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Copyright © 2023 Brenda Borges

Autora: Brenda Borges


Capa: Brenda Borges
Leitura crítica: Juliana Reis

Todos os direitos reservados. Este e-book ou qualquer parte dele não pode ser
reproduzido ou usado de forma alguma sem a autorização da autora, exceto pelo uso
de citações para resenha.
Aviso da autora:

Este livro contém trechos de músicas nacionais e internacionais no início de cada


capítulo. Essas, e outras que fazem jus a história, estão disponíveis em uma playlist
do Spotify, que vocês podem acessar por meio desse código:

Redes sociais da autora:


@tatudobren
Para as meninas que têm coragem, mas, principalmente, para as meninas que
têm medo. E também para as que são muito mais
do que dizem por aí.
“So give me all of your love, give me something to dream about”

Daydreaming - Harry Styles

Mia me arrastava pela mão corredor adentro. A música alta começava a sumir e as luzes
piscantes começavam a se afastar. Estava escuro em boa parte do caminho. Eu já não conseguia
me guiar e cedia apenas ao rumo pelo qual a garota me levava. Até que chegamos em uma porta
branca, a qual ela prontamente abriu.
A porta do quarto dela.
— Não vão encontrar a gente? — perguntei, após entrar no quarto.
— Podem até encontrar — Mia respondeu, acendendo o abajur de luz alaranjada —, difícil
vai ser nos tirarem daqui. — Ela sorriu e trancou a porta.
— E você pode me dizer por que a pressa de sair do meio da festa? — Me aproximei dela.
— Porque eu não conseguia mais esperar por isso aqui.
E, então, Mia me beijou. Segurando com firmeza meu rosto com suas duas mãos, em um
ato desesperado. Minhas mãos encontraram sua cintura e a puxaram para perto, colando nossos
corpos. Era possível sentir nossos corações batendo forte e simultaneamente.
Ela descia uma das mãos em direção ao meu quadril enquanto eu subia uma das minhas em
direção aos seus cabelos, embrenhando os dedos pelos fios curtos e pretos da nuca. Encostei a
garota na parede conforme o beijo se intensificou, posicionando minha perna suavemente entre
as dela, que pressionou minha lombar com a ponta dos dedos em resposta. Levei a mão até seu
queixo, segurando-o de leve antes de afastar o rosto por um segundo.
— Sabe que podia me beijar assim lá embaixo, não sabe? — assegurei.
Mia trocou de posição comigo, me encostando na parede. Ela percorreu a mão por toda a
frente do meu corpo: partindo do meu pescoço, em direção a minha barriga e, por fim, parando
no botão da minha calça. Ela moveu o rosto suavemente em direção a minha orelha.
— As coisas que eu quero fazer com você não podem ser feitas em público, Aurora —
sussurrou. — E se você estiver disposta, eu posso te mostrar elas agora.
A garota delicadamente abriu o botão da calça de alfaiataria que eu vestia, esperando por
um sinal meu para continuar. Me aproximei do pescoço dela, depositando um beijo suave antes
de cochichar em seu ouvido.
— Eu quero que você faça agora o que você sempre quis — respondi, dando o sinal que
ela precisava.
E então, Mia deslizou a mão para dentro da minha calcinha.

O som estridente do alarme do celular me fez acordar no susto e sentar na cama ofegante com o
coração acelerado.
Tá, talvez não tenha sido o alarme.
— Que porra é essa, Aurora? — perguntou Bela, minha irmã, acordando no ritmo de uma
pessoa normal. — Viu um fantasma?
— Talvez — respondi.
Mia era uma colega de faculdade. Foi minha veterana quando entrei para o curso de
Cinema na federal. A casa do sonho era a casa dela, enorme. E eu sabia porque algumas das
festas particulares do curso aconteciam lá. Mia Duarte era podre de rica. Sua mãe era uma atriz
de sucesso e talvez por isso ela escolheu a carreira cinematográfica. Ela morava em um casarão
em um condomínio, no bairro Camboinhas, onde ficava boa parte do tempo sozinha e dava as
mais variadas festas. Mia esbanjava dinheiro por onde passava.
— Foi um pesadelo? — Bela questionou, ainda confusa com meu susto.
— É — confirmei. — Tipo isso.
Não foi um pesadelo, é claro. Foi bem longe disso, analisando a fundo. O problema é que
de todas as garotas possíveis, eu sonhei que estava transando com Mia Duarte.
E eu não suportava sequer olhar para Mia Duarte.
Fala sério, a começar que a mãe dela era atriz, ela tinha dinheiro saindo pelos poros e
pegou uma vaga na faculdade federal. Certo, a nossa faculdade era referência no curso, mas e
daí? Ela não precisava de currículo.
Ela nunca tinha ouvido falar em nepotismo?
E, como se não bastasse, quando eu digo que ela esbanjava dinheiro por onde passava eu
quero dizer que ela realmente fazia isso. Sempre usando coisas caras, carregando coisas caras,
dirigindo um carrão, dando festas em casa e gastando uma nota em outras. Parecia fazer tudo isso
só para aparecer.
Sem falar na namorada dela, que conseguia ser ainda mais insuportável que a própria.
Larissa. Poderia ser o que se chama de “loira odonto”, mas, na verdade, cursava Direito. E, claro,
era completamente fora da realidade.
Dizia para os outros que morava em Curicica, mas todo mundo sabia que ela morava na
Barra da Tijuca. Só queria parecer menos endinheirada do que de fato era, já que estudava em
uma faculdade pública e queria fazer parecer ser humilde, mesmo não sendo.
Todos os motivos para chamar o que houve de pesadelo estavam ali. Todos. Não gostava
de Mia, ela era exibida e cheia de grana, namorava e a namorada ainda conseguia ser uma pessoa
pior do que ela.
Só tinha um obstáculo pra chamar isso de pesadelo: foi bom. Muito bom. Estranhamente
bom.
— Seja lá o que houve, deve ter sido intenso — disse Bela, sentando na cama. — Sua
franja tá úmida do suor da sua testa. — Apontou, antes de levantar e sair.
Passei a mão para ajeitar a franja castanha. Meu Deus, eu preciso de um banho. Um banho
frio.
Tomei meu banho rapidamente, tentando focar em outra coisa que não aquele sonho
maldito. Vesti uma calça cargo bege de tecido mais fresco e uma camiseta listrada em preto e
branco. Prendi meu cabelo médio em um rabo de cavalo baixo, mal feito, e me dei por satisfeita.
Quando saí do banheiro, Bela entrou e pouco tempo depois já estávamos juntas na mesa do
café.
— Bom dia, meninas — desejou minha mãe, Sandra, passando apressada e pegando um
café. — Querem carona pra faculdade? Só vão ter que correr, porque eu já tô saindo.
— Não, valeu mãe — respondeu minha irmã. — A gente se vira.
— Tudo bem por você, Aurora?
— Tudo, claro — respondi distraída.
O foco foi embora outra vez. Eu tentava não pensar no sonho, mas era difícil. Foi muito…
real. Eu lembro da sensação da boca dela na minha, nas mãos firmes no meu rosto, o peito
saltando com os batimentos cardíacos, a ponta dos dedos me pressionando.
Pisquei repetidas vezes pra tirar isso da cabeça, mas quando abri os olhos de vez, Bela me
encarava séria, sentada na cadeira da frente. Os olhos bem abertos com tom de desconfiança e o
café sendo bebido.
— Você tá… legal? — Ela arqueou a sobrancelha depois de colocar a xícara na mesa.
— Tô — menti.
— Não acredito em você — disse ela, incisiva.
Essa era a desvantagem de ter uma irmã gêmea. Não importava o quanto vocês fossem
diferentes, fisicamente ou na personalidade, ainda assim vocês conseguiriam se decifrar. Era
difícil esconder alguma coisa dela.
— Tá. — Suspirei. — Eu… tive um sonho.
— Isso já deu pra notar — disse, contendo um risinho.
— Um sonho erótico — completei. — Com a Mia.
— Que Mia? Duarte? — Bela esticou o pescoço pra trás, em surpresa.
— A própria.
— Mas essa não é aquela riquinha da faculdade? De quem você vive falando mal?
— Exatamente, Bela! — exclamei. — Por que eu sonhei que tava transando com essa
garota insuportável?!
— Vai ver você deveria transar com ela de verdade. — Bela deu de ombros. — Bonita ela
é.
— Ela nem é tudo isso. — Tomei um longo gole de café. — E eu jamais transaria com ela.
— Mas o sonho foi bom? — perguntou curiosa.
— Bela…
— Qual é! — exclamou. — Só quero saber. Foi?
Fiquei em silêncio. Negar não adiantaria, mas eu me recusava a dizer em voz alta.
— Foi bom! Eu sabia! — Ela riu. — Você não acordaria daquele jeito se não tivesse sido
bom.
— E agora?
— Ué, e agora nada — Bela disse, com desdém. — Isso não muda nada, né? Você disse
que jamais transaria com ela.
— É — respondi, séria. — Não muda nada. Tem razão.
— E além disso, ela namora aquela chatinha do Direito, não é? — perguntou. — Raissa?
— Larissa — lembrei. — Sim. Elas namoram desde que eu entrei na faculdade.
— Então não tem com o que você se preocupar — Bela emanava tranquilidade. — A não
ser que depois desse sonho você esteja reconsiderando…
— Não — interrompi. — Repito: eu jamais transaria com ela.
— Bom, se você diz. — Bela se levantou. — Agora pega suas coisas e vamos, se não a
gente vai perder o ônibus.
Bela e eu fomos pra faculdade dentro de um ônibus lotado, com o calor do verão de Niterói
nos matando aos poucos. Ao menos foi o bastante para que eu me esquecesse do sonho durante o
trajeto, mas suei tanto que me obrigou a usar o banheiro da faculdade para trocar de blusa assim
que cheguei.
Entrei na cabine já tirando a roupa, procurando uma das camisetas que havia na mochila.
Antes mesmo que acabasse de ajustar as alças, ouvi alguém entrando no banheiro.
— Então é isso? — A voz chata e estridente ecoou no recinto. Era Larissa. — Você vai
ficar chateada comigo por isso?
— Eu não deveria? — Imediatamente reconheci a voz de Mia Duarte, com um certo tom
de incômodo.
— Você definitivamente tá querendo criar problema pra gente sem necessidade — a garota
respondeu, chateada.
— Sem necessidade?! — Mia respirou fundo, parecendo cansada. — Eu não tenho que
lidar com isso, Larissa. Você sabe que não tenho.
— Mia, por favor! Para de ouvir fofoquinha dos outros e me ouve — insistiu. — Tá tudo
bem. Sério. Não tem com o que se preocupar. A gente pode deixar isso pra lá?
Mia ficou em silêncio durante alguns segundos.
— Tudo bem. — Suspirou. — A gente deixa pra lá, mas eu não quero continuar tendo que
lidar com isso. Quero acreditar que não tenho com o que me preocupar, mas você vai ter que
mostrar isso.
— Tá bom, meu amor. — Ouvi um som de um beijo estalado. Credo. — Vai ficar tudo
bem, tá? Não escuta os outros não. — Ela pausou. — Vamos subir?
— Pode ir, ok? — Mia pediu. — Daqui a pouco eu vou.
— Você ainda tá brava?
— Não, eu só preciso de um tempinho aqui sozinha. Tá?
— Tá — a garota respondeu de prontidão. — Então eu já vou. Eu te amo, viu?
— Eu também — disse Mia.
E então, ouvi os passos de Larissa saindo e tudo ficou silencioso.
Enrolei por um tempinho antes de abrir a porta rapidamente, achando que àquela altura
Mia não estaria mais lá, mas logo me deparei com seu reflexo no espelho, olhando na minha
direção. Fui lavar as mãos na pia ao lado e ela me encarava, sutilmente e em silêncio. Não era
novidade pra ela que eu não ia com sua cara, e aparentemente era recíproco. Provavelmente
pensou que eu espalharia o que ouvi pra todo o curso. O que, em partes, não seria mentira.
Mia estava usando uma regata preta e uma calça larga quadriculada vermelha. O cabelo
parecia úmido, como se tivesse saído do banho e vindo no conforto do seu carro com ar
condicionado para a aula. Mas como se não bastasse, o perfume dela se espalhava por todo o
recinto.
Foco. Não dá pra me distrair agora. Coloquei a mochila nos ombros e saí apressada, sem
trocar uma palavra com ela.
Então Mia e Larissa estão tendo problemas. Eu, igualmente, quero e não quero saber o que
está acontecendo.
“Why you so obsessed with me?”

Obsessed - Mariah Carey

— Por isso, é muito importante que vocês tenham em mente o quanto a iluminação vai interferir
no direcionamento da cena e na emoção que precisa ser passada — dizia a Professora Eliana, nos
falando sobre tons quentes e frios e o que eles significam.
Mas confesso que os meus cochichos com Lucas e Rafaela no canto da sala estavam bem
mais interessantes.
— Vocês sabem que eu odeio fofoca — começou Rafa, baixinho. A garota de pele negra e
cabelos lisos escuros dava todos os detalhes que sabia enquanto anotava no caderno algumas
coisas do quadro. Olhamos com feição de julgamento, porque se Rafaela Mendes gostava de
algo, esse algo era fofoca. — Mas tem uma conversa rodando por aí sobre elas dizendo que tem
muito ciúme envolvido no relacionamento. De ambas as partes.
Obviamente, Mia não estava na sala. Provavelmente organizou a grade diferente da minha.
— A fofoca que eu ouvi é que o ciúme é por parte da Mia. Tem quem diga que ela é
possessiva — afirmou Lucas, brincando com um dos cachos pequenos no topo da cabeça.
— Fácil jogar essa responsabilidade nas costas da Mia, né?! — Revirei os olhos.
— Você defendendo Mia Duarte? — Lucas arqueou a sobrancelha acima do óculos,
seguido de olhos arregalados de Rafaela.
— Para de bobeira vocês dois — cortei. — Não é defesa, mas sempre que fofocam sobre
um relacionamento entre mulheres ser tóxico atribuem logo toda a culpa pra que não é
feminilizada. Eu não duvido que a Mia seja meio babaca, mas isso porque meu santo não bate
com o dela e, quando meu santo não bate, nunca é a toa. É diferente dos outros, que só acham
isso porque ela é desfem.
— Você tem razão — o garoto concordou. — E se a gente parar pra pensar, a Larissa
também não é flor que se cheire né.
— Aquela lá não é nem flor — Rafa acrescentou. — É erva daninha. Planta carnívora. Só
os espinhos.
Como dá pra notar, Rafaela tinha só um pouquinho de raiva da Larissa. Uma raiva
completamente saudável e sem nenhuma pitada de rancor. Rafa e Larissa estudaram na mesma
escola no Rio durante o ensino médio. Larissa e o grupinho de amigas pegavam no pé de Rafaela
o tempo todo por ela ser bolsista. Até um dia no segundo ano, em que a garota respondeu que
pelo menos sendo bolsista ela tinha como garantir que não era burra, e que os pais das meninas
só pagavam colégio pra elas por não confiarem na inteligência das filhas tanto assim.
Acabou em puxão de cabelo, diretoria e uma suspensão de três dias para cada. Hoje
Rafaela assume que errou, porque não passar em uma prova não é sinônimo de burrice. Mas sabe
que foi o que precisava para o momento, já que não tem nada mais ofensivo para esse tipo de
gente do que o estereótipo de padrão ser só um rostinho bonito sem conteúdo.
— Se eu soubesse que ia ter que ver essa praga na faculdade todo dia eu tinha arrancado
mais uns dois tufos do cabelo dela só pra ficar esperta. — Cruzou os braços. — Mas, enfim, eu
não sei quem fez ou deixou de fazer merda nessa história, mas aí tem coisa. Até no spotted da
faculdade já tem uma postagem.
Um spotted funciona como uma espécie de página de fofoca, a maioria das faculdades têm
o seu. É tipo um Gossip Girl do mundo universitário. No caso do nosso, ele é feito por um bot: a
página recebe mensagens privadas e automaticamente publica em tempo real. Sem a interferência
de um mediador.
Rafa colocou o celular dela sobre a mesa com a postagem na tela, para que Lucas e eu
pudéssemos ler.

“Tenho fontes seguras para dizer que o relacionamento da filha dos holofotes com a
barbie tribunal não anda nada bem. As brigas entre o casal têm sido cada vez mais constantes.
Será que tem problemas no paraíso? Quem anda aprontando? Será que a rainha das festas tá
pagando drinks pra outra pessoa? Com certeza a gente logo, logo vai saber.
Anônimo.”

— Ela me viu no banheiro — falei. — Vai pensar que eu que mandei isso pro spotted.
— Ué, deixa ela achar. — Lucas deu de ombros. — Ela sabe que brigar na faculdade é dar
conteúdo de bandeja pro perfil.
— Não sei se quero que ela pense isso, acho que vai criar problema — insisti.
— Desde quando você liga pro que ela pensa, Aurora? — perguntou Rafa, desconfiada. —
Eu hein… Tem algo que você precisa contar?
— Se tiver, conta para Rafa e depois eu ouço. Tô apertado pra ir no banheiro — Lucas
respondeu, se levantando. — Já volto.
O garoto nos deixou lá e Rafaela apertou os olhos para mim.
— Aurora…
— Vem cá.
Gesticulei para que ela se aproximasse e cochichei sobre o sonho no seu ouvido, morrendo
de vergonha. Rafaela, como sempre muito sutil, gargalhou quando acabei de falar. Por sorte, a
professora já não falava mais nada e os alunos só copiavam, então o máximo que a garota
recebeu foi um olhar esquisito de Eliana.
— Rafaela! — sussurrei, mas com irritação na voz. — Sossega!
— Foi mal, foi mal — ela se desculpou ainda rindo, agora mais baixo —, mas isso é muito
engraçado, sério. Parece até karma, de tanto que você fala mal dela com a gente todo dia.
— É, pois é. Só pode ser algo de karma, universo ou sei lá o que mesmo — reclamei. —
Isso nunca me aconteceu, Rafaela. Por que eu tinha que sonhar logo com ela?
— Transa com ela e descobre, às vezes é um sinal. — Ela deu de ombros.
— Não gosto dela, por que eu transaria com ela? — questionei, indignada. — E ela
namora.
— Você consegue lidar com isso de não gostar dela — justificou. — E quanto a ela
namorar, sei lá, deixa ela meter um chifre na escrota da Larissa.
— Rafaela, eu não vou transar com alguém que eu não gosto — continuei. — Muito menos
ser amante.
— Vai me dizer que não valeria a pena? — Rafaela me encarou. — Ela é gostosa e isso
você não pode negar.
— Isso é irrelevante — Desviei o olhar.
— É irrelevante mesmo? Porque não parece.
— Ela é bonita, mas…
— Mas o que, Aurora? — interrompeu, com um sorrisinho de canto, esperando a resposta.
— Mas não vai acontecer — afirmei impaciente, me ajeitando na cadeira. — Chega.
Esquece esse assunto. Não vamos falar mais disso.
— Por enquanto — Rafaela respondeu, dando dois tapinhas no meu ombro.

Depois de um dia cheio de aulas que, por sorte, acabaram na hora do almoço, eu finalmente
poderia encontrar minha irmã e sair da faculdade. Esquecer de todo esse bafafá. Desde que
passamos para a universidade, tinhamos uma tradição para o primeiro dia de cada período: pegar
o ônibus e ir direto para a Praia de Itacoatiara. Esse ano não seria diferente, até porque,
definitivamente, eu precisava espairecer ainda mais.
Bela e eu nos encontramos na porta do banheiro do primeiro andar, o mesmo em que ouvi
a discussão de mais cedo, mas, dessa vez, vazio. Coloquei o biquíni e vesti a roupa por cima
novamente, logo em seguida minha irmã fez o mesmo e saímos.
Morar em uma cidade de praia era um privilégio em alguns momentos. Hoje, por exemplo,
era definitivamente um deles. O céu estava lindo, de um azul limpo e um sol para cada
niteroiense. Claro que só era um privilégio porque esse não tinha sido um dia de horário integral.
Sorte que São Pedro quis colaborar com a gente hoje.
Descemos do ônibus e eu já era capaz de sentir o cheiro da maresia invadir minhas narinas.
Bela e eu crescemos na praia, por isso o apego. Dona Sandra já nos trazia para tomar um banho
de mar antes mesmo de decidir que homenagearia princesas da Disney com nossos nomes. Ela
sempre teve conexão com a praia, porque foi onde conheceu meu pai. A conexão continuou
conosco, embora, desde que meu pai morreu, há oito anos, os pés da minha mãe nunca mais
tenham conseguido tocar a areia.
— Aparentemente muita gente tá com o dia livre hoje, mais do que o normal — disse Bela,
parando na calçada ao notar que a praia estava consideravelmente cheia. — Se eu fechar os olhos
e só escutar o barulho, eu consigo lembrar do Carnaval de 2013 em Cabo Frio. Lembra? A praia
lotada, os ambulantes vendendo biquíni torcido…
— Você chorando pro papai porque queria fazer uma tatuagem de henna de borboleta —
lembrei, rindo.
— E você perguntando por que aquele vendedor de picolé tava com uma casca de melancia
na cabeça. — Bela riu de volta. — Bons tempos. Faz tanto tempo que a gente não viaja pra Cabo
Frio.
— Mamãe não consegue, você sabe. Memórias demais.
— Talvez seja a hora de criarmos próprias memórias lá, né?! — sugeriu ela. — Bom,
vamos?
Pisamos oficialmente na areia da praia e a energia era, de fato, revigorante. Bela estendeu a
canga gigante que havia trazido e nos sentamos, já esperando ansiosas pela passagem do
primeiro vendedor de mate que aparecesse. Compramos dois copos, que, rapidamente, acabaram.
E quando deu o último gole minha irmã se levantou.
— Vou na água — avisou. — Já volto.
Bela foi caminhando em direção ao mar e eu peguei meu celular para tirar umas fotos.
Enquanto decidia a legenda na hora de postar, uma voz um tanto quanto conhecida me
surpreendeu.
— Oi, Aurora — chamou, me fazendo erguer a cabeça.
Era Mia. Na praia. Depois da aula. Mia Duarte. Falando comigo. Na praia. Hoje. Por quê?
— A gente pode bater um papo ou você tá muito ocupada compartilhando a minha vida na
internet?
Eu sabia que ia sobrar para mim.
“Diga que me odeia, mas diga que não vive sem mim”

Bem-Me-Quer - Rita Lee

Por um segundo, tudo que eu soube oferecer foi o silêncio. Porque eu só queria um primeiro dia
normal. Só. Era tudo que eu precisava.
— Você vai ficar quieta aí? — perguntou ela, com os braços cruzados. Estava
genuinamente irritada.
Não pude deixar de notar a forma como o biquíni preto caía bem em seu corpo.
Pensamento intrusivo.
— Olha só… — Dispersei o pensamento. — Eu não faço ideia do que você tá falando,
Mia. — Parei de falar um instante. — Quer dizer, eu sei do que você tá falando, mas eu não tive
nada a ver com isso. Ao contrário de certas pessoas, eu tenho mais ocupações do que ficar
mandando fofoca pro spotted.
— E você espera que eu acredite que você não mandou aquilo? — rebateu. — Eu tenho
motivos pra saber que foi você.
— Que motivos? — Inclinei a cabeça para o lado, genuinamente curiosa.
— Pra começar, você parece não gostar muito de mim.
— E não gosto. Nunca escondi isso de ninguém — admiti. — O que não significa que eu
vou gastar meu precioso tempo tentando foder a sua vida, não acha?
— Tá, mas você tava no banheiro ouvindo eu discutir com a Larissa — ela insistiu. —
Agora só falta dizer que não prestou atenção.
— Claro que eu prestei, sou consciente mas também não sou idiota — ressaltei —, mas
qual o problema? Por que isso me torna automaticamente culpada?
— Porque Larissa e eu nunca discutimos em público antes de hoje cedo. E eu não contei
sobre nossas brigas pra ninguém! — exclamou.
— Mia, vem cá. — franzi o cenho. — Você por acaso é burra?
— Oi? — ela reagiu incrédula.
— Você ouviu o que eu disse. — Estava começando a ficar impaciente. — Garota, você já
parou pra considerar que poderia ter outra pessoa no banheiro que você não viu sair? Ou será que
a sua cabecinha é limitada demais pra cogitar que, de dez cabines, mais de uma poderia ter
alguém dentro? Se chama probabilidade.
— Será que dá pra você parar?! — Mia se irritou. — Eu tô falando sério! Claro que
poderia ter mais alguém, acontece que você já tem histórico, né?
— Histórico? — Estreitei as sobrancelhas, debochando.
— Você vive falando mal de mim com seus amiguinhos por aí.
— Sim, eu falo mesmo. Assim como noventa por cento do curso — despejei. — Como se
você nunca tivesse falado mal de ninguém. Você por acaso é quem? A Irmã Dulce?
— E você não gosta de mim por que, hein?! — ela questionou.
Nesse momento, Bela, que parecia estar dormindo no mar pela demora para retornar,
finalmente apareceu.
— O que tá rolando aqui? — perguntou, confusa, sendo ignorada por nós duas.
— Eu tenho meus motivos — assegurei.
— E quais são eles? — Mia insistiu.
— Eu não sou obrigada a te dizer. — Cruzei os braços com desdém, olhando ela de cima a
baixo.
— Fala logo — ela pediu novamente. — Qual é o seu problema comigo?
— Aurora, por favor… — Bela tentou.
— Pois então eu falo! — exclamei.
Mas não falei, porque minha irmã pôs a mão em cima da minha boca para impedir.
— Mia, vai dar uma volta, vai — Bela pediu, quase ordenando. — Tenho certeza que tem
coisa muito melhor pra você fazer na praia do que ficar brigando com a Aurora.
— Eu quero saber por que ela ficou espalhando fofoca sobre a minha vida! — ela não
desistia por nada.
— Mia, eu sinceramente não tô nem aí pra isso. Vai curtir teu dia e parem com isso vocês
duas. Se querem resolver algo, resolvam depois.
Ela apenas desviou os olhos de Bela e me lançou um olhar de incômodo antes de sair,
como se estivesse deixando algo pela metade. E na cabeça dela, realmente estava. Mas eu não
tinha nada para resolver.
Aproveitei para contar tudo para minha irmã. Sobre o banheiro, a discussão e o spotted.
Quanto mais eu falava, mais irritada eu ficava por ter sido acusada injustamente. Irritada a ponto
de pensar no sonho, que mais cedo havia causado tanta euforia, e só sentir desgosto. Se meu
inconsciente desenvolveu minimamente alguma atração por Mia Duarte, essa atração tinha
acabado de se dissipar no ar, como se nunca estivesse ali.
— Vocês pareciam duas crianças brigando olhando lá do mar — Bela contou. — Eu fiquei
olhando de longe porque, sinceramente, tava bem engraçado.
— Ela me enchendo o saco e você se divertindo, Bela? Sério?
— Lógico — assentiu. — Não dava pra ouvir vocês, mas pelas expressões faciais a
impressão é que uma chamou a outra de boboca e a outra disse que tava de mal.
— Você é ridícula — respondi, séria. — De verdade.
— Tô tentando aliviar o clima, sua chata! — exclamou. —Mas e aí? Você realmente não
mandou a fofoca?
— Claro que não — repeti pela milésima vez. — Eu não teria problema nenhum em
admitir se tivesse feito. Pelo contrário, ficaria até orgulhosa. Mas não fui eu. Com certeza tinha
mais alguém ali.
— Isso é meio óbvio, né? Mas quem faria isso?
— Literalmente qualquer pessoa — afirmei. — Ela é popularzinha, a mãe dela é famosa.
Qualquer pessoa da faculdade pagaria pra saber os podres dela.
— Pagaria pra saber — Bela frisou o que eu havia dito —, mas quem faria tanta questão de
contar?
— Bom, isso não vem ao caso agora. — Dei de ombros. — O que vem ao caso é que eu
vou tomar um banho de mar e depois a gente marca um dez e vai embora. Esse estresse me
deixou zero disposta e eu não quero demorar.
— Tô de acordo! — Bela fez um joinha. — Vai lá, então.
Tomei um banho de mar, na intenção de acalmar os ânimos depois do ocorrido, mas não
sei dizer se foi muito eficaz.
Mia Duarte se sentia a dona do mundo. Essa era a verdade. Por isso achava que tinha o
direito de cobrar satisfações e atrapalhar o dia dos outros. Na cabeça dela, o mundo girava ao seu
redor só porque ela era rica, popular e filha de Alexia Duarte.
E o pior é que as pessoas ao seu redor realmente davam espaço para ela se achar o centro
de tudo.

No sábado de manhã, Rafaela apareceu lá em casa.


— Oi, tia Sandra — ela disse, entrando e abraçando minha mãe. — Tudo bem?
— Tudo, querida — respondeu, simpática. — Vai dormir aqui hoje?
— Depende do que a sua filha vai querer fazer mais tarde.
— O que você tá inventando, hein? — perguntei, já com tom de desconfiança. Quando
Rafa dava as caras desse jeito, dificilmente vinha coisa boa pelo caminho.
— Aurora, dá um voto de confiança na sua amiga — minha mãe defendeu. — Rafinha
nunca te colocou em problema, né?
— Só daquela vez que ela inventou de ir numa festa no Rio e a gente virou a noite
zanzando pela rua sem carona pra voltar.
— Também teve a vez em que vocês foram pra uma calourada e ela ficou tão apertada pra
ir no banheiro que quase fez xixi no seu pé — lembrou minha mãe, segurando o riso.
— Só coisa leve, né? — Encarei minha melhor amiga, o sorriso quase escapava por trás da
falsa cara de insatisfação.
— Eu sei que não tenho muita moral quando se trata dos eventos que eu arranjo pra gente
— ela tentou se justificar —, mas hoje é dia de um evento que você já tá acostumada. Festa de
recepção de período na mansão de Mia Duarte.
Rafaela me olhou sugestiva, porque ela sabia que não seria como antes. Ela sabia que
depois do sonho, do spotted, da fofoca e da briga, estar na casa de Mia Duarte seria um tanto
quanto… peculiar.
— Eu não posso, poxa! — exclamei, fingindo decepção. — Eu combinei com a Bela que
hoje a gente ia fazer a noite das meninas, pedir um delivery, assistir uma série…
— É mentira, Rafa — Bela apareceu me desmentindo na entrada do corredor, com uma
mochila nas costas e de banho tomado. — A gente não tem nenhum programa juntas pra hoje,
inclusive eu vou dormir fora — avisou.— Ela só tá dizendo isso pelos acontecimentos recentes.
— Que acontecimentos, hein? — perguntou minha mãe, com o clássico tom de
desconfiança.
— Nada mãe, é que Mia Duarte é uma chata riquinha da faculdade. Só isso. — Eu não
menti, certo? Eu só omiti algumas coisinhas. Nada demais.
— Ela é riquinha e você tá fugindo de comer de graça? — Minha mãe estava indignada. —
Você vai sim, não criei nenhuma otária!
— Viu só, Aurora? — Bela deu um sorrisinho. — Três contra uma, você não tem escolha.
Rafa, minha cama é toda sua hoje.
— E vem cá, Bela Maria — Essa era a forma que minha mãe nos chamava quando estava
prestes a dar uma bronca. Bela Maria e Aurora Maria. Acontece que nomes de princesa são
muito delicados para passar a mensagem necessária e, no caso da minha irmã, ainda era um
nome curto. — Vai dormir onde e que horas volta amanhã? — Ela cruzou os braços.
— Vou dormir na casa da Bruna — avisou. — A gente não deve sair e eu devo voltar pro
almoço amanhã, mas mando mensagem.
— Tudo bem, me mantenha informada — pediu minha mãe antes de dar um beijo na
bochecha de Bela e receber em retorno um na testa. — Juízo, tá?
— Sempre — minha irmã concordou. — Tchau irmã, tchau Rafaela. — Ela acenou.
— Beijo, Bela — Rafa respondeu antes que minha irmã cruzasse a porta e fechasse atrás
de si. — Bom, então isso significa que vai ter festinha mais tarde. — A garota sorriu orgulhosa,
me fazendo revirar os olhos.

Rafaela tentava fazer um delineado no meu olho esquerdo que fosse simétrico com o direito, e
embora eu não pudesse falar nada — porque se eu a fizesse borrar o delineado de novo ela
facilmente iria me agredir — eu estava pensando em muitas coisas.
A principal era a sensação iminente de que tudo daria errado nessa noite de alguma
maneira. Que sair de casa era uma péssima ideia, que Mia ia cuspir quando eu passasse na frente
dela, que tudo de ruim que poderia acontecer aconteceria. Que a próxima a ir parar no spotted
seria eu, com uma notícia de que, sei lá, me hospitalizaram depois de Mia Duarte me expulsar da
casa dela e eu ser atropelada por algum vizinho rico que sairia sem prestar socorro porque, bom,
é isso que ricos fazem quando atropelam alguém.
Ou talvez eu esteja só sendo desesperada e a noite seja uma clássica recepção semestral.
Perfeitamente dentro da normalidade.
— Eu dei o meu melhor — disse Rafa, encarando a obra no meu rosto. — Você sabe que
seu olho esquerdo é meio tortinho, né?
— Ninguém é cem por cento simétrico, tá? — reclamei. — E ele não é tortinho, a minha
pálpebra é mais gordinha. Só isso. Mas se tiver ruim eu tiro, você sabe que eu nem fazia questão
desse negócio mesmo.
— Larga de ser metódica, Aurora! — exclamou. — Tá ótimo, acalma o coração. Você tá
muito tensa.
— Eu tô sentindo que sair de casa hoje vai ser um problema, Rafaela — afirmei, convicta.
— Eu não deveria ir pra casa dela. Definitivamente.
— Para de nóia! O que você acha que ela vai fazer? Chamar o segurança pra você? —
Rafaela riu e começou a soltar seu cabelo, que estava enrolado em uma faixa para formar ondas.
— Gente riquinha feito Mia e Larissa são do tipo de cão que ladra, mas não morde. Apesar da
língua afiadíssima e da falta de bom senso por não se tocar que não foi você a responsável pela
fofoca, Mia Duarte não vai fazer nada. Ela vai engolir e lidar com isso, porque ela tem muito
mais a perder agora do que você se causar algum problema.
— Nisso você tem razão — concordei.
— Eu sempre tenho razão — brincou, soltando a última mecha de cabelo da faixa. — Mas
viu só? Não tem o que temer. Ela não vai aprontar, confia.
Eu geralmente não confio nas percepções da Rafaela, mas naquele instante, resolvi me
permitir fazer isso.
Foi o pior erro que eu poderia ter cometido.

Tudo aconteceu tão rápido que na minha cabeça só ficaram flashes. Mesa de bebidas. Lucas,
Rafa e eu. Peguei uma cerveja. Senti algo gelado nas minhas costas. Nesse momento, foi quando
me dei conta do que tinha acontecido. Me virei e, segurando um copo onde deveria ter uma
caipirinha, lá estava Mia Duarte, com um sorriso cínico.
— Caramba! Desculpa, eu nem vi você aí! — Ela disse com o tom mais falso que eu já vi
em toda a minha vida.
— Qual é o seu problema?! — Acabei me exaltando mais do que o normal. Algumas
pessoas ao redor começaram a encarar a cena.
— Meu problema é que as pessoas adoram cuidar da minha vida — sussurrou perto do
meu ouvido. Se não fosse pelo contexto e o ódio, talvez eu ficaria minimamente afetada com
esse quase ato. — Bem vinda, Aurora.
Por que diabos eu escolhi dar ouvidos a Rafaela?
“Don’t you know that you’re toxic?”

Toxic - Britney Spears

— Eu não tenho nada a ver com isso, sua maluca! — gritei, profundamente irritada. — E mesmo
que eu tivesse, você é imatura pra caralho!
É claro que eu não ia deixar ela sair rindo sem falar nada. No outro dia, Bela tinha me
impedido, mas dessa vez ela ia ouvir.
— Imatura? — ela perguntou intrigada.
— Você ainda pergunta?! Não sabe resolver as coisas que nem gente, fala sério! Tem que
ter muito problema de comunicação para jogar um copo de bebida em alguém só porque você tá
bravinha. Você é do tipo que soca a parede também?
— Deixa de ser ridícula, garota — respondeu ela, um pouco mais exaltada. — Eu só tô
acabando com uma coisa que você começou!
— Ah, e que maneira de resolver um problema! — gritei de volta, sarcástica. — Pra você
isso tá certo, né? Afinal, você é a dona do mundo! Olha só, galera! — Virei para o público,
apontando para ela. — Mia Duarte é uma filhinha de mamãe que acha que pode fazer qualquer
coisa só porque é uma riquinha de merda!
Nesse ponto eu já tinha passado um pouco do limite. E eu não tinha sequer bebido o
suficiente para colocar a culpa no álcool.
— Aurora, menos. — Rafaela tentou me conter.
— Não! Agora eu vou falar! — exclamei, ignorando o pedido. — Porque é assim que
gente rica funciona, né? Arrumam um motivo pra pisar nos outros com pleno direito!
— Foi você que deu motivo! — Ela gritou de volta. — Você sabe o que você fez e tá
falando merda pra se fazer de idiota! Me ofendendo gratuitamente só porque tá errada.
Agora era ela quem perdia a linha. Larissa, que estava atrás dela, pôs a mão em seu ombro.
— Docinho, calma. Não vale a pena — tentou a garota.
— Gratuitamente, porra? Você jogou bebida em mim! — berrei a plenos pulmões. — Vai
se foder! Se você acredita que eu fiz o que não fiz, isso é problema seu. Você precisava disso pra
“resolver” o seu problema, Mia? Parabéns! — Bati palmas devagar. — Você resolveu! Agora me
deixa em paz e cuida da sua vida, que por sinal, tá bem na merda já que essa fofoca fodeu a sua
cabeça. Vai cuidar da sua namoradinha ou seja lá de quem você deve ter arrumado pra meter um
chifre nela.
Eu sei. Eu passei dos limites. Completamente.
— Tá pegando pesado, amiga — Lucas sussurrou.
— Cala a boca! — gritou ela. O rosto vermelho de raiva. — Você não sabe nem do que tá
falando, garota!
Era claro que Mia não levantaria a mão para mim, eu podia notar isso porque ela crescia os
ombros querendo parecer ameaçadora, mas nem sequer cogitava cerrar os punhos. Ainda assim,
Larissa e mais um garoto seguravam ela por via das dúvidas. Eu me aproximei e olhei nos seus
olhos, falando baixo dessa vez.
— Você acha que todo mundo vai beijar os seus pés, mas eu não — assegurei. — Pelo
jeito eu não tô errada em não ir com a sua cara. Por trás da grana, você não é porra nenhuma.
Saí caminhando por entre uma plateia de pessoas estáticas. Até a música foi desligada para
que pudessem acompanhar o acontecimento. Eu tive muita coragem para falar, mas não tinha o
suficiente para continuar ali. Se por algo que nem fiz, Mia me jogou um copo de bebida, por um
festival de ofensas na frente do curso inteiro, ela ia me jogar um balde.

— Eu sei que eu peguei pesado, mas eu não ia lidar com isso na paz, né? — reclamei quando nós
três chegamos ao bar que entregaria a diversão que nos foi tirada. Meus amigos e eu tínhamos
uma relação onde priorizávamos o conforto uns dos outros, e isso às vezes significava sair de
algum lugar onde o outro não era bem vindo sem hesitar.
— É claro que não, ninguém tem que ouvir desaforo quieto — Lucas tirava fiapos de limão
que grudaram na minha camisa —, mas também não precisava esculhambar a garota
publicamente.
— Lucas tem razão, acho que você perdeu um pouquinho a cabeça — acrescentou Rafa,
servindo o litrão nos copos. — Embora eu não seja a melhor pessoa pra falar sobre perder a
cabeça. Aliás, vocês viram a Larissa chamando ela de docinho? Que coisa cafona — resmungou.
— E tipo, não é que a gente não concorde com muita coisa do que você disse. Mas tem
coisas que você com certeza pesou pela raiva — Lucas continuou. Ele terminou de tirar os
fiapos, deu uma batida leve de mão para finalizar e se sentou na cadeira vermelha de plástico —
E, querendo ou não, você perdeu um pouco da razão.
— E se parar pra pensar ficou ainda mais suspeita — Rafaela ressaltou, logo em seguida
bicando o copo de cerveja. — Tá, muita gente ali só faz as coisas com ela porque ela tem grana e
no fundo pensa essas mesmas coisas, mas nenhuma delas teria peito que nem você teve pra dizer
isso. E isso te coloca num patamar muito elevado de pessoas que não gostam da Mia Duarte.
— Porra, vocês tem razão. Que inferno! — exclamei ao perceber a merda que tinha feito.
— Agora ela vai achar mais ainda que fui eu quem fez isso. Ela e os outros.
— Eu ainda não consigo entender por que alguém teria com tanta força esse impulso de
expor a Mia. — Lucas deu um longo gole no próprio copo. — O que a pessoa ganharia contando
um podre?
— Minha irmã disse a mesma coisa — lembrei.
— Isso é coisa de quem precisa muito criar uma imagem da Mia, por algum motivo —
Rafa ressaltou, brincando com a ponta do dedo na borda do copo. — Tipo, alguém com quem ela
aprontou, talvez? Não é algo que você, que só tem bode dela, faria. É preciso um motivo mais
forte.
— Um motivo forte e uma internet muito rápida — Lucas soltou, olhando para o celular.
— Porque o que aconteceu já tá no spotted.

“Parece que meu último relato por aqui deu o que falar! A rainha do camarote perdeu a
compostura total na festinha dela e jogou caipirinha na princesa adormecida, que por sua vez
quase destronou a queridinha da academia e assumiu o reino. Acho que tem alguém com tanto
medo que descubram o que anda acontecendo na corte que partiu pro arremesso de bebidas!
Será que isso ainda vai render?
Anônimo.”

— Uma exposição ao meu favor, que ótimo! — exclamei. — Mais motivo ainda pra eu me
tornar suspeita. Isso tá super tendencioso.
— Acho que essa pessoa assistiu Gossip Girl demais, porque tá com uma língua afiada…
— Lucas arregalou os olhos.
— Quem diria que depois daquele sonho você ia ter que lidar com isso, não é? — Rafaela
lembrou. — Parece até que você atraiu.
— É — sussurrei —, mas no sonho não era essa a concepção da Mia me fodendo.
— Ué, mas você queria do outro jeito? — Lucas cruzou as pernas e inclinou o corpo sobre
a mesa, com uma expressão sugestiva.
— Bom, seria preferível, né… — respondi no automático, fazendo com que ambos me
encarasse. — Não! Não foi isso que eu quis dizer. Eu não quero que isso aconteça, mas seria
menos pior do que o que tá, de fato acontecendo e… Quer saber? Esquece!
— E o que você vai fazer agora pra se defender? — perguntou Lucas, servindo mais
cerveja nos copos, para completar.
— Nada, ué. Minha consciência tá inteiramente limpa. Mia Duarte que se dane, não quero
nem olhar pra ela. Se antes eu já mantinha distância, de agora em diante vai ser ainda pior.
Mas não foi assim tão fácil.

— Eu empresto o carro pra vocês, mas só hoje que tô de folga — respondeu minha mãe na
manhã de segunda, quando eu disse que se fosse de ônibus para a faculdade ia acabar me
atrasando.
— Vai ser só pra Aurora, hoje só tenho aula no terceiro tempo — Bela falou, indo tomar
seu café sem pressa.
— Muito cuidado, hein? — Mamãe entregou as chaves. — Se não tiver vaga no
estacionamento da faculdade, não pense duas vezes pra colocar ele num rotativo por perto. Pago
até cinquenta reais de estacionamento, mas não quero meu carro na rua.
— Sim senhora — respondi, pegando a chave e dando um beijo na bochecha dela. — Até
mais tarde.
— Até, querida.
Sempre que o carro parava no sinal, eu aproveitava para olhar a avenida ao redor. Já tinha
visto de tudo nessa cidade. Vendedor com fantasia de super herói da Marvel, cachorro andando
na garupa da moto — e de capacete —, criança brincando em poça formada pela chuva e até
idoso com camisa do Brasil brigando com a polícia porque, aparentemente, não se pode levantar
cartazes pedindo um golpe de estado — quem poderia imaginar, não é?
Apesar disso, sem dúvida, a coisa mais inusitada que já vi foi Mia Duarte sentada no ponto
de ônibus.
O sinal rapidamente abriu e eu não tinha muito tempo para pensar. Talvez, se tivesse tido
um pouco mais de tempo, não teria parado no acostamento para avisar que aquele ponto não
tinha ônibus que ia na direção da faculdade.
— Você sabe que tá no ponto errado ou não sabe como funciona um ônibus? — perguntei,
logo após abaixar o vidro.
— Eu não tô indo pra faculdade. — Mia ergueu a cabeça e sua expressão facial era de
tensão. — Tô indo na delegacia. Roubaram o meu carro.
Tenho que admitir: depois de tudo que disse na festa, eu fiquei me sentindo mal. Meio
culpada, talvez?
Mal a ponto de me arrepender de algumas palavras. Mal a ponto de reconhecer que passei
dos limites. Mal, até mesmo, a ponto de me atrasar para dar uma carona para Mia Duarte.
— Entra aí antes que eu seja multada.
Foi o que eu propus em um lapso de bondade.
E, por algum motivo, ela aceitou.
“Todo mundo me avisou que você iria me deixar louquinho”

Louquinho - Jão

Embora tivesse subido no carro e estivesse há dois minutos dentro dele, Mia Duarte não tinha
dito sequer uma palavra. Ela olhava para frente e sem desvios boa parte do tempo, até que
finalmente resolveu olhar para mim e dizer alguma coisa.
— Bom, eu quero deixar claro que só aceitei sua carona porque tô desesperada — falou,
com os braços cruzados e a cara fechada.
— E eu só ofereci carona… — respirei fundo para conseguir expulsar as palavras —
porque acho que peguei pesado no sábado.
— Claro que pegou, você sabe que mereceu o que eu fiz — insistiu. — Não é à toa que foi
correndo mandar mais uma fofoquinha.
— Para com essa coisa idiota, Mia — falei sério, mas sem me exaltar. — Eu não fiz nada.
E se você quer acreditar nisso, acredita. Mas tá perdendo seu tempo.
— Eu sei, você já me disse isso no sábado. — Ela fez expressão de desdém. — Logo
quando disse que eu sou uma riquinha de merda, que não sou porra nenhuma e que eu traio a
minha namorada.
— Eu sei o que eu disse, tá? — interrompi.
Mais alguns segundos de silêncio.
— Eu nunca traí a Larissa, pra sua informação — Mia fez questão de deixar claro.
— Eu acredito — respondi prontamente.
— Se acredita, por que diz por aí o contrário?
— Eu não… — Respirei fundo. Repetir que eu era inocente não ia dar em nada. — Olha,
eu falei da boca pra fora porque tava com raiva. Não tudo. Tem coisas ali que eu realmente acho,
mas… aquela lá não era eu. Não sou do tipo que fica tentando humilhar os outros publicamente.
— Tanto faz. — Notei de relance que Mia deu de ombros. — Só quero resolver esse
inferno.
Mais silêncio, dessa vez mais longo. Eu queria manter assim, mas não conseguia. Não dava
para ignorar o fato de que a garota havia sido assaltada.
— Como foi? — perguntei.
— Como foi o quê? — Ela dirigiu o olhar para mim, desanimada.
— O assalto.
— Ah, eu tava dirigindo e o sinal fechou, daí um cara bateu no vidro e, quando eu olhei,
mostrou a arma e mandou sair. Eu só abri a porta sem reação, ele entrou e levou o carro.
— E você tá bem?
— Você por acaso se importa? — rebateu.
— Não tá mais aqui quem perguntou.
Bufei, estressada. Um breve silêncio.
— Tô bem — respondeu, por fim. — Só fiquei assustada.
— E o carro tem seguro?
— Tem, já liguei. — Ela assentiu com a cabeça. — Dá pra resolver.
E eu não soube mais o que responder. Acho que esse era o máximo de comunicação
saudável que a gente teria em algum momento da vida. Ela seguiu o resto do trajeto quieta,
olhando para a janela. Eu segui o resto do trajeto também quieta, olhando para a rua. O rádio
com as notícias da semana era a única coisa que quebrava o bloco de gelo causado pelo silêncio.
Quando estávamos estacionando na delegacia, dei umas olhadas em Mia. Hoje usava uma
camisa muito maior que ela, na cor marfim, junto com uma calça cargo preta. Os cabelos curtos
estavam penteados para trás, não como se ela os tivesse escovado antes de sair, mas com o
nervosismo tivesse passado um bom tempo no ponto de ônibus passando as mãos por ele e
colocando para trás não intencionalmente. Quanto mais o carro se encaixava na vaga, mais ela
balançava a perna. Ansiedade.
— Eu espero… — comecei a dizer quando desliguei o motor, mas antes que concluísse,
Mia já abriu a porta e saiu — Aqui.
Comecei a me sentir estúpida por ter vindo até aqui por uma pessoa que eu não gosto, que
vem me acusando injustamente e me tratando mal. Que me tratou mal mesmo no percurso e não
disse sequer um “valeu”.
Eu só posso ser muito idiota.
Ela demorou em torno de meia hora para aparecer na porta da delegacia novamente, a essa
altura é claro que já tinha perdido as duas primeiras aulas. Pegar o carro para não me atrasar foi
completamente em vão. Espero que minha mãe jamais saiba disso.
Mia entrou no carro sem dizer nada, dei partida enquanto ela abaixava o vidro e se olhava
no retrovisor. Eu mereço.
— Conseguiu fazer o b.o? — perguntei. Que impulso de conversa é esse, Aurora?
— Uhum — assentiu. — Me reconheceram e disseram que vão tratar do caso com mais
rapidez.
— Como é bom ter nome, né — deixei escapar, me arrependendo logo em seguida.
— Se você me odeia tanto, por que me trouxe até aqui, hein? — respondeu, irritada. — Era
só ter passado reto pelo ponto.
— Você ainda estaria lá se eu tivesse feito isso — informei.
— E você espera que eu seja eternamente grata a você por isso?
— Não, mas eu esperava no mínimo um pouco mais de educação! — Estava começando a
me irritar ainda mais.
— Você só ofereceu ajuda porque você quis. Foi o seu peso na consciência que falou mais
alto, eu não exigi nada — ressaltou.
— Como se você tivesse direito de exigir alguma coisa, eu não sou sua motorista. —
Minha voz carregava puro deboche. — Te fiz um favor gigante e você continua sendo
desagradável.
— Obrigada, Aurora! — exclamou. — Pronto. É isso que queria ouvir? Tá satisfeita?
Preferi não responder e apenas voltamos à mesma atitude da vinda. Cada uma no seu
canto, olhando para um ponto fixo e em completo silêncio. Talvez com um pouco mais de raiva
do que antes no ar.
Quando chegamos na faculdade e eu procurava vaga no estacionamento, Mia quebrou o
silêncio.
— As coisas seriam muito mais fáceis se você assumisse logo o que fez, sabia? — ela
questionou voltando ao assunto do elefante na sala.
— Eu assumiria com muito prazer se tivesse o que assumir — me defendi, pela milésima
vez, enquanto fazia a baliza para entrar na melhor vaga que consegui achar.
— Eu… genuinamente tô agradecida por você ter me dado uma carona — ela disse a
contragosto, enquanto soltava o cinto de segurança já preparada para sair —, mas não significa
que eu goste de você ou vá fingir que nada aconteceu. Pelo contrário, eu prefiro fingir que essa
carona não aconteceu.
— Faça o que você quiser — terminei de ajeitar o carro —, mas para e se pergunta por um
segundo: o que eu teria a perder não dizendo a verdade se realmente tivesse sido eu? Eu sequer
sou sua amiga. E além disso, já parou pra pensar que o comentário de sábado foi feito quase em
tempo real? Como eu teria mandado mensagem pro spotted se eu tava brigando com você? —
alertei.
A única reação de Mia foi revirar os olhos.
— Tchau, Aurora — disse, descendo do carro sem sequer olhar para trás.

