca na sua e minha língua com o sabor de casa. Talvez, ela
sempre tenha esse gosto e esse sabor e, particularmente, não
quero descobrir outro aroma ou sabor que não seja o de Aster
Campbell.
— Seja a minha namorada, Nicola. — Ela sugeriu, quando se
separou de mim. — Patine comigo neste Natal, me beije e seja
minha namorada.
Seguro seu rosto, a maciez que sua pele cumprimenta a minha.
— Sim. — A beijo. — Sim. — Beijo a ponta de seu nariz. — E
sim! — Sorrio, sentindo sua boca encontrar o caminho de volta para
minha.
Aster Campbell me pega em flagrante exato que meus olhos
estão brilhando mais do que posso descrever em palavras. Talvez
jamais saiba descrever o que sinto no momento. Dentro da Arena
Palmer, vestindo patins, sentindo meus pés apertados por cadarços
que já foram muito mais costumeiros do que qualquer outra coisa no
mundo.
Enrosco minha mão na sua, mas Aster desfaz, deixando que eu
seja livre em uma pista inteiramente minha. Quero perguntar se ela
tem certeza, mas seu sorriso demonstra que A) Ela tem muita
certeza do que está me indicando e B) É apenas por alguns
minutos.
Ela estará bem ali.
Para mim.
Sem deixar que eu caia.
O primeiro passo que dou ao sentir o gelo artificial abaixo de
mim, acabo vacilando um pouco. Apenas penso na falsa sensação
de vê-lo partir, mas isso, de certa forma, não existe. Não mesmo. É
só coisa da minha imaginação, minha única imaginação que está lá
apenas para me autossabotar. E como me sabotou!
Vivi com medo de mim mesma.
Sendo minha verdadeira e única inimiga.
Sorrio para Aster e deslizo – com pesar – para longe dela. Ela
sorri, engolindo a gargalhada gostosa pela garganta. Patino para
longe, do outro lado da fileira. Sinto as lágrimas se concentrarem
nos meus olhos. Lágrimas de felicidade e agradecimentos. Lágrimas
puras que me trazem de volta ao meu sonho. Sonho esse que foi
interrompido, mas sinto uma enorme chama de vontade de
agradecer por ter feito parte dele agora.
Patino ao redor de Aster, abrindo os braços e sentindo a
liberdade. Como tirar amarras de meus pulsos e voar. Sinto meus
joelhos se dobrando automaticamente, do mesmo jeito gracioso que
sempre soube fazer.
Deslizo até Aster, pegando sua mão e deixando que ela fique
ao meu lado. Nesse momento que, se me contassem anos atrás, eu
não acreditaria. Iria rir da pessoa, mas não daria meu braço a torcer
que, Aster Campbell teria participação na minha mais linda e
brilhante libertação sobre patins.

O calor dos beijos de Aster invadem minha roupa. É como se


eles fossem criaturinhas curiosas, que escalassem minha perna e
se fincassem na minha barriga, sem a mínima intenção de irem
embora. Jurei a mim mesma que jamais, nunca, nunca mesmo seria
uma garota no quarto de Aster. Jurei que nunca seria mais uma
garota na sua cama.
E, olha só onde estou?
Sentindo a garota que eu prezo e gosto em cima de mim,
desferindo beijos delicados, mas que podem muito bem demonstrar
seu enorme prazer em me ter por perto. O prazer em dedilhar
delicadamente meus ombros, na intenção de liberar meu sutiã e a
última alça que faz dele ser uma peça íntima.
Fito Aster dentro de seus olhos e sei, simplesmente sei, que
não somos apenas mais uma diversão.
Somos nós.
Só nós.

Na manhã seguinte, enquanto eu estava brincando com o meu


cereal, sonhando com a noite passada, enquanto eu estava
patinando de um lado e para o outro com Aster, Barr chegou à
cozinha. Ele segura um pacote mal embrulhado.
— Feliz Natal! — diz, sorridente.
— Não precisava ter comprado nada para mim, Barr.
— Não comprei. — Ele responde. — Eu fiz.
Toco sua bochecha e pego o presente. Rasgo o papel de
embrulho e pego uma cordinha preta, com algumas partes em
pingentes brancos de miçangas que formam o nome NICOLA em
letras coloridas.
— Barr — murmuro, adorando. — Eu amei! Com quem
aprendeu a fazer pulseiras?
— Com a sra. Campbell. — Barr responde. — Às vezes que fico
com ela. Aprendi a fazer colares, pulseiras e anéis. Tudo de
miçangas!
— Adorei.
— Fiz uma para a Aster, já entreguei!
— Aposto que ela amou! — digo.
— Sim... — Barr fica em silêncio, tocando sua própria pulseira
que diz BARR W. — Acho que terei tempo para fazer uma para a
Nancy.
— Ela só irá embora antes do Ano Novo.
Barr me olha.
— Não se eu também for para Londres.
25

O COLAR DE CADEADO não está no meu pescoço.


