Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Todos os direitos reservados. Este ebook ou qualquer parte dele não pode ser
reproduzido ou usado de forma alguma sem autorização expressa, por escrito, da
autora, exceto pelo uso de citações breves em uma resenha do ebook.
Antes que você prossiga na leitura, saiba que as protagonistas têm vinte e poucos anos, ainda
estão adquirindo maturidade, o que significa que elas tomam decisões bem questionáveis ao
longo da obra.
Para fins informativos, Hilionopóles é uma cidade fictícia localizada no sudeste brasileiro.
Além disso, Pausa para Respirar também possui os seguintes gatilhos: depressão, ideação
suicída, menção a suicídio, menção a dependência química, codependência, uso de drogas
lícitas e ilícitas, homofobia, psicofobia, violência física, palavras de baixo calão e sexo
explícito. Assim, a leitura é recomendada para maiores de 18 anos de idade.
Epígrafe
Dedicatória
Prólogo
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Agradecimentos
Sobre a autora
Eu poderia ser um namorado melhor que ele
Eu poderia fazer as merdas que ele nunca fez
E além de tudo, eu não vou desistir
Estou pensando em como vou te roubar dele
Eu poderia ser um cavalheiro
E além do mais, todas as minhas roupas caberiam em você
Boyfriend – Dove Cameron
Para todos aqueles que acreditam que não são amados: em algum lugar alguém ama você.
Eu sei que
Pássaros voam em direções diferentes
Eu espero te ver novamente
Birds – Imagine Dragons
Preferia evaporar daquele quarto na clínica psiquiátrica ao invés de ficar de frente com
Thaissa, a atual namorada do seu ex. Se ela queria visitá-la, por que não veio sozinha? Precisava
trazer uma amiga para ver o seu estado deplorável? Lia mal desembaraçou o cabelo.
— Por favor, Lia — Thaissa suplicou, se aproximando alguns centímetros enquanto a amiga
dela acompanhava seus passos. — Sei que não tivemos um bom relacionamento uma com a
outra, mas eu preciso saber o que Mateus está fazendo.
Mateus foi o motivo que levou Lia a ficar internada naquela clínica há dois meses. O
estrago emocional foi grande o suficiente para ser mandada para a reabilitação por causa de um
amor não correspondido. Amor esse que foi tudo na vida dela. Ao menos, ela achou isso até sua
pele ser cortada pela lâmina afiada.
Cansada de ser questionada um milhão de vezes naquela semana, Lia contou que Mateus a
visitou algumas vezes desde que foi internada na clínica. E esperando nunca mais ver a cara do
ex, aproveitou para mandar o recado:
Thaissa cruzou os braços e Lia permaneceu sentada na cama, o silêncio tomando conta do
ambiente. Logo, desviou o olhar para a amiga dela. Os olhos verdes e cristalinos da garota foram
parar no seu rosto.
— Você gosta de ler? — a amiga perguntou, a voz doce ecoando pelo quarto enquanto ela
se aproximava de Lia, pegando um exemplar de A Redoma de Vidro da Sylvia Plath, largado
sobre o colchão.
Lia foi obrigada a concordar. A protagonista da obra também tinha uma existência infeliz,
por isso, a identificação com a personagem foi instantânea.
— Sim, é mesmo.
Lia não entendeu por que a amiga da Thaissa estava tentando puxar assunto, mas mesmo
assim, respondeu por educação:
Ela apenas fez que sim com a cabeça, observando o cabelo loiro e sedoso da garota, tão
diferente do seu, que estava seco, sem brilho e com pontas duplas. Seus longos fios pretos foram
bonitos um dia, mas para se adaptarem ao seu mau humor, pareciam mais um ninho do que
qualquer outra coisa.
— Que tipo de livro você mais gosta? — a amiga perguntou, fazendo Lia voltar o olhar
para ela.
E então, a porta foi aberta e a enfermeira entrou, trazendo as medicações de Lia. Enquanto
ingeria os comprimidos que a ajudavam a inibir seus sintomas depressivos, sentiu os olhos da
garota na sua cara. Por que ela a olhava tanto?
— Sofia — ela respondeu, abrindo um sorriso capaz de iluminar todo o quarto. — Bom...
vou indo. Melhoras pra você.
Depois que as duas garotas saíram, Lia se aninhou para o meio da cama e enfiou a mão
debaixo do travesseiro, procurando seu diário, um simples artigo de papelaria que se tornou uma
das formas de expressar seus momentos bons e ruins. Ela estava prestes a registrar a intensidade
dos olhos verdes e calorosos de Sofia nas páginas pautadas, mas o susto se fez presente quando
se deparou com nada mais que o macio do lençol sobre o colchão.
Lia olhou ao redor do quarto, na esperança de ter esquecido o caderno sobre algum móvel,
mas não o encontrou. Logo, constatou que o diário foi roubado durante a visita de Thaissa e
Sofia.
Filhas da puta!
Mesmo debilitada, as pessoas insistiam em fazê-la de idiota, como se ela fosse nada. Era
tão má para merecer tudo isso? Humilhação, rejeição, solidão. Era demais para suportar.
Sofia Veronese era um belo e grande erro. Ao menos era isso o que Patrícia achava toda
vez que tocava implicitamente no assunto de sua sexualidade.
— Eu só quis dizer pra você sair da sua zona de conforto. Conhecer alguns rapazes... Você
é muito sozinha e além disso, todas as suas amigas estão namorando. Algumas estão quase
casadas. Você está ficando pra trás e não vê isso.
Quem sua mãe achava que era? Só por que pariu a garota, se achava no direito de saber o
que era melhor para ela?
— Mãe… — Ela fez uma pausa, tentando não dizer o que não devia. — Eu sou lésbica. —
E ergueu os olhos verdes transbordando de decepção para a mulher à sua frente. — Não me
atraio por homens. É tão difícil entender isso?!
Patrícia engoliu em seco. De fato, era muito difícil de entender. Sofia sempre foi a sua
princesinha — toda feminina e delicada —, ela nunca imaginou que a garota seria lésbica até se
assumir para ela aos quinze anos de idade. Foi um choque. Como mãe solteira, queria que Sofia
se casasse com um homem e tivesse filhos, agraciada pelo que ela não teve durante a criação da
filha: um marido presente que se importava com a família. Sofia nunca conheceu o pai, e aos
olhos de sua mãe, a garota lidou muito bem com a falta da figura paterna já que também teve
apoio dos avós. Mas teria isso contribuído com a atração dela por mulheres? Teria sido uma
péssima mãe e estava pagando por seus erros?
— Sofi... — sua mãe finalmente disse. — Você é uma garota tão linda. Não quero que
você fique sozinha. Eu percebo como isso te incomoda. Por que você não faz um teste? — A
mulher sorriu. — Tem um rapaz na minha agência que faria um belo par com você.
O estômago de Sofia se embrulhou e ela sentiu náuseas. Às vezes, sua mãe calada era uma
verdadeira poeta, mas é claro que ela não disse isso. Apesar de ficar chateada com Patrícia, não
queria magoá-la. Ela podia aguentar esse desaforo. Era o preço a se pagar por ter nascido em
uma sociedade heteronormativa. Podia ter sido muito pior.
Ignorando as sugestões de sua mãe, Sofia levantou-se do sofá e abaixou os olhos no rosto
bem tratado de Patrícia, o skin care em dia destacando a viçosidade de sua pele clara na
iluminação da sala de estar.
— Prefiro não continuar com essa conversa, mãe. Vou no shopping me distrair um pouco.
Quem sabe eu não encontre a deusa dos meus sonhos por lá? — A garota forçou um sorriso
condescendente, mas assim que deu as costas para o rosto desconcertado da mãe, a expressão
decepcionada retornou, desfazendo o sorriso.
Depois de se enfiar em uma saia jeans que tampava metade das suas coxas, a garota entrou
em seu HB20 branco e saiu pelas estradas abarrotadas de veículos em Hilionópoles.
Uma vez no shopping mais próximo, não hesitou em entrar em uma loja de departamento.
Se tinha uma coisa que Sofia amava fazer para esquecer os momentos decepcionantes de sua
vida era compras. Talvez ela fosse uma consumidora compulsiva, mas comprar várias peças de
roupa, maquiagens e acessórios, lhe acalmavam. Ela tinha a sensação de que seu mundo voltaria
a ser normal, sem muitas complicações. No fim do dia, restava apenas a satisfação em ver seu
armário recheado de peças novas até uma situação chata, tal qual as imposições de sua mãe, a
colocar para baixo de novo.
A voz meio familiar ecoou até os ouvidos de Sofia antes dela se virar para ver quem
tropeçou nela. O cabelo escorrido e preto da outra garota, agora cortado na altura dos ombros,
caiu para frente quando ela abaixou para pegar a peça jogada no pé de Sofia.
— Lia?
A outra garota levantou o rosto, a expressão curiosa ao ouvir seu nome sendo pronunciado
pelos lábios da loira.
— Eu... — Ela ficou de pé, envolvendo a blusa preta nos braços. — Você me conhece?
E então Sofia lembrou que Thaissa lhe contou que Lia perdeu a memória após ter sofrido
um acidente de carro meses atrás.
— Claro! — Sorriu. — Sou a Sofia. Você não deve lembrar de mim, mas a gente se
conheceu quando você estava internada na clínica.
— Ah... — Lia assentiu, reconhecendo o nome. — Mas eu não lembro mesmo de você.
Desculpa...
— Sim.
Sofia assentiu e Lia desviou os olhos escuros para a peça nos seus braços.
— É claro que não. — Sofia tirou a presilha do cabelo, colocando-a de volta no suporte. —
Eu nem estava fazendo nada mesmo.
Foi a vez de Lia assentir. Sofia se aproximou um pouco e logo percebeu que ela devia se
esforçar mais para proporcionar um momento amigável entre as duas, já que Lia parecia retraída
e fechada.
— Então... — Abaixou o rosto para a blusa nos braços de Lia. — Você vai levar?
A outra garota olhou para a peça que segurava.
— Não sei. Preciso experimentar primeiro. — Ela fez uma pausa, virando o rosto para
Sofia. — Você… me acompanha até o provador?
— Claro.
As duas seguiram até o espaço estreito nos fundos da loja e enquanto Lia se enfiava em
uma cabine, fechando a porta em seguida, Sofia analisou seu reflexo no espelho de corpo inteiro
no final do corredor. Passou os dedos pelas mechas onduladas, ajeitando-as e observou seu look
um tanto básico. A saia jeans combinava com o top branco, que ornava perfeitamente com o Air
Force imaculado. Parecia que a garota tinha saído de uma das fotos do Pinterest.
Quando uma das portas da cabine foi aberta e Lia apareceu vestindo a blusa preta
marcando sua cintura com a ajuda da calça jeans, Sofia a encarou quase impossibilitada de
desviar o olhar. Lia era muito bonita, isso não podia negar, e preto lhe caia superbem, lhe dando
um ar mais sofisticado.
— Eu não acho, tenho certeza. — Ela se aproximou. — Eu levaria sem pensar duas vezes.
— Não me leve a mal, mas você parece ser o tipo de garota que compraria a loja inteira
sem pensar duas vezes.
Sofia riu.
— Você não está errada. Tem certeza que não lembra mesmo de mim, Lia?
— Vou levar.
E assim que Lia entrou de volta no provador e pagou por sua compra no caixa da loja,
olhou para Sofia e perguntou:
— Ótimo!
E caminharam juntas até a grande livraria no primeiro piso do shopping. Sofia não era uma
leitora assídua, mas lia pelo menos dois livros por mês, o que considerava um bom número em
comparação a pessoas não leitoras. Ela observou Lia folheando as páginas de uma obra da
Colleen Hoover. A outra garota parecia muito interessada no livro e, de alguma forma, isso fez
Sofia a admirar. Quantos livros ela deve ter lido naquele ano? Sofia chutou que o total de obras
lidas estava próximo de cem.
— Hm... Então você está falando com a pessoa certa. — Lia sorriu, exibindo os dentes
brilhantes e alinhados. Sofia concluiu que ela deveria sorrir mais vezes. Essa simples expressão
iluminava o seu rosto. — O que você gosta de ler?
— Esses são os melhores. É a minha primeira escolha quando preciso espairecer... o que é
quase sempre...
Sofia assentiu.
— Ah... Tem vários... Os que eu mais gostei são: Todo Dia, A Voz do Arqueiro… — Ela
fez uma pausa, pensativa. — Crepúsculo... Não Conte o Nosso Segredo...
— É um pouco deprimente mesmo. Infelizmente existem pais que não se importam nem
um pouco com os filhos... — Lia continuou pensativa e, sem aviso prévio, Sofia cortou a
pequena distância entre as duas e tirou o livro das suas mãos.
— Confesse... — Sofia leu o título na capa. — Esse parece ser bem clichê, do jeito que eu
gosto.
— Não. — Ela virou o rosto, balançando as mechas onduladas com o movimento. — Você
vai ler primeiro e depois eu dou uma chance a ele. — Um sorriso sacana esticou seus lábios. —
O que acha?
Lia riu.
Depois que Sofia pagou pelo livro, ela o entregou nas mãos de Lia novamente.
Sofia não conseguiu segurar o sorriso. Lia parecia bem mais descontraída, diferente de
quando elas se encontraram na loja há uma hora.
— Ah, sim. Lembrei de algumas coisas… Quando terminei com o Mateus, comecei a ter
algumas lembranças da Thaissa.
— É, sim. — Lia abriu um sorriso engessado. — Pelo menos isso, né? — Ela logo baixou
os olhos para o seu sorvete.
Sofia notou que Lia parecia meio desconfortável, mas mesmo assim resolveu perguntar:
— Você ainda gosta dele? — E quando Lia a encarou confusa, ela foi mais específica: —
Do Mateus?
— Ah... — A outra garota recostou-se na cadeira, pensativa. — Não. Pelo menos não
como namorado. Lembro dos momentos bons que passamos juntos, mas fico só com o
sentimento de nostalgia… Ele também não gosta mais de mim, então...
Sofia assentiu.
A garota sentiu vontade de mudar de assunto, mas não queria parecer incomodada perto de
Lia.
— Estou falando sério. — Foi a vez de Sofia recostar-se na cadeira. — Eu sempre ganho
um pé na bunda por ser grudenta demais.
Sofia riu dessa vez. Foda-se. Já que estava ali na frente de Lia, ia contar algumas merdas
da sua vida. Ela precisava desabafar um pouco.
Sofia sorriu com a revolta repentina de Lia. Fazia dois anos que isso tinha acontecido e
apesar dela não ter superado totalmente o motivo do término, conseguia lidar bem com isso ao
focar nela mesma.
— Talvez tenha... — Voltou a atenção para o seu sorvete, mexendo a massa derretida. —
Todas as meninas que fiquei depois disso se afastaram de mim. Acho que eu estava sufocando
elas...
— Talvez essas meninas não eram pra você. Não acho que seja culpa sua.
— Você diz isso porque ainda não me conhece, Lia. Quando estou apaixonada, eu me doo
100% pra pessoa e isso é meu maior defeito porque eu sempre acabo machucada no final.
— Sinto muito que você tenha passado por isso — Lia disse, sincera.
— Eu quase nunca saio de casa depois de tudo o que aconteceu, então... isso é quase
impossível.
— Se você quiser, a gente pode ir em algumas festas. Vou em uma quase toda semana. —
E riu ao lembrar de seus melhores momentos nas festas universitárias. — Garanto que você não
vai se arrepender.
— É claro que eu quero! Não aguento mais ficar mofando no meu quarto.
— Então dê adeus a sua antiga vida porque graças a Deus você me encontrou. — Ela tirou
o celular do bolso da saia. — Me passa o seu número.
Depois que elas conversaram mais um pouco, entrando em assuntos triviais do dia a dia,
chegou a hora das duas irem embora. Sofia, que cursava o último semestre de Publicidade e
Propaganda na Universidade de São Hobbes, precisava se arrumar para ir a aula à noite.
Antes das duas saírem do shopping, Sofia fez questão de oferecer uma carona a Lia, que
aceitou sem que ela precisasse insistir. Assim que parou o carro em frente a casa de dois andares
com um jardim florido se destacando na entrada, Lia tirou o cinto de segurança e agradeceu:
— Muito obrigada.
— Por nada. — Sofia sorriu, atenta a cada movimento da outra garota. — Espero que você
tenha gostado da minha companhia. — Ela se inclinou, se despedindo com um beijo na
bochecha, o perfume cítrico invadindo suas narinas.
Lia apenas sorriu com a atitude da garota, os olhos escuros presos nos dela antes de abrir a
porta do carro e pisar na calçada.
Sofia a observou entrando na casa, apreciando o cheiro do perfume dela que ainda pairava
no interior do veículo. Assim que Lia sumiu de vista, Sofia deu partida, ansiosa para mandar uma
mensagem a ela nos próximos dias.
Todas essas pessoas e todos os seus amigos
Parecem tão bem juntos e eu não me encaixo
Porque eles são perfeitos e eu estou no fim
Me corto da foto, então eles podem fingir
Como se eu não existisse
—... Grave o recado após o sin... — Lia desligou a chamada antes mesmo de ouvir o bip.
Era a terceira vez naquele dia que ela ligava para o seu pai e nada dele atender ou retornar suas
chamadas e mensagens.
Lia estava cansada disso. Era exaustivo correr atrás dos seus pais e ser tratada como se não
existisse. Ela deixou o celular sobre a cama e saiu do seu quarto.
Assim que encontrou Leandro trabalhando no notebook, sentado todo largado sobre o sofá
da sala, perguntou:
— O pai te respondeu?
— Não.
Lia suspirou. Por que ela ainda insistia? Seu pai não estava nem aí para eles. Ele só se
importava com a mãe deles, que, pasmem, também tinha esquecido que seus filhos existiam por
causa do seu vício em drogas.
Sentou ao lado do irmão e cruzou os braços. Custava seu pai ligar para perguntar como ela
estava? Ou para atualizá-la sobre o estado deplorável de sua mãe? Sim, é claro que custava. A
codependência não permitia.
— Não sei por que você ainda se importa tanto. — Leandro olhou para ela dessa vez, os
olhos escuros contrastando com a pele branca. — Eles já esqueceram da gente. Está na hora de
você esquecer eles também.
— Eu... — Lia abaixou os olhos para o piso de madeira escura e brilhante. — Eu ainda
tenho esperança de que pode ser diferente...
— Pois não vai. Sempre foi só nós dois. Não vai ser agora que tudo vai mudar. Eles nem
se importaram quando você sofreu o acidente, Lia. Aceita de uma vez.
A garota engoliu o bolo que se formou na garganta com as palavras duras e realistas do
irmão. Ele estava certo. Seus pais morreram para ele há muito tempo e estava na hora deles
morrerem para ela também. Ela só não estava pronta para enfrentar o luto por eles. Não queria
enterrá-los, mesmo que simbolicamente.
— Supera, irmãzinha. — Leandro aproximou-se e afagou suas costas com o braço bom
enquanto mantinha o braço engessado apoiado na tipoia. Mateus quebrou o seu braço após ele
tirar satisfação sobre o término com Lia. — Eu estou aqui. Você não precisa deles.
Lia assentiu. Ela amava o irmão, mas ainda assim, a presença dele não era suficiente. Ela
se sentia sozinha e precisava do amor do pai e da mãe, mas sua família não era como a famosa
família Doriana. Pelo menos não mais. Até chegou perto disso até os seus seis anos de idade,
mas tudo desandou quando sua mãe se viciou nos calmantes e posteriormente em drogas mais
pesadas.
Deixou o irmão para trás e subiu as escadas até o seu quarto. Uma vez sentada na cama,
seu olhar parou sobre o livro Confesse ainda intocado na mesinha de cabeceira. Logo ao lado
dele estava o seu diário.
Lia esticou o braço e pegou o diário, abrindo-o. Sua atenção passou pelas páginas cheias
de palavras sobre os acontecimentos da sua vida sem graça e logo parou em um registro que
provocou um frio na sua barriga.
Assim que Thaissa saiu às pressas do quarto na clínica psiquiátrica, Leandro abriu a
porta e foi atrás dela.
Uma vez sozinha no cômodo, Lia olhou para o diário nas suas mãos. Depois de muitas
ameaças por parte do seu irmão, Thaissa lhe entregou o caderno pessoalmente, amedrontada
como o Coragem, o Cão Covarde.
Foi engraçado assistir a reação da namorada perfeita do Mateus diante das intimidações
de Leandro, mas a pergunta que não queria calar era: por que Sofia não veio? Lia até se
arrumou, penteando o cabelo preto, deixando-o mais alinhado, e colocando um moletom decente
da Universidade de Hilionópoles que Leandro lhe deu.
Ela queria ver aqueles olhos verdes cristalinos de novo. Eles não saíram da sua cabeça
por uma semana inteira, e ela ainda podia enxergá-los nitidamente através de sua memória.
Os olhos de Sofia eram os mais intensos, calorosos e lindos que já havia visto.
E sem perder tempo, anotou tudo isso antes que esses adjetivos fugissem da sua mente.
Lia piscou após ler a breve anotação que fez há mais de um ano. O rosto sorridente de
Sofia e a expressão desconfiada de Thaissa naquele fatídico dia retornaram à sua mente, tão
claros quanto a água.
A vergonha tomou conta dela com o que escreveu na página do diário. Ela foi tão
emocionada. Mas pelo menos isso a ajudou a recordar uma parte do seu passado.
Agora lembrava que ficou internada na clínica psiquiátrica depois de... tentar tirar sua
própria vida. Sofia e Thaissa foram visitá-la para saber de Mateus. Sofia foi tão simpática com
ela naquele dia.
Lia deixou o diário de lado e pegou o celular. Assim que achou o nome de Sofia nos
contatos, digitou:
Lia: Oi. Eu lembrei do dia que a gente se conheceu. Acho que vc vai gostar de saber
E enviou a mensagem sem pensar duas vezes, a ansiedade por uma resposta a consumindo
aos poucos.
Lia leu a mensagem e não soube o que digitar de volta. Sua vida social era tão limitada que
ela nem sabia socializar mais. Por que ela tinha que ser problemática?
Preparada para se arrepender pelo que acabou de fazer, se aninhou para o meio da cama e
estava prestes a esquecer o celular na mesinha de cabeceira quando ele vibrou com uma nova
notificação.
Algumas horas se passaram quando uma buzina soou do lado de fora. Lia se levantou do
sofá e ajeitou a saia preta de verniz antes de passar pela porta da sala, trancando-a em seguida.
Seu irmão havia saído, mas ele tinha as chaves. Quando ela pisou os coturnos tratorados na
calçada, Sofia saiu do seu carro enfiada em um vestido branco de cetim e se aproximou dela.
— Boa noite. — Ela abriu um sorriso caloroso e quando tocou os lábios macios e cheios
de gloss na bochecha de Lia em um cumprimento, a garota constatou que Sofia era uma pessoa
muito calorosa. — Você está linda.
Um ventinho surgiu na barriga de Lia e ela não pôde evitar de abrir um sorriso bobo
enquanto suas bochechas esquentavam.
— Obrigada.
Sofia lhe deu as costas, seguindo até o carro. Lia não conseguiu tirar os olhos do grande
decote nas costas da outra garota e só saiu do breve transe quando ela abriu a porta do carona e
disse:
— Entra aí porque eu estou prestes a te levar pra uma das melhores festas da cidade.
Lia fez o que ela disse, sendo dominada pela empolgação. Fazia tempo que não se sentia
assim, viva, já que ficar para baixo era uma constante em sua insignificante existência.
— Acredita que ainda não comecei? Mas pretendo ler essa semana.
— Pode deixar. — E uma ideia passou pela sua cabeça. — Aliás... que tal a gente começar
a ler juntas?
Sofia desviou a atenção para Lia, que estava começando a se arrepender da sugestão
quando a outra garota respondeu:
— Claro! Por que eu não pensei nisso antes? — E riu. — A gente começa essa semana
então.
Minutos depois, Sofia estacionou em frente a uma casa de estrutura moderna, a fachada
linear e envidraçada mostrando que havia muitas pessoas na festa. Lia pisou na grama verde e
amparada, a música pop invadindo os seus ouvidos como o som de fogos de artifícios. Ela estava
tão desacostumada com sons nas alturas que seus tímpanos estavam prestes a sangrar.
Uma vez dentro da festa, Lia teve certeza que sairia de lá surda, mas conforme foi
seguindo Sofia pelas dependências da residência, foi se acostumando com a música alta.
Sofia lhe ofereceu um copo de cerveja e Lia bebeu um gole do líquido gelado e amargo
antes de esboçar um sorriso agradecido. Ela nem sabia que estava com sede.
Sofia encostou na mesa de bebidas e a observou enquanto levava o copo aos lábios. Lia
logo desviou os olhos da garota, temendo parecer uma estranha.
— Eu já te vi uma vez no shopping, sabia? — Sofia revelou. — Sem ser aquela vez que
você esbarrou em mim.
— Você estava com o seu irmão e eu estava com a Thaissa. Achei que não era um bom
momento.
Lia concordou com a cabeça. Definitivamente não era um bom momento para começar
uma conversa casual perto da Thaissa. Seria o início de uma guerra nuclear.
— Mas tudo tem um tempo certo pra acontecer — Sofia continuou. — Estamos aqui
agora, curtindo uma festa como boas amigas.
— Sofia! — Uma garota de cabelo rosa curto surgiu do lado das duas como um raio e se
jogou nos braços de Sofia, a abraçando. — Que bom que você veio!
— Pérola! — Sofia disse após o abraço e Lia estranhou o nome diferente. — Parabéns pela
festa.
— Está gostando?
— Claro. Eu até trouxe uma amiga. — Sofia apontou para Lia. — Pérola, essa é Lia. Lia,
Pérola, a anfitriã da festa.
— Oi! — A garota de cabelo rosa disse para Lia, exibindo todos os dentes em um grande
sorriso. — Uau! Eu amei o seu cabelo. A cor é natural?
— Ninguém sabe a cor natural do cabelo da Pérola. Reza a lenda que ela já nasceu com o
cabelo rosa.
Pérola gargalhou, o som da sua risada deixando a música em segundo plano. Lia levou a
mão à boca, tentando segurar o riso.
— Eu adoro o seu senso de humor, Sofia — a anfitriã comentou. — Mas eu quero saber o
que vocês ainda estão fazendo paradas aqui? Podem começar a dançar na minha festa.
Dito isso, ela começou a puxar Lia e Sofia pelo pulso, a cerveja quase derramando do copo
de Lia de tão rápido que elas estavam andando. Uma vez no meio da multidão, Pérola começou a
balançar no ritmo de "Let Me Love You" do Justin Bieber, as mechas curtas e rosas voando com
os movimentos.
Sofia também entrou no clima, se movendo na melodia da música com o copo de bebida
rente ao corpo, delicadeza coordenando os seus passos. Lia a observou quase hipnotizada. O
olhar de Sofia foi parar no seu rosto e ela se viu incapaz de desviar a atenção. Tudo nela a atraía
como um ímã.
Quando Sofia abriu a boca para cantar o refrão com Pérola, Lia caiu na real, lembrando
que estava no meio de uma festa.
— Don’t you give up, nah-nah-nah — as duas cantaram, embaladas pelo ritmo da música.
— I won’t give up, nah-nah-nah. Let me love you...
Lia tomou mais um gole da cerveja, apenas balançando sem sair do lugar, assistindo as
duas garotas à sua frente. Elas estavam tão animadas e pertenciam tanto à festa que Lia parecia
deslocada perto delas. Sua bateria social estava acabando. Na verdade, ela nunca ficou cheia.
Levou o copo aos lábios novamente e tomou um longo gole da bebida, esperando entrar na
mesma vibe das garotas, mas isso não aconteceu. Pelo menos não no curto período de tempo que
ela queria.
Sofia bebeu todo o conteúdo do seu copo em questão de segundos e antes que botasse as
íris verdes nela, Lia decidiu se afastar. Estava parecendo uma idiota parada ali enquanto todo
mundo se divertia. Ela não fazia parte daquela festa. Ela não conseguia se encaixar em nada. Ela
sempre tinha que ser um erro.
Lia caminhou para os fundos da casa e logo deparou-se com uma piscina sendo usada por
meia dúzia de pessoas. A música era ouvida em plano de fundo naquela área e ela soltou um
suspiro antes de levar a cerveja aos lábios pela milésima vez. Ridícula. Ela era ridícula. Por que
não podia se comportar como uma pessoa normal? Era tão diferente de Sofia. Enquanto Sofia
nasceu perfeita para o mundo, ela nasceu inadequada.
Lia encarou a piscina, a lua refletida na água azul. Algumas pessoas que nadavam jogavam
água uma na outra, rindo e se divertindo enquanto ela as observava com pesar. Nunca seria feliz
como elas. Sempre teria a melancolia como a sua melhor amiga.
Lia quase pulou de susto com a voz de Sofia perto do seu ouvido.
Sofia diminuiu a curta distância entre as duas e pousou a mão no meio das costas de Lia,
fazendo um arrepio percorrer seus braços e a região da lombar.
— Sei que sou uma chata, mas não quero estragar a sua noite, Sofia. Pode ir se divertir. Eu
tô bem.
— Do que você está falando, Lia? Eu quero me divertir com você. Foi pra isso que eu te
trouxe aqui.
A garota sentiu vontade de se jogar na piscina e de ser sugada para o fundo do planeta.
Sofia tapou seus lábios com o dedo indicador e o coração de Lia errou uma batida.
— Para de falar besteira. — Ela tirou os dedos dos lábios da garota. — Você vai dançar
comigo agora, e nada de se isolar. — E agarrou a mão de Lia, puxando-a para dentro da casa.
A música foi trocada por uma mais lenta e Sofia se virou para encarar Lia, fazendo ela
brecar seus passos.
— Então dança comigo. — Ela ergueu a mão livre de Lia, guiando cada movimento com
leveza pelo ar. Relutante, Lia começou a imitar seus gestos, seguindo a melodia. — Isso. Eu
gosto assim.
— Não sou mandona. — Sofia fingiu estar ofendida. — Sou persistente. É diferente.
— Sei...
— Você disse que queria se divertir e então nada mais justo do que proporcionar isso pra
você.
Lia assentiu, ainda imitando seus passos. Estava gostando daquilo. De observar Sofia de
perto enquanto as duas se balançavam no som lento e nostálgico. Ela já frequentou algumas
festas quando namorava com Mateus, mas, na maioria das vezes, isso era um pretexto para ela
beber além da conta e esquecer brevemente dos seus problemas. Por outro lado, com Sofia estava
sendo diferente porque ela levava mesmo a diversão ao pé da letra. Não era apenas uma desculpa
para fingir que seus problemas não existiam.
— Posso beber um pouco da sua bebida? — Sofia perguntou quando a música estava
prestes a acabar.
— Claro. — Lia ofereceu seu copo, mas hesitou no segundo seguinte. — Mas você não vai
voltar dirigindo?
— Vou, mas sorte a nossa que não fico bêbada com apenas uma cerveja.
— Obrigada pela preocupação. — Sofia sorriu e tirou o copo de sua mão, tomando um
longo gole e só então soltou a mão de Lia, o calor causado pelo toque se dissipando de sua pele
aos poucos.
Lia cruzou os braços e enquanto observava Sofia, Pérola — que já estava no auge da
embriaguez —, tropeçou atrás de Sofia e o baque dos corpos fez com que ela fosse impulsionada
para frente, amparando-se nos braços de Lia ao mesmo tempo que a cerveja voou contra o peito
dela, encharcando a blusa branca de alças finas.
— Meu Deus... — Pérola soltou atrás das duas ao ver o estrago que fez, mas logo desatou
a rir de forma descontrolada. — ... Desculpa... — ela disse entre risos. — ... Eu sou um desastre
quando bebo...
Lia tirou a atenção de Pérola e sentiu vontade de concordar ao ver sua blusa grudada na
pele, o líquido gelado escorrendo por seu tórax e barriga, lhe deixando arrepiada.
— Vem. — Sofia agarrou a mão de Lia e a puxou. — Vamos no banheiro limpar isso.
Lia deixou ser guiada até o banheiro e assim que as duas pararam de frente para a pia,
Sofia pegou um punhado de papel higiênico e começou a enxugar o líquido na pele da garota.
Lia prendeu a respiração conforme os dedos de Sofia pairavam acima de seus seios e se obrigou
a desviar o olhar para o espelho de frente para elas.
Seu rosto parecia tenso e ela finalmente soltou a respiração, voltando a encarar Sofia, que
já estava terminando a limpeza no seu tórax.
— Pronto. — As íris dilatadas prenderam a atenção de Lia mais uma vez. — A Pérola
podia te emprestar uma blusa.
— Tem certeza?
Lia assentiu.
— Está calor. — E então ela tomou coragem para dizer: — Vamos voltar a dançar?
Lia sorriu de volta e antes que uma palavra saísse de sua boca, Sofia pegou na sua mão e
as duas saíram do banheiro. Estava se acostumando a ficar de mãos dadas com Sofia. Esse
simples toque estava sendo tão rotineiro naquela noite que ela sentia falta quando a mão dela
ficava longe da sua. Talvez isso fosse só o efeito da bebida que a deixava mais carente do que o
normal.
Perto das duas da manhã, quando dançaram várias músicas até cansar seus corpos,
constataram que estava na hora de ir embora da festa. Sofia deixou Lia em frente à sua casa e
quando ela girou a chave na fechadura e entrou na sala, se deparou com a escuridão no cômodo.
Estava prestes a subir os degraus de madeira da escada quando a voz surgiu de algum lugar
da sala:
— Que susto! — Ela saiu de perto da escada e acendeu a luz. Seu irmão estava sentado no
sofá. Ele tinha dormido ali? — O que você está fazendo aí?
— O que você acha? — Ele se levantou. — Te esperando! Fala logo onde você estava.
— Você tinha saído. E para com essa preocupação idiota. Eu tenho 23 anos, não sou uma
adolescente.
— E daí? Se acontece mais um acidente com você?! Você tem que me avisar!
Lia quase soltou uma risada irônica. A superproteção de Leandro estava passando dos
limites.
— Para de ser neurótico! Você não é o meu pai pra ficar impondo regras idiotas.
— Mas pelo menos eu me importo com você. — Leandro se aproximou, o olhar cheio de
ira vidrado em Lia. — Diferente do pai que não está nem aí se você está bem ou não. Ele nunca
vai impor regras porque está cagando pra você.
Lia cruzou os braços, beliscando a pele enquanto apertava o maxilar. Imagens das
chamadas não atendidas pelo seu pai retornaram à sua mente. Ela ergueu o rosto, tentando
bloquear a ameaça de uma lágrima e girou nos calcanhares, dando as costas para o irmão.
Quando entrou no quarto, se jogou na cama e apertou o travesseiro entre seus dedos, a
lágrima descendo quente pelo seu rosto. Ela foi tão estúpida. Tão estúpida em acreditar, mesmo
que por poucas horas, que a felicidade lhe faria companhia. Estúpida ao esquecer das armadilhas
da vida: toda vez que ela se sentia feliz significava que o sofrimento estava à espreita, apenas
esperando o momento certo de lhe dar uma rasteira e a levar de volta para o fundo do poço.
Eu vivo meu dia como se fosse o último
Vivo meu dia como se não existisse
passado
Fazendo isso toda noite, todo verão
Fazendo do jeito que eu quero
Lush Life – Zara Larsson
Sofia pegou seu celular e ligou para Lia naquela tarde. Enquanto a ligação chamava,
observou seu reflexo no espelho do quarto. Ela estava experimentando algumas peças de roupa e
queria uma combinação mais casual.
— Eu estava pensando em dar uma passada na sua casa pra gente começar o livro. O que
você acha?
— Claro. Se eu chegar aí do mesmo jeito que saí da cama, você vai fechar a porta na
minha cara.
Lia riu mais uma vez e Sofia apreciou o som de sua gargalhada. Poderia escutar seu riso
um milhão de vezes sem cansar.
— Certo. Não demora. Estou ansiosa pra começar o livro.
— Não vou.
Minutos depois, quando Sofia tocou a campainha da casa dos Belmonte, Lia apareceu, e
no momento que a garota pisou na sala, a anfitriã disse:
Sofia seguiu Lia até o quarto bege decorado com prateleiras lotadas de livros. Seu olhar
vagou até a cama box onde Lia se sentou. A cama tinha espaço suficiente para caber duas
pessoas. Sofia sorriu e ergueu a sacola de papel que estava segurando.
Sofia tirou uma garrafa de vinho da sacola, a exibiu para Lia, alargou o sorriso e explicou:
— Você pegou o espírito da coisa. — Sofia sentou ao lado dela. — E aí? Vamos começar?
Ouviu alguns passos e se deparou com Lia segurando duas taças, a expressão curiosa.
— Eu não acho. — Ela diminuiu a distância entre as duas. — Parece muito interessante
pra mim. É aconchegante.
As duas foram para cima da cama e enquanto Sofia despejava um pouco de vinho nas
taças, Lia abria o livro Confesse nas primeiras páginas. Ela entregou uma taça à dona do quarto e
se aninhou perto dela, na cabeceira. Cruzou as pernas e, Lia, ao estender a obra na sua direção,
perguntou:
— Eu gostei do cheiro.
— Não é que eu não goste, só não curto quando o autor dá indícios de que a história vai
terminar bem, mas quando chega no final, os personagens acabam mortos. É uma grande
decepção.
— Te entendo. — Lia tomou um gole do seu vinho. — Eu até gosto de livros que me
fazem chorar igual um bebê. — Ela deu um meio sorriso, mas depois abaixou o olhar para sua
taça. — Aí lembro que não sou só eu que estou na merda, os personagens também estão. Me faz
perceber que não estou sozinha, mesmo que sejam histórias fictícias.
— O que aconteceu?
Lia balançou a cabeça, os olhos marejados. O coração de Sofia se apertou. A outra garota
parecia tranquila durante a sua chegada e agora estava quase chorando na sua frente. Seria tudo
culpa do vinho?
— Minha família não liga pra mim... Principalmente o meu pai. — Ela se afundou no
travesseiro. — Minha mãe é dependente química, então, eu não espero nada dela mesmo. Agora
o meu pai... — Soltou um suspiro pesado. — Enfim... É por isso que eu tenho uma vida de
merda. Sou esquecida até pelos meus pais.
— Eu sinto muito...
— Tudo bem. Algumas pessoas vieram ao mundo só pra sofrer mesmo.
Sofia tentou ignorar a sensação incômoda que se formou no seu peito e tomou um gole do
vinho, aquecendo a garganta. Isso não podia ficar assim.
— Lia — chamou a atenção dela e repetiu: — Você não está sozinha. Você pode contar
comigo.
Ela riu.
— Você não precisa fazer isso por mim. — E abraçou os joelhos. — Eu não quero
incomodar.
— Isso não é incômodo nenhum. — Sofia pegou a garrafa de vinho do chão, encheu a taça
até a boca e tomou um grande gole. Fez uma pausa, ainda saboreando o vinho que engoliu às
pressas. — Como posso te fazer feliz? Nem que seja um pouquinho.
— O quê?
— Isso mesmo que você ouviu. Quero ver um sorriso nesse rostinho.
— Vai, fala.
E Lia riu, mordeu o lábio inferior e disse, as bochechas assumindo uma tonalidade rosada:
O coração de Sofia errou uma batida e ela esboçou um sorriso bobo ao mesmo tempo que
seu ego inflado tornava-se maior do que ela mesma. Logo, botou a mão por cima da de Lia em
um gesto de afeição.
— Sempre que você se sentir sozinha, pode ligar pra mim. Eu posso vir aqui ou você pode
ir na minha casa. Você não vai incomodar nem um pouco.
— Tudo tem a sua primeira vez. — Ela sentou e tirou o celular do bolso de trás do short.
— Nossa, já são cinco horas. Eu preciso ir.
— Preciso me arrumar pra aula. — E fitou o rosto de Lia, uma sensação nostálgica caindo
sobre ela à medida que os olhos castanhos da outra garota pareciam expressar melancolia. — Eu
prometo que venho aqui mais vezes. Se você quiser, é claro.
— É lógico que eu quero. — O sorriso que tanto admirava surgiu mais uma vez. — Mal
posso esperar.
Sofia se despediu de Lia e saiu do seu quarto, deixando uma garrafa de vinho pela metade
como uma lembrança daquela tarde que passaram juntas.
Uma vez dentro do seu carro, ela mordeu o lábio inferior tentando não sorrir com a
imagem do sorriso de Lia na sua mente.
Você torna difícil não pensar demais
E quando estou com você, eu passo por todos
os tons de rosa
Eu quero tocar você, mas não quero ser
esquisita
É tanta adrenalina, estou pensando que quero
você aqui
Crush – Tessa Violet
Lia estava muito interessada no quarto de Sofia. Ele era maior que o seu e as paredes off-
white combinando com a decoração de tonalidade clara proporcionavam um ar acolhedor ao
ambiente. Um quarto lindo e confortável, assim como a dona.