E, sendo a minha vida, é claro que, justamente hoje, teríamos selecionado a mesma matéria no
mesmo horário. Produção em Cinema e Audiovisual.
Quando sentei na minha cadeira, do outro lado da sala, Lucas me esperava com uma cara
de desespero, sozinho. Rafa deixou essa matéria para o próximo período.
— Por que você resolveu atrasar justo hoje?! — exclamou ele, visivelmente nervoso.
— Longa história, mas por que você tá assim? — perguntei, sem entender. — Que bicho
que te mordeu?
— Teresa passou um trabalho na primeira aula — contou. — É em dupla. A gente vai
produzir um documentário.
— Que legal! — exclamei empolgada —, mas por que você tá tão preocupado? A gente se
vira.
— É que eu tentei, eu juro! Mas…
— Aurora de Souza? — chamou Teresa. — Mia Duarte?
Oi? Por que fomos chamadas juntas?
— Algum problema, professora? — perguntei.
— Nenhum, é só pra avisar que eu passei um trabalho na primeira aula que vai ser feito em
dupla. Os presentes na aula escolheram suas duplas, mas como só as duas estavam ausentes eu
resolvi que fariam esse trabalho juntas.
Não. É. Possível.
— Procurem saber direitinho com os colegas, tá? — falou ela.
O olhar de Mia encontrou o meu de longe, transbordando desagrado com a situação.
Isso só pode ser brincadeira.
“E apesar dos pesares do mundo, vou segurar essa barra”

Jardins da Babilônia - Rita Lee

Mia e eu. Sentadas lado a lado no chão da sala dela. Um cenário um tanto quanto atípico, sem
sombra de dúvidas.
No dia em que recebemos a notícia do trabalho, nada foi feito por nós, é claro. O sangue
ainda fervia demais para que decidíssemos qualquer coisa a respeito de forma minimamente
civilizada, então, optamos por fingir que não era com a gente. Mas aí, na sexta-feira, ela disse
que precisávamos resolver isso e me disse para estar na casa dela no sábado. Hoje é sábado. E cá
estou.
Uma informação sobre um trabalho que envolve produzir um documentário: eventualmente
ele precisará de esforço presencial. Então nada nos permitiria a não convivência, exceto um zero.
E eu acho que no momento um zero seria menos desconfortável do que estar sozinha nessa
casa com Mia Duarte.
— Você tem alguma ideia? — Mia perguntou sem muito ânimo.
Já faziam alguns minutos desde que eu tinha chegado, ela me recebeu, me indicou onde
ficar e ofereceu uma água. Achei até educada, para ser sincera.
— Acho que um documentário menos elaborado pode acabar facilitando — respondi,
rabiscando o canto da página no caderno sobre a mesinha de centro —, mas não sei se você gosta
mais da ideia de algo mais profundo, que explora melhor o tema.
— Sei lá. — Deu de ombros. — O que vai ser mais rápido?
Traduzindo: como vou me livrar de você antes?
— Depende. — Revirei os olhos sutilmente. — Você tem alguma proposta?
— Que tal pessoas contando como boatos afetaram a vida delas? — disse ela, com tom de
sarcasmo.
Começou.
— E por acaso sua vida tá sendo afetada de alguma forma? — respondi com desdém.
— Interessante a forma como a carapuça serviu — Mia respondeu com um sorriso de lado.
— As pessoas tão criando uma imagem de mim. Tão me olhando torto.
— “Ora, se não são as consequências dos meus próprios atos…” — falei baixinho,
ironizando.
— O que você disse? — perguntou ela, confusa.
— Esquece — pedi. — Será que dá pra gente deixar essa treta de lado pelo menos um
minuto? A gente tem que levar esse trabalho a sério e eu tenho uma sugestão.
— Qual a sua sugestão? — perguntou, se virando pra mim, me olhando com atenção, e não
com desprezo, pela primeira vez nos últimos dias.
— A gente pode produzir um documentário sobre os efeitos da sociedade no processo de
descoberta e libertação de pessoas LGBTQIAPN+ — sugeri. — Mostrar relatos, experiências…
Sobre o que cada uma dessas pessoas viveu por causa dos outros. Seja família, amigos, pessoas
no geral.
— E o que você sabe sobre isso? — Mia franziu o cenho.
— Eu literalmente sou lésbica?! — Ergui as mãos e arregalei os olhos, para demonstrar
obviedade.
— Ah! Eu não sabia — disse ela, com genuíno tom de surpresa.
— Você sabe algo de alguém do curso além da sua panelinha? — alfinetei. — Algo sobre
pelo menos uma parte das pessoas que você deixa entrar e sair da sua casa toda hora?
— Você não disse pra gente parar de brigar? — refutou, irritada. — E eu sei que a Larissa
e a sua amiga, Rafaela, estudaram juntas. E saíram no tapa.
— E foi merecido pra Larissa — afirmei, sem hesitar. — Enfim, você gostou da ideia?
— É. Dá pro gasto. — Ela recostou o corpo sobre a frente do sofá atrás de nós. — Anota
aí, então.
Peguei a caneta e anotei o tema no papel.
— Tá, então a partir daqui a gente precisa traçar o briefing — falei, encarando a folha.
— Briefing? Você é cineasta ou publicitária? Pelo amor de Deus — Mia implicou.
— Eu acho que a gente pode convidar pessoas de diversos cursos da faculdade, assim fica
mais fácil de fazer essa seleção — ignorei sua fala, respirando fundo para manter a paciência. —
E onde a gente vai gravar? Em qualquer lugar? Na faculdade? Na praia? Qual estética a gente
quer?
— Acho que cada pessoa pode escolher — sugeriu.
— Vai ser cansativo ir pra lá e pra cá de ônibus — reclamei.
— A gente pega o meu carro.
— Pera… — Olhei para ela, confusa. — Seu carro? Ele não foi roubado?
— Peguei outro — falou assim, como quem não quer nada.
— Que facilidade, né… — Tentei não dizer mais do que isso.
— Algumas coisas se resolvem em menos de uma semana. — Mia suspirou. — Bom,
então decidimos um lugar para cada?
— Decidimos — respondi, anotando no caderno. — Você sabe que esse tema vai exigir
muita pesquisa, né? Relatos de pessoas LGBTQIAPN+ relevantes na mídia, relevantes na
construção dos direitos, dados estatísticos, inclusive sobre saúde mental.
— Eu posso conversar com alguém de Psicologia também, se for preciso — Mia
assegurou. — Acho que precisamos de umas referências cinematográficas também. Filmes e
séries pra usar de exemplo. E boa trilha musical.
— Concordo. — Assenti com a cabeça. — Acho que a gente pode traçar uma linha já
dentro do que temos aqui, fazer um pouco de pesquisa e depois se juntar de novo pra começar a
gravar.
— Então você traça uma linha, pesquisa relatos e a história dos grandes representantes no
movimento. Eu pesquiso dados estatísticos, referências na indústria e organizo a trilha —
sugeriu. — Pode ser?
— Fechado — concordei.
Mia e eu trabalhávamos bem em equipe, mas eu espero jamais ter que admitir isso em voz
alta.
— Eu vou indo — avisei, fechando o caderno e me levantando com ele em mãos. — Você
vai até a porta ou…
— Não, pode ir — respondeu. Minha mãe diria que isso é falta de educação, coisa de quem
não quer que a visita volte. E, na realidade, talvez seja isso mesmo. — É só fechar quando sair,
depois eu tranco.
— Então tá. Até mais. — Acenei e ela ergueu a mão em resposta.
Caminhei para o saguão de entrada da casa ouvindo apenas a plataforma dos meus tênis
bater no piso de madeira. Eu não tinha o costume de ver esse lugar tão vazio e silencioso, mas
parece que para Mia Duarte fazia parte da rotina.
No mais, eu precisava admitir que estava satisfeita. O dia de organização do trabalho foi
produtivo e a convivência pacífica. Se Mia fosse um por cento do que ela foi hoje todos os dias,
eu poderia até ousar dizer que ela era uma pessoa agradável.
Abri a porta e meu coração quase saltou pela boca, ao encarar Larissa de frente a ela,
pronta para tocar a campainha. A menina empinou o nariz e me olhou dos pés à cabeça, com uma
expressão não muito feliz.
— Com licença — pedi, antes de sair do caminho dela. A garota entrou no mesmo segundo
com passos apressados, ou até mesmo, irritados, e fechou a porta atrás de si, realizando o meu
trabalho.

— Oi filha! Chegou rápido — minha mãe comentou quando entrei em casa e depositei um beijo
em sua bochecha. — Conseguiu ficar de bem com a riquinha?
— Provisoriamente, né, mãe?! — Abri a geladeira para pegar minha garrafinha de água na
geladeira. — Aquela lá não decide entre bom humor e mau humor, mas algo me diz que se ela
estava de bom humor, não durou muito depois que eu saí.
— Por que acha isso? — perguntou, curiosa.
— Nada não — respondi, depois de um longo gole na água. — A Bela tá no quarto? Acho
que ela pode me ajudar a organizar uma coisa do trabalho.
— Sua irmã saiu — respondeu. — Um pouco depois de você.
— Bela tem saído muito ultimamente, né? — Estreitei os olhos, desconfiada. — Sempre
foi tão caseira.
— Ah, ela tá aproveitando o início de semestre, né? — lembrou minha mãe. — Essa
menina vive pra faculdade. É bom ela respirar um pouquinho enquanto dá tempo nesse começo
de ano, pegar o finalzinho do verão.
— É — concordei, sem acreditar muito que era só esse o motivo. — Eu vou pro quarto, tá
bom? Vou fazer umas pesquisas.
— Tá legal! Eu não vou fazer nada pro jantar hoje, então se você quiser pedir uma comida
pra você, pode pedir — avisou.
— Beleza.
Quarenta minutos de espera, um combinado de comida japonesa e um notebook com uma
aba aberta no YouTube, assistindo a história de Marsha P. Johnson. Outra aba, relatos de algumas
celebridades brasileiras e internacionais contando sobre as dificuldades dentro de suas vivências.
O copia e cola me permitia criar um documento com essas falas com uma mão enquanto pegava
com a outra um niguiri com um hashi. Em outra aba, falas de políticos atrasados e extremistas
religiosos que influenciam todos os dias na luta por direitos. E, por fim, uma aba aberta no
Instagram, porque ninguém é de ferro.
Depois de concluir o vídeo, coletar informações importantes e tracejar a ordem dos itens
no documentário, um som de notificação chamou minha atenção. Abri a aba do Instagram e
encontrei um direct de Lucas, me enviando um novo post do spotted.

“Ora, ora, ora. Dessa vez, venho afirmar com fontes seguras de que as brigas entre a
nepobaby e a jurídico escova progressiva, que pareciam ter cessado, só vem piorando. A
estrelinha deve estar vacilando bastante, porque a namorada dela vem vindo numa onda de
estresse, caras feias e nariz torcido para qualquer um que surge na sua frente. Hoje mesmo, a
dama da OAB só faltava soltar fumaça pelas orelhas. E isso, meus amigos, eu vi com meus
próprios olhos. Não chegou a mim, não ouvi falar, um passarinho não me contou. Eu vi.
Anônimo.”

Quase deixei o temaki cair da mão e se desmontar por inteiro no prato. É claro que seria
assim. Essas coisas só acontecem comigo. Justo no dia que vejo Larissa entrar na casa de Mia
cheia de ódio no coração, surge mais uma fofoca.
Se isso atrapalhar o meu documentário, eu procuro a pessoa que está fazendo isso até os
confins da Terra.
“Somewhere in the haze, got a sense I’d been betrayed”

The Great War - Taylor Swift

Depois de uma organização feita, ideias compartilhadas e concordarmos sobre como a divisão do
documentário aconteceria, Mia e eu precisávamos encontrar pessoas que estivessem dispostas a
expor um pouco de suas vidas com a gente.
— Eu posso — Rafa se pronunciou, meio retraída. — Mas, será que dá pra gravar só com
você perto? Sem a Mia?
— Por quê? — Franzi o cenho, confusa.
— Nada, só acho que fico um pouco tímida com outra pessoa, ainda mais a Mia né, não
tenho nenhuma intimidade com ela.
— Certo, mas você sabe que ela vai ver o vídeo em algum momento, não sabe? Não só ela
como todos os outros alunos do curso — expliquei mais uma vez.
— A partir daí eu não ligo — ela afirmou. — Só não queria que ela estivesse durante a
gravação.
— Sem problemas. — Assenti. — E você, Lucas?
— Meu amor, até o papa pode estar do seu lado. Eu falo o que você quiser — brincou. —
Minha vida é um livro aberto.
— Sabemos bem. — Esbugalhei os olhos, concordando com ele excessivamente. — Aliás,
você tem falado pouco até… Não é o seu normal.
— Ah, não tem muito o que falar. — O garoto deu de ombros. — Meu Tinder anda mais
parado do que a estátua do Araribóia, e quando tem algum movimento é sempre um padrãozinho
sem sal — desabafou.
— Isso significa que você dá match com padrõezinhos sem sal — Rafaela ressaltou.
— Mas isso só acontece quando eu bebo — ele tentou se justificar. — Beber e abrir o
Tinder é algo que eu não posso fazer. Sem dúvida.
— Tá, então voltando ao assunto… — Trouxe os dois de volta para o tópico que fez com
que eu me reunisse com eles no pós aula. — Quando vocês querem gravar?
— Por mim pode ser hoje, não tenho nada pra fazer — disse Lucas. — Assim a gente tem
uma desculpa pra fazer algo juntos no meio da semana.
— Eu também topo, tô livre — Rafa disse, despreocupada.
— E onde vocês querem gravar? Algum lugar significativo pra vocês falarem?
— Por mim, falo lá em casa. Acho que é o lugar ideal — Lucas pediu. — E aí a gente já
fica por lá depois do meu, então a gente pode gravar a Rafa primeiro.
— Vocês vão me matar se eu disser que queria gravar no Rio? — Rafaela fechou um olho,
esperando os xingamentos que viriam a seguir.
— Ai Rafaela, puta que pariu! — Lucas foi o primeiro a se manifestar contra. — Não tinha
outro jeito de cativar o nosso ódio?
— Porra, amiga. Pegar barca e metrô é foda — reclamei.
— É que não faz sentido pra mim fazer isso em outro lugar. — A garota fez biquinho. —
Vai, por favor! Não tem jeito da gente fazer isso?
—Um jeito até tem, mas… — Fiz uma careta de incerteza.
— Mas o que? — Lucas perguntou, afobado. Não sei se curioso com que jeito seria esse ou
se indignado por eu ter embarcado na ideia de Rafaela.
— Mas vai envolver a Mia.

— Preciso do equipamento e de uma carona — falei logo de cara ao chegar no pátio,


encontrando Mia sentada no chão. Todos os alunos durante um momento ocioso, absolutamente
todos, iam ficar batendo papo lá. Algumas pessoas estavam perto de Mia, mas sequer olharam
para cima.
— Achei que a gente ia primeiro listar juntas as pessoas, depois começar a gravar —
reclamou.
— Rafaela e Lucas são meus amigos, tecnicamente eles não precisam entrar na lista. —
Dei de ombros.
— Na verdade, precisam sim — respondeu, se levantando. — Pra onde a gente tem que ir?
— Pro Rio.
— É piada, né? — Mia riu e colocou a mão na cintura, me analisando.
— Não. — Segui olhando séria para ela. — Rafaela pediu pra gravar lá.
— Onde exatamente é “lá”? — perguntou, fazendo aspas com os dedos. — Você percebe
que só dizer Rio é muito vago, né?
— Ela disse que passando da ponte explica o caminho.
— E se a sua querida amiga Rafaela se perder? — Mia cruzou os braços, insatisfeita.
— Ué, ela diz o nome do lugar e você usa o Google Maps. É difícil assim? Você tem gente
pra fazer isso pra você?
— Você quer uma carona ou não quer? — provocou.
— Você quer nota no trabalho ou não quer? — rebati.
Mia respirou fundo, espremeu os olhos e pensou por uns cinco segundos.
— Tá. — Suspirou. — Eu vou em casa pegar o equipamento e vocês me esperam no
estacionamento. Fechado?
— Fechado. — Dei um leve sorrisinho em resposta.
Todo esse vai e volta de Mia demorou em torno de quarenta minutos. Quando ela chegou,
Lucas e Rafaela correram para o banco de trás, me deixando o banco do carona.
— Todo mundo põe o cinto, por favor, que eu não tô afim de ser multada — ela pediu logo
de cara.
— Boa tarde pra você também, Mia — Lucas respondeu. — Sempre tão querida e
simpática.
— Acho muito simpático da minha parte zelar pela segurança de vocês — rebateu ela,
olhando o garoto pelo retrovisor.
— Quanta preocupação! — Lucas levou a mão ao peito, em um tom dramático, quase
teatral. — Vou te dar cinco estrelas no Uber, viu?
Contive uma risadinha. Mia apenas ignorou e ligou o som, que tocava o Numanice, da
Ludmilla, em um volume que sinto não ser adequado para os tímpanos de um ser humano adulto.
Era um tanto quanto irônico que a primeira música tocando fosse “Um pôr do sol na praia” em
um dia nublado como esse, mas quem sou eu para julgar.
Não demorou muito para que meus amigos começassem a cantar no banco de trás,
completamente alheios ao mundo ao redor.
— Sabe o que eu acho engraçado, Aurora? — Mia começou a falar, concentrada no
trânsito. Notei que ela trancava o maxilar quando se concentrava, e isso o tornava mais marcado
— Sempre que algo acontece você tá lá, né? Que grande coincidência, você não acha?!
— É, eu acho sim, Mia — respondi, impaciente. — É exatamente isso. Uma grande
coincidência. A gente pode repetir o padrão do fim de semana e não brigar? Por favor?
— Se você prefere fugir, então tá. — Deu de ombros.
Acho que podemos chamar isso de avanço?
Depois de vinte minutos na Ponte Rio-Niterói — Deus abençoe o trânsito minimamente
fluido — com olhares julgadores de minuto em minuto vindos de Mia Duarte e o pagode
desafinado de Rafaela e Lucas invadindo meus ouvidos, estar finalmente na cidade carioca era
um alívio.
— É essa rua aqui, tá? — avisou Rafa, me entregando o celular com o mapa aberto para
que eu direcionasse Mia. Eu.
— Não é onde você estudava? — perguntei confusa olhando para trás.
— É — Rafaela deu um sorrisinho tímido e meio receoso.
Olhei para ela por alguns segundos e comecei a entender o que estava acontecendo. Acho
que Rafa tinha algo da vida dela para compartilhar que nem nós sabíamos.
— Pode ser aqui — Rafa anunciou, debaixo de uma árvore próxima a entrada da escola onde ela
passou alguns anos da sua vida.
Não rodamos muito para encontrar uma vaga, por sorte. Mia trouxe pouco equipamento,
porque concordamos que não seria uma grande produção e que iríamos trabalhar melhor a
estética nos cortes e edições. Ela se posicionou para a gravação enquanto eu explicava mais ou
menos de que forma ela poderia conduzir o relato.
— Esse ângulo tá ótimo — afirmei, ao parar do lado dela, observando o enquadramento na
câmera e fazendo um joinha em seguida. — Podemos começar? — verifiquei com Rafa.
Ela respirou fundo, olhou para as próprias mãos. Depois olhou para a frente e assentiu com
a cabeça.
— Podemos.
— Câmera, take um, gravando — anunciei, enquanto Mia começava a gravar.
— Eu sempre fui muito bem resolvida quanto a tudo na vida — começou ela, olhando para
a câmera. — Minha mãe dizia que ser tão segura de mim ia afastar de mim as pessoas inseguras.
— Rafa riu fraco. — Por um lado, ela tinha razão. Porque eu lidei bem com minha
bissexualidade desde que a descobri. Até que se tornou um problema. — Ela olhou para os lados
e inspirou antes de continuar. — Na escola, eu conheci uma garota. A gente conversava pelas
redes sociais, até que em algum momento essas conversas se tornaram um pouco mais íntimas e
profundas. Ela me chamou pro cinema, eu fui e a gente se beijou no escuro. Eu era adolescente,
emocionada que só. Me apaixonei por ela e achei que isso tava vindo do lado de lá também.
Mas… não. Um dia eu cumprimentei ela na escola na frente das amigas dela e ela mal falou
comigo direito. Descobri no dia seguinte, quando vi todo mundo cochichando ao meu redor, que
ela contou pra escola toda que eu gostava de meninas — Rafa falava sobre isso mexendo as
mãos sutilmente, mas sem parar. — Quando mandei mensagem perguntando, ela disse que as
amigas falaram várias coisas quando eu a cumprimentei e que ela não podia ter essa imagem.
Que não falaria mais comigo. Ela inventou que me viu no cinema com outra garota, se tirando da
situação. Foi a primeira vez em que eu senti que precisaria passar o resto da minha vida beijando
no escuro quando se tratava de outras garotas. A fala das pessoas foi poderosa a ponto de ela se
retrair, e claro que foram capazes de ferir a ela que era insegura. Foram capazes de ferir até a
mim, que não era. Mas eu passei por isso. Eu recuperei minha segurança. E que minha mãe
continue certa e que eu afaste de fato os outros. Eu não preciso ser beijada no escuro. E mais que
isso, eu não aceito ser beijada no escuro.
Rafaela parou de falar e a gravação foi encerrada.
— Corta — anunciei, estática, quando minha amiga começou a chorar. Lucas e eu
corremos para um abraço coletivo. Alguns minutos sem nenhuma palavra.
— Foi a Larissa, não foi? — Mia perguntou, cabisbaixa.
— É — Rafaela admitiu. — Nunca houve a história de eu ser bolsista.
— Então o que aconteceu? — perguntou Lucas.
— Um dia as amiguinhas dela vieram me provocar junto com ela — contou. — Ela não
fazia nada sobre, não se envolvia. Ficava isenta de tudo. Eu pirei, perdi a cabeça. Gritei que
quem eu beijei no cinema foi ela e, bom… A briga com puxões de cabelo veio daí. Ela se
envolveu, mas foi pra se defender.
— E aí o que houve? Vocês foram mesmo pra diretoria? — perguntei.
— Sim, e chegando lá eu tomei a frente e disse que comecei — explicou. — Que eu
inventei um boato. O resto vocês já sabem.
— Por que mentiu? — Mia perguntou, participando da conversa. — Por que disse que
começou e por que não manteve o que disse sobre ter beijado a Larissa?
— Porque eu não queria fazer o que ela fez comigo. Eu sabia que eu ia me recuperar disso
um dia, mas não acho que com ela aconteceria o mesmo. — Rafa riu fraco. — Se eu tivesse
mantido a palavra, ela hoje talvez não seria nem sua namorada.
— Na conjuntura atual não sei dizer se isso seria assim tão ruim — Mia cochichou, mas eu
escutei. Aparentemente só eu.
— Hein? — Rafaela perguntou, pedindo que ela repetisse.
— Nada — ela deu um tapinha no ar. — A gente vai gravar o Lucas agora?
— Acho que a gente pode deixar pra outro momento — respondeu ele. — Você quer fazer
alguma coisa, Rafa? Esfriar a cabeça?
— Eu tô bem, só precisava colocar isso pra fora.
— Eu posso levar vocês no shopping aqui perto — Mia sugeriu, me surpreendendo. —
Queria ir no Starbucks, vocês topam?
Olhei para a garota até meio desconfiada, porque gentileza não era muito o seu forte. Mas
acho que, por algum motivo, ela se sentia mal de saber que sua namorada causou tudo aquilo.
— Eu aceito um frappuccino. — Rafa abriu um sorrisinho.
Mia foi muito certeira na escolha da gentileza, porque Lucas e Rafaela eram maníacos por
tudo que vinha do Starbucks. Eu não era tão fissurada, preferia um cafézinho passado pela minha
mãe de manhã, no bom e velho filtro de pano. Mas, vez ou outra, eu me rendia.
Nos sentamos os quatro depois de fazer os pedidos. Dois frappuccinos de caramelo para
Rafa e Lucas, um de baunilha para mim e, para Mia, um chá gelado com limonada e blueberry.
Mia levantou para pegar cada uma das bebidas, o que me fez pensar que isso já era gentileza até
demais.
— Toma. — Ela me entregou a bebida e se sentou à minha frente. Rafa e Lucas
conversavam no mundinho deles, ele ao lado de Mia e Rafa ao meu lado.
— Não tá envenenado, né? — Arqueei uma sobrancelha, alternando o olhar entre ela e o
copo.
— Hoje não, mas no dia em que sair mais uma fofoquinha, é melhor não aceitar nada meu
— brincou.
— Cara, quantas vezes você vai insistir nisso? — Revirei os olhos antes de dar um gole na
bebida. — Tá ficando repetitivo já.
— Eu vou repetir isso quantas vezes forem necessárias, até você finalmente admitir —
assegurou. — E a cada vez que você tenta negar, você se afunda ainda mais.
— Me diz por que então, Mia. — Cruzei os braços e reclinei as costas no encosto da
cadeira. — Por que eu me afundo?
Lucas e Rafa ficaram em silêncio, prontos para prestar atenção no diálogo e, caso fosse
necessário, intervir para não se tornar o que se tornou na recepção. Afinal, um chá gelado tão
caro voando seria um desperdício.
— Que tal a gente repassar os fatos. Vamos lá? — Mia começou. — Primeiro temos a
discussão no banheiro, e quem sai da cabine de repente? Aurora! — exclamou com um
entusiasmo sarcástico.
— Tá, e daí? Alguém mais no banheiro, achei que já tínhamos chegado a essa conclusão
— apontei, com desdém.
— E aí a gente briga na minha casa e pouquíssimos minutos depois, uma postagem super
tendenciosa a seu favor — lembrou.
— Tinham dezenas de pessoas ali, a culpa não é minha se você não sabe nem pra quem
você abre as portas da sua casa. — Dei de ombros, refutando.
— Mas é agora que eu quero que você explique, Aurora — Mia continuou. — Você viu a
Larissa entrar bufando lá em casa. Mais tarde, outra fofoca. Bem conveniente, você não acha?
— Eu sei que essa pegou bem mal pro meu lado…
— Essa? — ironizou.
— Mas a sua namoradinha não faz mais nada além de te encontrar? — perguntei. — Ela
passou o resto do dia com você?
— Não — respondeu. — Ela foi pro aniversário de uma amiga da época de escola depois
que a gente brigou.
— E por que tem que ter sido eu? — tentei, mais uma vez. — Você deixa brechas na sua
vida pessoal, deixa qualquer um se aproximar de você e depois quer jogar a culpa em quem é
mais conveniente.
— E começou a baixaria — Lucas falou para Rafaela.
— Não é questão de conveniência, é o óbvio! — Mia exclamou.
Essa briga renderia mais, se não fosse por uma notificação em cada um dos celulares sobre
a mesa. Depois do último post, eu ativei as notificações das postagens do spotted, e parece que os
outros três fizeram isso também.

“A top um dos meus últimos recadinhos aqui tem se envolvido em novos ares. Hoje cedo
mesmo ela foi vista conversando com a Operação Cupido no pátio. Pode até ser uma
movimentação normal, já que as duas vão fazer o trabalho final juntas, mas pra quem duas
semanas atrás estava jogando copos de bebida, estar hoje cedendo o banco do carona é um
tanto quanto… estranho? Pelo que eu andei ouvindo por aí, a Olsen usa o carro da mãe. Tem
algo de muito esquisito aí.
Anônimo.”

Mia me encarou. Encarou o celular. Me encarou de novo. Colocou o indicador no queixo.


Respirou fundo. Sacudiu a cabeça em negação lendo de novo. Olhou para mim.
— Não é você — disse então, com o cenho franzido e o olhar se perdendo aos poucos.
Eu não sei até que ponto isso finalmente ter sido concluído poderia ser considerado uma
coisa boa.
“Você me vira a cabeça, me tira do sério”

Você Me Vira a Cabeça - Alcione

— Sabe que se você não me dissesse eu nem teria me dado conta?!


Óbvio que eu ainda estava irritada. Primeiro, por estar sendo cada vez mais envolvida em
uma história com a qual eu nada tenho a ver, só caí de paraquedas. Segundo, porque Mia ter tido
um despertar de consciência não muda o fato de que ela me infernizou durante semanas por
nada.
— Então quem é que tá fazendo isso? — se perguntou a garota, ainda encarando a tela do
próprio celular.
— Uma grande bichona, sem sombra de dúvidas — Lucas respondeu, antes de puxar a
bebida do copo, fazendo barulho com o canudo —, mas não fui eu, antes que a maior paranóica
dessa mesa resolva me acusar.
— Claro, vocês três passaram o dia comigo, não teria como — Mia apontou.
— Por que você acha que quem fez isso é gay? — Rafa franziu o cenho.
— Gente? — Ele fez uma pausa dramática, com expressão de incredulidade. — Barbie
tribunal? Queridinha da academia? Operação Cupido? — disse, apontando para o telefone. —
Não é óbvio?! Sem querer estereotipar nem nada, mas digo com propriedade que nenhum hétero
teria essa dedicação pra criar codinomes.
— E o que eu faço? — Mia questionou, genuinamente afobada.
— Você pode jogar um copo de bebida em todo gay que aparecer na sua frente, quem sabe
uma hora você não acerta quem é — provoquei.
— Por que você tá tão estressadinha, Aurora? — perguntou. — Eu já entendi que não é
você, acabou.
— Eu não tô “estressadinha”. — Fiz aspas. — Eu tô furiosa. Você ficou me perturbando
sem nenhum direito pra se dar conta de que tava errada em menos de dois minutos!
— Pelo menos eu me dei conta, né? Eu podia continuar achando que é você — ressaltou.
— É, e aí além de insuportável você também estaria sendo extremamente idiota. Se eu
soubesse que era só isso eu economizaria o tempo me justificando e pagava alguém pra enviar
uma fofoca enquanto eu tivesse com você.
— Você sabe que eu tinha todos os motivos…
— Não. Você tinha problemas de confiança e um alvo a quem atribuir responsabilidade.
Por coisas que você tirou da sua cabeça sozinha — cortei. — Obrigada pela carona, mas a gente
vai voltar de metrô e barca — avisai, já me levantando.
— A gente vai? — Lucas perguntou, confuso.
— A gente vai? — Rafa deu sequência.
— Bom, eu vou. Vocês não precisam se não quiserem — esclareci.
Os dois se entreolharam por alguns segundos e levantaram. Eles não iriam com a Mia sem
mim, porque não tinha intimidade nenhuma entre ela e os dois e, olha que engraçado, eu era o
intermédio. Chega a ser piada.

Eu amava sentar na janela e observar a cidade ao longe durante o trajeto de barca à noite. Não
que tenha algo de poético nisso, porque, no fim das contas, ainda é a Baía de Guanabara.
Mas eu seguia muito incomodada. Desde que ouvi aquela maldita discussão no banheiro,
fui jogada em um labirinto sem saber o caminho por onde passar. E lidar com Mia nas últimas
semanas enquanto eu tentava me tirar dessa situação foi dar inúmeras vezes de cara com a
parede. Com uma pessoa que não me ouvia, não queria me ouvir, me acusava o tempo todo e,
não obstante, quando percebeu que estava completamente errada, agiu como se nada tivesse
acontecido e não soube sequer oferecer um pedido de desculpas.
E, para além de tudo, o que mais me incomodava em toda essa história era não fazer a
mínima ideia do por quê eu me importava tanto com o julgamento de Mia Duarte.
— Ei — Rafa me chamou, sentada do meu lado. Lucas sentou atrás de nós com seu fone,
já que qualquer meio de transporte aquático o deixava nauseado demais para o convívio social.
— Você tá bem?
— Eu tô, ué — respondi. — Por que não estaria?
— Porque você demorou um tempão pra ser ouvida, mas ainda não sente que foi isso que
aconteceu — falou. — E eu sei que você odeia quando não te ouvem.
Dei um sorrisinho.
Minha melhor amiga me conhecia muito bem.
— Eu vou ficar legal — respondi, apoiando a cabeça no ombro dela — E você? Tá bem?
— Ainda é meio esquisito ter falado sobre isso depois de tanto tempo escondendo. — Ela
mexia no esmalte descascado das unhas. — Às vezes eu pensava que essa história ia morrer
comigo. Sei que Larissa não admitiria isso até hoje, mesmo que todo mundo saiba que ela é
lésbica agora.
— E você não desmentir não foi só por causa do processo de aceitação dela, né? — Ergui a
cabeça e olhei para ela desconfiada. — Você não é do tipo que deixa as coisas barato.
— Tá dizendo que eu não tenho empatia, Aurora Maria? — Rafa fingiu indignação, usando
o mesmo recurso que a minha mãe para me bronquear.
— Não — Ri. — Tô dizendo que você devolve o que as pessoas te oferecem. E naquele
caso ela merecia que você seguisse com a verdade. Você fez isso porque ainda gostava dela,
mesmo com ela fazendo o que fez.
— Pra ser sincera, amiga, eu continuei gostando da Larissa por mais alguns meses depois
de sair no tapa com ela. Eu morro de vergonha disso, mas eu era uma adolescente, né? Eu
preciso me perdoar.
— A gente faz muitas coisas passíveis de vergonha na adolescência, e você não deveria ter
que se perdoar por passar por um processo natural — frisei. — E nem sempre a gente se importa
com a validação das pessoas certas.
— Igual você com a Mia.
— Eu não me importo com a validação da Mia.
Ajeitei a postura na cadeira e virei o rosto para a janela.
— Claro que se importa, Aurora, não seja ridícula — Rafa disse, com a delicadeza de
sempre. — Se não se importasse, não estaria tão irritada.
— É meu gatilho de ser ouvida, você mesma não disse? — lembrei.
— Engraçado que antes de sonhar com ela você nunca fez nenhuma questão de ser ouvida,
não é? — ela retrucou, sugestiva.
— O sonho não tem nada a ver com isso, foi uma coincidência do acaso. — Cruzei os
braços, ainda olhando a janela.
— Será mesmo? Porque pra mim, particularmente, parece que você queria que ela te
ouvisse porque queria que ela te conhecesse melhor. E, claro, ela não podia te conhecer pela
visão que ela criou, mas sim pela realidade. Você tem que admitir que sonhar com ela tornou ela
mais “acessível”, se dá pra dizer assim.
— Eu não queria que ela me conhecesse melhor, pelo contrário. — Olhei para Rafa. — Eu
queria que ela não me conhecesse e ponto. Ou melhor, queria até que ela me desconhecesse.
— Se você prefere acreditar nisso, minha amiga, aí é com você — respondeu ela, com um
sorrisinho.

— Compra mais quatro! — exclamou Bela, na tarde de domingo, direcionando a carta a nossa
prima de treze anos, Letícia, que tinha acabado de gritar Uno.
— Poxa, Bela, eu gosto tanto de você e você faz isso comigo? — A pré-adolescente fez um
biquinho, pegando as cartas.
— É o jogo, Lelê. Não tem o que fazer.
Um domingo por mês era dia dos nossos tios almoçarem na nossa casa. Minha tia Neuza,
irmã da minha mãe, o marido dela, meu tio Fernando, a filha mais velha, Letícia, e o filho mais
novo, Francisco, de sete meses. Era assim desde que meu pai morreu. Tia Neuza e minha mãe
tinham uma relação semelhante a de Bela e eu, apesar da diferença de dez anos de idade, então
ela fazia questão de se fazer presente sempre.
Quando essas reuniões aconteciam, Bela e eu sempre jogávamos alguma coisa com a nossa
prima enquanto os “chefes de família” conversavam. E claro, paparicavam o bebê.
— Dá uma saudade de quando eles são pequenos, né? — disse minha mãe, com Francisco
no colo.
— É só você ver a Lelê, olha o tamanho que já tá — respondeu tia Neuza. — Daqui a
pouco já começa até a falar de namoro.
— Fala nada. — Minha mãe sacudiu a cabeça em negação. — Aquelas duas lá tão com
mais de vinte anos e não falam de ninguém.
— Mãe… — Bela revirou os olhos, separando uma carta pra jogar.
— Nem a Aurora, que eu achei que ia ser mais rapidinha por ser sapatão — completou.
— Mãe! — exclamei. — O que te faz pensar que sapatão é “mais rapidinha”?
— Porque homem é um saco, minha filha — argumentou. — Escolher laranja é mais fácil
que escolher manga se a maioria das mangas estão podres.
— Essa foi a pior analogia que eu já vi, mãe. — Bela deu risada.
— Isso aí, tia! — Letícia concordou, recebendo um olhar de todo mundo. — Eu não gosto
de meninas, se é por isso que vocês tão me encarando. Só acho os meninos muito chatos. Quando
o Francisco crescer, se ele for chato, eu vou morar sozinha.
Todo mundo achava que Letícia ia crescer um pouco mais e sair do armário como lésbica.
Menos eu. Lelê exalava assexualidade e eu tinha muita fé de que ela não sentiria atração por
ninguém. No tempo dela, ela ia perceber. E se meus tios começassem a cobrar um genro ou uma
nora eu ia fazer o papel da prima brigona.
Meu celular começou a vibrar sobre a mesa. No começo, pensei que fossem mensagens do
Lucas, que quase digita uma palavra por mensagem e faz meu celular vibrar ininterruptamente,
mas meu coração quase saltou da boca quando Letícia olhou para a tela acesa curiosa.
— Quem é Mia? — perguntou.
Peguei o celular correndo — e quase deixando ele cair —, levantando da mesa.
— Por que a Mia tá te ligando? — Bela me olhou de olhos semicerrados.
— Sei lá! — exclamei. — E eu vou recusar.
— Recusa, então. — Minha irmã inclinou o corpo sobre a mesa, atenta.
Encarei ela por alguns segundos pensando, eu queria recusar porque ainda estava irritada
com o que houve. Mas eu queria muito descobrir o que faria ela me ligar.
Saí andando sem falar nada em direção ao meu quarto, ouvindo um “eu sabia” em meio a
risos. Entrei no quarto, respirei fundo, e apertei no botão de atender.
— Alô? — falei, ao colocar o telefone na orelha.
— Tá, Aurora, você venceu — respondeu ela, assim que eu atendi. — Talvez você mereça
um pedido de desculpas.
“Finally I’ve been waiting for this moment for you to see the real me”

Just a Girl - Miley Cyrus

— Agora você percebeu isso? — perguntei um pouco ressentida.


— Eu sei, eu deveria ter pedido desculpas antes — Mia assumiu. — Eu depositei em você
uma raiva que não era você quem deveria receber, e isso foi um erro. Até jogar bebida em você
eu joguei e isso foi bem babaca da minha parte. Eu peço desculpas.
— E isso não tem nada a ver com o fato de amanhã ser segunda-feira e nós termos um
trabalho em dupla pra fazer? — questionei, desconfiada.
— Dizer que não tem nada a ver é mentira, eu tô preocupada com isso também, pra ser
sincera — admitiu —, mas não é o foco. Eu juro que a intenção é pedir desculpas genuinamente.
E, bom, eu não sou uma pessoa que pede desculpas com facilidade.
— Deu pra notar.
— Eu quero que você saiba que agora eu entendo o estresse que eu te causei. E que deve
ter sido péssimo pra você não ser ouvida em todas as vezes que disse que não fez nada.
— Foi mesmo — afirmei.
— Bom. É isso — concluiu. — Você tem algo a dizer?
Confesso que, por mais reconfortante que um pedido de desculpas possa ser, ainda não
tinha ido embora o ressentimento de tudo. Mas, nesse caso, não era mais culpa dela e sim da
forma como eu lido com os sentimentos.
— Não — respondi. — Tá tudo bem e eu entendi.
— Nesse caso você vai me matar se eu perguntar se a gente pode fazer alguma coisa do
trabalho amanhã? — perguntou.
Talvez.
— Não. Claro que não. A gente tem que agilizar um pouco mesmo.
— Tá, então você pode vir aqui em casa gravar o meu relato?
Quais as chances da gente discutir mais uma vez?
— Posso — assenti.
— Então eu te vejo amanhã — concluiu. — Até, Aurora.
— Até — respondi, antes de desligar o telefone.
— Até o que? — Bela questionou parada na porta do quarto, me dando um susto de
prender o ar.
— Tá me bisbilhotando? — perguntei com a mão no peito. — Porra, que susto!
— Não muda de assunto e me fala o que aconteceu! — Bela se animou, vindo na minha
direção. — Por que a Mia te ligou?
— Nada, Bela! — Minha voz carregou um pouco de irritação. — A gente tá fazendo
trabalho em dupla e amanhã vou na casa dela gravar uma parte, só isso.
— Você anda bem próxima dela pra quem não suportava nem olhar, né?!
— E estou lutando cada vez pra que essa proximidade vire distância de novo — ressaltei.
— E pra isso precisamos fazer esse trabalho.
— Acho bem que esse spotted tá juntando vocês. Mesmo que agora ela saiba que não foi
você. — Bela sentou em sua cama.
— Nem me fala desse treco que eu sou capaz de dar um berro. — Me sentei na cama.
— E já descobriram quem tá fazendo isso?
— Não, mas agora que ela sabe que não sou eu, eu não tô nem aí. — Joguei o corpo pra
trás e encarei o teto, com a cabeça no travesseiro
— Você não tá nem aí, mas eu tô toda aí. Porque ainda tô muito intrigada com essa
história e tentando entender o que a Mia fez pra que isso se tornasse algo tão grande.
— Não começa com as teorias conspiratórias de novo. — Coloquei as mãos na testa.
— Mas alguém tem que ter um motivo, Aurora! — exclamou. — Algo maior, talvez uma
vingança?
— Não sei, não quero saber e tenho raiva de quem sabe — soltei, exausta.
— Bom, então eu vou tomar um sorvete e deixar minhas “teorias da conspiração” longe de
você. — Riu, se levantando para sair em seguida.
Eu sabia que Bela provavelmente tinha razão, mas eu não queria me envolver nisso mais
do que já tinha estado envolvida até agora. Ainda assim, uma pulga ficava atrás da orelha.
Quem teria motivos para se vingar de Mia Duarte?

— Oi. — Mia abriu a porta, sem muito ânimo.


— Oi — respondi, igualmente.
Uau, que clima agradável teremos aqui hoje.
— Entra aí — ela disse, abrindo caminho para que eu passasse.
Desta vez, Mia não me indicou onde ficar e trouxe água, só pediu para que eu a seguisse,
enquanto ela já carregava o próprio equipamento de gravação. O que, confesso, me deu um frio
na barriga, já que já havia visto esse comportamento em sonho.
Mas não, nada a ver.
— Eu consegui algumas pessoas pra gravar amanhã — informou ela, enquanto subíamos
as escadas —, mas posso gravar sozinha, se você preferir.
— Prefiro, amanhã é aniversário do Lucas e não sei se vou pra casa dele desde cedo —
avisei. — Inclusive, posso gravar com ele se der.
— Tá bem.
Mia estava esquisita. Mas eu não achava que tinha a ver comigo e com nada relacionado a
nossas discussões. Por isso, fiz uma pergunta.
— Como você tá sobre o spotted agora que não faz ideia de quem seja? — Chegamos no
andar de cima, indo em direção a um dos corredores.
— Surtando, tá? — Ela elevou um pouco o tom de voz. — Foi mal. Não tô brigando com
você, só tô meio pilhada esses dias. Parece que eu nunca vou descobrir e nem ter como fazer isso
parar.
— Entendi — respondi. Eu relutei para continuar a frase, mas escorregou da minha boca.
— Deve ser ruim ficar pilhada por algo que você não tem como fazer parar, né?
Quando percebi, tentei conter o tom de sarcasmo, falhando de imediato. Mia me encarou,
revirou os olhos e seguiu o caminho. Eu precisava controlar minha boca. Mia se desculpou e, a
partir daí, meu estresse não era mais responsabilidade dela.
Quer saber? Era sim. Se não fosse por ela criar todo o problema, eu não teria passado por
isso. E digo mais, se não fosse pelo copo de bebida, eu não humilharia ela na festa.
Consequentemente, não me sentiria mal por isso e não ofereceria a carona. O que significa que a
gente nem estaria fazendo esse trabalho juntas. Eu posso até controlar minha boca, mas não
preciso forçar uma alegria de estar aqui. Porque não estou feliz e muito menos satisfeita.
— É aqui que quero gravar — Mia disse, abrindo a porta branca à nossa frente.
Entrei atrás dela e encontrei um estúdio de gravação audiovisual, com tela verde,
equipamentos de som, iluminação e tudo o que se tinha direito.
— Achei que a gente não fazia questão dessa super produção toda. — Passei os olhos ao
redor.
— A gente não vai usar isso, é só o cenário — explicou. — É o estúdio da minha mãe.
Quando ela precisa gravar monólogos, divulgação, campanhas publicitárias e testes, ela faz aqui.
— Interessante — respondi, breve. — Então se ajeita onde você quer ficar que eu vou
colocar o equipamento no lugar.
Mia não ficou na frente da tela verde, usando ela como fundo. Ela puxou o banquinho que
ali havia e colocou próximo às luzes e refletores, usando eles como cenário. Posicionei tudo que
precisava no enquadramento do vídeo.
— Você tá pronta?
— Tô. — Assentiu com a cabeça. — Pode começar.
— Câmera, take um, gravando — avisei, iniciando a gravação.
— Ser lésbica, por si só, já é uma realidade difícil — ela começou. — Não importa quem
você seja, onde você viva e o que você faça, em algum momento você vai receber julgamentos,
olhares tortos e repressão. Mas acho que, no meu caso, crescer nos olhos da mídia tornou tudo
um pouco pior. Eu era só uma adolescente. Me descobrindo, me entendendo e vivendo a minha
vida. Contei pra minha mãe que era lésbica e, bom, pra ela isso não foi um problema. Ela nunca
se opôs a nada que eu quisesse fazer pra me sentir melhor.
“E aí, eu cortei o cabelo. De repente as revistas, sites de fofoca, tabloides e matérias na
internet só falavam disso. Os títulos eram tão ridículos que chegavam a ser cômicos, mas um
deles nunca saiu da minha cabeça. ‘A filha homossexual de Alexia Duarte’. Era uma matéria
inteira supondo coisas sobre mim, e que dizia com todas as letras: ‘o trabalho de Alexia ocupa
demais a vida dela para que ela tenha pulso firme com as tendências da própria filha.’ — Mia riu
fraco.
“Parece se tratar de um conteúdo totalmente fundamentalista religioso, mas não. Era uma
coluna comum de fofoca. E eu só tinha cortado o cabelo! Não me viram beijando uma garota,
não me encontraram com a bandeira lésbica nas costas numa parada do orgulho, eu só cortei o
cabelo.
“Quando, de fato, me assumi publicamente lésbica isso tudo seguiu e piorou. O título de
filha lésbica de Alexia Duarte se tornou cada vez mais frequente e isso se tornou exaustivo. Eu
não sou a filha lésbica da Alexia Duarte. Eu sou lésbica. E filha da Alexia Duarte. E as duas
coisas não tem nada a ver uma com a outra. Assim como minha sexualidade não resume quem eu
sou, ser filha de uma grande atriz também não.
“Eu sei que não seria fácil mesmo que eu não fosse quem eu sou, e que talvez até por isso
eu perderia algumas coisas. Mas eu também sei que ter uma mãe famosa e não ser hétero se torna
uma cobrança mesmo que você não queira. As pessoas esperam que você seja perfeita e, bom, a
minha sexualidade não se enquadra no que elas esperam da perfeição. Eu sou mais do que uma
sombra e mais do que quem eu beijo na capa das revistas. E eu espero que um dia as pessoas
entendam isso.”
Mia concluiu sua fala.
— Corta — anunciei, encerrando a gravação.
Agora fazia mais sentido. É claro que Mia perdeu a cabeça com os rumores sobre ela. É
claro que, tendo a oportunidade de acusar alguém, ela se agarrou a isso a todo custo. É claro que
ela se importa com o que as pessoas enxergam dela. Ela acha que precisa se importar.
Ela lida com isso a vida toda e, não suficiente, isso respinga dela para a mãe e vice-versa.
Ela acha que qualquer passo que ela dê fora do trilho, vai desencadear em uma coisa maior. E
talvez vá mesmo, porque as fofocas já tomaram um tamanho muito maior do que deveriam e,
cada vez mais, tem se tornado uma coisa mais relevante. Pela primeira vez, eu entendia a
importância em fazer tudo isso parar.
E, também pela primeira vez, eu entendia Mia Duarte.
Foi bem naquele momento que a voz de Bela surgiu na minha cabeça
“Mas alguém tem que ter um motivo, Aurora! Algo maior, talvez uma vingança?”
Então, eu tive um estalo.
— Mia — chamei.
— Que foi?
— Eu acho que eu sei como te ajudar a descobrir quem tá enviando os boatos.
Os olhos de Mia, que andavam perdidos, pareceram finalmente se encontrar.
— Eu faço qualquer coisa que você disser — respondeu ela, sem hesitar.
Eu tinha um plano. E eu não conseguia acreditar que, depois de tudo que aconteceu, eu
trabalharia do lado de Mia. E por vontade própria.
“Now we got problems and I don’t think we can solve them”