Normas da competição; nada que possa ferir, machucar ou cair
pode estar no meu pescoço ou no meu corpo. Não que o cadeado
combine com a roupa — não combina — mas poderia me ajudar a
manter uma confiança que apenas Harvey ou Nicola possuem. Ou
qualquer outra pessoa que não esteja no meu lugar, é claro.
A ansiedade que me consome não é nada parecida com a qual
já experimentei na minha vida. Presumi que o torneio estivesse
longe quando o Natal passou e o Ano Novo se foi, mas me enganei
negativamente quando apenas pisquei e estávamos no fim de
janeiro.
O inverno iria se dissipar em março, mas em janeiro,
começávamos a perceber que ele não tinha mais tanta força. Quero
dizer, não nevava mais. Mas nossos ossos ainda pareciam rachar
se fossemos dar conta que em Salt só há uma estação.
Noto, dentro de um camarim improvisado, que amo Salt mais
do que poderia me lembrar. Se sei tantos detalhes de algo que às
vezes afirmo odiar, talvez esteja mais apegada do que me
lembrasse. Toco firmemente meu pescoço e sinto falta de algo que
possa decorá-lo, mas é a imagem à minha frente, refletido no
enorme espelho que cobre quase a toda a parede, é que me dou
conta que estou irreconhecível. A aparência elegante e cética que
meu cabelo se encontra é até parecido de quando eu competia, com
oito anos de idade. Muitas pessoas mexiam no meu cabelo, mas só
algumas sabiam o que estavam fazendo de verdade.
Montado em um coque baixo, não há nenhum fio saindo do gel
de cabelo que colocaram — que Gwen penteou, para falar bem a
verdade. Minha maquiagem é poderosa e ao mesmo tempo límpida,
nada que possa borrar caso eu erre um passo. Nicola me advertiu
que batons vermelhos podem ser um caos quando estamos em
momentos como esses.
Me levanto da poltrona. Me lembrando de um fato que preciso
me lembrar; tenho que fazer todos os passos corretamente. Repito
mentalmente a cada cinco segundos.
Alguém bate à porta e eu mando entrar. Sorrio assim que vejo
Nicola Wolf. Ela está dentro de um vestido simples azul, bastante
bonito que combinam com seus olhos, botas de inverno e um
casaco por cima, aberto na frente.
— Nikkis. — Suspiro ao vê-la. — Tudo bem?
— Só vim te ver antes de você entrar. — Nicola fecha a porta
atrás de si e sorri. — Tem sorte, sabia disso?
— Por ter você?
— Também. — Ela se aproxima, deixando que nossas mãos se
entrelacem. — Estou me referindo ao camarim. Na maioria das
competições, normalmente, todas as pessoas se trocam uma do
lado da outra. Teve sorte que a Arena Palmer é grande para todos.
— Eu venho tendo muita sorte na vida, Nikkis. — Dou um passo
à frente e olho para sua boca. — Completamente.
— Quer me dizer algo?
— Que pode ser que a sorte tenha me trazido você. Quem
sabe? — Tento beijá-la, mas sei que isso iria borrar o pouco de
gloss que tem nos meus lábios. Então, desisto da aproximação nada
suave. — Preciso de sorte hoje. Toda que eu tenho. Mais do que
nunca.
— Sei que dará tudo certo. — Nicola sorri. Daquele jeito
maravilhoso que sabe fazer. — De qualquer forma, se não der.
Podemos fugir com a Betty.
É a minha vez de sorrir.
— Sim. Podemos.
— Já sabe o que irá querer depois de vencer?
— Muito hambúrguer com batata frita.
Nicola beija minha testa e me abraça, a pedraria que Colly
pregou à mão em minha mão reage quanto ao suéter dela.
— Você entra daqui cinco minutos. — Nicola me avisa antes de
sair. — Acredito fielmente em você, Aster.
Seguro meus dedos.
— Acredito fielmente em você, Nicola.