— Fica à vontade — Sofia disse, passando por ela com alguns pacotes de doces e
salgadinhos nos braços.
Lia assentiu e seguiu Sofia com o olhar. Ela deixou as guloseimas sobre um puff branco de
aparência macia que cabia duas pessoas tranquilamente e virou-se, o cabelo loiro e ondulado
balançando com o movimento. Será que o cabelo dela era tão macio quanto o puff?
— Que tipo de música você gosta? — Sofia quis saber, lhe tirando de seus devaneios.
— Pop, então.
E em questão de um minuto, Sofia colocou uma playlist para tocar na sua caixinha de som.
Enquanto a voz da Ariana Grande ecoava pelo cômodo, Lia continuava explorando o ambiente.
Sofia a convidou até a sua casa para as duas usufruírem de uma tarde relaxante com direito a um
spa day e muita comida ultraprocessada. Meio controverso, mas Sofia podia ignorar a sua dieta
saudável por um dia.
A convidada aproximou-se da prateleira embutida e seu olhar caiu sobre uma edição de
luxo de Orgulho e Preconceito da Jane Austen, um meio sorriso acompanhando a sua minuciosa
observação. Logo ao lado estava Na Ponta dos Dedos de Sarah Waters, O Retrato de Dorian
Gray de Oscar Wilde e, na sequência, a série completa dos livros da Gossip Girl de Cecily Von
Ziegesar contrastando com as obras clássicas. Lia acreditava que a aquisição de um livro dizia
muito sobre uma pessoa e aquelas obras diziam que Sofia era uma garota romântica e
encantadora que tinha muito conhecimento sobre Literatura. Claro que ela ainda estava a
conhecendo, mas se fosse definir a garota em uma frase seria dessa forma.
— Você tem bom gosto. — E voltou a atenção para a estante. — E não acredito que você
tem toda a coleção de Gossip Girl.
— Sério?
Assentiu no mesmo momento que a música foi trocada por "I Kissed a Girl" da Katy Perry.
— Ele foi muito injustiçado, na minha opinião. Só queria se enturmar, mas era sempre o
excluído do grupo.
— Adivinha.
— Serena? — arriscou.
— Mas a Blair é uma vaca. Você é uma boa pessoa, não tem nada a ver com ela.
— Mas todo mundo tem um lado obscuro, por isso eu gosto da Blair. Toda vez que ela
abre a boca, sai uma frase icônica.
Antes de levar o doce macio à boca, o olhar de Lia foi atraído para uma mulher de meia-
idade que parou no batente da porta do quarto, os olhos curiosos caindo sobre ela.
— Sofi — a mulher disse, tirando a atenção de Lia. — Eu não sabia que tínhamos visita.
A mulher entrou no quarto e sorriu enquanto se aproximava. Ela era muito parecida com
Sofia. A única diferença era que o cabelo loiro era um tom mais escuro que o da filha. Lia ficou
de pé para cumprimentá-la.
— Prazer. — Lia esboçou um sorriso engessado. Quando ela precisava conhecer pessoas,
se comportava como uma verdadeira extraterrestre: toda dura e sem jeito.
— Então... — Patrícia olhou para Sofia, as íris verdes demonstrando muito interesse. — O
que vocês estão fazendo? Espero não estar atrapalhando...
— Quer um?
Patrícia olhou para o marshmallow na mão da filha como se ela estivesse segurando uma
barata esmagada.
— Não.
— Bom... Eu vou dar uma saída e caso você precise de mim, é só me ligar.
— Tá bom.
Patrícia saiu do quarto e Lia voltou a sentar ao lado de Sofia. Ela baixou os olhos nos
doces e salgadinhos entre elas e comentou:
— Acho que a sua mãe não gostou muito de ver você comendo essas coisas.
— Eu sei e não me importo. Ela precisa aproveitar mais a vida. Às vezes uma porção de
salada não vai te dar o prazer que você precisa.
— Filosófica.
Sofia riu.
— Sei que pareço uma adolescente de quinze anos falando assim, mas é verdade. Minha
mãe é muito certinha e quer que todo mundo seja como ela, inclusive eu. Sei que ela só quer o
meu bem como ela tanto cansa de repetir, mas ela tem que entender que sou diferente dela. Muito
diferente.
— Complicado...
— Sim.
— E o seu pai?
Lia foi pega de surpresa pela resposta, prestes a se desculpar, mas Sofia continuou:
— Na verdade, eu tenho, mas nunca o conheci.
— Pois é. A maioria das pessoas acha que tenho uma família tradicional e tudo mais, mas
não é bem assim.
— Não. Acho que não tem como sentir falta de alguém que você nunca conheceu.
— Faz sentido.
— Mas sinto falta dos meus avós. Eles foram o mais perto de um pai que eu tive. Meu avô
no caso. Eles nunca desampararam minha mãe e eu. Pena que moram em outra cidade...
— Sei muito bem como é isso... — Lia concordou, tão acostumada com a saudade que às
vezes a considerava como a sua melhor amiga.
— Mas chega de falar de tristeza. Eu te trouxe aqui pra gente relaxar e não pra ficar
remoendo pensamentos. — Ela se levantou do puff. — Vou remoer outra coisa agora.
Lia seguiu seus passos com o olhar até ela entrar no banheiro.
Poucos minutos depois, Sofia retornou com um cigarro de maconha entre os dedos. A
outra garota acomodou-se no mesmo lugar e os olhos de Lia brilharam quando ela acendeu o
baseado com um pequeno isqueiro, dando uma tragada, o aroma de cannabis preenchendo o
quarto. A convidada sorriu enquanto as pupilas dilatadas de Sofia se voltavam na sua direção.
Lia tirou o cigarro de seus dedos e o levou aos lábios, apreciando o fato de que a boca de
Sofia esteve no mesmo lugar que a dela. Após soprar a fumaça almiscarada, virou o rosto,
notando o olhar da outra garota grudado na sua feição.
— Nunca imaginei que uma pessoa pudesse ficar tão bonita fumando um baseado — Sofia
soltou, fazendo o coração de Lia pular dentro do peito.
— A maconha fez efeito tão rápido assim? — a questionou, lhe passando o cigarro.
Lia riu mais uma vez e recostou-se no puff, sentindo-se mais relaxada. Tinha a sensação de
que conhecia Sofia há anos e que as duas sempre foram muito próximas.
Sofia imitou o seu movimento e a fitou, os rostos das duas tão perto um do outro que Lia
estava ficando chapada só de inalar a fumaça da maconha. Enquanto uma música do Blackpink
tocava, Sofia lhe ofereceu o baseado mais uma vez e Lia o tragou sem recusa.
Quando terminaram de fumar, Sofia a arrastou para o banheiro todo revestido de granito
branco e pegou alguns produtos para cuidados faciais. Assim que ela lavou o rosto, aplicou uma
máscara de carvão no rosto e sorriu para Lia, que a observava com muito interesse através do
espelho.
Lia parou diante da pia e antes que pudesse molhar o rosto, Sofia colocou-se atrás dela e
começou a prender seu cabelo, as mechas negras escapando de seus dedos e caindo em cascata
enquanto ela se dissolvia por dentro com o simples toque.
Lia fitou o rosto de Sofia coberto pela máscara preta através do espelho. Será que a garota
podia parar com esses elogios que a deixavam sem palavras?
— Você acha que devo usar o cabelo preso mais vezes? — perguntou a primeira coisa que
lhe veio à cabeça.
— Acho.
Então, abaixou o rosto e jogou água fria na pele, os elogios de Sofia se impregnando bem
no fundo de sua memória. Seria muito difícil se esquecer deles dessa vez.
Após concluir essa etapa, Sofia aplicou a máscara no seu rosto e, mais uma vez, Lia
prendeu a respiração enquanto ela espalhava o produto por cada ângulo da sua face, a delicadeza
sempre presente em cada uma das suas ações. Lia molhou os lábios inferior com a língua e as íris
verdes e cristalinas de Sofia caíram na sua boca antes de ela falar:
— Essa máscara vai deixar a sua pele supermacia, você vai ver.
Lia concordou e se posicionou ao lado da garota, que tirou várias fotos diante do espelho.
— Ficaram ótimas — Sofia comentou, passando as fotos recém-tiradas na tela do
aparelho. — A gente tem que fazer isso mais vezes.
— Claro, é só me chamar.
Depois que terminaram as etapas de cuidados com a pele, Lia foi embora da casa de Sofia
levando algumas guloseimas de brinde e sentindo saudade da tarde agradável que tiveram. Será
que depois de tanto tempo estando sozinha e se sentindo excluída, a vida estava trabalhando ao
seu favor? Lia esperava muito que sim. Estava cansada de viver sempre no fundo do poço.
Cansada de se sentir sempre triste, insignificante e abandonada. Talvez Sofia fosse a luz na
escuridão que ela tanto desejou. O sol brilhante depois de uma tempestade.
Assim que se acomodou na sua cama, abriu o diário em uma página e começou a registrar
os melhores momentos que ela passou com Sofia naquele dia. Escrever pequenos trechos dos
seus dias estava se tornando um hábito novamente e agora que tinha uma companhia, essa
atividade estava se tornando cada vez mais prazerosa. Mal podia esperar para contar toda essa
novidade para o seu psicólogo. Ele ficaria orgulhoso em saber que estava tendo algum progresso.
Quando Lia dedicou várias linhas do seu diário para descrever cada trejeito, olhar e sorriso
de Sofia, um barulho surgiu no andar de baixo, seguido da voz grave de Leandro:
— Cheguei, Lia.
Ela deixou o caderno de lado, notando, através da janela do seu quarto, que o céu estava
com uma coloração lilás, os raios alaranjados cobertos por nuvens suaves e rosadas, denunciando
o pôr do sol. Sem pensar duas vezes, pegou sua câmera instantânea na escrivaninha, abriu o
vidro da janela e mirou a câmera na direção do céu. Precisava registrar aquela obra de arte
celestial.
O flash brilhou no ar livre e quando a foto começou a ser revelada, Leandro entrou no
quarto.
Lia virou todo o corpo na direção do irmão e observou o céu colorido tomando forma na
foto polaroid.
— Registrando momentos.
Leandro revirou os olhos. Desde que Lia ganhou a câmera analógica de presente de seu pai
anos atrás, ela vivia tirando fotos de coisas aleatórias, o que ele achava uma grande besteira, mas
se isso a ajudava a dar um sentido à vida, quem ele era para criticá-la? Em seguida, se aproximou
e estendeu um livro na direção dela.
— A sinopse é a sua cara. Além disso, você devora qualquer livro que vê pela frente,
então, espero que goste desse.
— Tá, sai pra lá. — Ele a afastou com o braço, segurando o sorriso. — Quem deixou todos
aqueles doces na cozinha?
— A amiga da Thaissa?
Lia assentiu.
— Por quê?
— Eu também achei que o Mateus era legal e olha só tudo o que ele fez com você. —
Apontou para ela.
Foi a vez de Lia revirar os olhos. Obviamente ele estava se referindo a vez que Mateus a
substituiu pela Thaissa, deixando toda a responsabilidade afetiva de lado e destroçando seu pobre
coração. Ainda bem que ela já tinha superado todo esse drama.
— A Sofi não é o Mateus. E você precisa parar de ser paranoico. Essa história já está
encerrada e eu preciso socializar também, não acha?!
— Sei disso, mas tem que ser logo com a turma do Mateus?!
— Não vejo mal nenhum nisso. Você também não gosta da Thaissa?
— Vou pedir uma pizza — Leandro continuou. — Vai ler o seu livro e para de falar
merda.
Ele saiu do quarto e ela se jogou na cama com o livro em mãos. Pegou a foto que tirou e a
admirou, uma sensação de nostalgia tomando conta do seu corpo. Logo, a imagem do rosto
sereno de Sofia invadiu a sua mente. Estava ansiosa para vê-la novamente e absorver cada
detalhe que compunha a garota, louca para reviver o efeito que aqueles olhos verdes cristalinos
causavam nela.
Eu poderia ser uma garota bonita
Eu usaria uma saia para você
Eu poderia ser uma garota bonita
Calaria a boca quando você quisesse
Eu poderia ser uma garota bonita
Nunca te deixaria triste
Eu poderia ser uma garota bonita
Eu me perderia em você
Pretty Girl – Clairo
Uma péssima amiga por se aproximar da ex do namorado da Thaissa sem lhe contar nada.
Se ela descobrir, seria o fim de uma grande amizade. Thaissa criou uma inimizade com Lia
depois do acidente, e ela nunca aprovaria a amizade das duas. Seria pedir demais, não seria?
Sofia deu uma pequena mordida no sanduíche, ainda perdida em pensamentos. Desde que
começou a ver Lia com certa frequência, a garota não saía de sua cabeça. Parecia um vício.
Quanto mais Sofia ficava perto dela, mais colada nela queria estar. Nunca era suficiente. Sempre
queria mais e mais. Lia era tão instigante. Tão… Lia.
— Por que você está tão quieta? — a voz de Carolina lhe tirou de seus devaneios. — Está
tudo bem?
Sofia piscou os cílios curvados de rímel, notando os olhos das suas amigas na sua direção.
— Aconteceu alguma coisa? — Thaissa quis saber, a preocupação invadindo seus olhos
cor de mel.
Sim, estou fazendo amizade com a garota que você odiou nos últimos meses e você nem
vai olhar na minha cara quando souber, ela pensou.
— Não aconteceu nada, podem ficar tranquilas. É só o final de semestre. Estou cheia de
atividades acumuladas — ela omitiu. Isso também tinha um fundo de verdade. — Não sei nem
por onde começar.
— Ai, nem me fale… — Carolina suspirou. — Estou só ignorando todas essas atividades
inúteis.
— Você só fala isso porque tem um namorado pra te ajudar e de quebra, ainda pode
transar com ele pra aliviar o estresse.
— São apenas verdades, Isa. Você e a Thaissa são duas privilegiadas. Como a Sofi e eu
estamos na seca, temos todo o direito de reclamar.
— Eu fiquei solteira por um bom tempo, então compartilho da mesma dor de vocês —
Thaissa disse.
— Mas não vale, agora você está com o Mateus — Carolina argumentou.
— Eu sei, mas eu sofri também. — Ela olhou para Sofia. — A Sofi sabe tudo o que passei.
E justamente por isso Sofia não queria acabar com o bom humor dela, contando sobre Lia.
Era melhor deixar tudo como estava. Assim, ninguém sairia chateada, e ela manteria a amizade
das duas bem forte.
Enquanto Sofia redigia sua atividade complementar no notebook, seus dedos trabalhando
agilmente sobre as teclas, o celular ao seu lado tocou com uma nova notificação. Ela deixou o
trabalho de lado e pegou o aparelho, sorrindo com um convite para uma festa enviado no grupo
"Festeiros Anônimos". Sem conter a empolgação, encaminhou o convite para Lia e voltou o
olhar para a tela do computador, mas sua mente estava mais preocupada em divagar sobre a
quantidade de tempo que Lia levaria para responder aquela mensagem.
Sofia respirou fundo e tentou se concentrar no que estava fazendo, a ansiedade contraindo
seus músculos e bagunçando a sua linha de raciocínio. Quando digitou um parágrafo na página
do Word, o celular tocou novamente.
Ela encarou a mensagem e se recostou na cadeira acolchoada. Lia estava a deixando mal
acostumada e confusa. Se continuasse assim, ia preferir passar mais tempo com ela, se
apaixonando pela garota. Se é que já não estava apaixonada.
Não.
Não podia se apaixonar por ela. Lia devia ser hétero e seria mais uma grande perda de
tempo. Sofia fez uma promessa a si mesma: não ia mais correr atrás de garotas héteros.
Não.
Iria ficar muito na cara de que estava interessada e Lia iria se afastar porque ela estava
precisando de uma amiga e não de uma boca para beijar. Por que era tão iludida?
Cansada de tantos pensamentos confusos, Sofia se levantou e foi até a cozinha. Depois de
beber um pouco de água gelada, jogou o cabelo ondulado para trás e fitou a tarde ensolarada
através da janela, tentando clarear seus pensamentos.
Logo riu da própria estupidez. Pelo visto, nunca ia deixar de ser emocionada. Ela nunca
teria um relacionamento amoroso com Lia porque: a) Provavelmente Lia era hétero; b) Lia só
queria uma amiga; e c) Caso nenhuma das opções anteriores forem verdadeiras, ela perderia a
amizade com a Thaissa.
Ou seja, estava viajando na maionese. Namorar com Lia só daria certo nos seus sonhos
mais insanos.
Certa de que seu cérebro estava convencido disso, ela voltou para o quarto e se forçou a
terminar a atividade complementar.
No fim de semana, Sofia foi recebida por Lia assim que chegou em frente a casa dela. A
outra garota estava vestindo a blusa preta que comprou quando as duas se encontraram no
shopping, e Sofia apreciou a forma como a peça valorizava o corpo dela com a ajuda da saia
preta. As peças juntas faziam Lia parecer uma verdadeira deusa.
Quando entraram no quarto de Lia, Sofia perguntou:
Sofia olhou para Lia dos pés à cabeça, gravando a imagem dela na sua mente. Até um saco
de lixo cairia bem nela.
Deu de ombros.
Lia revirou os olhos e sorriu. O sorriso que Sofia tanto admirava e que, agora ela tinha
certeza, a deixava fraca. Queria se sentir flutuando em nuvens toda vez que Lia esboçava aquele
sorriso.
— Claro.
Minutos depois, enquanto Sofia aplicava rímel nos cílios de Lia, notando suas pupilas
dilatadas, desceu o olhar nos lábios rosados dela e sua respiração começou a ficar pesada.
Ela sorriu com o elogio e se afastou, começando a tirar a roupa, o espelho da penteadeira
refletindo seu corpo seminu, a lingerie branca se destacando na pele clara. Virou-se de costas
para abrir o fecho do sutiã e a peça íntima deslizou para fora dos seios. Lia prendeu o olhar no
espelho, mas logo desviou a atenção para a paleta de sombras aberta e a pegou, mas a mão
escorregadia fez a maquiagem cair no chão e os farelos brilhantes da sombra destacaram-se no
piso de madeira escura.
Sofia virou o rosto para ver o que estava acontecendo ao mesmo tempo que descia a barra
do vestido vinho pelas coxas.
— Acho que é o que amigas fazem. — Ela olhou para Sofia desta vez, demorando o olhar
na sua roupa. O decote cavado do vestido exibia boa parte dos seios pequenos. — Não é?
Sofia assentiu.
— Como assim?
Sofia sentou na cama, calçando as botas da mesma cor do vestido, pronta para desabafar:
— Eu tive amigas que nunca me chamaram pra dormir na casa delas ou pra fazer o que a
gente está fazendo agora porque tinham medo de serem assediadas por mim.
Lia ficou boquiaberta, a expressão tão incrédula que até arregalou os olhos.
— Que otárias.
— Acho que elas tinham medo que eu desse em cima delas. — Soltou um riso debochado.
— Como se eu fosse me interessar por qualquer uma.
— Acho que elas tinham medo de gostar, caso você desse em cima delas.
Sofia riu.
— É, faz sentido.
— Elas podiam ser enrustidas. Entrariam em pânico se uma garota tão linda como você
chegasse nelas.
Encarou Lia, surpresa com o que ouviu. Se uma garota tão linda como você… Ela já tinha
recebido vários elogios iguais a esse antes, mas raramente seu coração reagiu tão disparado como
naquele momento. O que Lia estava fazendo com ela?
— Por que eu não pensei nisso antes? — Colocou a mão por cima da de Lia. — Obrigada
por me tranquilizar. A Sofia adolescente ia te agradecer por mostrar que ela não é um monstro.
E a partir daquela frase Sofia teve certeza: estava fodida. Lia moraria na sua cabeça por um
bom tempo, o que significava que ela sofreria igual uma condenada por gostar do terror das
sáficas: garota hétero.
— Você parece uma máquina — Lia comentou, o peito subindo e descendo por dançar
uma música inteira. — Eu queria ser animada como você.
Sofia gargalhou.
Lia abriu um meio sorriso e Sofia se deu conta de que podia observar cada ângulo do rosto
dela por vários minutos seguidos sem enjoar. O cabelo preto estava um pouco desgrenhado e
Sofia se conteve para não erguer a mão para ajeitá-lo, querendo sentir a textura macia nos seus
dedos.
Para tentar dissipar seus desejos, bebeu um longo gole do licor, o álcool lhe deixando mais
quente. Não demorou para querer fazer xixi.
— Claro.
Sofia se levantou e encontrou o banheiro no final do largo corredor. Uma vez dentro de um
dos menores cômodos do apartamento, fez o que precisava e se colocou na frente da pia, lavando
as mãos. Em seguida, se analisou no espelho. Parecia que tinha acabado de voltar da balada. As
ondas do seu cabelo estavam indefinidas e seu batom saiu há muito tempo.
Penteou as mechas com os dedos, ajeitando os fios loiros e tirou o pequeno gloss sabor
morango de dentro do decote, aplicando-o nos lábios, deixando-os avermelhados e brilhantes.
Um cara loiro estava sentado ao lado de Lia, conversando com ela com um sorriso torto.
Aquele sorriso que os homens dão quando querem pegar uma mulher.
Sofia suspirou e cruzou os braços. Era óbvio que isso ia acontecer. Elas estavam numa
festa. O lugar perfeito para beber, dançar, beijar, transar e, quem sabe, conseguir um namoro. A
imagem de Lia saindo de mãos dadas com o cara no sofá invadiu a sua mente e seu estômago
embrulhou.
Para de ser doida!, seu pensamento gritou.
Lia era hétero e só queria uma amiga. Nunca olharia para ela. Nunca. Por que seu cérebro
não entendia isso?
Sofia continuou olhando na direção do sofá, atenta a cada ação do rapaz. Quando ele
arreganhou os dentes mais uma vez e esticou o braço nos ombros de Lia, ela saiu do lugar, pegou
um copo de bebida na mesa e seguiu até o sofá.
— … Você me beijaria agora? — ouviu ele perguntar para Lia ao parar perto dos dois.
Credo, só se ela tiver muito mal gosto, o pensamento de Sofia respondeu antes que Lia
abrisse a boca.
— Nossa, eu já estava indo atrás de você — Lia disse, tirando o braço dele dos seus
ombros. — Por que demorou tanto?
Ela só podia estar fingindo porque Sofia nem demorou tanto assim. O rapaz ergueu o olhar
para Sofia e parou no seu decote, olhando-o por tempo demais. Um sorriso malicioso se abriu em
seu rosto e antes que ele falasse mais alguma coisa, Lia ficou de pé e essa foi a deixa perfeita
para Sofia erguer o copo, deixando-o escorregar de sua mão. Em questão de segundos, uma
explosão de líquido rosa molhou a camisa branca dele.
— Ai, meu Deus! — Sofia guinchou, segurando o riso ao dar alguns passos para trás. —
Como eu sou desastrada… Perdão...
— É melhor você ir no banheiro agora, senão essa mancha não vai sair.
Sofia respirou aliviada e olhou para Lia, que estava sorrindo com toda a situação.
— Você chegou na hora certa — disse. — Ele já estava começando a encher o saco.
— Homens…
Estava prestes a sentar no lado limpo do sofá, mas uma voz familiar chamou a sua atenção:
— Não acredito…
Sofia olhou para trás e seu coração quase parou. Parada atrás dela, equilibrando uma
bandeja com margaritas, a garota com o cabelo castanho-escuro moldado em um corte Chanel e
franjinha acima das sobrancelhas bem-feitas sorriu com o reconhecimento.
— Milena?
— Nem eu... — Sofia comentou, ainda descrente. — O que você está fazendo aqui?
— Estou trabalhando.
Milena riu.
A cabeça de Sofia deu um estalo e, de repente, ela queria desaparecer da festa de uma vez
por todas. Ela correu tanto atrás daquela garota e todo o seu esforço serviu apenas para ganhar
um pé na bunda.
— Espera. — Milena entrou na frente delas, abrindo um sorriso indulgente. — Não vai me
apresentar a sua namorada?
— Essa é a Lia. Ela é minha amiga, não minha namorada — respondeu, amarga.
— Ah, como eu ia saber? Você é tão carente, achei que nunca ia ficar sozinha. — Sofia a
fuzilou com o olhar, o rosto queimando de vergonha. — Oi. — A garota de franjinha estendeu a
mão. — Sou a Milena, a ex da Sofi.
Milena recolheu a mão, ajeitou a franja para disfarçar o momento desconcertante e grudou
os olhos castanhos em Sofia.
Sofia não esperou Milena terminar a frase, apenas deu as costas para ela e seguiu sem
rumo pelo cômodo, tentando esfriar a cabeça. Tanto lugar para trabalhar e Milena precisava
aparecer justo naquela festa?
Ela olhou para os edifícios se destacando em meio ao céu escuro e ergueu o rosto, tentando
afastar as lágrimas ardendo nos seus olhos. Não ia chorar por causa da ex-namorada. Não valia a
pena.
Milena era apenas uma escrota que gostava de tocar na ferida dos outros para se sentir
melhor. Era uma grande filha da puta.
Rosto bonito com sonhos muito ruins
Ninguém sabe que eu choro em meu
sono
Acordar se sentindo uma merda
É uma coisa normal se sentir assim
Summer Depression – girl in red
— Até parece. Ela é louca por mim. Tão louca que eu tive que dar um basta na nossa
relação.
— Quem você acha que é?! Mal me conhece e já vai falando assim?!
— Só falei o que você é. — Lia ficou mais ereta. Para a sua sorte, o salto do coturno a
deixava mais alta e Milena era 3 centímetros mais baixa que ela, o que permitia que ela a olhasse
de cima. — Pessoas como você não merecem respeito nenhum.
Milena ficou boquiaberta e antes que dissesse alguma coisa contra, Lia se afastou,
seguindo pelo mesmo caminho de Sofia, esbanjando confiança a cada passo. Se tinha uma coisa
que Lia gostava em si mesma era dizer verdades na cara de quem a tirava do sério. Pelo menos
para isso servia muito bem. Adorava incorporar o seu lado bitch no momento certo, pois isso
elevava a sua autoestima.
— Oi.
Lia sentiu um aperto repentino no peito. Sofia era tão alegre. Aquela expressão chorosa
não combinava nada com ela porque a garota era a própria definição de êxtase. Era a inspiração
de Lia para encarar a sua vida cinza e sem graça com prazer.
— Você está bem? — a questionou, mas logo se arrependeu pela pergunta idiota. Óbvio
que ela não estava bem. Não viu que Sofia estava quase chorando?
— Eu só não esperava que ela aparecesse bem aqui nessa festa. — E revelou: — Na
verdade, eu nem sabia que ela estava na cidade.
— Ela é. — Sofia fez uma pausa. — Não sei onde eu estava com a cabeça pra namorar
com ela.
— Ainda bem que vocês não estão mais juntas. — Lia pegou na mão de Sofia, apreciando
o calor de sua pele. — Porque ninguém merece.
Sofia abaixou o olhar para a mão das duas, mas logo subiu para o rosto de Lia.
— Desculpa pelo drama. Era pra gente estar se divertindo e eu estou me lamentando…
— Sofi, está tudo bem. Não precisa se desculpar.
Lia petrificou no lugar. Era bem fria com a maioria das pessoas, mas com Sofia sentia que
podia ser calorosa. E além disso, dificilmente diria não para a dona daqueles olhos verdes que
assumiram uma tonalidade mais vívida e brilhante.
— Claro. — E deixou Sofia a envolver com os braços finos e delicados, torcendo para que
ela não escutasse seu coração batendo forte.
Por um breve momento, sua atenção saiu da garota nos seus braços e parou na morena de
franjinha perto da entrada da sacada.
Milena olhava para as duas ainda com a bandeja de margaritas. Lia continuou acariciando
o cabelo de Sofia com uma mão e ergueu a outra, exibindo o dedo do meio na direção dela.
Milena a fulminou com o olhar, parecendo muito puta e Lia se divertiu com a sua reação.
Estava sendo louca por comprar briga com uma garota que nem conhecia? Provavelmente, mas
não estava nem aí. Sofia merecia ser vingada de alguma forma.
— Você não estragou nada. — Olhou na direção de Milena, mas ela não estava mais lá. —
A única culpada aqui é a tóxica da sua ex.
E então, meia hora mais tarde, Lia saiu do banheiro vestindo uma camiseta larga de Sofia e
sentou na cama king size, recostando-se na cabeceira estofada, sentindo a maciez abaixo dela.
Sofia virou todo o corpo na sua direção, o pijama de seda subindo alguns centímetros por suas
coxas definidas.
O olhar de Lia parou nas íris claras e ela tomou coragem para perguntar:
Sofia deitou a cabeça no travesseiro, entendendo que a garota estava se referindo à Milena.
— Muito. No começo ela era uma pessoa totalmente diferente: atenciosa, romântica. Mas
com o tempo, foi se cansando de mim até que chegou o dia que a gente não se via com tanta
frequência. Fiquei mais de um mês insistindo na nossa relação até ela me chutar de vez.
— Que escrota.
Lia apoiou o rosto no cotovelo, movendo a perna e fazendo seu joelho tocar sem querer na
pele de Sofia.
— Você só correu atrás da garota errada. — Se ouviu dizendo. — Ela que foi idiota com
você.
— O quê?
— Me fala mais de você. Eu só sei que você gosta muito de ler, mora com o seu irmão,
namorou com o Mateus e é só isso. — Esboçou um meio sorriso. — Quero saber mais sobre a
garota que vai dormir na minha cama.
— Ok, essa última frase ficou estranha — Sofia continuou, meio receosa.
— Tudo bem. — Lia parou de sorrir, se recompondo. — Eu não falo muito de mim
porque… não tenho muita coisa pra falar.
— Como não?
Lia engoliu em seco diante do olhar cheio de expectativa de Sofia. Não via nada de bom e
de instigante em si mesma. Era pura decepção, tristeza e desânimo e não queria contaminar o
jeito radiante de Sofia com as suas merdas.
— Tá. — Pensou no que dizer: — Como você pode perceber, não tenho amigos e…
— Errado — Sofia a cortou. — Agora você tem uma amiga. — Ela apontou para si
mesma.
— Certo. — Esboçou um meio sorriso. — Bom… agora tenho uma amiga. Gosto de
escrever no meu diário…
— Claro que é. Quantas pessoas você conhece que tem um diário? É muito raro.
— Mas você é.
Lia não conseguiu segurar o sorriso bobo que se abriu em seu rosto. Sofia nunca ia parar
de deixá-la sem jeito? Porque estava gostando muito disso.
— Ah… escrevo meus pensamentos, coisas que me marcaram muito. É quase uma terapia.
Sofia assentiu.
O sorriso de Sofia foi capaz de iluminar todo o quarto, mas Lia queria se esconder por ter
confessado aquilo. Que humilhação! Agora Sofia ia pensar que ela era uma louca obcecada. O
próprio desequilíbrio em pessoa.
Lia queria sumir. Por que foi falar logo do seu diário?
— Provavelmente não.
— E a gente é o quê? Quer mais intimidade do que isso? Saiba que eu não deixo qualquer
uma dormir na minha cama.
— Tudo bem, não vou insistir. — Ela se inclinou e deu um beijo rápido na bochecha de
Lia, queimando a sua pele com o toque. — Vou dormir. — E desligou o abajur ao lado da cama,
escurecendo o quarto. — Boa noite.
— Boa noite. — Lia cruzou os braços, enxergando a silhueta de Sofia na sua frente.
Será que ela ficou brava? Sofia encerrou o assunto tão rápido que Lia estava começando a
se arrepender de não ter dado permissão para ela ler seu diário. Será que estragou tudo de novo?
Afundou a cabeça no travesseiro, temendo que Sofia se afastasse dela de uma vez por
todas, a enxotando para fora de sua casa no dia seguinte. Como se não bastasse ser tão infeliz,
ainda acabava com qualquer possibilidade de aproximação de quem demonstrava o mínimo de
interesse nela.
Ela se levantou e foi no banheiro. Enquanto lavava o rosto, a imagem de Sofia brava com
ela invadiu a sua mente. Por que precisava estragar tudo?
Depois que terminou sua higiene matinal, saiu do banheiro e seguiu para fora do quarto.
Caminhou descalça pelo corredor, o piso frio dissipando o calor da sola dos seus pés e parou no
batente da porta da cozinha, o raio solar que entrava pela janela brilhando no aço inoxidável da
geladeira.
Lia abaixou o olhar na geleia que ela estava passando no pão e voltou a atenção para o seu
rosto.
Lia piscou com o que ouviu. Sofia estava a observando enquanto dormia?
Lia se aproximou e sentou na cadeira, notando uma variedade de frutas, torradas, pão, café
e leite na mesa redonda. Quando ergueu o rosto, Sofia continuava a encarando, esperando uma
resposta.
E Sofia desatou a rir, o som da sua risada ecoando pelo cômodo silencioso.
— Porque eu não queria ser uma chata insistente. — Ela esticou a mão, pegando na de Lia
e a acariciando com o polegar. — Eu não estou brava com você. — Garantiu com o olhar preso
ao dela. — Fica tranquila.
Lia assentiu, o alívio tomando conta dela ao mesmo tempo que a vergonha lhe fazia querer
evaporar dali. Era louca mesmo. Louca, louca, louca.
— Agora toma o seu café — Sofia continuou, o tom de voz maternal. — Essa geleia de
morango é uma delícia. — Ergueu a fatia do seu pão com geleia, deixando-o próximo da boca de
Lia. — Prova.
Lia inclinou o rosto e deu uma pequena mordida na fatia, o sabor de morango explodindo
na sua boca.
— Eu te falei. — Ela mordeu a mesma fatia e Lia notou que seus olhos estavam com uma
coloração verde-água devido a claridade na cozinha.
Pareciam o mar. Calmos e acolhedores, apenas esperando Lia mergulhar neles. Ela queria
se afogar naquelas íris.
Ok, foco! Era cedo demais para fantasiar com a garota à sua frente.
— Você está bem hoje? — perguntou se referindo ao seu humor abalado na noite passada.
Lia acompanhou o seu sorriso. Só queria saber o que fazer para não ficar pensando demais
em Sofia, mas cada vez que a outra garota demonstrava um dos seus típicos sinais acolhedores
— sorrisos, olhares, toques —, ela se derretia por dentro e pensava nela até quando seu cérebro
se forçava a não pensar.
Revirou os olhos e encheu a xícara com um pouco de café. Sofia estava a conhecendo
agora e não sabia que ela era uma completa inútil que só sabia fazer tudo errado. Assertividade
não era o seu forte, logo, era incompetente, sim.
— Você não acredita em nada do que eu disse, né? — Sofia continuou.
— Não, mas não vamos entrar nisso. Não quero estragar o seu dia com os meus
problemas.
— Eu queria que você se visse como eu te vejo. — Lia a fitou diante daquelas palavras. —
Não apenas por fora, mas por dentro também. Principalmente por dentro.
Lia desviou o olhar para o seu café. Sofia não a entendia, afinal, nunca passou pelo mesmo
que ela. A garota ao seu lado não sabia o que era se sentir um erro o tempo todo e se odiar a
ponto de não querer existir. Seus olhos ficaram marejados e ela piscou, tentando afastar as
lágrimas.
— Promete pra mim que você vai se esforçar pra enxergar o lado bom em você?
— Promete?
E Lia fez que sim com a cabeça, mas só porque não conseguia negar algo para Sofia.
Depois que terminou seu café da manhã, foi embora da casa de Sofia, o coração mais
tranquilo por saber que estava tudo bem entre as duas. Seu cérebro era fodido mesmo. A fazia
acreditar em coisas nada a ver até alguém provar que estava enganada. Precisava marcar uma
consulta urgente com o seu psicólogo antes que fosse parar na clínica psiquiátrica mais uma vez.
Quando chegou em casa, deu de cara com Leandro sentado na cozinha, bebericando uma
caneca fumegante de café.
— Bom dia. — Ele deixou a caneca de café sobre a bancada. — Finalmente lembrou que
tem casa?
— Sei que você me acha um pé no saco, Lia, mas eu me preocupo com você. Não quero
que se machuque por causa dessa menina.
— Relaxa, Leandro. Eu saí das fraldas há vinte anos. Sei muito bem me cuidar. — Parou
diante da pia, colocando o copo debaixo da torneira, a água enchendo o recipiente. — Além
disso, a Sofia é inofensiva.
E enfiou dois comprimidos na boca e os engoliu com a ajuda da água, sendo observada
pelo irmão.
— Quando ela te chutar da vida dela, não venha chorar no meu ombro.
— Por que você sempre torce pra tudo dar errado na minha vida?!
— Foda-se! Eu não posso ser amiga de ninguém que você se incomoda! Isso já está chato
pra caralho!
— Então me deixa viver! Eu tô cansada de ser infeliz! Você não sabe quem é melhor pra
mim e provavelmente nem eu, mas eu preciso arriscar! Preciso de experiências, não dá pra viver
só por meio dos livros e achar que tá tudo bem!
Leandro ficou calado, processando as palavras da garota enquanto o peito dela subia e
descia. Ele ficou de pé e antes de lhe dar as costas, disse:
Uma vez sozinha na cozinha, respirou fundo e tentou se acalmar após perceber as mãos
trêmulas e a dor no peito. Talvez agora o irmão parava de pegar no seu pé por causa da sua
amizade com Sofia.
Eu não gosto dos seus joguinhos
Eu não gosto do seu palco inclinado
Do papel de idiota que você me
obrigou a fazer
Não, eu não gosto de você
Look What You Made Me Do –Taylor Swift
Os tênis de Sofia batiam contra o concreto enquanto ela corria a toda velocidade ao som de
"Work Bitch" da Britney Spears estourando nos seus fones de ouvido sem fio. Ela virou em uma
curva do parque de Hilionópoles, o cabelo preso em um rabo de cavalo balançando conforme a
garota cortava o ar violentamente com a rapidez de sua corrida.
Sentia-se revigorada com o exercício físico e esse era o segundo motivo para praticá-lo. O
primeiro era a satisfação em notar suas pernas cada vez mais torneadas. Por isso, se comprometia
a correr pelo menos três vezes na semana, faça chuva ou faça sol.
Assim que terminou sua sessão de 15 minutos, parou para descansar, tirando seus fones e
os guardando no bolso do short de algodão. Estava prestes a sentar no banco de pedra mais
próximo quando ouviu passos atrás dela.
Sofia olhou para trás e pela segunda vez em pouco tempo não acreditou em quem estava
vendo.
De novo não.
Voltou o rosto para frente, pronta para ignorar a pessoa, mas, em questão de segundos, a
garota já estava ao seu lado.
— O que você está fazendo aqui? — Evitou olhar para a ex-namorada e focou na própria
respiração entrecortada.
— Vim me exercitar. Acha que você é a única pessoa do mundo que está tentando ser
saudável?
Sofia abaixou o olhar no corpo de Milena. Ela estava usando calça legging e top preto,
pronta para infernizar sua vida.
Mas que merda! Desde quando Milena estava assistindo seus stories do Instagram?
— Se eu fosse você, seria mais cuidadosa com o que posta nas redes sociais — Milena
continuou. — Cidade grande é perigosa. Vai que aparece um doido querendo te sequestrar.
— Eu só quero conversar.
— Por que está sendo tão difícil? Aposto que se fosse aquela tal de Lia você já estaria toda
ouvidos.
— Você já está louca por ela, não é?! Está ficando com ela?
— Não te interessa, Milena! Você me chutou e agora quer dar uma de arrependida?! Vai
se foder! — Sofia girou nos calcanhares, se afastando da garota.
— Não toca em mim! — Em um movimento bruto, fez a ex-namorada soltar o seu braço.
— Me deixa em paz!
— Eu tô falando sério! Terminei com você porque eu era imatura! Não sabia o que eu
queria!
— Deveria! Eu estou sendo sincera com você. — Ela ergueu a mão, tocando na bochecha
de Sofia. — Eu não vim pra essa cidade só pra trabalhar. Eu vim por você.
Sofia tirou a mão dela do seu rosto, as íris verdes quase pegando fogo ao processar as
palavras de Milena.
— A sua cara nem queima, né?! Eu fiquei atrás de você igual uma otária e você me tratou
como um lixo! Eu fiquei mal por sua causa! Me podei por sua causa! Fiquei com medo de me
aproximar das pessoas porque você me fez acreditar que eu era carente demais e que ninguém
queria ficar perto de mim!
— Porque você é!
— Claro. E você é sempre a princesinha inocente, né?! Você já era assumida quando a
gente começou a namorar, mas eu não! Você sabia que meus pais são homofóbicos e mesmo
assim continuou fazendo de tudo pra sermos vistas! Você nunca seria expulsa de casa, mas eu,
sim!
— Não acredito em você. E agora é tarde demais. O que garante que você não vai ser
tóxica comigo de novo? — E não esperou a resposta. — Nada. Então, é melhor nem perder seu
tempo. — Deu as costas para ela. — Beijos de luz.