Bad Blood - Taylor Swift

Mia me encarava afobada, esperando que eu explicasse que raios de ideia era essa pra ajudá-la.
Não posso julgar, eu provavelmente estaria da mesma forma no lugar dela.
— Fala logo, Aurora! — exclamou.
— Mia, é o seguinte — comecei. — Tá claro que alguém quer muito te ferrar nessa
história.
— Perceptível, né?
— Pois, então… — continuei. — Eu preciso de uma lista de pessoas com as quais você
acredita que pode ter errado na sua vida. Pessoas da faculdade, claro. Alguém que teria motivos
pra se irritar com você a ponto de fazer isso tudo.
— Eu confesso que essa lista é meio grande…
— Não tô nem um pouco surpresa. — respondi. — Pode ser qualquer motivo.
Popularidade, romance, amizade, tudo.
— Eu posso dizer alguns nomes e você anota? — perguntou.
— Pode — assenti, tirando da mochila meu caderno e uma caneta. — Começa.
Então, Mia começou a mencionar alguns nomes.
— O primeiro nome é o da Yasmin Vieira, do curso de Artes — contou.
— O que você fez pra ela? — Comecei a anotar no caderno.
— Eu fiquei com a menina que ela tava de rolo na calourada do ano passado, um pouco
antes de começar a namorar com a Larissa — explicou. — Eu não tenho nada a ver com elas e,
além disso, a menina me disse que elas não tinham nada sério. Eu não tinha como saber se isso
era mentira. E na real, nem era, a Yasmin só deu a louca mesmo por ciúme.
— Bom motivo. — Balancei positivamente a cabeça. — Não dizendo que ela tem razão, só
dizendo que é um motivo forte — me justifiquei diante do olhar dela. — Próximo.
— Natália Carvalho — disse. — Faz Filosofia. Digamos que eu entrei no aniversário dela
de penetra com uma… — pigarreou — ficante da época. E que a gente invadiu o quarto dela,
sem saber que era o quarto dela, e acidentalmente quebramos o abajur da mesa de cabeceira dela.
— Me poupe de detalhes sórdidos dessa história, por favor. — Fiz cara de desgosto em
resposta. — Não é um motivo tão forte, mas… Serve. Quem mais?
— Matheus Ribeiro, curso de Engenharia — falou. — Esse eu realmente peguei a
namorada dele. Sabendo que ela namorava. Mas em minha defesa, o Matheus é um grande
babaca que falava um monte de coisa dela pra faculdade toda. Eu só fiz o favor de avisar, não é
culpa minha se ela deu descaradamente em cima de mim.
— Por que todos os seus problemas até agora envolvem alguma mulher com quem você
ficou? — encarei.
— É mera coincidência — deu de ombros —, mas tenho algumas coisas agora que não
envolvem rolo nenhum.
— Pois comece a falar. — Me ajeitei na cadeira que estava sentada, atenta para a
continuação.
— Gabriel Fernandes. Cinema.
— Esse não é aquele que teve que pagar uma graninha de fiança porque foi pego com
droga na faculdade? — perguntei. — O que é ridículo, porque o caso dele nem permitia fiança.
— É ele — assentiu. — Ele me roubou. Entrou no meu quarto numa festa e pegou um
dinheiro que eu tinha guardado. Só que ele foi burro o suficiente pra ter esquecido o boné dele no
meu quarto e, então, eu soube que era ele. Aí fiz uma denuncia anônima pra reitoria.
— Precisamos trazer à tona de novo o debate de que você deixa qualquer pessoa entrar na
sua casa? — Encarei a garota.
— Não, eu já sei — respondeu. — Em resumo, por minha causa ele quase foi preso, teve
que gastar uma grana com a fiança e pra castigar ele o pai vendeu o carro dele e colocou ele pra
trabalhar e comprar um novo.
— Vocês ricos recebem uns castigos muito esquisitos — sacudi a cabeça em negação —,
mas, tá! É um bom motivo pra se vingar de você. Muito bom mesmo. Vou colocar ele com uma
estrelinha na minha lista. Temos mais alguém?
— Pedro Henrique Dias. Relações Internacionais. — Ela suspirou. — Ele era um grande
amigo meu, mas eu fui uma otária com ele.
— Não fico nem um pouco surpresa — falei, anotando. — Com todo respeito, claro. —
Mia decidiu ignorar e continuar falando.
— Ele tava super próximo de mim num momento bem ruim da minha vida. Por momento
ruim, eu quero dizer que eu tava sendo a pior pessoa possível pra todo mundo ao meu redor. E
isso acabou respingando nele, porque ele tava ali tentando me dar apoio e eu não ligava. Me
aproximei das pessoas erradas, comecei a deixar ele de lado e, claro, ele ficou muito magoado.
Quando ele quis desabafar sobre isso, fui uma grande estúpida mais uma vez e ele ficou com
raiva. Disse que esperava que eu me ferrasse muito dali pra frente, pra aprender com os meus
erros apanhando da vida.
— Excelente motivo, estrelinha também — falei, marcando o nome de Pedro. — Mais
alguém?
— Provavelmente sim. Como eu disse, eu tive uma fase muito ruim como pessoa —
contou.
— E ela passou? — Fitei ela e recebi um olhar de reprovação. — Tá, tá. Dessa vez eu tô
brincando.
— Que bom. — Mia deu uma risadinha bem sútil. — Enfim, os nomes que eu me lembro
agora e que tenho conhecimento são só esses.
— Yasmin, Nathalia, Matheus, Gabriel e Pedro. Certo?
— Certo — confirmou. — E agora?
— Agora, alguma conversa com eles vai ter que acontecer pra sondar as informações.
Óbvio que não pode ser você a fazer isso, então essa parte fica comigo — expliquei.
— E eu? — perguntou interessada. — Onde eu entro nisso?
— Você vai precisar fazer um esforcinho…
— Que esforcinho?
— Eu preciso que você continue gerando conteúdo pra que as fofocas continuem. — Mia
se prontificou para ir contra, mas eu não a deixei falar. — Eu sei, eu sei. Eu imagino que seja
horrível pra você ter sua vida exposta dessa forma, mas a gente precisa que as postagens
continuem pra perceber padrões, observar os horários e identificar algumas coisas que possam
servir como dicas.
— E o que eu faço pra “gerar conteúdo”? — Ela questionou, notavelmente insatisfeita.
— Bom, primeiro de tudo, não evitando as brigas com a Larissa quando elas vierem a
acontecer. Principalmente em público — avisei.
— Ah, isso vai ser fácil. — Mia cruzou os braços. — Não tem sido muito evitável, de
qualquer forma.
Pensei em perguntar sobre isso, mas preferi me abster.
— E comentar sobre isso com as pessoas também. Mas não qualquer pessoa, se não vai
ficar estranho — expliquei. — Tem que ser pessoas com as quais você já tem costume de falar
sobre isso.
— Que são poucas — disse. — No máximo duas.
— Então você vai falar sobre isso onde outras pessoas possam ouvir. Nas festas, na
faculdade e afins. E o mais importante, Mia. — Ela me olhou atenta. — Ninguém pode saber que
estamos investigando isso. Se não, tem risco das postagens pararem e a gente volta pra estaca
zero. Eu só vou comentar com Lucas e Rafa caso precise de ajuda e porque a gente sabe que
nenhum dos dois tá envolvido em nada disso.
— Certo, então isso fica entre nós — assentiu. — E como você vai fazer pra sondar os
suspeitos?
— Vou dar meu jeito, não dá pra usar a mesma tática pra todo mundo e talvez demore mais
pra uns do que outros — expliquei, fechando meu caderno. — Nós acabamos por hoje?
— Você não quer gravar o seu relato? — perguntou.
— Hoje não — respondi, me levantando. — Prefiro deixar ele pra depois. Mas olha, a
gente não pode distrair do trabalho. Precisamos conciliar, tá?
— Claro — concordou. — Você tá indo?
— Tô. — Fiz que sim com a cabeça.
— Eu te levo até a porta. — Ela foi se levantando logo em seguida.
Mia me levou até a porta, um gesto um tanto quanto surpreendente partindo dela.
— A gente se vê na aula, então — disse ela, abrindo a porta. — E você vai me falando
caso descubra alguma coisa.
— Eu te aviso — assenti. — Faz o que eu te falei.
— Tá bom.
Eu já ia saindo quando Mia me chamou.
— Ei, Aurora!
— Fala — respondi.
— Por que você tá me ajudando? — Ela me encarou. — Você não gosta de mim.
— Eu percebi que, apesar disso, a gente trabalha bem em equipe — assumi. — E, eu acho
que talvez, só talvez, você não seja de todo ruim. E tem o direito de se defender.
Acabei admitindo algumas coisas em voz alta. Menos uma: que, talvez, depois de ver Mia
um pouco mais exposta, eu desgoste um tantinho menos dela.

Lucas era muito entusiasta de aniversários e acreditava fielmente que comemorar fora da data
poderia trazer um azar terrível, do tipo que ele poderia, sei lá, morrer. E era por isso que eu
estava arrumada em plena terça-feira às quatro da tarde.
A comemoração na casa dele começaria às cinco, para acabar um pouco mais cedo já que a
maioria dos convidados teria aula no dia seguinte logo de manhã. Dessa vez, ele não pediu para
que eu e Rafaela chegássemos mais cedo, então os planos de gravar para o documentário
babaram, mas ao menos eu não precisei sair apressada de casa.
Quando cheguei lá, estavam apenas Rafa e Felipe, um colega nosso da faculdade que
cursava Letras, assim como minha irmã.
— Ah, é você — Lucas disse ao abrir a porta, não muito feliz.
— Feliz aniversário pra você, meu amigo tão querido! — exclamei, sarcástica. — Não
precisa vibrar tanto com a minha chegada.
— Ele quase morreu do coração quando a campainha tocou, Aurora. — Rafaela revirou os
olhos, sentada no sofá com uma long neck na mão.
— Ué, por quê? — perguntei sem entender.
— Ele achou que fosse o “Rique” — disse Felipe, com vozinha de deboche.
— Quem?! — franzi o cenho.
— Eles tão exagerando, amiga — Lucas riu —, mas é que eu tenho conversado com um
carinha lá da faculdade e chamei ele pra vir hoje, como quem não quer nada. E agora pouco ele
mandou mensagem pra avisar que tá vindo. Aí você tocou e eu achei que era ele.
— E ele tá há uns vinte minutos falando sem parar desse cara! — Rafaela exclamou. —
Sem exagero!
— Claro, finalmente minha vida amorosa tem a mínima chance de sair da gaveta, eu
preciso ficar empolgado, né? — justificou.
A campainha tocou.
— Deve ser ele! — Lucas exclamou, ajeitando a gola da camisa de botão floral que vestia.
— Quem é esse cara, Rafa? — perguntei baixinho, sentando ao lado dela no sofá.
— Não faço a mínima ideia. — Rafaela deu de ombros.
De repente, Lucas aparece com o tal Rique. Um garoto baixinho, preto de pele clara como
ele. Me parecia familiar, até.
— Gente — anunciou —, esse aqui é o Pedro Henrique, ele faz Relações Internacionais lá
na faculdade.
— Prazer, gente. — O garoto deu um sorriso simpático e ergueu a mão em um aceno.
O Pedro Henrique da Mia?
Sem chance.
“I got a list of names and yours is in red underlined”

Look What You Made Me Do - Taylor Swift

Tá, eu precisava pensar.


Claro que ter Pedro aqui hoje era a chance perfeita para descobrir alguma coisinha que
pudesse colocar ele como suspeito confirmado. Mas eu não podia fazer isso de qualquer jeito.
Primeiro, porque era aniversário do Lucas e ele me mataria se eu não desse a devida atenção para
o evento. Segundo, porque não podia dar na cara, precisava ser sútil. Terceiro, porque qualquer
indício que eu desse de ter alguma relação — que não tenho mesmo — com Mia Duarte faria
tudo ir por água abaixo.
E é por isso que eu arrastei Rafaela para a
cozinha para pegar bebida comigo.
— Eu preciso te contar uma coisa — cochichei, enquanto abria a geladeira pra tirar de lá
uma cerveja.
— Eu percebi, você me arrancou do sofá completamente desesperada — disse Rafa no tom
de voz normal. O alto. Ela recebeu um olhar de reprovação meu. — Foi mal! — exclamou, agora
sussurrando. — O que você tem que me contar?
— Digamos que… eu tenha… — pausei — dito pra Mia que vou ajudar ela a descobrir
quem tá enviando os boatos — falei rápido, antes de um gole na cerveja. — E vou investigar
suspeitos.
— Desde quando você se resolveu com a Mia, desde quando você ajuda ela e desde
quando você demora tanto tempo pra contar esse tipo de coisa? — Rafaela questionou, incrédula.
— Desde domingo. Tecnicamente, desde o dia que levei ela até a delegacia e… Bom, pra
não contar não tem justificativa, só esqueci. — Sorri amarelo, levantando os ombros.
— Esqueceu por setenta e duas horas? Que horrível, Aurora! — Rafa fingiu tristeza. — E
por que você tá contando isso com tanta urgência agora?
— Porque ontem eu fui na casa dela e… — Rafa me encarou de olhos arregalados. —
Garota, isso não é surpresa! A gente tá fazendo o trabalho de Audiovisual — Retribui a encarada.
— Enfim! Eu fui, a gente fez uma lista de pessoas que possam ter motivos pra prejudicar ela.
Alguém com quem ela errou no passado ou, pelo menos, alguém que acha que ela errou.
— E aí? — a garota perguntou, afobada.
— E aí que o Pedro Henrique é um dos principais suspeitos! — exclamei, ainda
cochichando, apontando com a mão aberta na direção da porta da sala.
— Mentira! — Ela respondeu, surpresa. — E o que a gente vai fazer?
— É isso que tô tentando descobrir. Eu não posso dar a entender que tô querendo
investigar algo, porque se isso acontecer duas coisas vão rolar: a primeira é que o Lucas vai ficar
muito bravo e a segunda é que o Pedro vai se retrair totalmente. Ele não pode nem sonhar que eu
tenho contato com Mia Duarte.
— Bom, a melhor maneira de fazer isso é de uma forma que o Lucas vai amar e o Pedro
Henrique nem vai desconfiar: tentando fazer ele se sentir incluído.
— Passa pela sua cabeça que isso é meio feio, se parar pra pensar? — franzi o cenho.
— Tecnicamente, a gente vai fazer mesmo ele se sentir incluído. — Rafa deu de ombros.
— O fato de sondar a situação é só um pequeno bônus.
— Então, como isso vai ser? — perguntei.
— Deixa comigo — assegurou. — Vem, vamos lá! — Ela me puxou pela mão e eu peguei
a cerveja de cima da bancada.
Rafa e eu voltamos pra sala e mais um colega de Lucas que conheciamos, o Thiago, tinha
acabado de chegar.
— Oi, Thiago! — Rafa acenou de pé no meio do caminho — Gente, vocês querem que eu
pegue alguma coisa na cozinha? — Apontou com o polegar por cima dos ombros.
— Eu vou lá, tenho que deixar o refri — Thiago respondeu, entrando para a cozinha em
sequência.
— E você, Pedro? Uma água, um refrigerante, uma cerveja? — tentou.
— Eu aceito uma água — Ele deu um sorrisinho tímido — Obrigado.
— Vou buscar. — Rafa sorriu em retribuição, dando meia volta em direção a cozinha e me
dando um leve esbarrão de ombro, para que eu puxasse assunto com o rapaz.
— Você não bebe, Pedro? — perguntei, me sentando do lado dele no sofá. Thiago voltou
da cozinha nesse meio tempo, se sentando no tapete perto de Felipe.
— Bebo, mas hoje eu tô de carro — explicou. — Acho que foi uma escolha ruim — Ele
riu.
— Ah, você não sabia! — Lucas riu de volta. — Desculpa, eu deveria ter te avisado que
teria bebida — disse ele, com o rosto levemente rosado.
Lucas estava tímido? Eu nunca vi isso acontecer.
— Não, relaxa — Pedro Henrique respondeu afetuosamente.
— Acho que a gente vai ter que chamar ele pra mais saídas, Lucas — sugeri.
— Não me oponho — Pedro riu sem graça —, mas as saídas de vocês são de vocês,
também não precisam se preocupar.
— Imagina! Se tá com o Lucas, tá com a gente! — exclamei, soando um pouco diferente
do que eu gostaria.
— Aurora — Lucas chamou, entredentes, e arregalou os olhos.
— Eu quis dizer no sentido de que se é amigo do Lucas, também é amigo nosso — me
corrigi, com muito sufoco.
Meu Deus, eu sou péssima nisso.
— Tá tudo bem, Aurora. — O rapaz riu. — Obrigada pelo acolhimento, de qualquer forma.
— Aqui, Pedro. — Rafa voltou com a água, entregando a ele e sentando ao nosso lado.
— Obrigado — respondeu ele, pegando o copo. — E aí, gente? Como vocês tão com a
faculdade?
— Todo dia me arrependendo por ter escolhido cursar Direito. — Thiago revirou os olhos
e suspirou. — A quantidade de hétero por metro quadrado ali deveria ser proibida. Mas,
academicamente falando, começando bem o semestre. Muita matéria, mas dando conta por
enquanto.
— Eu lido o tempo todo com hippies de ecobag no curso de Letras, então tô bem tranquilo
— Felipe brincou.
— Uma delas é a minha irmã — respondi, rindo e dando um gole na cerveja.
— Tenho visto sua irmã em poucas aulas, confesso. — Felipe riu de volta. — Acho que
nossa grade tá diferente esse semestre, mas adoro a Bela!
— Gente, o curso tá me matando desde já esse ano, viu? — Pedro comentou. — As
movimentações políticas sempre afetam a quantidade de estudo que a gente vai ter. O que é
ótimo e péssimo ao mesmo tempo.
— A gente de Cinema tá até bem por agora, mesmo tendo um baita trabalho pra fazer já —
Lucas falou.
— Fale por vocês! — Rafa apontou pra nós. — Não puxei a matéria esse semestre, tô em
plena paz.
— É em dupla o trabalho? — Pedro perguntou olhando em nossa direção, antes de beber
um gole da sua água.
— É, mas não tô fazendo com a Aurora, infelizmente — Lucas respondeu.
— Aurora, é você que tá fazendo trabalho com a Mia Duarte, não é? — Thiago perguntou
e eu engoli em seco, preocupada com o quanto isso afetaria a movimentação com Pedro. — Algo
sobre vivências LGBTQIAPN+ ou coisa do tipo? Ela me convidou pra gravar, só não marcamos
a data ainda.
— É, a gente tem convidado várias pessoas da faculdade pra participar — concordei.
— Bom, não contem comigo — Pedro disse, sem hesitar. — Não por você, Aurora. Mas
Mia é… complicada.
— Eu entendo completamente — respondi. E não menti, se formos analisar todo o
contexto.
— E essa fofocada toda sobre ela? — Felipe comentou. — O que vocês acham?
— Acho que não dá pra opinar muito, né? — Rafaela tentou ser sutil. — Mas com certeza
tem caroço nesse angu.
— Eu não duvido nada que seja verdade. Tenho algumas aulas com a Larissa e ela tá
sempre cochichando pelos cantos com alguém de um jeito suspeito — Thiago compartilhou. —
Parecem desabafos, sei lá.
— Mia Duarte de uns tempos pra cá desenvolveu uma habilidade extraordinária de ferir
todo mundo que chega perto. — Pedro deu de ombros. — Não me surpreenderia.
Era claro o ressentimento. A amargura. Pedro Henrique ainda tinha mágoa da forma como
foi tratado por Mia e isso era evidente. Mas será que isso o faria acabar com a reputação dela
dessa forma?
Depois de conversarmos um bom tempo sobre os mais variados assuntos, me levantei.
— Eu vou pegar uma cerveja, alguém quer? — perguntei.
— Rique — Lucas o chamou. — Se você quiser, pode dormir aqui. Assim você não
precisa se preocupar em voltar dirigindo. Que tal?
— Então pode ser. — Pedro abriu um sorriso. — Vou lá com você, Aurora — avisou ele,
se levantando em seguida.
Rafa me olhou com olhos arregalados, porque sabia que essa seria uma oportunidade de
puxar conversa. Eu também sabia, então engoli seco.
Fui até a cozinha e Pedro veio logo atrás, mas antes mesmo que eu tivesse o trabalho de
pensar em como puxar o assunto, ele fez as honras.
— Então — começou, abrindo a cerveja —, Mia tem sido bacana com você?
— Ah, sei lá… — Dei de ombros abrindo minha cerveja também — No começo ela era
mais… complicada — resumi, evitando explicitar tudo que rondava o nosso convívio — Agora
tá um pouco menos.
— Olha, Aurora… — Ele suspirou. — Eu vou te falar isso porque você parece ser uma
pessoa boa, e digo isso porque acredito que o Lucas seja uma pessoa incrível e que com certeza
sabe escolher quem ele tem por perto. Toma cuidado, tá? Com a Mia. Ela sabe ser bem impulsiva
às vezes e isso pode ferir os outros. E talvez ela esteja sendo boa com você agora porque,
querendo ou não, essa fofoca deixou ela vulnerável.
— Vulnerável? — perguntei.
— É, tipo… — Pedro tomou um gole para formular as palavras. — Ela é colocada num
pedestal o tempo inteiro, o que faz com que ela faça as coisas de forma até meio egocêntrica.
Agora com essa história, nem todo mundo tá vendo ela com os mesmos olhares de antes. Isso
deixa ela fraca. Faz ela depender mais da aprovação dos outros. Você entende?
— Entendi — assenti.
— Pode ser que, quando isso tudo passar, ela volte a agir como a mesma pessoa arrogante
de sempre — avisou. — E, se eu fosse você, não me permitiria envolver. Pra não ter que passar
por isso.
— Como assim envolver? — Franzi o cenho. — Você acha que eu… sobre a Mia…
— Não acho, só é bom alertar, caso você esteja vendo ela com esse tipo de interesse —
justificou.
— Interesse? Em Mia Duarte? — Ri fraco, dando um gole na garrafa em sequência. —
Não. Sem chance.
— Menos mal. — Pedro deu uma risadinha sutil. — Enfim, se cuida. Alguém tá
prejudicando ela, mas nessa história ela pode prejudicar outras pessoas por tabela.
— Eu vou me cuidar — garanti e dei um sorriso para ele. — Agradeço a preocupação.
Mas… e você e o Lucas, hein? — Abri um sorriso sugestivo.
— Ah! — Pedro sorriu de canto, tímido, em resposta. — A gente tá se conhecendo, né? De
uma forma um pouco intensa, talvez. Mas nos conhecendo.
— Fala a real pra mim, vai — pedi, esperando ele se abrir.
— Acho que eu nunca me senti assim, Aurora. — Ele deu um suspiro. — A gente tem se
conectado com muita facilidade, confesso que isso me assusta. Você acha que tá rolando do
mesmo jeito do lado de lá? — Pedro olhou em direção à sala.
— Vou ser sincera, o Lucas não tem falado quase nada. Rafa e eu descobrimos sobre você
hoje — falei, vendo Pedro murchar antecipadamente. — Calma, deixa eu concluir! —- Ri. — E,
bom, o Lucas só fica nesse conceito low profile sobre a vida dele quando quer muito que algo dê
certo. Faz suspense, mistério, conta muito pouco pra gente e vive à base do deixa acontecer. É
diferente, entende? Quando ele tá muito focado, é diferente. Então, sim — concluí. — Eu acho
que ele tá se sentindo da mesma forma que você. Respira e se deixa viver isso .— Sorri pra ele.
— Se você visse o jeitão dele todo nervoso esperando você chegar…
— Imagino, porque fiquei igual antes de tocar a campainha. — Ele riu. — Obrigada pela
conversa, sério. Não sei nem como te agradecer.
— Que tal assim… — ergui o dedo mindinho — cuida do Lucas e fica tudo bem. Temos
um acordo?
— Eu cuido dele e você se cuida. Fechado? — Pedro ergueu o mindinho também.
— Fechado — assenti, selando o acordo com uma promessa de dedinho.
Pedro estava rendido por Lucas e Lucas por ele. Além disso, ele era simpático, divertido,
educado e afetuoso. Mas eu não podia me esquecer que ele era um suspeito. E que ele dizer que
toda a situação da fofoca enfraqueceu Mia só me fez pensar que talvez esse seja o objetivo de
tudo isso: enfraquecer. Deixar ela vulnerável.
E se isso é uma vingança, quem saiu mais enfraquecido e vulnerável em tudo que Mia já
fez foi o próprio Pedro Henrique.
Espero que isso não prejudique ninguém

Uma professora doente é sinônimo de uma aula a menos na faculdade. E, atualmente, o tempo
livre da faculdade é tempo disponível para o documentário. E para a investigação.
Meu Deus, por que me meti nisso?
Cheguei na casa de Mia pensando em como organizaria e contaria tudo que aconteceu no
dia anterior. Sobre o quanto aquela conversa seria relevante e, ao mesmo tempo, até onde ela foi
confidencial e um gesto de zelo de Pedro comigo. Esperava encontrar uma Mia agitada, ansiosa e
afobada, mas não foi bem o que eu encontrei.
— E aí? — disse ela ao abrir a porta. O cabelo curto desalinhado, olheiras marcadas e uma
expressão de quem não dormiu. Ou de quem, se dormiu, dormiu muito mal. — Entra.
Segui a garota até a sala, onde ela se jogou no sofá, massageando as têmporas.
— Você tá… bem? — perguntei, receosa de criar uma situação.
— Uhum — resmungou, de olhos fechados. — Você não ia vir mais tarde?
— Mas eu vim na hora que a gente marcou — falei, soltando a mochila sobre o tapete.
— A gente não marcou duas horas? — ela perguntou, de cenho franzido.
— Mia… São duas horas — expliquei, como se fosse óbvio. Porque, para mim, era.
— Já? — Ela arregalou os olhos, surpresa. — Eu acordei agora, não achei que estivesse tão
tarde.
— Você tá bem mesmo? — insisti, preocupada.
— Acho que sim, sei lá… — Deu de ombros. — Só saí pra beber um pouco ontem à noite.
— Um pouco? — verifiquei, desconfiada.
— Aí eu voltei meio tarde. — Ela ignorou minha pergunta, esfregando os olhos.
— O quão tarde você voltou? — Peguei um caderno na mochila.
— Umas três? — Ela estreitou os olhos, confusa. — Ou cinco, tanto faz.
— E a sua namorada não liga de você encher a cara até de manhã no meio da semana?
— Namorada? — perguntou, seguida por um bocejo. — Não sei do que você tá falando.
— Como não sabe, Mia? — revirei os olhos, impaciente. — A Larissa.
— Ué, a gente terminou.
Acho que esse definitivamente não é um bom momento para lidar com Mia Duarte solteira.
“Me assusta ver a multidão te aplaudir de pé, você nem mesmo se conhece”

Eu Sei Quem é Você - Anavitória

Não tem por que surtar ou dar atenção a isso, certo? Tipo, Mia Duarte estava solteira. Ok.
Acontece. Não era um motivo para estar sentindo um tremor no estômago.
Então por que, ainda assim, eu sentia?
— Você quer falar sobre isso ou… — ofereci.
— Não tem muito o que falar, na realidade. — Deu de ombros. — Só me cansei de engolir
atitudes das quais já me queixei. Todo mundo fica esgotado em algum momento.
— Não sei se é o melhor momento pra perguntar isso, mas, então todo o lance do spotted…
— Não vai mudar nada, porque a gente vai deixar isso baixo — respondeu de prontidão. —
A investigação continua.
— Você não precisava fazer isso, você sabe, né? — tentei me certificar. — Sei que falei
pra manter as coisas como estavam, mas agora é diferente.
— Não, relaxa — Mia me tranquilizou. — Foi da Larissa que partiu a ideia. Ela disse que
expor o término ia gerar mais rumor sobre as duas.
— Mas você concordou? Tá bem com isso?
— Sei lá… — Franziu o cenho. — Só sei que tenho mais com o que me importar agora. —
Mia levantou do sofá. — Já volto.
Tinha algo mais afligindo Mia. Não era só o término, ela estava inquieta até demais.
A garota voltou com uma cartela de comprimidos e uma garrafinha de água nas mãos.
— Analgésico? — perguntei, enquanto ela se acomodava de volta.
Ela destacou um comprimido, colocou na boca e logo deu um longo gole de água para
engolir.
— Calmante.
Certo, definitivamente algo mais estava afetando ela hoje. E eu não conseguia entender até
ouvir uma voz ao longe chamando a garota.
— Mia, cheguei.
E ali, adentrou a sala o rosto que eu, até então, só conhecia por telas, redes sociais e
tablóides. Era mais alta do que parecia na TV, seus cabelos escuros eram perfeitamente lisos e
alinhados e ela exalava perfume caro no ambiente.
Era Alexia Duarte, mãe de Mia.
— Não me disse que tinha visita, filha — falou a mulher, com um sorriso breve.
— Você não perguntou — respondeu Mia, sem desviar os olhos da mesa de centro.
— É um prazer conhecer a senhora, Alexia — falei, nervosa. — Sou Aurora. Mia e eu
estamos fazendo um trabalho da faculdade juntas.
— Prazer, Aurora. — Ela abriu um sorriso amarelo. — Fique à vontade. Mia, podemos
conversar um segundinho na cozinha?
— Tá. — A garota se levantou a contragosto.
Me recolhi enquanto as duas deixavam a sala. Antes mesmo que eu pudesse entrar em
teorias sobre o assunto, consegui ouvir um pouco do diálogo.
— E o que é que tem? — Mia perguntou, seguida da resposta da mãe, que falava mais
baixo e eu não conseguia ouvir. — Fala como se nunca tivesse feito isso na vida… — Mais um
murmúrio. — Eu só queria distrair a cabeça… — Outra resposta de Alexia. — Talvez se eu
tivesse alguém com quem conversar eu não precisaria mesmo… — O debate seguiu. — Você
nunca tá em casa!
E, então, Mia fez silêncio por um período mais longo. Eu não era capaz de ouvir a fala de
Alexia, mas era notável que naquele instante se estabelecia um momento de sermão que, depois,
só se confirmou com a palavra final de Mia.
— Sim, senhora.
As duas retornaram em silêncio. Mia voltou para o sofá sem sequer olhar para os lados.
— Aurora, vou me retirar. Preciso gravar uns trabalhos, mas bom estudo pra vocês — disse
Alexia a caminho das escadas.
— Obrigada — agradeci, antes que ela nos deixasse.
— Vamos editar alguns vídeos? — Mia sugeriu, abrindo o próprio notebook e fingindo que
nada tinha acontecido.
— Você tomou uma bronca por minha causa?
— Não por sua causa — assegurou. — Não quero falar sobre isso, pra mim todos os
chiliques de Alexia Duarte estão completamente encerrados quando ela acaba de falar. Coloco
uma pedra em cima e finjo que não aconteceu.
Agora a aflição de Mia fazia sentido. A mãe dela estava chegando e, aparentemente, a
relação das duas não era das melhores.
— E sobre a sua relação com a Larissa… você também colocou uma pedra em cima? —
perguntei.
— Aurora, eu já saquei que você tá vendo meus problemas e tentando sobrepor um ao
outro pra me distrair — ela começou a digitar —, mas se a gente entrar nessa, vai virar um ciclo
infinito. Você não vai querer isso, confia em mim.
— Bom, talvez uma coisa seja menos pior que a outra, né? — sugeri. — Como você tá se
sentindo sobre o término?
— Triste, ao mesmo tempo aliviada. Irritada, mas também conformada. — Deu de ombros.
— É confuso. Sabe quando você tá num relacionamento que já não vai bem faz tempo, mas você
gosta da pessoa? E aí, por mais que terminar seja uma questão, ainda assim a relação traz certa
tranquilidade?
— Sei — respondi. — Vocês vinham brigando faz tempo, né?
— Larissa vinha se tornando uma pessoa meio… difícil. Não gosto de falar isso dos outros,
mas é o que é. Péssima em ouvir e ótima em falar. Uma conta que não fecha.
— Acho que talvez você tenha experiência com esse tipo, né? — falei, olhando em direção
ao andar de cima.
— Aurora, é sério. — Mia revirou os olhos. — A gente não precisa falar dos meus
bloqueios familiares.
— Muita gente tem bloqueios familiares, não é um demérito — ressaltei.
— Pra mim é diferente. Minha mãe é famosa, pessoas famosas são endeusadas —
explicou. — Ninguém pensa que ela pode ter defeitos — começou a falar com a voz embargando
a cada palavra —, que pode ser extremamente perfeccionista, que pode ser negligente. Passar
tempo demais fora. Não se preocupar com nada além do trabalho.
Mia rapidamente enxugou os olhos e virou o rosto.
— Desculpa — pediu, mudando de assunto. — Vamos fazer o trabalho?
— Pelo que você tá pedindo desculpa?
— Você não tem que ouvir meus problemas — respondeu. — Você veio pra cá pra fazer
trabalho.
— Tá, você quer fazer trabalho então? — Mia fez que sim com a cabeça. — Então tá.
Quero gravar meu vídeo de relato.
— Agora? — Ela me olhou com expressão de insatisfação.
— Sim — falei. — Pode ser ali na praia mesmo.
— Tá… — Mia suspirou, cansada. — Vou pegar meu equipamento e a gente vai andando.
Não era só sobre o trabalho. Mia não tinha espaço para se abrir, colocar pra fora o que
sentia. Não tinha quem a ouvisse e acolhesse de verdade. Ela não tinha uma zona segura. Então,
quando chegamos na praia de Camboinhas e a câmera ligou, resolvi oferecer isso a ela. Do meu
jeito.
— Meu pai faleceu há oito anos — comecei a falar. — Num acidente de carro, voltando de
uma viagem de trabalho. Ele sempre tratou a mim e a minha irmã como princesas, não só pelos
nomes — dei uma risadinha fraca —, mas ele nos deu todo amor e afeto possível nos momentos
em que podia. Por consequência, a aprovação do meu pai sempre foi algo muito importante pra
gente. — Respirei fundo. — Eu não tive tempo de falar pra ele que eu gostava de garotas. Me
descobri dois anos depois que ele partiu, e me assumi pra família quatro anos depois. Toda a
minha família materna me acolheu e recebeu muito bem. Até que eu cheguei na família paterna.
Mais especificamente, na minha avó. A maior religiosa que eu já havia conhecido. — Forcei os
lábios um contra o outro, pensativa. — Muitas coisas ditas não me machucaram, como a fala de
que eu “não ia para o céu” ou o clássico sobre ser uma fase e precisar de cura e conversão.
Algumas coisas já me machucaram bem mais, como ser chamada de aberração ou ouvir que não
me queria mais por perto. Mas nada foi capaz de me machucar mais, do que ouvir a frase: “Seu
pai teria repulsa de você se estivesse aqui.” — Contive o choro que queria cair. — Apesar de
nunca ter acreditado nisso completamente, porque sei que meu pai jamais agiria assim, eu passei
os próximos anos pensando no que ele diria se eu tivesse tido tempo de contar. No que ele iria
querer fazer parte ou não. Se eu ainda seria a princesa dele mesmo que não quisesse um príncipe.
— Sequei as lágrimas que escorreram. — Hoje eu sei que sim. E hoje eu sei, também, que se o
céu não é pra mim por ser quem eu sou, meu pai não está lá. Porque o meu pai jamais estaria em
lugares onde não sou bem vinda. Então, com certeza, seja lá onde ele estiver, é muito melhor que
o céu.
— Corta — disse Mia, depois de eu fazer sinal que tinha acabado. — Eu sinto muito.
— Não sinta, eu tô legal — respondi, tranquilizando.
— Isso foi uma tentativa de fazer eu me sentir melhor? — perguntou, se sentando ao meu
lado na canga que havia levado.
— Não exatamente. — Inclinei a cabeça para o lado. — Foi mais uma tentativa de fazer
você se sentir confortável de colocar pra fora o que você sente. Achei que expondo um pouco
mais de mim, você se sentiria mais a vontade de expor um pouco mais de você — expliquei. —
Você não precisa se não quiser, mas eu tô me dispondo a te ouvir, porque parece que você não
tem tido muita gente pra te ouvir nos últimos tempos.
— Não mesmo. — Mia suspirou.
— E bom, você bem sabe que há duas semanas atrás eu nunca pararia pra te ouvir —
comecei a falar e Mia revirou os olhos. — Então considere isso uma gentileza. Ou um milagre.
Do que você preferir chamar.
— Tá. — Ela soltou um risinho a contragosto. — Parece que temos pelo menos uma coisa
em comum, Aurora. Meu pai também já faleceu.
— Sinto muito.
— Relaxa, eu era bem pequena, então não tenho memórias afetivas nem nada, sabe? —
contou, tranquila. — Eu só lembro que até um certo dia eu tinha mais afeto familiar e depois eu
tava cercada de babás. Minha mãe já trabalhava como atriz, então… era ausente como é hoje.
— Antes do seu pai falecer ela era assim?
— Perguntas difíceis para serem respondidas pela memória de uma criança de três anos. —
Mia riu olhando o mar. — Eu sinto que sim. Acho que a perda afetou a forma como ela se
relacionava comigo. Ela diz o tempo todo sobre o quanto eu me pareço com ele. E, claro, ela se
afundou em trabalho porque ela não tem coragem de enfrentar os próprios sentimentos. Fomos
nos distanciando cada vez mais, o vazio crescendo… Quando tive idade pra ficar sozinha,
acabaram as babás e empregadas e era eu comigo mesma. Sendo obrigada a me virar, a me
consolar, me acolher e coisa e tal.
— Fazendo sozinha por si tudo que ela deveria estar ali pra fazer, né? — Olhei pra ela.
— Tipo isso. — Mia suspirou. — Quando falo que ela nunca tá em casa, ela joga na minha
cara que meu pai não tá mais aqui e que, desde então, ela teve que se desdobrar pra me dar a
“vida de luxo” — ela fez aspas com as mãos — que eu tenho hoje. Acho que ela só mascarou o
luto e transferiu a culpa pra mim.
— Mesmo entendendo isso, não dá pra gente negar que tá errado — falei. — Ela era a
adulta, você era só uma criança. Cabia nela a maturidade, até porque você precisava de afeto.
Não era um luto só dela.
— É. — Mia fez alguns segundos de silêncio e começou a chorar. — Eu não precisaria de
luxo, Aurora. Eu trocaria tudo por presença e afeto. Trocaria festas e gastos só pra ter ela,
minimamente, se preocupando comigo como uma mãe deveria. — A garota passou as mãos pelo
rosto. — Você lembra quando roubaram o meu carro? — Assenti com a cabeça. — Eu liguei pra
ela e ela só pediu pra eu falar com o seguro e que, qualquer coisa, liberava na concessionária. Só.
Um cara apontou uma arma pra minha cabeça e ela sequer me perguntou se eu tava bem. Você,
que mal aguentava olhar pra mim naquele dia, fez muito mais do que a minha mãe.
— Eu sinto muito — falei, cabisbaixa. — Não consigo nem imaginar como é sentir isso
tudo. E eu sei que nada substitui o que você precisa mas, ao mesmo tempo, a gente
obrigatoriamente tem passado um tempo juntas. Então você pode se abrir quando precisar, sei lá.
— Pra quem vinha se bicando o tempo inteiro, a gente até tem ido bem.
— Tem muito esforço envolvido nisso, viu? — brinquei. — Te aturar é complicado, mas
eu tenho feito um bom trabalho.
— Você é ridícula, Aurora. — Mia riu. — Acho que essa implicância vai permanecer por
aqui, pelo jeito.
— E ainda é pouco por um copo de bebida gelada nas costas. — Levantei o dedo
ressaltando a informação.
— Certo. É justo. — Mia sorriu pra mim e encarou o mar em seguida, permanecendo em
silêncio por um breve período de tempo. — Obrigada. Incrivelmente, você tem sido a pessoa
mais próxima de mim nos últimos tempos.
— Não precisa agradecer. — Sorri pra ela.
De novo: Mia Duarte estava solteira. Não era um motivo para estar sentindo um tremor no
estômago.
Então por que diabos eu sentia?
“Look at you needing me”

All the Good Girls Go To Hell - Billie Eilish

Uma semana se passou.


O trabalho, fluia bem. Mia e eu gravamos mais depoimentos com pessoas da faculdade e
cada gravação nos proporcionava uma emoção diferente. As histórias de pessoas como nós eram
ricas, mas ainda assim, dolorosas. Então, decidimos desacelerar um pouco, para ter tempo de
digerir cada um dos relatos que vinham até nós.
Isso nos ajudou a ter mais tempo para a investigação. Ou melhor, me ajudou. Já que eu
tinha que interagir, observar, repassar informação e, bom… Mia não fazia nada agora que
terminou com a Larissa. Só fingia que o relacionamento não tinha acabado, o que, por hora, era
suficiente.
Não falei muito sobre Pedro para Mia, apenas o básico. Que estava envolvido com Lucas,
que falou brevemente sobre ela na rodinha e que demonstrava ressentimento. Não achei que seria
de bom tom compartilhar a conversa que tivemos em particular, porque apesar de ter sido
bastante suspeita, Pedro ainda parecia uma pessoa boa.
E falando em coisas que são ou não de bom tom e pessoas boas, Lucas e Pedro estavam
cada vez mais próximos, o que me fez encarar a realidade: eu teria que contar tudo para ele.
— Você tá é bem maluca, né? — ele disse com sobrancelha arqueada, depois de eu contar
tudo do começo no pátio da faculdade com a ajuda de Rafaela. — Pedro não fez isso, tenho
certeza.
— Eu também acho que ele não fez, mas ainda assim é uma possibilidade — Rafa
ressaltou.
— Eu preciso descobrir quem tá fazendo isso — falei. — Pra ajudar.
— Você não precisa, você quer — Lucas cruzou os braços — Não sei de onde saiu essa
sua síndrome de boa samaritana com Mia Duarte a essa altura do campeonato, mas você tá
fazendo isso porque quer. E eu não quero compactuar com isso.
— Eu entendo, você não precisa concordar ou fazer parte disso.
— Só que agora vocês já me colocaram no meio da história e eu tô fazendo parte contra a
minha vontade, né? — reclamou.
— Você preferia que a gente te deixasse de fora e não dissesse nada? — Rafa argumentou.
— Você tem direito de saber, ainda mais se tratando do seu rolo, ficante, sei lá o que vocês são.
— Lucas, eu prometo que não vou fazer nada que prejudique ele — garanti. — É só ficar
de olho, trocar ideia vez ou outra. Eu juro.
Lucas olhava para o lado, emburrado. Estava chateado com a posição que foi colocado,
mas sei que estaria ainda mais se estivesse de fora e descobrisse tudo de outra forma.
— Eu não quero que isso afete minha situação com ele, Aurora — pediu. — Se ele souber
que tá no seu radar e isso der problema pra gente, eu vou ficar muito chateado com você.
— Certo, você tem razão — concordei. — Não vai acontecer, tá? Vou ser cuidadosa.
— Tá. — Deu de ombros, relutante.
— Ei… — Peguei a mão dele, que se virou olhando para mim. — Não fica chateado
comigo, por favor. Vai dar tudo certo.
— Tomara… — Suspirou. — É a primeira vez em muito tempo que as coisas vêm dando
certo, eu só tô com medo.
— E é normal sentir medo — Rafa aconselhou —, mas vai ficar tudo bem.
— E eu juro que se algo acontecer, eu assumo meu erro e corro atrás do prejuízo. Ok?
— Ok — Lucas concordou com um meio sorriso.
— E agora que elas terminaram, Aurora? — Rafaela perguntou. — O spotted tá parado faz
uns dias, né.
— Acho que é momentâneo — falei. — Espera só a Mia começar a viver um pouco pra ver
se não vai ter mais coisa por lá no mesmo minuto.
— Ah, disso não há dúvida. — Rafa riu. — E vem cá, será que não era bom pra vocês
mesmo se rolasse uma movimentação?
— Seria ótimo, mas o quê?
— Agora que vocês são amiguinhas… — Lucas começou, com tom de deboche — uma
festinha até que cairia bem.
— Uma onde a gente poderia curtir de verdade, não meter o pé com vinte minutos —
alfinetou Rafa e Lucas arregalou os olhos, fazendo que sim com a cabeça.
— Não obriguei ninguém a ir atrás de mim. — Cruzei os braços fazendo pose de brava,
mas sem conseguir conter uma risadinha que queria dar as caras. — Eu posso dar uma ideia pra
ela, mas se ela vai topar são outros quinhentos.
— Será que ela surta se eu levar o Rique?
— Será que ele iria? Acho que você tem que redirecionar essa pergunta — Rafa
argumentou.
— É, não vou meter ele nessa história não, estamos bem assim. — O garoto riu. — Se essa
festa rolar, vai ser dia de dançar e só.
— Vocês tão fechados? Já? — perguntei curiosa.
— Não, mas eu percebi que meu lado piranha tá começando a bocejar…
— Não me diga que você chegou ao estágio apaixonado em que você não quer beijar
outras pessoas?!
Abri a boca, chocada.
— Talvez — Lucas deu de ombros.
— Isso é coisa de boiola, sabia? — ressaltou Rafa.
— E você é o que? Homofóbica? — Lucas respondeu, rindo. — Mas sério, tô tranquilo de
ficar de pegação. Só quero um romancezinho, caminhar na praia, beber uma a dois na cantareira.
Nada só pelo carnal, sabe?
— Pedro Henrique mal chegou e já tá fazendo revoluções — impliquei. — A não ser que
Rafaela esteja no clima de pegação, seremos o trio da diversão nessa festa-ainda-não-existente.
— Em primeiro lugar… — Rafa suspirou — Trio da diversão parece um título de filme
adulto. — Ela riu. — Em segundo lugar: eu não tô no clima de pegação, mas o que garante que
você não está?
— E por que eu estaria, pra começo de conversa?
— Porque a Mia tá solteira. — Lucas me encarou. — Não é óbvio?
— Gente?! O que faz vocês pensarem que isso muda alguma coisa? — Franzi o cenho.
— E não muda absolutamente tudo? — Rafa rebateu.
— O fato de que ela é solteira agora e que a gente se tolera não quer dizer que a gente vai
se pegar. — Dei de ombros.
— Pois deveria — a garota respondeu. — Você já olhou direito pra ela essa semana? Ela tá
ainda mais bonita, com todo respeito.
— A solteirice faz isso com as pessoas — Lucas completou. — Principalmente vindo
depois de um relacionamento que parecia bem desgastante.
— Ela me parece bem normal — respondi, com desdém.
— Talvez é porque você já achava tudo isso dela antes. — Rafa deu um sorrisinho e olhou
o celular. — Opa! Hora da aula, vamo? — Ela pegou a mochila, se levantando.
— Eu não vou nem me dar ao trabalho de responder, Rafaela. — Revirei os olhos.