Assisti algumas apresentações de patinação no gelo no


YouTube. Pode parecer patético enquanto como um pote de
sorvete, mas me ajudou para saber exatamente o que fazer e o que
deixar de fazer. Antes de entrar na pista, conferi se os cadarços dos
patins estavam firmemente presos — estavam. Me encaminhei para
toda a arena lotada da cidade e me dei conta que nunca, jamais,
poderia dar para trás naquele momento.
Não se parecia nada com as competições infantis.
Cheguei à uma dada idade que as pessoas podem me comer
viva facilmente se assim desejarem. Uma idade que posso ser
crucificada caso pise em falso, uma idade de merda, por assim
dizer. Todos os olhos da plateia me encontraram rapidamente
quando cheguei ao limite das arquibancadas. Viram quando saí da
linha de proteção e patinei até Harvey, onde nos encontramos no
centro da pista. Todos viram eu aplaudir a dupla anterior e me viram
sorrir a Harvey quando suas mãos tocaram as minhas com
delicadeza.
Ele sussurrou “Tudo dará certo” e sorriu.
Senti um pingo de inveja de sua autoconfiança. Fiquei me
perguntando porque ela não poderia ser a minha. Visto que me
encontro exatamente tal qual à uma pessoa que irá implodir
facilmente se tropeçar ou até mesmo cuspir. Imagina se eu solto um
pouco de saliva? E os jurados assistem?
Meu Deus.
Meu estômago reage. É como se me avisasse que “tudo pode
dar errado quando se tem em mente que dará errado.”
Os focos de luzes podem me deixar cega, mas não sei se estou
exagerando ou não. Então, sem antes me decidir, enfim escondo
meu pavor e meu medo abaixo de toda a camada de gelo que está
minha coragem. Aqueles metros e metros de gelo que podem
facilmente esconder um sentimento que não deveria estar lá. É
nesse momento que sorrio confiantemente para Harvey Bird e
seguro sua mão. É nesse momento que os jurados não podem mais
me alcançar ou me meter em um balde de receio e distração.
Já lidei com jurados antes, com menos idade do que
atualmente. Posso lidar com meia dúzia deles novamente.
A última vez.
A única antes de me afastar e me aposentar totalmente da
patinação. Não é como nos filmes, que consigo encontrar Nicola
Wolf ao meio da multidão ansiosa que espera uma nota da música e
da melodia clássica começar apenas porque quero encontrá-la. Por
mais que não exista a remota possibilidade de tentar procurá-la, sei
que ela está me vendo — e torcendo por mim.
Arrumo meus ombros e fico à frente de Harvey — não muito,
assim como aprendi. Respiro com uma contagem mental e espero.
Espero pacientemente a primeira nota começar. Ela entra no meu
ouvido como se pedisse licença, bastante neutra e suave. Sinto os
dedos de Harvey tocarem minha mão e estamos flutuando pelo
gelo. Caminhando bem perto de tudo o que ensaiamos e
construímos nas semanas passadas.
Sinto que meus pés sabem o que fazer, embora meu cérebro
esteja com a sensação que irei errar em algum momento. É
libertador como posso fazer uma careta sem ao menos perceber
que a fiz. Estou confiante e deslizo pelo espaço, com ajuda de
Harvey que segue meus movimentos perfeitamente, como espelhos,
como iguais que se ajudam o tempo todo. Que sabem o que estão
fazendo e como estão fazendo.
Ele se apresenta com graça e ternura e sinto de onde estou
que, aquele pode ser um adeus de Harvey. Sua última dança até se
afastar totalmente, em uma vida que precisou escolher o que fazer
do que seguir em frente, dançando desde criança. Sinto em Harvey
sua dor e sua paixão pelo gelo. Como ele, de fato, não se afasta
com a possibilidade de perder, de cair ou de sentir medo. Porque
Harvey sabe quem ele é e para onde ele quer ir.
Como eu.
Eu sempre soube para onde queria ir.
Sempre.
Jamais deixei de ter um plano.
Paro de pensar e sorrio, pisco a ele e deixo extremamente claro
que estou pronta. Pronta para tentar o passo. Pronta para acertá-lo.
O throw jump não iria me fazer recuar. Não mais. Acertei o
passo em algumas vezes, em outras, caí como uma fruta madura
direto do pé. Mas não poderia evitá-lo para sempre. Não quando o
momento finalmente chegou.
Harvey patinou para longe, por segundos, em seguida colocou
sua mão em minha cintura. Firmemente, me deixando confiante que
A) ele iria me soltar, mas não iria cair e que B) eu estava pronta.
Agradeci mentalmente a Colly, que fez a minha roupa em um
modelo nem tão aberto e nem tão espalhafatoso entre dourado e
preto e continuei a sentir os dedos de Harvey no meu quadril.
Deslizamos para trás e flexionamos os joelhos ao mesmo
tempo. A plateia reprimiu um suspiro, como se fosse arriscado
demais continuar de onde estávamos. Harvey apertou os dedos ao
meu redor e me sustentou no ar. No mesmo instante que me
arremessou para longe. Girei duas, três, quatro vezes antes de
tentar pousar.
Com a perna erguida, senti meu joelho vacilar, mas me
sustentar com graça e precisão — e um pouco de tremor — no gelo
da pista, em que pude continuar a patinar para trás, com as mãos
erguidas para frente e sentindo os aplausos me banharem.
Então...
Eu consegui.