Sofia se afastou, deixando uma Milena com as mãos na cintura para trás. Quando
desapareceu das vistas da garota, sentou no meio-fio cheio de grama e soltou um longo e pesado
suspiro.
Milena mereceu isso. Estava apenas colhendo o que plantou, afinal, as consequências
tinham que bater na porta dela em algum momento. Quem ela achava que era? Sofia não ia voltar
com ela nem a pau. Se fizesse isso, seria como sentar no colo do capeta e pedir para ser
torturada. Transbordava de amor próprio para não cometer um erro desse pela segunda vez.
Merecia alguém melhor. Alguém que a valorizasse e que a aceitasse do jeito que era.
Sofia balançou a cabeça, tentando dissipar o rosto de Lia de sua mente. Precisava de água.
Água bem gelada para clarear seus pensamentos. As pessoas costumavam dizer que o cérebro era
racional, mas o seu cérebro era tão idiota quanto o seu coração. Sempre pensando na mesma
pessoa até se apaixonar perdidamente, correndo o risco de ganhar um pé na bunda igual Milena
fez com ela. Por que ele não entendia isso? Era simples. Não podia se apaixonar por Lia porque
ela era hétero.
Sofia estava prestes a responder que sim, mas logo chegou à conclusão de que quanto mais
tempo passasse com Lia, mais apaixonada ficaria.
A garota tirou os olhos da tela e encarou as árvores à sua frente, o vento refrescando a sua
pele e jogando os fios soltos de cabelo para trás. Não podia se afastar de Lia. Ela precisava de
uma amiga e não seria nem um pouco justo.
Uma paixãozinha platônica não ia matar ninguém. Conseguia superar isso. Milena fez
muito pior e ela estava viva. Sem pensar duas vezes, digitou uma resposta para Lia e torceu para
a tarde chegar logo.
Sofia percorreu os dedos finos pelo cabelo recém-lavado, ajeitando as ondas loiras e
brilhantes enquanto esperava em frente ao portão da casa de Lia. Aproveitou também para
desamassar o tecido azul-bebê do vestido florido e enquanto se preocupava com a sua aparência,
Leandro avançava calmamente pela garagem, prestes a deixá-la entrar.
Assim que percebeu a presença do homem alto, a garota ergueu o olhar e quase deu um
passo para trás com o breve susto.
— Ela está na cozinha. — Ele abriu o portão e o fechou quando ela entrou. — Mas
primeiro quero ter uma palavrinha com você.
Lá vem bomba, Sofia pensou. Conhecia Leandro de vista, trocando pouquíssimas palavras
com ele até aquele momento, e graças a Thaissa, a garota sabia muito bem da sua fama de
perturbado. Disseram até que ele era psicopata.
Não era sensitiva nem nada, mas já sentiu uma energia pesada emanando dele quando o
conheceu. Se ele fosse tudo isso que falaram, sua vida tinha acabado ali mesmo. Ela só esperava
que Leandro não jogasse seu corpo em uma vala e que, pelo menos, ela tivesse um funeral com
todos os seus amigos e familiares. Tentando não pensar no pior, assumiu uma expressão neutra e
esperou, cruzando as mãos atrás das costas.
— Minha irmã gosta muito de você — ele começou, olhando para ela com uma
intensidade que poucos conseguiam.
— Gosta?
— Você acha?
— Eu não sei… — confessou, confusa.
— Eu não terminei.
— Ah. Desculpa.
— Como eu estava dizendo: eu espero que você também goste dela porque ela já sofreu
muito, e não tem nada que me deixa mais puto do que ver a minha irmã sofrendo por causa de
pessoas que não estão nem aí pra ela.
— Entendi.
Sofia engoliu em seco. Era melhor ficar calada e responder só quando ele perguntasse.
— Eu não gosto que façam a Lia de idiota — Leandro continuou, lhe lançando um olhar
de julgamento. — Nossa família pode ser fodida e podem falar o que quiser da gente, mas eu me
importo muito com a minha irmã. — Ele deixou a ameaça implícita no ar. — Quero deixar isso
bem claro antes que você resolva dar no pé depois de fazer ela de palhaça.
— Com todo o respeito, mas eu jamais faria isso com a Lia. Sei que você não me conhece,
mas eu tenho caráter.
Sofia fez o que ele disse, alívio tomando conta de todo o seu corpo. Poderia ser muito pior.
Assim que pisou na sala, o cheiro de pipoca amanteigada lhe invadiu e ela caminhou até a
cozinha, deparando-se com Lia enchendo uma tigela de pipoca em cima da bancada.
— Oi.
Lia olhou para ela e sorriu, fazendo seu coração errar uma batida.
— Não foi nada demais — Sofia a interrompeu e se aproximou, pegando uma pipoca e
colocando-a na boca. — Ele só falou o quanto se importa com você.
— E aposto que ele estava te olhando igual um psicopata, né? Ele adora fazer essas coisas.
— Eu poderia te chamar de sortuda, mas confesso que eu não seria nada sem meu irmão.
A gente briga, mas ao mesmo tempo, morreríamos um pelo outro.
— E isso é lindo. Esse conflito de sentimentos… Deve ser uma experiência incrível…
Sofia debruçou-se sobre a bancada, observando Lia enchendo dois copos de refrigerante e
abriu um sorriso bobo com a expressão concentrada da outra garota. Teve a mesma ideia
milhares de vezes, mas podia assistir Lia fazendo qualquer coisa por horas e horas. Era o melhor
entretenimento que poderia querer já que as duas não podiam ficar juntas.
— Sofi.
— O que foi?
Lia sorriu.
— Você não para de olhar pra minha cara. Está tudo bem?
— Me conta.
— Estava pensando em qual filme vamos assistir — mentiu e a culpa tomou conta dela por
fazer isso com Lia. Ela não merecia ser enganada. — Você ainda não me disse.
— Por isso mesmo. — Virou o rosto para Lia, que começou a acompanhar seus passos. —
Eu deixo essa responsabilidade nas suas mãos.
Uma vez na sala, as duas olharam para um Leandro digitando no notebook com as pernas
esticadas sobre a mesinha de centro. Lia parou ao lado do sofá, segurando os dois copos de
refrigerante e abaixou o olhar para ele.
— Vaza.
— Estou trabalhando.
Leandro suspirou.
— Por que vocês não vão fazer essas merdas no seu quarto?
Ele fechou o notebook contra a sua vontade, ficou de pé e fuzilou Lia com o olhar. Lia fez
o mesmo, nem um pouco intimidada. Leandro deu um passo à frente, parou ao lado de Sofia,
afundou a mão na tigela de pipoca e a garota segurou o utensílio bem firme ao corpo para não
cair.
— É melhor deixar pipoca pra mim — ele avisou, enchendo a boca de pipoca antes de
subir pela escada.
Sofia apenas riu, deixou a tigela sobre a mesinha de centro e sentou no sofá macio,
observando Lia fazer o mesmo.
— Adivinha…
— Legalmente Loira?
— É esse?
— Não, mas esse filme até que é bom. É meio bobo, mas passa uma bela mensagem de
empoderamento.
— Eu gosto muito de Cisne Negro — contou, empolgada. — Pra mim, esse filme é
incrível! Eu fiz ballet quando era criança e acho que isso contribuiu com a minha obsessão por
ele.
— Se você continuasse, eu garanto que você seria a melhor bailarina desse país.
Sofia se derreteu por dentro com a frase de Lia e se permitiu sonhar um pouco.
— Já pensou se eu fosse uma bailarina famosa? Seria bom, mas ao mesmo tempo seria
ruim. — Olhou para Lia. — Eu não conheceria você.
— Mas eu conheceria você e provavelmente seria a sua maior fã. Iria em todas as suas
apresentações até você me notar.
— E aí eu chamaria você até o meu camarim e… — Sofia riu e se deu conta: — A gente
acabou de criar uma fanfic, Lia.
A garota concordou com a cabeça e se recompôs. Quase sugeriu que as duas poderiam se
beijar na breve fanfic que criaram. Lia estava bagunçando a sua mente e ela queria que fizesse
isso cada vez mais. Só não podia esquecer que Lia só queria uma amiga, sendo assim, devia
controlar seus sentimentos e agir como uma. Não podia ser tão difícil, podia? Mas se Lia
continuasse a olhando daquela forma, como se quisesse se fundir a ela, seria muito, mas muito
difícil mesmo.
— Então… — Sofia quebrou o silêncio que se instalou no cômodo. — Qual o seu filme
favorito?
— Garota, Interrompida.
— Nunca assisti.
— Então você precisa assistir agora. — Ela pegou o controle remoto e ligou a TV. — Esse
filme é simplesmente magnífico.
Sofia abriu um sorriso e um minuto depois, Lia deu play no filme, se recostou no sofá,
pegou uma almofada e a deixou sobre o seu colo. Sofia fingiu que não notou o braço quente da
garota encostado no dela e começou a prestar atenção em Susanna, personagem de Winona
Ryder, sendo socorrida às pressas na TV.
Quando o filme estava na metade, Sofia não se aguentou e encostou a cabeça no ombro de
Lia, apreciando a posição confortável e torcendo para que a outra garota não corresse para longe
dela. Mas foi pega de surpresa assim que Lia atravessou o braço no seu ombro, trazendo-a para
mais perto, a deixando bem mais confortável.
Assim que o filme estava chegando ao fim, Lia limpou uma lágrima ao ver Susanna
recebendo alta do hospital psiquiátrico e Sofia olhou para ela, um tanto curiosa.
Sofia assentiu e a abraçou, deslizando a mão no seu braço e apoiando o queixo no seu
cabelo, sentindo o cheiro do shampoo de frutas vermelhas que mais parecia iogurte. Inspirou o
ar, querendo guardar aquela memória olfativa para sempre no seu cérebro.
Quando os créditos do filme subiram na tela da TV, Leandro desceu os degraus da escada
e olhou para as duas garotas abraçadas no sofá. Bastou ele chegar no piso da sala para Sofia
perceber a sua presença e olhar na sua direção. A garota continuou como estava, as íris verdes
presas no irmão de Lia.
Ele tirou os olhos misteriosos e intensos dela e seguiu na direção da cozinha. Sofia voltou
a atenção para Lia, que saiu dos seus braços e perguntou:
— Gostou do filme?
Sofia gostou muito mais de ficar abraçada com ela, mas é claro que não disse isso.
— Claro. Sempre que você quiser assistir um filme na minha ilustre companhia, é só me
chamar.
Lia deu risada e Sofia constatou que sua paixão platônica não ia matá-la, mas ia fazê-la
sofrer por um bom tempo porque não podia evitar de se apaixonar pela garota hétero.
E se o sol está chateado e o céu fica
frio
Então, se as nuvens ficam pesadas e
começam a cair
Eu realmente preciso de alguém para
chamar de meu
Eu quero ser alguém para alguém
Alguém para você
Someone To You – Banners
Por que era tão difícil se concentrar no que uma pessoa estava dizendo quando você
gostava dela? Lia não sabia o porquê, mas enquanto Sofia tagarelava sobre alguma coisa
relacionada à moda de verão, ela concluiu que estava completamente caída por Sofia.
Pensava em Sofia o tempo inteiro; queria ficar perto dela o tempo inteiro; queria saber qual
era a sensação de beijá-la... o tempo inteiro…
Lia corou com o último pensamento e desviou os olhos para a vitrine da loja de
departamento. Apesar de ter se relacionado apenas com homens ao longo dos seus 23 anos de
idade, a garota tinha plena consciência de sua sexualidade. Ela já se atraiu por meninas e sabia
que era bissexual, embora nunca tivesse revelado isso a ninguém porque era sozinha demais.
— O que você achou desse? — Sofia perguntou, apontando para um cropped com listras
coloridas se destacando no manequim.
— É bonito.
O rosto de Lia queimou e ela tentou segurar o sorriso. Efeitos como este estavam se
tornando cada vez mais comuns desde que Sofia surgiu em sua vida. Estar perto dela fazia Lia
apreciar a sua própria existência, nem que fosse por poucos minutos.
Sabia que não era saudável atribuir toda a sua vontade de viver a outra pessoa,
principalmente depois de tudo o que fez por Mateus, mas não conseguia evitar. Sofia parecia ser
a felicidade que ela tanto queria. Não parecia errado. Era errado gostar mais de uma pessoa do
que de si mesma?
Lia a acompanhou até o interior da loja. Sofia a chamou para fazer compras no shopping
naquela tarde e ela não pôde dizer não. Era mais uma oportunidade de ficar perto da garota que
não saia da sua cabeça e não podia desperdiçá-la.
Assim que Sofia entrou no provador, Lia escorou no batente de uma cabine vazia e
esperou. Algumas vozes surgiram e ela logo percebeu que três mulheres apontaram no corredor.
No entanto, conhecia uma das clientes. O cabelo castanho e escorrido da Thaissa era
inconfundível. Ela estava segurando uma sacola cheia de blusas sociais enquanto Helena, mãe
dela, dizia alguma coisa para a funcionária da loja.
Lia tirou os olhos da namorada perfeita do Mateus, tal qual estava escrito no seu diário, e
cruzou os braços esperando passar despercebida. Neste exato momento, Sofia abriu a porta da
sua cabine, vestindo o cropped listrado e olhou na direção da Thaissa, os olhos se arregalando a
cada milésimo de segundo.
Lia só teve tempo de ver as mãos de Sofia vindo ao seu encontro e a empurrando para
dentro da cabine em que estava encostada. Suas costas bateram contra o espelho, mas ela só
prestou atenção nos olhos verdes perto do seu rosto.
Quando estava prestes a perguntar alguma coisa, Sofia tapou sua boca com a mão, a pele
macia e cheirosa grudada nos seus lábios. Lia quase desmanchou ali mesmo.
Ficou meio confusa, mas logo se deu conta de que Sofia estava se referindo a Thaissa. Mas
por que ela não podia ver as duas? Ah, foda-se! Pelo menos, estava bem perto de Sofia. Quase
colada nela, na verdade. Enquanto uma mão tapava a boca dela, a outra permanecia na sua
cintura, queimando sua pele através do tecido fino da regata. O corpo dela também estava a
poucos centímetros de distância, os seios quase roçando os seus.
Lia respirou pesadamente, o peito subindo e descendo, e Sofia tirou a mão da sua boca.
— Desculpa.
Lia sentou no pequeno puff. As duas garotas esperaram o falatório da Thaissa com sua
mãe cessar e finalmente saíram da cabine e se depararam com o corredor vazio. Sofia olhou para
os dois lados do corredor e tirou o cropped, exibindo o sutiã preto. Lia tentou desviar os olhos
dela, mas não conseguiu e teve certeza de que estava parecendo uma estranha.
— Nem vou levar — Sofia disse. — Vai que ela ainda está na loja.
Lia não disse nada. Não entendeu porque Sofia estava fugindo da Thaissa. Ela não era sua
melhor amiga?
Assim que Sofia vestiu sua própria roupa, as duas saíram da loja às pressas e para a
surpresa de Lia, seguiram direto para o estacionamento do shopping.
— A gente já vai embora? — perguntou, quase tropeçando nos próprios pés com a pressa
de Sofia.
— Sim. — A outra garota se desculpou com o olhar. — Não quero que ela encontre a
gente.
— O quê?
— Eu te explico no carro.
Uma vez dentro do HB20 branco, Lia olhou para Sofia que se afundou no banco do
motorista.
— Por quê?
— Porque eu não quero que vocês briguem — a garota se explicou, aflita. — Todo esse
lance entre você e o Mateus… Ela não vai gostar de saber que estou saindo com você.
Foi a vez de Lia se afundar no banco. Ela era um segredo. Um maldito segredo! Tão
insignificante que Sofia nem mesmo cogitou a possibilidade de falar dela para suas amigas. Era
apenas um passatempo. Uma coitada que Sofia podia se livrar depois sem maiores problemas.
— Mas eu gosto!
— Só quando suas amigas não estão por perto, né?! A Thaissa não pode te ver com a ex
louca do namorado dela, senão ela vai parar de falar com você?! Que ótima amiga você tem!
— É o que eu sou!
— Não, não é! Você é um ser humano! É normal como qualquer outra pessoa!
— Está insinuando que eu não quero te apresentar pras minhas amigas por que você é
louca?!
— Não tem outra explicação.
— Lia, eu te acho perfeita. Você não é louca. Pode ser pra você, porque colocaram isso na
sua cabeça, mas pra mim não é.
Lia sentiu vontade de chorar. Até tentou controlar a bola agonizante que estava se
formando na sua garganta.
— Então por que você não quer que a Thaissa saiba sobre mim?
— Porque eu não quero perder minha amizade com ela. Não é porque tenho vergonha de
você nem nada do tipo. Você deve saber que a Thaissa é meio… difícil e… — Sofia soltou um
suspiro. — Eu tenho medo. Ela pode entender tudo errado e nunca mais olhar na minha cara…
— Por enquanto. Até eu preparar o terreno. É temporário. — Os olhos verdes, que dessa
vez estavam acinzentados devido a baixa luminosidade, se prenderam aos dela. — Eu prometo.
— Tudo bem. Eu estou acostumada com isso mesmo. Nunca fui prioridade de ninguém.
Por que agora seria diferente?
— Lia…
— Eu já entendi, Sofia. Existem pessoas mais importantes na sua vida e tá tudo bem, sério.
— Não é isso — Sofia disse, o olhar em súplica. — Desculpa. Eu sei que é idiotice, mas
eu não sei o que fazer. Você é importante pra mim. Muito. A gente criou um laço tão forte e eu
não quero acabar com isso de uma hora pra outra por causa de um motivo bobo.
Lia assentiu.
Lia tocou no braço de Sofia, acariciando a pele quente. Ela não disse mais nada, mas a
verdade é que podia aceitar qualquer coisa de Sofia, mesmo que isso a machucasse
profundamente. Quem era para exigir demais? Não era ninguém. Sendo assim, precisava se
contentar com o que viesse, mesmo que isso fosse o oposto das suas expectativas.
Não importa o quanto eu tente ou o
que eu faça
Eu, simplesmente, nunca consigo te
impressionar
Então, por que eu estou deixando o
que você diz me colocar para baixo?
Eu passei a minha vida toda
pensando que estava errada
E que ninguém gostava de mim e
que é tudo culpa minha
Mas eu estou cansada dessa merda,
eu finalmente consertei isso
Love Myself – Olivia O'Brien
A câmera do celular focou no letreiro turístico em meio a grama ressecada, e assim que
Sofia capturou a imagem da melhor forma possível, Patrícia seguiu com seu carro pela estrada
vazia e tranquila da cidade. Os pássaros assobiavam dos galhos das árvores enquanto a garota
enviava a foto que tirou para o WhatsApp de Lia. O letreiro "Eu amo Santa Lúcia" estava em
destaque na imagem e Sofia abriu um meio sorriso com o feito.
Ela e sua mãe estavam de volta à cidade em que cresceram, e até aquele momento, a garota
não tinha se dado conta de que estava com saudade do pequeno município cercado de fazendas.
As ruas solutas traziam uma sensação de tranquilidade, tão diferente dos ruídos e excesso de
veículos em Hilionópoles.
O vento jogou o cabelo de Sofia para trás quando ela colocou a cabeça para fora da janela
do carro, observando as palmeiras na calçada, tal qual um Golden Retriever sedento por um
passeio. A nostalgia tomou conta dela ao lembrar dos bons momentos que passou na região
interiorana. Era muito bom estar de volta ao ambiente em que nasceu, mas só de olhar os poucos
comércios, começou a sentir falta da ampla variedade de estabelecimentos comerciais de
Hilionópoles.
E só estava há três horas longe da metrópole. Querendo ou não, seria obrigada a controlar
seus impulsos consumistas durante todo o fim de semana já que não teria muito o que comprar.
Posicionou a cabeça para dentro do veículo e deu uma olhada na tela do celular. Lia não
viu a sua foto. De acordo com o aplicativo, ela não estava online há duas horas.
Sofia inspirou e desligou a tela do aparelho. Será que Lia estava chateada com ela? Desde
o dia que as duas avistaram a Thaissa no provador da loja, percebeu que Lia estava meio
distante. Era uma mudança bem sutil, mas como Sofia mantinha contato com ela com bastante
frequência, seja online ou pessoalmente, percebeu essa diferença. Lia mandou mensagens poucas
vezes naquela semana e estava começando a se preocupar. Será que Lia queria distância dela?
Ou será que ela estava sendo grudenta demais?
Não sabia a resposta, mas temia que pudesse ser a última questão. Sofia se considerava
intensa, mas sabia que algumas pessoas não gostavam de toda essa abundância. Lia não parecia
ser uma dessas pessoas, mas ela não tinha certeza. Estava confusa, o que não era novidade, pois
sempre ficava meio desorientada quando se tratava de Lia.
Era inevitável não pensar em Lia e em todos os mistérios que ela guardava dentro de si
mesma. Inevitável não querer desvendá-los um a um, como se fosse uma detetive ansiando por
respostas. Inevitável não parecer uma boba apaixonada quando Lia estava por perto. Inevitável
não sofrer calada ao lembrar que Lia era hétero.
Pegou sua garrafa de água decorada com glitter e deu um longo gole no líquido quase
morno devido ao calor de 34 graus do interior. Ainda bem que o carro de Patrícia tinha ar
condicionado, caso contrário, iria derreter de tanto pensar em Lia —, fato esse que acontecia com
frequência nos últimos dias.
Minutos mais tarde, Patrícia estacionou em frente a uma casa de dois andares, o telhado
avermelhado contrastando com a pintura azul-acinzentada da área externa. A residência dos
Veronese era uma das maiores casas da cidade de Santa Lúcia, localizada em uma rua pacata
com imóveis muito semelhantes um ao outro.
Sofia pisou na calçada e o sol queimou sua pele, a lufada de ar quente dissipando todo o
frescor causado pelo ar condicionado. Anabel Veronese se aproximou com um largo sorriso na
pele esticada e abraçou a neta, o chapéu de crochê caindo com o contato afetuoso.
— Minha princesa… — Ela ajeitou o chapéu e se afastou o suficiente para medir a garota
de cima a baixo. — Você continua linda.
— Obrigada, vó. — Sofia sorriu e olhou para Joaquim Veronese, que se colocou ao lado
de Anabel. — Oi, vô.
— Sofi. — O idoso apertou os olhos azuis sensíveis aos raios solares e deu um forte
abraço em Sofia. — Que saudade…
— Vem, vamos entrar. — Joaquim guiou a garota para dentro da casa e, uma vez na sala
de estar, Sofia sentou no sofá de couro marrom que existia naquele ambiente desde que era
criança.
— Está mais corrida nesse semestre, mas falta pouco pra eu terminar o curso — Sofia
respondeu.
— Que bom. — Ele lançou uma olhadela em Patrícia. — Agora temos duas publicitárias
na família.
— É aquele ditado: tal mãe, tal filha — Patrícia comentou, orgulhosa, envolvendo o ombro
de Sofia com o braço.
Sofia não pôde evitar de sorrir. Se apaixonou pela profissão da mãe desde adolescente e
teve certeza de que queria ser publicitária antes mesmo de prestar o vestibular.
— Tenho certeza que você vai ser muito bem-sucedida e logo, logo, vai me dar um
bisneto. — Anabel opinou, toda sorridente.
— Que assim seja — a garota respondeu, um pouco insegura. Não tinha dúvidas de que
seria bem-sucedida, mas ter um filho não seria tão simples assim. Ela nem ao menos estava em
um relacionamento sério.
— Como vai a vida na cidade grande? — Joaquim quis saber. — Conseguiu se adaptar
bem?
— Eu amo essa cidade, mas lá é tão diverso. Você sabe como eu gosto de descobrir coisas
novas e infelizmente, não tem muito isso aqui.
— Eu não trocaria a calmaria dessa cidade por nada. Mas fico feliz por você ter gostado de
lá.
— Ela gostou tanto que raramente fica em casa — Patrícia opinou. — Nem no fim de
semana.
— Não.
— Uma menina tão linda dessas ainda está solteira? Eu não posso acreditar, Sofi.
Sofia quis entrar no carro de sua mãe e voltar para Hilionópoles só de ouvir o que a avó
disse.
— Não é uma fase — a garota explicou. — Eu gosto de meninas e sempre vou gostar. Por
que é tão difícil entender isso?
Anabel soltou um suspiro enquanto Patrícia cruzava os braços e Joaquim observava tudo.
Sofia fulminou Anabel com o olhar. Poderia muito bem mandar a avó tomar naquele lugar,
mas era muito educada para isso e respeitava os idosos.
— Obrigada pelo conselho homofóbico, vó, mas eu não preciso de ninguém dando pitaco
na minha vida.
— Sofia, não seja mal-educada — Anabel a repreendeu. — Criamos você pra ser uma
mulher bem-sucedida e respeitada. Olha só pra você. — Ela apontou para a garota. — Você não
tem o perfil dessa gente, isso é nojento!
— Anabel — Joaquim chamou a atenção da senhora. — Cuidado com o que você fala.
— Eu só estou dizendo o que vocês não têm coragem de falar. — Ela repreendeu Patrícia
com o olhar. — Está vendo o que dá ser tão permissiva? Se você não tivesse agido como se fosse
normal esse tipo de coisa, ela não seria assim!
— Mãe, por favor — Patrícia começou. — Viemos aqui pra te visitar, e não pra você
começar uma guerra.
— Pra ser sapatão? Como ela vai casar? Como vai ter filhos? O que vamos dizer às
pessoas?
Sofia evitou piscar, segurando as lágrimas quentes que ameaçaram escapar. Não era
obrigada a ficar ali ouvindo aquele desaforo. Já sabia que sua avó era uma preconceituosa de
mão cheia, mas, naquele momento, ela havia passado dos limites.
— Vou pro meu quarto. — Ficou de pé antes que sua mãe abrisse a boca para responder
Anabel. — Tá sendo impossível continuar aqui.
Seguiu na direção da escada e antes de pisar no primeiro degrau, ouviu Joaquim retrucar:
A garota não esperou para escutar a defensiva da avó, apenas subiu a escada, avançou pelo
corredor e tocou na maçaneta dourada, abrindo a porta. A janela do quarto estava aberta,
iluminando todo o cômodo e ela se jogou na cama de casal, afundando o rosto no travesseiro,
deixando o cheiro de amaciante invadir suas vias aéreas ao mesmo tempo que as lágrimas
vinham à tona.
Por que precisava passar por isso? Por que tinha que viver com o medo constante de ser
quem era? Por que as pessoas não gostavam dela? Isso era tão injusto. Era tão injusto ser julgada
pela sua sexualidade. Era desgastante sentir que precisava ser consertada para ser aceita.
Não era uma aberração. Era uma pessoa. Tinha sentimentos como qualquer um, mas
sempre esfregavam na sua cara que ela era defeituosa só porque gostava de meninas.
Desde que se assumiu, ouviu que era bonita, mas era lésbica; que não podia usar o
banheiro feminino senão ia assediar as meninas; que precisava transar com um homem para virar
hétero; que não podia andar com um grupinho de meninas para não contaminá-las e outros
absurdos do tipo.
Sofia estava cansada. Não escolheu ser lésbica, mas como nasceu assim, iria se odiar?
Não. Por mais que tentassem fazer ela se odiar, ela se amava. E isso era o mais importante.
A garota limpou as lágrimas com as costas da mão, tentou controlar sua emoção aflorada e
pegou o celular no bolso do short.
Lia começou a digitar e Sofia deitou de barriga para cima, esperando a mensagem chegar.
Lia: O q aconteceu?
Lia: Blz
Lia: Bem
Sofia encarou a tela do celular e tomou coragem para perguntar.
Sofia: Se está brava comigo, pode falar. Vou tomar cuidado pra não te magoar de novo
A garota leu a mensagem duas vezes e tentou se convencer com a resposta, mas não
conseguiu. O tom das mensagens de Lia fazia ela duvidar, mas sem querer ficar pensando muito
nisso, preferiu deixar para lá. Podia tirar a prova quando voltasse para Hilionópoles.
Sofia postou a foto de Santa Lúcia nos stories do Instagram e alguns minutos depois,
recebeu um comentário.
Suspirou ao reconhecer a foto de perfil de Milena. Nos últimos dias, ela teve a audácia de
seguir Sofia de novo na rede social.
@mileoliver: pq tá sendo tão grossa, raio de sol? Minha mãe trabalha na casa dos seus
avós, não custa nada
Sofia saiu do Instagram e desligou a tela do celular, olhando para o teto. Um minuto
depois, alguém deu três batidinhas na porta do quarto.
— Entra.
A porta foi aberta e uma mulher usando um coque firme e uniforme azul-celeste com
colarinho branco entrou. Ela sorriu para a garota e ergueu o copo alguns centímetros.
— Oi, Sofia. Sua mãe pediu pra trazer esse suco de maracujá pra você.
— Oi, Maria. — A garota saiu da cama e pegou o copo gelado da mão da mulher. —
Obrigada.
— De nada. — Maria secou as mãos no avental. — Você sabia que a Milena também foi
morar em Hilionópoles?
— Ela foi tentar a vida lá. É uma cidade com muitas oportunidades.
— Não sei por que vocês não se encontraram. Vocês eram tão amigas.
Mal sabia a mulher que Sofia e sua filha foram namoradas, não amigas. Na época, Milena
acompanhava sua mãe até o trabalho, subia até o quarto de Sofia, trancava a porta e as duas
ficavam aos beijos e amassos até qualquer uma delas decidir sair do quarto. Como Anabel fazia
questão de tornar a sexualidade de Sofia um tabu dentro da residência e da vizinhança, Maria mal
suspeitava que sua filha estava pegando a neta da patroa. As duas eram o exemplo da discrição.
— Espero que vocês se encontrem. Você tem muito o que ensinar àquela menina.
Sofia assentiu.
— Se encontrar, você manda um beijo pra ela? Ela não me ligou nenhuma vez desde que
foi pra lá. Às vezes, parece que esqueceu de mim.
O coração de Sofia se apertou. Não queria ver Milena na sua frente nem pintada de ouro,
mas no fundo, entendia os motivos da ex-namorada de cortar contato com a mãe. Maria era uma
boa pessoa, simples e humilde, mas tinha os mesmos pensamentos homofóbicos de Anabel.
Assim que Maria saiu do quarto, Sofia pegou o celular e digitou para Milena:
Parecia que ninguém queria um relacionamento sério com ela. As garotas só ficavam com
ela pelo seu rosto bonito, mas não queriam nada duradouro e sólido, tal qual Bauman defendia.
Cansada de pensar demais, virou de lado e fechou os olhos, pronta para tirar um cochilo e
esquecer seus problemas por poucas horas.
No dia seguinte, os Veronese receberam Nadine e sua filha Valentina, vizinhas e amigas
de longa data da família, para um almoço de domingo.
Enquanto Nadine questionava Patrícia sobre a vida na cidade grande, Sofia provava o seu
tiramisú, contando mentalmente as horas para ir embora da casa dos seus avós. Ela não suportava
mais os olhares de reprovação de Anabel. A garota se recusou a dirigir qualquer palavra à
matriarca desde a discussão do dia anterior, e cada vez que conversava com qualquer pessoa na
mesa, ignorando os comentários da avó, recebia um olhar irado da parte dela.
Sofia não estava nem aí se estava desrespeitando Anabel, afinal, ela a desacatou primeiro.
Quando todos terminaram a refeição, Sofia pegou um exemplar de Me Chame Pelo Seu
Nome de André Aciman na sua mala e se dirigiu até a piscina nos fundos da casa. Ajeitou o
biquíni verde musgo e deitou na espreguiçadeira, abrindo o livro na primeira página enquanto o
sol queimava a sua pele.
Minutos mais tarde, estava prestes a terminar de ler o primeiro capítulo quando alguém
sentou na espreguiçadeira vazia ao lado dela. Sofia tirou o olhar do livro e fitou Valentina. O
nariz dela era tão arrebitado que dava a impressão de que suas narinas eram enormes e sugavam
todo o ar do ambiente.
— Esse livro é bom? — A garota do nariz arrebitado virou o rosto para Sofia, o cabelo
loiro e escorrido preso em um rabo-de-cavalo acompanhando o movimento.
— Cuidado, meninas — Valentina alertou, dando alguns passos para trás e um sorriso
maldoso esticou os lábios dela. — Você não veio ver a gente trocar de roupa, né?
As garotas riram, as gargalhadas ecoando pelo ambiente ao mesmo tempo que o sangue
de Sofia fervia, a pequena comoção chamando a atenção das outras estudantes.
— Você é tão ridícula — Sofia soltou, abrindo a torneira para lavar as mãos suadas pela
partida de vôlei.
— Eu? Só estou me prevenindo. Aliás, você devia considerar usar o banheiro masculino já
que é lésbica. Não quero que você fique olhando pra minha bunda.
— E você devia considerar calar a boca. Acha mesmo que vou dar em cima de você? —
Foi a vez de Sofia sorrir. — Você mais parece uma porca com esse nariz.
A explosão de risadas tomou todo o banheiro e Valentina expirou o ar, inflando as narinas
e deixando-as maiores.
Sofia apenas saboreou aquele delicioso momento de satisfação. Desde que contou para
suas amigas que era lésbica, humilhações como aquela tornaram-se frequentes, mas ela podia
muito bem pagar com a mesma moeda e colocar idiotas como Valentina no seu devido lugar.
— Ele tem um dos cargos mais importantes de lá — Valentina continuou, fazendo Sofia
voltar para o presente e encará-la. Havia orgulho nos olhos azuis da ex-colega. — Já li alguns
livros que a editora dele lançou e são muito bons.
— Legal.
Valentina a fitou, notando que Sofia não estava muito a fim de papo. Ela ficou calada por
alguns instantes e quando Sofia estava prestes a voltar para a sua leitura, perguntou:
— Porque eu não entendo… — Valentina continuou. — Você não sente falta de… você
sabe… — Ela sorriu. — Aquele brinquedinho masculino?
— Não. Diferente de você, nem todos precisam sentar em uma rola pra ser feliz.
— E cadê o seu bom senso? Foi sugado pelas suas narinas enormes?!
— Vaca! — Valentina se levantou, o rosto quente e vermelho de raiva fazia ela parecer um
porco enfezado. — Não sei porque ainda tento puxar assunto com você!
— Só perdeu seu tempo. Era melhor ir fazer companhia aos porcos no celeiro. Eles são a
sua cara, sabia?
Sofia soltou um suspiro profundo e largou o livro sobre sua barriga, observando a piscina.
Todo aquele azul celeste apreciado por Anabel estava a deixando irritada. Ela amava aquele lar,
mas o contraste com Hilionópoles era evidente. A maioria das pessoas da cidade grande eram
tolerantes, diferente dos habitantes da sua cidade natal que adoravam tomar conta da vida alheia.
Estava de saco cheio disso. Por que as pessoas se preocupavam tanto com quem ela
beijava e transava? Isso dizia respeito somente a ela. Não era tão difícil cuidar de sua própria
vida, mas parecia que ninguém entendia isso.
Depois de ler mais um capítulo do livro e de ter pegado um bronzeado que mais serviu
para deixar sua pele vermelha, Sofia subiu até o quarto e deitou na cama, deixando seus
pensamentos tomarem conta dela. Queria estar com Lia. Assim, não estaria ranzinza e entediada.
Era para estar feliz, curtindo o fim de semana com sua família, mas estava mal-humorada,
e para piorar, não tinha nem um shopping para ela descontar suas frustrações nas compras.
Sofia rolou na cama e nesse momento, Anabel abriu a porta do quarto e entrou, fazendo a
garota revirar os olhos.
— Precisamos conversar.
A garota queria dizer que as coisas mudam conforme o tempo, mas acabou não falando
nada. Apenas sentou com as pernas cruzadas e se forçou a encarar o rosto de Anabel.
A senhora ficou calada, olhando para neta com certa indignação. Ela inspirou
profundamente e disse:
— Vocês, jovens, são tão sensíveis a tudo. Ninguém pode falar mais nada que é ofensa.
— Claro, desde que vocês falem o que pensam tá tudo bem, né? — a garota ironizou. —
Sabia que palavras machucam? Você falou de mim com tanta repulsa que eu me senti suja. É
assim que você gosta de mim?
— Não. Você quer viver de aparências e apenas isso. Acha que eu não sei que você morre
de vergonha de mim, vó?
— Não fala besteira, menina. Eu te amo como se você fosse minha filha. Eu ajudei sua
mãe a te criar e só quero que você repasse o nosso legado. Quero que você tenha uma família.
— E quem disse que eu não posso ter uma família? Ser lésbica não me impede de nada.
A senhora engoliu em seco e se recompôs, evitando soltar mais uma de suas pérolas
homofóbicas.
— Tudo bem. Não vou te estressar. Só não quero que você continue me ignorando. Isso é
muito desrespeitoso já que você está na minha casa.
Assim que Anabel saiu do quarto, Sofia se encolheu na cama. Controlar a língua era o
máximo que a avó podia fazer por ela, afinal, Sofia sabia que a senhora nunca deixaria de ser
preconceituosa. Anabel jamais assumiria estar errada, e seria uma grande perda de tempo tentar
mudar o pensamento de uma pessoa tão resistente.
Uma vez convencida disso, deitou a cabeça no travesseiro, querendo estar em Hilionópoles
com a garota que não a insultaria de jeito nenhum.
Eu não quero ser sua amiga, eu
quero beijar seus lábios
Quero te beijar até perder o fôlego
I wanna be your girlfriend – girl in red
Lia observou os óculos de grau caindo na ponta do nariz do psicólogo. Ele ajeitou os
óculos e ela respondeu:
— Sim. Eu tento me distrair, mas eles sempre estão na minha cabeça. É uma merda.
O profissional assentiu.
— Quando eu estava com a Sofia no shopping, ela começou a explicar o porquê de não
poder me apresentar pra amiga dela… Eu pensei que ela tinha vergonha de mim.
— Quem é Sofia?
Lia logo se deu conta de que não tinha contado essa novidade para o seu psicólogo.
— Qual?
— E qual é o problema?
— Problema nenhum. Eu só tô obcecada por ela e apesar dela gostar de garotas, eu nem
sei se ela gosta de mim, então… — Suspirou. — Eu sou louca, né?
— Você acha?
— Eu não acho, são fatos, Lia. Quando gostamos de uma pessoa, é normal pensarmos nela
durante boa parte do dia.
Lia afundou na poltrona. Odiava isso. Queria uma resposta pronta, mas seu psicólogo
sempre a fazia pensar demais, alegando que ela era totalmente capaz de tomar decisões sozinha.
Claramente ele não a conhecia.
— Eu vou contar — decidiu. — Se não der em nada, saiba que você vai ter muito trabalho
comigo.
O psicólogo sorriu.
— Certo. Voltando aos pensamentos negativos: você está fazendo a tarefa de casa?
Respondendo seus pensamentos?
Lia negou com a cabeça. Ela tinha várias tabelas impressas em folha sulfite, os chamados
Registro de Pensamentos Disfuncionais, para usar quando estivesse em casa, mas raramente fazia
a tarefa. Preferia procrastinar escrevendo no seu diário ou lendo um bom livro.
— É importante que você faça isso. Você só vai conseguir mudar esses pensamentos se
trocá-los por outros mais realistas. Lembra que o que você faz e sente…
— São causados por pensamentos — Lia completou a frase que tanto ouviu desde que
tentou se matar. — Eu sei.
— Tente também comparecer mais vezes na terapia — ele sugeriu. — Quanto mais você
falta, mais teremos que retroceder no tratamento. Sua saúde mental tem que ser a sua prioridade,
Lia.
Ela assentiu. Lia entendia a importância de fazer terapia, mas acontece que era dependente
financeiramente de Leandro e não queria pedir para ele desembolsar quase trezentos reais toda
semana para ela resolver seus problemas mentais. Já bastava todo o dinheiro que ele gastou para
ajudá-la a recuperar a memória que perdeu no acidente de carro com Mateus. A garota não queria
ser abusada.
Era uma forma barata de lidar com a sua vida de merda, afinal de contas.
Quando a sessão de terapia acabou, ela teve uma consulta com o psiquiatra e após relatar
seus sintomas, ele decidiu trocar a sua medicação. Não muito contente com seu próprio
desempenho, a garota passou na farmácia para comprar seus remédios e depois foi para casa, se
jogando na cama.
Lia suspirou e seu olhar vagou até o livro Confesse em cima da mesa de cabeceira. Fazia
um bom tempo desde que Sofia e ela leram os primeiros capítulos. Estava quase esquecendo a
história. Sem pensar duas vezes, pegou o exemplar e procurou a parte em que parou, começando
a leitura.
Precisava distrair a mente até contar o que sentia para Sofia, e só uma boa leitura para
cumprir esse papel.
Eram 10h00 quando Lia sentou no banco de concreto do parque, o sol brilhante torrando
seus neurônios. Ela tomou um gole de água da sua garrafa e olhou ao redor, observando uma
mulher correndo e um homem passeando com um Poodle.