Mia Duarte estava sentada em uma mureta comendo um combo de fast food.
Importante frisar: ela nunca comia no bandejão da faculdade. Não por nojo ou desdém, ela
só… não precisava. Tem pessoas que simplesmente não sabem a importância de uma refeição
inteira por menos de um real, e ela é uma dessas pessoas. Que podia gastar muito dinheiro com
uma refeição cara, mas, além de tudo, que escolhia gastar o dinheiro com besteira ao invés de
comer de verdade.
Meu Deus, por que eu ando com ela mesmo?
— Você vai morrer antes dos trinta se continuar almoçando fast food quatro vezes na
semana — alertei.
— Não seria má ideia — respondeu, enquanto eu me sentava ao seu lado. Ela ergueu a
caixinha de fritas na minha direção. — Quer uma batatinha?
— Obrigada. — Peguei a batata e dei uma mordida. — Qual o motivo hoje pra querer
morrer lentamente com batata frita e um… — encarei o hambúrguer na mão dela enquanto
acabava de comer a batata na minha mão — Big Mac?
— Big Tasty — respondeu. — Minha mãe tá a semana toda sem trabalho. Isso implica nela
estar há uma semana em casa. Com muito tempo livre.
— Sinto muito — falei, agora sabendo no que a presença da mãe dela implicava. — Ela
vai ficar mais quanto tempo?
— Até sexta de manhã — disse Mia, frustrada, antes de dar uma mordida no sanduíche e
passar longos segundos em silêncio encarando o nada. — Sinto que vou implodir a qualquer
momento.
— Se você quiser a gente pode fazer a próxima parte do trabalho na minha casa ao invés de
na sua — sugeri de supetão, percebendo, só depois, que tinha acabado de convidar Mia Duarte
para minha casa. Para lidar com a minha mãe e a minha irmã.
— Tá, eu topo — ela aceitou sem hesitar.
— Digo, se você não se importar… — comecei a falar sem parar. — Talvez minha irmã e
minha mãe estejam em casa, e não é tão grande quanto a sua, então tem barulho. Eu divido
quarto com a Bela e tudo mais. — Sacudi a cabeça. — Mas a gente vai fazer trabalho na sala,
claro!
— Relaxa. — Mia riu. — Tá de boa — falou, antes de comer o último pedaço do
hambúrguer. — Foi amanhã que a gente marcou, né?
— Isso.
Nesse momento, resolvi juntar o útil ao agradável. Era hora de ser inteligente.
— Então — comecei —, tem um porém.
— Lá vem! — Mia revirou os olhos.
— A gente pode fazer uma troca — falei. — E essa troca é: você faz trabalho na minha
casa e na sexta à noite marca uma festinha na sua.
— Não entendi! Não era você que criticava a minha vida festeira e tudo mais? — Ela me
encarou de cenho franzido.
— Ainda critico — apontei. — Só que nós precisamos dessa festa por vários motivos.
— E que motivos são esses? — Mia cruzou os braços, interessada no que eu tinha para
falar.
— O primeiro é que o spotted tá muito paradinho, e isso não ajuda — comecei a
argumentar. — O segundo é que, de repente, aparece alguém que te odeia pra eu bater papo e
sondar. Porque, pra ser sincera, certeza que uma galera que vai nas suas festas nem gosta de você
mesmo. Só vai pelo rolê. — Mia me olhou incomodada. — Sem ofensas, só a verdade.
Continuando… — Respirei fundo. — O terceiro é porque você precisa relaxar depois de uma
semana e meia lidando com seus… Como chamam mesmo? Mommy issues? Enfim. E o
quarto… Não tem muito o quarto, sou só eu querendo curtir mesmo.
— Você argumenta bem, Aurora. — Mia tombou a cabeça pra esquerda, se dando por
vencida. — Tá. Trabalho amanhã, festa na sexta. Temos um acordo — soltou, já se levantando.
— Sempre bom negociar com você — impliquei. — Depois te passo meu endereço
certinho por mensagem.
— Por favor — pediu, saindo. — Então… até amanhã e até sexta?
— Até amanhã e até sexta.
No fim das contas, essa semana vai ter mais movimentações do que eu esperava.
“Denuncia sem me ver um riso tão desajeitado”

VSF - Jão

— Chegou já? — questionou minha mãe no dia seguinte, ao me ver chegar para o almoço depois
da aula.
— Ué, qual a surpresa? — Dei um beijo em sua bochecha.
— Ultimamente você passa o dia todo fora fazendo trabalho, na casa do Lucas, saindo com
a Rafa… — disse ela, mexendo na panela. — Bela também não sossega, tá sempre na casa de
amiga. — Suspirou. — Somos só eu e os passarinhos da janela…
— Deixa de ser boba! — Dei risada. — Não estamos te abandonando.
— Eu sei, meu amor. — Ela riu. — É brincadeirinha. Mas olha, só tem um macarrãozinho
básico, não fiz nada elaborado porque achei que seria só eu. E eu tenho um tempinho de home
office daqui a pouco. Se não quiser, pode fazer alguma coisa diferente pra comer.
— Tô de boa com o macarrão, relaxa — respondi, pegando uma garrafinha de água na
geladeira. — Eu vim pra casa hoje porque vou fazer trabalho aqui. Então estou avisando que
teremos visita — informei, antes de dar um longo gole na água.
— Finalmente vou conhecer a filha da famosa? — Arregalou os olhos. — Quem diria!
Achei que ela não viria aqui nunca, que tinha medo de pobre.
Cuspi a água toda.
— Mãe! — exclamei, meio engasgada. — Também não é pra tanto, não acha?!
— Uma piadinha saudável não faz mal a ninguém, né, Aurora? — Riu com desdém do
meu susto. — Por Deus, você tá muito tensa hoje. Dá uma risadinha aí, solta esse bom humor
que tá enjaulado. Isso tudo só porque a menina vem pra cá?
— Bom, você acabou de sugerir que ela tem medo de pobre, então acho que faz todo
sentido ficar tensa — apontei.
— Jamais diria esse tipo de coisa na frente dela, né? — Ela desligou o fogo e colocou a
panela de macarrão sobre a mesa. — E, vem cá, desde quando você fica tensa com coisa desse
tipo, hein? Tá querendo impressionar?
— Só quero que ela se sinta à vontade, nada demais. — Dei de ombros enquanto me
sentava e começava a me servir.
— É isso mesmo ou você tá afim dessa garota? — perguntou ela, desconfiada, se sentando
também.
— Não viaja, mãe — respondi, revirando os olhos. — Mia e eu estamos só convivendo
como duas adultas maduras e responsáveis que tem um trabalho final juntas pra entregar e não
estão afim de reprovação.
— Se você diz… — Deu de ombros. — Mas tudo bem, não vou te fazer passar vergonha.
— Quem vai passar vergonha? — Bela ouviu um lapso da conversa enquanto chegava em
casa.
— No dia que eu faço um banquete não tem ninguém pra almoçar, no dia que eu faço uma
comidinha mais ou menos todo mundo vem pra casa? — mamãe reclamou.
— E começa o drama da mãe com síndrome de ninho vazio — brincou Bela, antes de
depositar um beijo na bochecha da nossa mãe. — Preciso muito estudar quietinha no meu canto
hoje, tenho prova amanhã.
— Que dia terrível você escolheu pra ficar quietinha em casa, Bela — mamãe informou.
— Sua irmã vai trazer a Mia pra fazer trabalho.
— Mia Duarte aqui em casa? — Bela respondeu surpresa, se sentando. — Não sei se o que
me choca mais é ela vir até aqui ou a Aurora ter convidado.
— Ela tá meio cansada da casa dela essa semana, achei que seria legal pra ela sair —
expliquei, entre uma garfada e outra na comida. — Mas eu fiz um acordo e garanti uma festa na
casa dela amanhã a noite.
— Até que você saiu ganhando um pouquinho — apontou, se servindo. — Então essa era a
conversa sobre passar vergonha?
— É que sua irmã pensa, por algum motivo, que nós vamos dizer atrocidades perto da
menina — explicou minha mãe.
— Você sabia, Bela — comecei a contar como se fosse uma criança dedurando outra —
que a mamãe acabou de falar agorinha que achou que a Mia tinha medo de pobre?
— Eu, sinceramente, também fico chocada por ela não ter — respondeu minha irmã, na
lata, antes de colocar tranquilamente o garfo cheio na boca.
— Bela! — exclamei indignada, enquanto dona Sandra ria alto ao fundo.
— Ah, Aurora, qual foi? — Bela cruzou os braços e falou ainda de boca cheia. — Se fosse
há um mês você concordaria com nós duas. Não sei que lavagem cerebral ela fez na tua cabeça
pra você virar presidente do fã-clube, mas você sabe que pensava o mesmo.
— Não tem lavagem cerebral nenhuma, eu só passei a conviver com ela e cogitar que
talvez ela não seja tão horrenda quanto a gente pensava.
— Pra mim, você tá querendo e não tá sabendo pedir — argumentou. — Ninguém muda de
opinião tão rápido assim de graça.
— Literalmente todo mundo muda de opinião o tempo todo de graça — me defendi. — Até
ano passado você achava o Justin Bieber o homem mais bonito da terra.
— Nem vem, tem muito mais tempo que eu deixei de pensar isso. — Minha irmã cruzou
os braços.
— Tão vendo por que eu sinto falta de vocês em casa mais tempo? — Dona Sandra deu
uma risadinha. — Quando mais eu vou ver esse tipo de briguinha boba?
— Você não tá achando a mamãe melosa até demais hoje? — Bela apontou para ela com o
garfo, forçando uma falsa cara de desgosto.
— Tá carente, tadinha. — Entrei na pilha. — Fala pra gente, mãe, tá querendo arrumar
outro filho, né?!
— Deus que me livre! — Ela levantou da mesa rapidamente, como se estivesse fugindo
apressada da ideia. — Não quero criar mais criança não, criei duas e chega — disse, colocando o
prato na pia.
— Você sabe que um dia você pode ter netos, né?
— E você tá é birutinha se tá achando que eu vou criar. — Mamãe gargalhou, pegando
suco de uva na geladeira e colocando no copo. — Vou dar amor e carinho, mas na hora que
chorar vou fazer igual faço com o Francisco: devolver pro colo da mãe. E seja lá qual das duas
for a mãe, vai lidar com essa batata quente. Pra você é ótimo né, Aurora? — Ela virou o corpo
pra apontar pra mim enquanto abria a geladeira pra guardar a garrafa do suco. — Vão ser duas
mães, aí não necessariamente vai ser no seu colo que eu vou entregar.
— Você consegue ver as vantagens mais fora do óbvio possíveis sobre o fato de eu ser
sapatão, né? — Franzi o cenho.
— A maior aliada das lésbicas e a maior rival do feminismo — Bela brincou. — Será que
você, dona Sandra, já pensou em entregar a criança… não sei, um devaneio aqui tá… deixa eu
ver… no colo do pai?! — Bela cruzou os braços de olhos arregalados. — Ai, ai, ai, hein?!
— Ai, não tô com mais saudade de vocês não — disse mamãe, lavando o prato dela. —
Vocês tão muito “militudas” hoje.
— Bela, entra no Instagram da mamãe e faz ela parar de seguir páginas de fofoca que
postam print do Twitter — pedi com as duas mãos espalmadas na mesa, como um claro pedido
de socorro. — É sério. Eu tô implorando.
— É um evento canônico da idade dela, não posso interferir — Bela riu.
— Ai, sai você também do TikTok, pelo amor de Deus! — exclamei, levantando rápido.
Bela riu ainda mais. — Vou tomar um banho e depois vou pro quarto. Eu pedi pra Mia avisar
quando estacionasse, mas se ela esquecer e a campainha tocar ninguém atende, tá? Deixem que
eu atendo.
— Vou abrir a porta com uma máscara — Minha mãe respondeu. — Ela pode não ter
medo de pobre, mas eu tenho de rico.
Dessa vez, tive que deixar a risada sair.

O que era pra ser um banho relaxante, recebeu uma pitadinha de caos.
Tá, eu posso não ser a pessoa mais vaidosa do planeta, e nem ser do tipo que é super
apegada em demonstrações de feminilidade, mas tem duas coisas que eu valorizo muito: meu
cabelo e minha pele.
Olhei a hora na tela do celular. Uma hora para o horário marcado em que a Mia chegaria.
Tempo suficiente pra ficar vinte minutos com uma hidratação pesada no cabelo e,
simultaneamente, deixar uma máscara de argila verde no rosto. Bom, seria tempo suficiente.
Mas eu não contava com alguns contratempos.
— Mãe! — gritei de dentro do banheiro, já enrolada na toalha, com a cara verde e o cabelo
completamente envolvido em máscara capilar — O chuveiro não quer ligar!
— Vai lá no quintal e vê se o registro tá aberto! — ela gritou de volta do quarto dela.
— Vai lá pra mim, eu tô de toalha! — pedi.
— Aurora Maria, eu tô entrando em reunião! Não dá!
— Bela! — gritei, sem ter o esforço de repetir tudo.
— Tô lavando louça, vai lá você!
— Que saco — murmurei, saindo do banheiro contra minha vontade.
Quando passei pela cozinha, minha irmã teve uma crise de riso.
— Você tá igualzinha ao Hulk! — exclamou, não se aguentando de rir. — A máscara
beleza, mas a junção dela com esse cabelo ensebado de creme foi a cereja do bolo!
— Vai à merda, Bela —Revirei os olhos e fui direto na direção do quintal.
Estava estressada. Só queria um mini momentinho de cuidado pra estar bem quando Mia
chegasse. Não no sentido de beleza, porque não fazia diferença, claro. Só queria estar relaxada.
Só isso. Mas não foi o que aconteceu.
Tudo que pode piorar, de fato, piora. Eu abri a porta com tudo para ir até o quintal. Só que
foi bem na hora em que Mia Duarte parou no portão, prestes a tocar a campainha.
— Mia?! — exclamei quando meu olhar assustado encontrou o dela.
E no fim das contas eu passei vergonha sozinha.
“Something bout the way you look tonight, makes me wanna take a picture, make a movie with
you that we have to hide”

Billie Bossa Nova - Billie Eilish

Não. Não, não e não. Eu não tô no quintal, de toalha, com o cabelo todo grudado e a cara verde
tal qual clorofila com a maior cara de quem tá prestes a morrer na frente da Mia Duarte, né?
Verde com vermelho dá o que?
— Desculpa, eu… cheguei meio cedo — falou. — Eu mandei mensagem avisando que ia
me adiantar, mas você não viu, eu acho.
— Você acha?!
— Se você quiser tirar a fantasia do Grinch antes de abrir o portão… — Ela tentou segurar
o riso, mas falhou. — Desculpa, desculpa. Não queria gastar, mas foi inevitável. Eu quis dizer
que se você quiser se ajeitar antes de eu entrar, eu espero aqui.
— Bom, agora não vai mudar muita coisa, né? — Dei de ombros, indo abrir o portão. —
Bem vinda à minha casa. Pode entrar e sentar na cozinha, minha irmã tá lá lavando louça. Eu só
preciso ver o registro da água.
— Tudo bem, licença. — Mia foi andando, mas parou no meio do caminho. — Se sua irmã
tá lavando a louça, o que você vai ver no registro? — questionou, de cenho franzido.
Porra. Caralho. Merda. Porra. Porra!
Eu quis sumir. Quis esvaziar e sair voando fazendo um apito fino igual um balão de
aniversário. Como eu consegui ser tão burra a ponto de não ligar uma coisa com a outra e
perceber que, se a cozinha tinha água funcionando, o problema não era do registro? Burra,
Aurora! Você é fenomenalmente burra. E graças a tamanha estupidez, é também uma chacota,
porque, se não tivesse ido no quintal, Mia Duarte jamais teria visto essa cena.
Entramos em casa e, pra piorar toda a situação, Bela tinha preparado especialmente no
celular dela a canção tema dos Vingadores. Quanta originalidade.
— Oi Mia, bem vinda — Bela falou, ainda com resquícios da crise de riso na voz.
— Oi, desculpa chegar cedo assim…
— Ah, pra mim você não precisa pedir desculpa nenhuma não. — Bela deu um tapinha no
ar como quem diz “deixa disso.” — Agora, pra Aurora…
— Bela, por favor, menos — grunhi, entredentes. — O que eu faço sobre o chuveiro? O
registro não é, se você tava lavando louça até agora.
— A pressão da água tava bem fraca, pode ser ar no encanamento — sugeriu. — Vou abrir
essa torneira, abrir a do tanque e você abre a do banheiro, deixa aberta e quando começar a sair
água com pressão você tenta ligar o chuveiro.
— Tá, e a Mia…
— Fica aqui comigo — Bela completou, com um sorriso. — Né Mia?
— De boa — ela respondeu.
Talvez eu não estivesse tão de boa, mas isso é um mero detalhe.
Segui os passos de Bela e depois de alguns minutos o chuveiro ligou. Tomei banho do jeito
mais rápido possível — não era o que eu queria — só para garantir que Bela não iria me
envergonhar mais do que eu já estava suficientemente envergonhada por hoje.
Vesti um short preto de malha bem leve e um top de alcinha vermelho, só para ir para o
meu quarto e vestir uma camiseta larga, e, aí sim, eu estaria devidamente apresentável.
Entrei no quarto apressada, já abrindo a gaveta, com a toalha branca pesando sobre o
ombro. A vantagem de ter um cabelo fino é que ele nunca demora pra secar.
Peguei minha camisa com estampa da capa do álbum da banda “Eclipse” e, quando me
virei para jogar a toalha na cadeira e vestir a roupa, tomei um susto.
— Você tá aqui?! — exclamei.
— Bom, você tá me vendo então… — Mia enfiou as mãos nos bolsos.
— Você entendeu. — Sacudi as mãos, nervosa.
Era a primeira vez que eu estava reparando nela de verdade hoje. Estava com uma calça
jeans preta, levemente desbotada. Na parte de cima, uma camiseta marrom, larga e lisa. Me
incomodava um pouco a forma como qualquer coisa parecia lhe cair tão bem.
— A sua irmã me mandou pra cá — disse ela, notando minha distração. — Falou que,
como a gente vai usar computador e ela não, faz mais sentido ela estudar na sala, não nós.
Eu duvido que isso foi sobre o computador. Duvido profundamente. Bela, você ainda me
paga.
— Tá, então a gente fica por aqui. — Permaneci estática, até notar. — Bom, eu acho
melhor eu vestir logo isso aqui — lembrei, me referindo a camiseta que ainda estava na minha
mão.
Vesti a blusa e levei a toalha de volta para o banheiro, o tempo inteiro pensando no fato de
que Mia estava dentro do meu quarto.
— Voltei — anunciei, entrando no quarto, como se precisasse dizer alguma coisa. Tipo, ela
tava literalmente me vendo. Eu sou péssima nisso. — Tá, quais são seus planos?
— Bom, nós temos quinze vídeos até então. A maioria tem em torno de cinco minutos sem
os cortes — começou a explicar. — Com uns ajustes, dá pra colocar uma média de três minutos
por vídeo, sendo assim, acho válido a gente arrumar mais uns cinco depoimentos, e aí a gente
fecha em uma hora, com uma quantidade boa de pessoas e um tempo aceitável pra cada vídeo.
— Mia suspirou.
— Tá. Lindo. — Sentei de frente para o monitor. — Qual o problema?
— São dois problemas, na verdade — começou. — O primeiro é que a gente tem que ter,
mais ou menos, uma hora e dez a uma hora e vinte. O segundo é que tanta gente em sequência
falando vai ficar muito cansativo caso a gente só coloque um relato atrás do outro.
— Bom, a gente pode fazer uns cortes com aqueles dados de pesquisa que a gente tem —
sugeri, ligando o computador.
— Os dados têm que ser no começo, tipo uma introdução do documentário — explicou. —
Se liga, você já assistiu o documentário “Paris is burning”?
— Só ouvi falar — respondi, digitando a senha no teclado. — É sobre o surgimento dos
ballrooms, né? Voguing e tal.
— Sim, sobre como surgiu por meio de pessoas pretas e latinas da comunidade que não
eram bem quistas nas baladas LGBT da época — Mia começou a contar mais. — Isso é só a
nível de informação, porque o que eu quero sobre “Paris is burning” no nosso documentário é a
construção… A estética, a disposição dos vídeos, os takes.
— Sabe que eu vou precisar assistir pra conseguir opinar, né?
— Bom, eu pensei da gente tirar o dia de hoje pra assistir e fazer umas anotações pra usar
— sugeriu. — O que acha?
Certo, quando você cursa uma faculdade de Cinema, assistir alguma coisa faz parte de
pesquisas, trabalhos, provas e tudo mais. Só que, ainda assim, eu não pensava que de uma tarde
de trabalho com Mia Duarte eu evoluiria para um filminho com Mia Duarte. No meu quarto.
— Pode ser, então — respondi. — Então eu vou… — olhei para todos os lados pensando
no que fazer — vou pegar outra cadeira e a gente senta aqui pra assistir, né? — falei atrapalhada,
levantando e indo em direção à porta. — Já volto.
Quando fui pegar uma cadeira, Bela estava esparramada no sofá, com vários textos
impressos jogados sobre a mesa de centro e um na mão dela, sendo folheado.
— Tá confortável, né? — perguntei com sarcasmo, encarando a postura dela.
— Eu tô. — Bela abriu um sorrisão. — E você?
— Eu sei o que você tá tentando fazer — cochichei. — Você é ridícula, tá?
— Eu? — A garota apontou para ela mesma com o cenho franzido. — Eu tô tentando fazer
alguma coisa? Não sei do que você tá falando. — Fez cara de sonsa, encarando os papéis
grampeados que segurava.
— Eu sei que você jogou a gente lá sozinha pra tentar fazer rolar um climinha, mas nem
vem! Não vai acontecer — falei de prontidão, enquanto pegava a cadeira.
— Ué, só porque vocês estão sozinhas num quarto significa que, obrigatoriamente, tem
chance de rolar um clima? — Bela olhou para mim com expressão debochada e, em seguida,
voltou a olhar para seu texto. — Parece que não sou eu que tô tentando nada, e sim você que
sente que pode acontecer.
Abri a boca para responder, mas nada saiu. E quanto mais eu procurava uma resposta, mais
o sorriso da minha irmã se abria.
— Não precisa argumentar — disse ela. — Vai lá, vai. Mas vê se não é sonho de novo.
Ergui o dedo do meio para ela e fui corredor adentro.
Ficar sentada do lado de Mia por mais de uma hora assistindo um documentário e fazendo
anotações não foi tão assustador quanto pareceu de início — o que me fez pensar que, talvez, eu
estivesse mesmo nervosa. E quando acabou, esse nervosismo não tinha passado completamente.
— E aí? — Mia questionou. — O que achou?
— Achei maravilhoso — respondi. — E tive ideias.
— Será que suas ideias são as mesmas que as minhas?
— Bom — comecei —, acho que a gente precisa chamar essas pessoas que já gravaram e
pedir vídeos delas do dia a dia.
— Tipo fazendo coisas que elas gostem, né? — Mia abriu um sorrisinho. — Eu pensei o
mesmo.
— Até que a gente se alinha em algumas coisas. — Dei uma risadinha. — E aí a gente
intercala? Como faz?
— Pensei em fazer cortes entre os relatos mesmo, igual no documentário… Manter o áudio
do vídeo original, mas incluir esses vídeos curtos. Eu fiz mais ou menos um exemplo, pra
explicar melhor. Posso entrar no drive?
— Pode — assenti.
Mia entrou na conta dela rapidamente, mexeu em algumas pastas e logo chegou em uma
coletânea de vídeos curtos e um vídeo um pouco mais longo, no qual ela clicou.
Era seu relato, editado e misturado com outros vídeos dela, feitos por si mesma ou pelos
outros. Tinha Mia correndo pela beira do mar, Mia mexendo em iluminação no estúdio da mãe,
Mia com uma câmera fotografando o pôr do sol e mais várias coisas. Mas o que mais me chamou
atenção foi um vídeo dela sentada na grama, sorrindo.
Era a primeira vez em que eu reparava como o sorriso de Mia Duarte era radiante.
— Eu filmei sozinha a maioria, só alguns foram feitos por outras pessoas — comentou,
quando o vídeo já acabava.
— Linda — respondi, ainda pensando no último take, e me virei pra ela, percebendo logo
depois a ambiguidade. — A ideia! É incrível. Eu topo, a gente consegue.
— Ótimo. — Mia sorriu, satisfeita. — Acho que a gente pode editar isoladamente cada
pessoa, né? Depois só juntar.
— Perfeito — concordei. — Metade pra cada, que tal? E eu posso adiantar o da Rafa e o
do Lucas porque tenho vídeo dos dois aqui, não preciso nem pedir.
— Beleza — Mia falou, enquanto desconectava a conta do drive no computador. — E
vídeos seus também, né?
— Na verdade… não — respondi, seguido de uma longa respirada.
— Ué? — Ela franziu o cenho. — Como não?
— Eu só não sou muito a pessoa que faz questão das câmeras em mim, entende? —
expliquei. — Lucas e Rafaela até me filmam, mas eu não peço pra ver.
— E por quê? — questionou.
— Sei lá, na infância minha família não tinha filmadora e essas coisas, então o hábito já
não veio. Daí na adolescência eu tive leves problemas de autoestima e, bom, hoje eu já tô de boa
comigo mesma… Mas essa coisa de me ver em vídeo é algo que tô tentando me habituar.
— Foi por isso que escolheu os bastidores, né?
— Tipo isso… — Dei um sorrisinho. — Você… — comecei a falar — tem um olhar bom.
Pra fotografia, sabe?
— Obrigada. — A garota sorriu, envergonhada. — Acho que a câmera foi minha única
companhia por muito tempo. — Ela guardou o caderno na mochila e voltou a atenção para mim.
— É sua parte favorita do cinema?
— Eu? Não. — Ri. — Não sirvo pra me filmar e muito menos pra filmar os outros. Gosto
muito mais da parte de direção.
— Você tem um jeito meio mandão mesmo, faz sentido — implicou.
— Vai começar a ser irritante de novo? — Arqueei uma sobrancelha e encarei Mia.
— Começar? — Mia riu pelo nariz. — Nunca parei, gatinha.
Gatinha… Gatinha. Gatinha.
— Você é péssima, tá? — Revirei os olhos.
— Ai! — Mia exclamou, colocando a mão sobre o peito e franzindo os olhos de forma
dramática. — Péssima. Agora você me machucou pra valer.
— Tá, sua exagerada! — Ri. — Vou adaptar. Você é… — quis dizer “Legal, Mia. Você é
gente boa. É bacana e, assustadoramente, eu não desgosto de você mais”, mas me contive — não
tão ruim assim. Melhorou pra você?
— Ufa! — exclamou ela, respirando fundo. — Muito obrigada, Aurora. Essa alteração
acabou de me salvar de um infarto fulminante.
— Cara, você é tão dramática que chega a ser assustador! — exclamei, desacreditada com
toda aquela ceninha.
— Você não acredita em mim? Olha só!
Nesse momento, Mia Duarte pegou a mão e encostou do lado esquerdo do peito dela. No
primeiro momento, seu coração não estava tão acelerado assim, mas tive a impressão de sentir
ele bater mais forte com alguns segundos ali, paradas daquele jeito, nos olhando. Ou talvez fosse
só o meu que estava acelerado.
Minha mãe parando na porta foi o que me tirou dali.
— Bela, por que você não… — Ela parou, olhou que éramos nós ali e franziu o cenho. —
Ué, vocês tão aqui?
— Bela quis ficar na sala — respondi, meio atordoada.
— Oi, dona Sandra — disse Mia, acenando. — Prazer!
— Oi Mia, prazer! — Mamãe sorriu educada para ela. — Desculpa não ter te recebido, eu
tava em reunião. — Ela voltou o olhar pra mim. — Vem cá, vou falar com a sua irmã pra pedir
uma pizza, o que você acha? — E olhou para Mia de novo. — Mia, você gosta de pizza?
— Imagina, não precisa pedir — Mia respondeu, envergonhada.
— Deixa disso, boba — Mamãe insistiu. — Fala, qual sabor você gosta?
— Qualquer um.
Ela deu um sorrisinho tímido.
— Você quer algum específico, filha?
— Frango com catupiry, se vocês toparem — sugeri.
— Tá bom, vou lá falar com a Bela. A gente pede e quando chegar vocês vem comer.
Assim veio e assim saiu. Tranquila.
— Depois você me fala o valor da pizza e a gente divide, Aurora — Mia pediu.
— Se minha mãe ouvir você falando isso ela vem até aqui e te dá um pescotapa —
brinquei. — Relaxa, é a versão dona Sandra com visita, só aproveita.
— Então tá… — Mia deu um sorrisinho, agora mais tranquila.
Alguns segundos de silêncio.
— É… — ela começou a falar — a gente tem que falar sobre o spotted.
— Claro! — exclamei. — O spotted! Eu vi que tinha uma postagem nova lá hoje, mas não
abri a notificação.
— Vou te mostrar — Mia disse, pegando o celular.

“Vejam só se a rainha do camarote não correu pra manter a coroa intacta! Amanhã vai
ter festinha na casa dela e ela deixou claro que é pra galera toda da faculdade, não só pra
panelinha do cinema. Sei que já estão se perguntando se eu estarei lá e tudo que eu tenho a dizer
é: vocês acham mesmo que eu perderia esse evento? Essa resenha tem tudo pra ser a melhor de
todas…Ou a pior. Depende de quem é você. Vejo vocês amanhã, beijocas!
Anônimo.”

— Bom, isso é uma pista enorme — constatei. — Temos cinco suspeitos e precisamos só
de um lá amanhã.
— E se algum não for, a gente consegue cortar alguma coisa da lista — Mia completou,
guardando o celular de volta.
— Mia — comecei —, você sabe que esse tanto de gente lá atenta em fofoca pode dar
muito errado em diversos sentidos, né?
— É — Mia respirou fundo —, mas também pode dar muito certo. E eu tô tentando
apostar no lado positivo, por isso joguei alto.
— Você sabe que foi arriscado, não sabe?
— Já tô mal falada e solteira, teoricamente eu não tenho mais nada a perder. — Deu de
ombros. — Eu vou viver normalmente e fazer uma média com a Larissa, que vai estar lá, pra
ninguém estranhar. E você curte a festa e, se achar algo suspeito, tenta investigar. Fechado?
— Fechado.
— Aurora! — gritou Bela da cozinha. — A pizza tá vindo!
— Bom, vamos lá comer? — chamei.
— Vamos.

Muitas fatias de pizza depois, Mia já estava à vontade e minha mãe cheia de sorrisos, é claro.
Nem ela, nem Bela me envergonharam — graças a Deus — e foi um momento bacana, mesmo
que por dentro minha cabeça estivesse um turbilhão sobre o dia de hoje e a festa de amanhã.
Quando acabamos de comer, levei Mia até o portão.
— Você precisa de ajuda com algo amanhã? Arrumando e tal? — ofereci.
— Tá tranquilo, relaxa — Mia respondeu, com uma das mãos segurando a alça da mochila
e a outra no bolso da calça. — Depois que minha mãe for embora eu já consigo me virar por lá.
Aliás, obrigada.
— Pelo que?
— Por me tirar um pouco de casa — explicou. — Acho que eu precisava. — A garota deu
um breve sorriso. — Sua mãe e sua irmã são ótimas e desculpa por chegar muito cedo e
interromper seu spa. — Deu uma risadinha.
— Não precisamos lembrar disso, né? — Sorri amarelo, envergonhada.
— Claro, claro — ela respondeu ainda rindo, já passando pelo portão. — É só que caso um
dia queira fazer um teste pra bruxa má do oeste em Wicked…
— Tchau, Mia! — exclamei, empurrando de leve a garota para fora enquanto a gargalhada
dela se intensificava.
— Tchau, Aurora — disse ela do outro lado do portão, já fechado, acenando com um
sorriso caloroso antes de virar as costas e ir.
Esse dia foi definitivamente inacreditável.
Voltei para dentro de casa e, antes que eu fechasse a porta atrás de mim, Bela e minha mãe
já me encaravam atentas. Mamãe fazia menção de dizer alguma coisa.
— Não — cortei de prontidão. — Não fala nada.
— Como você não gostava dessa menina, Aurora? — E mesmo assim ela disse. — Ela é
um doce!
— Boa noite pra vocês. — Acenei com um sorriso forçado com intenção de fugir dessa
conversa, deixando as duas para trás, rindo uma com a outra.
No fim das contas, tanta coisa aconteceu que meu corpo e minha mente pediam descanso,
mas sabendo de tudo que poderia rolar na festa, nem tão cedo eu iria dormir.
“Melhor que pensar é fazer”

Aguei - Anavitória ft. Jovem Dionisio

— Por que eu deixava a Rafaela me arrumar até hoje ao invés de você, Lucas?
Foi a primeira coisa que eu pensei ao me olhar no espelho, vestindo uma regata branca
bem larga no corpo, que vinha por dentro de uma calça de alfaiataria cinza. O cabelo finalizado
com um pouco de creme formava ondas sutis. O converse todo preto contrastava com o resto da
roupa.
— Me sinto ofendidíssima! — Rafaela fez uma falsa expressão de choque. — Tá, tudo
bem, o estilo de festa do Lucas combina mais contigo.
— E tudo certo, né, amiga? — Lucas acrescentou. — Você não tem culpa de ser uma
belíssima afropaty. Aurora jamais usaria esse seu look de hoje, por exemplo.
Rafa estava usando um dos seus queridinhos croppeds rosa; essa era a versão sem mangas
e sem estampa, no tom de rosa que ninguém sabe o nome, mas todo mundo associa
imediatamente à Barbie. Estava também com uma calça jeans estilo cargo de cintura baixa, que
quase cobria seu air force, também com detalhes de rosa. O cabelo liso estava preso em um rabo
de cavalo alto, ressaltando as argolas brilhantes penduradas nas orelhas que combinavam com
um colar de pingente em forma de estrela que Rafaela, raramente, tirava do pescoço.
— Falta mais do que melanina pra Aurora sustentar uma roupinha dessa. — Rafa riu.
— Falta nascer de novo! Acho que só em outra vida que eu usaria roupa tão grudada e
calça de cintura baixa. Essa personalidade da Aurora não existe ainda — apontei, convicta.
— E é por isso que você deixa um gay de vinte e quatro anos que compra roupa em brechó
te vestir, minha querida amiga — Lucas respondeu, ajeitando a gola da minha camisa.
Lucas vestia uma regata branca também, mas a dele era justa e vinha por baixo de uma
camisa de botão verde militar semi aberta, bem larguinha, com as pontas presas para dentro de
um jeans mom com a barra dobrada. O converse em seu pé era preto como o meu, com a
diferença de que eu calçava trinta e seis e, ele, quarenta.
— Todos lindos, cheirosos e prontos — Rafa falou, retocando o gloss. — Agora vamos?
— Bora, a gente já tá atrasado! — concordei.

O sentimento de estar chegando na casa de Mia Duarte para uma festa dessa vez era bem
diferente da última. Claro, isso não significa que era muito bom. Só que não era muito ruim.
Estava com um certo frio na barriga. Um tipo de ansiedade boa misturada com nervosismo
e, ao mesmo tempo, uma pulguinha atrás da orelha que insistia em sussurrar para mim que
alguma coisa mudaria completamente essa noite. Às vezes eu penso que, se soubesse como o dia
acabaria, minha vida seria trezentos por cento mais fácil.
Entramos pela porta da frente e, como sempre, só passou pela minha cabeça como é
perigoso Mia fazer as festas dessa maneira. Acho que, mesmo que ela nunca esqueça do quanto é
rica, ela esquece que é famosa. E se eu fosse famosa, não pagaria pra ver o risco de ser
sequestrada.
— Caralho… — Rafaela soltou assim que olhou ao redor.
Eu posso não ser muito boa de Física desde o ensino médio, mas eu tenho certeza que
aprendi alguma coisa sobre dois corpos não ocuparem o mesmo espaço ou algo assim. Mas,
olhando a quantidade de gente dentro da mansão, a física parecia ser desafiada de forma incisiva.
Eu nunca vi tanta gente no mesmo lugar antes e olha que no dia que foram pra rua pedir o
impeachment da Dilma, eu tava saindo do cinema e dei de cara com a multidão na avenida.
Tá, não é pra tanto. É óbvio que naquele dia tinha muito mais gente no mesmo lugar. Mas
o risco de mais da metade das pessoas aqui ser mal caráter é bem semelhante.
— Quanta gente esquisita — Lucas criticou, aumentando o tom de voz, por conta da
música. — Você conhece essa gente, Aurora?
Olhei ao redor, tentando identificar rostos conhecidos no meio de tantos universitários.
— Tirando a galera de cinema que sempre tá aqui, não conheço ninguém.
— Aurora! — Mia exclamou, surgindo do nada.
Como eu já disse antes, qualquer coisa caía bem em Mia Duarte. Mas, convenhamos…
quando você usa um conjunto de calça e colete de alfaiataria, preto com listras finas e suaves na
cor cinza,, combinado com uma camisa preta por baixo e só uma corrente prata no pescoço, não
fica muito difícil.
— Oi, como tá a situação? — perguntei logo depois de reparar a garota dos pés à cabeça.
— Você não vai acreditar, tem duas suspeitas aqui — ela contou. — Yasmin e Natália. —
Mia olhou para Lucas e Rafa — Oi gente!
— Oi, Mia! — responderam os dois em coro.
— Yasmin é a da ficante que você pegou e Natália a do abajur que você quebrou, né? —
perguntei, relembrando.
— Isso — ela assentiu. — Dicas que podem te ajudar: a Yasmin me odeia muito, não
aguenta nem ouvir meu nome. Já a Natália só me acha sem noção, imatura e irresponsável.
— Tipo eu? — Dei um sorrisinho.
— Tipo você achava antes, né? — Mia arqueou a sobrancelha.
— Se te conforta colocar o verbo no passado… — Dei de ombros. — O que mais?
— Yasmin atualmente tá solteira, Natália namora um carinha de Engenharia… Não sei
qual a relevância dessas informações, mas, estão aí. Ah, e a Yasmin gosta de beber Bud. Não me
pergunte como eu sei disso.
— Tem Bud aí?
— No cooler.
— Certo. Depois eu me viro então — assegurei.
— Você arrasa, Aurorinha. — Nessa fala, eu consegui perceber que Mia já não estava
super sóbria. — Vai que é tua! Depois a gente se fala.
E, assim, ela sumiu no meio das pessoas em um piscar de olhos.
— “Você arrasa, Aurorinha” — Rafa repetiu, rindo com Lucas. — Nem parece a mesma
Mia, fala sério.
— Certeza que ela já tomou todas, gente. — Dei de ombros, com desdém.
— Meia noite eu te conto o que ela quer tomar… — Lucas debochou.
— Vocês podem ficar aí me zoando à vontade, tá? — falei. — Tenho coisinhas a fazer.
— A gente pode te ajudar! — Rafa ofereceu. — De repente, Lucas e eu falamos com uma
e você com a outra.
— Por que você me meteu nessa? — Lucas encarou Rafaela sem entender.
— Você prefere ficar sozinho bebendo?
— Tá. — Bufou. — Só vou avisando desde já que se tocar “Noite das Safadas” eu vou
parar pra dançar independente de qual pista a gente estiver recebendo.
— Fechado. — Rafa estendeu a mão para ele, que apertou de volta. — Aurora, a gente vai
na Natália então, que tal?
— Ótimo — concordei. — Já tenho planos pra Yasmin mesmo.
Naquele momento, os dois foram para um lado e eu para o outro. E eu já sabia exatamente
como ia conduzir a situação. Mas ia precisar, primeiro, de uma cerveja.
Eu não me considero a pessoa mais autoconfiante da Terra, mas… tenho meus dias. E, por
sorte, a forma como Lucas me vestiu hoje ajudou bastante para que se tornasse um desses dias.
Então usar minha aparência como estratégia não era tão fora de cogitação.
Avistei a garota, com cabelos pretos na altura dos ombros e um piercing na sobrancelha,
bem ao lado da bancada do bar que tinha na sala da mansão. Imediatamente, me sentei na
banqueta ao lado dela.
— Oi — cumprimentei com um sorriso de lado quando a garota virou pra mim. —
Yasmin, certo? Artes?
— Oi… — Ela sorriu de volta. — Sou eu. Você é… — A garota me fitou de cima a baixo.
— Aurora, prazer. — Ergui a garrafa de cerveja na minha mão direita. — Aceita?
— O prazer é meu, Aurora. E claro que aceito. — Ela pegou a garrafa e abriu ao mesmo
tempo em que eu abria a minha. — Sozinha por aqui?
— Mais ou menos, meus amigos me abandonaram uns minutinhos — menti parcialmente,
dando um gole na cerveja em seguida. — E você?
— Que amigos são esses os de hoje em dia, não? — respondeu ela, depois de beber um
gole também. — Eu vim sozinha. Vim ver qual é a da Mia Duarte com essas festas que ela dá.
— Ah, não é tão ruim. Se eles não tivessem me deixado sozinha você teria o trabalho de
buscar uma cerveja, não é? — falei sugestiva, olhando para ela. — Eu também não entendo,
sabe? Você não acha que é meio irresponsável deixar um monte de estranho entrar na sua casa?
— Sem dúvidas você salvou com a cerveja, então, que bom que te abandonaram um
pouquinho — respondeu ela, no mesmo tom. — Ah, mas acho que o fator Mia Duarte
irresponsável não é novidade. Pelo menos, não pra mim.
— Nossa, sério? — perguntei, me fazendo de interessada. Foi difícil conter o sorriso que
queria aparecer pela satisfação de estar rapidamente chegando onde eu queria. — Ela já aprontou
contigo? Sei lá, muita gente fala mal dela e eu fico tentando entender o que ela fez com essas
pessoas, sabe? — Joguei um verde, bebendo logo depois.
— Não posso falar pelos outros, né, mas comigo ela já aprontou. E feio.
— Foi sério? — perguntei, fingindo preocupação. — O que aconteceu?
— Ah, Aurora… — Yasmin deu uma risadinha nervosa. — É papo de ex — soltou, dando
um longo gole na bebida. — E eu não acho que esse seja o tipo de conversa pra se ter com uma
garota tão bonita quanto você numa festa.
— Passado é passado, não é? — insisti. — Prometo que a garota bonita em questão não vai
deixar de bater papo com você por causa disso.
— Não me lembro de te ver pela faculdade. — Yasmin franziu o cenho, me fitando.
— Muita gente todos os dias, né? — respondi, passando o indicador na boca da garrafa. —
Você pode não se lembrar. Ou de repente nossos horários não batem.
— Ah não, eu aposto mais na segunda opção — respondeu, sacudindo a cabeça. — Eu
acho que seria difícil não me lembrar… — Sorriu. — Digo, eu tenho uma memória fotográfica
ótima.
— Ah é? — Dei um sorriso desconfiado. — Então que pena que nossos horários não
batem. Bem que dizem que não é todo dia que se vê mulheres tão bonitas, né? — carreguei
minha voz com um tom malicioso.
— Você tá tentando me enrolar pra eu te contar a história, isso sim — Yasmin respondeu,
desacreditada.
— E você tá tentando fugir da conversa — rebati. — Ah, qual é? Você tá aqui, na casa de
alguém que você odeia, sozinha. São coisas que só se vive uma vez, sabe? E eu pretendo beber
um pouco mais que uma cerveja, então… Não vou nem lembrar disso amanhã.
— Eu duvido muito. — Ela deu uma olhada para o lado, rindo.
— Palavra de escoteira! — Ergui a mão em juramento.
— E será que se eu falar sobre isso essa escoteira me dá alguma coisa em troca?
Não estava nos meus planos de fato beijar a Yasmin. Por isso, precisava enrolar ela o
suficiente para que ela contasse a história e eu conseguisse arrancar alguma coisa a mais disso,
mas que conseguisse sair de fininho sem necessariamente precisar fazer o que ela quer.
— No final da festa, quem sabe — sugeri. — A noite tá só começando, não é?
— Justo. — Yasmin sorriu de canto. — Bom, eu ficava com uma garota. Bruna. A Mia foi
lá e pegou a Bruna enquanto a gente tava ficando — contou. Dava pra sentir o rancor na voz
dela. — Simples assim.
— Mentira! — fingi espanto. — E vocês tavam fechadas? Tipo, sério mesmo?
— Ah, sabe como é, né? — Ela sacudiu a cabeça de um lado para o outro. — Todo mundo
sabia desse rolo, entende? E sabiam também que eu gostava da Bruna de verdade. Tem coisas
que são meio… subentendidas.
— Sem dúvida — concordei —, mas dá pra imaginar ela fazendo esse tipo de coisa. Ainda
mais com esse tanto de fofoca que as pessoas têm feito, né?
— O spotted? — perguntou. — Acho que tudo tem limite também, também. Igual a mim,
conto pra uma pessoa ou outra que ela vacilou comigo. Tem que ser muito arrombado pra expor
coisas sobre ela todo dia pra faculdade inteira ver.
— Real, né? — Dei um gole na bebida. — É falta do que fazer demais.
Podia ser só ela tentando despistar, mas também podia ser sua opinião real. E com tudo o
que eu tinha até então, dava para mantê-la na lista. Meu objetivo hoje não era encontrar o
culpado, mas sim reduzir a quantidade de possíveis culpados.
— Você acha que ela tá traindo a Larissa?
— Não sei dizer! — me fiz de perdida. — Ela vive fazendo várias coisas com um monte de
gente e a Larissa nunca tá junto, aparentemente. — provoquei. — Tudo bem que é legal ter
individualidade, mas nunca estarem juntas? É no mínimo esquisito.
— É o que eu penso também. — Yasmin fez que sim com a cabeça.
Senti meu telefone vibrar no bolso, era Rafaela ligando. O timing dessa garota me
assustava.
— Oi, amiga — falei ao atender.
— Amiga, encontra a gente aqui na área externa — pediu — A gente conseguiu algo já.
— Tá legal, tô indo — respondi, desligando a chamada. — Yasmin, foi um prazer
conversar com você, mas eu tenho que encontrar meus amigos de novo.
— Tão rápido? — Ela demonstrou uma sutil insatisfação.
— Eles não vivem sem mim, fazer o quê? — debochei, rindo em seguida. — Me procura
mais tarde, tá? — pedi, levantando.
— Com certeza eu vou. — Ela deu um sorriso malicioso — Até mais.
Saí acenando até virar de costas para ela de vez e quase dar um grito de comemoração por
ter conseguido. Agora, era hora de ver o que Lucas e Rafaela arranjaram.
Encontrei os dois encostados na parede onde a maioria das pessoas estava para fumar.
— O que você conseguiu? — perguntou Lucas.
— Yasmin tem rancor do que aconteceu, dá pra sentir no jeito que ela fala o nome da Mia,
mas ouvindo o lado dela parece que ela levou pouco como chifre e mais como talaricagem. —
Pausei, olhando ao redor. — Falamos do spotted e ela demonstrou que não gosta desse tipo de
exposição. Eu senti uma certa verdade nisso, ela me parece ser bem reservada… mas, ao mesmo
tempo, não dá pra bater o martelo. Quando cheguei pra falar com ela, ela não sabia meu nome.
Então, das duas, uma: ou ela não acompanha mesmo as coisas do spotted, porque eu já fui
mencionada, ou ela se fez pra saber onde eu queria chegar.
— Como você conseguiu tanta informação? — Rafaela perguntou, surpresa.
— Flertando com ela — Dei de ombros. — E vocês?
— Bom — Lucas começou —, eu e Rafaela tivemos absoluta certeza de que a Natália não
tem nada a ver com isso.
— A gente foi puxando papo com ela e claramente ela não tá nem aí pra essa história de
abajur mais, porque quando o assunto chegou nesse ponto ela contou como se fosse a coisa mais
engraçada que já tinha acontecido na casa dela — Rafa completou.
— Bom, então Natália tá cortada dessa história e Yasmin é uma incógnita — conclui.
— Sim — Lucas concordou. — Agora que as três espiãs demais cumpriram a missão, será
que tá liberado encher a cara e dançar?
— Liberado. — Abri um sorriso, assentindo.
Foram três caipirinhas para mim, não sei quantas para os dois, duas mulheres que Rafaela beijou,
muitas levantadas de perna do Lucas no chão dançando “Noite das Safadas”, uma trilha sonora
inteira do MC Kevin o Chris e muita risada por coisas sem sentido.
Também foram diversos olhares em Mia, que disfarçava em uma ceninha dançando com
Larissa como se elas ainda fossem um casal. O que, se parar pra pensar, é no mínimo estranho já
que Mia não estava feliz com ela há muito tempo. Bom, talvez ela tenha se acostumado a fingir
que as coisas entre elas iam bem.
Estava vivendo meu melhor momento dançando “Movimento da Sanfoninha” quando senti
um toque sutil no meu braço. Me virei e dei de cara com Yasmin.
— Eu tenho que ir embora — ela falou, perto do meu ouvido —, mas eu te procurei,
porque não queria ir sem um beijo seu.
Lucas e Rafa me encararam. Não estava nos meus planos de fato beijar Yasmin essa noite.
Mas ela era bem bonita.
— Eu não deixaria você ir embora sem — respondi, aproximando minha boca da dela.
O gosto do beijo era de cerveja e o perfume dela era cítrico. Foi tudo que consegui sentir
além de toda a vontade de ambas as partes em fazer aquele beijo acontecer. Foi um beijo
apressado, mas não corrido. Nossas bocas se desencostaram suavemente.
— Espero que meu Uber não tenha chegado. — Yasmin riu. — Tô indo, mas foi um
enorme prazer, Aurora.
— Digo o mesmo, Yasmin. — Dei um último sorrisinho, antes de ela ir.
Quando voltei a dar atenção ao ambiente, Rafa e Lucas se olhavam com cara de climão.
— Ih, quem morreu, hein? — Franzi o cenho.
— Mia veio aqui falar contigo no exato momento em que você resolveu se atracar com a
Yasmin — Lucas informou.
— E aí, enquanto vocês se beijavam ela me chamou e disse “quando ela acabar de agarrar
a suspeita, pede pra ela ir lá em cima” — Rafa completou.
— Era só o que me faltava. — Bufei.
Subi as escadas rapidamente e encontrei Mia parada em uma das portas, me esperando de
braços cruzados.
— Tava boa sua investigação? — ela perguntou com sarcasmo.
— O que foi, hein? — Cruzei os braços de volta.
— Entra aqui pra gente conversar — Mia abriu a porta.
— Tá.
Entramos no cômodo e ela fechou a porta atrás de si, acendendo a luz logo depois. Com
chão claro, paredes cinza, pôsteres de filmes cult e uma cama enorme de edredom preto, o quarto
de Mia era bem diferente do meu sonho.
— Vamos lá… — Mia começou a falar e dava para ver que o álcool já se manifestava em
seu corpo. — Quando você chegou à conclusão de que beijar uma suspeita seria boa ideia?
— Eu vou mudar a sua pergunta, Mia — rebati. — Quando foi que eu virei policial pra ter
algum tipo de ética profissional a seguir? E quando foi que você virou minha chefe?
— Não é essa a questão. — Mia fez que não com a cabeça. — Eu te peço ajuda com uma
situação que tá me consumindo, você aceita ajudar, e aí você pega uma das pessoas que
possivelmente tá fodendo a minha vida!
— Vou corrigir pra você de novo, tá bom? — respondi. — Eu te ofereci ajuda com essa
situação inteira, mesmo depois de você ter me culpado por semanas, e você aceitou e se
submeteu às minhas condições pra ajudar. Além do mais, eu consegui informações. Não era isso
que você queria?
— E precisava beijar ela pra conseguir informações? Não tinha outro jeito?!
— Tecnicamente, eu consegui só flertando com ela — corrigi.
— Ah, então o beijo foi um bônus, né? — Mia revirou os olhos. — Foi seu pagamento pra
ela por abrir a bocona e falar da vida dela pra você.
— Não, Mia. — Dessa vez quem revirou os olhos fui eu. — Foi uma coisa que ela quis e
eu quis, independente de investigação. Não é assim que funciona um beijo?
— Ela continua sendo uma pessoa que potencialmente me fez muito mal. — Mia deu de
ombros.
— Potencialmente — ressaltei.
— Todo mundo é culpado até que se prove o contrário.
— Todo mundo é inocente até que se prove o contrário, Mia — respondi. — Fala sério,
nem parece que tava lá embaixo há cinco minutos fingindo que ainda namora uma estudante de
Direito.
— Não vem ao caso — Mia rebateu.
— O que vem ao caso então? — Cruzei os braços. — Qual o grande problema de eu ter
beijado a Yasmin, hein?
Mia ficou em silêncio por alguns segundos, abrindo e fechando a boca, relutante sobre a
resposta.
— Não podia ter escolhido uma pessoa melhor pra isso? — ela perguntou, a voz
carregando um tom diferente.
— Quem seria essa pessoa melhor? — Ergui as sobrancelhas, encarando ela.
Imediatamente, Mia começou a rir de nervosismo, enquanto caminhava mais para perto.
— Ai, Aurora — soltou, ainda rindo. — Você é um crânio em tantas coisas e tão devagar
em outras…
— Não tô entendendo onde você quer chegar — respondi, olhando nos olhos dela, que me
encaravam cada vez mais de perto.
— Não tá entendendo ou não tá querendo entender? — Ela mexeu nos fios de cabelo que
repousavam no meu ombro. — Você consegue ser melhor que isso, confio no seu potencial.
— Você tá sugerindo que a pessoa melhor seria… — fitei Mia de baixo para cima —
você?
— Bom, isso é você quem tá dizendo, né? — Ela deu um sorrisinho de lado, apoiando na
parede atrás de mim a mão que mexia no meu cabelo.
— E o que você tá dizendo então?
— Eu… — Mia aproximou os lábios do meu ouvido e, entre sussurros, assumiu — Tô
dizendo que eu queria muito que quem estivesse te beijando lá embaixo fosse eu.
Combustão. Embora seja uma palavra que o dicionário diz que pode ser definida como
uma reação química, eu diria que pode nomear a sensação de Mia Duarte te pedindo um beijo ao
pé do ouvido. E que só piora quando o perfume licorado dela afeta todos os seus sentidos e uma
de suas mãos está apoiada na parede bem ao lado da sua cintura, só pedindo permissão para o
toque.
Agora parecia com o meu sonho. O perfume, as poses, a sensação, a tensão. Mas tinha algo
diferente: na vida real, eu não podia deixar isso acontecer. Porque eu jurei para mim mesma que
nunca beijaria Mia Duarte em toda minha vida.
— Você tá bêbada, Mia — respondi, no mesmo tom que ela, tocando suavemente na sua
mandíbula e a afastando com delicadeza.
— Isso quer dizer que em um outro dia…
— Que em um outro dia a gente pode conversar, se você se lembrar disso.
— A minha memória alcoólica é infalível — ela deu dois toques do indicador na têmpora
—, mas tudo bem.
Mia se afastou e, automaticamente, minha respiração e meus batimentos voltaram ao seu
ritmo natural.
— Acho que é melhor a gente sair antes de virar fofoca.
Naquele momento, eu não fazia ideia de que já era tarde demais.
“Quem sabe eu não estivesse num fundo do poço”

Talvez - Clarice Falcão

“Exatamente às onze da noite, nossa querida anfitriã subiu e deixou a namorada sozinha
na multidão. Até aí, poderia ser qualquer coisa, afinal, ela tá na casa dela. Mas vocês não
acham suspeito que, logo depois, a gêmea dorminhoca tenha subido atrás dela? Vocês sabem
que eu tenho uma missão aqui nessas postagens e, por isso, fiquei reparando da escada pra onde
essa movimentação suspeita ia levar… e eu lhes digo agora: para o quarto da herdeira do
cinema. São onze e cinco e as duas ainda não saíram. Quanta coisa pode rolar em cinco
minutos? Vou deixar vocês me dizerem.
Anônimo.”