Quando você supera um medo nos filmes, parece que os


jurados sentem que você é alguém especial. Eles sentem que você
pode decodificar tudo e que se trata de uma pessoa uma em um
milhão. Então, você simplesmente ganha porque enfrentou os seus
medos e eles não poderiam ser monstros que a colocariam em um
lugar abaixo do primeiro lugar. Certo? Certo, se estamos falando
sobre filmes.
Mas na vida real existe um ranking, e nesse ranking...
Você fica em segundo lugar, com seu novo amigo que,
finalmente pode se livrar de uma dívida que não merecia. Pode até
parecer surreal que não ficamos com o primeiro lugar. Mas, pela
maneira que Harvey sorriu e Nicola comemorou, aquele segundo
lugar valia mais do que qualquer primeiro.

— À Aster! — As pessoas gritam.


— Não, pessoal! — nego, segurando uma generosa caneca de
cerveja com espuma até o topo. — Ao Harvey!
— Nada disso. — Harvey Bird nega. — A nós dois, que tal?
— Minha dupla favorita. — Nicola pisca.
Estamos em uma lanchonete em Salt. Eu fiz uma promessa
que, quando ganhasse ou passasse o Salt-In, eu iria encher a cara
de cerveja, batata frita e hamburger. Ok. A parte da cerveja eu estou
adicionando agora. Mas quem se importa?
Enquanto todos ainda comemoram juntos à mesa grande em
que reuni todos eles, saio da mesa, com a desculpa de que vou
pegar mais cerveja. Embora ainda esteja com a caneca cheia, quero
mais.
Encostada no balcão, sinto uma mão em meu ombro. Quando
me viro, Harvey Bird está sorrindo para mim.
— Não tive tempo de te agradecer. — Harvey diz.
— Não? — Sorrio. — Estamos comemorando, Har. Não precisa
agradecer por isso.
Harvey sorri novamente, ele olha por cima dos ombros a mesa
com nossos amigos e depois para mim.
— Quero agradecer por estar fazendo bem a Nicola. — Ele
finalmente diz. — Ela é como uma irmã para mim e saber que ela
está sorrindo de todos os dentes possíveis, torna meu coração
quente. Não me importo com dinheiro. Me importo com ela. E agora
me importo com você, Aster.
Seguro sua mão.
— Eu também me importo com você, Harvey.
26