Estava seguindo o animal com o olhar quando sua visão foi tampada por mãos macias.
— Adivinha quem é?
Lia tirou as palmas de Sofia do seu rosto e sorriu ao virar o rosto para ela.
— Jamais. — A outra garota a abraçou por trás, o cheiro do shampoo de flores invadindo o
nariz de Lia. — Ai, como eu senti a sua falta. — Ela a apertou em seus braços e Lia foi embalada
pelo toque carinhoso.
— E aí? — Ela saiu de trás do banco e sentou ao lado dela, o short esportivo subindo
alguns centímetros nas coxas definidas. — O que você fez enquanto eu estive fora?
— Nada de interessante e você? Não vai me contar o que aconteceu na sua cidade?
E Sofia logo desabafou sobre os pitacos lesbofóbicos de sua avó, incluindo a falta de
noção de Valentina.
— Sinto muito por você ter passado por isso — Lia disse. — Geralmente pessoas de
cidade pequena têm a mente bem fechada.
— É, eu sei muito bem disso. — Sofia parou os olhos verdes no rosto de Lia. — Mas e aí?
— Ela sorriu. — Você não parece brava comigo.
A garota riu.
— É que eu não quero que fique um clima estranho entre a gente. Eu gosto tanto de você
e… — Sofia se interrompeu, como se tivesse falado demais. — Enfim, eu não quero estragar a
nossa amizade.
Lia assentiu, as palavras de Sofia ecoando na sua cabeça. Será que ela queria só amizade?
Ou melhor, será que Lia estava viajando demais, achando que ela e Sofia podiam ter algo além,
quando, na verdade, era só amizade, pura e simples?
— Bom… — Sofia se levantou e estendeu a mão para ela. — Vamos correr? Esse shape
não vai se manter sozinho.
Lia tentou deixar seus pensamentos confusos de lado e aceitou a mão de Sofia, ficando de
pé. Querendo ou não, ela precisava de endorfina, o hormônio do bem-estar, e só podia conseguir
isso praticando exercício físico ao lado da garota que gostava.
As duas correram, uma ao lado da outra, pelo caminho de concreto cercado de árvores por
mais ou menos vinte minutos. Lia diminuiu o ritmo de sua corrida e olhou para Sofia, o cabelo
dela preso em um rabo-de-cavalo balançando para todos os lados enquanto ela corria alguns
metros à frente.
Enquanto seu coração batia forte em seus ouvidos, uma sensação vertiginosa baixou sobre
Lia, fazendo ela cambalear. A garota parou de correr e fechou os olhos, tentando se equilibrar.
— Vem. — Sofia cruzou o braço de Lia com o seu e a guiou na direção do meio-fio
repleto de grama verde. — Vamos sentar.
Elas sentaram na beira da calçada e Sofia tirou a garrafa da mão de Lia, deixando-a perto
de seu rosto.
Lia tirou a garrafa da mão dela e deu um gole no líquido diante dos olhos apreensivos de
Sofia. A tontura havia passado e, naquele momento, só conseguia pensar em como os olhos de
Sofia combinavam com toda a área verde do parque. A única diferença era que o tom de verde
era mais claro, brilhante e caloroso. Não tinha uma cor favorita, mas o tom das íris de Sofia
podia muito bem se tornar o seu preferido.
— Tem certeza?
— É que meu psiquiatra trocou meu remédio, então, é só mais um dia normal na vida de
uma depressiva.
— Já estive pior — contou, percebendo que teve um bom progresso em vista da sua versão
de dois anos atrás, totalmente jogada no fundo do poço, esperando apenas a morte buscá-la. Pelo
menos, os seus dias estavam menos cinzas desde que Sofia entrou na sua vida.
— Sei que não é fácil, mas você pode contar sempre comigo, Lia. — A outra garota
deslizou a mão no braço de Lia e ela teve certeza de que viu seus pelinhos se arrepiarem com o
toque. — Qualquer coisa que você precisar, tá bom?
— Eu sei. Obrigada.
Sofia sorriu em resposta, fazendo Lia abaixar o olhar nos lábios rosados e sem batom, que
aparentavam ser super beijáveis. Ela inspirou fundo. Aquele parecia ser o momento perfeito para
revelar o que estava sentindo pela garota ao seu lado.
— O quê?
Era agora. Lia engoliu em seco, desviou a atenção do rosto de Sofia, molhou os lábios,
voltou o olhar para ela e assim que abriu a boca, o som estridente de uma ligação telefônica
surgiu, tirando o seu foco.
Ela se levantou, atendendo a ligação e Lia olhou para cima, tirando alguns fios de cabelo
do seu rosto. O que estava prestes a fazer? De onde tirou que contar para Sofia que gostava dela
daria em alguma coisa? Não podia ser menos trouxa? Só porque Sofia era atraída por meninas,
não significava que ficaria com ela.
A Thaissa, por exemplo, era muito mais importante e isso não era coisa da sua cabeça.
Todos a adoravam. Mateus, Leandro, Sofia. Lia a invejava, e não à toa. A garota tinha tudo o que
ela não tinha: amigos, atenção, pessoas aos seus pés.
Observou a forma que Sofia sorria enquanto conversava com a Thaissa no celular, e algo
afundou no seu peito. Sofia nunca ficaria com ela porque ela não passava de uma desequilibrada.
Se fosse para Sofia se apaixonar por alguém, é claro que ela se apaixonaria por uma pessoa
como a Thaissa, com a vida tão perfeitinha que chegava a ser entediante.
— Vou ter que ir pra casa daqui a pouco — ela informou. — Tenho que terminar a minha
parte do TCC. Ainda bem que a Thay me lembrou.
— Ah… eu esqueci. — Lia forçou um sorriso. — Provavelmente não era nada importante.
— Não seja boba, Lia. Você não é incômodo nenhum. — A outra garota se levantou e Lia
fez o mesmo.
Minutos mais tarde, estava sentada na cama de Sofia, observando-a digitar o trabalho no
notebook. A outra garota fez um coque no cabelo, deixando o pescoço à mostra e Lia imaginou
como seria beijar aquela área do corpo dela, mas o seu bom senso a fez voltar para a realidade.
Qual era o seu problema? Não podia ficar fantasiando com Sofia.
Talvez estivesse carente demais. Desde que terminou com Mateus, ela não ficou com mais
ninguém e a consequência disso era se derreter com qualquer demonstração de afeto. Além disso,
quais eram as chances de Sofia sentir o mesmo que ela? Provavelmente muito perto de zero.
Ninguém queria se envolver com uma pessoa cheia de problemas psicológicos, certo?
Mas se Sofia não queria ter nenhuma relação com ela, por que ela estava sentada na sua
cama? Por que continuava mantendo contato? Lia logo concluiu que seus pensamentos não
tinham muito cabimento e que não tinha sentido acreditar 100% neles.
— Por que está tão quieta? — a voz de Sofia ecoou pelo quarto, lhe tirando de seus
devaneios.
— Pode conversar comigo. — Ela estalou os dedos finos. — Estou cansada de digitar.
— Imagina. — Parou ao lado de Sofia. — Eu quero ajudar. Também preciso fazer alguma
coisa.
— Tá bom, já que você insiste… — Ela saiu da cadeira, deixando Lia assumir o seu lugar.
Sofia a informou sobre o tema do TCC e depois de ler trechos de dois artigos, Lia
começou a digitar no notebook, focada nas informações extraídas dos materiais bibliográficos.
— Você é muito boa — Sofia comentou depois de ler o que Lia estava escrevendo. — Não
quer fazer todo o trabalho pra mim?
Lia riu.
— Eu fazia alguns trabalhos do meu irmão — contou. — Eu sempre quis fazer faculdade,
na verdade.
— E quem é o sortudo que não tem problemas nessa vida? Eu não conheço ninguém.
— Você não entende… — Voltou a encarar a tela. — Eu não consigo ir até o fim. — E
respirou fundo. — Desisto muito fácil de tudo.
— Até quando você vai se limitar, Lia? Você é capaz de fazer qualquer coisa.
Lia engoliu em seco. Ouviu isso tantas vezes na terapia, mas dizer isso para ela não era o
suficiente para fazê-la acreditar na própria capacidade. Se é que era capaz de alguma coisa além
de destruir a si mesma e de fazer as pessoas terem pena dela.
— E daí? Cada um tem um tempo. Não existe uma regra. Se fosse assim, não tinha pessoas
de várias idades começando a faculdade.
Lia recostou na cadeira. Sofia tinha razão. Mas era muito mais fácil acreditar nos seus
pensamentos autodepreciativos do que nos conselhos dela.
— Não tenha dúvidas. — Sofia sorriu em concordância. — Você podia fazer o vestibular
ano que vem. Tenho certeza que vai passar.
De repente, ela esticou o braço, pegou um bloco de notas e uma caneta rosa com cheiro de
morango no canto da escrivaninha, se posicionou ao lado dela e começou a escrever alguma
coisa. Em seguida, arrancou a folha do bloco de notas, dobrou no meio e a entregou para Lia.
Sem conseguir conter a curiosidade, Lia abriu o papel e leu as palavras escritas em tinta
rosa, numa letra cursiva, pequena e bonita:
Você tem tudo o que precisa pra ir atrás dos seus sonhos. Quero que saiba que só quem
pode te limitar é você mesma.
Eu estou torcendo por você.
Lia terminou de ler o bilhete com a visão embaçada pelas lágrimas, mas as segurou e
dobrou o papel de volta. Parecia bobagem, mas nunca teve alguém para fazer por ela o que Sofia
estava fazendo.
— Você não cansa de ser incrível? — perguntou sem olhar para ela, temendo que
desabasse ali mesmo.
A garota quase transbordou de emoção, mas continuou olhando para a tela do computador.
Ela também queria ser feliz. De todos os seus sonhos, isso era o que mais queria, e de alguma
forma, sentia que estava mais perto da felicidade toda vez que se encontrava ao lado de Sofia.
Foi uma péssima ideia ligar para
você
Foi uma péssima ideia porque agora
estou ainda mais perdida
Foi uma má ideia pensar que você
era a única
Foi uma péssima ideia porque agora
está tudo errado
bad idea! – girl in red
A aula de Política Ambiental estava tão desinteressante que grande parte dos alunos de
Publicidade e Propaganda faziam qualquer outra coisa, menos prestar atenção na explicação
monótona da professora.
Desde que deixou Lia na porta da casa dela naquele mesmo dia, não se conformou com a
insegurança da garota. Lia tinha habilidades como qualquer pessoa: era inteligente e
provavelmente muito competente no que fazia, mas não conseguia enxergar isso. Era uma
situação angustiante e precisava fazer alguma coisa para ajudá-la.
Quando a aula acabou, Carolina se colocou na frente da cadeira de Sofia e arrancou o
celular das mãos dela.
— O que você anda fazendo nesse celular? — Ela ergueu uma sobrancelha escura. —
Desde o começo da aula, você não tira o olho disso aqui. Está conversando com alguma crush?
— Como ajudar uma pessoa com depressão? — Ela leu a barra de pesquisa no Google e a
encarou. — Está tudo bem?
— Claro que está! — Sofia se inclinou e tirou seu celular da mão dela. — Como você é
enxerida.
— Você não está pensando em cortar os pulsos, né? Você tem uma vida maravilhosa, tem
amigos, tudo o que uma pessoa pode querer…
— É por isso que você anda aérea ultimamente? Meu Deus, eu sou uma péssima amiga por
não ter percebido isso antes…
Carolina não sabia, mas o comportamento aéreo de Sofia nada tinha a ver com transtorno
de humor e, sim, com uma paixão platônica. Ela não conseguia parar de pensar em Lia, por isso,
parecia distraída na maior parte do tempo.
— Você escutou o que eu disse? — Sofia guardou o celular no bolso da calça. — Eu.
Estou. Bem.
— O que está acontecendo? — Thaissa perguntou, parando ao lado das duas garotas.
— Eu acho que a Sofi está com depressão — Carolina respondeu com a expressão
amedrontada.
— Eu não tenho depressão! — Sofia exclamou, chamando a atenção dos outros estudantes.
— Eu só estou me informando por curiosidade. Vocês deviam fazer o mesmo ao invés de
ficarem afirmando o que não sabem.
— Eu já falei que tô bem. Eu saio, me divirto, estudo, cuido da minha saúde. Tá tudo bem.
— Ela jogou o caderno e o estojo dentro da pequena mochila preta com certo furor. — Vamos
sair logo daqui. Vocês estão me dando nos nervos.
— Eu sei, amiga. — Cruzou o braço com o da Thaissa, tentando não pensar na amizade
com Lia que ela escondia dela. — Vamos no bar?
— Vamos.
Carolina e Isabel acompanharam as duas garotas até o bar na mesma rua da Universidade
de São Hobbes e assim que o grupo conseguiu uma mesa no meio do estabelecimento, Carolina
foi pedir as bebidas.
Conforme desabafavam sobre a aula chata que tiveram, Sofia levou a garrafa de Smirnoff
aos lábios e quando seu olhar pousou na garota atrás do balcão, engasgou com o líquido gelado.
— Bebe devagar. — Carolina deu batidinhas nas costas dela. — A bebida vai continuar aí.
Sofia limpou a garganta e fitou o balcão. Ela só podia estar sendo perseguida. Sem
justificar suas ações, ficou de pé e deu as costas para suas amigas como se fosse uma foragida.
— Preciso de um pouco de ar. — E avisou sem olhar para trás: — Eu tô bem. Não
precisam vir atrás de mim.
Thaissa encarou suas amigas enquanto Sofia seguia em passos rápidos na direção da saída.
Isabel tirou a atenção da garota e comentou:
— Não sei, mas não adianta a gente ficar perguntando toda hora. Conhecendo a Sofia
como eu conheço, ela pode estar esperando o momento certo pra contar.
— Se você está dizendo… — Carolina voltou a atenção para a sua batida de morango,
sugando a bebida pelo canudo.
Uma vez ao ar livre, Sofia encostou-se na parede externa do bar, tirou o celular do bolso e
levou a bebida à boca. O vento soprou seu cabelo loiro para trás quando uma nova notificação
surgiu na tela do aparelho.
Ela tocou no ícone do WhatsApp, abrindo sua conversa com Lia. A outra garota enviou
um print com algumas informações do curso de Biblioteconomia na Universidade de São
Hobbes.
Lia: Acabei de ver que tem o curso que eu quero na sua faculdade. Acha que eu tenho
chance?
Sofia estava prestes a digitar uma mensagem confirmando a pergunta quando passos
surgiram perto dela. Ela tirou os olhos do celular e desejou evaporar dali no mesmo momento
que Milena acendeu seu cigarro com o isqueiro. Nesse instante, a ex-namorada colocou os olhos
em Sofia e pareceu surpresa em vê-la.
— Sofia?
A garota soltou um suspiro e ficou tentada a esvaziar sua garrafa de Smirnoff na cabeça de
Milena pelo simples fato dela estar respirando o mesmo ar que ela. Mas com a ajuda do seu
autocontrole, deixou a garrafa no chão, tentando não cometer uma atrocidade.
— O que você está fazendo aqui?! — Sofia perguntou, ríspida. — Será que vou ser
obrigada a acionar a polícia?
— Para de me chamar de Raio de Sol, idiota. Por que você sempre aparece no mesmo
lugar que eu?! Isso já tá ficando bizarro.
— Eu não posso recusar trabalhos só porque você está aqui sendo servida. Nem todo
mundo tem o privilégio de ter nascido com a bunda virada pra lua igual você, linda.
— Se é assim, eu saio.
E antes que desse um passo para longe, Milena a encurralou contra a parede, o peito dela
batendo no de Sofia, e soprou a fumaça do cigarro mentolado na cara dela.
— Mas bem que dava quando a gente namorava. — Ela esboçou um sorriso convencido.
— Por que está sendo tão fria comigo?
Sofia a empurrou para longe e seguiu na direção da entrada, mas ao pisar no bar, Milena a
puxou pelo braço. Estava prestes a abrir a boca quando os lábios com gosto de cigarro foram
parar nos seus, a mão livre da ex afundando no seu cabelo.
O toque dos lábios não durou mais que cinco segundos, pois Sofia pressionou os dedos
finos no maxilar de Milena e afastou o rosto dela, a outra garota dando um sorriso dissimulado
ao conseguir uma amostra forçada do beijo.
Sofia finalmente deu as costas para ela e andou em passos ágeis pelo estabelecimento,
ignorando a mesa das amigas. Assim que adentrou o banheiro com cheiro de desinfetante de
eucalipto, enfiou-se em uma cabine e olhou para o teto, soltando um longo suspiro.
Milena era tão insolente! Como pôde gostar de uma pessoa assim? Só podia estar muito
carente para se sujeitar a ela.
Ergueu o celular e só então lembrou que Lia estava esperando a sua resposta. Sem
paciência para digitar uma mensagem, ligou para ela que atendeu no penúltimo toque:
— Oi.
— Quem?
— A idiota da Milena.
— Não, eu estou no bar e ela está trabalhando aqui. Imagina a minha surpresa quando vi
ela atrás do balcão? Quase surtei. Só não vou embora porque as minhas amigas vão me fazer um
milhão de perguntas e eu não quero me explicar.
— Complicado.
— Ela é insuportável. — Sofia encostou a cabeça na parede. — Fui pra fora pra ela não me
ver, mas a ridícula foi atrás de mim e ainda tentou me beijar!
— Sério?
— O quê?
— Você estava ocupada beijando a sua ex. Mandei mensagem em uma péssima hora.
— Não, espera! — disparou. — Da onde você tirou que eu tô ficando com a Milena?! Eu
não suporto nem olhar pra ela.
— Aposto que ela já conheceu as suas amigas. — Sofia sentiu a amargura na voz de Lia
do outro lado da linha. — Na verdade, nem sei porque tô falando isso pra você.
E sem aviso prévio, a ligação foi encerrada. Sofia tirou o celular da orelha e encarou a tela
com o coração subindo pela garganta.
O que foi isso? Nem fez nada demais para Lia desligar a chamada na sua cara. Antes que
um turbilhão de perguntas tomasse conta da sua mente, retornou a ligação, e para a sua surpresa,
Lia não atendeu.
Sofia: Pq vc desligou?
Lia não estava mais online, e mesmo assim, Sofia esperou uma resposta que não veio nos
poucos e angustiantes minutos que ela passou dentro da cabine.
Cansada de olhar para a tela ligada do celular, guardou o aparelho no bolso e saiu do
banheiro.
Não.
A ex-namorada abriu um meio sorriso enquanto permanecia com a atenção voltada para
ela, as mãos trabalhando agilmente nas bebidas dos clientes.
Sofia cruzou os braços e virou o rosto para as suas amigas que estavam enchendo a cara de
bebida alcoólica como se não houvesse amanhã. Se Milena não estivesse ali, ela estaria fazendo
o mesmo, e o melhor: estaria com a consciência tranquila, conversando com Lia como boas
amigas.
Milena era uma verdadeira víbora. Sua presença era um claro sinal de que Sofia devia se
manter longe da toxicidade que a garota emanava.
Lia leu as palavras que escreveu no diário, a caneta azul deslizando nos dedos suados
enquanto a ira a corroía por dentro feito ácido.
Tola.
Tapada.
Burra.
Idiota.
Por mais que quisesse ser mais que amiga, as duas não passariam disso. Sofia não queria
se relacionar com uma pessoa problemática, afinal, Lia lhe traria mais dor de cabeça do que
alegria.
Ela não sabia viver em sociedade, era sempre um empecilho na vida das pessoas.
Fechou o diário e o largou sobre a mesinha de cabeceira antes de desligar o abajur do outro
lado da cama, escurecendo o quarto.
Deitou no colchão macio, subindo o lençol até o queixo e fechou os olhos, impedindo que
as lágrimas quentes escapassem.
Todo dia era a mesma merda: sofria com seus próprios pensamentos e permitia que eles
comandassem a sua vida para o buraco vazio, escuro, frio e sem sentido.
Enquanto tentava engolir a bola na garganta, a voz de Sofia ecoou na sua mente: … a
ridícula foi atrás de mim e ainda tentou me beijar!
Estúpida. Era muito estúpida mesmo. Estava sofrendo por uma pessoa que nunca teria
nada além de uma amizade com ela.
Nem a manhã ensolarada de sábado foi capaz de animar Lia. Apesar de ser um peso morto
na maior parte do tempo, naquele dia, em específico, parecia que um caminhão tinha passado por
cima dela.
Como parte da sua rotina antidepressiva, ela trocava de roupa logo que saía da cama, mas
naquela manhã nem se preocupou em tirar o pijama. Apenas escovou os dentes e lavou o rosto,
arrumando o cabelo embaraçado em um coque frouxo. Tudo sem muita vontade.
Levou a caneca de café aos lábios e saboreou o líquido quente e amargo que Leandro fez,
porque, pasmem, não servia para fazer nada. Nem um mísero café.
Incomodada com tanta amargura, despejou algumas gotas de adoçante na bebida e nem
saiu do lugar quando a campainha tocou. Por ela, nem sairia da cama, quanto mais se mover para
atender quem quer que fosse.
Apenas bebeu mais um gole do café recém-adoçado e encarou os raios solares entrando
pela janela, iluminando o piso de cerâmica da cozinha.
Seu estômago roncou e ela pegou um pãozinho doce em cima da mesa e deu uma mordida
na massa com sabor de nada. Soltou um suspiro cansado depois de comer e tomou mais um gole
do café, mas quase o cuspiu quando seu olhar parou na entrada em arco do cômodo.
Lia limpou a boca com as costas da mão e piscou, sem acreditar em quem estava vendo.
— Vim conversar já que você não respondeu minha mensagem. — Ela se aproximou da
mesa e sentou na cadeira de frente para Lia.
A garota desviou a atenção para o seu café, sem saber o que responder. Depois que Sofia
ligou na noite passada, ela ignorou completamente o celular. Tanto que nem o pegou assim que
saiu da cama.
Lia a fitou. Os olhos dela estavam apreensivos, mas ainda assim, combinavam com o
cropped verde-escuro que usava. Sofia parecia uma princesa enquanto Lia estava toda
maltrapilha. Eram o oposto uma da outra. Não tinham nada em comum.
— Como nada? Eu falei alguma merda, não foi? É por causa da Milena?
Lia negou com a cabeça. O problema era ela e não Sofia, mas não admitiria isso em voz
alta. Pelo menos, não explicitamente.
— Sofia, eu… — Suspirou. — Eu não quero ser chata, mas… não quero sufocar você.
A outra garota ficou dura como uma pedra, mas absorveu cada palavra dita por Lia.
— O que você está querendo dizer com isso? — Ela não esperou uma resposta. — Você
quer espaço?
Foi a vez de Lia ficar confusa. Não queria espaço. Queria ser normal. Queria ter uma
relação saudável com as pessoas, no entanto, era instável demais para isso. Mas para o azar de
Sofia, ela não disse nada disso.
— Eu acho que estou sendo grudenta demais, não é? — A outra garota ficou de pé,
parecendo arrependida de estar ali. — Estou sendo um pé no saco e te sufocando com tantas
perguntas. É melhor eu ir.
Lia quase vomitou o café da manhã e antes que pudesse dizer um A, Sofia lhe deu as
costas e caminhou em passos rápidos para fora da cozinha, deixando-a sozinha com as palavras
entaladas na garganta.
Lia poderia ir atrás dela. Poderia levantar a bunda da cadeira e chamá-la para explicar sua
situação, mas não moveu um único músculo.
Não era isso que queria? Livrar os outros de si mesma e ficar sozinha para sempre?
Não. Não queria isso. Queria viver. Ter alguém. Ser amada. Ser feliz.
Quando levantou, ouviu o barulho do HB20 branco saindo da frente da sua casa, mas
mesmo assim foi até a sala, deparando-se com Leandro a olhando do sofá, o vento entrando pela
porta aberta e balançando as folhas de uma azaléia branca na mesinha de centro.
— Porque eu sou uma tonta — sussurrou mais para si mesma do que para o irmão.
— Não fez nada, quem fez fui eu! Você não percebe que eu sou uma anta?!
— Eu já falei que ela não fez nada! Para de achar que eu sou vítima de todo mundo! —
dito isso, deu as costas para Leandro e seguiu na direção da escada.
— Vai se foder você e essa sua superproteção estúpida! — Lia subiu os primeiros degraus
da escada. — Sou adulta! Não preciso de você pra resolver minhas merdas!
Leandro engoliu a resposta ácida para poupar os ouvidos sensíveis da irmã. O que ele mais
queria era jogar suas verdades na cara dela, mas se fizesse isso iria quebrar a garota mais ainda e
não queria vê-la destruída de novo. Sendo assim, apenas a observou desaparecer escada acima, a
ira queimando dentro de si.
Assim que entrou no quarto, Lia pegou seu celular na mesinha de cabeceira e clicou no
contato de Sofia, lendo a mensagem que ela enviou na noite anterior. Com o coração batendo em
disparada no peito, começou a digitar uma mensagem:
A garota leu o que escreveu, mas logo apagou por se achar emocionada demais. Resolveu
melhorar sua resposta:
Lia: Desculpa, eu fui uma idiota. Não se sinta mal por minha causa
Com os dedos trêmulos e suados, decidiu apagar de novo. Lia era muito ruim quando
precisava se reconciliar com alguém. Preferia se afastar da pessoa ou fingir que nada tinha
acontecido. Manter uma relação com diálogo sincero era algo novo para ela. Dificilmente
precisava se redimir quando errava, pois estava acostumada com o silêncio gerado pela falta de
comunicação. Nunca se desculpou com um amigo; nunca foi a primeira a pedir perdão no
namoro com Mateus porque ambos agiam como se nada tivesse acontecido; nunca verbalizou
arrependimento por magoar os sentimentos dos membros da sua família.
Largou o celular sobre o colchão e deitou de barriga para cima, olhando para o teto. Por
que era tão complicada? Como ia ter uma vida boa se ferrava com tudo?
Rolou na cama. Precisava mudar essa situação. Aprendeu na terapia que se continuasse
esperando as coisas mudarem magicamente, iria continuar no fundo do poço. Era preciso agir.
Colocar seu cérebro para trabalhar para que algo de diferente acontecesse.
Por mais que se sentisse como uma morta-viva, seu coração continuava batendo. Não
estava morta. Esse era o momento de tentar consertar suas merdas.
Pensando nisso, saiu da cama, abriu o guarda-roupa e escolheu uma calça jeans skinny e
uma camiseta preta do Pink Floyd que ela roubou de Mateus quando namorava com ele. Depois
de enfiar a barra da camiseta por dentro da calça, penteou o cabelo preto que estava
ultrapassando os ombros, pegou o celular e saiu do quarto.
Leandro estava digitando alguma coisa no notebook quando ela pisou na sala.
— Não te interessa.
— Lia…
— Vou no shopping! — disparou. — Você quer controlar todos os meus passos agora?!
— Claro. — Ele esboçou um sorriso debochado dessa vez. — Você é a minha irmãzinha
querida. Não posso tirar os olhos de você.
— Você tá precisando transar, sabia? — Ela lhe deu as costas, nem um pouco preocupada
em ver a reação do irmão.
Lia fingiu que não ouviu o que Leandro disse e seguiu na direção da rua.
Quarenta minutos depois, entrou na Forever 21 e se encaminhou para a arara com uma
ampla variedade de vestidos. Enquanto uma música pop tocava na loja, ela observava cada uma
das peças com um olhar crítico. Demorou um bom tempo até encontrar um vestido que lhe
agradou.
Satisfeita com o achado, ergueu a peça no ar, se atentando aos detalhes. A estampa de
folhas brancas e pequeninas no tecido verde-pastel passava uma impressão descontraída e casual.
Era perfeito.
Sem pensar muito, foi até o caixa e pediu para a funcionária embrulhar o vestido para
presente.
Um pouco animada com a mais nova compra, saiu da loja, torcendo para a tarde passar
logo.
Depois de ficar mais de quatro horas no shopping lendo na livraria e comendo fast food,
Lia deixou o estabelecimento para trás e pediu um Uber.
O céu estava ficando com uma coloração púrpura quando ela saiu do carro, o cheiro de
tarde misturado com o aroma das folhas das árvores entrando no seu nariz.
O vento bateu no seu rosto e ela se aproximou da casa térrea de estrutura moderna com o
coração saindo pela boca.
Respirou fundo e apertou a campainha. A sensação de adrenalina não durou nem dois
segundos, pois ela queria vazar dali assim que a autocrítica a atingiu.
O que estava fazendo? Como iria se explicar? De onde ia tirar argumentos plausíveis sobre
o seu comportamento? Não precisava fazer isso. Ia fazer papel de trouxa de novo.
Mas antes que pudesse sair do lugar, Sofia surgiu, deixando-a paralisada.
— Lia?
O coração da garota disparou a mil por hora e ela procurou as palavras para responder,
mas parecia que tinha perdido a fluência na própria língua.
— O que você está fazendo aqui? — Sofia quis saber, abrindo o portão.
— Eu… — Lia desviou a atenção para a sacola de papel que carregava. — Eu vim me
desculpar…
A outra garota a observou com certa curiosidade, a sobrancelha loira erguida. No instante
seguinte, pegou na mão dela e a puxou para dentro da garagem.
Ao adentrarem a sala de estar, Lia quis ir embora no mesmo instante. Sentada, com as
pernas esticadas no sofá branco, estava Pérola enrolando uma mecha do seu cabelo rosa nos
dedos.
— Opa! — Pérola abriu um largo sorriso, permanecendo na mesma posição. — A casa não
é minha, mas seja bem-vinda… — Ela fez uma pausa, parecendo confusa. — Qual o seu nome
mesmo?
— Lia.
Perdida sobre o que fazer, ergueu a sacola de papel na direção de Sofia e disse:
— É pra você.
— Claro.
— Não precisa. — Sofia pegou na mão de Lia e avisou para Pérola: — Fica aí, a gente já
volta.
As duas garotas percorreram alguns cômodos até entrarem no quarto. Sofia fechou a porta
e entrou na frente de Lia.
— E aí? — Ela esboçou um sorrisinho, ficando tão perto que Lia sentiu o cheiro do
perfume doce dela. — O que você quer falar?
Tentou se concentrar já que ficar tão próxima de Sofia estava embaralhando as palavras na
sua cabeça.
— … Quero me desculpar por ontem e… por hoje mais cedo. — Limpou a garganta,
deixando a voz mais firme: — Eu não devia ter te tratado daquele jeito. Acho que você já sabe
que eu sou uma pessoa difícil, por isso todo mundo se afasta de mim e…
— Como assim?
— Eu entendi tudo errado quando fui na sua casa. — E pela primeira vez, Lia notou que
Sofia ficou meio sem jeito para se explicar: — … Eu achei que estava sendo chata e enchendo a
sua paciência…
— Você tá passando tanto tempo comigo que minhas neuras estão te contaminando.
Sofia tirou o vestido da sacola e assim que o desembrulhou, ergueu a peça no ar,
parecendo maravilhada.
— Quando eu vi, achei a sua cara. Escolhi com base na minha medida, então, acho que vai
servir.
E sem aviso prévio, Sofia tirou o cropped verde pela cabeça e se livrou do short branco,
ficando apenas de calcinha e de sutiã tomara que caia.
Lia lutou para desviar o olhar do corpo da garota, fitando a cama atrás dela. Por que ela
sempre fazia isso na sua frente? Não sabia que a deixava em pânico, sem saber para que lado
olhar? Não. Claro que não sabia. Lia não revelou para ninguém que era bissexual.
Quando a roupa foi parar no corpo de Sofia, Lia a olhou de cima a baixo. Parecia que o
vestido foi feito sob medida para ela. Não havia nenhum pedaço de tecido sobrando. Cada
centímetro da peça valorizava seu corpo magro, ressaltando suas curvas.
Sofia se colocou na frente do espelho e observou a própria imagem com um largo sorriso.
Nesse momento, os olhos de Lia foram parar na bunda empinada da outra garota, salientada pelo
vestido.
— Lia, ficou lindo. — Sofia girou nos calcanhares, ajeitando as alças finas. — Estou me
sentindo uma grande gostosa.
Um segundo mais tarde, Sofia virou-se na direção de Lia e se jogou nos braços dela, a
abraçando.
Ela se afastou e Lia a observou caminhar até a cama, pegar o Air Force branco logo ao
lado e colocá-lo.
— Você vai sair? — perguntou.
— Vou. A Pérola e eu vamos no parque de diversões. — Ela ergueu o olhar para Lia. —
Você vai com a gente, né?
Demorou para responder. Se fosse só as duas, tudo bem, mas não estava a fim de gastar o
1% que restou da sua bateria social com Pérola. Não tinha nada contra a garota de cabelo rosa, só
não estava no clima para socializar.
— Não sei…
— Por favor. Eu prometo que vai ser legal. — Ela se aproximou, empolgada. — A gente
vai se divertir.
Lia a encarou por alguns segundos. Tinha dado um passo importante naquele dia — se
desculpando com Sofia —, então, nada melhor do que se gratificar com uma noite de diversões.
A música pop ecoava por toda a extensão do parque misturada à gritaria das pessoas que se
divertiam na montanha-russa e no elevador.
— Vamos jogar alguma coisa — Pérola sugeriu, se colocando ao lado dela e puxando-a na
direção das barracas de jogos.
Sofia olhou para trás, se certificando se Lia estava as acompanhando e as íris das duas se
encontraram por breves segundos. Virou o rosto para frente, o ventinho na sua barriga
prolongando o seu sorriso bobo. Não conseguiu tirá-lo da cara desde que se enfiou no vestido
que ela lhe deu.
A outra garota era mesmo imprevisível. Sofia se sentiu tão especial ao receber o vestido
que planejava usá-lo em várias ocasiões, afinal, não era todo dia que ganhava um presente da
garota na qual era apaixonada.
Assim que pararam na fila da barraca de bola ao alvo, Sofia aproveitou que Pérola
começou a digitar alguma coisa no celular e ficou ao lado de Lia.
— Claro.
Desde que elas saíram de casa, Sofia notou que Lia ficou calada na maior parte do tempo.
Só abria a boca para responder algo que lhe perguntavam.
— Claro que preciso — rebateu. — Você é minha amiga. Quero que se sinta bem.
— Eu sei, mas eu sou assim. — Ela forçou um meio sorriso. — Sou estranha.
Sofia acompanhou o sorriso que sempre revivia a borboleta no seu estômago e a fila
andou, obrigando-a a puxar a mão de Lia. As duas deram um passo à frente e ela espiou a garota
ao seu lado antes de soltar a mão dela.
Lia olhou para o lado e ela não conseguiu desviar os olhos da curva do nariz e do contorno
da boca dela. Nem a barulheira que tomava o local foi capaz de interferir na observação
minuciosa de Sofia. Lia era como a aurora boreal: misteriosa e exuberante, o que tornava
impossível desviar o olhar.
Ela virou o rosto para frente, deparando-se com a expressão curiosa da garota de cabelo
rosa. Um sorrisinho sacana estampava a sua feição e isso foi o que bastou para as bochechas de
Sofia esquentarem. Agradeceu mentalmente por estar de noite, assim, ninguém notaria seu rosto
ficando vermelho.
— Cala a boca. — Ela se aproximou da amiga e a empurrou com o quadril, pronta para
acertar a bola no alvo. — Quero ser a primeira.
Pérola riu e Sofia a ignorou enquanto o rapaz lhe entregava a bola. Para esquecer que foi
pega no flagra, mirou o centro do alvo e arremessou a bola com força, o círculo balançando na
parede com o acerto.
Ela comemorou com um gritinho e olhou para Pérola, se divertindo com a expressão
debochada da amiga.
— Aqui seu prêmio. — O rapaz estendeu um ursinho de pelúcia branco na direção dela.
Sofia pegou o urso com um sorriso de orelha a orelha e o exibiu para Pérola, que disse:
— Obrigada. Tenho certeza que você também vai ganhar. — E olhou para a garota de
cabelo rosa que estava na sua segunda tentativa. — Diferente da Pérola.
Assim que Pérola se aproximou depois de perder as três chances, toda amuada e sem
nenhum prêmio, Lia parou diante da barraca e acertou a bola no alvo na segunda tentativa,
ganhando o urso de pelúcia idêntico ao de Sofia.
— Por que só eu não ganhei nada? — Ela fez biquinho parecendo uma criança mimada. —
Não é justo.
— Não fica assim, amiga. — Sofia lhe entregou seu urso de pelúcia. — Pode ficar com o
meu.
— Ai, obrigada! — Ela abriu seu sorriso largo, exibindo quase todos os dentes da boca. —
Me sinto querida. — E colocou seus olhos grandes e serelepes em Sofia e depois em Lia. —
Onde vamos agora?
Minutos mais tarde, as três garotas montaram nos animais de madeira do carrossel, Sofia e
Lia com a atenção voltada para Pérola montada no cavalinho da frente, segurando os ursos de
pelúcia das duas ganhadoras. No instante seguinte, o brinquedo começou a girar e a garota de
cabelo rosa decidiu cantar a música da novela Carrossel em alto e bom tom, chamando a atenção
das pessoas:
— … Embarque nesse carrossel, onde o mundo faz de conta, a terra é quase o céu…
Sofia riu e lançou uma olhadela em Lia, que encarava Pérola como se ela fosse um ser de
outro planeta.
— Ela é assim mesmo — explicou por cima da cantoria da amiga. — E olha que nem usou
nada ainda.
A garota descansou a têmpora na barra de ferro do carrossel, o rosto voltado para Lia.
Observou o cabelo preto sendo jogado para trás pelo vento e a expressão voltando a ficar neutra,
beirando à seriedade.
— Eu também. É nostálgico.
— A roda gigante. É calma e você pode ver quase toda a cidade do alto.
— Cadê a Pérola?
Sofia virou o rosto na mesma direção em que Lia estava olhando. O cavalo de Pérola
estava solitário na sua frente.
Estava tão imersa nos detalhes do rosto da garota ao seu lado que nem percebeu que a
cantoria da amiga havia parado.
— Ué… — Olhou ao redor do carrossel e não a encontrou. — Ela estava aqui agora a
pouco.
— Sua amiga é mesmo doida. — Lia continuou sorrindo e Sofia concordou com a frase.
Quando o carrossel parou de girar, Sofia e Lia foram à procura da garota de cabelo rosa.
Elas andaram até a extremidade do parque, onde os caminhões baús ficavam estacionados, se
tornando o lugar favorito dos traficantes de drogas por ser afastado da multidão.
— Não é melhor ligar pra ela? — Lia sugeriu depois de não ter visto nenhum sinal de
Pérola.
— Nossa, sim. Você é um gênio. — Sofia tirou o celular do busto, procurou o contato da
amiga e levou o aparelho até a orelha.
A garota guardou o celular e deu alguns passos para trás, olhando ao redor. Algumas
pessoas perambulavam por ali, e apesar da pouca claridade, nenhuma delas tinham a principal
característica de Pérola: o cabelo rosa.
Sofia soltou um suspiro e deu mais um passo, batendo as costas em um corpo duro e alto.
— Opa, tá perdida?
Ela olhou para trás, dando de cara com um rapaz de camisa branca e sorriso lascivo.
— Desculpa. — E rapidamente saiu de perto dele, sendo secada de cima a baixo por olhos
depravados.
Ao chegar ao lado de Lia, estava prestes a dizer para as duas procurarem Pérola no meio
do parque quando ouviu:
Sofia semicerrou os olhos na direção da amiga, que carregava uma garrafa de vodka em
uma mão e os dois ursinhos de pelúcia em um braço.
— Sua louca! — Ela se aproximou, batendo a mão no ombro dela. — A gente estava te
procurando.
— Eu só fui atrás de uma bebidinha. — Pérola levou a garrafa aos lábios, dando um gole.
— Quer um pouco?
Sofia arrancou a garrafa da mão dela, dando um grande gole, a bebida queimando sua
garganta. Depois advertiu:
— Entendi, mamãe.
A garota a fuzilou com o olhar antes de se virar na direção de Lia, lhe passando a garrafa.
— Que isso, hein? — A voz do rapaz de camisa branca no qual Sofia trombou ecoou no ar.
— Só tem gostosa aqui.
Sofia revirou os olhos e girou nos calcanhares. O cara estava se aproximando e ela apoiou
as mãos na cintura, medindo-o de cima a baixo. Queria vomitar ao perceber o volume crescendo
nas calças dele.
— Vamos sair daqui — Lia alertou, os olhos grudados no cara de barraca armada.
As três garotas deram as costas para ele, mas o tarado conseguiu agarrar a barra do vestido
de Sofia e ela soltou um grito por reflexo.
O cara abriu a boca para falar alguma merda, mas foi impedido por uma garrafada na
cabeça, o vidro se espatifando e a vodka voando para todo lado numa explosão alcoólica e
cortante.
Pedacinhos de vidro e gotas de vodka acertaram o braço de Sofia, mas ela só conseguiu
prestar atenção no tarado caindo no chão e na mão firme de Lia apontando o vidro pontiagudo da
garrafa na direção dele.