Depois de colocar todo meu autocontrole à prova e chamar Mia para fora do quarto, eu fui
atrás de Lucas e Rafaela para irmos embora antes que eu mudasse de ideia. Os dois aceitaram
numa boa e viemos pra minha casa, onde eles dormiram.
Era sábado de manhã. Mal passava das nove quando Rafaela nos acordou para mostrar a
nova postagem.
— Que merda — Lucas falou, encarando o nada. — Agora a pessoa tem algo muito forte
contra a Mia e ainda meteu a Aurora no meio.
— Pronto, agora a faculdade toda vai achar que eu fui conivente com chifre. — Apoiei o
rosto nas mãos. — Pra que que eu fui inventar isso, hein?
— Pra que você foi inventar de flertar com a Yasmin, de beijar ela ou de entrar no quarto
com a Mia? — Rafa perguntou, confusa. — Porque bom, uma coisa leva a outra.
— Sei lá. — Bufei, frustrada. — Acho que os três — constatei por fim, erguendo o rosto e
olhando para os meus amigos.
Lucas e Rafaela se olharam, como se estivessem se preparando para dizer algo… Ou
melhor, escolhendo quem ia fazer a bendita pergunta — que obviamente seria feita em algum
momento.
— Rolou alguma coisa entre você e a Mia naquele quarto, Aurora? — Lucas resolveu ser o
porta voz.
— Não! — exclamei. — Claro que não.
Até aí eu não menti.
— É que, bom, você ficou um tempinho lá — completou Rafaela.
— A gente tava conversando, só isso.
E aí eu menti. Quer dizer, omiti alguns detalhes.
Lucas e Rafaela pegariam muito no meu pé se soubessem que Mia quis me beijar e eu
recusei. Iam falar tanto no meu ouvido que fariam eu me arrepender amargamente dessa tomada
de decisão.
Como se eu já não estivesse arrependida o suficiente.
— Tá, agora a gente tem um problema — começou Rafa. — Qualquer coisa que vocês
fizerem juntas vai ser motivo pra acharem que a Mia tá chifrando muito a Larissa. E na cara de
todo mundo.
— E isso é um problema não só pra Mia, mas pra você — Lucas completou. — Tipo,
talvez seja a hora de vocês pararem essa investigação, sei lá. E a Mia e a Larissa assumirem logo
que não tão juntas mais.
— Não, não rola. — Sacudi a cabeça em negação. — Porque agora me meteram demais
nisso e eu preciso mais do que nunca saber quem foi.
— Tá, e até agora você tem alguma pista consistente? — Rafa perguntou. — Você saiu do
lugar?
— Com essa última postagem a gente sabe que também não pode ter sido a Yasmin —
constatei. — Ela foi embora antes disso.
— Ótimo, você tem uma pista — Lucas ironizou. — Amiga, larga essa história de lado.
Vai ser melhor pra você.
— Sem chance, gente — respondi. — Sei que vocês se preocupam comigo e com meu bem
estar, mas eu vou me sentir completamente impotente se isso continuar acontecendo e eu ficar lá
parada. E bom, isso vai continuar acontecendo. Tenho certeza.
— Você só precisa ter noção dos seus limites, tá bom? — Rafa ressaltou. — Presta atenção
nisso e, no momento que você sentir que não dá mais pra você, larga esse barco.
— E deixar a Mia sozinha? — questionei de prontidão. As palavras saíram mais rápido do
que eu pude controlar.
— Ela tava sozinha antes de você ajudar — Lucas frisou. — Vai ficar bem se você precisar
sair dessa história.
— E se ela é assim tão legal quanto tem se mostrado de uns tempos pra cá, ela vai
entender. Se não entender, você já sabe que ela não mudou tanto assim.
O tom dos dois era… preocupado. Eu ficava incomodada às vezes, porque quando falavam
nesse tom comigo eu me sentia uma criança, mas eu sabia que não era por mal. Eles só zelavam
por mim, desde sempre. Mas eu precisava assumir as rédeas da minha vida e começar a resolver
meus problemas sozinha.
— Obrigada, gente — falei. — Sei que vocês se preocupam, que tão aqui pra me apoiar…
Eu só… quero me sentir adulta lidando com as coisas, entende?
— A gente entende — Rafa fez que sim com a cabeça —, mas você pode ser adulta e ainda
não se colocar em todas as situações desconfortáveis possíveis.
— Eu sei. — Dei uma respirada funda e olhei para a cama de Bela, que estava vazia. —
Cadê minha irmã?
— Foi no banheiro tem uns dez minutos — Lucas respondeu.
— Ela viu o spotted?
— A gente não mostrou — Rafa falou. — Se viu, foi no celular dela.
Sabia que Bela me encheria o saco quando visse aquilo, então preferia lidar com isso cedo,
com Lucas e Rafaela junto, sabendo que o assunto renderia todo de uma vez e depois morreria,
pelo menos por hora.
Levantei e fui até a porta do banheiro. Dei duas batidas.
— Bela — chamei. — Tá aí?
— Que foi? — Ela respondeu, seca, de dentro do banheiro.
— Tenho que te mostrar um negócio.
— O que?
— Eu tô te chamando pra você vir, né?! — exclamei. — Sai daí, anda.
— Agora não, Aurora — respondeu. — Depois eu vejo.
— Mas eu não quero que você veja depois, quero que veja agora!
— Então você aprende a esperar! — Bela deu um corte. — Me deixa quieta, cara, tô no
banheiro. Depois a gente conversa.
Talvez a grosseria de Bela tenha feito meus olhos se encherem de água, mas isso era só
porque eu já estava um tanto quanto sensível. Saí de lá sem responder e voltei para o quarto.
— Bela não quer saber — respondi cabisbaixa e, ao mesmo tempo, irritada. Sabia que
quando eu estivesse tentando esquecer ela faria questão de me importunar.
— Você tá bem amiga? — Lucas perguntou.
— Tô — respondi. — Ela só foi grossa, mas nada muito estranho vindo dela de manhã.
— Eu tenho que ir, marquei de almoçar na casa do Rique hoje com ele e a mãe — avisou.
— Uau, almoço de família, é? — Rafaela implicou, dando um toquinho de ombro nele.
— Fico feliz, amigo. — Dei um sorriso para ele. — Vai tranquilo, eu fico bem. Você
também, Rafa. É final de mês, sei que é dia de ir na roça ver sua avó.
— Que gracinha, você lembrou. — Rafaela deu um sorrisinho fofo. — É, eu tô até meio
atrasada, minha mãe tá mandando mensagem.
— Racha um Uber comigo? — Lucas pediu para ela. — A casa do Rique é depois da sua,
eu coloco parada.
— Fechou — ela concordou.
Os dois levantaram para se trocar ali mesmo no quarto. A essa altura da nossa amizade
virar de costas e trocar de roupa no mesmo cômodo não era lá grande coisa, e sabe se lá quando
Bela ia liberar o banheiro.
Minha mãe não estava em casa, já tinha avisado ontem que acordaria cedo e iria para o
aniversário de uma colega de trabalho. Bela se trancou no banheiro de um jeito que parecia que
nunca mais sairia, então, quando meus amigos foram embora, tudo que me restou foi me jogar no
sofá e assistir alguma coisa.
Eu me sentia uma velha assistindo o programa “É de casa”, mas vez ou outra dava atenção
só para verificar se o Rodrigo Hilbert ainda tinha aquele quadro para ensinar a fazer um monte de
coisas que, na verdade, nenhum outro homem médio da idade dele tem tempo para replicar em
casa. Spoiler: ele tinha. Mas o programa até tinha uma coisa ou outra interessante; a de hoje era
uma mistura pra fazer bolinha de sabão que não estoura fácil. A Aurora de sete anos ia amar.
A campainha tocou. Fiquei me questionando se Rafa ou Lucas teriam esquecido alguma
coisa, mas duvido que voltariam para pegar. Considerei, pelo dia e horário, a possibilidade de
serem testemunhas de Jeová, então preferi não atender logo de cara porque… bom, alguém
atende?
Eu só me dei conta de que era quase tão ruim quanto uma testemunha de Jeová, quando
ouvi três palmas em sequência e a voz de Mia Duarte gritando meu nome no portão.
— Aurora! — ouvi abafado por trás da porta fechada.
Eu podia só fingir que não estava em casa, mas não seria uma atitude muito adulta da
minha parte, então abri a porta.
Mia estava parada com os braços cruzados, vestida inteira de preto e com óculos escuros
sobre os olhos.
— O que você tá fazendo aqui?
Teoricamente, eu já sabia a resposta. Mas preferia que fosse qualquer outra coisa que não o
spotted.
— Troca de roupa e entra no carro — ordenou. — A gente precisa conversar.
“Eu tento me afastar, mas te quero sempre perto de mim”

Pro Nosso Azar - Clarissa

Nunca me vesti tão rápido na vida. Coloquei uma camiseta branca e um short jeans confortável
correndo. Não que seja uma questão de Mia ter falado e eu ter feito, mas é que muitas coisas
passavam pela minha cabeça.
Spotted. Traição. Beijo. Quase beijo. Será que ela lembra? Do que ela quer falar? Qual foi
o nível do estrago?
Mia atravessou a ponte Rio-Niterói com o pé pesando no acelerador. O horário e o dia da
semana permitiam fazer isso, pelo menos no sentido de espaço. Na lei eu não sei dizer, com
certeza, se ela não estava acima do limite.
A rádio estava desligada e o silêncio, sim, era bem barulhento. Meu estômago se
embrulhava com a dúvida, com a alta velocidade, com a ansiedade e com a expressão de total
insatisfação que Mia carregava.
— Dá pra você falar alguma coisa? — pedi, aflita. — Tipo: onde a gente tá indo ou por
que você foi em casa me buscar ou o motivo de estar correndo desse jeito.
— Aurora, por favor, eu tô explodindo de dor de cabeça — respondeu, ignorando tudo que
eu disse. — Só relaxa aí e a gente conversa.
— Você tá me mandando relaxar desde que eu passei do portão de casa e agora a gente já
tá quase na cidade do lado e você não fala nada! — insisti.
— Mais dez minutos e a gente chega, eu preciso de mais dez minutos de silêncio, por favor
— pediu. — É sério. Eu bebi pra caralho, só tenho lapsos de ontem e não tô juntando coisa com
coisa. — Ela respirou fundo. — Dez minutos. Só isso.
Então ela não lembra?
Não respondi e um quase sorriso se formou no rosto de Mia por ter conseguido o silêncio
que tanto queria.
Como prometido, dez minutos. Para ser justa, um pouco mais do que isso, talvez uns três a
mais. Só nunca passou pela minha cabeça que o lugar que Mia me levaria seria Copacabana,
mais especificamente, um prédio de frente para a praia.
Subimos no elevador ainda em silêncio, e não porque eu estava cumprindo o silêncio que
Mia pediu só por empatia, mas sim porque eu estava confusa o suficiente para não conseguir
colocar uma palavra sequer na boca.
Sétimo, oitavo, nono, décimo, décimo primeiro… Décimo segundo andar. Segui Mia no
corredor que parecia de hotel, até que ela parasse na porta de um dos apartamentos e tirasse do
bolso uma chave, que sabe-se lá Deus onde ela conseguiu, abrindo a porta em seguida.
Amplo, iluminado, mobiliado e com uma varanda de frente para a praia. Se isso fosse um
sonho, meus sonhos com Mia Duarte estavam ficando cada vez mais fora da realidade.
Entrei e Mia fechou a porta, se sentando em um sofá cinza a alguns passos de distância da
entrada. Fiquei de pé, parada, tentando processar.
— Será que dá pra você me explicar que porra tá acontecendo?
— É da minha mãe — falou com os olhos fechados, massageando as têmporas. — Fica
aqui quando grava pro lado de cá.
— Isso não explica como e nem por que a gente veio parar aqui — continuei. — Muito
menos por que você me tirou de casa sem falar nada pra me trazer pra cá.
— Peguei a chave escondida — respondeu, ignorando o resto e largando os óculos escuros
no braço do sofá. — Sabe, Aurora, eu bebi pra caralho. As lembranças de ontem são flashes
perdidos e desconexos na minha cabeça. A única coisa que eu lembro completamente é de ter um
monte de gente com o celular na mão me olhando de cara feia. E eu tenho a impressão de que
depois disso mandei todo mundo pra casa do caralho e as pessoas foram embora. Só. Mas é o
suficiente pra me fazer correr pro outro lado da ponte e ignorar que a minha casa tá uma zona
porque não quero lidar com isso, né?
Ela realmente não se lembrava.
— E por que eu tô aqui? — questionei, ainda sem entender essa parte.
— Porque eu sou uma grande inconsequente que te meteu numa história que não tinha a
ver contigo e te ferrou por irresponsabilidade — respondeu, voltando seu olhar na minha direção.
— Esquece essa história de investigação. Não vale a pena mais.
— Você tá maluca? — Franzi o cenho. — Agora que essa pessoa mexeu comigo você
espera que eu simplesmente deixe isso pra lá? Nem pensar.
— É egoísta da minha parte pedir que você continue nessa.
— É egoísta você achar que, tendo meu nome no meio, a decisão se eu continuo ou não é
sua — corrigi, me jogando ao lado dela no sofá logo depois.
— Eu devia ter falado logo do começo que eu e Larissa tínhamos terminado. — Mia
respirou fundo, encarando o teto.
— A ideia de não falar foi minha, essa tá na minha conta — apontei, também encarando o
teto. — E, de verdade, seria autoboicote você querer contar no meio desse furacão.
— Foi o que a Larissa disse — Mia falou. — Que seria pior.
— Ninguém acreditaria — continuei. — Iam te chamar de cara de pau, dizer que
terminaram agora e você deu migué pra não ficar feio. E iam chamar ela de corna mansa, acusar
de passar pano.
— Ficaria menos feio pra você, pelo menos.
Ela deu de ombros.
— Não. Iam jogar a culpa do término em mim — ressaltei.
— Sem você sequer ter feito alguma coisa — Mia soltou. E eu constatei que, realmente,
nem passava pela cabeça dela o que rolou naquele quarto. — Não devia ter te metido nessa. —
Ela virou o corpo de lado e olhou para mim. — Eu deveria estar acostumada com gente falando
mentiras da minha vida, eu lido com isso desde novinha.
— Ninguém devia ter que se acostumar com isso. — Virei de lado também, retribuindo o
olhar. — Colunistas de fofoca são sanguessugas.
— Universitários também. — Ela riu fraco.
— É… — Ri junto. — Sem dúvida.
— Eu te trouxe porque… — começou a explicar. — Primeiro, você merecia fugir disso
também. Segundo, a gente nunca teve oportunidade de passar um dia no mesmo lugar sem ter
nada pra fazer. Trabalho, pesquisa, procurar pista… Achei que seria… legal, sei lá.
— Se você queria me chamar pra dar um rolê, podia ter feito isso de forma menos peculiar
e, sinceramente? Assustadora, também — joguei a real.
— Eu te assustei? — A garota riu. — Foi mal, eu só não tava raciocinando muito. Ainda tô
tentando, na verdade.
— Tudo bem — respondi, com riso fraco. — E, assim, me surpreende que você queira
passar o dia comigo. Pra quem já me jogou bebida e esculhambou pra todo mundo ver, você até
parece gente — impliquei.
— Eu só falei umas coisinhas, quem me esculhambou foi você — Mia argumentou, se
defendendo. — E eu sou gente, por mais que pra essa sua cabeça dura seja difícil assimilar.
— Ah, com certeza você é gente — falei. — Um bicho jamais me daria tanta dor de
cabeça.
— Ei! — ela esbravejou, mas caiu na risada na sequência e eu acompanhei.
Olhei para além de Mia e encarei o mar pela sacada do apartamento, pensativa. Mia notou
e virou a cabeça para a mesma direção.
— Acho que queria ter te conhecido sobre outras circunstâncias — deixei escapar.
— Eu também — ela concordou. — Essa tempestade fez a gente conhecer versões
péssimas uma da outra.
— Preciso ser sincera e dizer que a versão de você que eu tinha na minha cabeça antes não
era muito melhor do que isso, tá?
Mia virou o rosto para mim de novo e voltou a encarar o teto como antes.
— Não dá pra julgar. — Ela deu de ombros. — Existem três momentos. A Mia antes, a
Mia durante e a Mia depois. Uma versão sou eu antes de toda a merda com a Larissa estourar,
quando a gente nunca tinha trocado uma palavra ainda. Aí vem a versão de quando eu dei a louca
com você, que é durante o caos. A versão depois surgiu quando eu tava prestes a terminar, acho
que foi quando comecei a rever algumas coisas.
— E qual das três versões é você de verdade?
— Ainda tô tentando descobrir. — Suspirou. — O fato é que, por incrível que pareça, você
não conheceu uma das piores.
— Quem conheceu ela?
— Ah, o Pedro Henrique, sem dúvida — falou, sem hesitar. — Não é à toa que ele tem
tanta mágoa. Eu fui péssima com ele, foi um erro atrás do outro.
— Você fala do Pedro com um certo… carinho — disse. — Sente falta dele?
— Não sei se falta é a palavra, mas talvez. É confuso, entende? E mesmo que eu consiga
definir, não tem o que possa ser feito. Eu sei que ele nunca voltaria atrás na decisão de se afastar.
— Entendo — respondi, tentando ser compreensiva —, mas, olha… você carrega muita
culpa também.
— Ué, porque eu tenho culpa mesmo. — Ela tombou a cabeça para o lado.
— É, mas erros são cometidos o tempo todo. O importante é que a gente se arrependa. E,
claro, se arrepender nem sempre conserta as coisas, mas devia ser o suficiente pra gente se sentir
em paz consigo mesmo.
— Você parece fã de artista problemático passando pano no Twitter falando desse jeito. —
Mia riu.
— Calma lá, tô falando de erros! — exclamei, abrindo um parêntese. — Crimes são outros
quinhentos.
— Justo. — Ela assentiu. — Enfim… queria que você tivesse conhecido uma versão boa
de mim, sabe? Porque, embora não fosse a pior, também não era a melhor.
— Então tá! — Levantei rápido do sofá. — Planos pra hoje: fingir que nada disso
aconteceu, sentar ali naquela sacadinha que tá me parecendo super convidativa e falar coisas
esdrúxulas sobre nós.
— A gente não pode fazer isso do sofá? — resmungou, se espreguiçando. — Esse sofá é
melhor que o lá de casa.
— Mia, provavelmente, você agora vai roubar essa chave o tempo todo pra vir aqui. Eu sei
lá se um dia vou voltar. Então, que tal ceder a preferência? — argumentei.
— Você tem razão — Mia levantou e pegou duas almofadas —, mas a gente não vai sentar
no chão de jeito nenhum.

— Uma coisa em que você é boa e uma em que você é péssima — falei. — Sem ir pelo óbvio!
Nada de fotografia.
Eram mais de quatro da tarde e estávamos terminando de comer combos de fast food que
pedimos no delivery como almoço. Incrivelmente, Mia e eu passamos horas sentadas lado a lado,
só contando coisas das nossas vidas, como se estivéssemos nos conhecendo ali, pela primeira
vez.
— Tá… — Mia riu e comeu uma batatinha. — Eu sou uma ótima dançarina e uma péssima
jogadora de futebol. E é irônico, porque as pessoas esperam que toda desfem jogue bola muito
bem. E que a gente não dance.
— E você é o extremo oposto — concluí, antes de puxar refrigerante pelo terrível canudo
de papel.
— Exato — assentiu.
— Você sabe que quero te ver dançando agora, não sabe?
— No máximo vai ver em festa, porque eu não me dedico a coreografias desde a
adolescência — avisou, comendo o último pedaço do hambúrguer.
— É suficiente — respondi. — Bom, eu sou péssima tocando instrumentos de corda, mas
sou ótima com os de sopro.
— Então você não cumpre um estereótipo também, mas o seu é o da sapatão do violão —
Mia comentou.
— Tipo isso — dei de ombros molhando a batata frita no ketchup —, mas se me der uma
flauta doce aqui eu sei tocar a trilha de Titanic até hoje.
— Você sabe tocar a transversal?
— Tentei quando entrei na sala da banda da minha escola do ensino médio, eu até me viro
— contei, mordendo metade da última batata e colocando a outra metade na boca de Mia. —
Mas nunca consegui treinar e aprender de vez porque uma dessas é super cara e eu nunca tive
como comprar.
— Instrumentos em sua maioria são super caros — falou. — Uma vez pedi pra minha mãe
uma bateria de aniversário, quando ganhei ficou parada. Aí ela vendeu e ficou um mês falando
no meu ouvido.
— Tá aí uma coisa que, se você me dissesse caso a gente estivesse se conhecendo num
encontro, me faria te achar babaca! — apontei, incrédula. — Olha a diferença entre nós duas.
— É um privilégio do caralho, eu admito. — Ela tirou logo depois um pacote de halls de
morango do bolso, desembalando uma e colocando na boca. — Quer?
— Quero — aceitei, seguindo os mesmos passos. — E sim, é um privilégio. Mas não devia
ser, né? Eu queria que objetos artísticos fossem mais acessíveis. Tem muita gente que só não se
desenvolve por falta de material. Minha irmã mesmo adorava pintar quando era mais nova, mas
aí meu pai morreu, as coisas apertaram e não deu mais pra ficar comprando tinta e tela toda
semana.
— E ela simplesmente parou? — Mia perguntou.
— É — respondi, dando de ombros. — Perdeu o hábito. Tanto que quando arranjou um
trabalho, ela nunca comprou nenhum material de pintura com o dinheiro. O tempo passou e, não
só deixou de ser uma prioridade pra ela, como ela passou a achar supérfluo.
— E de certa forma é, né? Tipo, quando surgem outros compromissos acho que a arte
sempre vai ficando em segundo plano.
— Sim, é esse mesmo o problema — ressaltei. — Só que se eu me desenvolver demais
nesse assunto, a conversa vai acabar em muita crítica de acúmulo de capital e sobre o capitalismo
nos convencer que ter o melhor das coisas é luxo e não direito. — Ri.
— Ah, eu não ligaria… — Mia deu um sorrisinho. — Você fala com muita convicção das
coisas que defende, eu acho legal.
Espero que a luz do final de tarde não tenha deixado ela notar que meu rosto corou.
— Você não?
— Acho que me acostumei a me moldar nos ambientes — Mia explicou. — E eu sei o que
você vai dizer: “Ninguém devia ter que se acostumar com esse tipo de coisa” — falou, tentando
imitar minha voz. — Eu sei. Mas é a real.
— Foi uma péssima imitação. — Dei uma risada genuína. — Eu sei que se moldar parece
fácil, ainda mais se você cresce aprendendo a fazer isso. Mas você só sabe quem gosta de você
de verdade quando você se impõe. Se não gostarem de quem você é quando se impõe, só gostam
da pessoa que esperam que você seja.
— Pra quem me xinga com certa frequência, você sabe falar bonito até — alfinetou.
— É pra honrar meu nome de princesa, sabe? — devolvi a brincadeira. — E você sabe que
eu faço pra não perder o costume.
— Será que já não tá na hora de criar novos hábitos, princesa? — Mia cutucou meu ombro
de leve.
— Vou pensar no seu caso… — Dei uma risadinha.
Meu telefone tocou. Ligação da minha mãe.
— Oi, mãe — falei ao atender.
— Oi, filhota — respondeu. — Tá tudo bem aí? Eu percebi agora que não fiz compras
hoje, então não sei o que tem em casa pra vocês comerem. Se dá, se não dá. Também fiquei sem
saber se vocês tavam com dinheiro pra ir no mercado ou pedir alguma coisa. Então eu tô
pegando o carro pra voltar já e fazer uma comprinha.
— Ah! — Parei para pensar no que responder. — Eu não tô em casa, mãe. Mia me pegou
de carro depois que Rafa e Lucas foram embora e a gente tá aqui no Rio, em Copacabana —
falei, olhando para Mia. Se fosse qualquer outro contexto, minha mãe faria um escândalo, mas
como ela ficou obcecada pela Mia, eu sabia que seria tranquilo.
— Ô meu bem, então vai fazer compra comigo? — pediu. — Copacabana é caminho
saindo daqui da casa da Jaque. Você me manda localização, eu passo aí e te pego.
— Tudo bem, então — aceitei, porque sei que um tempo conosco era algo que minha mãe
vinha sentindo falta — Vou te mandar. Você chega em Copa em quanto tempo?
— Vinte, trinta minutos. Vai depender do trânsito — respondeu. — Me manda aí no
celular onde você tá que eu tô saindo. São quatro e quinze, quando for umas quatro e meia, mais
ou menos, você já vai indo pra avenida que fica mais fácil pra eu passar de carro, pode ser?
— Tá bom — assenti. — Até daqui a pouco, então.
— Até, filha. — Ela desligou.
— Daqui a pouco tenho que ir, minha mãe vai me dar carona — avisei Mia.
— Vamos pra sala, então. — Ela se levantou.
Me levantei logo atrás e carregamos as almofadas para dentro, fechando a porta da sacada.
— Me responde uma coisa — Mia chamou minha atenção, ajeitando as almofadas no sofá
e se sentando depois.
— O que foi? — Sentei ao lado dela.
— Quando eu falei da história da bateria, você disse que isso te faria me achar babaca em
um encontro — relembrou, olhando para mim. — Então isso é um encontro pra você?
Gelei. Um frio na barriga me dominou, mas eu não ia perder a pose.
— Você que me trouxe aqui, será que não deveria ser você respondendo a essa pergunta?
— Mas foi você que trouxe a palavra — ela rebateu. — Não adianta transferir a
responsabilidade. Você não vai fugir, Aurora.
— Essa é a sua interpretação… — Dei de ombros. — Eu só quero levar em conta a sua
opinião, sabe? Você é a anfitriã.
— Entendi — respondeu, com os olhos espremidos e cara de desconfiada. — Não é um
encontro, né?
— Não, né?! — Dei uma risadinha sutil.
— É — Mia suspirou e chegou mais para o lado, ficando mais perto de mim —, mas
também não teria problema se fosse, né?
Alerta. Alerta. Alerta!
— Eu particularmente acho que não.
Abri um sorriso de lado, olhando nos olhos dela.
— Eu também acho que não — Mia concordou. Ela ficou em silêncio apenas me olhando
por alguns instantes, antes de seguir falando. — E caso fosse um encontro… — Mia Duarte
repousou de leve a mão na minha coxa. Mia Duarte. Com a mão na minha coxa — Também não
teria problema se eu fizesse isso, né?
— Não teria não — respondi, sem perder a compostura.
— Nem se eu fizesse isso… — e, então, ela apertou a minha coxa delicadamente — né?
— Não mesmo — respondi, tentando não perder o ritmo da respiração. — Assim como
não teria problema se eu fizesse isso aqui. — Aproximei a mão da nuca de Mia e acariciei com a
ponta dos dedos a parte mais curta dos cabelos dela, fazendo atravessar por entre os fios. Mia
respirou fundo. — Não é?
— De jeito nenhum. — A garota chegou mais perto. — E me diz… Não teria problema se
eu fizesse isso aqui, né? — Ela falou, enquanto lentamente me puxava para mais perto pela
cintura.
— Não teria, não — sussurrei, baixinho, mais perto da boca dela do que deveria estar. E se
eu fizesse o mesmo não seria problema, concorda? — respondi, fazendo o mesmo movimento
que ela com a mão livre.
— Concordo — ela respondeu no mesmo tom de voz, dando uma mordida de lábio e um
sorrisinho em seguida, enquanto encarava minha boca. — E o que você ia achar se eu te beijasse
aqui e agora, Aurora?
Meu corpo inteiro estremeceu.
— Eu ia achar ótimo, Mia.
Que se foda.
Que se foda tudo. Que se foda minha irmã e meus amigos terem razão. Que se foda
spotted. Que se foda fofoca. Que se foda ex. Que se foda briga. E principalmente, que se fodam
as juras de nunca beijar Mia Duarte, porque, porra, eu seria capaz de fazer qualquer jura que ela
me pedisse naquele momento. Qualquer promessa. Qualquer súplica. Que se fodam as juras de
não beijar essa garota, porque o que eu deveria ter jurado pra mim mesma é que não morreria
sem fazer isso pelo menos uma vez.
E obrigada céus, entidades e universos por estar viva e poder sentir o gosto de morango da
boca de Mia Duarte naquele momento. E por sentir a mão dela pesando cada vez mais na minha
coxa e apertando com vontade. E por sentir sua respiração quente colada na minha quando a
puxei com mais ímpeto. E sua outra mão deslizando suave pelas minhas costas por baixo da
camiseta. E seu corpo completamente junto ao meu quando ela subiu no meu colo.
— Depois de ontem achei que você me faria esperar mais do que isso — assumiu, perto da
minha boca.
— Então você lembrava esse tempo todo?
Abri um sorrisinho desacreditado.
— Cada um joga com as armas que tem. — Ela abriu um sorriso malicioso. — Esqueceria
de cada detalhe da noite passada, menos de você fraquejando pra não me beijar. — Ela desceu o
rosto no meu pescoço e deu um beijo demorado.
— Você é uma filha da puta, sabia disso? — falei, baixinho.
— Em um contexto onde eu tô em cima de você, acho que posso considerar isso um
elogio. — Ela sorriu, antes de voltar a me beijar com vontade.
Mia Duarte poderia ter muitos defeitos, mas era, sem dúvidas, a mulher mais gostosa na
qual minhas mãos já puderam tocar. E eu queria tocar mais. Explorar mais. Mas não.
Hoje não, pelo menos.
— Mia… — murmurei, interrompendo o beijo. — Eu preciso ir.
A garota inspirou e, em seguida, expirou profundamente, hesitando um pouco antes de
colocar seu corpo para o lado do meu.
— Infelizmente — ressaltou. — Eu te levo até lá embaixo, então.
Mia e eu fomos pelo corredor, depois descemos no elevador, depois o saguão. O
autocontrole foi, sem dúvida, nosso melhor amigo.
Quando cheguei na calçada, ainda estava sem sinal da minha mãe. Então, com os sentidos
um pouco menos aflorados, resolvi colocar o lado racional para funcionar.
— Mia, você sabe que, no meio do caos que a gente tá, isso não pode ficar acontecendo,
não é?
— Eu sei. — Suspirou frustrada.
— A gente não pode correr o risco — acrescentei. — Pelo menos até a poeira baixar,
entende?
— Eu entendo, só não concordo muito… mas, fazer o quê, né?
— Quer fazer um bem por nós duas? — Ela fez que sim com a cabeça. — Não me faz
querer te beijar assim de novo. Não vai dar certo.
— Eu não posso prometer nada — disse. — Posso mexer com suas vontades, mas não
tenho controle sobre elas. — Ela pausou, me fitando. — Ou eu tenho?
— Nunca teve e não é agora que vai — rebati, com desdém.
Avistei o carro da minha mãe chegando.
— Te vejo na faculdade — acenei, enquanto caminhava na direção do meio fio.
— Até mais, princesa.
Quando virei as costas, belisquei de leve o dorso da mão. Não era um sonho dessa vez.
Ainda bem.

“De todo o amor que eu tenho, metade foi tu que me deu”

Dona Cila - Maria Gadú

A missão atual era fingir costume com a minha mãe no carro, afinal, qualquer comportamento
fora da normalidade seria motivo de desconfiança. Embora eu duvide que ela ache que Mia e eu
viemos parar em Copacabana só como amiguinhas, baseado em todos os pré requisitos que
minha mãe criou na própria cabeça sobre uma filha lésbica.
— Que chique esse prédio, hein? — disse, dona Sandra olhando o prédio se afastando pelo
retrovisor. — Ela tem um apartamento?
— A mãe dela — contei. — Ela fica nele quando tá em maratona de gravação, e aí quando
não tá por aqui, às vezes Mia pede a chave — menti, olhando pela janela.
— Falando em mães — começou a falar. — Conheci a mãe de um aluno lá da sua
faculdade hoje no churrasco. Ela falou que ele faz Relações Internacionais, é Alexandre o nome
dele. Conhece?
— Mãe! — Dei uma risada sincera. — Já te falei, é humanamente impossível conhecer
todo mundo do campus. Vez ou outra rolam umas brigas no grupo geral dos alunos que eu olho e
penso “gente? quem é essa pessoa?”
— Fazer o quê se sinto falta da época de escola, onde eu sabia o nome de todo mundo? —
Deu de ombros, olhando focada para o trânsito.
— Mãe, você tá realmente muito carentinha ultimamente.
— Ah, filha… — Ela respirou fundo. — O tempo vai passando, vocês vão arranjando
compromissos, novos ciclos, outros lugares pra estar… E ninguém te prepara pra ter filhas
gêmeas. Ninguém avisa que vocês crescem e viram adultas ao mesmo tempo. É diferente de ter
dois filhos de idades diferentes, entende? — Ela me deu uma olhadinha e eu assenti com a
cabeça. Mamãe voltou a olhar para o trânsito. — Não tem como aprender a lidar com as coisas
com o primeiro, porque as duas são as primeiras.
— Eu imagino, mas… — Franzi o cenho. — A gente já cresceu faz mó tempão, você já
teve esse seu momento. A gente já tá há um tempo na faculdade, já tivemos emprego, já
dirigimos e coisa e tal. Por que isso agora?
— Ai, Aurora. É bom estarmos juntas sozinhas pra conversar sobre isso — minha mãe
admitiu. — Tô bem achando que sua irmã tá querendo sair de casa pra morar sozinha.
— Por que você acha isso?
— Esses dias ela falou de distribuir currículo pra voltar a trabalhar — contou. — Eu
estranhei, porque o horário dela na faculdade é puxado, né? Foi por isso que ela saiu do último
emprego. Você sabe que eu nunca botei pressão pra vocês trabalharem depois que passaram.
Sempre incentivei, claro, é bom ter um dinheiro pra juntar, fazer algo diferente, comprar algo que
quer muito. Mas eu sabia que dava conta do essencial e que vocês teriam mais liberdade pra
estudar se não tivessem que administrar faculdade e carteira assinada.
— Talvez ela só queira mesmo um dinheirinho a mais, mãe — sugeri. — Ainda mais que
ela tem saído bastante.
— Não, não é só isso. — Mamãe fez que não com a cabeça. — Sua irmã guardou um
dinheirinho quando trabalhou. Vocês duas têm bolsa da faculdade. Ela realmente quer se bancar.
E acho que isso é pra ir embora.
— Às vezes ela só quer colaborar contigo — falei. — O fato de você não pedir, não
significa que a gente não gostaria de poder fazer.
— Não sei não. — Ela respondeu, receosa. — Eu tava tentando não criar minhoca na
cabeça com isso, mas aí liguei pra ela quando tava vindo te buscar e ela nem atendeu. Só mandou
mensagem avisando que saiu e que volta mais tarde.
Lembrei da grosseria dela de manhã, mas não quis falar pra minha mãe e alimentar mais
essa aflição. Talvez Bela só esteja em um dia ruim.
— Será que eu não tô oferecendo um espaço legal pra ela? — Mamãe se perguntou.
— Ei — interrompi. — Nem pensa nisso. Você sempre deu muita abertura e espaço pra
gente, mãe.
— Ai, eu fico preocupada. — Ela disse em um tom cabisbaixo. — Fico vendo essa coisa
da Mia e da mãe dela, que nunca tá em casa.
— Ai, mãe! — Não contive uma risadinha sutil. — Você e Alexia Duarte não tem nada a
ver. Acredite em mim.
— Claro que não temos, ela é famosa, rica, tem mais de um imóvel no nome dela… tem
carro automático! — exclamou, enquanto passava para a terceira marcha. — O maior castigo
possível é dirigir carro manual. — Suspirou em insatisfação.
— Você consegue sair de um monólogo da mãe coruja pra uma reclamação de
trabalhadora em pouquíssimos segundos, sabia? — brinquei.
— É pra ver se vocês não me acham muito grudenta. — Ela olhou para mim e deu um
sorrisinho, olhando de novo para frente logo depois.
— A gente sempre vai te achar grudenta — respondi —, mas porque a gente te ama.
— E eu amo vocês, minhas princesinhas!
— Vamos dar tempo ao tempo, tá? — falei. — Talvez não tenha nada a ver isso do salário
pra Bela… E ela pode estar num dia ruim hoje também.
— Você tá certa — respondeu. — Vou tirar essas paranóias da cabeça.

Dona Sandra e eu passamos pelo mercado e fizemos uma compra básica semanal, das coisas que
sempre acabam e precisam de reposição. Chegadas em casa, Bela ainda não estava, então
comemos um lanchinho rápido e eu fui para o meu quarto, me jogando na cama e ligando para
Rafaela.
— Oi, amiga! — Rafa exclamou ao atender. — Cheguei agorinha em casa, você tá bem?
— Tô bem — respondi de prontidão. — Eu só liguei pra fazer uma fofoquinha com você.
— Ai, não! — falou, já preocupada. — Lá vem. É mais uma merda, né?
— Na real, bem longe disso — disse, tentando prender a risadinha alegre que queria sair.
— Tá preparada?
— Porra, não né! — respondeu. — Mas agora fala.
— Será que o Lucas ainda tá na casa do Pedro Henrique?
— Não sei? — falou, confusa. — Liga pra ele logo aí!
Atendi ao pedido de Rafaela e liguei para Lucas, que atendeu rapidamente.
— Oi, bonitas! — Ouvi a voz dele dizer. — O que rolou?
— Tá no Pedro?
— Tô, mas ele foi tomar banho — falou. — Isso tá me cheirando a fofoca.
— Você acertou, Luquinhas querido! — disse Rafa. — Bora Aurora, desembucha.
— Eu… — comecei a contar com um dos olhos fechados esperando a reação explosiva —
beijei a Mia.
— Que?! — Rafa quase deu um grito no meu ouvido. — Você mentiu pra gente então, sua
piranha?!
— Não! — exclamei, já me defendendo. — Não foi na festa! Foi hoje!
— Menina, tô passado… — Lucas falou em total choque.
— Então foi por isso que você mandou a gente ir embora, né? — Rafa constatou. — Você
é uma safada, Aurora de Souza!
— Ei, muitas acusações aqui! — respondi. — Ela apareceu aqui depois que vocês foram,
mas eu não fazia ideia de que ela viria. Tava de pijama vendo o Rodrigo Hilbert no “É de casa” e
do nada ela tava batendo palma aqui no portão igual vendedor de panela. Aí eu fui atender e ela
tava com a maior cara de morte, de óculos escuros, como se tivesse virado a noite. Ela falou pra
eu trocar de roupa e entrar no carro pra gente conversar.
— E a bichinha vai obedecer! — exclamou Lucas gargalhando, parafraseando a
Blogueirinha. — Nossa, amiga. Acho que dá pra escutar seu latido daqui, que papelão!
— Ai mona, te preserva! Você tá na casa do Pedro Henrique desde cedo — impliquei de
volta.
— Mas a gente tá ficando há umas semanas, né? — Lucas reiterou.
— Agora você vai contar o que aconteceu depois, Aurora — pediu Rafa.
E então eu contei. Contei com detalhes. Contei porque há anos contava tudo para os dois,
afinal, essa era uma amizade livre de julgamentos.
— Bicha, mas você é uma anta, hein? — falou Rafaela. — O dia inteiro lá com a menina e
só pensou em dar uma bitoquinha nela faltando vinte minutos pra meter o pé?
— Eu ia fazer o quê? — exclamei. — Sabe-se lá se ela lembrava que deu em cima de mim
na festa e…
Opa. Ato falho. Ato extremamente falho.
— Ela deu em cima de você na festa?! — Rafaela berrou de novo.
— E você não contou?! — Lucas completou, agora no mesmo tom. — Você falou que não
tinha acontecido nada naquele quarto, Aurora!
— Ué, e não aconteceu — confirmei. — Até porque ela me pediu um beijo e eu disse não.
— Você disse não? — ele respondeu, incrédulo.
— Ela tava bêbada, tá? — Me defendi.
— Pra quem é cadelinha de mulher, pelo menos você é consciente — Rafa frisou. — Tá,
então você esperou ela dar sinal de que lembrava?
— Eu esperei ter uma abertura — falei. — Porque não era uma possibilidade. Pra mim ela
não lembrava, porque ela falou da noite anterior algumas vezes e omitiu completamente essa
parte — contei. — E aí depois ela disse que lembrava.
— Que garotinha ardilosa, hein… — Lucas estava chocado. — Quero só ver como serão
as próximas vezes.
— Alô? — Franzi o cenho. — Que próximas vezes? A gente tá na merda, lembra? Isso não
pode acontecer de novo.
De verdade, dessa vez eu precisei afastar o celular, porque Rafa e Lucas começaram a
gargalhar em coro de forma completamente escandalosa e descontrolada.
— Ai, amiga — Rafa ainda dava risada. — Nem você acredita nisso, né? Francamente!
— Bom, o fato — continuei — é que eu não acho que vai ser bom pra gente isso continuar
rolando.
— Ah, amiga… — Lucas ponderou. — Tecnicamente vocês podem, desde que ninguém
saiba. Então é só vocês se pegarem no off.
— Não, sem chance — respondi. — Tenho certeza que, se for assim, essa história vai
escalonar muito rápido de um jeito que eu não quero.
— Que jeito, Aurora? — Rafa perguntou desconfiada.
Eu sabia exatamente de que jeito, mas não iria responder a essa pergunta.
— Nenhum, deixa pra lá — disse, fugindo do tópico. — Agora eu vou desligar, só
precisava mesmo contar pra vocês. Mas, por favor, se aquietem sobre isso. E não façam gracinha
quando Mia estiver perto, tá?
— Tá bom então, né… — Rafa concordou a contragosto. — Um beijo, amiga.
— Beijo, amiga — Lucas se despediu. — Qualquer atualização você fala com a gente.
— Falo — concordei. — Tchauzinho.
Desliguei o telefone e coloquei ele de lado, encarando o teto e pensando no dia de hoje.
Tinham muitas formas de tudo dar muito errado. Inúmeras. Para além do spotted. E eu não
queria lidar com nenhuma delas.
A porta se abriu e minha irmã entrou em completo silêncio.
— Oi Bela — cumprimentei, receosa. — Você tá bem?
— Tô — respondeu, breve, enquanto mexia na gaveta dela no guarda-roupa. — Tava na
Bruna.
Não falou sobre cedo, não perguntou sobre o que eu queria falar, não perguntou onde eu
fui e não disse muita coisa. Silêncio demais para a minha irmã.
— Até agora? — franzi o cenho.
— Ué… — Bela respondeu, virando de costas e trocando a roupa por um pijama. — O que
tem de estranho?
— Nada. — Dei de ombros. — Você não vai tomar banho? — impliquei. — Hoje é
sábado, né?
Brincadeirinhas idiotas eram a cara da nossa relação. A reação dela seria a última pista que
eu tinha pra saber se tava tudo bem ou não.
— Você virou fiscal de banho? — Bela se irritou. — Só quero deitar e dormir, cara. Tô
cansada.
Minha irmã deitou e se cobriu com o lençol, virando de frente para a parede. Levantei da
minha cama e fui até a dela, me sentando na beirada.
— Bela… — chamei. — Aconteceu algo hoje? Você tá tendo um dia ruim?
— Só quero ficar quietinha, Aurora — ela respondeu, baixinho. — Tá tudo bem.
— Eu te conheço há vinte dois anos e nove meses, irmã — falei. — E não me parece estar
tudo bem. — Bela não respondeu. — Eu sei que hoje você não tá muito pra papo… Mas eu tô
aqui, tá? Você pode contar comigo pra qualquer coisa. Seja lá o que houve, eu vou ficar do seu
lado. Tá?
— Às vezes, eu sinto que… — Bela começou a falar com a voz embargada — não ter o
papai aqui torna tudo tão mais difícil.
Minha irmã começou a chorar baixinho. Talvez fosse só isso. Saudade. Acho que as
pessoas esquecem que o luto nunca vai embora, que ele só fica adormecido… Até os momentos
em que ele acorda fazendo muito barulho pra te lembrar que ele ainda está ali.
— Todas nós sentimos saudade dele. — Deitei, me aconchegando em um abraço com
minha irmã. — E tudo bem, sabe? É natural. Mas eu tenho certeza que ele não ia querer nos ver
afastadas por isso.
Bela não respondeu de novo.
— Você quer que eu fique aqui ou quer que eu saia?
— Pode ficar — murmurou, ainda com voz de choro.
— Então tá bom — falei. — Tô aqui, tá? Quando você quiser falar.
Bela nada disse, eu também não. E foi assim que pegamos no sono. Abraçadas, como
quando éramos crianças e uma das duas tinha um pesadelo. E eu tive certeza que, assim como
naquela época, as coisas ficariam bem quando tivessem que ficar.
Tanto para ela, quanto para mim.
“A gente é só coisa de fim de semana”

não me encosta, mas fica por perto - Clarissa ft. DAY LIMNS

Estar mais próxima de Mia Duarte me fazia perceber seus próximos passos, o que tornava suas
tentativas de imprevisibilidade extremamente previsíveis. Acho que eu estava conhecendo um
pouquinho mais o jeito dela. E, conhecendo o que eu vinha conhecendo, eu já sabia que ela não
me mandaria mensagem logo de cara depois do beijo, porque tem o ego do tamanho do mundo.
Então, como esperado, a mensagem veio só no domingo à noite, enquanto eu mexia no
computador.

Como dizer que você quer ouvir um elogio sem dizer que você quer ouvir um elogio.
Peguei o telefone e liguei de vídeo para Mia, já sabendo que encontraria um sorrisinho
quando ela atendesse.
— Nossa, que pressa — disse ela, com tom implicante. — É assim? Eu falo e você faz?
— Deixa de joguinho, Mia Duarte. — Revirei os olhos com um sorrisinho de lado. — Te
liguei pra dizer que quando eu disse pra tentar a sorte, quis dizer que não vai rolar. Como eu já
tinha dito ontem.
— Você tem uma boca tão bonita — Mia disse, encarando a tela e ignorando tudo que eu
tava dizendo.
— Foi pra isso que você pediu pra eu te ligar? — perguntei, incrédula. — Pra dizer que
minha boca é bonita?
— Não, esse é só um bônus — explicou. — É bonita até quando tá falando “não” pra mim.
— Quem sabe você devia prestar menos atenção na minha boca e mais atenção no “não”,
né? — respondi, enquanto digitava no teclado.
— Eu presto atenção nele — reiterou. — Só que sua boca me distrai demais, porque faz eu
pensar em coisas inapropriadas. Piora quando você fala o “não” com esse sorrisinho maldoso que
você tem. Fica meio… contraditório.
— Mia, se você tá com saudade de ontem você pode dizer. Não precisa ficar de charminho
pra cima de mim. — Encarei o celular com as sobrancelhas arqueadas.
— Pra você me lembrar que não vai rolar mais? — Pausou. — Nunca.
— Então você queria que eu te ligasse pra que afinal, hein? — insisti.
— Pra te fazer lembrar de ontem também — disse, com tom de malícia na voz. — Me
recuso a lembrar sozinha, princesa.
— Mia… — Franzi o cenho. — Você tá bebendo, né?
— Bebi uma tacinha. — Ela mostrou a taça de vinho vazia que estava, até então, fora do
ângulo da câmera. — Mas eu tô muito bem consciente.
— Defina o que você entende por consciência agora — respondi com desdém.
— Lado racional trabalhando bem, lado emocional pensando em coisas que não deveria…
— Então é com a Mia racional que eu vou aproveitar pra ter uma conversinha — falei. —
Porque tenho certeza que, racionalmente, você lembra que a gente tá na mira de muitos olhares,
pessoas e fofocas.
— Por que a gente precisa relembrar coisas ruins o tempo todo? — Mia soltou um suspiro
de frustração.
— Porque, às vezes, a realidade não é muito boa. — Dei de ombros. — Seu lado racional
tá sóbrio o suficiente pra ouvir o que eu vou dizer agora?
— Sóbrio ele tá, se ele vai ficar feliz é outra história.
— Mia, a gente vai ter que estabelecer limites — informei, séria. — A gente não pode
interagir na faculdade. Pelo menos por enquanto.
— Posso lidar com isso. — Deu de ombros.
— E acho melhor fazer os trabalhos por aqui, em chamada.
— Tá com medo de ficar perto de mim, Aurora? — Mia questionou, sugestiva.
— Nunca tive medo de mulher, Mia — respondi de prontidão. — Especialmente das que
são tão… — Olhei para ela pela tela. — Enfim! Só tô sendo esperta. Por nós duas e por toda essa
história. Você entendeu, né? Ficar longe.
— Entender, eu entendi. Mas nada garante que vou lembrar disso amanhã.
— Ai, Mia! — Dei risada. — Não caio mais nesse seu papinho. Mas se você esquecer, eu
te lembro. Fica tranquila.
— Droga. — Mia franziu os olhos. — Gastei um truque com você.
— Gastou rápido demais, inclusive — frisei. — Você já acabou seu charminho? Posso
desligar?
— Pra que a pressa? — perguntou. — Eu ainda nem relembrei coisas de ontem com você.
— E nem vai. — Pisquei. — Um beijo, até a próxima.
Eu sei que desligar na cara das pessoas não é a coisa mais educada do mundo, mas quando
a pessoa em questão está prestes a disparar na sua cara uma sequência de memórias de um beijo
gostoso demais que não pode se repetir, às vezes é a decisão ideal.