— ESSA MERDA QUEIMA PRA CACETE! — Aster reclama,


enquanto espreme seus olhos fortemente.
Seus dedos tentam chegar ao rosto, mas, contudo, ela se
lembra que não pode tocar em uma máscara de argila cor-de-rosa,
não quando estamos tentando fazer uma sessão de beleza dentro
de seu quarto. Aster está completamente furiosa com o poder da
minha persuasão, já que ela detestou a ideia de passarmos alguns
momentos decorando nossos rostos com argila.
— Isso queima, Nikkis! — Aster brada, inconformada. — Esse
negócio queima, como consegue ficar rindo?
Olho para a embalagem do produto ao meu lado. É branca e
um pouco redonda, de tampa roxo-claro. Parece inofensiva do meu
ponto de vista.
— Está exagerando, Aster — rebato calmamente, enquanto
Aster continua a abanar o rosto desesperadamente. — Aqui, na
embalagem, diz que é apenas refrescante! — Leio perto dela. Aster
me afasta com a mão, continuando com sua leva de palavrões
sobre o momento. — Pode até queimar, mas depois passa.
— Duvido muito. — Aster resmunga. — Se eu ficar com o meu
rosto todo queimado por sua causa, você vai ver só!
— Terei que lavar a Betty por duas semanas, prometo! — Ergo
as palmas da minha mão, sendo completamente eficaz naquilo que
estou prometendo.
Aster Campbell se derrete um pouco, enrugando os lábios
como quem engole todas as outras frases e palavras para apenas
ficar em silêncio e concordar. Quem vê uma Aster que prefere
engolir o que fala, do que a Aster Campbell de antes, poderia até
mesmo falar que é o poder do amor.
Talvez realmente seja.
— Vou buscar mais pipoca — anuncio, me erguendo de sua
cama. Estou usando uma faixa de orelhas de gatinho, para afastar
os fios do meu cabelo contra a argila cor-de-rosa do meu rosto. Já
Aster está com sua bandana amarrada, para bloquear seus próprios
fios. — Vê se não tira isso antes do tempo. — Aponto ceticamente
em sua direção, por mais que eu consiga ler em seus pensamentos
que ela está detestando tudo.
— Vamos ver. — Aster escolhe responder.
Me abaixo um pouco para encontrá-la, sentada em posição de
yoga ao pé da cama. Forço meus lábios em um bico e trocamos um
selinho rapidamente ágil. Pego as duas tigelas de pipocas vazias e
saio de seu quarto. A casa ao lado está silenciosa, a minha casa por
assim dizer. No momento, ela parece apenas uma visão fantasma
daquilo que estou deixando para trás.
Primeiro, porque Barr está com os amigos, na casa do melhor
amigo, o Luc. Pediu que Nancy e eu deixássemos que ele se
despedisse de Salt em grande estilo; com uma partida de hóquei e
um momento com seus melhores amigos de infância até o
momento. Como posso culpá-lo?
Desço as escadas com cuidado, me infiltrando no primeiro
andar tenebrosamente escuro da casa das Campbell. Já passa das
duas horas da manhã e ainda estamos acordadas. De qualquer
forma, queremos passar todo o nosso tempo juntas e dormir, até
parece um ato maldoso visto que não temos tanto tempo assim.
Na cozinha, acendo a luz com cuidado, caminho até os
armários e deixo as tigelas vazias em cima do balcão. Passo a
procurar por pipocas de micro-ondas, mas não encontro nenhum
pacote.
— As luzes apagam, e os ratos fazem a festa. — Uma grossa
voz aveludada diz atrás de mim. Meu coração acelera
desesperadamente dentro do peito, pelo susto. Regina Campbell me
encara do batente com um sorriso de lado, bastante acolhedor. Ela
está dentro de um robe de cetim vermelho e o cabelo branco preso
em um coque desfiado. — Desculpe, minha querida. Não queria te
assustar!
— Tudo bem, sra. Campbell. Acho mesmo que fiz muito
barulho.
— Ah, não. Que isso... — Regina Campbell desliza para dentro
da cozinha, caminhando em direção à geladeira. Ela abre a
geladeira de duas portas e seleciona uma jarra de água gelada. —
Servida?
— Não, obrigada.
— Quando se é velha, se tem sede o tempo todo. — A sra.
Campbell reclama, pegando um copo do lava-louças. Abro um
sorriso. — Aliás, eu é quem deveria ter levado um susto. O que
diabo é isso no seu rosto?
— Ah! — Abro ainda mais o meu sorriso. — Máscara facial.
Ajuda com cravos e oleosidade.
— Rosa?
— Tem de diversos tons — informo. — Mas peguei o que mais
poderia irritar a Aster. Então foi rosa.
Regina me lança uma risada rouca pelo cigarro que tanto fuma,
piscando os olhos.
— Essa foi boa. — Ela aponta na minha direção. — Realmente,
Aster e rosa não andam lado a lado. Bem pensado, Nicola. Bem
pensado!
Coloco minhas mãos para trás, sorrindo em sua direção.
— Quer um cigarro? — A sra. Campbell me oferece, tateando
os bolsos do robe chique de cetim à procura de seu fiel maço. Nego
com a cabeça. — Desculpe, meu bem, mas o que você quer?
— Pipoca. Não estou encontrando.
— Vocês duas comeram todo o estoque, sinto muito. — Regina
acende seu cigarro com o isqueiro que retira do decote da camisola,
por baixo do robe. — Você pode levar algumas cenouras
congeladas.
— Também. — Caminho, com extrema intimidade, até a
geladeira.
Estou usando a pulseira que Barr fez para mim no Natal, além
de estar vestindo a camiseta favorita de Aster das Tormentas; sua
camiseta oficial do time, com o número dez cravado nas costas e na
lateral, além do sobrenome CAMPBELL estampar o tecido da nuca.
— Como está se sentindo sabendo que irá sair de Salt?
A voz da sra. Campbell carrega uma nítida preocupação que
me aquece por dentro.
A bolsa na United Yesterday está mais concreta do que tudo; é
minha e ninguém poderia me tirar.
— Eufórica — assumo. — Achei que estaria com medo, mas só
me sinto sem ar. É normal?
— Com certeza, minha criança. — A sra. Campbell ri,
nostálgica. — Quando fiz meu primeiro filme, só faltava surtar e sair
correndo por de trás das câmeras. Mas tudo deu certo. Porque eu
tive coragem.
— Espero que eu tenha.
— Ah, você tem! — A sra. Campbell afirma rapidamente. Me
viro na sua direção. — Sabe, Nicola, quando Aster me disse que
estava apaixonada por você, eu fiquei incuravelmente feliz com a
notícia. Eu vi a garotinha que peguei para criar ainda nova, com um
semblante astuto de uma mulher que sabia o que queria da vida. E
ela quis você. E você a quis de volta. Jamais saberei agradecer
você, por estar amando a minha menina da mesma forma que ela te
ama. Sei que isso não pode fazer sentido, mas Aster é tudo o que
eu tenho. E se alguém não a ama, sinto como se fosse comigo. — A
sra. Campbell traga para longe. — Não que eu vá levar ao pé da
letra se um dia brigarem, mas depois de anos, depois de anos
finalmente a criando para o mundo, é maravilhoso descobrir que ela
não está sozinha. E nem você, minha cara.
— Jamais deixarei Aster sozinha, sra. Campbell.
Ela sorri, sentando-se em uma cadeira.
— Não estou falando da faculdade nova. — Ela acrescenta. —
E sim, da vida. A distância pode fortalecer uma relação. Acredite em
mim, mas... — Ela me encara. — Quando amamos alguém e essa
pessoa está feliz, uma parte de nós se acende. Como uma chama
poderosa. Uma faísca que jamais se apagará.
— É o que eu sinto com o Barr — admito. — Ele embarcará
para Londres daqui dois dias.
— E ele será feliz. — A avó de Aster responde com sabedoria.
— Barr é um ótimo garoto. É claro que morrerei de saudade da
gentileza dele. Até mesmo de cuidar dele durante as tardes. Ele é
um bom garoto, Nicola. Um ótimo garoto, que se tornará um adulto
excelente. Educado, cético e gentil. Precisamos de mais Barr’s
Wolf’s nesse mundo.
— Também preciso agradecer a você, sra. Campbell — digo,
honesta. — Aster é uma ótima pessoa, você jamais deixou de dar
alento a ela.
— Porque sempre enxerguei a capacidade gritante que havia
em minha neta. — Ela sorri na minha direção. — E preciso dizer,
Nicola Wolf, que sempre gostei de você. — Regina pisca. — Mesmo
tirando alguns prêmios da Aster quando competiam nos concursos
de beleza. Alguns eram marmelada pura!
Dou uma risada alta, me pregando totalmente desprevenida
pelo momento. A sra. Campbell me acompanha na risada alta,
deixando que todos os fantasmas do passado fiquem exatamente
onde devem ficar.
Longe.
27