Quem precisa dormir quando tenho
você comigo?
A noite toda, eu vou causar com
você
Sei que você me dá cobertura e você
sabe que eu estou do seu lado
Então vamos lá, vamos lá, vamos lá
Vamos tornar isso físico
Physical – Dua Lipa
O tarado apoiou uma mão no chão e tocou no rosto, o sangue começando a escorrer dos
cortes na sua pele.
Lia tirou a atenção dele e encarou a mão que segurava o resto da garrafa. Seus dedos
tremiam na mesma medida que a ficha começava a cair.
Ela começou a correr para longe do tarado, deixando os ursinhos de pelúcia caírem no
chão e Sofia seguiu atrás dela, mas Lia não saiu do lugar.
Continuou apontando a garrafa para o tarado com a mão trêmula e o coração palpitando no
ouvido, ignorando os burburinhos que começaram a surgir somados aos choramingos
angustiantes do cara.
Lia olhou na direção da garota de cabelo rosa e saiu do transe, correndo a toda velocidade
para fora do local.
Quando as três garotas deixaram o parque de diversões para trás, correndo pela calçada,
Lia parou de correr e passou a andar de costas, temendo que tivesse alguém atrás delas, mas não
avistou ninguém.
— Isso foi incrível! — Pérola gargalhou e entrou na frente dela, puxando-a para um
abraço, lembrando-a de soltar o resto da garrafa no chão, o vidro se estraçalhando ao bater no
concreto da calçada. — Eu senti a adrenalina na veia!
Pérola continuou sorrindo após o abraço e Lia a fitou, amedrontada. Não foi nada incrível.
Ela quase matou uma pessoa. Era louca. Uma psicopata.
Sofia se aproximou das duas com o olhar preocupado e Lia desviou a atenção para ela.
— Você tá bem?
Lia fez que sim com a cabeça e Sofia a abraçou com força, fazendo-a cambalear para trás.
— Obrigada. Aconteceu tudo tão rápido que eu fiquei em choque. — Ela sorriu ao se
afastar. — Você foi a minha heroína.
— Exagero? Se ele não tivesse agarrado o meu vestido, nada disso teria acontecido.
Lia abaixou o olhar no braço de Sofia e mesmo na pouca claridade advinda dos postes da
rua, percebeu pequenos pontos de sangue na pele branca.
Pérola, que estava observando as duas garotas a poucos metros de distância, perguntou:
O olhar surpreso de Lia foi parar na garota de cabelo rosa e Sofia se afastou, jogando as
ondas loiras do seu cabelo para trás.
Enquanto ela respondia com um largo sorriso, Lia cruzou os braços e fitou sua sombra
projetada na calçada.
Sofia não gostava dela. Não sentia nada por ela. Toda a aproximação das duas era baseada
na pena. Pena por ela ser uma pessoa sem amigos, infeliz e sozinha.
— Acorda, Lia — Pérola a chamou, perto do meio-fio. — Você não vem com a gente?
— Pra onde?
Lia a encarou, o desânimo tomando conta de todo o seu corpo. De repente, aquela noite
não parecia tão divertida. Preferia se isolar no seu quarto ao invés de fingir estar feliz perto de
Pérola e de Sofia. Não queria gastar o restante da sua energia tentando socializar com quem não
gostava dela de verdade.
— Acho melhor eu ir pra casa — disse. — Meu irmão falou pra eu não chegar muito tarde.
Ele deve estar preocupado.
Sofia e Pérola olharam para Lia como se ela fosse um ser de outro mundo.
Não respondeu. Apenas desviou os olhos de Sofia. Por que ela queria ficar perto dela? Lia
não tinha nada para acrescentar à sua vida.
— Pra quê?
— Vamos ligar pro seu irmão. Ele tá achando que você tem o quê? Quinze anos? — E a
garota de cabelo rosa ergueu uma sobrancelha. — Você não tem quinze, né?
— Me dá logo a porra desse celular! — Pérola disparou. — Seu irmão não manda na sua
vida, caralho.
Seu coração deu um pulo com o pedido agressivo, o rosto queimando, e ela tirou o celular
do bolso da calça, desbloqueou a tela, procurou o contato de Leandro e o entregou a Pérola.
A garota de cabelo rosa colocou a chamada no viva-voz e botou o olhar, agora sério, em
Lia.
— Oi, aqui é a Pérola, a amiga da Lia e eu preciso tratar um assunto sério com você: —
Fez uma breve pausa, respirando fundo. — Sua irmã não é nenhuma pirralha pra você mandar
nela e colocar horário pra ela chegar em casa!
— Você é surdo?! A Lia não vai pra casa hoje porque a noite é uma criança, meu querido!
Passar bem! — Antes que Leandro pudesse responder, ela encerrou a chamada e revelou com a
voz mais dócil: — Eu sempre quis falar isso. — E riu. — Viu como é fácil?
Lia pegou o celular da mão dela ainda incrédula com o que acabou de presenciar. De onde
saiu aquela garota?
Lia a olhou, engolindo a mágoa presa na garganta, e sem querer explicar suas ideias
evitativas, fez que sim com a cabeça.
Não demorou para as três jovens começarem a andar sem rumo pelas ruas da cidade.
Quando chegaram perto de um bar, Pérola avisou que precisava comprar uma bebida.
Lia e Sofia seguiram a garota até o interior do estabelecimento como se ela fosse a líder, e
assim que Pérola pegou quatro sabores diferentes de Corote do refrigerador, abriu seu sorriso
cheio de dentes na direção das meninas.
— O que você vai fazer com tudo isso? — Sofia perguntou, a desconfiança evidente na
sua voz.
— Relaxa, não vou ter uma overdose com bebida de mendigo. — O sorriso dela aumentou.
— Isso é só pra animar a nossa noite.
Lia cruzou os braços, lançando um olhar de julgamento em Pérola. Ela não parecia uma
pessoa muito equilibrada, não que Lia fosse centrada — tendo em vista o que fez naquela noite
—, mas a amiga de Sofia parecia desafiar todos os limites a cada segundo.
Depois de pagar pelas bebidas, Pérola se encaminhou para fora do estabelecimento, e Lia e
Sofia fizeram o mesmo.
— Vamos fazer uma aposta. — Ela tirou duas notas de cinquenta reais do bolso do short.
— Quem beber mais rápido, vai ganhar cem reais. Vocês topam?
— Eu topo.
— E você?
A garota olhou para a sacola cheia de bebidas que Pérola segurava. Já que estava ali, não
ia amarelar. Não tinha se desafiado a se divertir naquela noite?
Uma vez com a garrafa de Corote sabor menta na mão, Lia esperou Pérola acionar o
cronômetro no celular e quando ela deu largada, levou a bebida à boca, mal degustando o líquido
refrescante e gelado com as longas goladas.
Lia desviou o olhar para Sofia, notando a bebida de morango pela metade. Ela inspirou o
ar e engasgou, tossindo à medida que seus olhos se enchiam de lágrimas.
Lia continuou tossindo e Sofia se aproximou, dando batidinhas nas suas costas.
— Melhorou?
— Já que tá tudo sob controle, vamos ver quem bebeu mais. Estendam suas garrafinhas.
Fizeram o que ela disse. A garrafa de Sofia tinha menos bebida que a da Lia.
— A Sofi está na frente — Pérola anunciou e Sofia comemorou com um gritinho, fazendo
Lia sorrir. — Vamos pra segunda e última rodada!
— Quem será que vai ganhar duas notas de cinquentinha? — Pérola questionou de olho no
cronômetro.
As duas garotas continuaram bebendo o coquetel de suas garrafas como se a vida delas
dependesse disso. No momento que o cronômetro de trinta segundos foi zerado, Pérola disparou:
— Acabou o tempo!
Lia quase colocou sua bebida para fora, mas conseguiu engolir, a garganta queimando e o
coração disparado.
— E quem ganhou foi… — O suspense tomou conta da rua por alguns segundos. — A
Sofia! Parabéns!
A outra garota vibrou com mais um grito e uma dancinha antes de Pérola jogar as notas de
cinquenta na direção dela. Ela pegou o dinheiro no ar e se abanou com ele, toda convencida.
Lia a observou quase hipnotizada, o sorriso bobo esticando seus lábios. Sofia era tão
eficiente em tudo o que fazia que ela estava chegando à conclusão de que a garota nunca errava,
mas essa ideia não durou nem um minuto, pois logo lembrou que Sofia não gostava dela e seu
sorriso se desfez.
— Não fica triste, Lia. — Pérola atravessou o braço no ombro dela. — Você vai ganhar na
próxima vez.
— Não tô triste. — Deu um gole no restante da bebida para disfarçar. Pérola não precisava
saber que ela era uma tristeza ambulante. — Tô de boa.
Pérola assentiu.
— Vamos curtir uma musiquinha então?
Após reproduzir uma playlist de músicas animadas no celular, a amiga de Sofia começou a
dançar no meio da rua soluta, bebericando o Corote de tutti-frutti que combinava perfeitamente
com seu cabelo rosa.
— Não vem com esse papo de novo. — Ela a encarou, séria. — Fala: o que eu fiz dessa
vez?
— Nada.
— Lia, você nem falou direito comigo desde que saímos do parque.
A garota a fitou, prestando atenção nos olhos de Sofia brilhando na noite. Não adiantava
falar nada. Ela não gostava dela, assim como todo mundo que passava por sua vida. Era sempre
substituível. A última opção. Tão insignificante quanto a sua existência no mundo.
Antes de desviar o olhar do rosto de Sofia, Pérola surgiu na sua frente e a puxou para que
ela ficasse de pé.
— Vamos dançar.
Lia cambaleou na direção dela e quando ela a fez dar um giro ao som de "I Want To Break
Free" do Queen, ela deu risada, influenciada pelo álcool correndo nas suas veias.
Não demorou para Lia começar a dançar, toda desinibida. Naquele momento, nada mais
importava. Só deixou seus movimentos serem guiados pelo ritmo da voz do Freddie Mercury em
uma coreografia desajeitada e improvisada, assim como Pérola estava fazendo.
De repente, a vida parecia boa. Os pensamentos negativos não pesavam a sua cabeça e o
desânimo não sugava toda a energia do seu corpo. A cor e a alegria estavam de volta, lembrando-
a que ela merecia aproveitar todo o prazer do mundo.
Lia inspirou o ar fresco da noite, sorrindo mesmo depois que a música foi trocada por
outra na playlist de Pérola. Ela levou a garrafa à boca, bebendo o restante da bebida em um único
gole e quando abaixou a mão, alguém a puxou, interrompendo sua doce ilusão.
Uma buzina soou, se sobrepondo à música, e pneus rasparam no asfalto quando, por
pouco, ela não bateu a cara na de Sofia.
Lia olhou na direção do carro preto brecando e só então percebeu que se Sofia não tivesse
a puxado do meio da rua, ela teria sido atropelada.
— Mas que porra! — Pérola gritou da calçada. — Aprende a dirigir! Você quase atropelou
a menina!
Lia não conseguiu desviar o olhar da janela do carro lambuzada de Corote. Seu coração
disparou quando o motorista abriu a porta e projetou o corpo esguio para fora do veículo, a
expressão enfezada.
— Suas filhas da puta! — Ele começou a caminhar em passos rápidos na direção delas. —
Vocês são loucas?!
As três garotas correram a toda velocidade pela calçada, os tênis batendo com força contra
o concreto a cada impulso.
Pérola olhou para trás e logo virou o rosto para frente, gritando:
Elas aumentaram a velocidade e viraram a esquina da rua, Lia quase derrapando no chão
liso. Sofia agarrou a mão dela e ela se obrigou a acompanhar o mesmo ritmo da corrida da outra
garota já que seu corpo bambo mais atrapalhava do que ajudava.
Correram por mais alguns metros até Pérola adentrar um beco escuro, sumindo de vista.
Lia e Sofia seguiram atrás dela e avistaram uma caçamba cheia de entulhos no vão escuro.
Assim que se esconderam atrás da caçamba, Lia percebeu a playlist de Pérola tocando e
avisou com a voz entrecortada:
Mas isso não durou muito tempo, pois Pérola desatou a rir, a risada esganiçada ecoando
pelo beco.
Sofia soltou a mão suada de Lia e tapou a boca de Pérola, a risada da garota se
transformando em gemidos abafados.
Lia revirou os olhos, encostou a testa na caçamba enferrujada e tentou acalmar seus
batimentos cardíacos e sua respiração acelerada inspirando e expirando o ar lentamente. Que
noite insana foi aquela?
Depois de ficarem agachadas por uns dez minutos atrás da caçamba, Sofia tirou a mão da
boca de Pérola, que felizmente parou de rir, e comentou:
— Acho que ele já deve ter voltado pro carro a essa altura.
Lia concordou com a cabeça, o corpo cansado fazendo-a sentar no chão imundo.
— E serviu de alerta pra eu pensar duas vezes antes de andar com você, caso contrário,
vou perder meu réu primário — Sofia soltou.
— Que isso, Paty. Eu sei que você me ama e nunca vai recusar um convite meu.
Sofia revirou os olhos verdes e Lia encostou a cabeça na parede de tijolos. Estava exausta
e suas pálpebras mal conseguiam se manter abertas. Estava de volta à sua vidinha miserável e
queria sua cama o mais rápido possível.
— Você está bem? — Sofia a questionou pela décima vez naquela noite.
— Estou morta.
— Vem cá. — Sofia a envolveu com os braços, trazendo a cabeça dela para perto de seu
peito. — A gente passou dos limites hoje.
Lia concordou sem dizer nada, fechando os olhos e sentindo o cheiro do perfume
adocicado de Sofia.
Pensando bem, aquele simples abraço estava sendo muito mais confortável que o seu
travesseiro. Era muito bom escutar o coração de Sofia batendo, o som acalentador da sua
respiração, sentir as carícias no seu cabelo e o calor da pele na sua.
Não trocaria tudo aquilo por nada. Nem por sua cama fria e aconchegante.
E eu disse, "Oh, meu Deus, seu
corpo está falando minha língua"
Eu disse para a minha mãe que não é
uma fase, porque
Eu beijei uma garota e gostei
Eu bebi ela como um coquetel
Eu beijei uma garota e ela gostou
É melhor do que eu imaginava
girls, girls, girls – FLETCHER
Sofia virou o resto do licor de morango no copo descartável e voltou a dançar no ritmo da
música eletrônica que vibrava por todo o seu corpo, o álcool queimando a sua garganta.
Lia apareceu na sua frente, o olhar atento a cada movimento seu, e um sorriso automático
surgiu nos lábios cheios de gloss de Sofia. Estavam em mais uma festa, mas dessa vez, o evento
estava acontecendo em um amplo salão de festas que cabia mais de trezentas pessoas.
— Acho que preciso de mais um pouco de álcool pra entrar na sua vibe — disse, mesmo
depois de beber um copo cheio do coquetel de frutas vermelhas. — Quer que eu pego uma pra
você?
— Por favor.
Lia lhe deu as costas, abrindo caminho na multidão e o olhar de Sofia caiu na bunda
tampada pelo minúsculo short jeans preto e desfiado, o quadril gingando enquanto ela
caminhava.
A garota levou o copo aos lábios novamente para não se perder nos seus pensamentos
impuros e só então lembrou que sua bebida havia acabado há mais de um minuto.
Lia estava cada vez mais desconfigurando o seu cérebro. Sofia precisava focar em outras
coisas antes que seus pensamentos a engolissem de uma vez por todas.
Ela girou nos calcanhares e descartou o copo na lixeira mais próxima, caminhando entre as
pessoas. Seu olhar vagou pelo local até encontrar uma cabeça rosa debruçada sobre a mesa
redonda.
Sofia avançou na direção da mesa e enfiou a mão nos fios de cabelo coloridos e
desbotados de Pérola, puxando a cabeça dela para cima. A garota virou o rosto dormente,
revelando uma carreira de cocaína cheirada pela metade.
— Calma, daqui a pouco você volta pro seu pó. — Ela sorriu. — Eu só não quero ficar
sozinha.
Pérola olhou ao redor de Sofia, a pupila dilatada pelo efeito da droga deixando sua visão
meio borrada.
— E você só pode estar fingindo porque eu sei que você gosta dela!
Sofia inspirou fundo e cruzou os braços, sentindo falta de uma bebida. Ela odiava ser tão
óbvia.
— Você é tonta ou o quê? — Ela limpou uma lágrima no canto do olho e se recompôs. —
Sofi, a Lia não é hétero. Seu gaydar tá quebrado por acaso?
O coração dela deu um pulo com a impressão da amiga. Como assim Lia não é hétero?
— Não, mas…
— Mas nada! Ela não é hétero e ponto! Você deve ter inventado isso porque está com
medo.
Sofia ficou calada, considerando o que Pérola disse. Ela estava com medo, sim. Com medo
de ganhar um pé na bunda a qualquer momento. Estava prestes a explicar o seu ponto, quando a
amiga anunciou:
Sofia olhou para trás. Lia estava se aproximando com dois copos de cerveja na mão.
— Héteros não olham pra você do mesmo jeito que ela olha, Sofi. Acha que eu não
percebi aquele dia no parque de diversões? — O sorriso de Pérola se alargou. — Ela tá caidinha
por você.
A garota abriu a boca para falar alguma coisa contra, mas era tarde demais. Lia parou ao
lado dela e lhe estendeu o copo cheio.
Sofia pegou a bebida, forçando um sorriso agradecido, mas logo percebeu sua mão
trêmula. A cerveja quase derramou com o seu nervosismo e ela respirou fundo, tentando se
acalmar. O que estava acontecendo com ela?
— Não, tá tudo bem, sim — respondeu, a voz aguda. — E-eu só preciso ir no banheiro.
Ela deu as costas para as duas meninas e caminhou em passos rápidos até uma porta
amarela no canto do salão.
Uma vez dentro do banheiro, Sofia levou o copo aos lábios, dando longos goles na cerveja
gelada, esperando que isso controlasse as reações do seu corpo. Se aproximou da pia de
mármore, ignorando seu reflexo preocupado no espelho.
A garota bebeu mais um pouco da cerveja, deixando-a pela metade. Passou a mão pelo
cabelo, jogando as mechas onduladas para trás e respirou fundo de novo. Isso era algum tipo de
piada da Pérola?
E como respostas para sua pergunta, imagens de Lia começaram a preencher a sua mente.
Lia a chamando de linda quando a convidou para se arrumar na casa dela antes da festa; Lia
desligando a ligação na sua cara quando ela contou que Milena a beijou; Lia lhe dando o vestido
de presente…
Os sinais estavam todos aí, mas foi tão tapada que só se deu conta naquele instante.
Mas… será que não estava sendo precipitada demais? A opinião de Pérola não era
confiável, afinal, ela vivia mais drogada do que sóbria.
Estava se deixando levar pela emoção quando, na verdade, precisava ser racional. Pérola
não sabia o que estava falando. Os olhares de Lia podiam ser qualquer coisa.
Ela não sabia a resposta. Estava ainda mais confusa. Pérola conseguiu bagunçar todo o seu
cérebro em menos de cinco minutos com suas impressões fora da realidade.
Não ia mais acreditar na garota de cabelo rosa, caso contrário, iria passar noites em claro.
Como a bebida gelada não serviu para acalmar seus pensamentos desenfreados, largou o
copo sobre a pia, apertou a torneira e deixou a água correr, colocando as mãos no líquido frio,
arrepios percorrendo sua pele. Mas isso não durou muito tempo, pois a porta do banheiro foi
aberta e o rosto de Lia surgiu no espelho, fazendo o seu coração parar.
Sofia podia muito bem ter morrido naquele momento. Seu corpo todo gelou e seus
músculos tencionaram, deixando-a dura como uma pedra.
— Claro... — respondeu com a voz superficial como se tivesse corrido uma maratona. Ela
se forçou a olhar para Lia, um sorriso engessado se abrindo no rosto mais branco que a cocaína
de Pérola.
— Tem certeza?
Sofia assentiu e a água da torneira parou de correr. Ela segurou firme na beirada da pia e
virou todo o corpo na direção de Lia. Seu coração batia no peito feito uma britadeira. Molhou os
lábios, lambendo o gloss de morango que se espalhou na língua seca. Lia abaixou o olhar na
boca dela e Sofia fez o mesmo, notando os lábios rosados e convidativos da outra garota.
Ela estava prestes a se virar para o espelho, esperando não estar parecendo uma idiota,
quando Lia encurtou a pequena distância entre elas, o peito das duas roçando um no outro.
A respiração quente da outra garota bateu no seu rosto e Sofia a sorveu como o ar fresco
do verão. A ansiedade ficou em segundo plano assim que a mão de Lia foi parar na sua cintura e
o rosto dela foi de encontro ao seu.
A ponta da língua de Lia abriu espaço entre os lábios de Sofia e antes que ela concedesse o
lugar, recuou o rosto, o olhar descrente vidrado na expressão perplexa da outra garota.
Houve alguns segundos de silêncio e de puro choque antes de Lia abrir a boca para falar
alguma coisa, mas Sofia não esperou nenhuma palavra sair porque não se aguentou e puxou o
rosto dela para perto, beijando-a com fervor.
Isso era tudo o que mais desejava: sentir o gosto amargo da cerveja que Lia bebeu na sua
língua. Tudo bem que aquele não era o seu sabor original, mas estava valendo. Cada deslize da
língua dela na sua era como ir ao céu e voltar: suave, acolhedor e imensurável. A cada pausa para
respirar, seus lábios ficavam frios e desejosos pelo fogo que a pele dela emanava. Queria se
perder no calor e no acalento da outra garota. Sentir o friozinho na barriga de novo e de novo.
Lia a pressionou contra o parapeito da pia, o corpo colando no seu com o beijo
necessitado. Sofia mergulhou os dedos no cabelo macio dela e inspirou seu perfume cítrico à
medida que a mão da outra garota foi parar na sua cintura, fazendo Sofia desmanchar com o
toque.
Quando Lia afastou o rosto para encher os pulmões de ar, agarrou a mão dela e a puxou na
direção das cabines vazias. A garota a seguiu sem protestar, praticamente anestesiada com tudo o
que acabou de acontecer.
Ao entrarem na cabine, Lia bateu a porta e pressionou Sofia nela, mirando-a de forma
sagaz antes de voltar a beijá-la com avidez, os dedos se emaranhado nos fios loiros até tocarem
sua nuca. Sofia aproveitou para trazer o corpo dela para mais perto do seu, deslizando as mãos na
bunda macia da garota.
Sofia deu as costas para Lia e passou a mão no cabelo, ajeitando as mechas, os lábios
formigando de tanto beijar.
— Sai. — Ela começou a fechar a porta, deixando a garota de cabelo rosa de fora. — A
gente precisa conversar agora.
Sofia grudou as costas na madeira e olhou para Lia, um sorriso grogue se desprendendo de
seus lábios.
— Um beijo?
Ela riu.
— Eu nunca te disse isso. — Ela cruzou os braços, os olhos semicerrados. — Você achou
isso só porque namorei com o Mateus?
— Eu sou bi. — Ela fez uma pausa. — E você foi a primeira garota que eu beijei.
— Não acredito…
— É sério.
O sorriso dela ficou mais largo do que o de Pérola e ela se aproximou, diminuindo a
distância entre elas.
— Nesse caso, eu tenho uma grande responsabilidade nas mãos. — Puxou Lia pela
cintura. — Preciso te impressionar.
A outra garota deu um sorriso. O sorriso que a deixava cada vez mais fraca.
Sofia não estava esperando ouvir aquilo. Ela passou todo aquele tempo acreditando que
Lia era hétero e que só queria uma amiga, mas se enganou completamente. Seu gaydar não
estava mesmo funcionando.
— Por que não? — E ela não esperou uma resposta. — Eu ia te contar aquele dia que a
gente saiu pra correr no parque, mas… não tive coragem.
Sofia assentiu. Ela lembrava muito bem daquele dia. Parecia que Lia tinha algo muito
importante para dizer, mas, do nada, falou que esqueceu.
— Mas graças à bebida, atitudes falam mais do que palavras — Lia continuou e riu.
— Vamos fazer um brinde à cerveja — Sofia brincou e fitou o rosto da garota à sua frente
por alguns segundos.
— Se gostei? — Fez uma breve pausa. — Eu amei, Lia! — Ela quase deu pulinhos de
felicidade. — Foi o melhor beijo desde que me assumi lésbica. Amei tanto que quero repetir.
O sorriso de Lia aumentou e a garota não suportou ficar com a boca longe da dela por mais
nem um segundo. Não depois que sabia o prazer que era beijar aqueles lábios macios e
apetitosos. E foi isso o que se viu fazendo. Beijou-a de novo, dessa vez, em movimentos mais
lentos, gravando na memória a textura, o aroma e o sabor daquele toque.
Depois que terminaram de se beijar, Sofia lhe deu a mão e a puxou para fora da cabine, o
sorriso tão brilhante quanto um comercial de creme dental.
Pérola, que estava sentada em cima da pia, abaixou o olhar serelepe nas mãos dadas e
soltou:
— Vamos comemorar! — Ela saiu da pia em um pulo e abraçou as duas meninas, quase as
derrubando de tão empolgada.
Dito isso, as três garotas deixaram o banheiro para trás e beberam como se não houvesse
amanhã, Sofia e Lia alternando beijos e álcool na mesma medida, parando só na volta para casa
em plena madrugada.
Foi então que Sofia se deu conta de que aquela noite estava no topo das noites mais
incríveis da sua vida. Não à toa, o sorriso abobalhado não saiu da cara dela nem mesmo quando
ela deitou a cabeça no seu travesseiro.
*Aviso de conteúdo sensível: nudez e sexo explícito
O teto bege estava sendo iluminado pela luz solar que entrava pela janela aberta, uma faixa
alaranjada se destacando perto da lâmpada apagada. Lia a observou, inspirando o ar da tarde
agradável enquanto seus pensamentos se encaminhavam para outro lugar.
Para as lembranças da noite anterior. Para os lábios delicados de Sofia se movendo nos
seus em uma coreografia lenta e poética.
Como ela foi corajosa. Se não tivesse sob efeito da bebida alcoólica, nem conseguiria
chegar bem perto dela sem antes ter um bi panic. Não que estivesse romantizando a droga lícita,
mas graças ao álcool seu desejo se tornou realidade. E se orgulhava do que fez.
Estava prestes a se virar de lado na cama quando o som da campainha soou ao longe.
Era ela.
Quando abriu a porta, avistou Sofia do outro lado do portão, o babado na barra do vestido
vermelho e florido balançando com o vento.
Lia avançou na direção dela com os passos controlados e assim que a outra garota parou ao
seu lado — os olhos verdes combinado com o jardim atrás delas — , ela não conseguiu segurar o
sorriso.
— Oi. — Sofia cruzou as mãos atrás das costas, o olhar cheio de expectativa.
Sofia fez o que ela disse e Lia seguiu atrás dela, tentando manter o olhar nas suas costas e
não na sua bunda. A chamou até ali porque tinha tempo o suficiente para conseguir mais um
beijo e, quem sabe, algo a mais.
Ao entrarem na sala, Lia fechou a porta e quando virou-se, o rosto de Sofia veio de
encontro ao seu, fazendo suas costas baterem na madeira, lábios quentes e macios se tocando
com certa avidez.
Lia retribuiu o beijo, a língua de Sofia encostando na sua de forma necessitada. Ela levou a
mão ao cabelo loiro e sedoso, e inclinou o queixo dela, explorando sua boca com vontade.
Sofia a pressionou contra a porta, as mãos descendo pelas costelas e por fim, pela cintura
de Lia. Precisando de fôlego, a garota recuou o rosto e falou:
Nem foi preciso uma resposta verbal da parte de Sofia, pois ela agarrou a mão de Lia e a
puxou na direção da escada como se fosse a dona da casa.
Uma vez no quarto, Lia foi guiada de costas até sentar na cama, Sofia abrindo um sorriso
lascivo com o feito.
Isso só serviu para umedecer a sua calcinha.
Sofia sentou no seu colo, as coxas envolvendo seu quadril ao mesmo tempo que os lábios
suaves tocaram os seus de novo. Os dedos delicados e inflamáveis se infiltraram por dentro da
sua regata, subindo devagar e a arrepiando inteira.
Ela não suportava mais tanta tentação. Precisava falar. Desviou a boca da de Sofia pela
segunda vez e pediu em um sussurro:
— Transa comigo?
— Eu ouvi direito?
— Ouviu — respondeu sem a menor vergonha na cara, as mãos deslizando pelas coxas
dela. — Quero transar com você. Agora.
Sofia pegou o rosto de Lia e o inclinou, olhando fundo nos olhos castanhos.
Lia riu e aproveitou a proximidade para tacar um beijo rápido nela, inalando o perfume da
sua pele. Sofia se moveu para mais perto e roçou as pontas dos dedos nos braços da garota,
parando apenas para agarrar a barra da regata, subindo-a até arrancá-la pela cabeça, jogando-a no
chão.
A dona do quarto observou o olhar de Sofia caindo sobre seus seios cobertos pelo sutiã
preto e, em seguida, na marca horizontal próxima ao umbigo.
Na cicatriz rosada que se formou na sua barriga depois que tentou se suicidar com a faca.
— Isso foi quando… eu tentei me matar... — explicou, nem um pouco orgulhosa do que
fez. Por causa disso, começou a passar longe de croppeds, incluindo biquínis. Não queria chamar
atenção para o próprio corpo. Já não bastava o peso que carregava dentro de si mesma.
Sofia a deitou com cuidado na cama e a olhou de cima, montada em cima dela.
— Você continua linda, Lia. Eu sou sortuda pra cacete por estar admirando toda a sua
beleza de perto.
Lia ficou levemente impressionada. Sofia só deve ter dito aquilo para fazê-la se sentir
melhor, mas como não queria estragar o clima, acabou ficando calada, se preocupando em
deslizar as alças finas do vestido dela pelos ombros, a peça caindo alguns centímetros, revelando
os peitos pequenos com os mamilos rosados e eriçados por baixo das mechas onduladas.
Sofia interrompeu o beijo e abriu o fecho do sutiã de Lia, largando a peça íntima em algum
canto do quarto antes de abocanhar seu seio, o polegar e o indicador apertando um mamilo
arrepiado. Lia arfou com o toque quente e molhado, dobrando um joelho, tentando controlar a
pulsação no meio das suas pernas.
Quando a outra garota começou a chupar o outro mamilo, ela deu um jeito de se livrar do
shortinho de moletom, chutando-o no ar.
Sofia desviou a boca para a região entre os seus peitos e lambeu a pele de leve, descendo a
boca em uma trilha invisível até sua virilha, as mechas loiras caindo em cascatas na barriga de
Lia, fazendo o cheiro de flores do shampoo preencher suas narinas. Instantes depois, ela ergueu o
rosto, engatinhou por cima do corpo da garota e não demorou para enfiar a mão dentro da
calcinha dela, roçando dois dedos na região ultrasensível.
— Você vai me provocar até quando? — Lia perguntou, a respiração se tornando audível
com os dedos de Sofia no seu clitóris.
Lia ia morrer de tesão. Fazia muito tempo que não transava e tinha esquecido o quão
prazeroso era ser tocada por alguém que gostava.
Sofia colou a boca na de Lia de novo, abafando qualquer som que a garota emitia.
Gemidos escaparam da sua garganta e ela mexeu o quadril com os movimentos circulares
dos dedos hábeis de Sofia.
Quando estava prestes a gozar, a outra garota tirou a mão da sua calcinha e ela desviou os
lábios para perguntar:
Lia se arrepiou dos pés a cabeça com a frase. Poderia ter gozado só de ouvir aquilo.
Sofia tirou sua calcinha, a deixando completamente nua e abriu ainda mais suas pernas,
aproximando a boca da boceta molhada. A garota se desmanchou na própria cama com o ar
quente batendo na pele exposta e no momento que a língua deslizou no seu clitóris, lambendo e
chupando tudo, Lia agarrou o lençol abaixo dela com força, afundando uma mão no cabelo de
Sofia enquanto ela segurava firme nas suas coxas.
De onde saiu aquela deusa? Ela a estava fazendo gemer igual uma cadela no cio.
A garota puxou as mechas loiras ao mesmo tempo que perdia total controle do próprio
corpo.
E foi interrompida pela onda de prazer tomando cada músculo trêmulo, explodindo na
língua de Sofia. Gemidos incontroláveis escaparam de sua boca e seu corpo afundou no colchão,
a tensão se esvaindo aos poucos.
A expressão maliciosa da outra garota surgiu no seu campo de visão, dedos macios se
deslizando com facilidade nas curvas suadas de Lia.
Sofia riu e deitou sobre ela, os mamilos rígidos tocando nos peitos suados da garota.
— Eu ainda não acabei — contou e a beijou, compartilhando o sabor ácido da sua boceta
na sua língua.
Lia envolveu as pernas no quadril de Sofia, que pegou sua mão, guiando-a por dentro da
calcinha vermelha, os dedos finos dela tocando a intimidade quente e encharcada da garota em
cima dela. Por sorte, estava com as unhas curtas. De repente, Sofia parou o beijo e soltou:
Um sorriso sacana se abriu nos lábios de Lia e ela deslizou o dedo até encontrar o clitóris
sensível, fazendo o mesmo que Sofia fez com ela, o olhar vidrado na expressão enlouquecida da
outra garota, fios de cabelo sendo jogados para trás ao erguer o rosto na direção do teto. Nesse
momento, Lia percebeu a pequena tatuagem do Espelho de Vênus se destacando ao lado da
virilha dela.
— Fiz aos dezoito... — Sofia revelou com a voz entrecortada, se movendo sobre os dedos
de Lia. — … Você gostou?
Ela respondeu girando os dedos com mais força sobre o clitóris de Sofia, fazendo ela
gemer mais alto.
— Espero que isso tenha respondido — disse sem tirar a atenção dos seios empinados da
outra garota.
A respiração rápida de Sofia se misturou aos gemidos dela, os ruídos ecoando através da
janela e da porta abertas. A brisa fresca bateu na pele nua das duas meninas, o pôr do sol
escurecendo o quarto e projetando as sombras dançantes de ambas na parede.
Sofia tirou a mão da dona do quarto de dentro da sua calcinha e se livrou da peça,
montando sobre a virilha de Lia e esfregando a boceta lambuzada na dela, abrindo mais as perna
da garota para que ela conseguisse se encaixar perfeitamente.
Lia mergulhou os dedos no próprio cabelo, a cama rangendo com as reboladas frenéticas
de Sofia no meio das suas pernas, a deixando sem fôlego.
A outra garota se esfregou com mais força como se quisesse se fundir ao corpo dela, os
gemidos tomando todo o quarto e sendo ouvidos ao longe pela vizinhança, a cabeceira da cama
batendo na parede com a fricção alucinante.
Os olhos verdes caíram sobre a feição dela e Sofia fechou a mão no seu pescoço,
aumentando a velocidade de seus movimentos, prestes a quebrar a cama. Ela se inclinou para
beijar os lábios entreabertos de Lia, que agarrou a bunda empinada, afundando as pontas dos
dedos na carne macia.
Quando atingiram o ápice do prazer, gozando uma na outra, o corpo banhado de suor de
Sofia desabou sobre o de Lia, a respiração acelerada se misturando a dela ao beijá-la com avidez.
Lia encarou o teto depois do beijo, a escuridão caindo sobre elas como um cobertor quente
no frio da madrugada.
O silêncio começou a dominar o ambiente e Lia envolveu o corpo quente de Sofia com os
braços, sentindo o coração dela batendo contra o seu peito.
Estava imersa na calmaria que emanava da outra garota e não queria se afastar dela nunca
mais.
Sofia levantou o rosto, jogou o cabelo bagunçado para trás e apoiou o queixo no cotovelo,
colocando uma mecha do cabelo preto de Lia atrás da orelha.
— E aí? — Ela deu um meio sorriso. — Como é transar com uma mulher?
Lia a fitou através da luz alaranjada dos postes que entrava pela janela.
— Com uma mulher eu não sei, mas com você é simplesmente surreal. Muito melhor do
que eu imaginava.
As bochechas de Lia queimaram mesmo depois de todo o sexo sem pudor que elas
fizeram.
— Mais ou menos.
Lia foi a primeira a acordar na manhã seguinte. A luz solar ultrapassava o vidro da janela,
os pássaros assobiavam no lado de fora e ela observava Sofia dormindo igual um anjo ao seu
lado. Logo, não resistiu à ideia que surgiu na sua mente.
Com muito cuidado para não acordá-la, tirou o braço dela de cima de sua barriga, afastou o
lençol e saiu devagar da cama. Ao pegar a câmera instantânea sobre a escrivaninha, foi para cima
do colchão e mirou a lente da câmera no rosto adormecido, uma mecha loira e ondulada de
cabelo caindo sobre o nariz.
O flash brilhou na cara de Sofia e a claridade deve ter ajudado a despertá-la, pois ela
começou a abrir os olhos, tentando se situar enquanto a polaroid saía da câmera.
Sofia piscou, botou o olhar na garota à sua frente e só então, observou a câmera e a foto na
mão dela.
— Bom dia… — Ela sentou, esfregando a mão nos olhos. — O que você está fazendo?
— Deixa eu ver.
— Quero ser acordada assim agora — Sofia revelou depois de afastar o rosto.
Lia acompanhou o seu sorriso e a empurrou contra o colchão, indo para cima dela como
uma leoa pronta para pegar sua presa, grudando os lábios nos dela mais uma vez.
Depois de darem uns amassos por alguns minutos, as duas tomaram café na companhia do
silêncio acolhedor que pairava na casa dos Belmonte naquele domingo ensolarado.
Quando voltaram para o quarto, Lia teve a impressão de que as horas passaram como em
um piscar de olhos. Sofia mal terminou de ler o terceiro capítulo do livro Confesse e já era uma
hora da tarde. Obviamente tinha perdido a noção do tempo só porque a outra garota estava
sentada na sua cama.
Era impressionante.
Mas não tão impressionante quanto as palavras que usou para descrever Sofia no seu
diário. Ela estava indo para a próxima linha, pronta para escrever mais um parágrafo só sobre o
jeito de ser da garota quando mãos delicadas deslizaram sobre seus ombros, parando perto dos
cotovelos e lhe causando certo deleite.
— Nada. — Ela estava prestes a fechar o diário, mas Sofia foi rápida o suficiente para
pegá-lo, erguendo-o no ar. Lia girou na cadeira e fitou a garota usando o vestido vermelho do dia
anterior com um sorriso vitorioso no rosto. — Devolve.
— Eu sei que você está escrevendo sobre mim — revelou, empolgada. — Eu vi meu nome
aqui.
— Não.
— Eu também não.
Lia esticou o braço para pegar o diário, mas Sofia o afastou da sua mão, alargando o
sorriso.
E sem aviso prévio, Lia a empurrou contra a cama e aproveitou que ela se desequilibrou
para arrancar o diário da sua mão.
— Você não vai me deixar ler mesmo? — Sofia perguntou enquanto Lia saía de cima dela.
Sofia ajeitou o cabelo, jogando as ondas desfeitas para trás e ficou de pé, se encaminhando
na direção da porta.
Lia ficou embasbacada quando ela passou para fora do seu quarto, sumindo no corredor.
Ela nem ao menos olhou na sua cara ou disse tchau. A sensação de abandono começou a tomar
conta do seu interior e o arrependimento lhe atingiu como um soco no estômago.
Olhou para a cama bagunçada, o lençol amassado denunciando que Sofia esteve ali há um
minuto, e parou a atenção na porta.
Logo, avançou pelo quarto, esperando reverter a situação. Seguiu em passos rápidos pelo
corredor, levando o diário junto, e ao descer o primeiro degrau da escada, precisou segurar firme
no corrimão de madeira, o coração disparando com a aparição inesperada.
— Filha da…
O som da gargalhada de Sofia ecoou no ar e Lia ficou tentada a entrar no quarto e bater a
porta na cara dela com a brincadeira idiota.
Sofia envolveu a cintura dela com o braço, ficando um palmo mais baixa por estar sobre o
degrau abaixo do de Lia e perguntou:
— Só pra você!
— Ai, não fica brava — ela disse em uma voz manhosa. — Eu só estava brincando.
— Não teve graça. Eu achei que você estava mesmo brava comigo.
— Sou idiota, mas nem tanto — dito isso, Sofia puxou o rosto dela para baixo e selou os
lábios nos dela.
— Pode ler.
— Lê logo — a interrompeu. — Sei que você não vai sossegar até ler isso.
— Tá bom. — Ela abaixou o olhar na página e começou a ler em voz alta para o desespero
de Lia: — Sofia é maravilhosa. — Fez uma pausa, olhando na direção da garota, o sorriso
orgulhoso estampado na cara. — Já começou bem.
Lia cobriu o rosto com a mão enquanto sentava na beirada da cama, querendo evaporar da
frente dela. Por que se colocava nessa situação humilhante?