Sonhei com Mia outra vez essa noite. Acho que sonhar com ela quando já tive a oportunidade de
sentir uma prévia do toque e do beijo, torna tudo muito pior. Eu já sei as caras que ela faz quando
está fazendo joguinho. Já sei onde ela encosta quando beija e onde ela gosta de ser encostada. Já
sei o que faz ela respirar descompassada.
Então, sim, é muito pior. Porque o sonho passa a parecer a continuação daquilo que já
aconteceu. E essa continuação não vai vir.
— Bela! — Bati na porta, com a roupa nos ombros. — Eu quero tomar banho.
— Espera! — gritou de dentro do banheiro. — Tô trocando de roupa.
— Esse tempo todo?
— Para de encher meu saco, Aurora!
Certo, não está mais aqui quem falou.
Bela saiu do banheiro cinco minutos depois com um monte de roupa no ombro pra no final
ter escolhido um dos seus vestidos enormes de estilo hippie.
— Tá querendo impressionar quem escolhendo tanto a roupa? — impliquei.
— Será que eu não posso mais querer me sentir bem?
Outra patada. Talvez esteja na hora de eu parar de tentar.
Tomei banho rápido para não me atrasar, mas ainda assim tive que correr para o ponto,
enquanto Bela já tinha pego o ônibus anterior e ido na minha frente. Quando cheguei na
faculdade fui com o passo apressado tentando não me atrasar, mas alguém me parou no caminho
para a sala.
— Ei! — O garoto alto de cabelo loiro escuro vestindo uma camisa da Taylor Swift me
chamou. — Aurora?
Passaram mil coisas pela minha cabeça. Pensei: “pronto, é agora que vão me xingar”. Mas
não.
— Oi, sou eu — respondi, receosa.
— Sou o Alexandre, sua mãe tava num churrasco com a minha esse final de semana.
— Ah! — Quase respirei aliviada. — Oi, o que foi?
— Ela deixou o óculos de sol dela lá. Aí minha mãe pegou, porque imaginou que ficaria
mais fácil eu te entregar na faculdade — ele disse, tirando os óculos de dentro da mochila azul.
— Nossa, ela nem deu falta — comentei, pegando e guardando comigo. — Obrigada. E
agradece a sua mãe também.
— De nada — ele respondeu e saiu, acenando. — Até mais.
Me atrasaria para a aula? Sim. Mas poderia pelo menos pedir um doce de presente pra
minha mãe em troca dos óculos que eu peguei de volta.
Ou a aula de “Estética e Cultura” estava completamente entediante — e, de certo modo, estava
mesmo — ou o assunto do final de semana estava mais divertido, porque durante toda a manhã
recebi diversos olhares indesejados de pessoas cochichando.
Tem uma coisa sobre virar assunto na faculdade que ninguém fala: as pessoas conseguem
ser iguais, ou até piores, que as do ensino médio. Porque, pra alguém dar atenção total para uma
fofoca, tem que ser uma grande fofoca. Na faculdade, as intrigas não são motivadas por coisas
banais como na escola, então, quando as pessoas te julgam, elas te julgam para valer.
— É o primeiro dia e eu não aguento mais, Rafaela — respondi, lavando as mãos no
banheiro, já que, felizmente, nosso professor liberou a gente meia hora antes do horário.
— Amiga, infelizmente não tem muito que você possa fazer sobre isso — Rafa respondeu,
lavando a mão na pia ao lado. — Mas, se serve de consolo, essa semana tem visitação de escola
aqui na faculdade. Então vai estar todo mundo na correria pra preparar tudo e, depois, todo
mundo vai estar ocupado demais querendo dar rasteira em adolescente de escola particular. São
coisas mais importantes que o tópico talaricagem e chifre.
— Puta que pariu, eu dei meu nome pro estande de Cinema no mês passado. — Coloquei a
mão no rosto, desacreditada. — Caralho, o universo tá de sacanagem comigo que é nesse timing
que eu vou ficar à frente das coisas.
— Amiga, se serve de consolo, eu também dei meu nome. E eu seguro as pontas quando
você quiser sumir pra dar um grito — Rafa confortou.
— Sumir pra dar um grito? Eu quero.
Mia Duarte surgiu no banheiro que estava completamente vazio, porque a maioria dos
alunos estava em aula e, quem não estava, estava no bandejão.
— Tendo um dia ruim, Mia? — Rafa perguntou quase de forma retórica. A resposta era
óbvia.
— A sorte é que ele tá acabando, porque hoje eu meto o pé cedo — comentou, entrando
em uma das cabines. — Fala um oi pra aquela sua amiga depois, Rafa.
O fato de que ela estava falando de mim, que estava ali do lado, me mostrou que ela levou
muito a sério a coisa de não falar comigo na faculdade. Mas, obviamente, ia fazer gracinha disso,
com toda a sua maturidade.
— Eu falo. — Rafa me olhou, rindo da bobeira.
— Fala também que eu lembro que ela desligou na minha cara ontem — continuou.
— Claro que eu falo — Rafaela respondeu a ela, me olhando incrédula.
— Rafa, fala pra Mia qualquer hora dessas que ontem, quando eu desliguei na cara dela,
foi uma medida de precaução — entrei na pilha. — Ela vai entender, porque ela sabe bem o que
ela tava fazendo.
— Falo… — Rafa me olhou desconfiada.
— Diz pra Aurora qualquer hora dessas que eu não faço ideia do que ela está falando —
Mia respondeu.
— Fala com a Mia que eu sei que ela lembra de tudo.
Nesse momento, ouvimos vozes pelo corredor.
— Fala… — A voz de Mia amansou. — Fala pra ela que eu disse tchau…
Dei um sorrisinho.
— Tchau, Mia — respondi, rápida e diretamente, antes que as pessoas do corredor
entrassem no banheiro.
O dia inteiro passou com muitos olhares, mas, pelo menos, sem nenhuma postagem. E eu
estava disposta a lidar com gente me encarando enquanto isso fosse a consequência de uma única
suposição sem provas concretas.
Então, sim, foi péssimo me comunicar daquele jeito com a Mia mais cedo, mas dos males,
o menor. Enquanto não dessemos mais pistas, tudo ficaria bem.
No dia da visitação, não ficou mais tudo bem.
“Já faz um tempo desde aquela vez, que não cabia em nós pensar sobre o depois”

Terra - Anavitória

Uma visitação escolar em uma universidade nada mais é do que um dia em que o campus se
disponibiliza a receber vários alunos do ensino médio e apresentar a faculdade e os cursos. É tipo
uma feira vocacional, só que a nível maior e com um pouco mais de clubismo. É uma forma da
reitoria ficar dançando enquanto segura uma seta luminosa escrito “me escolhe por favor”. Mas,
claro, de forma menos vergonhosa.
Acontece uma vez por ano e, sempre que acontece, movimenta a universidade inteira,
interfere no cronograma de todas as matérias e atrasa o calendário letivo. Mas pelo menos dá
hora complementar pelo fato de fazermos cartazes e cortarmos cartolina.
Acho que todo mundo fica um pouco pilhado nessa semana de preparação, porque é uma
corrida contra o tempo. Então, na sexta de manhã, não podia nem reclamar caso Bela estivesse
grossa porque bom, eu também estava.
— Aurora, me empresta uma calça de alfaiataria? — ela pediu, afobada.
— Achei que ia usar calça jeans.
Fui até minha gaveta pegar.
— Tá maluca? — respondeu. — Apertada demais.
— Você nunca ligou pra usar roupa apertada. — Franzi o cenho.
— Você é chata pra caralho, eu só quero ficar confortável!
— Tá bom então, Bela — rebati, pegando uma calça preta para ela. — Toma aqui a porra
da calça.
Minha irmã também fez a incrível escolha de ficar no estande. A diferença é que, no
estande de letras, teriam mais quatro alunos além dela e eles conseguiriam fazer um rodízio
tranquilo, enquanto Rafaela e eu ficaríamos sozinhas.
Depois do banho, vesti uma calça igual a que emprestei pra Bela, com uma blusa social
branca e um blazer preto feito a calça. Os professores só orientavam que, quem fosse para os
estandes, fosse com uma roupa mais formalzinha, mas não precisava ser super. O fato é que eu
gosto de ser super, e me sentia diretora de cinema o suficiente com esse blazer, que, por
enquanto, era o único do meu guarda roupa.
O melhor dia possível para minha mãe emprestar o carro.
— Dirige você — disse Bela, me dando a chave.
— Achei que eu fosse chata pra caralho — provoquei, abrindo a porta do motorista.
— Ai Aurora, não começa — Bela reclamou, entrando do lado do carona.

Dirigir com minha irmã no carro no dia de hoje foi a experiência mais torturante que eu já tive no
trânsito. E eu já dirigi com uma Mia Duarte que me odiava do meu lado. Mas minha irmã
falando no meu ouvido para eu acelerar porque ela precisava ir no banheiro foi de tirar qualquer
um do sério. Cheguei a cogitar mandar ela fazer xixi no carro e depois me resolver com a minha
mãe só para ela parar de falar. Agora eu entendo por que a Mia quis tanto dez minutos de
silêncio.
Chegando na faculdade fui direto para o estande, onde Rafaela já me esperava aflita.
— Que cara de enterro.
— Bela me encheu o saco de casa até aqui. — Bufei. — Tá tudo pronto? O que falta fazer?
— Tem que ir na biblioteca pegar o caderno de visitação e colocar a data de hoje pra quem
passar aqui assinar — disse. — Vai lá que eu fico aqui, porque daqui a pouco os professores
passam aqui vendo qual estande já tá montadinho pra liberar o pessoal da entrada.
— Beleza, tô indo lá.
Dois lances de escada levavam até a biblioteca, no prédio que durante a visitação,
geralmente, fica fechado. Entrei na biblioteca e fui no setor de cadernos, porque todo curso tinha
seus registros de cada evento em uma parte específica só para isso dentro da biblioteca. Capa
vermelha de couro, caderno achado. Agora era só descer.
Encontrei Mia Duarte entre um lance de escada e outro, com uma garrafinha na mão que
não me parecia em nada ser de água. Ela me encarou da cabeça aos pés, parando no blazer, sem
piscar por alguns segundos.
— Você não facilita — soltou, ainda me olhando.
— Cachaça às sete da manhã? — perguntei, ignorando o comentário.
— É um shot de vodca pra acordar — falou, dando um sorrisinho falso. — Só isso.
Ninguém se embebedando. Ah! Não é pra eu falar com você aqui, né? Eu esqueci, pera aí.
Tal qual uma criança, ela fingiu fechar um zíper imaginário na boca.
— Mia. — Revirei os olhos. Ela apontou pra boca colada. — Não tem ninguém aqui —
falei. — E eu não tô pra gracinha hoje.
Mia virou de uma vez a garrafinha, jogando o líquido do recipiente direto na garganta.
— Não tenho como te oferecer mais. — Deu de ombros. — Tava na biblioteca?
— Fui pegar isso. — Ergui o caderno. — Você não faz nada hoje?
— Distribuo mapas do campus, mas só daqui meia hora — explicou. — E depois tenho o
dia todo livre pra me enfiar em algum lugar e fingir que tô sendo produtiva.
— Bom pra você ter o dia livre. — Sorri amarelo.
— Vem cá. — Mia passou para trás de mim e pousou as mãos nos meus ombros, apertando
para massagear. — Você tá muito tensa. É só mais um dia de visitação.
— Odeio lidar com o público, principalmente quando o público é adolescente — falei. —
E num momento como esse, a última coisa que eu queria era estar exposta.
— A exposição é uma forma de dar atenção a uma vida mais interessante que a da pessoa
que o faz — comentou, ainda massageando suavemente os meus ombros.
— Se minha vida fosse de fato interessante, talvez seria mais aceitável.
— Se a sua vida é ou não interessante, não cabe a mim dizer — falou, afastando meu
cabelo. — Mas você… Você sem dúvida é.
Ela se aproximou da lateral do meu pescoço e estava prestes a dar um beijo.
— Mia Duarte, nem pensar! — exclamei, ajeitando meu cabelo. — A gente já conversou
sobre isso.
— Aurora, se você me disser agora que você não quer, eu prometo que eu sossego. Mas,
fala sério, ninguém tá olhando — insistiu. — Então me fala agora olhando nos meus olhos que
você não quer.
— Não vou responder isso — falei, passando a mão pelo blazer e ajeitando. — Vai fazer
seu trabalho e eu vou fazer o meu.
— Fala que você não quer — continuou. — Acaba logo com isso.
— Mia…
— Fala!
Puxei a garota pela correntinha em seu pescoço e aproximei nossos rostos com firmeza.
— Eu quero. — Dei uma respirada funda, olhando nos olhos dela. — Mas não dá —
afirmei, me afastando. — Ouve o que eu disse: faz seu trabalho e eu faço o meu. Isso não vale só
pra visitação.
Me virei para descer as escadas.
— Aurora, volta aqui!
— Desiste, Mia — respondi, por fim, antes de sair.
Quando voltei, Rafaela me encarava com os braços cruzados e o pézinho batendo no chão.
— Caralho, até que enfim!
Entrei no estande e me aproximei dela, de costas para as outras pessoas.
— Esbarrei com a Mia, ela tentou me beijar na escada da biblioteca — contei, baixinho.
— E você? — Rafa respondeu, entre dentes, disfarçando.
— Não beijei. — Dei um suspiro. — Isso tá cada vez mais difícil.
— O que de pior pode acontecer se ninguém ver?
— O que de pior pode acontecer se alguém ver? — rebati. — Vamos cuidar do que
interessa, anda.
Muitos alunos. Bem mais do que na última visitação. Só tinham se passado três horas e eu tinha
certeza absoluta que até o final do dia eu — assim como todos os outros — ia enlouquecer.
Mia vez ou outra passava pelo estande, me dava uma olhada discreta e ia embora. Às vezes
ela parava pra me olhar, o que dificultava um pouco. Porque ela não estava só me olhando, ela
estava me olhando. Sabe aquele tipo de olhar que te devora só com os olhos? Do tipo que
intimida. Era esse olhar. De quem ainda não tinha se contentado com a tentativa de cedo e com o
fato de ter sido deixada lá.
Eu, obviamente, estava ignorando e fingindo que não era comigo. Por fora, pelo menos.
O estande de Relações Internacionais era bem na frente do nosso, e eu podia ouvir um
pirralho magricela de óculos redondo tentando discutir com os meninos do estande dizendo que a
monarquia era o melhor regime pra existir nos países até hoje. A tentativa de discutir era em vão,
porque os meninos estavam em uma energia do tipo “meia noite eu te conto um segredo”, se
divertindo com a situação.
Já o meu lado não estava tão divertido assim, ainda mais enquanto Rafaela tinha saído pra
comer.
— Sempre quis fazer Cinema — disse uma garota de cabelos pretos com ondas volumosas,
parando na frente do estande e olhando tudo o que colocamos ali.
— É um curso ótimo. — Abri meu melhor sorriso improvisado. — Pra quem já tem gosto
no audiovisual como um todo, dificilmente tem erro. Mas tem as áreas de interesse também.
Roteiro, direção, filmagem, fotografia, cenografia, indumentária e coisa do tipo.
— E todas as garotas do curso são bonitas assim?
Tive que me segurar pra não gargalhar.
— Qual seu nome, menina? — perguntei.
— Ana Laura.
— E quantos anos você tem, Ana Laura?
— Dezessete.
— Você não acha que tá muito nova pra dar em cima de universitária, garota? —
bronqueei. — Pelo amor de Deus.
— Às vezes vale a tentativa. — Ela deu de ombros.
— Olha — peguei um pedaço de papel e comecei a fazer rabiscos aleatórios fingindo
escrever —, quando você se formar, você me liga, tá?
— Sério? — Ela abriu um sorriso.
— Não, né? — Peguei o papel e joguei fora. — Vaza, menina, vai curtir teu dia, comer um
bandejão. — Ela desencostou do estande para sair. — E não cai nessa história de mulher mais
velha não, que tu vai arrumar é problema — avisei enquanto ela ia embora.
— Constrangendo criancinhas, amiga… — disse Lucas ao chegar no estande com um
crachá. — Que decadência.
— Essa menina fedendo a leite tentou flertar comigo, Lucas! — exclamei. — Vê se pode?!
Sacudi a cabeça em negação.
— Se você soubesse quanto pirralho fã de Ariana Grande já deu em cima de mim hoje…
— Ele apoiou o cotovelo na bancada do estande.
— Você tá onde?
— Controlando entrada e saída de palestra — Sua voz estava com o cansaço aparente. —
Eu não aguento mais.
— Eu fico daqui olhando a galera do estande de Física. — Olhei na direção do estande e
Lucas acompanhou o gesto. Um menino e uma menina faziam experiências com os alunos, que
faziam fila pra participar. — Me pergunto por que eu não escolhi Física.
— Qual é a segunda lei de Newton, Aurora? — Lucas me olhou com preguiça.
— Eu sei lá, porra — Fiz cara feia.
— Fala cinco filmes que ganharam o Oscar antes dos anos 2000 — pediu, cruzando os
braços.
— “Titanic”, “Amor, Sublime Amor”, “Ben Hur”, “Minha Bela Dama” e “O Paciente
Inglês” — respondi de prontidão, enumerando nos dedos.
— É por isso que você não escolheu Física. — Lucas apontou com as mãos pra mim.
— Você tem toda razão. — Dei uma risadinha.
— Em cinco minutos tenho que estar lá no prédio dos laboratórios, então acho que já vou
— ele disse. — Boa sorte amiga! Você consegue.
— Obrigada, pra você também — respondi, enquanto ele acenava e saía.
Rafaela voltou dois minutos depois.
— Amiga, tava pensando enquanto comia — começou, entrando no estande. — Preciso
que você pegue o livro de História da Arte na biblioteca pra mim.
— Por que você não foi, amiga? — reclamei, com preguiça.
— Porque o bandejão é lá do outro lado, né? — explicou. — Dá um pulo lá, vai. Pode ser
interessante a gente mostrar.
— Tá — respondi, a contragosto.
Subi as escadas de novo; não era o que eu pretendia fazer hoje, mas nem tudo que fazemos
está previamente nos planos. Fui, minuciosamente, passando os olhos pelos livros procurando o
que Rafaela pediu.
— Procurando isso aqui?
Não é possível. O livro de História da Arte nas mãos de uma Mia ardilosa.
— Rafaela combinou com você?
Abri a boca, desacreditada.
— Ela não te faria subir dois lances de escada por qualquer motivo, acredite — Mia
afirmou, enquanto vinha na minha direção pelo corredor.
— E qual é o plano? — perguntei, encarando ela com um sorrisinho que era mais de estar
em completo choque com toda essa história do que por achar graça.
— Plano? — Mia franziu o cenho. — Não tem plano nenhum, só queria poder bater um
papo com você sem me preocupar — disse, entregando o livro nas minhas mãos.
— Sei — respondi com desconfiança, pegando o livro da mão dela. — Isso é o que?
Carência?
— Tédio, de repente. — Deu de ombros. — Vocês parecem estar se divertindo bem mais
que eu.
— Não sei o que você define como diversão.
— Vou dar um exemplo — ela começou. — Eu achei muito divertido ver você colocando
pra correr uma adolescente que tava tentando dar em cima de você.
Ela riu de leve.
— Não botei ela pra correr, foi só um “se liga”.
— Botou pra correr, sim — Mia insistiu. Ela enfiou as mãos nos bolsos e ficou em silêncio
uns segundos, olhando pra cima. — É o que você tenta fazer comigo, mas não consegue.
— Não acredito que eu tô aqui pra ouvir esse seu ego do tamanho da lua. — Ri, incrédula.
— Mia, você é tão previsível. Você só me fez vir aqui pra flertar!
— Foi...— Mia me puxou sutilmente pela cintura para perto dela. — Foi pra flertar. Foda-
se. Aurora, eu não aguento mais! — Ela disse, olhando nos meus olhos. — É isso. Tô me
entregando. Mostrando fraqueza. Eu preciso te beijar de novo. Preciso de mais do que aconteceu
no final de semana. Que vá pro inferno meu ego. E se você não quer, se a gente não deve, eu
preciso que você vire as costas, vá embora nesse minuto e não troque uma palavra comigo até
você achar conveniente. — Ela mirou minha boca rapidamente. — Mas se você continuar me
dando brechas como deu mais cedo, eu vou fazer besteira e vou te beijar na frente da faculdade
inteira a qualquer momento. Então, sei lá! Dá um tapa na minha cara e sai correndo daqui, faz
qualquer coisa, mas não fica mais um segundo na minha frente se você não for deixar eu te beijar
de novo.
As palavras não saíam da minha boca. Não sei se era falta de resposta, se era meu corpo
fraquejando completamente ou se era só a dúvida do que fazer.
— Eu te puxei pela correntinha uma vez e você ficou assim?! — impliquei.
— A culpa não é minha se você tá a mulher mais gostosa do mundo vestida nesse blazer —
Mia disse, entre sussurros, perto da minha boca.
— Mia, isso aqui pode dar muito errado — falei, baixinho. — A gente tá escolhendo o pior
lugar possível pra se beijar de novo.
— A faculdade tá lotada. — Mia colocou as mãos, uma de cada lado do meu rosto, abaixo
das orelhas. — Esse prédio tá inativo hoje. Tá todo mundo ocupado, ninguém tá vendo… É o
melhor lugar, na verdade.
— Se isso der errado…
— Eu assumo o risco. — Ela chegou ainda mais perto da minha boca. — Agora para de
falar e me beija logo.
E assim o fiz. Porque a vida é assim. Beijar Mia de novo não era algo que eu pretendia
fazer hoje. Mas nem tudo que fazemos está previamente nos planos.
A biblioteca é um clichê de livros sobre paixões em segredo. Já li várias cenas do tipo e
sempre me perguntava se as estantes são fortes o suficiente para encostar uma pessoa com
ímpeto sem causar um estrago ao patrimônio literário. Hoje eu descobri que sim, quando minhas
costas tocaram a estante e ela não sofreu uma instabilidade sequer.
Se da primeira vez tinha tanto desejo, dessa tinha muito mais. A mão de Mia entrava pelo
meu blazer e pressionava minha cintura com força. Depois, descia para a minha bunda em
necessidade. As respirações e os batimentos acelerados eram a tradução do que o corpo sente em
relação ao que é escondido.
A adrenalina. O êxtase. A pressa. A Urgência.
O perigo.
Nunca fui fã de correr riscos, mas Mia Duarte era o perigo em pessoa. E isso me fazia
queimar por dentro.
— Mais uma vez… — comecei, depositando beijos delicados pela extensão do pescoço da
garota — eu tenho que ir.
— Quero muito saber quando vai ser o dia que você vai ficar pra depois — ela respondeu,
com o pescoço esticado, sentindo os beijos.
— Não depende só de nós. — Beijei a mandíbula dela.
— Mas bem que podia — respondeu, encarando minha boca.
— Podia — concordei, com um sorriso malicioso. — Tô indo — avisei, pegando o livro de
História da Arte.
— Boa sorte no estande — ela acenou, enquanto eu saía.
— Obrigada — respondi. — Tenta não morrer de saudades.
Nada como um dia de visitação finalizado com sucesso. Quando cheguei em casa, a primeira
coisa que fiz foi tomar um banho longo e relaxante, me desligando por alguns minutos de tudo
que eu tive para pensar no dia de hoje.
Mia… Como é possível que uma só pessoa te torne tão flexível nas suas decisões? Que um
toque desmonte alguém tão facilmente? Eu me sentia ridiculamente fácil.
Mas também me sentia bem pra caralho.
Fui para o quarto enrolada na toalha e peguei meu celular antes mesmo de vestir a roupa.
Foi quando vi o tamanho do problema em que eu tinha me metido.
Duas chamadas perdidas de Rafa. Uma chamada perdida de Lucas. Três chamadas
perdidas de Mia.
Uma nova notificação.

“Não deixaria isso vir parar aqui em um horário monótono, então hoje não foi em tempo
real. Mas tenho uma brincadeira pra fazer: O que é, o que é? Duas estudantes de Cinema
entrando no prédio fechado da biblioteca durante um dia de visitação na faculdade? Essa é a
mais fácil que eu já fiz, duvido vocês errarem. Até mais.
Anônimo”

Comentários (5):

@juugomes: CHIFREEEE
@gabheaven: Traição pura
@mathwus: que cara de pau meu pai do céu
@fabilopesz: Não faz nem questão de esconder, nojo!!
@dantrindade: quem acha que n teve chifre tá se fazendo de burro

Eu, honestamente, estava me sentindo a maior vadia do planeta.


Mesmo sabendo que Mia é solteira. Mesmo sabendo que as pessoas só não sabem disso por
minha causa. Mesmo que o meu caráter não seja um molde do que estão dizendo por aí. Eu me
sentia a pior pessoa do mundo.
E eu sabia pra quem eu tinha que ligar de volta.
“It’s easier holdin’ a grudge, I’d rather be angry than crushed”

To Well - Reneé Rapp

Eu não sabia a segunda lei de Newton, mas hoje eu aprendi a terceira: para todas as forças de
ação, surgem forças de reação com intensidades iguais. Isso significa que qualquer escolha mal
calculada vai ter uma consequência igualmente mal calculada.
O fato de Mia ter dado as caras no meu portão às nove da noite depois que liguei para ela e
disse que a gente precisava ter uma conversa pessoalmente, mostra que ela também sabia. Ela
sabia que, assim como prometeu, teria que assumir o risco.
Minha mãe tinha ido visitar minha tia. Minha irmã disse que ia para algum lugar que não
dei atenção antes de vir para casa, porque eu estava acelerada demais para processar.
Éramos eu, Mia Duarte, minha casa vazia e várias palavras prestes a serem despejadas
naquela sala de estar.
— Eu sei o que você vai dizer — Mia falou, de cabeça baixa.
— A gente teve essa conversa incontáveis vezes — comecei. — Eu perdi as contas de
quantas vezes eu disse que não podia acontecer. De quantas coisas eu estabeleci.
— Eu sei.
Ela respirou fundo.
— Você percebe, Mia? — Encarei ela. — Que até duas semanas atrás eu era uma ninguém
nessa faculdade e que agora tem gente que eu nem conheço me chamando de vagabunda na
internet? Não tem nem cinco dias, Mia, que eu falei pra gente sequer interagir na faculdade!
— A responsabilidade é minha, eu reconheço. Eu que comecei com isso.
— Agora, por causa da sua insistência, a gente tá na lama — falei. — Completamente na
lama. Porque você escolheu não me ouvir.
— Falando desse jeito, você faz até parecer que não queria e que a culpa é só minha —
Mia respondeu.
— E não é?!
— Ah, peraí! —Franziu o cenho. — Eu aceito o fato de que eu tive a péssima ideia e que
isso foi o maior erro que eu cometi. Mas eu não fiz nada sozinha, Aurora. E nem coloquei uma
arma na sua cabeça.
— Você não deveria nem ter cogitado a ideia, pra começo de conversa! — exclamei. —
Desde a primeira vez eu deixei muito claro…
— Claro?! — interrompeu. — Eu não sei o que você entende por clareza. Quando você
fala uma coisa e dá todos os sinais no caminho oposto, as coisas não estão claras. Você sempre
disse “a gente não deve”, “a gente não pode” “vai dar errado”, mas você nunca disse “eu não
quero”. E, olha só, não faltou oportunidade pra você dizer isso! Só hoje eu te pedi várias vezes
pra, caso não quisesse, dizer com todas as palavras ou pelo menos virar as costas e ir embora. —
Mia passou as mãos no cabelo com força e deu as costas, voltando logo em seguida. Seu dedo
indicador na minha direção, com decepção nos olhos. — Não aceito que você me coloque nessa
posição, Aurora. Não mesmo.
— Que posição? — perguntei, sacudindo a cabeça em confusão.
— De que eu queria sozinha esse tempo todo e você foi uma vítima! — exclamou. —
Francamente, Aurora. Nós somos adultas!
— Pera aí! — Ergui o dedo indicador. — Em momento algum eu me coloquei numa
posição de vítima. O que não dá pra negar é o fato de que alguém tem mais responsabilidade
aqui!
— Tá, que seja! Eu comecei, então isso tá mais na minha conta do que na sua, eu não ligo
de dizer isso! — rebateu. — Só que isso precisa ser a porra de uma competição de quem tá com
o problema? — questionou, irritada. — O que isso vai mudar? Tá igualmente ruim pra nós duas
agora!
—Igualmente?! — Gargalhei, incrédula. — Você ouviu o que eu disse agora pouco? Pouco
tempo atrás ninguém dava a mínima pra minha existência e agora olha bem onde eu tô. Você é
uma figura pública! As pessoas já falavam de você, por mais dolorido que isso seja.
— Me disse há uma semana que ninguém tinha que se acostumar com esse tipo de coisa e
que as pessoas são sanguessugas! Agora tá praticamente jogando na minha cara que tá pior que
eu, porque eu sou uma figura pública. — Mia riu irônica, com as mãos na cintura.
— Eu ainda acho que você não devia se acostumar, mas já parou pra pensar que eu tô
tendo que me acostumar do zero sem ter escolhido isso?! — esbravejei.
— Por que parece que tudo entre nós duas precisa ser uma disputa? — Mia reclamou. —
Tá! É uma merda pra você. Eu sei. Eu não duvido disso, Aurora. E eu não duvido justamente
porque eu conheço a sensação! Você tá se sentindo péssima agora? Eu tô me sentindo péssima
desde o primeiro momento que essa fofoca começou. Bastou uma discussão mínima com a
Larissa acontecer em público pra todo mundo deduzir que o problema era eu. — Mia falava alto,
mas seus olhos estavam marejados e a voz embargada. — O problema era eu que, obviamente,
tava traindo ela com a primeira pessoa que chegasse perto de mim e eles pudessem colocar na
história. Porque é claro que a culpa seria minha, né? E óbvio que eu não fui fiel com minha ex-
namorada. E, claro, óbvio que eu estaria pegando qualquer mulher que chegasse perto! É
exatamente isso que as pessoas esperam de mim e eu sei que você sabe bem o motivo pra isso…
— Mia respirou fundo. — Você quer mesmo brigar pelo último lugar?
— Eu te pedi pra não me fazer querer te beijar de novo.
— Mas você quis — cortou. — Assume isso, Aurora. Não é tão difícil. Eu não fiz você
querer. Você quis. E pronto. É simples.
— Eu acho que eu devia ter feito o que você disse — falei, encarando o chão. — Virar as
costas e não falar contigo até achar conveniente.
— Se essa é sua decisão, ainda dá tempo.
Completo silêncio por meio minuto até que a porta rangeu e minha irmã entrou, com uma
sacola de mercado na mão e uma expressão de completa confusão e preocupação no rosto por ver
a cena que havia acabado de encontrar.
— Não vou incomodar, Bela, eu já tô indo embora — Mia avisou, indo lentamente na
direção da porta. — Acho que é isso que sua irmã quer que eu faça.
— Talvez seja isso mesmo — respondi, de braços cruzados, acompanhando ela com o
olhar. Mia olhou para minha irmã com um sorrisinho sem graça e foi embora.
Bela e eu nos encaramos por alguns segundos.
— Você quer um chocolate? — ofereceu.
— Só me deixa.
Suspirei e fui para o meu quarto.
Estúpida, é isso que eu sou. Por me envolver nessa história desde o comecinho dela e
tomar tantas decisões impulsivas em cadeia.
Mia não estava errada, essa culpa era minha também. Mas eu não conseguia admitir e
aceitar. Eu e meu orgulho, do tamanho da galáxia. Eu tinha medo do que admitir tudo que
passava na minha mente poderia causar, porque eu não estava pronta para lidar com mais
consequências.
Como se fosse tranquilo lidar com as de agora.
Lição número um sobre a vida: não existe escolha perfeita. Toda escolha vai parecer muito
certa por vários motivos e muito errada por outros. Tudo o que você resolve fazer tem potencial
para ser incrível ou catastrófico na mesma proporção. E não dá pra saber. Simplesmente não dá.
Viver é encarar as nossas catástrofes mesmo quando não estamos preparados.
Eu acho que nunca estaria preparada para isso tudo.
Bela entrou no quarto e eu imediatamente enxuguei do rosto as lágrimas singelas de uma
ameaça de choro. Eu não queria que minha irmã se envolvesse nisso.
Ela se sentou na ponta da minha cama e encarou a parede do outro lado do quarto.
— Você lembra quando eu perdi a virgindade com o Ricardo, no segundo ano? —
perguntou.
— E ele espalhou pra todo mundo que você deu pra ele? — Eu estava encolhida na cama,
lembrando da história.
— É — Bela continuou. — Eu tinha dezesseis. No banheiro do terceiro andar escreveram
nas portas das cabines “Bela de Souza, a puta da 2004”.
— Você ficou na merda.
— Fiquei — ela concordou. — E depois de três semanas o Ricardo fez a mesma coisa com
outra garota e as pessoas esqueceram de mim.
— Você se sentiu melhor? — perguntei
— Não — ela respondeu com sinceridade. — Porque com a próxima ele fez ainda pior,
vazou nude e essas coisas.
— Quando melhorou, então?
Franzi o cenho, olhando para ela.
— Quando eu dei um soco na cara dele. — Ela soltou um arzinho pelo nariz. — As
pessoas vão esquecer, Aurora. Isso pode até não te fazer sentir melhor, mas você vai poder ir
atrás de resolver, se quiser — garantiu. — E sobre a Mia, é uma questão de dar tempo ao tempo.
E vocês duas pararem de ser orgulhosas.
—É — suspirei, ainda encolhida.
— Eu não tenho sido a melhor das irmãs — falou —, mas eu tô por aqui ainda. Tá?
— Obrigada.
Bela deu um breve sorriso, levantou e saiu do quarto.
E foi aí que eu chorei de verdade.
“I disrespected you, jump in feet first and I landed too hard”

Little Freak - Harry Styles

— Eu sou a pior pessoa da face da terra — falei, antes de bater com o copo americano na mesa
de madeira do bar.
Fazia duas semanas que Mia e eu não nos falávamos ou sequer trocávamos olhares, mas é
claro que não demorou nem metade disso para eu me dar conta de que fui completamente
babaca, jogando a culpa em cima dela por tudo que aconteceu.
— Você foi uma megera, mas não é pra tanto.
Lucas virou o resto da cerveja.
Era nosso terceiro litrão da sexta-feira a noite, quando meus amigos praticamente me
tiraram de casa forçada, porque eu estava ocupada demais me martirizando por ter sido… bom,
como Lucas disse, uma megera.
— Eu tava frustrada pra caralho, larguei tudo na conta dela e isso foi muito injusto —
admiti, colocando mais bebida no copo.
— Foi mesmo — Rafa concordou. — Só que passar seus próximos dias chorando e se
lamentando dentro do quarto não vai mudar muita coisa.
— A gente precisou fazer uma intervenção — Lucas disse. — Pro seu próprio bem.
— Não sei o que seria de mim sem vocês — ri de leve, bebendo metade do copo em um
gole só.
— Mas acho que já deu de falar de Mia Duarte por hoje, né? — Rafa falou. — Luquinhas,
como vão as coisas com nosso querido Pedro?
— Melhor que nunca — Lucas contou, sorridente. — Ontem a gente saiu da faculdade e
foi passar a tarde no shopping. Eu me senti adolescente, sabe? Somos dois homens pretos e gays,
a gente não vive essas coisas quando é novinho.
— Fico tão feliz por vocês. — Dei um sorriso com o queixo apoiado na mão. — Mesmo
que ele nunca esteja com a gente nessas saídas — apontei.
— Ele adora vocês, mas ele morre de medo de atrapalhar. — Lucas bebeu um pouco de
cerveja. — Claro que eu falo sempre que não tem nada a ver, mas ele insiste que esses rolês são
algo nosso e que ele não quer interferir.
— Tudo bem ele não estar com a gente sempre, mas tudo bem ele vir de vez em quando, a
gente não vai achar ruim — Rafa disse. — Gosto dele.
— Eu também! — acrescentei. — Se ele tiver envolvimento nesse caos vai ser triste
demais.
— Ai, Aurora — Lucas revirou os olhos. — Vamos tentar não começar com isso outra
vez?
— Foi mal. — Suspirei. — É que… tá foda. Você sabe.
— Lucas, pensa também — Rafa se compadeceu. — A gente quer acreditar que o Pedro
não tem nada a ver com essa história, mas agora a Aurora não tá nessa só por causa da Mia mais.
O que tem sido dito ultimamente é muito cruel.
Nas últimas duas semanas eu vinha recebendo os piores olhares e ouvindo os mais variados
tipos de comentários. O período estava começando a ficar mais puxado e, consequentemente, eu
não poderia ficar faltando aula. O que me fazia lidar com isso ininterruptamente.
— Inclusive, a gente precisa urgentemente fazer alguma coisa, tipo, socialmente falando
— disse Lucas. — Mas longe dos núcleos onde tem gente da faculdade, porque só no tempo que
a gente tá aqui nesse bar eu juro que vi umas cinco pessoas da faculdade entrando e saindo.
— Pelo menos ninguém que tenha parado pra vir aqui me chamar de vadia. — Bebi o resto
da cerveja no copo. — Não sei se tô lá tão afim de curtição, gente.
— Vai desperdiçar a oportunidade de viver intensamente num momento em que você não
tem nada a perder pra ficar se lamentando que foi injusta com Mia Duarte? — Rafa arqueou a
sobrancelha. — A mesma Mia Duarte que pouco tempo atrás você xingou na frente do curso
inteiro?
— A diferença é que antes a babaca era ela e agora a babaca sou eu.
— E quando a babaca era ela, por acaso, ela ficou chorando pelos cantos? — Lucas cruzou
os braços. — Tá na hora de parar de ser tapada, amiga.
Bom, errado ele não estava.
— É — assenti. — É mesmo.
— Então que tal se a gente for num rooftop muito bacana lá na Lapa amanhã, hein? —
Rafa perguntou, animada.
— Falou em rooftop e não cobertura ou terraço o meu interesse já cai consideravelmente…
— Lucas julgou. — Mas, como é na Lapa e não na Zona Sul, dá pra lidar com isso.
— Você não barrar a ideia de cara já é meio caminho andado. — Rafa respirou aliviada. —
Faz um mês que eu quero ir lá. E você, Aurora? O que acha?
— Despencar até a Lapa… — ponderei, com expressão de indisposição. — Não sei não.
— Bora, amiga!— Lucas incentivou. — Não é algo que a gente faça sempre. Não vai ter
ninguém da faculdade, a gente vai se divertir e você pode se distrair e beijar umas bocas.
— A parte de beijar umas bocas é até um pouquinho atrativa. — Me fiz de difícil.
— Para de charminho, Aurora! — Rafa revirou os olhos, dando risada. — Vamos, por
favor!
— Tá, vocês venceram! — exclamei. — Eu vou.
Lucas e Rafaela brindaram em comemoração e eu dei um sorrisinho. Acho que nos últimos
dias eu tinha esquecido que eventos sociais me deixavam feliz.
Quando a gente se submete a muitas situações nas quais o ato de errar é inaceitável, a gente
carrega uma culpa muito grande. E a culpa é um ciclo vicioso. Depois daquela discussão, eu me
martirizei muito por ter errado com a Mia e, por isso, achei que não tinha direito de viver em paz
depois de vacilar tão feio. Em diversos momentos em que eu pensava em deixar isso de lado para
viver e me distrair, um bloqueio.
Eis o ciclo.
A culpa pela culpa ou, nesse caso, pela ausência dela. Por algum motivo, era a primeira vez
em que eu não estava me sentindo mal.
No sábado à noite, vesti minha roupa favorita. Calça cargo jeans verde militar, regata preta
e jaqueta jeans da mesma cor da camisa. Estava tão empolgada que fiz até algo que eu costumo
julgar: óculos escuros a noite pra compor look — em minha defesa, eu deixei na cabeça.
Lucas, Rafa e eu subimos animados e prontos para aproveitar a noite ao máximo. Essa
festa tinha tudo pra dar certo.
Até eu avistar Mia Duarte no centro da pista de dança.
“Mas não é porque eu te odeio que eu não posso mais beijar sua boca”

Pilantra - Jão ft. Anitta

Eu tinha duas opções.


Eu poderia surtar e deixar isso me abalar completamente. Encher a cara de caipifruta até
não aguentar mais e acabar essa noite chorando no banheiro e contando para alguma estranha
todos os acontecimentos mais recentes da minha vida, acompanhado do fatídico "amiga você é
linda", hit número um em banheiro de balada.
Ou, por outro lado, eu poderia viver a minha noite fingindo que Mia era só uma pessoa
aleatória que eu nunca vi na vida e curtindo normalmente como se nada estivesse acontecendo.
Já chorei por duas semanas.
Hoje eu escolho a segunda opção.
— Vem, amiga! — Rafa me puxou para o bar. — Vem beber e esquece que ela tá aqui.
— Mas não enche a cara, não. Se não vai dar merda — Lucas avisou.
— Vou beber só um shot, relaxem — tentei tranquilizá-los. — Me conheço o bastante pra
saber quando não ficar bêbada. — Dei risada.
Rafa, Lucas e eu bebemos, cada um, uma dose de tequila. Eu pararia em uma, os dois eu
não garanto. O DJ tocava “Leilão”, da Gloria Groove, e o espaço já estava cheio e animado. O
mínimo que eu esperava, a se considerar que nós chegamos duas horas depois do horário que de
fato começava.
Acabou “Leilão” e começou a tocar “Ensaio das Maravilhas”. Bom, é claro que Lucas e
Rafaela me puxaram para a pista desesperados. A mesma pista onde estava Mia Duarte. Mas eu
fingiria que não.
A melhor coisa que o Pedro Sampaio fez na carreira dele foi trazer o Bonde das Maravilhas
pra fazer um feat, e olha que ele fez muitas coisas boas na carreira dele, porque todo mundo fala
do autotune, mas no fim das contas todo mundo dança depois.
E lá estava eu, inclusive. Dançando como forma de gratidão pela existência de uma música
tão boa. Acho que a Aurora adolescente também ia adorar essa história de bater a bunda no
calcanhar.
Quando levantei, percebi que Mia me olhava de relance e disfarçou. Ela usava uma calça
preta e uma camisa de botão azul marinho, que estava aberta mostrando o top branco que vinha
por baixo. Ela estava um verdadeiro monumento; mas um monumento que eu não podia olhar
demais.
Quando me virei, uma menina veio falar comigo. Tinha cabelos longos e castanhos lisos e
usava uma blusa de tule preta de manga longa, também uma saia de couro preta com uma fenda
lateral.
— Oi, qual seu nome? — perguntou, chegando perto do meu ouvido.
— Aurora, e o seu?
— Camila — respondeu. — Tava te olhando e te achei muito bonita.
— Você também é linda.
— Quer me beijar? — ofereceu.
— Claro.
Beijos em festa com alguém que você acabou de conhecer são, definitivamente, simples. O
que não significa que sejam ruins. Bom, alguns são. O beijo de Camila era uma delícia. Era o
tipo de beijo que em um dia típico me faria ficar de casal só para beijar mais.
Em um dia típico.
Camila foi no mesmo pé que veio. Quem também foi, de repente, foram Lucas e Rafaela,
que estavam lá do outro lado pegando bebida no bar antes que eu me desse conta. A música da
vez era “Ela é do Tipo”, do Kevin O Chris. Atemporal.
Olhei para o lado rapidamente e não consegui acreditar no que vi. Mia estava beijando ela,
e apenas ela: Camila, a garota que eu tinha acabado de beijar. Saí de perto e fui até o bar.
— Acabei de beijar a menina e a Mia tá lá beijando ela — falei, indignada com Rafa. —
Vê se pode!
— Você tá com ciúme de qual das duas? — Rafa debochou. — Seja lá qual for a resposta,
é bem vergonhoso, se parar pra pensar.
— Não tem ciúme, é só…
— Só o que, amiga? — perguntou, descrente.
Como se o DJ pudesse nos ouvir naquele momento, a música da vez era, nada mais, nada
menos que “Nada Contra”, da Clarissa.
— Bom, acho que isso vale como resposta. — Rafa riu. — Esquece isso, amiga. Bora
curtir, anda!
Resolvi ouvir Rafaela e, mais uma vez, deixar isso de lado. E por duas horas, eu de fato
vivi a festa. Dancei, beijei, ri e, no fim das contas, esqueci que Mia Duarte estava ali.
Por duas horas.
A música que começava agora era “Sem Filtro”, da IZA. Poderia ter sido só mais uma das
inúmeras da noite. Uma música qualquer tocando. Mas quando Mia Duarte começou a dançar eu
soube que nada nunca mais faria essa música ser uma música qualquer.

Hoje eu tô pensando em você


Em tudo que cê sabe fazer
Depois eu já não sei te dizer
Mas eu te quero sem maldade, baby
Eu fiquei vidrada, assumo. Os movimentos de Mia eram marcados. Intensos. Ela chamava
atenção e provavelmente mais gente estava encarando, mas eu não fazia a mínima questão de
tirar os meus olhos dela para conferir.

Hoje eu quero boca a boca


R&B com pouca roupa
Fica louco, eu fico louca
Fica louco, eu fico

Ela esbanjava sensualidade em cada passo, cada jogada de cabeça e cada passada de mão.
E era algo completamente natural. Não tinha esforço.
Era só ela.

A gente junto é mó parada, a gente não presta


Zero compromisso, se for sempre assim, nós fecha
Entra nesse quarto sem intenção de ficar
Não vejo problema em não querer se apaixonar

Quando as pessoas pensam em uma mulher dançando de forma sensual, automaticamente


vêem a imagem de uma mulher que performa feminilidade. E isso não parte só de homens, nem
só de pessoas hétero ou cis. Uma lésbica desfem que dance, como a Mia disse no apartamento,
não é algo que é naturalmente esperado, muito mesmo até dentro da comunidade. Existe um
“papel” pré definido na cabeça das pessoas. É por isso que Mia dançar sensualmente não é o
esperado dela. É por isso que o esperado dela, por exemplo, é que traia sem escrúpulos a
namorada. E ela sabe disso.
E eu também sei. E, justamente por saber, o meu erro fica muito pior.
Era hora de correr atrás. E eu percebi que teria abertura para isso quando, ao fim da
música, ela olhou nos meus olhos, sorriu e foi ao banheiro.
— Vai amiga — Lucas disse, como se lesse pensamentos. — Vai atrás dela. A gente te dá
o aval.
Saí apressada para o banheiro como se minha vida inteira dependesse disso. Meu coração
estava acelerado, prestes a saltar pela boca.
Entrei no banheiro preto e roxo e Mia estava parada, com as duas mãos apoiadas na pia,
me esperando.
— Achei que demoraria mais — ela disse, me olhando pelo espelho. — Orgulhosa como é.
— Você tava certa — falei de prontidão. — Eu quis tanto quanto você. Eu quero tanto
quanto você.
— Você com certeza bebeu pra admitir isso com tanta facilidade.
Ela riu fraco.
— Bebi — menti. Eu estava baixando a guarda, mas ainda não tanto assim —, mas não é
justamente quando a bebida entra que a verdade sai?
— Isso é você quem tá dizendo. — Deu de ombros.
— Você também bebeu, né? — Cruzei os braços. — Você tá há duas semanas sem falar
comigo, não estaria aqui tranquila assim tão fácil.
— Bebi — falou com desdém, ajeitando a frente do cabelo. — E, só pra constar, eu ainda
tô com raiva.
— E você tem direito — falei. — Fui uma megera com você, isso foi egoísta.
— Foi mesmo.
— Me desculpa. Eu me importei demais com o lugar que estava sendo submetida e esqueci
de me importar com a gente.
— A gente? — Mia deu um sorrisinho de lado.
— Com você — corrigi rapidamente. Ato falho. — Eu quis te beijar daquele jeito o dia
inteiro, por isso não virei as costas. Então a culpa não foi sua.
— Não sei se tô muito convencida…
— O jeito que fiquei te olhando não te convenceu o bastante? — falei, parando atrás dela,
olhando ela pelo espelho. — A propósito, você é muito boa no que faz.
— Obrigada pelo elogio. Mas não — respondeu, devolvendo o olhar —, não me
convenceu.
— O que você quer que eu faça, hein? — perguntei com um sorrisinho de lado. — Que me
ajoelhe aos seus pés e diga o quanto eu quis te beijar esse tempo todo? O quanto eu quis que tudo
que aconteceu de fato acontecesse?
— Não é pra tanto. — Mia riu fraco, se virando de frente para mim em seguida. — Seria
bem divertido, confesso. Mas não. Eu não quero palavras, Aurora. Preciso de mais do que isso
para me convencer.
Respirei fundo, pensando. E, então, veio um pensamento intrusivo que eu escolhi não
dispersar.
Olhei para as cabines. Vazias. Foi quando tomei a decisão de puxar Mia pela cintura para
dentro de uma delas e tranquei a porta.
— O que você tá fazendo? — ela perguntou, surpresa.
— Te dando o que você precisa — respondi, antes de encostar ela na parede da cabine e
beijá-la.
Não era um beijo como os outros que tive com Mia. Tinha mais fogo, mais urgência e
também mais raiva. Mia segurava na minha nuca como se estivesse com ódio do tempo que levei
para admitir. Para fazer isso. Para mostrar que meu desejo por ela já ia além do que se
imaginava. E eu demonstrei isso das formas que podia ali. Apertando a cintura dela. Descendo a
mão pela bunda e pela perna, puxando uma delas pra cima para encaixar no meu quadril.
Apertando de leve o seio dela com a mão livre. Beijando toda a extensão de seu pescoço até a
clavícula.
— Vamos sair daqui — Mia pediu, com urgência. — Por favor.
Dei um sorriso orgulhoso, porque pensei que não teria a chance de ouvir ela dizer essas
palavras nunca.
— Pra onde a gente vai? — Destranquei a porta, sem pensar muito.
— Só me segue — ordenou, pegando minha mão prestes a abrir a porta para sairmos da
cabine.
Puxei ela rapidamente para mais um beijo.
— Você também não bebeu, né? — perguntei, sussurrando.
— Nem uma gota. — Ela deu um sorrisinho e me puxou para fora de lá.
Mia me levou para a garagem, abaixo do térreo do prédio. O carro dela era um dos únicos
lá a essa altura.
— Pra onde a gente vai?
Mia ainda me puxava pela mão.
Então, ela destrancou o carro e abriu a porta de trás, entrando.
— Pra lugar nenhum — respondeu, me esperando entrar.
— Mia… — Dei uma risada fraca, entrando no carro e fechando a porta, tirando meu
óculos da cabeça e colocando no bolso do banco — Você é inacreditável.
Mia me puxou para o colo dela.
— Eu não consigo esperar, Aurora — assumiu, aproximando o rosto do meu. — Eu
preciso de você agora. Você não acha que a gente já esperou demais?
— Eu não acho — respondi, e me aproximei do ouvido dela. — Eu tenho certeza.
Beijei Mia Duarte com necessidade. Com intensidade. Cheguei o quadril para frente, para
que nossos corpos colassem ainda mais, como se fosse possível. Mia segurava com firmeza
minha cintura por baixo da jaqueta preta, o que me deu o incentivo para tirá-la de uma vez,
jogando no encosto do banco do carona com pressa.
Qualquer toque de Mia arrepiava meu corpo inteiro com facilidade, seja o toque da língua
dela de encontro à minha, dos lábios dela junto aos meus, da mão dela passeando pelo meu corpo
ou o corpo quente dela tão unido a mim.
Mia subiu a mão lentamente e pegou no meu pescoço, dando uma enforcada de leve.
— Você me tirou do sério nessas últimas semanas — falou, me olhando com atenção.
— Bom, você me tira do sério há um pouco mais de tempo que isso, então…
— É uma competição, então?
Arqueou a sobrancelha.
— Não precisa ser mais — levantei as mãos em rendição —, mas, se a gente for falar de
justiça…
— Relaxa — Mia riu, tranquila, puxando minhas mãos de volta para o corpo dela. — Você
vai ter a oportunidade de me tirar do sério daqui a pouco. Só, talvez, não como você gostaria.
— Mais uma vez você tá errada — falei, fazendo carinho na nuca dela. — Acho que é bem
como eu gostaria.
Não tem nada no mundo como sexo de reconciliação.
Mia me puxou para um beijo com voracidade, me dando mais um gostinho da boca dela na
minha antes que ela iniciasse uma trilha pelo meu pescoço. Um calor percorria minha espinha
conforme ela afastava minha camisa para descer com os beijos. Eu sabia qual era o próximo
passo e sabia que a partir dele, não responderia por mim. Mia tocou a barra da regata com
intenção de puxar ela pra cima.
— Tenho medo da minha cabeça querer você tanto quanto o meu corpo quer — deixei sair
de uma só vez, olhando nos olhos dela.
— E será que seria mesmo tão ruim assim?
A garota subiu delicadamente minha blusa e aproximou o rosto dos meus seios, esperando
permissão. Toquei nos cabelos dela e a guiei para o lado esquerdo, onde ela rapidamente se
estabeleceu, me fazendo arfar quando senti sua boca quente no meu mamilo.
Mia alternava entre os seios, sempre usando a mão para estimular o que estivesse livre.
Meu corpo produzia sensações que eu não sabia explicar ao certo, mas acho que nunca senti nada
parecido antes.
Isso ia muito além do que eu sonhei.
Ela foi descendo a mão que estava no meu seio lentamente, deslizando as pontas do dedo
pelo meu abdômen até a calça, onde ela cuidadosamente abriu o botão e o zíper. Ela me
pressionou levemente por cima da calcinha. Molhada. Se ela estivesse me olhando, veria um
sorrisinho envergonhado, mas a boca dela seguiu ocupada por mais alguns instantes enquanto
sua mão se movimentava em provocação.
Mas Mia não perdeu tempo em olhar para o meu rosto quando a mão dela foi por dentro da
minha calcinha e os dois dedos dela dentro de mim. Deixei escapar o primeiro gemido e Mia
abriu um sorriso malicioso de orelha a orelha, começando a movimentar os dedos
gradativamente. Quando a garota encontrou o ritmo, joguei a cabeça para trás e fechei os olhos.
Com a mão livre, ela pegou no meu queixo e me direcionou para ela.
— Olha pra mim — ordenou firme, olhando nos meus olhos.
Meu corpo inteiro se estremeceu quando ela pediu isso. Ela queria me ver com baixa
guarda, vulnerável, principalmente sendo ela o motivo de tal vulnerabilidade.
Mia acelerou os movimentos e mais gemidos escapavam enquanto eu mexia meu quadril
por cima dela, chegando cada vez mais perto do ápice. Ela não tirou os olhos de mim nem por
um segundo, assim como o sorriso maldoso não deixou o rosto dela. Quando o momento chegou,
minhas pernas bambearam, minha respiração descompassou o dobro e meu corpo despencou
sobre ela.
— Você perde muito mais do que ganha se fica sem falar comigo…
Mia mexeu em meu cabelo.
— Você é tão convencida que eu quase me arrependi — respondi, indo para o lado dela.
— Ah é? — falou, desconfiada.
— Quase — ressaltei, com um sorrisinho.
— Isso abre margem pra gente repetir isso aqui depois, então? — perguntou, perto do meu
ouvido.
— Achei que eu fosse a das conversas sérias em momentos inoportunos, não você. —
Franzi o cenho. — Você não acha que a gente ainda tem coisa mais interessante pra fazer?
— Sem dúvida… — Mia jogou o corpo para trás, deitando no banco, e me puxando para
perto.
Toda vez que ela me beijava com tanta vontade meu corpo ficava prestes a entrar em
ebulição. Assim como com as reações que ela esboçou quando tirei dos ombros dela a camisa
azul. Ou quando desci as alças do top branco. Ou quando acariciei os seios dela enquanto olhava
ela ficando ofegante. Quando minha boca encostou neles com vontade. Quando ouvi ela gemer
pela primeira vez. Quando ela, apressada, guiou minha mão onde ela queria.
Comecei com movimentos circulares, acompanhando as feições de Mia para saber o que
ela queria. Acelerei e aumentei a pressão, mas ela queria mais. Quando coloquei dois dedos nela,
ela me puxou para ainda mais perto, deixando a boca praticamente encostada ao meu ouvido.
Acho que eu seria capaz de chegar ao meu ápice de novo só ouvindo Mia Duarte ali,
gemendo para mim, e sentindo ela rebolar contra a minha mão.
Quando alcançou o clímax, ela relaxou todo o corpo e me chamou para aconchegar o corpo
no dela.
— Ótima maneira de me tirar do sério, pode usufruir dela mais vezes — disse, me olhando
com um sorrisinho.
— Falando em outras vezes… — comecei.
— Ah, não! — Mia reclamou. — De novo não!
— Você não me deixou falar, calma aí… — Comecei a rir. — Eu só ia dizer que tô de
acordo.
— Jura?!
— Acho que não fazer nada só nos fez lidar com vontade acumulada. E ter problemas —
acrescentei.— A gente pode se deixar levar de vez em quando, e aí na faculdade vai ser mais
fácil.
— E aí a gente consegue voltar a fazer nosso documentário em paz, já que perdemos duas
semanas pra ele — lembrou.
— Eu nem me toquei! Que merda… — Suspirei, frustrada. — A gente vai ter que correr
contra o tempo. E falando em tempo… — Olhei no celular enquanto me ajeitava no banco. —
Tenho que ir atrás do Lucas e da Rafa.
— Tudo bem — respondeu, se ajeitando também. — Acho que já vou partir daqui.
— Encerrando a noite cedo?!
— Acho que já fechei ela com chave de ouro, princesa.
Mia deu um sorrisinho, deixando a boca perto da minha. Dei um selinho demorado nela,
peguei minha jaqueta e ajeitei minha calça.
— A gente se vê, então — falei, abrindo a porta e saindo do carro.
— Não some de novo, hein? — Ela saiu logo atrás de mim, abrindo a porta do motorista.
— Não cometo o mesmo erro duas vezes, gatinha. — garanti, antes de virar as costas e ir
embora.
Um final de noite inesperado, sem dúvida. Eu ia pensar nesse momento ininterruptamente
até dormir, porque agora, mais do que nunca, meu corpo clamava por Mia Duarte.
E eu acho que a minha cabeça estava começando a clamar também.
“Você me deixa assim tão vulnerável”

No Teu Pescoço - Bruna Magalhães ft. Rubel

Acordei de bom humor no domingo de manhã. Por que será, né?