VOVÓ ENTRELAÇA SEU BRAÇO entre o meu, enquanto


caminhamos na direção da casa dos Wolf’s. É uma casa que será
vendida em breve, dividindo o valor entre os filhos do ex-casal
Justus e Celia. Ainda não há notícias concretas sobre onde os dois
estão vivendo – separadamente – mas os filhos parecem aceitar.
Barr está com uma mochila vermelha nas costas, carregando
uma caixa de brinquedos velhos para um caminhão de porte médio
que Beau Jonns, o marido de Nancy, contratou para levar tudo o
que Barr precisava de Salt para Londres.
— Vou estudar em uma escola modelo! — Barr me disse. —
Não sei muito o que isso significa, mas a princesa da Inglaterra
estuda lá. Junto com o príncipe. Deve ser boa, não é?
— Deve ser careta, pirralho. — Toco seus cabelos entre meus
dedos. Barr sorri na minha direção. — Se eu for te visitar e você se
tornar um Lorde, já sabe, não é? Nunca mais iremos jogar hóquei
juntos!
Barr sorri abertamente, sabendo que é mentira.
Nicola está conversando com Nancy, enquanto as duas
arrumam as bagagens do carro no porta-malas avantajado do carro
de Beau.
— Não fale assim dele, Aster. — Vovó pede. — Barr se tornará
um rapaz responsável e um cavalheiro divino. Não é mesmo?
— Espero que sim. — Barr responde meio confuso, meio
confiante.
Dou um sorriso a ele, me desvencilho da minha avó e abro
meus braços para o pirralho poder se encaixar em mim. É como me
despedir de um irmão mais novo, alguém amplamente importante
para mim, que sempre será defendido por mim, não importa qual
seja a circunstância.
— Eu te adoro, Barr Wolf. Você será incrível em Londres e em
qualquer lugar. Sabe disso, não sabe?
— Sei, Aster. — Ele sorri. — Você continua sendo a garota mais
legal do mundo. Nicola, a corajosa.
— Aceito esse fardo. — O aperto ainda mais, fazendo o rir,
estremecendo perto de mim. — Não se esqueça de mandar e-mails,
mensagens e qualquer coisa. Londres é longe, mas não é
impossível de chegar.
— Sei disso! — Barr sorri, dando um passo para trás. Ele passa
seus olhos pela minha avó e a também abraça. — Obrigado por
tudo, sra. Campbell.
Vovó assume que Barr é seu menino especial e de ouro e, que
se possível, sempre o visitará. Barr afirma que irá visitar vovó
sempre que possível e que espera que ele ligue constantemente.
— Prometo! — Barr garante, abrindo um sorriso bondoso.
Ele espera alguns momentos, antes de correr na direção de
Nicola a abraçá-la ternamente. As mãos pequenas de Barr
encostam nas costas da irmã. É nesse abraço que ele solta todos os
sentimentos puros e devastados que sentiu por meses. É um
agradecimento também.
Um agradecimento por Nicola ser a melhor irmã do mundo.
Posso até ser a garota mais legal, mas Nicola é quem tem
superpoderes.
28