— Ela é tudo o que eu mais quero e a nossa conexão é tão forte que às vezes eu até
duvido. Fico tão à vontade perto dela que acho que estou fora de mim. É espantoso e ao mesmo
tempo sensacional, que nem ontem à noite. — Sofia ficou calada por alguns segundos, fitando a
página do diário. — Aliás, a noite de ontem foi maravilhosa. Nunca senti tanto prazer em toda a
minha vida.
Lia aproveitou para esconder o rosto com o travesseiro, deitando no colchão enquanto
escutava a risada abafada de Sofia.
— Uau — a outra garota comentou, toda risonha. — Eu vou fazer uma cópia dessa página,
emoldurar e colocar na parede do meu quarto.
— Eu quero morrer! — Lia guinchou, ainda com o travesseiro tampando sua cara.
Sofia foi para cima dela, largou o diário ao lado e tirou o travesseiro do rosto vermelho da
garota.
— Eu amei — contou com um sorriso de orelha a orelha. — Ninguém nunca escreveu algo
assim sobre mim.
— Não, você é autêntica e eu amo isso. — Sofia encostou a ponta do nariz no dela antes
de beijar seu lábio inferior, puxando-o no final.
Lia tateou sua nuca, prendendo os dedos nos fios ondulados e inclinou o rosto, tomando a
boca dela com a sua, a língua tocando na dela.
Sofia alisou a coxa de Lia e se encaixou entre as pernas dela, o vestido subindo e
revelando parte da sua bunda.
As duas garotas estavam tão envolvidas no beijo que nem escutaram os passos no corredor
e muito menos notaram a figura alta que parou entre o batente da porta aberta.
— Lia.
O corpo da garota gelou ao ouvir seu nome e uma Sofia constrangida saiu de cima dela no
mesmo instante, os olhares atônitos parando no dono da voz.
— Leandro? — Lia perguntou, saindo da cama e ajeitando suas roupas. — Que horas você
chegou?
Leandro tirou a atenção de Sofia e fez o que Lia disse, parando perto da escada.
— Desde quando você beija meninas? — ele quis saber, indo direto ao ponto.
— Desde sexta.
— O quê?
— Eu devo me preocupar?
A garota riu.
— Não começa.
— Bissexual?
— É.
— Não precisa ficar com essa cara — Lia continuou e deu um tapinha no braço dele. —
Você devia ficar feliz por mim, isso, sim.
— Tá bom, tá bom. Só não quero ter dor de cabeça depois, hein? — Em seguida, ele lhe
deu as costas e seguiu na direção do seu quarto, agindo como se ela tivesse lhe contado a
previsão do tempo.
Lia apenas se encostou na parede e abriu um sorriso. Seu irmão a aceitou mais fácil do que
imaginava. E ela logo concluiu que isso era um claro sinal de que as coisas estavam se
encaminhando para dar certo na sua vida.
Tudo o que você diz me faz desviar o
olhar
Eu não quero saber, então eu vou
esquecer
Amor, eu tenho problemas, mas eu
me amo
(Amor, eu tenho problemas, mas eu
me amo)
Talk – Salvatore Ganacci
A água fria envolveu a cintura de Sofia e ela afundou um pouco mais, se apoiando na
beirada da piscina. Arrepios percorreram seus braços e ela deu um gole na margarita para se
esquentar.
O sol refletia na água cristalina e ela forçou as vistas na direção da bóia de flamingo,
observando Lia sentada sobre ela com o maiô preto colado no corpo, ressaltando suas curvas.
Tomou mais um pouco da margarita, desviando o olhar da outra garota. Meia dúzia de
pessoas nadava perto de Lia e mais meia dúzia tomava sol no chão e nas espreguiçadeiras
enquanto as batidas de Trap se misturavam aos falatórios e risadagem, e a fumaça almiscarada
dos beques dominava a área livre como se fosse o videoclipe do Snoop Dogg e Wiz Khalifa.
Lia aproximou-se com a sua bóia e Sofia tirou a atenção dos jovens chapados, esboçando
um sorrisinho. A outra garota esticou o pescoço e quando faltava um centímetro para os lábios se
tocarem, o olhar dela foi atraído para a pessoa que estava servindo bebidas do outro lado da
piscina.
— O que foi?
— O que ela está fazendo aqui?! — Sofia questionou para ninguém em específico,
acompanhando cada passo de Milena com o olhar.
— Tirar satisfação dessa palhaçada — dito isso, a garota avançou rapidamente pela
beirada da piscina, deixando rastros de água por toda a superfície.
Passou pela porta de vidro e depois de deixar um cômodo para trás, avistou Pérola sentada
no sofá com uma garrafa de cerveja na mão, tagarelando com alguns convidados.
A garota de cabelo rosa ergueu o olhar, abriu seu largo sorriso e disse:
— Pode falar.
— À sós — informou.
— Tá bom. — Ela ficou de pé e Sofia a puxou pelo pulso. — Ai, calma, Paty! Quanta
agressividade!
A garota ignorou o que ela disse e a puxou até o cômodo de frente para a piscina, parando
na frente dela e soltando seu pulso.
— Quem?
— A menina que está servindo as bebidas é a minha ex! O que ela está fazendo na sua
festa?!
— Espera… — Pérola fez uma pausa, processando as palavras. — A bartender é sua ex?
— É!
— Ela me seguiu no Facebook e como ela faz freelas, eu a contratei. E olha… — Pérola
apoiou o braço no ombro dela. — Ela faz ótimos drinks.
— Eu não tô nem aí, Pérola. Só não quero ver a cara dela em cada canto dessa festa!
— Sofi, eu não posso dispensar a Milena. Ela está ajudando muito e eu quero provar todas
as bebidinhas que ela me prometeu.
Sofia respirou fundo. Estava se comportando como uma garota mimada? Com certeza, mas
só queria distância da ex e se ela continuasse aparecendo do nada, era bem provável que iria
perder a cabeça a qualquer momento. Quando abriu a boca para tentar explicar o motivo da
implicância, a voz inconfundível surgiu atrás delas:
— Falando de mim?
Sofia nem precisou olhar para trás, pois Milena se colocou ao lado dela com um sorriso
convencido esticando seus lábios.
— Claro, mas pode ser daqui a pouco? — Ela virou o rosto para a loira. — Primeiro eu
preciso conversar com uma certa pessoa.
Sofia estava prestes a ir pelo mesmo caminho de Pérola quando Milena agarrou o seu
braço.
— É sério. — Ela abaixou o olhar no biquíni rosa pink da garota. — Nossa… que saudade
desse corpinho.
Se Sofia estivesse com uma bebida na mão, teria derramado todo o líquido na cabeça de
Milena, mas como estava sem nada, apenas revirou os olhos.
— Você me dá nojo.
Girou nos calcanhares e no instante seguinte, deparou-se com ninguém mais, ninguém
menos que Lia.
Ela se aproximou e nem esperou por uma resposta. Apenas segurou o rosto de Sofia e lhe
deu um beijo na boca, erguendo as mãos e exibindo os dedos do meio para Milena e para quem
mais quisesse ver.
Segundos depois, Lia afastou os lábios e fulminou a feição azeda da garota de franjinha
com o olhar.
Sofia, por outro lado, sorriu com a atitude de Lia e se voltou na direção de Milena,
envolvendo os braços da garota na sua cintura.
— Então vocês estão juntas agora? — Milena questionou, amargura acompanhando cada
palavra.
— Sim — Sofia confirmou. — E como você pode ver, estamos muito bem, obrigada.
Milena cruzou os braços, ergueu levemente o queixo e soltou uma risadinha de escárnio.
— O que disse?
— O que ouviu.
— Vamos deixar ela aí. — Lia cruzou os dedos com os de Sofia. — Ela só está tentando
provocar a gente.
— A gente ou você que é uma intrometida?! Só estou tentando conversar com ela numa
boa, mas você já chegou marcando território. — O sorriso debochado se alargou. — Parece até
uma cachorra desesperada por atenção.
— Nossa, Milena! Você não pode ser menos escrota?! — Ela deu as costas para a ex. —
Vamos, Lia.
As duas deram as costas para ela e seguiram na direção da piscina, sendo observadas com
remorso.
De volta à beira da piscina, Sofia olhou para Lia, que estava com uma cara de poucos
amigos, e disse:
— Desculpa por isso. A Milena é muito sem noção. Por mim, ela nem estaria aqui, mas
como a festa não é minha...
— Tudo bem. Já estou acostumada com essa merda mesmo. — A outra garota sentou na
beira da piscina, balançando as pernas na água.
Sofia entrou na piscina, se colocou na frente dela e apoiou as mãos nas coxas de Lia,
parando o movimento de suas pernas.
A garota riu e não perdeu tempo para segurar no rosto dela e beijá-la, o orgulho se
misturando ao calor dos lábios da outra. Em seguida, pegou na cintura de Lia e a puxou para a
água, o corpo boiando próximo aos azulejos azuis.
Lia envolveu as pernas de Sofia no seu quadril, espalmando as mãos na bunda dela
embaixo d'água, mal se importando com os convidados ao redor delas.
Ao separar as bocas, Sofia reparou que Pérola estava com o olhar voltado para elas. A
garota de cabelo rosa abriu um largo sorriso depois de dar um gole na garrafa de cerveja e fez
sinal de joinha na sua direção.
Ali com Lia, ela sentia que podia ser quem nasceu para ser: romântica e corajosa.
Diferente de quando namorou com Milena, não tinha medo de ser vista beijando uma menina ou
de ser agredida por intolerantes estúpidos.
Era livre. Podia usufruir do seu paraíso pessoal, mesmo que a invejosa da sua ex-namorada
estivesse a alguns cômodos de distância, preparando, de má vontade, bebidas para elas.
O mundo é uma maldição e ele irá
te matar se você deixar
Sei que existem pílulas que
podem te ajudar
Eles a engarrafam, chamam de
remédio
Mas eu não preciso de drogas
Porque eu estou chapada o
suficiente
Você me faz, você me faz bem
High Enough – K.Flay
Você tem que tomar o remédio mesmo se sentindo bem, a lembrança da voz do psiquiatra
ecoou na sua mente.
Ela soltou um suspiro. Esperava parar a medicação algum dia, pois estava com receio de
ficar dependente da substância, mesmo o médico garantindo que isso não tinha a menor chance
de acontecer.
Não queria ser igual a sua mãe e causar mais dor de cabeça para os outros.
— Eu suspeitava que tinha algo de estranho com você, mas não imaginei que fosse isso.
— Nada. — Ela deu de ombros, fingindo que não estava a observando há mais de cinco
minutos entre os corredores do estabelecimento. — Só vim comprar um remédio pra dor de
cabeça. Sabe como é, não é fácil trabalhar de noite. — O sorriso dela se largou. — Ah, esqueci
que você não sabe como é isso. A sua cara de quem nunca trabalhou na vida não nega. — E
pendeu o rosto para o lado. — Deve ser muito bom ser sustentada pelo papai, não é?
Lia respirou fundo, inflando as narinas e tentou ignorar o que a outra garota disse. Tudo
isso era apenas dor de cotovelo por Sofia não estar com ela.
Nesse momento, o farmacêutico retornou com sua medicação e ela agradeceu mentalmente
por não ficar mais tempo no mesmo ambiente que Milena.
Uma risada irônica escapou de sua boca e ela disse a coisa mais estúpida que alguém
ignorante podia dizer:
— Deve ser bem difícil pra Sofia namorar com uma pessoa que precisa de remédios pra
ser equilibrada.
Lia desejou ser surda nesse momento. Ela ficou tentada a largar seus medicamentos no
chão e dar um empurrão em Milena, mas segurou seus impulsos agressivos.
Milena levou a mão ao peito de forma teatral, aproveitando que o farmacêutico estava com
a atenção voltada para elas.
Lia deu um passo à frente e ao passar por ela, Milena agarrou seu braço com força.
— Eu não esqueci das vezes que você me insultou com os seus queridos gestos obscenos.
E já que estamos aqui, eu também tenho um aviso pra te dar: — Ela fez uma pausa. — Eu vou
foder com a sua vida, entendeu?
Lia a encarou.
— Deveria. — Ela afundou os dedos na carne do braço de Lia, querendo deixar uma
marca como lembrança. — Não vou facilitar até conseguir a minha garota de volta.
Lia puxou o braço de seu aperto, o movimento abrupto derrubando seus remédios no chão.
— Não? Acha mesmo que ela vai ficar com uma doente mental, totalmente
desequilibrada?!
Lia cerrou o maxilar com força, deu meia volta e antes que pensasse em encostar um dedo
em Milena, o farmacêutico entrou no meio delas e disse:
— Por favor, tira essa louca daqui — Milena ordenou atrás do funcionário, como se fosse
a dona do local. — Ela acabou de me ameaçar! Uma pessoa dessa deveria estar no hospital
psiquiátrico e não solta por aí!
A garota olhou para trás a tempo de notar um vislumbre do sorriso ácido de Milena.
Vagabunda!
O farmacêutico a guiou pelo corredor de produtos de higiene e ela tentou controlar sua
reação emocional, os músculos sendo corroídos a cada passo. Ao parar de frente para o caixa,
tirou o cartão de débito da carteira com a mão trêmula e pagou por sua compra.
Assim que deixou a farmácia para trás, atravessou a rua rapidamente, o vento jogando seu
cabelo para trás, e invadiu a praça mais próxima, largando a sacola de plástico na mesa de
concreto e sentando no banco áspero.
Cobriu o rosto com as mãos e respirou fundo uma, duas, três vezes seguidas. As lágrimas
presas queimaram seus olhos e ela deixou algumas escaparem enquanto a angústia a sufocava.
Era um verdadeiro desastre. Era tão vulnerável que perdia a cabeça até no momento de
conseguir os medicamentos que controlavam a química do seu cérebro. Tudo por causa daquela
garota maldita!
Esperou um pouco e como ficou sem respostas para suas perguntas existenciais demais,
agarrou a sacola e ficou de pé, saindo da praça como se nada tivesse acontecido.
Minutos mais tarde, sentou a bunda no sofá branco e fitou a televisão ligada em uma
novela mexicana. Sofia sentou ao lado dela e não demorou para perguntar:
— Se estar bem é se sentir um lixo todo dia, então, sim, eu estou bem.
A outra garota pareceu levemente surpresa com a resposta nada convencional. Ela colocou
a mão no ombro de Lia, massageando-o de leve.
— O que aconteceu?
Ela suspirou.
— Fui na farmácia comprar meus remédios. — Levantou a sacola para exibir sua compra,
o farfalhar do plástico se misturando ao som da TV. — E a Milena estava lá.
— Eu não acredito…
— Ela falou que vai foder com a minha vida e que vai fazer você voltar com ela. — E se
recostou no sofá. — Como se a minha vida já não fosse fodida o suficiente…
Sofia estava boquiaberta.
— Ela falou! E eu fiquei com tanta raiva que o farmacêutico teve que entrar no meio senão
eu ia socar a cara dela! Nem a Thaissa foi tão irritante assim! — E ela logo se deu conta do que
disse. — Desculpa, sei que a Thaissa não tem nada a ver com isso, mas… você entendeu…
— Tudo bem. — Sofia continuou massageando a carne do seu ombro. — Eu vou dar um
jeito nisso, tá bom? Você não precisa se preocupar.
— Eu não tenho medo dela, eu só… — Soltou um suspiro frustrado. — Quero viver em
paz com você. Não quero mais uma relação conturbada, entende?
— Eu sei. — Sofia deu um beijo demorado na sua bochecha, o calor dos lábios dela
queimando sua pele. — Vou fazer o que tiver ao meu alcance pra ela parar com essa merda.
Lia a encarou, os olhos brilhando. Logo, diminuiu a curta distância entre os rostos,
absorvendo a respiração da outra garota. Tocou a boca na dela e levou a mão até a bochecha
macia, as línguas se tocando em movimentos lentos. Beijar Sofia era como dormir em uma cama
quente e aveludada. Cada vez que tocava na garota sentia o carinho que irradiava dela,
principalmente quando seus dedos delicados se emaranhavam no seu cabelo, puxando-o de leve
ao segurar sua cabeça. Era quase… maternal.
— Sofia.
A mulher, que tinha acabado de pisar na sala de estar, estava com uma expressão neutra,
mas o olhar de desaprovação voltado para as duas jovens no sofá não deixava dúvidas de que ela
não gostou de flagrar a filha aos beijos com outra garota.
— Então… — Ela segurou a bolsa Louis Vuitton com as duas mãos, pendendo-a na frente
do corpo. — Eu não sabia que vocês estavam juntas.
Lia olhou para Sofia esperando que ela contasse como tudo começou e, para a sua sorte,
foi o que ela fez.
— Ah, faz poucas semanas. A gente ficou pela primeira vez há duas festas atrás.
Patrícia assentiu e não disse mais nada, deixando as vozes dos personagens da novela
preencherem o ambiente. Lia inspirou e decidiu se levantar.
— Bom… eu já vou.
— É, por que você não fica pra tomar um lanche? — Patrícia perguntou.
— Não, obrigada. — Lia não queria se forçar a ser sociável na frente dela. — Eu ainda
tenho algumas coisas pra fazer…
Patrícia fez que sim com a cabeça e Lia ficou aliviada por ela não insistir. Não tinha nada
de importante para fazer, mas a mentira foi cômoda.
Quando pisaram na calçada, Sofia envolveu o braço na cintura de Lia, puxando-a para
perto de si e lhe dando um selinho um tanto demorado.
— Ligo. — Um resquício de um sorriso surgiu em seus lábios antes de dar as costas para a
outra garota.
Depois de andar por alguns metros pela calçada, Lia olhou para trás.
Logo, voltou a olhar para frente, o ar fresco batendo no seu rosto enquanto percebia a
lixeira grudada no poste.
Acha mesmo que ela vai ficar com uma doente mental, totalmente desequilibrada?!
Lia piscou, avançou na direção do poste e, sem hesitar, ergueu a sacola, jogando os
remédios e todo o resto no lixo.
Foda-se a princesa, eu sou um rei
Curve-se e beije meu anel
Vai machucar, vai doer
Cuspindo seu sangue na pia
Daisy – Ashnikko
Bastou Sofia sentar no sofá para sua expressão tranquila se desfazer com a frase de
Patrícia:
— Precisamos conversar.
A garota olhou para a mãe e recostou-se no sofá, cruzando os braços e as pernas. Não
estava preparada psicologicamente para dar satisfação à ela sobre o beijo que deu em Lia. Sendo
assim, apenas esperou a bomba ser jogada no seu colo.
A mulher andou na sua direção, sentou ao seu lado e foi direto ao assunto:
— Por que você não me contou que estava… namorando com a Lia?
Ela demorou um pouco para responder. Se sua mãe a tivesse flagrado beijando um homem
estaria toda sorrisos.
— Porque não tive a oportunidade.
— Pra quê? Não ia ser tão diferente de agora. Você continuaria me olhando como se eu
fosse uma grande decepção pra você.
— Sofia! — Patrícia a repreendeu. — Você sabe muito bem que não é isso que eu penso
de você. Eu só acho que…
— Que eu deveria estar com um cara? — a cortou com a sugestão um tanto ousada.
Patrícia apertou o maxilar, tentando evitar uma possível briga entre elas.
— Mãe, eu conheço a Lia há tempo suficiente pra saber que eu posso mergulhar de cabeça
na nossa relação.
— Por que às vezes você se acha tão dona da razão? — E logo tentou ser o mais cautelosa
possível: — Eu só não quero que você se machuque igual aquela vez com a…
— Nem ouse dizer o nome dela — Sofia a alertou, a fúria começando a se infiltrar no seu
sangue só de lembrar de Milena. — A Lia não é igual a ela. Você devia ficar feliz por mim ao
invés de sempre colocar defeito nas garotas que eu gosto.
— Claro. Aposto que se eu estivesse namorando com um cara você não viria com esse
papo pra cima de mim. — Sofia se levantou. — Estou cansada de todo mundo se metendo na
minha vida! Não sou mais adolescente, sei muito bem o que faço. Por que não posso ser feliz em
paz?!
Sua mãe recostou-se no sofá e inspirou fundo, desviando o olhar para a novela mexicana
na TV.
O assunto estava encerrado.
E sem pensar duas vezes, Sofia deixou a mãe para trás, avançando na direção do seu
quarto.
Quando adentrou o cômodo, fechou a porta, se jogou na cama e pegou o celular próximo
ao abajur para tentar esquecer a breve discussão com Patrícia. Tinha assuntos mais importantes
para resolver ao invés de dar importância para os pitacos da mãe.
Navegou até o campo de busca do Instagram e manteve o polegar suspenso por alguns
segundos. Em seguida, deixou o receio de lado e digitou o nome de usuário, ignorando as fotos
recentes e clicando no ícone que levava ao direct. Não demorou para digitar a seguinte
mensagem:
@sofiveronese: Preciso conversar urgente com vc. Pode me encontrar amanhã à tarde?
Horas mais tarde, os grupos de estudantes de Publicidade e Propaganda não falavam outra
coisa que não fosse a conclusão do TCC. A professora orientadora contribuiu com o início do
caos, marcando uma data bem próxima para entrega e apresentação do trabalho, o que causou
muita ansiedade nos envolvidos.
Sofia, no entanto, estava decidida a não sofrer por antecipação. Foda-se a entrega do TCC.
Ela só precisava de alguns goles de birita para esquecer que era uma universitária no último e
conturbado semestre do curso.
— Como você parece tão tranquila com tudo isso? — Thaissa perguntou a ela enquanto
anotava no caderno os ajustes que precisavam ser feitos no trabalho.
— Já fizemos a pior parte, Thay. A gente pode arrumar isso em um dia. Não tem motivo
pra se preocupar.
— Tem, sim — Carolina a contrariou. — Eu não quero perder um dia inteiro fazendo essa
tortura psicológica.
— Calma, meninas. — Ela se inclinou sobre a carteira. — Nosso TCC está muito bom.
Não vamos tirar menos de nove.
— Que assim seja — Carolina disse. — Porque meus dedos doeram pra escrever cada
palavra.
Sofia riu. Se elas soubessem que Lia também contribuiu no trabalho delas, ficariam
chocadas. Assim que recebessem a nota do Trabalho de Conclusão de Curso, Lia seria uma das
primeiras pessoas a ficar sabendo. Ela precisava ter a prova de que era capaz de fazer qualquer
coisa.
O olhar de Sofia voltou para Thaissa e seu sorriso murchou ao mesmo tempo que algo
afundou no seu peito. A garota ainda não sabia que as duas estavam juntas e isso a incomodava
profundamente.
Sua amiga não merecia ficar de fora das coisas que aconteciam na sua vida e Lia não devia
aguentar mais tanta enrolação.
Ela precisava ser corajosa e contar que estava, não apenas beijando, mas transando com a
ex-namorada de Mateus.
Thaissa tirou a atenção do caderno e jogou o cabelo castanho e liso para trás, olhando
brevemente para Sofia que apenas desviou o olhar para o notebook de Isabel.
Podia continuar sendo medrosa até reunir coragem o bastante para contar sobre Lia.
Thaissa já estava tensa por causa do TCC, sendo assim, não precisava de mais preocupações
naquela noite.
O café gelado refrescou a garganta de Sofia e ela tirou a boca do canudo no mesmo
instante que o sino da cafeteria tilintou. O olhar verde da garota vagou até a porta de vidro sendo
aberta e parou na pessoa que entrou.
— Oi!
— Não, tô de boa. — Ela se inclinou sobre a mesa, empolgada. — Vai, pode falar —
pediu, a expectativa brilhando nos olhos escuros. — Fiquei a noite toda ansiosa pra essa
conversa.
Sofia recostou-se na cadeira. Olhou para o seu café e, em seguida, para os poucos clientes
no estabelecimento.
— Chamei! Qual o seu problema? Eu não tenho mais nada com você desde o dia que você
me deu um pé na bunda, lembra?
— Essa Lia tem a boceta de mel por acaso?! — ela disparou, chamando a atenção de um
idoso sentado numa mesa próxima. — Faça-me o favor, Sofia. Você merece alguém muito
melhor. Ela é louca, precisa tomar remédio pra ser con…
— Cala a boca! Você não vai falar assim dela, pelo menos não na minha frente! A Lia é
mil vezes melhor do que você! Aliás, não tem nem comparação. Você é ridícula em tantos níveis
que me faltam palavras…
Milena cerrou o maxilar com tanta força que por pouco não trincou os dentes.
— E você é uma vadia mimada que tem tudo na mão na hora que quer! — ela soltou,
destilando veneno em cada palavra. — Uma putinha que vive às custas da vovó rica! Tomara que
você se foda! Eu vou rir muito quando isso acontecer!
— Late mais alto, as pessoas ainda não escutaram! — Sofia ficou de pé, ajeitando a saia
jeans branca. — Aproveita toda essa raiva e me esquece de uma vez!
Sem paciência para escutar as próximas ofensas da ex, ela deu as costas para o café gelado
e deixou uma Milena muito doída para trás, avançando na direção da porta com a cabeça erguida,
atraindo olhares curiosos a cada passo.
Acho que conseguiríamos se
tentássemos
Ao menos para dizer que você é
minha
Sofia, saiba que você e eu
Não deveríamos nos sentir como um
crime
Sofia – Clairo
Assim que leu o segundo parágrafo, Lia afundou as costas contra o tórax de Sofia e
deslizou as mãos nas pernas lisas e torneadas ao seu redor, o corpo da outra garota mais
aconchegante que sua própria cama.
— Foi mal. — Lia sorriu. Depois de ler por mais de uma hora, sua mente estava ficando
cansada e, aproveitando que estava sentada entre as belas pernas de Sofia, queria fazer outra
coisa para se animar.
Continuou acariciando a pele macia até Sofia colocar um marcador de página entre as
folhas, fechando o livro e deixando-o ao lado delas. Em seguida, ela virou o rosto de Lia e a
beijou com ternura.
Lia moveu todo o corpo na direção de Sofia e montou em cima dela, cruzando as pernas ao
redor do seu quadril. As mãos da outra garota foram parar na sua bunda, trazendo-a mais para
perto e Lia a beijou como se dependesse disso para respirar.
Sofia subiu um pouco a camiseta de Lia, queimando a pele exposta com o roçar dos dedos.
A garota, por outro lado, ergueu o queixo de Sofia, fixando o olhar no pescoço fino e desceu a
boca até ele, beijando tudo de cima para baixo, fios de cabelo loiro grudando nos lábios enquanto
o perfume adocicado entrava em suas narinas, instigando-a a continuar.
Ao chegar perto da orelha, ficou tentada a morder o lóbulo de leve, os brincos e piercings
de prata brilhando na sua cara. Mas antes de concretizar esse pensamento, o som de uma
notificação soou abaixo delas, desviando sua atenção para o celular de Sofia em cima da mesinha
de cabeceira.
Lia continuou sentada no colo dela, a assistindo ler e digitar alguma coisa no celular —, os
lábios formigando por causa do beijo ávido. Em seguida, desviou o olhar para a janela do seu
quarto, o sol escaldante brilhando lá fora.
Instantes depois, a mão da outra garota encontrou a sua, os dedos se cruzando, e Lia voltou
a encará-la, presenciando um sorrisinho tomando forma no rosto de Sofia.
— Como assim?
— Você sabe que vou apresentar meu TCC hoje à noite. — Ela fez uma pausa, os olhos
brilhando de expectativa. — Isso significa que vai ter comemoração mais tarde.
Mais uma vez, a garota não entendeu onde Sofia estava querendo chegar e estava prestes a
pedir para ela ser mais clara, quando ouviu:
— É sério?
A inquietação começou a se instalar no seu âmago. Sofia iria apresentá-la para suas
amigas… Ela estava pronta para isso?
Isso só serviu para aumentar a sua ansiedade. Não sabia como se portar. E se a Thaissa
surtasse no momento que a visse?
Lia voltou para o presente e balançou a cabeça em sinal positivo. Estava feliz por Sofia ter
considerado apresentá-la para suas amigas, mas também estava com medo. Não se preparou para
esse reencontro. Tudo bem que já conhecia Thaissa, mas não sabia como ela iria reagir. E se
Sofia perdesse sua amizade por causa dela? Lia voltaria a ser a grande vilã destruidora de
relacionamentos.
— Eu só… — Pensou no que dizer, tentando achar algum argumento plausível: — … Não
tenho roupa pra esse evento.
— Isso não é problema, meu amor. Vou providenciar um look pra você.
Lia tentou acompanhar o seu sorriso e de repente lembrou de uma peça única que não saiu
da sua cabeça desde o primeiro segundo que viu Sofia usando.
— Então, eu quero aquele vestido de cetim que você usou na primeira vez que a gente saiu
juntas — soltou tudo rápido demais.
Lia riu genuinamente dessa vez. Não ficou chateada com Sofia há um mês porque ela não
queria que Thaissa soubesse sobre elas? Agora que a vida estava lhe dando essa chance, não
podia fugir. E foi pensando nisso que falou:
— Já que estamos dando um passo importante hoje… — Ela jogou as mechas onduladas
de Sofia para trás. — … você não acha que está na hora de oficializar a nossa relação?
Sofia a fitou, os olhos verdes vibrando na claridade do cômodo. Em seguida, Lia inspirou
fundo antes de propor:
Sofia piscou e ficou congelada por um instante. Lia engoliu em seco e quando estava
prestes a voltar atrás, a garota à sua frente abriu a boca:
— Se eu quero? — Ela abriu um largo sorriso. — Eu desejei tanto isso que você não tem
noção…
E nem esperou Lia reagir, pois puxou o rosto dela para perto e a beijou, calando qualquer
palavra que estava se formando na ponta da sua língua.
Faltava uma hora e meia para Lia conhecer as amigas de Sofia e ela estava prestes a entrar
em colapso.
Desde que a outra garota saiu da sua casa, ela pensou em inúmeras formas diferentes de se
comportar perto da Thaissa e companhia, e tudo que passou na sua cabeça foram imagens dela
agindo como um completo desastre diante das meninas.
Terminando de alongar os cílios com rímel, ela fitou seu rosto apreensivo refletido no
espelho da penteadeira e soltou um pesado suspiro. Por que caralho aceitou fazer isso? Não sabia
que ia dar tudo errado como sempre?
Antes que pudesse achar uma resposta realista, a campainha tocou no andar de baixo e ela
levantou da cadeira, saindo do quarto e descendo a escada até se deparar com o céu noturno,
avistando Pérola diante do seu portão, segurando uma sacola de papel.
— Entrega pra senhorita Lia. — A garota de cabelo rosa ergueu a sacola no ar e sorriu, os
dentes brilhando nas luzes amarelas dos postes da rua.
— Entra.
Uma vez dentro da sala, Pérola olhou ao redor do cômodo com um interesse explícito e
parou a atenção em Lia, o sorriso ainda estampado na cara.
Assim que Pérola pisou no cômodo, largou a sacola na cama e se aproximou das
prateleiras cheias de livros. Ela deslizou o dedo indicador nas lombadas das obras e tirou o
exemplar Confusões e Calafrios, da Silvia Cintra Franco, folheando-o até a última página.
— Eu não sabia que você gostava de ler — confessou, pegando mais um livro. Dessa vez
era Dom Casmurro, de Machado de Assis.
— A Sofia tem bom gosto. — Pérola girou nos calcanhares, dando de cara com Lia, os
livros dela em mãos. — Você é inteligente.
Lia riu.
— Claro! — Pérola colocou os livros debaixo do braço e estufou o peito. — Eu queria ser
assim. Culta. — Ela começou a andar pelo quarto com um ar de superioridade e ergueu o queixo
ao olhar para Lia. — Acho chique.
— Você é doida mesmo. — Ela diminuiu a distância entre elas e pegou seus livros,
temendo que Pérola deixasse-os cair no chão, ou pior, arremessasse-os na parede.
— Tô falando sério! Você devia valorizar o que tem! Eu não consigo ler uma página sem
perder o foco! Sofri muito pra terminar o Ensino Médio por causa disso, sabia?
— Sério?
— Sempre fui a aluna bagunceira que não está nem aí pra nada.
— Eu sinto muito…
— Tudo bem, eu já me aceitei. — Ela deu duas batidinhas no colchão. — Senta aí,
Cinderela.
— Sabia que eu nunca vi a Sofia tão feliz? — ela continuou. — E olha que eu a conheço
há dois anos. Ela tá mesmo apaixonada por você.
— Ai, meus parabéns! Vocês duas fazem um casal tão lindo! — Ela se afastou. — Tô
apaixonada!
— Estava passando da hora, vamos combinar, né? Ainda bem que eu dei um toque na
Sofia. A garota é do vale e não sabia que você gostava dela!
— E você sabia?
— Lia… — Pérola fez uma pausa, olhando-a de esguelha. — Estava na cara que você não
via a hora de colar velcro com a Sofia.
— Não muda de assunto, gatona. Eu já sei que vocês se comeram nessa cama. — Pérola
piscou enquanto Lia desejou cavar um buraco para enfiar a cara. — A Sofia me contou.
Ela a fitou, cética. O máximo que fez foi abordar, bem nas entrelinhas, o ápice de prazer
no seu diário. Não tinha a mesma coragem de Sofia para relatar o ato sexual para ninguém em
específico, nem mesmo no seu objeto mais íntimo.
— Me espera aí. — Ficou de pé, segurando o vestido e seguiu na direção da porta. — Já
volto.
Não demorou para se enfiar no vestido, o tecido liso e leve modelando seu corpo, lhe
deixando mais atraente do que era.
— Uau! — Pérola soltou quando Lia retornou ao quarto depois de se trocar no banheiro.
— A Sofia vai ficar babando a noite inteira.
Ela sorriu com o elogio e após deixar a garota de cabelo rosa largada na sua cama, saiu de
casa e digitou uma breve mensagem para Sofia, avisando que chegaria em poucos minutos.
O Uber parou em frente a uma choperia e Lia saiu do veículo, notando o carro de Sofia
estacionado no meio-fio. Ela caminhou na direção do estabelecimento e parou na entrada,
respirando fundo duas vezes seguidas.
Não podia ser tão difícil. Era só agir como uma pessoa normal. E logo riu com a ironia.
Passou as palmas suadas no vestido, ajeitou a pequena bolsa preta no ombro e entrou na
choperia. O local não estava cheio, sendo assim, foi fácil avistar quatro garotas sentadas em uma
mesa próxima a uma decoração composta de barris de chope, a luz amarelada do ambiente
reluzindo sobre elas.
Lia tentou não pensar muito e continuou caminhando entre as mesas até parar perto das
garotas. Limpou a garganta e assim que Carolina e Isabel a olharam, ela disse:
— Oi, gente.
Sofia olhou para trás e Lia só conseguiu prestar atenção no olhar chocado da Thaissa. Um
segundo depois, a namorada, Carolina e Isabel disseram em uníssono:
— Oi!
— Meninas, essa é a Lia — Sofia falou, apontando para ela e abrindo um sorriso de orelha
a orelha.
— Uau, Lia... — Carolina disse, a voz arrastada pelo álcool. — Você é muito gata.
— Obrigada. — E arrastou uma cadeira, sentando-se ao lado de Sofia, ciente que estava
sob a mira das quatro garotas, inclusive da Thaissa.
Ela inspirou fundo e olhou para a namorada de Mateus, sentada no lado esquerdo de Sofia,
parecendo afetada com a sua presença.
— Oi, Thaissa.
Lia recostou-se na cadeira e quis sair dali. Por que encheu o saco de Sofia para esse
reencontro? Thaissa a odiava e devia estar querendo avançar no seu pescoço.
De repente, a mão de Sofia foi parar na sua coxa, tirando-a de seus devaneios.
— Ah… meus parabéns. — Ela abriu um sorriso duro. — Eu não esperava menos de você.
— Ah, que isso. Você também ajudou — dito isso, Sofia pegou no seu maxilar e deu um
beijo demorado na sua bochecha, o gloss grudando na pele. — Essa conquista também é sua.
Lia não disse nada de volta. Ela nem fez nada tão significativo, apenas escreveu alguns
parágrafos.
— Ai, eu tô tão feliz por você, Sofi — Carolina revelou, sugando sua caipirinha pelo
canudo e, em seguida, sussurrou: — Que mulherão, hein?
— Tudo bem. — E olhou para Lia com certa admiração. — Ela é linda mesmo.
— Aaaah! — Carolina e Isabel ecoaram juntas, fazendo o rosto de Lia queimar e o sorriso
de Sofia aumentar.
Ela queria evaporar daquela choperia naquele instante. Nunca foi tão bajulada e, como
esperado, não sabia lidar com isso, optando por ficar calada, abrindo um sorriso sem graça, tal
qual uma songa-monga.
No entanto, quem aparentava não estar gostando nada daquela babação de ovo era Thaissa.
Ela levou a garrafa de Heineken aos lábios e cruzou os braços, evitando olhar para Lia.
Por que se meteu naquela tortura? Se estivesse em casa na companhia dos seus livros, nada
daquilo teria acontecido. Como foi burra! Thaissa nunca iria aceitar o namoro dela com Sofia.
Para o alívio de Lia, a tortura não durou mais que meia hora, pois Carolina e Isabel logo
decidiram ir embora, as duas se levantando bambas de tanto beber. Mas para o seu completo
desprazer, Thaissa continuou sentada no mesmo lugar, batucando os dedos na mesa de madeira.
A garota até pegou o restante da caipirinha de Sofia e sugou todo o líquido, tentando se
preparar para o pior.
— E então — Thaissa começou, fazendo o coração de Lia bater na garganta —, vocês vão
me contar como começaram a namorar e por que, dona Sofia, eu estou sabendo disso só agora?
— Isso. Então, contei pra ela como a gente se conheceu, falei que foi através de você e
tudo mais... — Ela fez uma pausa para respirar fundo. — Só que você sabe, Thay, que eu me
apaixono muito rápido e... foi assim...
— Você tá brava? — Sofia perguntou para a amiga. Lia quase pôde sentir o medo de Sofia
de tão receosa que ela estava.
— Não — Thaissa soltou. — É claro que não. — Ela sorriu e colocou a atenção em Lia. —
Na verdade, eu tenho que deixar de lado toda a minha birra já que você está namorando com a
minha melhor amiga. Espero que você a faça muito feliz.
Lia ficou incrédula com o que ouviu, mas algo no que ela disse a fez sorrir de forma
inesperada.
— Eu também espero por isso. — Ela desviou os olhos da Thaissa por alguns instantes e
decidiu ser verdadeira: — Mas como eu já conversei com a Sofia, a depressão me faz ser uma
pessoa um pouco... — Fez uma pausa. — … Difícil de lidar...
— Não fala isso. — Sofia atravessou o braço no ombro dela, trazendo-a para mais perto.
— Você é incrível e eu soube disso desde a primeira vez que falei com você.
— Thay, você não sabe como eu fico feliz em ouvir isso. O meu maior medo era você não
aceitar a gente.
— De onde você tirou isso, Sofi? Eu super apoio vocês duas. Se você está feliz, é isso que
importa.
Depois que conversaram mais um pouco, Lia mais tranquila por tudo ter ocorrido bem,
todas decidiram ir embora, Thaissa se despedindo das duas antes de entrar no Uber e Sofia
caminhando de mãos dadas com Lia até o seu carro.
— Elas foram bem legais. Até a Thaissa. — Ela observou os pisca-pisca envolta da árvore
no outro lado da rua, denunciando a chegada do Natal. — Achei que ela fosse voar na minha
cara, mas que bom que isso não aconteceu.
Lia não estava tão certa disso, mas acabou ficando calada, apreciando o olhar de Sofia
descendo descaradamente pelo seu corpo.
— Obrigada. — Lia aproveitou que o carro estava logo atrás dela e a guiou até ela encostar
na porta do passageiro, jogando as mechas loiras para trás e ajeitando a lapela do blazer branco.
A roupa que Sofia usava, o vestido de cetim e o veículo formavam uma paleta em que a cor
branca se destacava na rua escura. — Gostei que a gente está combinando.
Ao afastar os lábios dos de Lia, Sofia a observou, o cheiro cítrico tão perto que ela não
queria apenas inspirá-lo, mas continuar sentindo a maciez da pele dela na sua e o toque quente
provocando correntes elétricas em todo o seu interior.
Amava a personalidade de Lia. Amava a forma como ela a olhava: o rosto sério que a
desarmava inteira quando ela sorria; o cabelo preto atrás das orelhas; a postura contraída que se
tornava relaxada quando não se preocupava com nada além de ser ela mesma; o genuíno
interesse pelos livros; os beijos inesperados em público. A lista era interminável.
A secou de novo, parando o olhar nas pernas longas e bronzeadas. Adorava quando elas
envolviam o seu quadril, e principalmente, quando colocava a boca entre elas, fazendo-a gemer o
seu lindo nome. Sim, era narcisista nesse nível e não se arrependia nem um pouco. Se amava e
também gostava de dar um pouco do seu amor a quem merecia.
— Por que você está me olhando assim? — Lia perguntou, sobrancelha erguida. — Tem
alguma coisa errada comigo?