Dessa vez cada um dormiu na sua própria casa, o que não me rendeu horas tendo que falar
sobre Mia e a situação-do-carro para Lucas e Rafaela. Mas claro que eles ainda me alugariam
sobre isso.
Eram oito e dezesseis quando despertei. Olhei para o lado e Bela estava acordada, sentada
na cama e mexendo no celular com uma toalha na cabeça.
— Garota, você madrugou? — perguntei. — De cabelo lavado tão cedo.
— Só aproveitei o calor. — Ela revirou os olhos.
Nas últimas duas semanas o humor de Bela vinha piorando gradativamente e,
consequentemente, ela interagia cada vez menos e passava mais tempo fora de casa. O suficiente
para enlouquecer dona Sandra que, com mais alguns dias dessa agonia, começaria a pensar que
minha irmã já estava de casa nova alugada.
Tomei um banho rápido para acordar e fui comer meu café da manhã: torradinha com
manteiga. Preparei, sentei no sofá com o prato para comer e meu celular começou a vibrar. Mia
me ligando logo cedo?
— Com saudade já? — perguntei ao atender, com um sorriso no rosto.
— Bom dia, princesa — ela respondeu, animada. — Eu tenho uma notícia boa e uma não
tão boa assim. Qual você quer primeiro?
— Lá vem — falei. — Quero a não tão boa.
— Bom, a notícia não tão boa é que você esqueceu um belo par de óculos escuros no meu
carro essa noite.
— A notícia boa é que você vai pegar ele pra você, pelo jeito — debochei.
— Infelizmente não, mas poderia — respondeu. — A boa notícia é que, como você vai ter
que buscar, já que na faculdade não posso entregar, você pode aproveitar esse lindo dia
ensolarado pra pegar uma piscina comigo.
— Meu Deus, você não se aguenta mesmo de saudade, cara — falei, rindo.
— Não é nada disso que você tá pensando, tá? — Mia se defendeu. — Ia até sugerir de
você chamar sua irmã.
— Olha que ela vai, hein? — falei. Mia ainda não sabia que nossa relação estava
conturbada ultimamente. — Minha irmã moraria numa piscina se fosse possível, então se você
tem outras intenções é sua última chance de voltar atrás.
— Pois não vou voltar atrás, pode falar com ela — assegurou.
— Então tá ótimo — respondi. — Quando sair de casa te aviso.
— Tá bom — Mia parecia estar sorrindo. — Até mais, gatinha.
Desligamos e eu fiquei parada por alguns instantes, encarando o telefone. Tem certas
coisas com as quais vou demorar a me acostumar.
— Bela — falei, entrando no quarto. — Mia chamou a gente pra piscina. Você quer ir?
— Não. — Ela respondeu, sem hesitar. — Não to afim de piscina.
— Olha, eu sei que você tá meio assim ultimamente, mas se fechar e não fazer as coisas
que você gosta não vai ajudar — aconselhei, enquanto pegava itens de piscina e colocava na
mochila.
— Já falei que não quero, Aurora! — cortou. — Será que você pode parar de tentar me
ajudar o tempo todo e deixar eu resolver meus problemas sozinha?!
Chega. Eu não tinha mais saco pra aguentar os desaforos da minha irmã.
— Tá, Bela! — exclamei. — Que se foda, então! Tô desde o começo tentando ser legal
contigo e você só me trata mal, cansei. Faz o que você quiser, não vou mais ficar no seu pé não
— falei, fechando o zíper da mochila agressivamente. — Tenha um bom dia.

Saí tão estressada que quando cheguei na casa de Mia ainda não tinha relaxado o rosto de tensão.
— Achei que chegaria aqui mais feliz — Mia comentou, estranhando quando passei pela
porta. — Sua irmã não quis vir?
— Tá cada vez mais difícil saber o que ela quer ou não quer. — Suspirei. — Será que eu
posso desabafar?
Eu me senti estranha por estar tão confortável a ponto de querer me abrir com ela.
— Sempre — Mia falou. — Vamos pra piscina e a gente conversa lá? Ou você prefere
ficar um pouco aqui?
— Não, vamos lá — topei. — Preciso dar um mergulho.
Depois de vestir o biquíni, sentei na escadinha e coloquei o pé na água.
— Vai entrar pela escadinha? — Mia julgou, já de dentro da piscina.
— É porque tá gelada demais pra pular — justifiquei, virando de frente pra escada pra
começar a descer aos pouquinhos.
— Quanto mais devagar você entra, mais demora pra acostumar com a temperatura —
comentou. — Entra de uma vez.
— Sem chance — recusei, entrando até a água bater na metade da coxa e sentindo a água
fria.
— Mergulhar com medo não é mergulhar de verdade, Aurora — falou. — Vem, eu te
esquento.
Respirei fundo criando coragem para entrar de uma vez. Quando meu corpo afundou e a
água alcançou meus ombros, Mia me abraçou por trás pela cintura e juntou o corpo do meu. O
frio de todo o meu corpo pareceu se juntar para se tornar um enorme frio na barriga.
— Viu? — Sorriu. — Foi tão ruim assim?
— Não…
Dei um sorrisinho.
— Agora fala… — Ela me soltou para que eu virasse de frente. — O que você quer
desabafar?
— Minha irmã tá esquisita há semanas — contei. — Tá distante, me tratando mal, não faz
mais brincadeirinha, não para em casa… Tô irritada. Ela me dá uma patada hora sim, hora não. E
tô preocupada, também. Ela não é do tipo que desabafa com todo mundo, mas comigo ela
sempre falou. E agora ela não fala comigo e eu fico pensando que ela vai sucumbir sem ajuda.
— Será que não é saudade do pai de vocês? — Mia sugeriu.
— Tem um pouco no meio, mas duvido que seja só isso — falei. — O que me tranquiliza é
que Bela não é do tipo que encheria a cara pra ignorar os problemas. — Mia franziu o cenho para
mim. — Sem ofensa. Droga então, sem chance. Minha irmã é careta, caretíssima.
— E se isso tem semanas, o que te deu esse ímpeto de desabafar agora? — Mia perguntou,
envolvendo os braços no meu pescoço.
— Brigamos antes de eu sair — contei. — Ela disse pra eu parar de tentar ajudar e eu falei
que cansei, pra ela fazer o que quiser. — Quando falei em voz alta, me dei conta. — Fiz errado,
né? Não devia ter respondido no mesmo tom.
— Ninguém precisa ouvir tudo calado, Aurora. Você cansou, e tá tudo bem. Sua irmã é tão
adulta quanto você. Ela não precisa que você cuide dela o tempo inteiro. Nem é responsabilidade
sua, na verdade.
— É… — Suspirei, abraçando a cintura dela. — Você tem razão.
— Você pode repetir isso de novo quando eu tiver com o celular na mão? — brincou. —
Pra eu poder gravar. Você não diz isso sempre.
— Você é bobinha, né? — Ri. — Pra sua informação, tô escolhendo deixar o orgulho de
lado ultimamente.
— Ah, é? — perguntou. — Então isso significa que, se eu passasse a te convidar, tipo, uma
vez ou outra, pra ir pra Copacabana comigo, você toparia?
— Talvez…
Dei de ombros.
— Mesmo se o objetivo for que sejam… Encontros?
Meu estômago estremeceu.
— Eu tô de acordo — respondi, com um sorrisinho. — Não vai dar problema com a sua
mãe?
— Ela me ligou ontem e disse que vai passar uma temporada gravando em Brasília pra
uma novela — explicou. — O caminho tá livre e lá ninguém vai criar problema. A gente fica
longe, sabe?
— Eu acho ótimo, mas… — Respirei fundo. — Uma hora você vai ter que contar que
terminou. Você sabe disso, né?
Estava começando a me importar com isso um pouquinho.
— Na hora certa eu vou contar — assegurou. — Não posso esconder pra sempre.
— É — concordei. — Você me chamou aqui pra gente estabelecer isso, então?
— E pra te devolver seus óculos — falou. — Fora isso, pra que mais seria?
— Pra isso aqui — disse, antes de puxar Mia para mais perto pela cintura e dar um beijo
demorado nela.
— Acho que isso tá mais pra um bônus, sabe? — Ela abriu um sorriso. — A propósito esse
biquíni te caiu muito bem.
— Escolhi o mais bonito que eu tenho.
— Fazendo tanta questão assim de me agradar?
— Você tá colocando palavras na minha boca — Me defendi.
— Foi só uma pergunta inocente.
Deu de ombros.
— Seu biquíni também te deixa uma gostosa. — Sorri.
— Você já tinha visto ele, né? Na praia, aquela vez. — Lembrou.
— A primeira vez que você tirou meu sossego, você quer dizer? — Cruzei os braços,
fitando a garota.
— Não sabia que um simples biquíni podia te tirar o sossego, mas se você tá dizendo, eu
fico até honrada. — Ela abriu um sorriso largo, orgulhosa de si.
— Para de ser sonsa, garota! — Revirei os olhos. — Tava bem bonito, mas não é pra tanto.
— Então você já reparava em mim? — Mia questionou, surpresa. — Bom saber.
— Não foi isso que eu disse. — Dei um sorrisinho debochado.
— Tá tudo bem assumir isso, Aurora. — Ela deu de ombros. — Dizer que você pensava
em mim e sonhava comigo toda noite não vai te matar.
— Foi uma vez só, na verdade.
Falei baixinho, pensando que Mia não ouviria.
Bom, é óbvio que ela ouviu.
— É o que?! — exclamou. — Tá zoando?
— Vou dar uma nadadinha pra lá. — Apontei para o outro lado da piscina e saí nadando,
fugindo da conversa.
— Aurora! — Mia veio nadando na minha direção. — Isso é sério? Fala! — Ela gargalhou.
— Não vou falar mais sobre isso! — Balancei a cabeça. — Você vai morrer querendo
saber.
— Eu vou morrer mesmo, minha pressão até subiu — Mia exagerou. — Olha meu olho
piscando!
— Nem começa com essa, você sabe que não vai colar.
— Só me fala uma coisinha, então! — implorou. — Uma. Só uma pergunta e eu nunca
mais toco no assunto.
— É uma proposta imperdível — ponderei. — Tá. Pergunta então, Mia.
— A vida real… — Mia apoiou as duas mãos na borda da piscina atrás de mim — foi tão
boa quanto o sonho?
Relembrei a noite anterior: os beijos. Os toques. Os sussurros.
— Foi muito melhor — admiti de cara.
— Isso é pra encher minha bola?
— Você disse que nunca mais tocava no assunto…
— O assunto, tecnicamente, não acabou — argumentou.
— Talvez — respondi. — Você anda merecendo.
— O que eu tenho que fazer pra continuar assim? — Ela encarou minha boca.
— Me beija de novo e a gente pode descobrir — respondi, olhando a boca dela também.
A mão de Mia passeando pelo meu corpo com bem menos peças de roupa do que ontem
era o suficiente para me fazer perder o fôlego. Ela sabia exatamente quais lugares tocar, de que
jeito e quando. Ela também sabia exatamente como reagir a cada um dos toques que eu oferecia
em retorno.
Mia Duarte tinha a segurança de quem sabia o que estava fazendo e de quem sabia que
podia colocar qualquer um na palma da mão. Inclusive eu.
— Eu acho que aquela espreguiçadeira ali na frente deve ser muito mais confortável que a
piscina.
— A gente precisa começar a usar lugares mais comuns nas próximas vezes — considerei.
— Gosto do uso do plural nessa frase. — Mia abriu um sorriso largo, mordendo os lábios.
O ato de sair da piscina foi tão apressado que em um piscar de olhos eu já estava com o
corpo na espreguiçadeira. E Mia por cima de mim. Descendo lentamente e sem tirar os olhos dos
meus. E continuou não tirando os olhos de mim enquanto desamarrava a parte de baixo do meu
biquíni. E fez ainda mais questão de me encarar quando sua boca passou a estar entre as minhas
pernas.
Dei uma respirada forte e revirei os olhos. Ela começou a movimentar a língua devagar e,
depois, aumentando o ritmo aos poucos. A essa altura, eu já não conseguia olhar fixamente para
ela, mas quando o meu olhar descia, encontrava o dela firme e concentrado nas minhas reações.
Minha mão direita buscou pelos cabelos curtos da garota em desespero quando ela alcançou
ritmo e velocidade certos. A outra mão buscava algo no que segurar e encontrou a mão de Mia.
Entrelacei nossos dedos quando senti a onda de prazer percorrer todo meu corpo, me
desestruturando por completo. Mia subiu para me beijar e, logo depois, deitou ao meu lado.
— Eu juro… — ela falou ofegante — que não era esse o intuito te trazendo aqui.
— Se fosse o intuito eu também não reclamaria. — Respirei fundo e olhei ao redor. —
Você tem uns muros altos, né? Ainda bem.
— São bem úteis, realmente. — Ela também analisou.
— Então você já fez a mesma coisa com outras aqui, é? — Arqueei a sobrancelha.
— Jamais! — Mia ergueu a mão em juramento —Mas, caso tivesse feito, tenho certeza
que nenhuma teria sido tão boa quanto você.
— Você diz isso pra todas — respondi, desconfiada.
— Se eu dissesse, estaria mentindo.
— Sei. — Dei uma risadinha, antes de partir para beijar a garota de novo.
Era impossível beijar Mia Duarte e não querer mais. Mas, quando desci para o pescoço
dela e ameacei descer, Mia me impediu.
— Hoje não — falou, olhando nos meus olhos. — Pra garantir que vai ter a próxima.
— Sabe que isso é covardia, não sabe?
— Já dançamos conforme a sua música, chegou a vez da minha.
Mia deu um sorriso despretensioso.
— E será que na sua música eu posso tomar um banho? — pedi.
— Tão cedo? — Ela fez biquinho.
— Não quero voltar muito tarde, minha mãe tá sozinha com a Bela e… bom, você sabe —
respondi. — Mas eu posso ficar um pouco mais ainda, só não o dia todo.
— Eu entendo. — Mia se levantou, me esticando a mão. — Vamos lá dentro então.
Nós entramos em casa e ela me conduziu até o banheiro de sua suíte, onde eu tomei um
banho quente no qual, infelizmente, mais nada aconteceu. Quando fui vestir a roupa, Mia tinha
trocado minha blusa por uma camiseta dela.
— E essa gracinha aqui, hein? — Arqueei as sobrancelhas, apontando para a camisa dela
no meu corpo quando saí do banheiro.
— Você me devolve quando a gente se encontrar de novo. — Deu de ombros, jogada na
cama.
— Você não precisa criar situações pra garantir que vou estar com você de novo, tá? —
Me joguei ao lado dela. — Eu não vou sumir mais. — Não é sobre você, sabe? — explicou,
virando de lado. — É mais sobre mim, mas isso é conversa pra depois.
Mia e eu ficamos nos olhando por alguns minutos, em silêncio. Só reparando uma na outra.
A sobrancelha dela era bem desenhada, mesmo com os pelinhos crescendo. O cabelo que caía na
testa fazia naturalmente uma curva na ponta. Ela tinha os cílios volumosos e curvados, como os
de uma boneca. O nariz dela arrebitava quando ela sorria. A boca dela tinha cor de pêssego e
talvez, por isso, fosse tão gostosa.
— Aurora — ela chamou.
— Oi, Mia.
— Você tem mesmo medo da sua cabeça me querer tanto quanto seu corpo?
— Um pouco.
— Mas você ainda acha que seria ruim assim?
— Não. — Suspirei. — Não acho.
— Eu também — admitiu.
— Também não acha ruim ou também tem medo?
— As duas coisas.
— Mergulhar com medo não é mergulhar de verdade — lembrei, fazendo Mia dar um
sorrisinho —, mas acho que às vezes tudo bem molhar só os pézinhos, né?
— É — Mia concordou. — Tudo bem.
Era preciso entrar na água aos poucos, às vezes. Principalmente quando se trata de um mar
revolto, não de uma piscina. Principalmente quando tem tubarões. Principalmente quando o mar
já afundou vários navios. Principalmente quando não se tem controle da correnteza.
Era preciso ter cautela. Eu tinha que ser responsável agora e entender que esse mar era do
tipo que se entra com um pé de cada vez. Mia era o mar revolto que poderia me afogar a
qualquer momento.
Mas eu confesso que estava começando a não achar a possibilidade tão ruim assim.
“Penso que é bom andar por aí e a gente fica nesse bem bom”

Bem Bom - Liniker e os Caramelows

As duas últimas semanas foram bem melhores do que as outras duas anteriores em alguns
sentidos e, ao mesmo tempo, igualmente ruins em outros. O lado bom é que Mia e eu estávamos
indo bem, tão bem que me deixava até preocupada. Acho que eu ainda não me acostumei com a
calmaria quando o assunto é nós duas.
O lado ruim é que eu só via minha irmã de manhã e à noite. Ainda assim, nem todos os
dias. Ou seja, essa coisa de ela estar fora de casa estava cada vez mais forte, do tipo que era cada
dia mais incomum ver Bela ali, sem sair. E, como se não bastasse, eu ter brigado com ela naquele
dia fez com que ela começasse a me dar um gelo, o que estava me deixando hiper preocupada.
Toda a história do spotted com a gente tinha dado uma esfriada. Claro, não completamente.
Só que com tanto cuidado e sem festas na casa de Mia, ninguém vinha tendo muito o que falar;
Então, para descobrir quem estava envolvido nisso, precisaríamos encontrar outros meios.
— Oi, princesa — disse Mia na chamada de vídeo assim que atendi. Confesso que, por
mais que o “princesa” tenha começado de brincadeira, estava começando a achar… fofo? — Tá
ocupada?
— Tô acabando de me arrumar pra um aniversário — respondi, amassando o cabelo. —
Por quê?
— Poxa, ia te chamar pra atravessar a ponte. — Ela me observou pela tela. — Faz tempo
que a gente não vai pro apartamento.
— Mia, faz três dias! — Dei risada. Depois que decidimos que Copacabana seria um lugar
para onde fugir, nós passamos a ir até lá com certa frequência. — A gente tem feito tudo do
trabalho lá, inclusive.
— Eu sei, mas eu queria um dia off, sabe? — justificou. — Um filminho, coisa assim.
— Semana que vem, que tal? — sugeri. — Estarei disponível o suficiente pra ser toda sua.
— Toda minha, é? — Ela respondeu com um tom sugestivo.
— Mia…
Revirei os olhos e encarei ela pela câmera.
— Tá, tá bom! — Riu. — Semana que vem, tô de acordo. E o aniversário hoje é de quem?
— Do Pedro Henrique — contei. — Ele disse pro Lucas convidar a Rafa e eu, que seria
legal se a gente fosse. Vai ser na casa dele.
— Legal… — Mia suspirou. — Você vai se divertir, as comemorações na casa dele são
sempre ótimas.
— Você tá bem? — verifiquei. — Com isso?
— Tô — ela assegurou. — É só… não sei. Nostalgia, talvez. — Mia ficou em silêncio por
alguns segundos. — Ei, pensa aqui uma coisa comigo.
— Eu sempre me preocupo quando você fala pra eu pensar com você…
— Já que você vai na casa dele, você podia, sei lá, aproveitar pra investigar alguma coisa?
— sugeriu. — Eu sei que você não tá indo pra isso, mas se der tempo, você faz?
— Eu sei que a gente tá precisando se reinventar nessa história de investigação, mas não
sei não… — respondi, receosa. — Acho perigoso.
— Tudo bem se não der! — disse Mia. — Só se você achar válido e quiser, tá? É só uma
sugestão.
— Eu vou ver o que eu faço e qualquer coisa eu te falo — avisei. — Agora eu tenho que
desligar, mas depois a gente conversa.
— Tudo bem, ficarei atenta. — Mia deu um sorrisinho — Boa festa, aproveita!
— Obrigada. — Sorri de volta. — Até mais, linda.

Pouco tempo depois de tocarmos a campainha, a porta se abriu e Pedro Henrique nos atendeu,
vestindo uma calça jeans e uma camisa de botão rosa.
— Que bom que vocês vieram! — exclamou, antes de ir na direção de Lucas. — Oi, bem.
— Ele deu um selinho em nosso amigo.
— Que coisa mais açucarada, meu Deus — Rafa implicou.
— Dor de cotovelo, amiga? — Lucas rebateu, brincando.
— Deixa ela, tá carente! — Pedro riu. — Meninas, fiquem à vontade. Tem um pessoal ali
na sala. Lu, você já é de casa.
— Posso botar minha mochila no seu quarto, bem? — Lucas perguntou enquanto entrava.
— Claro. — Pedro sorriu. — Vou lá com você.
A casa de Pedro era aconchegante, fazia o tipo “casa de vó”, cheia de azulejos e com
crochê e bordados por todo lado. Quando vimos a mãe dele, uma senhora negra já com seus
cabelos crespos brancos, entendi o motivo da decoração.
— Oi, meninas — ela nos cumprimentou, com um sorriso caloroso e simpático. — Bem-
vindas! Tudo bem? — Nos recebeu com dois beijinhos no rosto. — Vocês são a Rafaela e a
Aurora, não é? — Apontou respectivamente.
— Isso — respondi com um sorriso. — A senhora é a Dona Silvia, né?
— Nem senhora, nem dona, só Silvia mesmo — brincou. — Fiquem à vontade, tá? — Ela
nos acolheu, nos conduzindo para a sala. — Eu tô fazendo um lanchinho. Já já fica pronto!
— E tá cheiroso, viu? — Rafa comentou. — É cachorro quente?
— É sim — confirmou. — De salsicha pra vocês e de cenoura pro Pedrinho, porque ele
não come carne.
Pedrinho. Sério, que coisa mais fofa.
— Fiquem aí na sala — falou, já na porta para a cozinha. — Daqui a pouco eu venho.
Quando nos ajeitamos na sala, Pedro Henrique já tinha voltado com Lucas e logo
apresentou seus convidados que estavam ali. Victória e Dante, amigos da faculdade. Nicolas e
Matheus, amigos de infância. Marina, prima. Todos muito queridos e simpáticos.
Passamos um tempo conversando e nos conhecendo até o cachorro quente ficar pronto,
nesse meio tempo também pudemos saber um pouco mais sobre Pedro, coisas que Lucas não
tinha nos contado.
Silvia, a mãe de Pedro Henrique, era, biologicamente, sua avó. Lucia, a mãe biológica
dele, era a filha dela, que faleceu no parto. O pai biológico de Pedro foi embora antes que ele
nascesse, então nunca procurou saber de nada. Silvia, então, criou Pedro Henrique como um
filho, sem esconder sua história nem um minuto. Para ele, Silvia sempre foi sua mãe.
Conversa vai, conversa vem e, é claro, o assunto mais temido viria à tona.
— Então, Aurora — começou Victória. — Qual é a das fofocas? Você e Mia Duarte…
— Quero deixar claro desde já que eu sou team “Não traiu”— Dante disse, dando de
ombros.
Quando foi que Mia Duarte e eu viramos Capitu e Escobar?
— Nunca rolou nada entre Mia e eu, gente — menti. — A gente só tem trabalho juntas pra
fazer.
— E vocês fazem trabalho no meio de uma festa? — Victória franziu o cenho,
desconfiada. — Não te acusando, só trazendo o questionamento.
— É uma convivência razoável pra além do trabalho, o que não significa que a gente tenha
algo — argumentei.
— Se elas duas tivessem um caso, elas não dariam tanta trela assim — Dante defendeu.
— É, mas a saída no meio do dia de visitação foi bastante suspeita — Victória continuou.
— Coisa de quem tinha algo a esconder. De novo, não quero te acusar. Quero só analisar.
Porque, independente se aconteceu ou não, as pessoas estão pesando a mão demais.
— Gente, que tal a gente mudar de assunto, hein? — Pedro cortou. — Meu aniversário,
lembra? Conhecem aquela música? Não falamos do Bruno? Releitura dela, pessoal! Não falamos
da Mia! Que tal?
— Assunto encerradíssimo — Victória ergueu as mãos, se rendendo.
Pedro tinha ficado genuinamente irritado. Não sei se pelo assunto invasivo comigo ou por
rancor quando o nome de Mia era mencionado. Talvez as duas coisas.
— Cachorro quente, pessoal! — anunciou Silvia, entrando na sala com uma bandeja cheia
de saquinhos com cachorro quente.
— Não precisava trazer, tia — disse Dante. — A gente levantava e se servia.
— Imagina se eu ia fazer vocês interromperem o papo — disse, enquanto cada um pegava
um. — Filho, esse da ponta é o seu.
— Obrigada, mãe! — Pedro respondeu com um sorriso, pegando seu cachorro quente.
Depois que nós comemos, conversamos com Silvia e conversamos mais entre nós — sem
falar sobre spotted, claro —, lembrei do pedido que Mia me fez e comecei a considerar a
possibilidade.
— Pedro, onde é o banheiro?
— No meu quarto, é a última porta — falou. — Só tá com problema na maçaneta, então
pode fechar o quarto. Cê tá em casa, fica à vontade.
— Tudo bem — respondi, me levantando. — Obrigada.
Entrei no quarto de Pedro e tranquei a porta. Certo, era uma oportunidade ótima para
bisbilhotar. A princípio, eu não queria. Eu gosto do Pedro Henrique, gosto da relação dele com
Lucas, a noite estava sendo super agradável e eu esperava viver algo assim mais vezes. Mas,
justamente por gostar dele, eu precisava ter certeza que ele não era o responsável por tudo isso.
Abri o notebook torcendo para que não tivesse senha e, por sorte, não tinha. Resolvi abrir
as redes sociais de Pedro, especialmente o Instagram, onde a conta do spotted ficava. Pretendia
usar a guia anônima mas, nela, as contas não ficam conectadas, então seria impossível. Por sorte,
as redes dele estavam nos favoritos, então, mesmo se ficasse no histórico, ele não estranharia.
Fui direto nas mensagens, procurando alguma pista ou algo que pudesse ser suspeito.
Pesquisei “spotted” e encontrei um chat vazio com a página de sessenta dias atrás. Suspeito. Por
que ele apagou? Tirei print e continuei rolando as conversas. Pesquisei o nome de Mia e
apareceu apenas um chat, com Matheus. A mensagem em questão tinha sido enviada há oitenta e
oito dias e dizia:

“Mia é um desastre ambulante e a gente ainda vai ver ela sendo derrubada justo por quem
coloca ela num pedestal agora”

Suspeito, bastante suspeito. Mais um print. Procurei o nome de Larissa e não encontrei
nada, procurei o meu nome e não encontrei nada, nenhuma das outras coisas que procurei teve
resultado ou mostrou algo relevante. Era isso.
Peguei os prints, fui no meu perfil e me enviei por mensagem temporária, sumindo com o
chat assim que acessei as imagens no meu celular e baixei. Agora era só excluir, tirar da lixeira e
pronto. Feito.
— Aurora? — Pedro bateu na porta.
— Oi, já tô indo — respondi, depois de um susto.
Fui até o banheiro e lavei as mãos correndo só pra fingir que estava lá, logo depois abri a
porta.
— Tudo bem? — perguntou.
— Tá, tá tudo bem.
— Desculpa pela Victória, ela não faz por mal — falou. — Ela é obcecada por coisas na
vibe detetive e coisa e tal. Perde a mão às vezes.
— De boa, eu entendo…
— Qualquer coisa me fala, eu quero que vocês se sintam confortáveis aqui.
— Obrigada por se preocupar. — Dei um sorrisinho. — Tá tudo bem mesmo. Agora
vamos voltar?
— Vamos — ele assentiu.
Voltamos para a sala e Pedro se sentou ao lado de Lucas, passando o braço por trás dele
para que ele se acomodasse. Era bom ver os dois e, para além disso, era bom estar aqui. Estava
tudo bem.
E eu queria, mais do que nunca, que nada mudasse.
“Você parece ser bom de guardar no escuro então deixa eu te guardar lá em casa”

No Escuro - Ana Gabriela ft. Anavitória

— Já posso abrir os olhos? — perguntei.


— Ainda não — Mia respondeu. — Falta um último detalhe.
Era um sábado, final de tarde. Estava no apartamento em Copacabana, com os olhos
fechados desde que cruzei a porta, porque Mia estava aprontando alguma coisa que eu não
poderia ver.
— Agora é só ligar aqui e… — ouvi um click — pronto! Pode abrir.
Quando meus olhos se abriram, me deparei com uma cabana que Mia montou na sacada,
usando lençóis escuros. Ela tinha fios de pisca-pisca no topo que iluminavam seu interior, onde
havia um colchão, travesseiros e um notebook. Ninguém nunca tinha feito algo assim para mim.
— Mia — soltei, completamente surpresa. — Isso é… lindo. Não precisava.
— É, não precisava. — Ela parecia tímida, com as mãos no bolsos, encarando seu feito,
orgulhosa. —Mas eu queria. Você gostou?
— Eu amei. — Abri um sorriso meigo e a beijei. — De verdade.
— Mas antes da gente deitar nesse cantinho confortável — Mia ergueu o indicador —, a
gente vai pra cozinha fazer o jantar — disse, indo na frente.
— E o que essa chef tem em mente hoje? — Segui a garota pelo caminho.
— Pizza! — exclamou. — Toda caseira, inclusive a massa.
— Olha só, Mia Duarte sabe viver sem pedir delivery… — impliquei, fazendo ela sacudir a
cabeça em negação.
— Pra sua informação, mocinha — começou a se defender —, eu aprendi a cozinhar antes
mesmo que a gente tivesse aplicativo pra pedir comida — disse, ao chegarmos na cozinha, já
pegando uma tigela para misturar os ingredientes.
— Todo dia você me mostra que é uma caixinha de surpresas, sabia? — comentei, apoiada
no balcão. — Eu pensava que você não sabia fritar um ovo, sequer.
— Todo dia eu te mostro que você tava errada, isso sim. — Mia deu um sorrisinho
orgulhoso.
— É… — Dei de ombros. — Pra ser sincera, eu até tenho gostado de estar errada, tem
sido… bom.
Acho que essa foi uma das maiores quebras de orgulho que eu já tive. A vida melhora
quando a gente admite os erros e desfruta da consequência.
— É, eu gosto de estar errada sobre algumas coisas também — ela disse pegando os
ingredientes.
— Que coisas?
— Ah, sabe como é… — Ela colocou os ingredientes secos na tigela. — Eu tinha medo.
Que você só quisesse… Bom, o que as pessoas geralmente querem comigo. Sei lá, tudo bem só
querer sexo às vezes, desde que isso fique claro.
— Não deixaram isso claro pra você muitas vezes, né?
— É, quase nunca, na real. — Mia sorriu amarelo. — Você quer adicionar os ingredientes
molhados e mexer na massa?
— Tá bom — Concordei, me aproximando. — Continua falando.
— Enfim — Mia continuou —, a gente se aproximou de um jeito diferente. E fiquei com
medo de interpretar mal as coisas.
— Você não interpretou mal. — Parei de colocar os ingredientes e me virei para ela,
colocando as mãos em seu rosto. — Nem um pouco.
— Eu não sou boa em pegar sinais, Aurora.
— Você pegou todos e mais um pouco ainda — assegurei. — Fica tranquila. Eu tô aqui.
Mia me abraçou apertado… De um jeito diferente. Como quem pede que a outra pessoa
não vá embora.
— O que você acha de ficar abraçada comigo enquanto eu misturo a massa? — sugeri. —
Se não, essa pizza não sai hoje.
— Tem razão! — Mia riu e me soltou para que eu me virasse, logo depois me abraçando
outra vez, mas por trás. — Eu cuido do recheio depois.
— Isso tudo é medo de sujar as mãos? — impliquei, enquanto começava a mexer.
— Jamais! — se defendeu. — Só tô confiando no seu potencial e espero que você faça a
melhor massa de pizza da humanidade.
— Uau, zero pressão por aqui — brinquei. — Vai ficar ótima, confia.
Depois da massa ficar homogênea e na consistência certa, era hora de deixar descansar.
Enquanto Mia ralava o queijo e cortava os tomates, me sentei na bancada com uma taça de
vinho.
— Mia — chamei, balançando a taça na mão.
— Fala. — Ela seguia concentrada na função.
— Você nunca me falou sobre a Larissa — comentei. — Tipo, a fundo.
— Ah… — Ela tombou a cabeça para o lado. — Tem algo que você queira saber?
— Eu lembro que no fatídico dia do banheiro vocês tavam brigando sobre algo que você
não tinha que lidar — comentei. — Queria entender, sabe? Porque em um dia todo mundo
achava vocês um casal de vitrine e depois… Bom, você sabe.
— As pessoas acham muita coisa e mudam de ideia, né? — falou. — A Larissa tem uma
ex de longa data, Karina. Namoraram por dois anos. Ela tinha sumido, mas há uns três meses ela
voltou. Ela é bem invasiva, não parecia respeitar o fato de que a Larissa tava comigo.
— E aí o que aconteceu? — perguntei, antes de bebericar o vinho.
— E aí que elas saíram e a Larissa não me contou — disse. — Só depois, quando outras
pessoas me disseram e eu fui cobrar.
— E o que ela disse?
— Que não contou pra não me chatear.
— Essa é a pior desculpa da face da terra! — exclamei, irritada. — Qual o problema que as
pessoas têm em jogar limpo?
— E foi por isso que brigamos — explicou. — Essa briga durou dias, na real. Ela ficou me
prometendo que ficaria tudo bem, que ia resolver isso e aí… Cansei. Não vi mudança alguma e
resolvi terminar. Até hoje não sei se aconteceu algo nesse encontro ou até em outros. Não dá pra
confirmar. Só sei que não me sentia mais segura. Não tinha confiança.
— E quem teria? Nessas circunstâncias? Não… — Balancei a cabeça. — Você tem toda
razão. Tomou a melhor decisão que podia.
— É… — Mia suspirou, largando a faca e se virando, vindo para perto de mim. — Doeu,
não posso mentir. Mas doeu pra melhorar. — Ela serviu vinho na própria taça, que estava ao meu
lado.
— E você tá bem? — perguntei, tomando mais um gole.
— Tô. — Ela bebeu também. — Nossa, parece que tirei um peso enorme das costas.
— É isso que acontece quando você fala sobre as coisas — respondi. — E eu tô aqui pra te
ouvir, tá?
— Vem cá… — Mia se aproximou e encaixou o corpo entre minhas pernas, abraçando
minha cintura. — Obrigada. Você é ótima.
— Você que é. — Encostei o indicador na ponta do nariz dela. — E não precisa agradecer.
— Posso te contar um segredo? — perguntou.
— Conta.
— Sua boca fica ainda mais bonita corada de vinho.
— Posso te contar um segredo também? — devolvi a pergunta.
— Pode.
— Você é linda. — Sorri, olhando Mia nos olhos.
— Isso não é segredo pra ninguém.
Ela deu de ombros, convencida.
— Mas deveria — ressaltei. — Pra eliminar a concorrência.
— Posso te contar mais um segredo, então? Só mais esse?
— Fala… — Dei uma risadinha.
— No meu pódio, você ocupa os três lugares — ela disse, baixinho, como se fosse mesmo
um segredo. — Não tem que ter medo de concorrência.
— Bom, acho que de mim mesma dá pra ganhar — brinquei, dando um beijo em Mia logo
em seguida.

Oito da noite. Um banho tomado em conjunto. Dois pijamas vestidos. Duas taças de vinho, uma
pizza marguerita quentinha, uma cabana com luzinhas na sacada e uma maratona de filmes de
terror. “Pânico”, mais especificamente.
— Por que as pessoas nunca correm pra porta?! — exclamei, com uma fatia de pizza
acabando na mão. — Que mania ridícula de subir a escada!
— Mas essa é a graça — Mia argumentou. — Eles fazem de propósito pra tirar sarro. Toda
a sequência “Pânico” é humilhando personagens de filme de terror por tomarem as decisões mais
estúpidas possíveis.
— E é sempre o namorado! — exclamei. — E essas meninas ainda deixam os caras
entrarem pela janela? Sério, isso vai além.
— Estadunidense não tem nem cortina, imagina só se vai ter bom senso! — Mia riu, depois
de morder a fatia dela. — Mora no meio do mato, não tranca a casa, tudo de vidro…
“Crepúsculo” só é uma saga porque os Cullen são vampiros, se não todos teriam morrido no
primeiro filme.
— Sem dúvida. — Ri e dei uma mordida na pizza. — E olha só, lá vai ela atender o diabo
do telefone. De novo!
— Eu sobreviveria fácil — disse Mia. — Nunca atendo desconhecidos.
— Não sobreviveria nada.
— Por que não? — ela perguntou, ofendida.
— Você é a pessoa que dá festas enormes na sua casa, deixa todo mundo entrar e tá sempre
sozinha. A vítima perfeita.
— Tudo que você falou deveria ter o verbo conjugado no passado. — Mia cruzou os
braços e começou a enumerar. — Porque, um, eu não dou mais festas. Dois, ninguém mais entra
na minha casa. Três, eu tô com você a maior parte do tempo.
— E o que te garantiria que eu sou confiável? — falei. — Os namorados sempre são os
culpados, lembra?
— Isso faz de você minha namorada? — Mia perguntou.
Como em todos os momentos em que não sei reagir, me engasguei.
— Esquece! — Mia automaticamente começou a tentar retirar o que disse. — Nem sei por
que eu falei isso.
— Eu quis dizer outra coisa! — disse, entre engasgos. — Não foi nada disso.
— Claro, eu entendi! — ela continuou, seu rosto ficando vermelho. — Também não foi o
que eu quis dizer.
— Relaxa! — respondi, bebendo todo o vinho da minha taça. — Tá tudo bem, eu entendi o
que você quis dizer também.
— É, tá tudo bem! — Mia deu uma risadinha nervosa e bebeu todo o vinho de sua taça em
uma golada só.
— É — respondi, rindo de nervoso também.
— É. — Mia suspirou. Segundos de silêncio. — Quer me beijar?
— Quero.
Aquele beijo tinha um gosto diferente. Não de fogo, de nervosismo ou vinho. Mas de que
nós duas sabíamos exatamente o que a outra quis dizer. E que lidaríamos com isso outra hora.
— Você vai querer comer mais? — perguntou. — Acho que vou levar essas coisas pra
cozinha.
— Pode levar — assenti. — Eu pauso o filme.
Mia saiu com a pizza e as taças e eu parei o filme no computador, esperando alguns
minutos até que ela voltasse.
— Ficou com medo enquanto eu saí? — brincou ao voltar, se acomodando do meu lado.
— Você é bobinha, né? — Encarei ela.
— O que? Dizem que filme de terror é legal pra pessoa ficar com medo e grudar em você.
Deu de ombros.
— Você fala como se precisasse disso. — Revirei os olhos e me aconcheguei em seu
ombro.
— É. — Ela fez uma pausa. — Não preciso mesmo.
— Mas não é de graça, eu quero um cafuné.
— Não precisava nem pedir — Mia respondeu, colocando a mão no meu cabelo e fazendo
carinho.
O carinho de Mia era uma das coisas mais calmantes do mundo, não é à toa que em poucos
minutos acabei caindo no sono. Estar aconchegada nela me fazia sentir que todos os problemas
sumiam.
Mas não era verdade.
Senti meu celular vibrando embaixo do travesseiro e acordei lentamente. Eu não tinha
muita noção do que estava acontecendo, mas quando vi que era uma e meia da manhã e que meu
telefone tinha quatro chamadas perdidas de Bela, recobrei a consciência rapidamente.
— Mia — chamei, mexendo nela. — Mia, acorda.
— Oi! — exclamou, despertando assustada — O que foi? Você tá bem?
— Minha irmã me ligou quatro vezes — falei. — Há dias ela mal fala comigo, Mia. Eu
tenho que ir pra casa.
— Agora?
— É, agora — respondi. — Se você não puder me levar, eu vou sozinha. Sabe lá Deus
como, mas eu vou.
— Ficou maluca? Claro que eu te levo. Vamos lá.
Nós sequer tiramos o pijama. Só pegamos nossas coisas e entramos no carro de Mia. Ela
dirigiu no dobro da velocidade que se usaria em um momento normal, durante o dia. Antes que
eu me desse conta, ela me deixou na porta de casa.
— Quer que eu entre?
— Deixa comigo — falei, saindo do carro. — Te mando notícias.
— Obrigada. — Ela me observou. — Se cuida. Até depois.
— Até — respondi, antes dela ir.
Entrei em casa tremendo. Minha mãe não estava, foi passar a noite na casa da nossa tia. Eu
só conseguia me perguntar se, seja lá para que, eu cheguei a tempo de ajudar. Quando cheguei no
corredor e vi a luz do banheiro acesa, corri para lá.
— Bela? — chamei, chegando na porta.
Quando parei na entrada do banheiro, encontrei minha irmã sentada no chão, de frente para
o vaso, vomitando.
— Bela o que tá acontecendo?! — exclamei desesperada, entrando e abaixando do lado
dela.
— Eu não aguento mais! — ela respondeu. Estava chorando. — Eu não consigo, Aurora!
— Bela, você bebeu?! — Ela fez que não com a cabeça. — Você jura? — Bela fez que
sim. — Então eu preciso ligar pra mamãe, pra gente ir agora pro hospital ver o que tá
acontecendo!
— Não! — Ela berrou, ainda chorando. — Não fala com a mamãe, por favor!
— Bela, que porra tá acontecendo aqui que a mamãe não pode saber?! — perguntei,
exaltada.
Bela chorava muito. Eu nunca tinha visto ela assim. Ela respirou, tentando se acalmar, e
então olhou para mim.
— Eu tô grávida — respondeu, aos prantos. — Eu tô grávida, Aurora!
Puta que pariu.
“Don’t tell my mom, I’m fallin’ apart, she hurts when I hurt, my scars are her scars”

Don’t Tell My Mom - Reneé Rapp

Bela tinha parado de vomitar fazia uns cinco minutos, mas ainda chorava, embora menos. Esses
cinco minutos foram os mesmos que eu levei pra conseguir reagir de alguma forma, porque tudo
que fiz antes disso foi escorregar pela parede e sentar no chão, encarando a outra parede na
minha frente.
— Quando você descobriu?
— No dia que você bateu no banheiro — contou. — O dia que Rafa e Lucas estavam aqui.
Quando você me chamou, eu tinha acabado de fazer o teste e tava esperando aparecer o
resultado.
— De quantas semanas você tá?
— Treze — ela disse. — Quase acabando o primeiro trimestre.
— Eu preciso perguntar como isso aconteceu — falei. — Quer dizer, eu sei como
aconteceu, mas… Quem é o pai, Bela?
— Meu namorado. — O choro dela pesou mais.
— Namorado?! — Franzi o cenho. — Que namorado é esse?
— Não briga comigo, por favor! — implorou, chorando. — O nome dele é Caio e ele faz
Arquitetura lá no Rio.
Respirei fundo. Isso tudo ia além do que eu era capaz de processar.
— O que você vai fazer? — perguntei.
— Eu não sei, mas eu não aguento mais, de verdade. — Ela enxugou as lágrimas. — Meu
peito não para de doer, minhas calças não cabem mais, eu não consigo passar cinco minutos em
qualquer meio de transporte sem morrer de enjôo e nunca mais dormi uma noite inteira. E, pra
completar, eu tenho certeza que a mamãe vai me matar! — exclamou, chorando copiosamente.
— Todo dia eu penso em acabar com isso de uma vez, porque não vou dar conta!
Bela estava encolhida, chorando e tremendo. Como uma criança que perdeu o brinquedo
favorito, mas isso era muito mais sério. Minha irmã estava vulnerável e eu precisava ser
cuidadosa agora para poder ajudar.
— Bela… — Olhei para ela enquanto levantava do chão. — Você precisa, primeiro de
tudo, se acalmar. Vou te dar um banho e depois a gente conversa. Tudo bem?
— Me deixa aqui, eu me viro — ela respondeu de cabeça baixa.
— Nem pensar. — Estendi as mãos para ajudar ela a levantar. — Vem.
Bela olhou para mim, hesitante, mas logo segurou nas minhas mãos, aceitando ajuda.
— Vou pegar um pijama meu limpinho pra você — informei. — Espera aí.
Peguei uma camiseta e um short bem larguinhos no quarto e voltei rapidamente. Bela tinha
dado descarga no vaso e abaixado a tampa.
— Pronto. — Coloquei o pijama na tampa e fui até a porta do box. — Tira a roupa que eu
vou ligando aqui pra água esquentar.
Girei o registro do chuveiro enquanto Bela se preparava para o banho. Quando minha irmã
tirou a blusa, vi a barriga dela pela primeira vez. Estava bastante aparente, o que explica as
roupas leves e a recusa de ir na piscina. Com certeza estava muito difícil para ela esconder.
A água esquentou e chamei minha irmã para dentro do box, ajudando ela no banho assim
que ela entrou. Ali, não teve conversa. Só a água caindo e um momento para que Bela pudesse
respirar, ao menos um pouquinho.
Depois do banho, Bela se vestiu. Sentei na cama dela e ela deitou a cabeça no meu colo.
— Bela — chamei. — Há quanto tempo você tá com o Caio?
— Quase seis meses — contou, encolhida.
— Ele te forçou a alguma coisa? — perguntei. — Como isso aconteceu?
— Ele não me forçou a nada. A gente sempre se cuidou, mas achamos que a camisinha
podia estar furada.
— E o que ele achou disso? Da gravidez?
— Ele ficou preocupado, mas tá feliz — disse. — A família dele acolheu a gente e estão
sendo atenciosos. Me incentivaram a fazer os exames.
— Bela, eu não entendo. — Balancei a cabeça. — Por que você não falou nada com a
gente? Por que não apresentou o Caio esse tempo todo?
— Aurora, eu não consegui. — Bela ergueu o corpo, sentando do meu lado. Ela começou a
chorar. — Eu não sei lidar com a ideia de trazer um namorado pra casa sem o papai aqui. Não
dá. Não faz sentido. Tem um pedaço faltando.
Nesse momento, eu comecei a chorar também.
— Irmã… — Puxei Bela para o meu ombro e abracei forte — Sempre vai faltar um
pedaço. Mas, se isso fizer a gente moldar nossa vida, vai faltar um pedaço nosso também. E tá
faltando um pedaço seu ultimamente. Pra mim e pra mamãe.
— Me desculpa por te afastar. — Ela pediu, chorando. — Eu não queria, mas eu não
conseguia. Nas últimas semanas eu só fiz te tratar mal. Me perdoa, por favor.
— Desculpa por ter dito pra você se virar — soltei, chorando também. — Foi da boca pra
fora, eu só tava chateada. Me arrependi logo depois.
Quando você e sua irmã são crianças, vai ter um adulto no pé de vocês quando brigam,
mandando se desculpar e dar um abraço. Quando você e sua irmã são as adultas, vocês vão fazer
isso quando o coração sentir. E é aí que tá a grandeza da coisa.
— Escuta — chamei, fazendo carinho no cabelo dela quando se deitou no meu colo de
novo. — O papai não tá mais aqui, mas eu tô. A mamãe tá. Você não precisa lidar com a sua
vida sozinha.
— Eu sei, só é difícil...
— Sem apoio fica pior. — Respirei fundo. — Bela, você vai ter que contar pra mamãe.
— Não! — exclamou, já desesperada de novo. — Por favor! Isso não! Ela vai me matar!
— Ela não vai te matar — falei, tentando acalmar. — Sua barriga vai crescer rápido agora,
irmã. Você não vai poder esconder pra sempre.
— Eu nem sei se quero isso. — Ela choramingou.
— Bela, se você estiver pensando em aborto, a gente precisa lembrar que estamos no
Brasil e que aqui não é nada fácil — ressaltei. — É arriscado, perigoso. Eu respeito suas decisões
e entendo os diversos motivos que podem levar alguém a querer abortar. E se você não quiser
mesmo, por motivos seus, a gente embarca nessa. O que eu não posso é te apoiar a fazer algo que
pode te matar se o único motivo for medo de como a nossa mãe vai reagir. Eu preciso que você
me diga. Isso é medo de ela surtar? Porque eu garanto que isso não vai acontecer.
— Eu escondi muita coisa, menti por muito tempo — Bela falou. — Ela vai ficar muito
brava comigo.
— Por isso? Ela vai mesmo — respondi com sinceridade. — Mas não porque você vai ter
um filho. Por isso ela não vai ficar brava.
— Você consegue me imaginar assim? — perguntou. — Sendo mãe?
— Eu não tenho que responder isso, mas sim você — rebati. — Você consegue se imaginar
sendo mãe? — Bela sacudiu a cabeça dizendo que sim. — Então…
— Eu só não sei se eu tô pronta.
— Nenhuma mulher nunca tá — falei. — Mesmo quando pensa que sim, descobre que
não.
— Eu tô morrendo de medo, Aurora — ela contou. — Acho que nunca senti tanto medo na
vida.
— Eu imagino — respondi. — Criar um ser humano não é fácil. Você tem todo direito de
estar assustada. Mas não tenha dúvida que você vai ter uma baita rede de apoio. Minha e da
mamãe.
— Eu não sei se consigo contar pra ela.
— Respira mais uns dias, esfria a cabeça — sugeri. — E depois, eu fico do seu lado pra
contar. Mas você não pode mais deixar passar, Bela. Quanto mais tempo passar, pior vai ser.
— Você promete que vai fingir que não sabe de nada até lá? — pediu.
— Eu prometo.
Eu sabia que isso ia me sobrecarregar em algum momento. Lidar com esse segredo ia
mexer comigo. Mas não importava, porque não era sobre mim agora, e sim sobre a minha irmã,
alguém por quem eu morreria sem pensar duas vezes. Eu sempre estive do lado dela, não seria
agora que eu não ia estar.
— Tô com você desde a barriga da mamãe, lembra?
— Eu sei. — Bela respirou fundo, se sentando de novo. — Obrigada. Por ter vindo
correndo. Por não ter desistido de mim.
— Eu não desistiria. — Dei um beijo na testa dela. — E você não tem que me agradecer
por nada disso. Eu te amo, irmãzinha. — Dei um abraço apertado nela.
— Te amo, irmãzinha — ela respondeu.
E nas duas noites seguintes eu não consegui dormir.
“No escuro só quando for nós dois, mas eu quero que o mundo inteiro saiba”

No Escuro - Ana Gabriela ft. Anavitória

Quase três dias sem dormir direito.