ASTER TINHA RAZÃO quando disse que andar de bicicleta na


Escócia é libertador.
Passei quase todo o meu semestre indo à faculdade de
bicicleta do que de carro. Não por ser a Escócia, mas andar de
bicicleta em si, já é um ato bastante divertido e conectivo. Quando
me instalei em Aberdeen, achei que iria voltar para casa no justo
momento em que cheguei ao meu alojamento. Mas foi só
conhecendo as pessoas da minha turma e meus colegas de
universidade, que meus pensamentos se tornaram apenas meros
medos bobos e inseguros que eu não iria levar para frente.
Em outra cidade e em outro país, eu fui ao teatro, assisti a um
bailarino famoso escocês na primeira fileira. Observei quando a
apresentação acabou como ele se enlaçou na mulher que ama, e
me senti sozinha. Mas, enquanto andava de volta para o
alojamento, percebi que precisava estar sozinha na Escócia antes
de qualquer coisa.
Falei pelo telefone com Barr, com Nancy, com Harvey e com
Aster quase todos os dias. Até mesmo com Gwen.
Gostei de saber que ela e Harvey mantiveram uma amizade
fortificada pelo tempo. Adorei saber que Gwen não passou mais
todos os seus dias, perto da loja de discos ou indo às fogueiras —
que continuaram com a mesma melancolia de sempre. Fez os meus
dias saber que Harvey Bird decidiu que iria se tornar treinador de
crianças que tinham um sonho abstrato de seguir carreira na
patinação artística. Obviamente, até ele poder juntar dinheiro e
seguir o mundo, exatamente o que eu estou fazendo nesse
maravilhoso e instigante momento que parece que nunca, nunca
mesmo irá acabar.
Fiquei em vídeos chamadas longas, que duravam horas com
Aster, e colocava o papo em dia pela manhã com um Harvey
completamente decidido a finalizar seu curso em Salt. Um melhor
amigo livre de dívidas, que pode sorrir e bater no peito que venceu o
Salt-In. Bem, de qualquer forma, ficar em segundo lugar é mais do
que posso descrever em palavras e gestos. Talvez um pouco de
choro possa ser uma boa escapatória para o que eu quero falar.
As medalhas decoraram meu alojamento por inteiro enquanto
vivia em Aberdeen e eu só conseguia sentir orgulho de onde estava.
A pessoa que não saberia dizer, se perguntassem, onde ela estaria
daqui a cinco anos. Olha, eu ainda não sei responder a essa
pergunta, tomara que ainda viajando e não tendo nada fixo para
resolver.
As pessoas que conheci, os empregos que passei, as lições e
as culturas que aspirei não fazem meu corpo decidir parar. A garota
que um dia disse que somente pararia em uma cidade, porque iria
se adaptar, descobriu que se adaptou aos lugares que passou. Que
adorou os bares de Berlim, que aproveitou a noite em São Paulo,
que passou o Ano Novo em Nova York ou fez compras durante uma
tarde toda em Lisboa.
Eu sou essa garota, e não poderia estar melhor de acordo
comigo mesma.
Claro que nem todo o mar contém flores.
Meu relacionamento com Aster sobreviveu, embora tenha sido
difícil no começo. Mas sobreviveu, esse é o importante.
A garota que não queria viajar, passa semestres em cidades
diferentes. A garota que ainda vai desbravar o mundo, precisa
terminar seu curso de enfermagem em Londres primeiro. Escolha
totalmente de Aster, somente dela. Ainda não é a hora dela, e ela
entende.
Passo por uma ruazinha com a minha bicicleta.
Hoje é um dia importante em Sarlat.
Estou na França, numa cidade que, bem, se chama Sarlat. É no
interior. Onde há castelos e chateaus, por toda a parte entre colinas
de vinhedos e campos livres de grama e árvores. Graças ao último
semestre da bolsa, decidi que iria fazer o curso em um lugar que
sempre ouvi falar, então... escolhi a França.
Passo por algumas pessoas que não querem andar mais do
que a lentidão. Estou chegando na estação de trem, mas só consigo
sentir meu coração pulsar que nem idiota. A pulseira que Barr me
deu de Natal aos doze anos ainda está em meu pulso. Mas, ao
invés de estar escrito Nicola, está escrito Aster. Trocamos na última
vez que nos vimos.
Passo entre as pessoas, pedindo perdão em sua língua pela
minha pressa.
Saio da minha bicicleta à porta da estação e a empurro pelos
guidões. Olho para todos os lados, com a esperança de encontrar a
dona de cabelos esvoaçantes e pele macia. Não encontro nada
parecido com a explosão de cores que Aster Campbell é.
Nada parecido, mas continuo a vagar pela estação, empurrando
a única bicicleta que irá nos ajudar a chegar na minha pequena casa
em uma colina estreita.
Me aproximo de um banco de madeira, onde uma garota está
ouvindo música em um fone de ouvido. Por algum tique em si