— Claro que não. Só estou gravando a sua imagem na minha memória pra fazer um
quadro seu e colocar na minha parede.
Lia deu risada e Sofia acompanhou o seu riso, se derretendo por dentro. Estava feliz. Não
era todo dia que era pedida em namoro e que podia apresentar sua namorada para sua amiga sem
que a amizade acabasse.
— Eu gosto assim. — Sofia desencostou do carro e abriu a porta do carona, fazendo sinal
para ela entrar. — Primeiro as damas.
Lia riu de novo e entrou, Sofia grudando o olhar nas costas expostas pelo decote do
vestido. Queria tocá-la bem ali e beijar cada centímetro de pele, mas seria difícil fazer isso dentro
do carro. No entanto, como sempre dava um jeitinho, entrou pelo mesmo lado que ela e começou
a fechar a porta.
Sofia calou Lia com os lábios, beijando-a com necessidade. Mesmo pega de surpresa, a
outra garota infiltrou os dedos por dentro do blazer, tocando sua cintura.
O calor tomou conta de Sofia com os corpos colados e ela afastou o rosto para apreciar a
garota abaixo dela, o vestido ressaltando tudo o que era agradável aos seus olhos: as coxas à
mostra, as curvas entre o quadril e as costelas, o peito subindo e descendo com a respiração
batendo no seu rosto…
— O quê?
— Você fica muito gostosa com a minha roupa.
Mais uma vez o riso surgiu, ecoando pelo carro, e Sofia se deleitou com toda aquela
combinação, a excitação crescendo entre suas pernas.
— Acho que vou usar suas roupas mais vezes — Lia comentou.
Sofia deu um meio sorriso e tirou o blazer, jogando-o no banco ao lado. Em seguida, a
beijou de novo, deslizando a mão pelo tecido liso do vestido até encontrar o elástico da calcinha
de Lia. A inclinada no quadril foi o que bastou para seus dedos se enfiarem por dentro da peça
íntima, encontrando a boceta úmida.
Lia arfou contra a sua boca e ela interrompeu o beijo, contemplando a expressão excitada
da garota, as pálpebras se fechando.
Lia fez o que ela disse e Sofia sentiu sua calcinha umedecendo de desejo. Logo, aplicou
mais força nos movimentos circulares, fazendo os gemidos se tornarem mais audíveis.
Enquanto seus dedos trabalhavam em prol do prazer de Lia, ela afastou o cabelo dela e
começou a beijar a pele macia e cheirosa do pescoço, os dedos trabalhando sobre o clitóris
encharcado da namorada.
— Sofia…
Lia abriu ainda mais as pernas trêmulas e Sofia encostou-se no painel do veículo para tirar
a calcinha de renda branca, metendo um dedo dentro dela, se deliciando com a intimidade macia,
quente e molhada. Os gemidos aumentaram à medida que o dedo entrava e saía, devagar e
levemente inclinado.
No instante seguinte, enfiou mais um dedo que deslizou facilmente, repetindo os mesmos
movimentos do anterior — dessa vez com mais intensidade —, sem deixar de massagear o
clitóris com o polegar.
De repente, não queria mais esperar. Queria que Lia a fodesse ali mesmo.
E sem aviso prévio, abriu o zíper da calça, mas quando estava prestes a deslizá-la pelas
coxas, um toque estridente ecoou de dentro da pequena bolsinha de Lia.
— É o Leandro.
Sofia inspirou fundo, engoliu a frustração e decidiu fechar o zíper já que o irmão da Lia
quebrou todo o clima.
O aparelho não estava no viva-voz, mas Leandro falou alto o suficiente para Sofia escutar:
Lia revirou os olhos e Sofia encostou a cabeça no banco, as íris ainda voltadas para ela.
— Vamos, então.
Minutos mais tarde, quando Sofia estacionou em frente a casa dos Belmonte, Lia
perguntou:
— E se ele ficar…
— E se ele nada — Lia a interrompeu. — O Leandro não está nem aí. — E pegou o rosto
dela com as duas mãos. — Dorme comigo, por favor.
Nem foi preciso implorar mais, pois Sofia esticou os lábios em mais um sorrisinho.
Quando entraram na sala, encontraram Leandro sentado na extremidade do sofá com uma
expressão desconfiada e Pérola ocupando a outra, arreganhando os dentes.
Assim que subiram para o quarto, Sofia inteirando Pérola sobre a apresentação do TCC, a
garota de cabelo rosa decidiu pedir uma pizza para comemorarem o pedido de namoro, a nota do
Trabalho de Conclusão de Curso e a aceitação da Thaissa.
Para melhorar a noite, Lia pegou uma garrafa de vinho que Leandro guardou e Sofia
colocou em uma música da Zara Larsson, Pérola dançando no meio do quarto com uma fatia de
pizza de marguerita na mão e uma taça de vinho na outra.
— Parece que ela fica 24 horas ligada no 220 — Lia comentou, olhando para a garota com
as mechas coloridas balançando no ar.
Sofia riu e confirmou:
Sofia deu uma pequena mordida na fatia da pizza e segundos depois, falou:
— Nada disso. A Pérola tem o jeito dela, eu tenho o meu e você tem o seu. Cada uma é
diferente e essa é a graça.
Ela assentiu e Sofia afastou uma mecha do cabelo preto, jogando-a para trás dos ombros.
— Quero que saiba que eu me apaixonei pela garota que gosta de ler mais do que tudo e
não pela garota que é animada o tempo inteiro.
Os olhos de Lia ficaram marejados e Sofia encurtou a pequena distância entre elas,
beijando as costas da sua mão e seus lábios logo em seguida, a língua encontrando a dela de
forma lenta e terna.
Sofia revirou os olhos e Lia se encostou na cabeceira da cama, bebendo mais um pouco do
vinho.
— Sei…
De repente, Lia ficou de pé e Sofia a acompanhou com o olhar até ela pegar a sua câmera
instantânea.
Após a foto ser revelada, Lia posicionada entre uma Sofia sorridente e uma Pérola mais
sorridente ainda com o cabelo rosa se destacando na imagem, elas terminaram de comer a pizza,
deixando duas fatias para Leandro, e desligaram a música.
Quando Pérola começou a pegar no sono na cama, Sofia deitou ao lado da amiga, o corpo
virado na direção da escrivaninha, atenta a cada movimento da mão de Lia que escrevia na
página do diário.
— Posso ler? — perguntou assim que a outra garota terminou de registrar os pontos altos
da noite.
Lia a olhou, parecendo hesitante, mas fez que sim com a cabeça, saindo da cadeira e
entregando o caderno aberto à namorada.
Sofia leu cada palavra escrita em tinta de caneta azul, orgulhosa em verificar seu nome na
página pautada. Se sentia tão importante ao ser mencionada ali que seu peito se enchia de alegria.
Ergueu um pouco o diário, prestes a devolvê-lo para a dona quando uma polaroid caiu
sobre a sua barriga. Ela a pegou, mas antes de guardá-la entre as folhas do caderno, notou que
havia algo escrito em caneta preta no verso:
Mateus sorria para câmera e parecia um pouco mais novo, o cabelo escuro e bagunçado
contrastando com a imagem preta e branca.
Algo começou a corroer Sofia por dentro e ela desejou desver aquela foto. Inspirou fundo,
a respiração ficando mais pesada e os dedos suados.
Queria voltar no tempo e pular a parte que pedia para ler o diário da namorada, assim
como fazia nos vídeos do YouTube e das plataformas de streaming.
— Eu não sabia que você guardava fotos do Mateus — soltou, evitando olhar para Lia e se
recusando a rever a foto do namorado da Thaissa.
Estou de boa, sim, eu estou me
sentindo bem
Amor, eu vou ter a noite mais foda
da minha vida
E custe o que me custar, eu topo
qualquer parada
Amor, você não sabe que eu estou de
boa?
Sim, eu estou me sentindo bem
I'm Good (Blue) – David Guetta, Bebe Rexha
Lia se aproximou de Sofia e pegou a polaroid dos dedos dela, observando um Mateus de
vinte anos de idade todo sorridente.
Ela voltou a atenção para a foto e imagens do passado retornando à sua mente de forma
repentina.
Lia se ajoelhou entre as pernas de Mateus, que estava sentado na sua cama e tocou no
cabelo castanho-escuro, bagunçando-o mais e deixando-o do jeito que ela gostava.
As mãos grandes do garoto foram parar na sua bunda, trazendo-a para mais perto e a
adolescente atrevida sentou em seu colo, os dedos dele dedilhando suas costas até pegar uma
mecha do longo cabelo preto, enrolando-a no indicador.
— Não se mexe — ela avisou, erguendo a câmera instantânea até o rosto. — Sorria.
Mateus sorriu, não porque ela pediu, mas porque achou graça do comportamento
excêntrico da garota. Se deixasse, ela tiraria foto dele todos os dias até acabar com todos os
filmes da câmera. Talvez quisesse seguir carreira na fotografia.
O flash estourou no rosto dele e quando a polaroid foi revelada, Lia guardou-a entre as
folhas do seu diário, escrevendo a frase emocionada logo depois, crente de que o amor dele
duraria para sempre, fazendo jus a garota ingênua que ela era.
Os meses passaram e Lia já estava ferida o suficiente para duvidar do amor e suas
variadas formas.
Seu celular vibrou com uma mensagem de Mateus e ela leu o que ele mandou:
Mateus: Cansei, Lia. Já que vc sumiu e não quer mais falar comigo, eu vou te deixar em
paz. Não vou te mandar mais mensagens nem ligar pra vc. Essa é a última mensagem que vc vai
receber.
E naquele dia, Lia chegou à conclusão de que uma simples mensagem nunca doeu tanto.
Ela até pensou em digitar de volta, mas a falta de coragem não permitia. Além disso, ele não
iria entender.
Sendo assim, apenas desligou a tela do celular, deixando Mateus sem resposta, assim
como fez nos últimos dias, e deitou no colchão duro da casa na sua cidade natal, as lágrimas
quentes e grossas escorrendo por suas bochechas, lhe lembrando que ela nunca teria ninguém.
Sempre seria sozinha e infeliz.
Lia engoliu em seco com a lembrança incômoda e guardou a foto dentro do diário,
sentando na beirada da cama, perto de Sofia.
— Está com ciúmes? — perguntou, esboçando um meio sorriso enquanto cruzava os dedos
com os dela.
— Só achei estranho… — Fez uma pausa. — Eu excluí todas as fotos da Milena do meu
Instagram quando a gente terminou.
— Entendi.
— Você é especial — afirmou, montando em cima dela, tomando cuidado para não
acordar Pérola que dormia como um bebê ao lado delas. Em seguida, se inclinou e beijou os
lábios de Sofia de leve. — Ninguém me faz tão bem como você. — Beijou seu queixo. — Nem
me faz rir como você. — Partiu para o pescoço, inalando o perfume doce. — Ninguém é tão boa
quanto você. — E a encarou. — Eu digo isso em todos os sentidos.
Na manhã seguinte, quando Sofia e Pérola foram embora da casa dos Belmonte, Leandro e
Lia foram no supermercado para não morrerem de fome na próxima semana.
Milena estava encostada no freezer de congelados, os olhos escuros a assistindo como uma
verdadeira stalker.
Lia inspirou fundo, tentando acalmar seus batimentos cardíacos acelerados e deu as costas
para a garota de franjinha. Isso já estava ficando assustador. Seria algum tipo de carma por ela ter
insistido para Mateus largar a Thaissa e ficar com ela anos atrás?
Preparada para sair dali, largou a cartela de iogurtes no carrinho e começou a empurrá-lo,
mas os tênis Vans de Milena apareceram no seu campo de visão e ela brecou o carrinho.
Lia apertou os dedos na barra do carrinho e desejou passar por cima dela só de raiva, mas
recorreu ao seu pouco autocontrole.
— O que você quer aqui?! Está me perseguindo agora?!
— Você se acha tão especial assim pra eu perseguir logo você? — Ela tirou um iogurte da
prateleira. — Além de louca, é iludida também?
— Vai se foder!
A garota de franjinha virou todo o corpo na direção de Lia e deu um risinho torto.
— Sabia que é questão de tempo até a Sofia te largar? Ela não vai aguentar uma pessoa tão
problemática.
Lia revirou os olhos. Não ia deixar Milena lhe afetar com suas opiniões de merda.
— Você só está com inveja porque a sua toxidade não permitiu que você mantivesse um
relacionamento minimamente decente com ela.
— Talvez eu esteja com inveja, sim. — E a fulminou com o olhar. — Mas dela, não de
você. — A maldade no olhar da ex de Sofia se tornou quase palpável. — A Sofia só está com
você por pena.
Lia apertou ainda mais a barra do carrinho, as pontas dos dedos ficando brancas. Quem
aquela imbecil achava que era para dizer uma coisa daquelas?
Percebendo que Lia reagiu como ela queria, Milena alargou o sorriso e continuou:
— Você acha mesmo que ela é apaixonada por você, bobinha? Quando você menos
esperar, ela vai te largar. E eu só estou dizendo isso porque eu a conheço. A Sofia é uma garota
livre, e você é muito instável pra ela. Não vai dar certo.
— É melhor estar. Eu falo por experiência própria. Minha prima também é que nem você e
adivinha: ninguém suporta ela. As pessoas não querem ficar perto de gente problemática.
Lia observou o sorrisinho convencido de Milena e teve vontade de socar a boca dela, mas
se conteve novamente, pois algo no fundo da sua mente dizia que ela tinha razão. Ninguém sabia
lidar com pessoas com problemas mentais e preferia se afastar do que ajudar. Era assim com a
sua mãe. Era assim com ela.
— Espero que agora você entenda, querida — dito isso, Milena girou nos calcanhares e
saiu do corredor como se tivesse contribuído para o bem da humanidade.
Quando a garota de franjinha desapareceu do campo de visão de Lia, ela respirou fundo e
notou a dor aguda se instalando no seu peito pelas palavras fortes de Milena. Ninguém se
importava com ela mesmo, por que agora seria diferente? A bola cresceu em sua garganta e sua
visão ficou embaçada pelas lágrimas.
Queria se trancar no quarto e chorar até seus olhos incharem, mas estava no meio de um
supermercado e precisava segurar suas emoções.
— Pronto, Lia. — Leandro surgiu na frente dela com dois pacotes de macarrão. — Agora
falta… — Ele se interrompeu ao olhar para o rosto da irmã. — O que foi?
— Nada.
Ela puxou o braço do seu aperto, tentando não fazer uma cena e suspirou.
O coração de Lia pulou dentro do peito. Fazia mais de duas semanas que jogou seus
antidepressivos no lixo e nem se preocupou em comprá-los de novo.
— Sim — mentiu.
Seu irmão a encarou, mas logo pareceu satisfeito com a resposta, se colocando ao lado do
carrinho.
Ela olhou para o outro lado e inspirou profundamente. Não passava de uma desequilibrada.
Em um dia estava feliz e no outro, de mal a pior.
A batida da música eletrônica vibrava no corpo de Lia, o calor gerado pela multidão de
jovens eufóricos envolta dela aumentando em seu peito.
Sofia a puxou pela cintura e colocou a bala rosa entre os dentes, aproximando o rosto do
dela. Sem pensar duas vezes, a garota mordeu a metade do ecstasy, a droga amarga se
dissolvendo na sua língua ao mesmo tempo que os lábios macios da namorada grudavam nos
seus em um beijo rápido.
— Está gostando? — Sofia perguntou, a brisa fresca soprando seu cabelo para trás.
Lia assentiu. Era a primeira vez que pisava em uma rave, mas já eram mais de duas horas
da madrugada e seu corpo estava pedindo descanso após dançar algumas músicas.
Dito e feito. Minutos mais tarde, a euforia se instalou em seu interior e a melodia da
música a seduziu como mágica, o êxtase percorrendo em suas veias.
Ela olhou na direção da namorada e sua visão embaçou por um momento, mas logo focou
nas mechas loiras balançando ao ar livre com a dança, a água da garrafa que ela segurava
agitando com os movimentos frenéticos.
Incrível.
Lia começou a se mover no ritmo hipnotizante da batida eletrônica e sentiu que podia
navegar nas ondas da música psicodélica e suave. Ela fechou os olhos quando as mãos de Sofia
foram parar na sua cintura, abraçando-a e beijando na bochecha, no queixo e por último, no
pescoço.
Não demorou para Lia tomar a boca dela com a sua, as línguas se movendo lentamente
como se estivessem entrando na vibração do som. O calor da outra garota somou-se ao seu e ela
quase entrou em combustão, mordendo o lábio inferior de Sofia, que afastou o rosto, toda
sorridente.
A música tornou-se mais rápida a cada segundo que passava e Lia inspirou o ar fresco da
madrugada, aproveitando a sensação cativante. De repente, ela pulou junto à Sofia, que riu,
ambas curtindo a batida assim como todos os jovens que vibravam e dançavam ao redor delas.
Aquele momento parecia o paraíso. Era como se ela fosse leve e livre de problemas.
Esqueceu que sua mãe era dependente química, que seu pai era um pamonha, que eles não se
importavam com ela, que Milena era uma víbora e que sua saúde mental era uma bosta.
Ali era uma outra Lia Belmonte. A Lia confiante, destemida, que era amada e que
namorava uma garota foda.
— Eu não falei que essa ia ser a sua melhor vibe? — Sofia perguntou por cima da música.
— Sou tão, mas tão grata por ter encontrado você — ela continuou, os dedos frios e suados
acariciando a bochecha macia da namorada. — De verdade.
Sofia exibiu os dentes alinhados em um largo sorriso, tão extasiada quanto Lia.
— Eu fico boba só de ouvir isso. — E encurtou a pequena distância entre os rostos delas e
lhe deu um selinho demorado. — Eu sou grata por namorar com a menina mais fascinante desse
mundo!
O ego de Lia aflorou só de ouvir isso e a abraçou, deixando a energia agradável tomar
conta dela, a música levando-a para outra dimensão enquanto Sofia acariciava seu cabelo e ela
inspirava o perfume doce que emanava da pele da outra garota.
Quando o sol começou a nascer no horizonte, iluminando as copas das árvores, a música
eletrônica ainda tocando a todo o vapor, Lia mirou a câmera do seu celular na direção do céu, as
nuvens rosadas se destacando na imensidão azulada, e tirou uma bela foto. Sofia, que estava
sentada na canga ao lado dela, se aproximou para ver a imagem capturada.
Lia a olhou, presenciando o momento que ela arrancou uma uva do cacho e colocou na
boca.
Sofia levou a fruta até a sua boca e ela saboreou a uva doce e mais gostosa que o normal.
— Incrível. Faz tempo que eu não como uma fruta tão saborosa.
Sofia a olhou e botou mais uma uva na boca, aproximando o rosto para Lia morder a outra
metade, o que ela fez sem cerimônias.
— Concordo. — A namorada segurou seu maxilar e a beijou dessa vez. — E estaria bem
mais gostoso se você estivesse me fodendo também.
Uma hora e meia mais tarde, Sofia puxou Lia pela regata na direção do seu banheiro e
fechou a porta, bloqueando a visão da cama king size no seu quarto. Ela se despiu e o olhar de
Lia mediu cada parte do corpo nu até ela lhe dar as costas, exibindo a bunda empinada ao entrar
no box e ligar o chuveiro.
Lia tirou sua roupa e se encaminhou para dentro do box, a água morna do chuveiro caindo
sobre ela. Sofia passou as mãos no cabelo molhado, jogando-o para trás, as íris verdes e
cristalinas parando nos seios, na barriga e por último, na virilha de Lia. A garota envolveu o
braço na cintura de Sofia, trazendo-a mais para perto e lhe deu um beijo lento, a excitação
crescendo no meio das suas pernas.
A namorada espalmou as mãos na sua bunda e Lia arfou na boca dela. Após o beijo, a água
pingando do queixo das duas, Sofia pegou o sabonete e assim que espalhou a espuma sobre a
pele delas, Lia perguntou:
— Tomando banho com você — Sofia respondeu o óbvio, afastando o cabelo molhado de
Lia para trás, deslizando a espuma do sabonete nos seios dela.
Lia achou graça e a loira a fitou, curiosa.
— O que foi?
— E quem disse que eu não quero? — Ela mordiscou o lábio inferior da garota. — Eu só
preciso de um banho primeiro. Estou toda suada.
E sem aviso prévio, Lia a pressionou contra os azulejos frios e se agachou, erguendo uma
perna da namorada e colocando-a sobre seu ombro para abocanhar a boceta pulsando, a água do
chuveiro batendo em suas costas.
— Caramba… — Sofia afundou as pontas dos dedos na carne de Lia, abrindo ainda mais
as pernas. — Era disso que eu estava falando…
Lia estava adorando tudo aquilo, pois arrepios prazerosos percorreram o seu corpo.
Momentos depois, ela afastou a boca e ergueu o olhar para o rosto de Sofia.
— Perfeitamente bem. — Sofia guiou a cabeça dela para o meio de suas pernas. — Agora
continua.
Quando espasmos tomaram conta do corpo da outra garota, as pernas se contraindo envolta
do pescoço de Lia, Sofia choramingou:
— Lia… — Ela puxou seus cabelos de leve, a respiração entrecortada. — Não para…
Lia jamais faria isso. Pelo contrário, ouvir aquilo só serviu para fazer ela chupá-la com
mais intensidade, aumentando o ritmo quando o corpo trêmulo acima de sua cabeça começou a
atingir o orgasmo.
— Porra… — Ela olhou para marca na bunda, o sorriso esticando seus lábios. — Isso foi
insano…
Lia sorriu diante da marca vermelha dos seus dentes na pele da namorada e ficou de pé,
acertando um tapinha na nádega mordida.
— Eu amei esse seu lado safada — Sofia continuou e agarrou sua cintura, colando o corpo
da garota no seu. — Quero ser mordida mais vezes.
— Cuidado… As pessoas vão desconfiar quando você começar a aparecer toda marcada.
Depois do beijo, Sofia fechou o chuveiro, pegou na mão de Lia e a guiou até a cama, nem
um pouco preocupada se elas estavam com o corpo molhado.
Lia a encarou, surpresa e empolgada. Não demorou para ela sentar sobre o rosto de Sofia e
apoiar as mãos na cabeceira estofada da cama. A outra garota agarrou suas coxas com força e
puxou-a na direção dos lábios sedentos para prová-la de novo. Ao sentir a língua molhada se
movendo em toda a sua intimidade de forma provocante, Lia segurou com mais firmeza na
cabeceira e permitiu que os gemidos escapassem de sua garganta.
As mãos da namorada se espalmaram na sua bunda e subiram por sua barriga, o que fez ela
olhar para baixo. As íris verdes de Sofia estavam presas no seu rosto, assistindo sua expressão
sôfrega e seu corpo se contorcendo sobre a boca dela.
Não satisfeita com todo o prazer que estava lhe proporcionando, Sofia sugou o clitóris de
Lia e ela foi no céu e voltou, o gemido saindo mais alto em plena manhã de domingo.
Segundos se passaram quando Lia deitou sobre o colchão e Sofia engatinhou por cima
dela, beijando a parte interna das suas coxas, em seguida, a barriga, demorando os lábios quentes
na cicatriz. A garota acariciou o cabelo molhado de Sofia, tirando algumas mechas que caíam
sobre sua pele e envolveu as pernas no seu quadril.
— Eu fico boba com seus elogios — contou, as bochechas assumindo uma tonalidade
rosada.
Lia apenas sorriu, inebriada com toda a graciosidade da namorada acima dela. Naquele
momento, se considerava muito sortuda por Sofia ser o melhor presente da sua vida.
Sofia era o seu bem-estar. A sua felicidade. Com ela, a tristeza não existia mais.
Sabia que tudo aquilo era o efeito do ecstasy e apesar de saber dos danos que as drogas
causavam, queria permanecer na onda da bala para não voltar ao seu mundo cinza e tão danoso
quanto.
Mal sabia que nada disso faria sentido nas próximas horas.
Ao acordar na cama de Sofia, Lia olhou ao redor do quarto, o sol da tarde iluminando todo
o cômodo e machucando os seus olhos. Ela virou o rosto para a namorada que dormia feito um
anjo ao lado dela e se levantou, saindo da cama e seguindo na direção do banheiro, o corpo sem
energia fazendo seus pés se arrastarem pesadamente pelo piso de madeira.
A ressaca lhe atingiu com tanta força que ela se sentia esgotada. Nem parecia que tinha
dançado e trepado como louca com Sofia horas atrás.
Após usar o banheiro e lavar o rosto cansado, se arrastou novamente e sentou na beirada
da cama. O movimento deve ter acordado Sofia, pois ela se sentou sobre o colchão, se
espreguiçou e deu um meio sorriso.
— Eu me sinto um lixo. — Foi para perto dela, se enfiando debaixo do lençol. — Mais do
que sempre me sinto.
— É apenas a ressaca. — Sofia envolveu os braços ao redor dela, encostando seu rosto na
regata fina. — Eu também estou assim.
— É impressão sua.
— Não. — E a abraçou, tentando não entregar a mentira pela expressão em seu rosto. —
Eu só estava querendo dizer que... você está lidando com uma bomba-relógio. Sou instável, Sofi.
Tenho mais dias ruins do que bons...
Sofia revirou os olhos e começou a acariciar o cabelo dela para não refutá-la e piorar a sua
situação.
Uma risada debochada vibrou da garganta de Lia. Tinha medo de que Sofia se cansasse
dela e do seu mau-humor um dia porque até ela estava cansada de si mesma, mas enquanto isso
não acontecia, fechou os olhos, aproveitando as carícias no seu cabelo e a calmaria que as
rodeavam.
Assim que a noite caiu e Sofia dirigiu a caminho da casa dos Belmonte com Lia muda ao
seu lado, observando com nostalgia as luzes e decorações natalinas das residências na sua rua, a
namorada estacionou o carro em frente à casa de dois andares e perguntou:
— Está tudo bem?
Lia assentiu.
— Mas você…
— Isso não tem nada a ver com você, o problema sou eu! — Lia a interrompeu ríspida até
demais. — É o que eu te falei mais cedo. Você não fez nada, fica tranquila.
— Eu só… — Lia fez uma pausa, tentando não trazer a angústia à tona. — Eu sinto falta
dos meus pais… Acho que eu devia visitá-los. Saber como eles estão…
Sofia avançou pela estrada da cidade natal da família Belmonte e virou o rosto para o lado,
presenciando uma Lia com o olhar grudado no meio-fio cercado de grama.
Voltou a atenção para o volante, sentindo uma agitação por dentro desde que deixaram
Hilionopóles para trás a cerca de duas horas. Não podia negar: estava ansiosa para conhecer seus
mais novos sogros, mesmo que eles não tivessem uma boa fama.
Após alguns minutos, Sofia notou que o combustível não duraria muito, e se elas não
quisessem passar perrengue na volta para casa, precisavam encher o tanque.
Dois quarteirões depois, Sofia parou em um posto Shell e após abastecer, as duas
decidiram comer um lanche na loja de conveniência.
Enquanto levava uma batata-frita com catchup e mostarda à boca, Lia abriu um sorrisinho.
— Às vezes acho que estou vivendo um sonho quando estou com você.
— Você deve gostar muito de mim pra fazer todas as minhas vontades — a namorada
continuou.
— É claro que eu gosto muito de você, Lia — afirmou. — Não só gosto, como estou
completamente apaixonada por você. — E deu um beijo cálido nas costas da mão dela.
O sorriso de Lia ficou gigante e Sofia quase teve um frenesi. Agora sabia o quão bom era
estar em um relacionamento em que os sentimentos eram recíprocos. Absolutamente nada
poderia acabar com a sua felicidade.
Assim que Lia dirigiu por quase uma hora, estacionou em frente à uma casa bege com
telhado avermelhado e quintal de ladrilhos da mesma cor.
— Bem-vinda à minha antiga residência — a outra garota falou, o tom de voz mais sério.
Sofia saiu do HB20 branco e deixou Lia passar na sua frente, apertando a campainha ao
lado do portão cinza.
Não demorou para um homem de meia-idade com olheiras profundas surgir. Manoel
Belmonte parecia surpreso ao ver a filha em frente à sua casa.
Manoel piscou, abriu a boca para falar, mas nada saiu e Sofia estendeu a mão para ele.
— Prazer em conhecê-lo.
Ele apertou a sua mão e assentiu, parecendo em choque. Sofia engoliu em seco. Será que
ele não gostou de saber que sua filha estava namorando uma mulher?
Lia, no entanto, encarou o homem de aparência abatida e Sofia teve a impressão de que os
poucos segundos de silêncio se transformaram em horas até Manoel dar um passo na direção da
filha e abraçá-la. A namorada enterrou o rosto no peito do homem e ele afagou o cabelo dela,
dizendo:
Sofia cruzou os braços quase emocionada com o reencontro, afinal, sabia que Manoel era
importante para Lia. Quando o abraço se desfez, a outra garota piscou os olhos marejados e os
três entraram na residência.
Sofia deparou-se com a sala de paredes também beges e seu olhar caiu sobre o sofá com o
abajur ao lado; os porta-retratos da família Belmonte na estante em que estava a TV; e uma mesa
de jantar próxima a parede. Era um ambiente acolhedor, apesar da situação degradante dos pais
de Lia.
Sofia fez o que ele disse e Lia se acomodou ao seu lado enquanto o pai dela ocupava uma
poltrona de couro marrom de frente para o sofá.
— Então… — Ele forçou um sorriso e Sofia notou que era bem parecido com o de Lia. —
Vocês são namoradas?
— As coisas estão tão diferentes hoje em dia, não é? — E essa simples frase fez o corpo de
Sofia se retesar. — Mas eu fico feliz por você, filha. — Um sorriso mais relaxado iluminou o seu
rosto e Sofia se viu soltando o ar lentamente. — Que bom que você está seguindo em frente.
— Pois é. — Lia cruzou os braços. — E você nem liga pra saber como eu estou.
Manoel ficou calado, desviando o olhar para o chão, mas um segundo depois perguntou:
— Está bem.
— Que bom…
— Cadê a mãe?
— Você sabe… às vezes melhora… — Ele ficou pensativo. — Ela está participando de
um grupo de narcóticos anônimos na igreja.
— E está ajudando?
O homem demorou para responder e Sofia sentiu Lia afundar no sofá antes mesmo da
resposta verbal.
— Não fala assim, Lia — Manoel a advertiu. — Não é tão fácil como parece.
— Eu sei, mas enquanto você continuar fazendo tudo o que ela quer, só vai piorar.
Ele avançou pela sala e desapareceu na entrada da cozinha. Sofia olhou para Lia que
estava mais séria que o normal e colocou a mão sobre sua coxa, acariciando-a e tentando
tranquilizá-la.
— Tá bom.
— Mas enquanto isso, eu preciso checar uma coisa. — Ela se levantou, a expressão
misteriosa. — Vem comigo.
Sofia a seguiu até um quarto no final do corredor, a cama de casal bagunçada se
destacando em meio aos outros móveis. De repente, Lia parou diante de uma cômoda e abriu a
primeira gaveta encontrando várias peças de roupas dobradas por Manoel. Ela a fechou e abriu a
segunda, enfiando a mão bem no fundo até encontrar um saquinho transparente.
Lia pegou o saquinho cheio de pedras de crack entre o indicador e o polegar e disparou:
Antes que Sofia pensasse em dizer alguma coisa, uma mulher com o cabelo preto oleoso e
olhos injetados parou no batente da porta e exclamou:
— Olha pra você, mãe… — Ela mediu o corpo seco da mulher de cima a baixo, as roupas
folgadas denunciando que ela estava abaixo do peso. — Você tá parecendo uma caveira!
No instante seguinte, Sofia só viu a mão de Stella acertando em cheio a bochecha de Lia, o
som do tapa ecoando pelo ambiente e as mechas de cabelo voando pelo ar.
— Eu sou tô desse jeito porque você ajudou a destruir a minha vida! — Stella esbravejou.
— Você só me traz desgosto, maldita! Some da minha frente!
Aquilo era tão difícil de ver que ela estava prestes a tirar Lia dali à força, desejando sair
daquela cidade para nunca mais voltar.
Isso é a vida real?
Isso é só fantasia?
Preso em um desmoronamento
Sem escapatória da realidade
Bohemian Rhapsody – Queen
— Sai da minha casa agora! — a mãe de Lia continuou berrando na sua cara.
A garota piscou, a bochecha ardendo pelo tapa e o corpo imóvel. Ela sequer moveu um
único músculo quando Sofia agarrou a sua mão, tentando tirá-la do quarto.
Mas ela não deu nem o primeiro passo. Estava absorta em sua própria mente, enclausurada
em seus traumas enquanto o ruído de estática dominava seus ouvidos.
Lia tinha acabado de chegar da escola quando seguiu direto para o quarto da mãe,
ansiosa para mostrar seu boletim impecável para ela. A professora de Português lhe encheu de
elogios por sua belíssima nota dez e Lia não via a hora de ver o orgulho nos olhos dos seus pais.
Stella estava deitada no quarto escuro depois de tomar dois calmantes de uma vez, os
olhos fechados enquanto esperava o sono a dominar por mais de oito horas seguidas. Ao ouvir
os passos da filha no cômodo e notar a luz sendo acesa, ela nem ergueu uma pálpebra.
Como a empolgação não deixou que a pobre criança percebesse o mau humor da mãe, ela
continuou:
Stella finalmente abriu os olhos, mas ao invés de demonstrar interesse pela conquista da
filha, levantou da cama e disparou:
— Como você é chata, menina! Eu não quero saber quanto você tirou! — E sem aviso
prévio, arrancou o boletim da mão dela, amassou e jogou-o no canto do quarto. — Para de
encher o meu saco com essa merda! Não tá vendo que eu tô cansada?!
— Mas eu só quero…
— Você não quer nada! — Ela a interrompeu. — Sai do meu quarto e me deixa dormir!
Você não vê que eu não tô bem?! Me deixa em paz!
Lia apenas engoliu a vontade de chorar e deu as costas para a mãe, seguindo na direção
da porta, a animação se esvaindo do seu interior.
— Que menina mais irritante… — Lia ouviu Stella resmungar e, em seguida, gritar: —
Apaga essa luz!
A garota girou nos calcanhares e apagou a luz do quarto, evitando olhar para a mãe
agora estirada na cama. Ela tirou a mochila do ombro e se encaminhou para o seu quarto, as
lágrimas rolando pesadas por suas bochechas. Não era a primeira vez que sua mãe agia
daquela forma, mas naquele dia foi muito, muito pior.
Naquele dia, Lia aprendeu que ela era um grande fardo e que nada que fazia era bom o
suficiente, por isso todo mundo se cansava dela. Depois daquele dia, sua única fonte de prazer
era se refugiar nos livros para sonhar com uma realidade que não existia e que jamais viveria.
Ao voltar para o presente, Lia se viu sendo puxada pela mão por Sofia até que ambas
pararam no meio do corredor com a presença de um Leandro enfurecido, o pai dela falando
alguma coisa que ela não conseguiu entender.
— Você não devia ter trazido ela aqui! — Leandro gritou para Sofia. — Esse é o pior
lugar pra ela!
— Cala a boca, Sofia! Você só piorou tudo! — Leandro puxou o braço de Lia e se ele o
deslocasse, ela nem sentiria de tão anestesiada que estava. — Vamos embora dessa merda!
E tudo aconteceu rápido demais. Lia mal se lembrava do momento que saiu da casa dos
seus pais e muito menos de quando foi forçada a se sentar no banco do carona do carro de
Leandro sem dizer um piu.
— O que você tem na cabeça pra vir aqui?! E ainda me avisa em uma porra de um
bilhete?! Você é louca?!
A garota continuou muda, observando o céu escurecendo conforme eles saíam da cidade
de memórias tristes.
Leandro soltou mais algumas de suas indignações e Lia as ignorou. A única coisa que ela
conseguia pensar era que seria uma boa não ter nascido. Se assim fosse, não seria obrigada a
passar por tudo o que passou. Não viveria em um mundo que não lhe cabia. Não tentaria provar
que era importante e que se importava com os outros para tomar na cara depois.
Uma lágrima escorreu por seu rosto e ela olhou para a janela, as luzes e decorações
estúpidas de Natal irritando a sua visão. Em seguida, ela fechou os olhos e encostou a cabeça no
vidro, a sensação sufocante envolvendo-a a cada instante.
Quando finalmente chegou em seu verdadeiro lar, ela foi direto para o seu quarto chorar
tudo o que guardou por anos, ignorando todas as chamadas e mensagens de Sofia.
Na manhã seguinte, Lia não saiu da cama. Estava um caco depois de chorar até os olhos
incharem e nunca mais queria sair dali. Poderia apodrecer na sua cama mesmo. Era
completamente inútil, logo, ninguém sentiria a sua falta.
Passando do meio dia, Leandro abriu a porta do seu quarto e se deparou com a escuridão
causada pela janela fechada, bloqueando os raios solares.
O irmão ligou a luz, avançou pelo quarto e tirou o lençol da sua cabeça.
— É a Sofia.
Lia desviou a atenção de Sofia e desejou cobrir sua cabeça de volta para ela não ver o seu
estado deplorável.
Lia não respondeu. Não, não queria vê-la. Queria evaporar daquele quarto, isso sim.
Sofia sentou na sua cama e acariciou seu braço por cima do lençol.
Mais uma vez a garota ignorou a sua pergunta, e não se dando por vencida, Sofia
continuou:
— Eu estou preocupada, Lia. Aconteceu tudo tão rápido e eu me senti tão mal que…
— O quê?
Lia finalmente se sentou, a expressão cabisbaixa.
— Não vai! — a garota gritou. — Você não vê que eu sou uma merda completamente
inútil?! Não vamos conseguir levar isso pra frente!
— É claro que vamos! — A outra garota prendeu a atenção no seu rosto. — Quem colocou
essas coisas na sua cabeça?
— Por que você continua comigo? — ela quis saber, ignorando a pergunta. — Eu não
tenho nada de bom pra te oferecer... Eu sou um desastre, só tô atrasando a sua vida.
— Não. — Sofia segurou seu rosto. — Para de falar isso, você tá completamente
enganada. Eu nunca estive tão feliz perto de alguém como fico com você, Lia.
— Você merece uma pessoa melhor que eu, Sofia. Eu só vou te trazer dor de cabeça. Até a
Milena é melhor que eu…
— Eu não acredito que você meteu essa… — Ela pareceu indignada. — Aquela cobra
pode tentar o tanto que for, mas nunca vai conseguir chegar ao seus pés, Lia!
— Você tá desperdiçando o seu tempo comigo. Eu não quero destruir a sua vida.
— Você não vai destruir nada! Você não é a vilã aqui. Você é uma pessoa boa, uma
namorada incrível, muito melhor do que eu poderia imaginar!
Percebendo que seria difícil Sofia concordar com ela, Lia negou com a cabeça e revelou, o
rosto banhado de lágrimas:
— Depois de tudo o que a gente passou juntas, você vai jogar tudo fora por que não se
acha boa o suficiente pra mim?
As palavras certeiras de Sofia a atingiram como um soco bem fundo no estômago. Era
exatamente isso.
— Eu sou um fracasso… Você merece alguém como você: decidida, alegre… com a vida
planejada. Eu não sou essa pessoa.
— Ah, Lia, sinceramente… Vai se foder! — Sofia ficou de pé, limpando a lágrima que
começou a escorrer. — Você acha que eu não sei que você tem problemas?! Não acha que eu te
largaria se eu quisesse?
— Eu não quero! Eu quero ficar com você pelo resto da minha vida, mas você
simplesmente decidiu se igualar à Milena e eu não entendo o que eu te fiz!
Lia respirou fundo, o coração batendo de forma frenética. Por mais que tivesse se
diminuído como se fosse um cocô, não gostou de ser comparada à Milena.
— Tá bom. — Ela concordou, o rosto cheio de lágrimas. — Apesar de você dizer que eu
sou boa demais pra você, eu não me sinto assim, sabia? Se eu fosse tudo isso que você tá
falando, eu não teria ganhado mais um pé na bunda, né?
E após deixar essa reflexão no ar, Sofia saiu do quarto, o silêncio incômodo retornando ao
ambiente e deprimindo Lia ainda mais.
Ela deixou as lágrimas virem à tona novamente e deitou a cabeça sobre o travesseiro, se
sentindo derrotada e destruída, soluços escapando de sua garganta.
Chegava a ser difícil respirar, o nariz entupido, a boca entreaberta e o peito clamando de
dor pelos sentimentos feridos.
Ela fez certo em terminar, pois tudo estava de volta ao que era: Sofia voltou a ser livre, e
Lia a ser solitária e infeliz.
Costumávamos ser próximos, mas as
pessoas podem ir de
Pessoas que você conhece para
pessoas que você não conhece
E o que dói mais é que as pessoas
podem ir de
Pessoas que você conhece para
pessoas que você não conhece
People You Know – Selena Gomez
Quando entrou no carro Sofia desabou. Literalmente. Seu corpo parecia mais pesado
enquanto ela se curvava sobre o volante, as palavras de Lia ecoando na sua mente.