mesma, ela gira a cabeça por cima dos ombros. Sua mala está
apoiada acima de uma de rodinhas, ela sorri ao me ver e sinto que
eu, minha boca e meu coração estamos alinhados totalmente.
Ela entre abre a sua e diz, como se não nos víssemos apenas
há horas:
— Hey, Nikkis.
29
Cara Nicola,
Sou eu, Barr.
Quero te agradecer pelo cartão postal que me enviou de
Monza. Como está a Itália? Ela é tão boa quantas as pessoas fazem
parecer no cinema?
A Nancy deixou que eu saísse com alguns amigos no meu
aniversário de quinze anos. Beau disse que até mesmo viu um
pouco de bigode no meu rosto, mas acho que ele estava apenas
brincando comigo. Eu estou escrevendo porque Nancy disse que
pode ser legal, já que você envia tantos presentes e postais, acho
que é a minha vez de enviar algo, não acha?
Espero que fique em Monza até receber o que estou lhe
enviando.
Nós recebemos a foto da formatura da Aster em Enfermagem.
Ela está radiante! Não consegui comparecer à festa porque tinha
bastante dever de casa, e a escola em que estou é mais rígida do
que qualquer outra coisa. Mas fico feliz que Aster passou por mais
essa fase e que pode se gabar que agora ela é enfermeira.
A Aster me disse que você perdeu as pulseiras de miçangas
que eu te dei, quando foi dar um mergulho em Cancún. Ela me disse
que você passou a noite toda chorando, então, respire e tenha
calma. Não irei te detestar apenas porque perdeu a pulseira que eu
te dei quando tinha só doze anos. Eu posso fazer outra. A sra.
Campbell me ensinou de uma maneira muito melhor e mais técnica
do que a outra vez que eu fiz, então... fique tranquila.
Eu não tenho novidade a não ser contar que uma garota da
minha escola me chamou para o baile da primavera. Ela só me
chamou porque não quer se sentir desconfortável, e eu sou a única
pessoa que a deixa um pouco “feliz e confortável”. Coloquei aspas
porque é ela quem disse, não eu.
Irei apenas por causa dela. Quero que tenha uma festa
decente, por mais que o primeiro ano do ensino médio seja bastante
idiota. Bem, ainda me lembro do meu primeiro dia, você estava aqui
em Londres, deixando que a cidade fosse sua por um tempo.
Gostou?
Eu gosto de viver aqui.
Não tenho outras novidades do papai e da mamãe. Ele me ligou
no final de semana passado, só quis saber se eu estava bem ou
não. A mamãe disse que vai morar com um cara, mas não é nada
certo. Bom, pelo último e-mail dela, foi o que pareceu.
Estou escrevendo essa carta porque quero te enviar pulseiras
novas e te falar que, independente, de como chegamos até aqui, eu
em Londres e você no mundo, eu não te odeio, Nicola.
Jamais conseguirei te odiar.
Fique em paz.
Pois eu estou.
Com amor,
Barr Wolf.
AGRADECIMENTOS
Quero agradecer à Isis Casemiro, por todo o apoio que ela me
deu nos últimos meses. Ela revisou esse livro nessa loucura do livro
físico e aceitou participar de outras loucuras envolvendo outros
livros. Ísis, jamais saberei te agradecer à altura! Minha amizade com
ela é de anos, mas só esse que pudemos ter a chance de nos
conhecermos verdadeiramente — ainda há um caminho longo e
divertido para conhecer tudo na Isis, mas é algo que adoraria fazer
ainda em 2020.
Quero agradecer às garotas do Grupo Leituras, pela ajuda na
construção da Aster e da Nicola, como essas duas ganharam forma
no meu coração e na minha mente — especialmente agradecer a
Barb que ficou mais ansiosa do que eu nesse projeto, então ela
merece essa ressalva aqui.
Quero agradecer a Mary Abade pela capa e pela arte dos
marcadores. Eu não sabia que precisava de tudo tão perfeito, até
você decidir desenhar, você é show!
Quero agradecer a Fernanda Schmit que fez alguns sprints
comigo nessa obra, que foram COMPLETAMENTE uteis para eu
seguir em frente e termina-la!
Quero agradecer à Julia Lima, que fez a arte do miolo da Aster e
da Nicola. Amo o fato da Aster ser uma personificação da Rue, de
Euphoria.
Agradecer à Binha Cibelle, que me deu o gás necessário e
BASTANTE conselhos sobre a venda do livro físico. Com certeza
esse livro tem um pedacinho seu!
Quero agradecer a todas as pessoas que enchi o saco no
Twitter, no Grupo Englantine’s House e a todas as pessoas que
estão vibrando verdadeiramente comigo com o amor dessas duas.
Quero agradecer ao meu noivo, que nem sabia da existência
dessa obra, só vai descobrir agora, porque ele sempre se perde —
são muitas. Mesmo lento e bobinho, eu te amo!
E a você, que leu tudo e até mesmo os agradecimentos da
autora.
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