Sua visão embaçou e mais lágrimas pesadas rolaram por sua bochecha. Por quê? Por quê?
Por quê?
Perguntas sem respostas tomavam conta da cabeça dela, fazendo mais lágrimas escaparem,
o peito se apertando a cada instante.
Por que Lia fez isso com ela? Por que a expulsou daquele jeito? Por que foi obrigada a
passar por tudo isso de novo?
Aos poucos, a ficha de que ela havia ganhado mais um fora foi caindo e Sofia cobriu o
rosto com as mãos, tristeza, vergonha e arrependimento se misturando dentro dela como uma
bomba emocional, destroçando cada pedaço dela da forma mais dolorosa possível.
Suas mãos ficaram encharcadas pelas lágrimas e ela desejou que isso parasse, mas quanto
mais o tempo passava, mais abatida ela ficava.
Como se não bastasse, a discussão que ela teve com a sua mãe semanas atrás surgiu na sua
cabeça, tão destrutiva quanto o término de Lia.
— Mãe, eu conheço a Lia há tempo suficiente pra saber que eu posso mergulhar de
cabeça na nossa relação.
E para piorar, a frase de Milena na cafeteria a acertou em cheio, cortando o seu bondoso
coração:
— E você é uma vadia mimada que tem tudo na mão na hora que quer! — ela soltou,
destilando veneno em cada palavra. — Uma putinha que vive às custas da vovó rica! Tomara
que você se foda! Eu vou rir muito quando isso acontecer!
Sofia tentou controlar e secar suas lágrimas com as costas das mãos e fungou, piscando a
visão ainda embaçada.
Patrícia — e infelizmente — Milena estavam certas à respeito de Lia, mas Sofia foi tão
cega que confiou nela e ainda fez tudo o que podia por ela para receber um pé na bunda depois.
Não tinha sorte com relacionamentos. E chegar à essa conclusão foi como uma facada no
peito. Ela podia tentar o tanto que fosse, no entanto, nunca teria uma relação séria e bem
sucedida.
Sempre terminariam com ela como se ela não fosse suficiente. Sempre a tratariam como
uma maldita boneca Barbie e quando enjoassem dela, a largariam e a esqueceriam. Simples
assim.
Sofia respirou fundo, a agonia crescendo em sua garganta e virou o rosto na direção da
casa dos Belmonte. O que ainda estava fazendo parada ali? Seus olhos doíam só de olhar para a
residência onde passou momentos incríveis e memoráveis.
A lágrima quente rolou por sua bochecha e ela não a secou dessa vez. Apenas voltou a fitar
o volante e deu partida no carro, deixando a casa de Lia para trás, ciente de que nunca mais
pisaria o pé ali.
Quando a noite caiu, Sofia nem se deu ao trabalho de sair do seu quarto. Já tinha molhado
boa parte do seu travesseiro com suas lágrimas e tentava pegar no sono para esquecer
momentaneamente que Lia terminou com ela.
Estava quase adormecendo quando deram três batidinhas na porta. Sofia abriu os olhos se
deparando com o abajur iluminando o quarto e olhou para a porta no segundo que sua mãe
entrou, a expressão preocupada.
Ela cogitou em fechar os olhos e fingir que estava dormindo, mas estava bem adulta para
fazer isso, então apenas esperou Patrícia se aproximar da cama com a pergunta na ponta da
língua:
A mãe sentou sobre o colchão e ao notar a expressão tristonha e chorosa da filha, quis
saber:
— A Lia terminou comigo! Aconteceu o que você queria! Agora você pode sair e me
deixar em paz?!
Patrícia processou as palavras da filha por tempo demais de acordo com Sofia e fez mais
uma pergunta:
— Por que você não vai na casa dela e pergunta pra ela?!
Mas a mulher não pareceu se afetar com a resposta ríspida, pelo contrário, poderia ter
ficado calada ao invés de dizer:
— Eu te avisei.
— Nossa, a sua compaixão é contagiante. Você não poderia estar mais feliz, né, mãe?!
— Não é isso, filha. Eu não gosto de te ver assim. — Ela fez uma pausa, tentando manter a
expressão neutra. — Mas você deveria me escutar mais vezes, não acha? Se tivesse ouvido os
meus conselhos, isso não teria acontecido.
Sofia queria mandar a mãe à merda, mas engoliu o xingamento, pois não queria correr o
risco de ser expulsa de casa logo depois de ganhar um pé na bunda.
— Entendi. Vou seguir seus conselhos e tentar virar hétero. Certeza que nunca mais vão
terminar comigo — ironizou.
Patrícia a fitou.
— Eu também estou! Você quer que eu namore um homem, mas não adianta, eu não gosto
de homens!
— Eu já entendi que você não gosta de homens, acredite, eu não sou a minha mãe. Só
estou querendo dizer que… Não sei, você deveria ter ido com mais calma. Pensar duas vezes
antes de sair por aí pedindo qualquer menina em namoro.
— Só pra você saber nem fui eu que pedi a Lia em namoro. — E seus olhos ficaram
marejados de novo, a voz embargada. — … Foi ela…
— Eu gosto tanto dela e ela fez isso comigo... Por quê? Eu sou uma pessoa ruim?
— É claro que não, meu amor. — Patrícia se aproximou e a abraçou. — Você é uma
dádiva. — A mulher engoliu em seco e acariciou o cabelo dela. — Provavelmente ela não soube
lidar com tanta gentileza. Nem todo mundo está pronto pra receber amor, minha filha.
Sofia quase transcendeu ao escutar a frase cheia de sentido, molhando a blusa da mãe com
mais lágrimas. Realmente Lia não estava pronta para ser amada, uma vez que só recebeu
menosprezo, mas isso não justificava aquele término abrupto.
Nem mesmo todos os problemas que ela enfrentava eram justificativas plausíveis para
acabar tudo com Sofia como se a garota não tivesse sentimentos.
Quatro dias depois do término, Sofia recusou todos os convites de festas. Não estava no
clima para se divertir nem nada, por isso só passou a maior parte do tempo evitando o celular,
assistindo filmes bobos de comédia e tentando praticar o autocuidado, mas falhando
miseravelmente já que nem saiu para correr naquela semana e muito menos seguiu todos os
passos da sua rotina de cuidados com a pele.
Cansada de tanto assistir filmes, ela desligou a TV e saiu da cama, pegando um exemplar
do primeiro livro da série da Gossip Girl. Assim que se acomodou no puff branco e leu a
primeira página, o rosto de Lia começou a surgir na sua mente, se misturando aos eventos da
história.
Lia soprando a fumaça do baseado quando estava sentada com ela no mesmo puff meses
atrás; Lia lendo um livro com ela; Lia a beijando pela primeira vez na festa; Lia…
Sofia fechou o livro, largou-o no puff e mergulhou os dedos no coque frouxo, desfazendo-
o enquanto soltava um suspiro cansado.
Não aguentava mais pensar em Lia. Tudo o que fazia lhe fazia lembrar dela e Sofia estava
de saco cheio. Se a outra garota não fazia mais parte da sua vida, estava passando da hora do seu
cérebro esquecê-la.
Sofia sabia que não era tão simples assim, mas cada vez que pensava na ex-namorada,
sentia vontade de chorar por tudo o que foi jogado fora, todos os momentos bons e ruins, por
incrível que pareça, mais bons do que ruins.
As memórias estavam mais vívidas do que nunca. Jamais iria esquecê-las. Jamais.
Uma lágrima solitária rolou por sua bochecha e pingou na sua coxa antes de uma cabeleira
rosa surgir na porta do seu quarto. Sofia se assustou com a presença de Pérola e limpou
rapidamente a lágrima.
— Não chora, Sofi — a garota de cabelo rosa disse ao se aproximar. — Eu vim iluminar o
seu dia.
Sofia tentou esboçar um meio sorriso, mas falhou mais uma vez, o rosto incapaz de
expressar qualquer emoção positiva.
— Deixa quieto nada! Isso não se faz! Ela nunca vai achar ninguém melhor que você!
Sofia até poderia concordar, mas não estava tão certa disso. Sua autoestima estava tão
baixa que ela nem tinha força para se defender.
— Não tá nada bem. Ela foi bem filha da puta. Você fez tudo por ela e é assim que ela te
agradece?! — Pérola cruzou os braços, indignada. — Se eu fosse você, eu pegava outra na cara
dela só pra me vingar.
— E o que adiantaria?
— Você mostraria que tá muito bem sem ela.
— Mas é mentira.
— Mas o lance é mostrar, Paty. Tenho certeza que ela iria se arrepender.
Sofia recostou no puff, não levando a sério nada do que Pérola disse.
— Eu acho que ela nem gosta de mim, talvez tinha só uma curiosidade, sei lá…
— Não, eu acho que ela gosta de você, sim. Ela só é… — Pérola também recostou no puff.
— Problemática demais.
— Ah, o que foi? Sei que sou doida, mas eu sou uma amiga leal, tá? Você tá vendo mais
alguma amiga sua te apoiando aqui?
Sofia não tinha contado nada sobre o término para as suas outras amigas, incluindo a
Thaissa. Não queria preocupá-las bem na época em que todo mundo só pensava na formatura.
Ela podia lidar com isso com a ajuda de Pérola.
— Eu contei pra pouca gente — Sofia revelou. — Só você e a minha mãe sabem.
— Hm… Eu não deveria fazer graça com isso agora, mas estou me sentindo exclusiva.
Sofia soltou uma risadinha e se surpreendeu com o primeiro vislumbre de um sorriso desde
o término. Pérola era mesmo… uma pérola.
Depois que sua amiga foi embora, Sofia, cansada de procurar algo para se distrair na sua
própria casa, decidiu sair ao ar livre da noite.
Dirigiu até o bar próximo à Universidade de São Hobbes e avançou pelas mesas quase
vazias, ocupando uma no canto perto do banheiro. Quando sua cerveja chegou, ela pegou seu
celular e deslizou o dedo na tela, checando suas notificações. Sem conseguir se conter, procurou
o contato de Lia no WhatsApp e clicou na conversa das duas na esperança de haver uma nova
mensagem dela pedindo desculpa, mas é claro que não tinha nada disso.
Entrar em contato com Sofia nem deve ter passado por sua cabeça.
Magoada com a obviedade da situação, ela tomou um longo gole da cerveja, seu coração
se afundando no peito. Isso não podia continuar assim.
Pérola estava certa. Ela precisava se vingar por ter sido feita de besta. E como se fosse
alguma confirmação do destino, alguém parou diante da sua mesa, bloqueando a sua visão.
— Você aqui?
Sofia ergueu o olhar, se deparando com Milena e sua sobrancelha erguida quase
encostando na franjinha recém-cortada.
— Adivinha…
O sorriso da ex-namorada se tornou tão largo que Sofia queria que ela desaparecesse da
sua frente. Milena não sabia nem disfarçar sua felicidade pela desgraça alheia.
— Não me diga que a Lia não está mais com você? — Ela arrastou a cadeira na frente de
Sofia e se sentou, interessada. — Me conta tudo.
Milena cruzou as mãos por cima da mesa, o sorriso ainda estampado no rosto. Era uma
cobra mesmo.
— Você não queria que eu me fodesse? Aconteceu o que você tanto quis.
— Ah, que isso, Raio de Sol. — Milena estendeu a mão e a colocou por cima da de Sofia.
— Eu só falei isso por causa da raiva.
Sofia afastou a sua mão e levou o copo de cerveja aos lábios. Milena era uma grande
mentirosa.
— Você não tem que trabalhar? — Sofia quis saber, esperando que ela a deixasse em paz.
— Você tá vendo algum cliente precisando de mim aqui? — Ela olhou na direção do
balcão vazio e voltou a encará-la. — Daqui a pouco vamos fechar.
— Não sei.
Sofia a fitou. Não tinha nada para fazer mesmo, o que tinha a perder?
Meia hora depois, quando Milena foi liberada do trabalho, Sofia dirigiu com ela sentada no
seu banco do carona por três quarteirões de distância, preferindo ficar de boca fechada enquanto
a ex-namorada falava coisas que não a interessava.
A garota a encarou.
— Eu nunca faria isso com você, Raio de Sol. — Ela sentou ao lado de Sofia. — E
esquece essa menina, tá bom? Ela é problema demais pra você.
— E você é o quê?
A garota balançou a cabeça. Era impressionante como pessoas que não valiam nada se
achavam o máximo e as que eram boas se achavam os piores seres humanos do planeta.
— A Lia não está nem aí pra você — Milena continuou e pegou uma mecha do seu cabelo
loiro e ondulado, enrolando-o no dedo indicador. — Mas eu estou.
— Não foi o que pareceu dois anos atrás.
Sofia permaneceu na mesma posição e quando seu olhar baixou nos lábios de Milena tão
próximos do seu que dava para sentir a sua respiração, o rosto de Lia voltou na sua mente e ela
fechou os olhos, tentando dissipá-lo de sua memória. Neste momento, Milena encostou a boca na
sua e Sofia caiu na real. O que estava fazendo?
Ela se afastou de Milena tão rápido que uma das almofadas caiu no chão e se levantou,
pronta para ir embora.
— Espera! — Milena foi atrás dela e se meteu na sua frente, bloqueando a sua passagem.
— Você pode dormir aqui. Amanhã você vai.
— Milena… eu não gosto de você. Eu gosto da Lia. Entenda isso e me deixa em paz!
— Como você pode gostar daquela louca?! Sofia, ela não tem nada a ver com você.
— Eu achei bem feito ela ter terminado com você, sabia? Como você poderia ser tão
tonta?! Garota, você é tão burra que ela nem te quis! A sua sorte é que eu sou muito insistente!
Sofia a fulminou com os olhos marejados. Apesar de Lia ter terminado com ela, nunca a
tratou daquela forma, ofendendo-a como Milena sempre fez.
— Vai você! Além de burra, é trouxa! Ninguém vai te querer, Sofia. — Ela se aproximou
mais, um sorriso sádico se destacando no rosto. — Ninguém gosta de gente grudenta demais e
isso você tem de sobra, né? Nem a Lia que é lelê da cuca aguentou isso.
Sofia abriu a boca para se defender, mas nada saiu. Estava sem argumentos. Milena jogou
todos os seus defeitos na sua cara e ela não sabia como reagir, só sentir.
— Eu tenho pena de você. — A ex-namorada continuou e riu. — Vai ser sempre usada e
nunca vai perceber porque é um poço de burrice. Você é só um rostinho bonito com dinheiro,
nada mais.
— O mundo é dos espertos. — Ela alargou o sorriso. — Vai dizer que você não sabia disso
também?
— E quem disse que eu te quero de volta? — Milena gargalhou, sarcástica. — Para de ser
emocionada, garota. Eu nunca gostei de você. — E ela disse em uma voz mais doce: — Eu quero
mais é que você se foda, que fique claro, tá bom?
Sofia queria estapear a cara dela, mas se conteve. Ela apenas deu um passo a frente e
empurrou Milena ao passar, batendo a porta com força ao sair da kitnet.
Se já não se importava com Milena antes, a partir daquele momento, não queria nem tocar
na primeira letra do nome dela. Cometeu um grande erro ao ir até ali, afinal, isso só serviu para
fazê-la se sentir pior consigo mesma.
Ao entrar no HB20 branco, vazou da rua de Milena com lágrimas escorrendo pelas
bochechas, sua vida — tão colorida e agitada —, se tornando pacata e deprimente.
Você não sabe que eu não sou boa
para você?
Eu aprendi a te perder
Eu não suporto mais
when the party's over – Billie Eilish
Lia estava cansada de tudo. Cansada das pessoas, cansada da sua família, cansada do
mundo, cansada dos seus problemas sem solução, cansada dela mesma.
Cansada.
— Tudo bem?
— E por que você não falou pra ele que não queria vir?
Lia ficou calada. Estava sendo uma péssima paciente, mas não conseguia evitar tanta
negatividade. Era muito mais fácil se conformar com o pior do que ter esperança de que as coisas
podiam melhorar.
— Eu não sei, eu… Eu quero mudar, mas é tão difícil acreditar que eu vou melhorar um
dia… Eu não consigo…
— Certo. Todo mundo já fracassou na vida — ele considerou. — Mas é só você que não
pode falhar?
— Não é isso, é que … — Engoliu em seco, a angústia preenchendo seu peito. — Nada
nunca dá certo pra mim, entende?
O profissional assentiu.
— Talvez não dá certo porque você desiste. Já parou pra pensar nisso?
— A vida não é feita de altos e altos, Lia. Tempos difíceis sempre irão existir, mas desistir
de tudo porque é muito difícil só vai fazer você se sentir um fracasso e ao invés de afastar o
sofrimento, você vai conviver com ele.
— Você disse várias vezes que quer ser feliz, mas parou de tomar os remédios por causa
da opinião alheia e terminou com a namorada por não se achar boa o suficiente — ele continuou
e piscou, sério. — Parece que você acredita que vai ser abandonada e afasta as pessoas antes que
elas façam isso com você. Aconteceu algo parecido com o Mateus, não foi?
Lia assentiu e olhou para o chão, as lágrimas quentes ardendo os seus olhos.
— Eu fui embora sem avisar — confirmou, limpando uma lágrima que acabou de escorrer.
— Eu não sei por que eu sou assim…
— Provavelmente você aprendeu isso quando era criança. Mas a boa notícia é que
podemos mudar isso se você se comprometer com a terapia. — Ele se ajeitou na poltrona. —
Você promete que vai levar o tratamento a sério dessa vez?
Lia o encarou. Estava cansada de sempre sofrer consigo mesma. Se tudo dependia dela,
precisava fazer alguma coisa para o seu próprio bem e não para a sua completa destruição.
— Prometo — disse.
Era o segundo dia que Lia tentava focar nela mesma. Ela resgatou a pouca motivação que
ainda tinha e começou a tomar a sua medicação e até lavou o cabelo que ficou oleoso por uma
semana inteira devido ao excesso de desgosto que sentiu de si mesma nos últimos dias.
Aos poucos estava voltando a ser ativa, afinal, não era porque os seus pais não gostavam
dela que ela deveria se odiar também.
Seu coração pulou ao lembrar de Sofia. Lia pisou na bola com ela. Sofia não ia querê-la de
volta nem a pau.
Não ia mesmo.
Chateada com seus próprios erros, Lia deitou na sua cama e olhou na direção da mesinha
de cabeceira, o livro Confesse chamando a sua atenção. As duas já tinham terminado de ler e
Sofia decidiu deixá-lo com ela porque sabia que Lia amava colecionar livros como uma boa
leitora voraz.
Sofia foi tão boa com ela e ela se livrou dela sem dó nem piedade. Era uma pessoa
horrível. Não à toa, sua tendência era permanecer sozinha.
Na manhã nublada da segunda semana de dezembro, Lia acordou ciente de que sua rotina
seria a mesma de sempre: tomar café, organizar o que precisava ser organizado em casa, ler um
livro por várias horas seguidas, talvez assistir alguma série e dormir para no dia seguinte repetir a
mesma coisa.
Que vida de m…
Ela interrompeu seu pensamento negativo, pois seu psicólogo disse que cultivar tantas
ideias pessimistas não lhe faziam bem, pelo contrário, só pioravam o seu estado mental.
Soltou um suspiro já cansado e assim que saiu do quarto e terminou seu café da manhã, a
campainha tocou. Lia soltou mais um suspiro irritado e antes que pensasse em abrir a porta, a
voz estridente ecoou pelo ambiente:
— Cadê ela?
Lia pulou da cadeira ao reconhecer a voz de Pérola e saiu da cozinha, se deparando com a
garota de cabelo rosa andando na frente de Leandro.
— Ah! Você está aí! — Ela abriu seu sorriso cheio de dentes e a abraçou. — Ai, que
vontade de bater em você.
Lia se afastou do abraço, a sobrancelha erguida. Pérola continuava sorrindo como se não
tivesse dito nada de mais.
— Vim te ver. — Ela quase deu pulinhos de felicidade. — E ser o seu cupido.
— O quê?
— Porque vocês tem que estar juntas e não separadas. — Ela deu um tapinha no ombro de
Lia. — Anda logo. Você tem menos de dez minutos.
— Mas…
— Mas nada! — a interrompeu. — Você magoou a minha amiga, deixou ela triste e ainda
quer ter razão?! Faz logo o que eu falei antes que ela vai embora. Coloca uma calça legging e um
top pra ficar bem gostosa.
O olhar de Lia vagou até Leandro, que estava parado perto da porta com os braços
cruzados e um meio sorriso no rosto. Qual era a graça?
Lia inspirou fundo e cinco minutos mais tarde, desceu a escada vestindo uma legging preta
e uma regata da mesma cor.
Quando as duas chegaram no parque, o cheiro das árvores invadindo o nariz de Lia, a
ansiedade começou a consumi-la por completo.
— Lia… — a garota de cabelo rosa fez uma pausa, caminhando ao lado dela. — Eu gosto
de você, mas às vezes, você é irritante pra caralho, sabia disso?
Lia engoliu em seco e desviou o olhar de Pérola, fitando as nuvens cinzentas encobrindo o
céu, tentando controlar as lágrimas que começaram a se acumular de forma repentina. Ela sabia
muito bem disso, não precisava de ninguém pra dizer para ela.
— Eu vou embora. — Ela girou nos calcanhares, pronta para sair pelo portão do parque.
— Não! — Pérola puxou o seu braço com uma força quase sobrehumana, fazendo Lia
encará-la. — Desculpa, mas você faz qualquer um perder a paciência. A Sofia é uma pessoa tão
legal e você terminou com ela sem mais nem menos. Eu nunca vi aquela garota tão triste. Você
destruiu o coraçãozinho dela.
— Por isso ela tem que manter distância de mim. — A lágrima desceu quente por sua
bochecha. — Eu sempre destruo tudo. Só vou fazer ela sofrer.
— Para de ser burra! — Pérola berrou e a sorte é que não tinha ninguém por perto para ver
tamanha agressividade. — Eu sei que você é muito inteligente, Lia. A Sofia gosta tanto de você.
Você vai mesmo perder ela por nada?
Mais lágrimas escaparam e Lia as limpou, se sentindo um grande fracasso. Ela sempre
destruía tudo mesmo. Mas antes que pudesse pensar melhor no que Pérola disse, passos surgiram
e Lia virou o rosto para frente, o vento soprando o seu cabelo na mesma direção.
Sofia estava se aproximando com as mãos ajeitando o cabelo solto, o olhar parando em
Pérola e, em seguida, em Lia, a expressão abatida se tornando perplexa ao vê-la.
Me deixe te amar
Me deixe te amar como você precisa
E farei isso
Tornarei a minha responsabilidade
Eu estarei lá em cada passo do
caminho
Eu colocarei você em volta dos meus
pés
Me deixe amar você
Me deixe te amar como você precisa
Starry Eyes – The Weeknd
Estava tão surpresa com a aparição de Lia que até piscou algumas vezes, se certificando de
que não estava vendo uma miragem.
Sofia cruzou os braços e decidiu se aproximar um pouco mais, parando perto de Lia. Seu
coração disparou e a outra garota pigarreou, abrindo a boca:
— Oi…
Lia olhou para o chão, mas logo voltou o olhar perdido para Sofia.
— Lia — Sofia a cortou. — Você me magoou muito. De verdade, eu não esperava isso de
você. — E como se não bastasse, seus olhos também se encheram de lágrimas. — Não esperava
mesmo. Nem passou por sua cabeça que eu também tenho sentimentos?!
— Eu sei que você tem depressão e que tem uma família problemática, mas isso não é
motivo pra terminar tudo comigo! Eu não sou feita de plástico, eu sou um ser humano.
Sofia suspirou e pegou no rosto dela, obrigando-a a encará-la, seu rosto refletido nas íris
castanhas e brilhantes. As gotas de chuva começaram a engrossar e uma trovoada estremeceu
todo o parque.
— Eu te amo — revelou, a lágrima ameaçando cair. — E eu quero fazer parte da sua vida,
quero te fazer feliz, quero que você me deixe amar você, mas… não depende só de mim.
As lágrimas de Lia se misturaram às gotas de chuva e ela abriu a boca, mas não falou nada,
contida pela grande emoção.
— Você vai me deixar fazer isso? — perguntou, a chuva ensopando toda a sua roupa
esportiva.
Lia assentiu, as gotas de chuva lavando todas as suas lágrimas, sua respiração virando
vapor.
— Você pode fazer o que quiser comigo, até destruir a minha vida — a outra garota disse.
— Eu não vou te impedir.
E sem aviso prévio, Sofia colou os lábios nos dela, beijando-a com fervor, sugando a água
que caia sobre elas e aspirando a sua respiração quente enquanto Lia envolvia a cintura da garota
com os braços, correspondendo o beijo cheio de saudade. Pérola comemorou com um gritinho
animado, tão ensopada quanto elas, e Sofia continuou beijando Lia completamente necessitada.
Parecia que ela tinha ficado um ano longe de Lia de tão carente que estava. Nunca mais
queria que isso se repetisse e iria fazer o que estivesse ao seu alcance para ajudá-la no que ela
precisasse.
Quando Sofia afastou o rosto do de Lia, ela sorriu, a abraçando no meio da chuva morna,
Pérola rindo e sacudindo o cabelo molhado como se fosse um cachorro.
Se antes o coração de Sofia estava despedaçado, agora cada pedaço estava sendo
restaurado um por um. Afinal de contas, ela estava de volta aos braços da garota que amava e
nada mais importava.
E eu não sei como isso pode ficar.
melhor
Você pega minha mão e me joga de
cabeça,
Destemida
E eu não sei porque, mas com você
eu dançaria
No meio da tempestade em meu
melhor vestido,
Destemida
Fearless – Taylor Swift
Lia deu um passo para trás, observando a sua imagem refletida no espelho do banheiro do
ginásio. Ela ajeitou o vestido preto, a barra cobrindo seus tornozelos e respirou fundo, fazendo o
peito subir e descer.
Suas mãos ficaram suadas novamente, mas ela as sacudiu no ar e após dar mais uma
olhada minuciosa na sua aparência — a maquiagem bem feita lhe deixando mais bonita e as
pontas do cabelo modeladas por babyliss lhe proporcionando um ar romântico —, ela decidiu
sair do banheiro.
Ao deixar as portas duplas do ginásio para trás, se deparou com os formandos e os
convidados se aglomerando pelo amplo espaço decorado com luzes e toalhas cintilantes nas
mesas. Várias pessoas sorriam e conversavam entre si enquanto ela esperava, a expressão
apreensiva e o corpo nada relaxado.
— Lia?
A garota virou o rosto na direção da voz grave e se surpreendeu ao ver o rapaz alto enfiado
em um terno preto e elegante, sorrindo para ela e parecendo tranquilo.
Ela assentiu.
— Contou. — Ele colocou as mãos nos bolsos. — Que bom que você está seguindo em
frente. Avisa pra Sofia que ela é uma garota de sorte.
Lia piscou e assentiu de novo, tentando não se emocionar com a frase do ex-namorado. Ele
desviou a atenção dela e olhou para frente, observando os formandos de Publicidade e
Propaganda se aproximando.
E deixou Lia para trás antes que ela pensasse em dizer alguma coisa. O olhar de Lia vagou
até Thaissa, que estava usando um longo vestido de tom rosé gold, Mateus a recebendo com uma
expressão de admiração.
Se fosse há mais de três anos, ela estaria se mordendo de ciúme por ele, mas como
descobriu que não precisava se humilhar por amor, não sentiu nada além de "eles nasceram um
para o outro".
— Meu Deus…
Lia tirou os olhos do casal e notou Sofia se aproximando dela com um largo sorriso, o
vestido azul-claro fazendo ela parecer a Cinderela.
— Como é a sensação de ser a garota mais linda da minha formatura? — Sofia perguntou,
claramente muito animada por ter conquistado o seu diploma.
— Olha só quem fala. — A mediu de cima a baixo, notando que o vestido de tecido
brilhante e levemente translúcido valorizou todas as suas curvas. — Você tá parecendo uma
deusa grega.
Sofia riu e puxou o rosto dela com as mãos, a beijando na boca, o cheiro forte do perfume
doce invadindo o nariz de Lia.
Não demorou para iniciarem o baile de formatura, as duas garotas se aproximando do meio
da pista e Lia respirando fundo algumas vezes.
— Vai dar tudo certo — Sofia lhe assegurou, trazendo o seu corpo para perto do de Lia e
se colocando na posição da dança. — A gente treinou várias vezes, não tem como errar.
A atenção de Lia foi parar em Patrícia, o sorriso largo que ela nunca tinha visto
estampando o rosto da mulher, os olhos voltados para as duas e a câmera do celular focada nelas.
— E ela está.
A valsa começou a tocar e Lia guiou Sofia pelo piso brilhante do ginásio, fazendo questão
de manter os olhos presos aos dela para não perder a concentração na dança.
Ao trazer Sofia para perto de si novamente, Lia não se conteve e inclinou o rosto, selando
os lábios nos dela por longos segundos.
— Por quê? — Lia colocou a mão na sua cintura, voltando a acompanhá-la nos últimos
momentos da dança.
Lia deu risada. Como não amar uma das melhores pessoas que entrou em sua vida? Só um
psicopata não seria capaz disso, mas ela, não. Amava até demais, não à toa sofria ao extremo por
não ser correspondida.
No entanto, agora sentia que seria diferente. Sentia-se livre para transbordar amor sem
medo de ser rejeitada.
O Natal na família Veronese era um dia muito apreciado. Nessa data, Patrícia fazia questão
de decorar a casa inteira e de manter a família unida.
E Sofia amava tudo isso. Desde a árvore de Natal exuberante na sala de jantar até a escolha
do look natalino.
Ela observou seus avós conversando entre si, Anabel mantendo a postura ereta enquanto
prestava atenção no que Joaquim estava dizendo, ambos sentados um ao lado do outro no sofá.
Um sorrisinho automático surgiu em seu rosto e bem neste instante, a campainha tocou.
Sem esperar uma reação por parte dos avós, ela deixou a porta da sala para trás e logo se
deparou com Lia e Leandro em frente à sua casa. Assim que eles passaram pelo portão, ela
mediu Lia de cima a baixo, o vestido vinho justo ao corpo destacando tudo o que Sofia apreciava
nela.
Lia deu risada e envolveu a cintura dela com os braços, o perfume cítrico pairando no ar,
os olhos passeando por cada centímetro de tecido do vestido verde de Sofia.
— Você é que está. — Ela beijou a sua bochecha. — Verde é a sua cor.
Sofia abriu um sorriso tão largo que seus dentes brilhantes eram capazes de iluminar toda a
noite de 24 de dezembro.
— Aff, que melação! — Leandro reclamou, segurando duas sacolas de papel com
presentes. — Vamos entrar logo, eu estou com fome.
Sofia riu e a puxou para dentro de casa, Leandro seguindo logo atrás delas com uma cara
de poucos amigos.
— Gente — Sofia chamou a atenção de seus avós e da sua mãe. — Essa é a Lia. — Ela
apontou para a namorada. — E esse é o Leandro, irmão dela.
— Prazer em conhecê-la.
Lia assentiu com um sorriso meio sem jeito e um segundo depois, ele foi cumprimentar
Leandro. Nesse instante, o olhar de Sofia foi parar em Anabel que continuava sentada no sofá
com um ar de julgamento no rosto, segurando uma taça com água gelada.
A garota cruzou os braços e fitou a avó. Isso deve ter atraído atenção dela, pois Anabel
sustentou o seu olhar por alguns segundos antes de dar um gole demorado na água.
Sofia revirou os olhos com a atitude apática da avó e tentou se controlar, afinal, era Natal e
ela não podia perder a compostura.
— Oi, Lia — Sofia ouviu Patrícia dizer à namorada. — Espero que você se sinta em casa.
A garota piscou e sorriu no exato momento em que Lia agradeceu. Pelo menos a sua mãe
estava sendo simpática.
Quando todos se sentaram à mesa para participar da ceia, o cheiro de peru assado
preenchendo todo o ambiente mesmo com pratos diversos à disposição, Anabel perguntou:
— Quem cozinhou tudo isso, Patrícia? — Ela lançou seu olhar minucioso sobre cada tigela
de comida que compunha a ceia. — Sei que não foi você. — Seu olhar crítico foi parar na filha.
— Você não sabe fritar nem um ovo.
— Eu encomendei — a mãe de Sofia respondeu. — Você também não sabe cozinhar, mãe.
A sua salvação é a Maria.
— É. Ela está precisando de dinheiro. Se não pagar o aluguel, será despejada. Acredita que
a garota está trabalhando em casas noturnas pra se manter? — E riu. — Aposto que deve estar se
prostituindo por aí. Não dou dois meses pra virar mendiga.
— Não me diga. — Sofia tentou segurar o riso, achando graça da forma como sua avó se
referiu à Milena. — Que pena. — Só que não.
— Pena? Aquela garota nunca me desceu. Ela não passa de uma interesseira — Anabel
revelou, toda ácida. — Ainda bem que você cortou sua amizade com ela, Sofia.
Não pôde evitar a satisfação que sentiu ao saber que Milena estava passando por
dificuldades financeiras. Sabia que era errado se alegrar com o sofrimento dos outros, mas
Milena mereceu e ainda foi pouco. No fim das contas, isso só provava que toda aquela
insistência dela era puro interesse, não em Sofia, mas em seus bens materiais.
— Na minha casa — Leandro respondeu, sério. — Sua neta não sai de lá.
Sofia esboçou um sorriso sem graça ao mesmo tempo que Anabel abria um sorriso
gigante.
— É mesmo? — Ela bebeu um gole da água gelada novamente. — E você é tão bonito…
Acho que ela mirou no irmão errado, não?
Anabel a fulminou com o olhar e Leandro deve ter achado graça, pois adotou uma
expressão divertida.
— E então… Lia, não é isso? — Anabel perguntou, fazendo Sofia revirar os olhos.
O silêncio se instaurou de forma repentina e Sofia estava quase sugerindo pra elas
mudarem de assunto, na esperança de que sua avó não aborrecesse sua namorada, quando Lia
respondeu:
— Ela ama — Sofia respondeu por ela, toda empolgada. — Você nunca conheceu uma
pessoa que gosta tanto de livros como a minha namorada, vó.
Depois da ceia, todos se reuniram no sofá para abrirem os presentes, e enquanto Lia
desembrulhava uma caixa um tanto pesada, Sofia a olhava com expectativa.
Assim que Lia tirou seis livros da caixa, sendo eles: Um caso Perdido da Collen Hoover;
Mulherzinhas da Luísa May Alcott; A História Secreta da Donna Tartt; Admirável Mundo Novo
do Aldous Huxley; uma edição de luxo de A Menina Submersa da Caitlín R. Kiernan e; A hora
da estrela de Clarice Lispector, o sorriso dela aumentando a cada segundo, o peito de Sofia
transbordou de felicidade.
— Como você sabia que eu queria esses livros? — Lia perguntou.
— É claro! Eu amei. — Sofia abriu um sorriso, começando a acreditar que verde era
mesmo a sua cor. — Já quero usar!
Lia deu risada e pegou o rosto dela com as mãos, lhe dando um beijo rápido. Assim que
afastou o rosto, desejou:
— Feliz Natal.
Sofia a fitou, incapaz de tirar o sorriso bobo do rosto. Natal era, definitivamente, a sua data
favorita.
Você salvou a minha vida e agora
Eu estou feliz
Porque finalmente eu sinto que tenho
tudo
Começou sem nada
E mesmo quando eu sinto que vou
cair
Eu sei que a minha sorte voltou
I'm Happy – Imagine Dragons
Lia sempre se sentia nostálgica nas vésperas de Ano Novo. Nessa época, ela fazia um
resumo mental de como foi o seu ano e na maioria das vezes, chegava a conclusão de que foi um
pouco pior que o anterior.
Não foi muito diferente com aquele ano que estava prestes a acabar, mas havia uma
exceção, porque agora ela estava decidida a levar em consideração as coisas boas da vida, não
somente as ruins. E pesando os acontecimentos do ano de 2019 em uma balança imaginária, se
deu conta de que as coisas boas estavam bem próximas das ruins. Não estavam no mesmo nível e
aconteceram com menor frequência, mas, ainda assim, isso poderia ser um bom sinal.
Um sinal de que a felicidade sempre esteve presente na sua vida, ela só não tinha notado.
Estava finalmente entendendo que podia ser feliz durante o caminho e não quando alcançasse o
topo. Leandro, Sofia e até mesmo Pérola contribuíram para ela perceber isso.
No fim das contas, ela não estava sozinha mesmo, só achava que estava.
Enquanto as ondas do mar quebravam na areia da praia, o céu noturno tornando o oceano
uma imensidão negra, Sofia se aproximou dela com duas cervejas na mão, o vestido acinzentado
e brilhante fazendo ela parecer uma estrela. Ok, ela era uma estrela. A sua estrela.
— A sua bebida. — Ofereceu a lata de cerveja para Lia, que lhe deu um sorriso
agradecido.
Sofia sentou ao seu lado na areia e Lia a observou quando ela levou a cerveja aos lábios.
— O que foi?
— Nada. — Lia alargou o sorriso, o vento jogando o seu cabelo para trás. — Só estou te
admirando.
Sofia riu e Lia pegou sua câmera instantânea logo ao seu lado e a ergueu até a região dos
olhos, captando a expressão genuína da namorada.
— Vou fazer um mural só com as suas fotos pra eu ficar admirando no meu quarto.
Sofia gargalhou de novo e isso não tinha nada a ver com o álcool. Só estava embriagada de
amor mesmo.
— Vai ficar lindo, eu vou amar! — Ela foi para cima de Lia, sentando em seu colo e
fazendo a barra do vestido subir, revelando o biquíni preto. Não demorou para colar os lábios nos
dela em um beijo fervoroso.
Lia agarrou sua cintura e deitou na areia, as duas se pegando na beira da praia enquanto a
festa de Ano Novo acontecia atrás delas.
Assim que conseguiram uma garrafa de champanhe e duas taças, começaram a caminhar
pela areia molhada, a água do mar lavando os pés de Lia a cada passo. Ela cruzou os dedos com
os de Sofia, ficando de mãos dadas com ela e sorriu à toa.
— Estou tão feliz que você vai começar a faculdade. — Um sorriso acompanhou a sua
voz.
— Eu também. — Lia se aninhou para mais perto e envolveu o ombro dela com o braço.
— Obrigada por todo apoio.
— Você fez, sim. Você me incentivou desde o começo, Sofi. Ninguém nunca fez algo
assim por mim. — Ela fez uma pausa, a bola crescendo na garganta. — Você me enxergou como
uma pessoa e não como uma louca.
Sofia piscou os cílios carregados de rímel e tocou no rosto dela, o polegar acariciando a
bochecha antes dos lábios com gosto de champanhe tocarem os seus de forma suave e lenta.
Nada mais precisava ser dito. Só sentir a boca de Sofia na sua e ouvir o som do mar
bastavam. Lia agradeceu mentalmente pelo momento perfeito, seu peito se enchendo de
felicidade ao ter a certeza de que aquela se tornaria uma das memórias mais incríveis da sua vida.
FIM
Fico muito feliz por você ter chegado até aqui. Espero que Pausa para Respirar tenha
proporcionado um quentinho no seu coração.
Obrigada,
Liliane Reis
Estou mais uma vez terminando um livro com lágrimas nos olhos, pois entregar um livro para o
mundo me causa sempre um misto de emoções. E essa é a graça da coisa.
Muito obrigada, leitor, por ter lido até aqui. Sei que Pausa para Respirar não é um livro leve,
apesar de ser fofo em vários momentos, e eu só tenho a agradecer por você ter dado uma chance
à minha arte.
Também agradeço a todas as pessoas que me ajudaram a colocar a história de Solia no papel:
Carol, Thaynara, Nat, Ana Luiza e Jess. Vocês não têm noção do quanto contribuíram para que
esse livro existisse.
E para você, leitor, que me acompanha há bastante tempo, em breve vem aí mais uma
história que se passa em Hilionopóles: se preparem para conhecer Elisa e Teo,
protagonistas do meu romance colegial +18.
Liliane Reis é escritora e psicóloga. Nascida e criada em São Paulo, ama climas frios, odeia calor, adora praia, e é apaixonada por
livros e gatos desde que se conhece por gente.
Atualmente usa seus conhecimentos em Psicologia para construir seus personagens e não se imagina escrevendo um livro sem
romance.
Começou a escrever aos 12 anos de idade, criando histórias com uma amiga na escola. Anos depois, descobriu o Wattpad,
conquistando leitores que a acompanham até hoje.
Planeja escrever histórias cada vez mais envolventes, abordando saúde mental e representatividade, sem deixar o romance de
lado.
INSTAGRAM: @REISESCRITORA
TIKTOK: @REISESCRITORA
E-MAIL: LILIANEREISB@GMAIL.COM