Na minha cabeça passava mais do que a gravidez da minha irmã, havia também uma
retrospectiva das últimas semanas. Bela. Spotted. Pedro Henrique. Mia. Investigação. Trabalho.
A porra do trabalho.
Mia e eu não estávamos fazendo direito o trabalho quando nos juntávamos e o prazo estava
acabando, e por mais que não tivesse assim tantas coisas para acrescentar, ainda faltava. Então,
quando Mia me chamou para a casa dela naquela tarde de segunda, deduzi que era isso que
íamos fazer e, talvez depois, ficar à toa e de carinho um pouco.
A porta de entrada se abriu e eu fui pronta para pedir um abraço, mas Mia nem viu, só saiu
andando com passos pesados e esperando que eu fosse atrás dela.
— Eu tô muito puta — ela disse. — De verdade.
— O que foi?
— Depois de tanto silêncio, voltaram a falar de mim — disse, tirando o celular do bolso e
desbloqueando rapidamente. Ela virou a tela para mim.

“Parece que o suposto casal traíra não durou como casal, não é? Eu sou uma pessoa
muito bem informada e, ainda assim, não tô sabendo de nada, viu? A rainha do camarote
aposentou os convites pra casa dela e também não tem nenhum sinal da convidada de honra ao
redor. Eu geralmente não uso nomes, porque vocês sempre sabem de quem eu tô falando, mas
hoje vai ser necessário frisar com todas as palavras: Mia Duarte estraga tudo que toca. Tomem
cuidado. Vejo vocês na próxima.
Anônimo.”
— Isso é inacreditável. — Ela revirou os olhos e se sentou na cadeira da mesa da sala.
De tudo que a gente poderia e deveria fazer, ela quer falar dessa droga de investigação.
— É inacreditável mesmo — respondi, frustrada, me sentando de frente para ela.
— É tão exaustivo ter gente supondo coisas sobre você o tempo todo — desabafou.
Bela. Spotted. Pedro Henrique. Mia. Investigação. Trabalho.
Mia e eu.
Percebi que uma coisa me incomodava. E já estava passando da hora de falar sobre ela.
— Talvez se você expor a verdade as pessoas não vão ter mais o que supor — comentei.
— Você não acha que tá na hora de contar? Sobre a Larissa… Sobre a gente?
— O que? — respondeu. — De jeito nenhum! Agora que a pessoa falou isso de mim a
gente precisa mais do que nunca descobrir quem é. É uma questão de honra!
Foi como um balde de água fria. Um balde de água fria que eu não esperava que ia me
fazer sentir como me senti.
— Você não me tratar como um casinho seu também é uma questão de honra pra mim —
joguei, com os braços cruzados.
— Você tá viajando. — Mia franziu o cenho. — Não tem nada a ver.
— Porra, Mia! — Rebati. — Há quanto tempo a gente tá nessa? Eu e você? Eu falei que
não ia dar pra esconder pra sempre, eu deixei isso claro.
— Eu não acredito que você tá brava porque a gente tá ficando na surdina! — exclamou.
— Eu não deveria? — respondi, com os braços cruzados. — Se fosse ao contrário você
também estaria.
— Aurora, o ponto não é esse, o ponto é que há meses tem alguém que não me deixa em
paz e eu preciso saber quem é! — argumentou. — Será que você não entende que é uma questão
de prioridade?
Mais um balde de água fria.
— Achei que eu também fosse prioridade pra você. Mas, aparentemente, eu me enganei,
né?
— Você quer que eu te trate como prioridade sendo que você sequer passa uma noite
inteira comigo?! — despejou. — Você foi embora às duas da manhã anteontem, e ontem você
trocou meia dúzia de palavras comigo!
Não. Isso era completamente injusto. E eu não aceitaria.
— Caramba, Mia! Será que dá pra você tirar os olhos do seu umbigo por um segundo?! —
aumentei a voz. — Você quer falar de prioridade? Vamos falar de prioridade! — Respirei fundo,
antes de começar. — A minha irmã tá grávida, Mia! Cheguei em casa com ela passando mal,
transtornada, precisando de ajuda! Você sabia que há duas noites eu não consigo pregar os olhos
de preocupação?! Eu fui, sim, às duas da manhã embora e eu iria de novo. Eu faria um
escândalo, eu moveria o mundo, eu quebraria tudo, porque a minha irmã precisava de mim e ela
é uma prioridade minha! E talvez você não aceite isso porque eu tô há meses tratando a sua vida
como prioridade!
— A minha vida?! — exclamou. — Claro que não!
— Você ainda nega?! — Franzi o cenho e comecei a enumerar nos dedos. — Já te levei em
delegacia, fiz lista de suspeitos, me meti em conversas e invadi computador. Tudo por causa
dessa porra de investigação que desde o começo era um problema seu!
— Você que se ofereceu pra ajudar, você sabe que eu nunca te pedi isso! — Mia ressaltou.
— Sim, Mia! Eu fiz porque quis! Eu não nego isso! Eu fiz porque eu quis e porque,
acredite você ou não, eu me importo! — Fiz questão de deixar claro. — Mas aparentemente, se
eu não acordar do seu lado de manhã eu não posso ser uma prioridade sua.
— Você tá distorcendo o que eu disse…
— Não, eu não tô! — cortei. — Foi exatamente o que você disse! E isso não é porque você
tem seus problemas de confiança e sim porque você continua sendo o que você era antes! —
exclamei. — Uma egoísta, que tem tudo na mão e não quer botar a perder porque não é
conveniente. E, pelo visto, eu não sou conveniente pra você!
Não aguentei segurar por muito tempo e comecei a chorar, na frente dela mesmo.
— Depois de todo esse tempo eu achei que você tinha mudado sua forma de me ver —
disse, surpresa.
— Eu tinha. — Enxuguei as lágrimas e levantei. — Mas eu tava errada. E dessa vez não tá
sendo bom errar.
Peguei minha bolsa e saí andando para ir embora.
— É isso? — Mia perguntou, com os olhos marejados. — Você tá indo embora de novo?
— Não tem espaço pra mim aqui — respondi, abraçando os ombros. — Resolve a sua
vida, decide o que você quer, afinal. Se é encarar as suas escolhas ou viver pelos outros. Depois,
talvez, a gente possa conversar.
E virei as costas.
Quando cheguei em casa, desabei. Meu estômago embrulhou como se eu tivesse tomado o
soco mais violento da história. Meu peito pesou como se carregasse todas as palavras: as ditas e
as não ditas. Minha cabeça doeu como se os finais fossem facas te destroçando, parte por parte. E
talvez fossem. Porque eu me sentia completamente destroçada por dentro.
Essa é a arma secreta de um mar revolto. Quando você olhar para ele, você vai querer
explorar. Vai querer sentir a água e o sal na pele, mas você não se joga de cabeça. Você põe os
pés, vê como ele vai reagir. Você deixa as ondas te atingirem a canela, porque é seguro. Você
deixa a água te abraçar a cintura, porque é reconfortante. Você pega confiança e você mergulha.
E o mergulho te refresca. Lava a sua alma. Te acalenta. Porque mesmo revolto, ainda é o mar.
Mas nesse mar não dá para nadar e, quando você menos espera, você se afoga.
Me afogar foi muito pior do que eu imaginava.
“E agora eu não quero mais manter a minha paz, eu gosto do caos que você me traz”

Ressaca - Jão

Nunca pensei que passaria um dia inteiro encolhida na cama de novo. Não por esse motivo.
Nunca pensei que depois de dois dias dormindo mal e preocupada com a minha irmã, esse seria o
motivo que me faria ficar desperta.
Porque eu não pensei que daria tudo errado. De novo. Eu não queria que desse tudo errado
de novo. Pode ser que pouco tempo atrás tudo que eu queria era paz, sossego e Mia longe de
mim. Mas não mais. Estar com ela me acostumou com o caos. Com a agitação. E saber que. a
partir de agora, minha vida voltaria à monotonia, tornava tudo pior.
Principalmente porque não cabia mais a mim, mas sim a ela. As escolhas dela. Eu não
tinha mais controle sobre isso e, porra, não ter controle era muito ruim. Antes tivesse sido eu a
errar, como da última vez. Eu correria atrás e deixaria ela me dizer se ia ficar tudo bem no final.
Agora, eu não tinha como dizer se ia ficar tudo bem, porque nem podia garantir que ela
correria atrás de mim.
Levantei lentamente da cama no outro dia, na hora do almoço, sentindo a exaustão
derrubando meu corpo para baixo. Sorte o final de período nos dar alguns dias sem aula na
semana.
Lavei meu rosto inchado de tanto chorar, tentando recuperar a dignidade. Estava
completamente sozinha pelo resto do dia e precisava viver. Me alimentar minimamente com
qualquer comida no armário ou algo do tipo.
Enquanto eu fervia água para fazer um miojo, meu celular tocou. Era Lucas e eu já estava
me preparando para chorar e desabafar, mas ele tinha coisas mais importantes pra dizer.
— Você é uma irresponsável do caralho, Aurora! — esbravejou. — Você ficou maluca?!
Mexer no computador do Pedro Henrique?!
Não. Eu não acredito que deixei isso acontecer.
— Lucas, eu posso explicar — tentei.
— Explicar o caralho, você não vai explicar nada! — cortou. — Eu sei porque você fez
isso, mas não importa, você não tinha o direito!
— Eu sei o quanto isso foi errado — tentei explicar, triste.
— Sabe?! — exclamou. — Por que você fez então? Porra, Aurora! O Pedro terminou
comigo, você sabia? Ele achou que eu não confiava nele e que eu pedi pra você descobrir
alguma coisa!
Porra. Porra, porra, porra!
— Eu vou dar um jeito, Lucas — prometi. — Eu vou resolver e…
— Resolver?! — perguntou, indignado. — Você não consegue nem resolver a sua vida e
você acha que vai resolver a minha?! — Doeu. Muito. — Vai se foder, Aurora. De verdade.
— Lucas! — exclamei.
Não consegui dizer mais nada. Lucas desligou. Minha vontade era de chutar as coisas, de
jogar tudo pelo chão. Minha vida desandou o suficiente para que eu machucasse um dos meus
melhores amigos.
Na realidade, não só um deles.
— Rafa… — Liguei para ela chorando. — Você pode vir aqui?
— Não, Aurora. Não posso — respondeu, brava. — O que você causou pro Lucas foi
péssimo. Foi irresponsável. Uma amiga nunca faria isso.
— Eu não discordo — choraminguei. — Tenta entender o meu lado.
— Faz meses que a gente só faz entender o seu lado, Aurora — frisou. — Será que não tá
na hora de você entender o nosso? Você sabe o quanto ele tava feliz, sabe o quanto viver isso
era importante pra ele!
— Você tem razão — assumi. — Eu vou consertar! Vou fazer o possível e o impossível
pra resolver!
— Você pode mover o mundo que não significa que Pedro vai confiar no Lucas de novo —
respondeu. — Nem sempre consertar o passado muda o futuro. E ninguém muda nada enfiado
num quarto escuro fingindo que os problemas vão embora assim, porque eles não vão.
Mais uma vez, doeu.
— Eu não posso te acolher agora e fingir que quem tá mais precisando não é o Lucas —
continuou. — Dessa vez, eu preciso escolher o lado dele. Fica bem.
Colecionando ligações encerradas na minha cara. E talvez o motivo seja eu ter em comum
com Mia Duarte a característica que eu tanto aponto nela: egoísmo.
A essa altura do campeonato, a água do miojo já tinha quase evaporado. Desisti de comer.
Sentei ao contrário em uma das cadeiras e apoiei a cabeça baixa no encosto, aceitando minha
realidade de estragar tudo que eu me propusesse a fazer.
Reconhecer os defeitos dos outros é fácil. Reconhecer os seus defeitos é difícil.
Reconhecer o mesmo defeito do outro em você tem o grau de dificuldade equivalente ao de subir
a montanha mais alta do mundo no escuro.
Às vezes a gente lida com um espelho e nem percebe.
Eu não queria estar na minha pele hoje. E Lucas tinha razão. Eu não conseguia resolver
nem a minha vida, mas queria resolver a dos outros. E nessa de tentar ser tudo para todo mundo,
eu me meti em mil problemas e acabei não sendo nada.
Nem para mim, nem para ninguém.
Maldito o dia em que tive aquele sonho e escutei aquela conversa no banheiro. Maldito o
dia em que aceitei ir naquela festa. O dia da carona. O dia que disse que ia ajudar. Todos eles,
sem exceção. A diferença é que, agora, não culpava mais Mia, porque a culpa era minha. As
decisões foram minhas. Todo o tempo. E me desviar dessa realidade não tornaria tudo mais fácil.
Bom, encarar ela também não. Nada, no fim das contas, ia facilitar para mim. E mesmo que eu
resolvesse metade das coisas, não significa que algo ficaria bem.
Só me restava ao menos tentar.
Levantei rápido da cadeira — uma péssima ideia quando se está de barriga vazia, por sinal
— e fui em direção ao quarto, direto para o computador. Eu ia juntar todas as pistas que eu tinha
e que ainda não tinha para chegar em algum lugar sobre toda essa história e parar de andar em
círculos feito um cachorro perseguindo o próprio rabo. Mesmo que eu entrasse em combustão, eu
ia chegar em algum lugar.

Foram horas. Horas até chegar a qualquer coisa concreta ou, ao menos, palpável. E a minha
vontade foi de bater a cabeça na mesa por não ter pensado nisso antes.
Eu revirei todas as postagens sobre Mia no perfil do spotted. Cada minúcia, cada detalhe,
cada letra, sílaba, palavra e frase. E uma das postagens deixou uma pista enorme que a gente
ignorou.
No dia que postaram sobre Mia e eu na última festa na casa dela, a pessoa disse que ficou
vendo da escada onde isso ia dar. Então, quando li isso, comecei a abrir o perfil de todos que eu
lembrava ter visto por lá, procurando qualquer foto, destaque ou coisa do tipo. Foi quando
cheguei no perfil de uma menina do curso de Letras que eu consegui respirar. Porque, no fundo
de uma foto dela, no alto da escada, tinha um garoto. Um garoto que eu tinha quase certeza de
quem era. Mas eu precisava confirmar com uma pessoa. E nessa confirmação, eu poderia
resolver dois problemas de uma só vez.
Lembrem sempre: a pressa é inimiga do jejum. E toda a correria para pegar um ônibus e
para chegar na porta de quem eu fui ver quase me levaram ao chão algumas vezes. Agora, um
lembrete para mim: nunca mais querer cuidar da vida dos outros.
A porta se abriu e o rosto sereno atrás dela se desfez assim que me viu.
— Tá de sacanagem com a minha cara? — disse Pedro Henrique.
— Eu tenho muito pra dizer que talvez você precise ouvir — respondi. — Por favor, me
deixa entrar.
“Cause I kill myself trying and I’m not scared of dying”

Everything to Everyone - Reneé Rapp

— Por que eu deveria te deixar entrar? — Pedro Henrique cruzou os braços. — Pra você invadir
minha privacidade de novo?
— Você tem todo direito de estar bravo, mas me dá dez minutos — pedi. — Por favor.
Pedro olhou para os lados, para baixo, revirou os olhos e abriu mais a porta para que eu
entrasse.
— Dez minutos.
Nos sentamos na mesa da cozinha, um de frente para o outro. Ele me encarava em silêncio,
esperando eu começar.
— Essa história é muito longa, mas eu vou começar pelo mais importante. — Respirei
fundo, tentando não chorar. — O Lucas não tem nada a ver com isso, Pedro. Nada mesmo,
nadinha. Em momento nenhum ele desconfiou de você por qualquer motivo, teve alguma
insegurança ou coisa do tipo. Nunca. E isso tudo só aconteceu porque… Bom, porque quem tava
bisbilhotando a sua vida era eu. Por causa do spotted.
— Spotted? — Pedro Henrique franziu o cenho. — O que o spotted tem a ver com isso?
— Basicamente, quando Mia e eu começamos a conviver…
— Claro! Tinha que ter dedo dela nisso!
— Eu disse que ajudaria ela a descobrir quem tava fazendo tudo aquilo — continuei. —
Pedi nomes que pudessem ser suspeitos e um deles foi o seu.
— O meu? — ele perguntou, surpreso.
— Eu perguntei pra quem ela já tinha feito algo de ruim que pudesse, sei lá, querer se
vingar.
Dei de ombros.
— Vocês duas são malucas? — perguntou, genuinamente. — Isso não é um livro, Aurora.
É vida real. Não é assim que as coisas funcionam.
— E aí… — continuei — Você era um suspeito. E na mesma semana que você virou um
suspeito, foi quando Lucas te apresentou pra gente. Eu gostei de você, quis acreditar que não era
você. E, preciso dizer também, quando o Lucas soube dessa história ele te defendeu sem hesitar.
Ele apostou com todas as letras que você não tinha feito isso, o que só reforça que ele sempre
confiou muito em você.
— Mas, pelo jeito — ele se ajeitou na cadeira —, Você não.
— Eu não tinha certeza — admiti. — Quando começaram a supor coisas sobre Mia e eu,
eu pirei. Fiquei insegura, não confiava em mais ninguém. E eu sei, isso não abre precedentes pra
fazer o que fiz… Mas eu fiz. E agora não dá pra voltar atrás.
“De início eu não queria mexer nas suas coisas, mas eu resolvi fazer por desencargo de
consciência, porque eu não queria que fosse você. Porque você sempre foi um fofo comigo, com
a Rafa e fez muito bem ao Lucas. Eu prometi pra ele que eu ia resolver sozinha se isso desse
merda em algum momento, então isso é uma das coisas que eu vim fazer.
“Pedro, eu nunca vi o Lucas tão feliz. Você mudou a vida dele, ele é completamente
apaixonado por você, confia em você de olhos fechados e não merece pagar por um erro meu. —
O choro começou a cair. — Então, tudo bem se você nunca mais quiser olhar na minha cara, se
você for me xingar por todos os cantos que for, você pode dizer daqui até a China que eu sou
uma filha da puta irresponsável se quiser. Mas não sai da vida do Lucas. Volta com ele. Vocês
tem uma coisa muito bonita pra ser desperdiçada por causa do erro de outra pessoa.”
Pedro ficou em silêncio por alguns segundos, olhando para o lado. Seus olhos se encheram
de água e ele começou a chorar.
— Eu amo o Lucas, Aurora — disse. — Fazer o que eu fiz foi a coisa mais dolorosa da
minha vida.
— Eu tenho certeza que ele te ama também — respondi. — Ele me ligou mais cedo
fazendo um escarcéu, e com razão. Eu fui egoísta demais.
— Você ainda acha que fui eu? — perguntou. — Que o spotted tá na minha conta?
— Eu sei que não — falei. — E esse é o outro motivo de eu ter vindo aqui. — Peguei meu
celular e coloquei em cima da mesa, com o print que tirei aberto. — É o Alexandre, não é? Você
conhece ele? Do seu curso?
— Conheço, a gente entrou no mesmo período. — Pedro franziu o cenho. — De onde você
conhece ele? O que ele tem a ver com isso?
— Um dia minha mãe foi no aniversário de uma colega de trabalho, lá ela conheceu a mãe
desse garoto — falei. — E também nesse dia ela esqueceu os óculos de sol, que a mãe dele
pegou pra que ele me entregasse.
— E?
— E ele me entregou — falei. — Só que eu fiquei pensando depois numa coisa: não nos
conhecíamos, então… Como ele sabia exatamente quem eu era?
— E o que essa foto tem a ver com isso? — perguntou.
— Você conhece essa escadaria?
— Pera… — Pedro espremeu os olhos, tentando enxergar melhor. — Isso é na casa da
Mia?
— Exatamente — assenti. — Do dia que o spotted postou sobre ter visto nós duas da
escada.
— Aurora! — exclamou. — Então ele tem que ter a ver com isso!
— É — concordei. — Eu preciso de ajuda pra chegar até ele. Longe da faculdade. Você
sabe de alguma coisa?
— Sei que ele fazia um bico de bartender num pub lá em Itaipu toda sexta, não sei se ainda
faz — contou.
— Você sabe o endereço desse pub?
— Sei — disse. — Eu te passo, pera aí.
Silêncio enquanto Pedro procurava no mapa o endereço para me mandar.
— Você não precisava estar me ajudando — falei, olhando para ele. — Eu não mereço.
— Se não fosse esse moleque, eu não teria quase perdido o Lucas. — Ele me olhou. —
Você realmente não mereceria ajuda. Mas ele também não merece. E se eu não te ajudar agora,
eu ajudo ele por tabela — falou, mexendo no celular. — Pronto, tá tudo aí.
— Obrigada, de verdade — respondi, olhando a mensagem na tela do meu telefone.
Levantei da cadeira e dei um sorriso singelo para ele. — Obrigada pelos dez minutos.
Eu ia saindo quando Pedro me chamou.
— Aurora — Ele me encarou. — Afinal, você e a Mia… Estão mesmo juntas?
Abri a boca e enchi os pulmões de ar para responder o que eu sempre quis. A verdade. Que
sim. Que ela e Larissa tinham terminado e que a gente estava ficando há muito tempo.
Foi quando eu lembrei que, dizer que não, deixou de ser mentira.
— Não mais. — Espremi os lábios na tentativa de conter o choro, mas logo senti meus
olhos encherem.
Virei as costas. Eu não queria contar sobre isso para Pedro, porque ele tinha os problemas
dele no momento. Falar de mim para ele agora seria egoísmo.
Quando abri a porta, me deparei com Silvia.
— Aurora, que surpresa! — ela exclamou e espremeu os olhos me fitando. — Oh minha
filha, você tá pálida! E tá chorando? O que houve?
— Nada, tia — falei. — Tá tudo bem. Eu já tô indo.
— Nem pensar! — Ela colocou a mão na minha frente. — Pode voltar pra dentro, porque a
gente vai conversar.
E pela primeira vez em dias, eu senti abertura para chorar no ombro de alguém. E foi o que
eu fiz.
“Vou aconselhar o que você fizer, sua alma é o seu cobertor”

Antes de Tudo - Liniker

— Você comeu hoje, querida? — perguntou Tia Silvia, enquanto passava um café.
— Mais ou menos — menti.
— Se eu te deixasse ir pra casa sem comer você ia desmaiar no caminho — ela disse,
colocando um pratinho com um pedaço bem servido de bolo de fubá na minha frente. —
Pedrinho, você não ofereceu comida pra ela, menino?
— Nem lembrei, mãe. — Ele respondeu à ela me olhando. Pedro queria entender o que
estava acontecendo.
O café ficou pronto e Silvia o colocou na garrafa térmica, trazendo para a mesa. Ela serviu
uma xícara para mim, uma para ela e uma para Pedro.
— Obrigada.
— Agora fala comigo, minha filha — ela deu abertura, se sentando de frente para mim. —
O que tá tirando essa sua cabecinha do eixo?
Comecei a chorar. De novo.
— Ai, tia… — Respirei fundo, tentando falar. — Tá tudo de cabeça pra baixo. Quando as
coisas pareciam estar indo bem, veio um problema atrás do outro…
— Ih… — Silvia bebericou o café. — Isso aí tem cara de ser amor. Quem quebrou seu
coraçãozinho?
— Foi a Mia — contei cabisbaixa, antes de comer um pedaço do bolo.
— A mesmo que era amiga do Pedrinho? — perguntou, surpresa. — Gosto tanto dela.
Automaticamente, fiquei confusa.
— Mas… — Olhei pra Pedro de cenho franzido.
— É — disse ele. — Minha mãe gosta dela — Deu de ombros. — Vai entender.
— Não precisa tentar entender, minha filha. Eu explico — falou. — Aquela menina errou
com meu filho, e eu entendo e respeito a decisão e o sentimento dele sobre isso. É claro que
também fiquei chateada, tomei as dores dele… Mas esse menino aqui — ela fez um carinho no
ombro dele — tem muito amor pra dar. E a Mia não soube lidar com isso porque ninguém nunca
olhou pra ela com afeto antes. Eu fui igual ela na idade de vocês. — Ela bebeu mais um gole de
café — Amarga. Me rodeava de amizade vazia porque sabia que em qualquer sinal de carinho eu
ia me assustar. E pensa num susto, no sentido literal. A gente dá um pulo. Quando a gente se
assusta, acaba assustando o outro também. E nem sempre é por querer.
— Eu só queria que ela fizesse questão de parar de me esconder dos outros — admiti em
voz alta, com a cabeça apoiada na mão.
— Talvez esconder você dos outros seja a maneira que ela encontrou de esconder você
dela mesma — Silvia ressaltou. — Minha filha, quando a gente tá acostumada a errar e afastar as
pessoas, a gente procura todos os meios que podem evitar que a gente erre. O medo de errar faz a
gente errar, só que de um jeito diferente.
— E às vezes esse erro acaba sendo bem pior… — completou Pedro.
— É… — Tia Silvia suspirou. — E isso é parte da grande aventura que é ser humano.
— Ela foi egoísta, tia Silvia — contei, depois de um gole no café. — Não só nesse ponto.
— Todos nós somos egoístas em algum momento, Aurora — falou. — É uma tendência. E
quando a gente aponta mil dedos ao outro por isso, a gente abre margem pra se sentir péssimo no
dia que chegar a nossa vez de fazer igual.
— Já aconteceu. — Me encolhi, comendo mais um pedaço de bolo.
— Escuta, minha filha… — Ela pegou minhas mãos por cima da mesa. — Eu não tô aqui
pra dizer o que você deve ou não fazer. O que eu tô te dizendo é pra ouvir seu coração. Ouvir a
razão é importante, mas se o coração fala mais alto, você vai viver em conflito com você mesma.
Reafirmando que fez a coisa certa e pensando no quanto queria ter ido pelo caminho contrário.
Nesse momento, percebi Pedro respirando fundo, pensativo.
— O que eu faço?
— O que você sentir — ela disse com um sorriso.
Eu sentia muitas coisas. E faria todas elas.

Sexta feira, quatro da tarde. Sorte que minha mãe me emprestou o carro. Estava de plantão na
frente do pub onde Alexandre trabalhava, esperando ele aparecer. Rua vazia. O lugar só abria às
seis, mas com certeza ele chegava lá mais cedo para preparar o bar.
Eu tinha razão. Avistei o garoto virando a esquina com duas garrafas de gin nas mãos. Bati
a porta do carro e me posicionei perto da porta do bar, esperando ele chegar ali.
— Aurora, oi! — respondeu, surpreso. — Tudo bem?
— Tudo bem, sim — respondi simpática. — Queria conversar com você. Jogo rápido.
Pode ser?
— Então… — ele desconversou. Provavelmente já sabia o que eu queria. — Eu preciso
muito entrar e deixar essas bebidas. — Alexandre apertou o passo para destrancar a porta. —
Tenho que buscar mais ainda, sabe como é né?
Antes que ele abrisse a porta, arranquei a garrafa de gin da mão dele e joguei com tudo no
chão, fazendo ela se espatifar em vários pedaços e o cheiro de álcool se espalhar no ar.
— Vou refazer a pergunta. — Olhei nos olhos dele, a voz firme. — A gente vai conversar,
não vai?
“Step right up to watch the freak go crazy”

FREAK - Demi Lovato

— Você é louca, porra?! — Alexandre exclamou, assustado. — Tem setenta reais de prejuízo no
chão!
— Vão ser cento e quarenta se você não me disser o que você tem a ver com as fofocas do
spotted e por que você fez isso — ameacei.
— Você é definitivamente louca, eu não tenho nada a…
Antes que ele acabasse a frase arranquei a outra garrafa da mão dele e fiz menção de
arremessar longe.
— Não! — exclamou. — Não faz isso! Eu não sei do que você tá falando, eu juro!
— Você tem cinco segundos pra me dar uma resposta convincente.
— Eu já disse!
— Cinco, quatro…
— Você só pode estar brincando!
— Três, dois…
— Tá! — respondeu, desesperado. — Eu enviei algumas coisas!
Joguei a garrafa.
— Você disse que eu tinha cinco segundos!
— Mas não disse que não jogaria — respondi. Peguei o garoto pelos ombros e empurrei
ele contra a parede — Por que você fez isso?
— Por nada. — disse encolhido, com medo. — Eu tava entediado.
— Entediado é o caralho! — gritei. — Fala!
— Não! — Ele gritou de volta.
Ergui meu joelho de uma vez só e acertei ele no meio das pernas com força. Alexandre se
retraiu, grunhindo de dor.
— Fala, porra! — esbravejei. — Não tenho o dia todo!
— Me pediram — admitiu baixinho.
— O que você disse?! — insisti.
— Me pediram! — exclamou. — Me procuraram pedindo ajuda pra fuder a Mia e eu
aceitei!
— Quem te procurou?!
— Eu não sei — disse.
— Você não sabe? — Ri com cinismo, logo em seguida dei um chute na canela dele. —
Quem foi, porra?!
— Ai! — Reclamou de dor. — Foi uma conta fake — contou. — Eu não sei quem tava por
trás.
— Mentiroso do caralho! Você acha que eu caio nessa?! — perguntei, com os olhos
arregalados, incrédula. — Que você recebeu uma merda de mensagem de alguém aleatório,
pedindo pra destruir a vida de uma pessoa qualquer e você simplesmente aceitou porque tava
entediado?!
— Foi exatamente o que aconteceu.
Eu estava fora de mim. Fora a ponto de acertar um soco na mandíbula do garoto. O
pescoço dele virou no impacto e ele colocou uma das mãos no rosto.
— Tudo bem, eu sei quem foi! — admitiu. — Só que ela me pagou uma baita grana pra
ajudar nisso e ainda mais pra eu fechar a boca.
— Ela? — franzi o cenho.
Sabe nos filmes? Quando tudo começa a rodar e o som parece apenas um ruído, enquanto o
protagonista liga os pontos e percebe que a resposta para a principal pergunta sempre esteve na
frente dele? Debaixo do nariz?
Debaixo do meu nariz.
Dinheiro. Sempre por perto. Brigas. Uma ex. Suspeitas.
Ela.
Em Pânico, geralmente há dois vilões. Um mandante com motivação e um idiota com
índole duvidosa. E um deles sempre é o namorado.
— Foi a piranha da Larissa, não foi?! — exclamei.
Alexandre não disse uma palavra.
— Se você negar eu vou quebrar a merda do seu nariz e você sabe que eu consigo fazer
isso! — gritei, sentindo as veias saltarem em meu rosto. — Foi a Larissa?!
E então, Alexandre fez que sim com a cabeça, amedrontado.
— Me dá seu celular — ordenei. — Agora!
Ele tirou o celular do bolso tremendo e deu na minha mão. Virei a tela pra ele,
desbloqueando com identificação facial. Vasculhei as mensagens procurando a conversa de
Larissa com ele, até encontrar.
Meses de plano, milhares de mensagens decidindo a próxima postagem, vários acordos
sobre dinheiro ou, até mesmo, favores. Na minha frente. O nome de Mia diversas vezes, o meu
também. Eu não sabia se gritava, chorava ou terminava de arrebentar a cara de Alexandre.
Tirei foto de tudo com meu celular, já que o garoto estava assustado e com dor demais para
sair do lugar. Quando acabei, joguei o celular dele no chão.
— Coloca na conta daquela cobra — falei, saindo. — E vai pro inferno.
Peguei o carro e saí dirigindo completamente possessa, tomada pela raiva. O quão baixa
você precisa ser pra fazer uma coisa dessas com a pessoa com quem você dorme? Tudo porque
você quer encobrir a sua merda! Essa é, sem sombra de dúvidas, a pior coisa que eu já vivi. E
não só por mim.
O meu sangue não fervia só porque Larissa ferrou com a minha vida, mas porque ela fez
isso com todo mundo ao meu redor.
E, principalmente, porque ela tinha destruído completamente e de todas as formas a pessoa
por quem eu, acidentalmente, me apaixonei.
Chega. Chega de ser boazinha. Chega de ser cautelosa, mansa e comedida. E chega de
deixar os outros acabarem comigo. A partir de agora, eu assumiria as rédeas para resolver minha
própria vida.
E o próximo passo era tentar resolver as coisas com Mia Duarte.
“I can’t love you in the dark, it feels like we’re oceans apart”

Love in The Dark - Adele

Chove em Niterói. E, geralmente, chuva é sinônimo de engarrafamento. A cidade já não tinha o


melhor dos trânsitos, mas com chuvas como a de hoje conseguia ficar pior. Para piorar, a rádio
estava chiando, provavelmente um problema de sinal. Metas para o dia em que eu for uma
diretora de cinema renomada e rica: um carro com bluetooth pra não passar por isso.
E, claro, a ansiedade. Isso tornava tudo mil vezes mais difícil. Minhas mãos batucavam
inquietas o volante, minha respiração parecia escassa dentro do carro fechado e, se não
controlasse os pés, ia forçar o acelerador com tudo e causar um engavetamento.
Naquele momento, já estava a menos de cinco minutos de distância do condomínio de Mia,
mas para chegar a ele já tinha se passado meia hora. Inviável.
E cinco minutos foram quase suficientes para eu dar meia volta e desistir. Ir para casa,
criar um perfil falso e mandar as fotos das mensagens. Porque, resolvesse eu minha vida ou não,
é Mia quem não sabe o que quer. E bater na porta dela dizendo toda a verdade não vai fazer ela,
magicamente, se decidir. Não vai fazer ela, de repente, querer tanto quanto eu. Fazer com que o
peito dela grite por mim como o meu grita por ela.
Mas eu não voltei atrás, porque a história do spotted ia além do que eu e ela somos, já
fomos ou poderíamos ser. Ela precisava da resposta. E chega de ser egoísta.
Quando ergui a mão para tocar a campainha, notei os nós dos meus dedos roxos e um
pouco machucados. Foi quando parei para racionalizar a dor, porque a adrenalina até agora não
me tinha permitido.
Dane-se. Faria de novo.
— Aurora? — Mia me olhou, genuinamente surpresa, ao abrir a porta.
— Tudo se encaixou, Mia — comecei a soltar as palavras apressada, entrando na casa dela.
— Eu sei que você não esperava me ver aqui, talvez você esteja brava com alguma coisa, mas
isso é importante. — Fui na direção da sala. — Eu revisitei todas as postagens, juntei tudo, que
não era muito. Eu nem deveria ter feito isso, porque na verdade eu tô tão cansada, mas o fato é
que muita coisa aconteceu e a gente precisa… — parei na entrada da sala — conversar.
Queria que fosse um pesadelo, porque a sensação era de estar no inferno. A diferença é que
o diabo tinha cabelos loiros e estava sentado no sofá, com duas limonadas na mesa de centro à
sua frente.
— O que ela tá fazendo aqui? — perguntei, travada. As mãos tremendo.
— O que você tá fazendo aqui? — Larissa me encarou, debochada.
— Aurora, eu… — começou Mia.
— Você destrói a vida dela inventando que ela te traiu e tem coragem de vir na casa dela?
— perguntei para Larissa, me aproximando dela.
Silêncio.
— Larissa, o que ela tá falando? — Mia perguntou, confusa.
— Um delírio, só pode! — Larissa exclamou, levantando do sofá. — Que viagem é essa,
garota? Se toca!
— Ela. — Apontei para Larissa, olhando para Mia. — Ela é o anônimo. Com a ajuda de
mais uma pessoa. Alexandre é o nome dele.
— Aurora, por favor, né? — Larissa respondeu. — Sei que você tá ressentida porque a Mia
não quis te comer, mas isso é demais.
Foi automático. Quando me dei conta, o som estalado do tapa na cara já ecoava no
ambiente e a palma da minha mão já estava quente.
— A Mia não é um pedaço de carne, mesmo que você não acredite — gritei. Olhei para o
copo de limonada. — E eu tô te devendo isso aqui. — Peguei o copo e joguei com tudo a bebida
na cabeça dela. Deixei o copo cair no chão e sai andando. — E, a propósito, a gente transou sim.
Várias vezes. E foi bom pra caralho.
Não fiquei ali pra ouvir resposta, argumentação ou ver o desenrolar. Porque, apesar de ter
dado a Larissa o que ela merece, ver ela ali me destroçou por dentro. Quando passei pela porta de
entrada, o choro caiu junto com a chuva que se mantinha.
— Aurora! — Mia gritou, vindo atrás de mim na chuva. — Eu posso explicar!
— Explicar, Mia? — questionei, com o choro na voz. — Não tem o que explicar. Eu te
disse pra você decidir o que você queria e, aparentemente, você decidiu. Pelo jeito eu não faço
parte da sua decisão, é isso.
— Princesa, não fala assim…
— Não me chama de princesa! — esbravejei. A chuva caía pesada sobre nós. — Você não
tem direito de brincar assim comigo. De achar que pode ser carinhosa quando eu chego e
encontro você com a sua ex-namorada, a mesma que te fez de gato e sapato, te difamou pra toda
a faculdade e provavelmente te colocou um chifre. — Comecei a falar rápido e, junto disso,
hiperventilar. — Você não pode fazer isso comigo, Mia! Me tratar normalmente como se eu não
tivesse passado os últimos dias chorando e sentindo sua falta. Como se nós duas fosse realmente
acontecer. Você não pode me fazer pensar que você me ama, porque eu te amo e eu não quero te
perder outra vez! — Um choro forte saiu de dentro do meu peito. — E eu já sei que se eu te tiver
de novo eu vou te perder, porque você não tá pronta pra me entregar coragem. E eu não consigo,
Mia! Não consigo amar com medo. E eu dei toda a coragem que eu tinha, porque é isso que você
merece. — Desgrudei a franja encharcada da testa. — Mas é isso que eu mereço também.
Saí andando com o som dos trovões me lembrando que isso era uma tempestade. Algo que
chega causando estrondos, alvoroços e destruição. Mas, acima de tudo, algo que eu podia prever.
Eu sabia que no nosso filme esse era o único fim. Eu tinha que aceitar que estaria destinada a
viver só os romances com finais trágicos e que os finais felizes não foram guardados para mim.
Eu nasci para ser a filha amorosa, a irmã confidente, a amiga que erra ou, às vezes, que
acerta. Não para ser por quem a garota bonita se apaixona e enfrenta o mundo nas cenas finais.
Dirigi para casa chorando, o que me faz crer que eu tenho um santo forte me protegendo. A
chuva começou a diminuir só quando já estava no quarto, de banho tomado e debaixo do
edredom.
— Aurora? — Ouvi a voz de Bela baixinho do lado da cama. — Você quer conversar?
— Quero sumir, só isso — choraminguei.
— Se você sumir, a gente vai sentir saudade — respondeu, com carinho. — Qualquer coisa
eu tô aqui do lado, tá?
Fiquei quieta por uns instantes.
— Bela — chamei.
— Oi.
— Eu segui seu conselho e dei um soco em alguém — falei. — Só que eu não tô me
sentindo melhor.
— Talvez porque o sentimento que tem aí não é raiva — respondeu. — Coração partido
não cura com violência, cura com amor.
— E se não tiver amor pra curar?
— Sempre tem. — Bocejou. — Amor não é só romance.
Respirei fundo. Era hora de aceitar o tipo de amor que eu tinha ao meu redor.
O romance não era mesmo pra mim.
“O amor nos une para sempre, não há razão pra chorar”

No Meu Coração Você Vai Sempre Estar - Ed Motta ft. Suely Franco

Naquele domingo, eu precisaria viver.


Fazia dois dias que eu tinha descoberto tudo e que vi Larissa na casa de Mia. Se a sensação
ainda era de um soco no estômago? Era. Durante dois dias eu revisitei todas as cenas na minha
cabeça, me questionei sobre tudo que eu poderia falar ou tudo que eu não deveria ter falado,
pensei sobre o que fiz com Alexandre quando precisei enfaixar a mão machucada e me perguntei
se eu não abaixei demais a minha guarda ao dizer tanto pra ela. Também pensei muito sobre
Rafaela e Lucas, que continuavam não falando comigo. Com razão. Não tive notícias de Pedro
Henrique, mas pensei várias vezes em ir atrás descobrir, como desculpa pra chorar no ombro de
Tia Silvia de novo. Dediquei esses dias inteiros a sofrer com meus próprios problemas e ser, sim,
um pouco egoísta.
Mas hoje não.
Porque minha irmã precisava de mim para uma coisa.
— Eu vou desmaiar a qualquer momento, Aurora. — Bela se sacudia dentro do quarto,
andando de um lado para o outro, enquanto eu estava sentada na cama tentando ajudar.
— Não vai não, respira — pedi, inspirando e expirando para que ela acompanhasse. —
Lembra que ela não vai te matar.
— Até onde a gente sabe — respondeu.
— Bela, você é adulta — lembrei. — Se você surtar, vai ser pior só pra você.
— Eu tô com muito medo. — Ela parou, me olhando. Os olhos já enchiam de lágrimas. —
Eu não quero mais contar.
— Ei… — Levantei rapidamente e abracei ela apertado. — Você já teve o ímpeto de
contar, isso já é difícil. Não desperdiça, você consegue. Eu vou segurar sua mão o tempo
todinho.
— Jura? — perguntou.
— Juro. — Ergui o mindinho. — De dedinho.
— Tá bom. — Bela respirou e juntou o mindinho com o meu. — Vamos.
Caminhamos juntas até a cozinha, onde minha mãe fazia o almoço.
— Oi meninas, tá quase pronto. — Ela se virou para nos olhar e logo percebeu pelas
feições algo errado. — O que foi?
— Preciso falar com você, mãe. — Bela disse, trêmula.
— Ai meu Deus — Mamãe respondeu, desligando o fogo. — Tá tudo bem? Aconteceu
alguma coisa?
Bela me olhou, com medo.
— Acho melhor você sentar um pouquinho, mãe — falei, puxando a cadeira para ela. —
Vou pegar uma água.
— Sentar?! Água?! — exclamou. — Pelo amor de Deus, alguém me explica o que tá
acontecendo! Bela, alguém te machucou? Fez alguma coisa com você?
— Calma, mãe — pedi, trazendo dois copos. — Ninguém se machucou, não aconteceu
nada nesse sentido — Sentei do lado de Bela e dei a mão para ela, dando apoio. — Que tal você
começar a falar, irmã?
— Tá bom… — Bela respirou fundo. — Eu preciso te contar uma coisa, mãe.
— Contar o que? — respondeu nossa mãe, já desesperada.
— Você sabe as vezes em que eu disse pra vocês que ia pra casa da Bruna? — Mamãe fez
que sim. — Eu… não tava indo pra casa da Bruna.
— É o que? — Mamãe franziu o cenho. — Você anda mentindo pra mim, Bela Maria?
— Me desculpa. — Bela abaixou a cabeça.
— Eu nunca te dei motivos pra mentir, Bela. — Ela cruzou os braços. — Nunca dei motivo
pra nenhuma das duas fazer isso.
— Eu sei — concordou.
— Então se você não tava indo pra casa da Bruna, onde você tava indo? — Dona Sandra
perguntou. Embora ache que ela já sabia a resposta.
— Pra casa do Caio — Bela apertou minha mão com firmeza —, meu namorado.
— Namorado?! — exclamou. — Como assim namorado?! Desde quando você tem um
namorado e eu não sei?!
— Há seis meses.
— Seis meses?! — Mamãe esbravejou. — Você tá mentindo pra mim há seis meses?!
— Desculpa. — Bela começou a chorar. — Foi acontecendo, desculpa.
— Bom, o mínimo que eu espero agora é conhecer esse menino, ver se ele é bom pra você.
— Mamãe falou. — Queria ter feito isso antes, mas, né…
— Tem mais, mãe — falei. Olhei para Bela. — Você consegue — falei baixinho.
— Aconteceu uma… coisa — Bela começou a falar.
— Que coisa, Bela? — Nossa mãe se segurava na cadeira, aflita.
— Eu… — a voz da minha irmã falhava — Eu tô…
— Filha… — Mamãe olhava pra ela com expressão surpresa. Ela já tinha entendido. —
Você tá grávida?
Bela fez que sim com a cabeça e o silêncio tomou conta daquela cozinha. O que foi menos
de um minuto parecia uma eternidade. Mamãe bebeu a água toda de uma vez só.
— Grávida. — Ela encarou o nada, depois voltou a olhar para a minha irmã. — Como isso
aconteceu, filha? Você sempre foi tão responsável.
— Juro que a gente usou camisinha, mãe — Bela respondeu, chorando. — Acho que tava
furada, era pra acontecer com alguém e a azarada era eu, sei lá!
— Há quanto tempo você sabia disso, Aurora? — Ela direcionou o olhar para mim.
— Uma semana, mãe — contei. — A Bela me pediu pra não dizer nada e eu não ia dizer
até ela se sentir preparada.
— E há quanto tempo você sabe? — Perguntou para Bela.
— Sei lá, mais de um mês, eu acho — Bela respondeu.
— E você escondeu esse tempo todo?! — Mamãe bronqueou. — Os exames, filha, essas
coisas, tudo! Você precisa fazer um monte desde o comecinho!
— Eu fiz… — disse, de cabeça baixa. — A… a mãe do Caio me levou.
Esse foi o momento em que minha mãe quase caiu da cadeira. Porque ela sempre nos deu
todo o espaço seguro possível para que corrêssemos para ela no primeiro sinal de problema.
Nada doía mais nela do que saber que, quando Bela precisou, outra pessoa esteve lá fazendo o
papel dela.
— Você mentiu pra mim, escondeu o namorado, escondeu a gravidez e confiou em outra
pessoa pra tudo isso? — perguntou. — Bela, eu achei que tinha feito vocês desenvolverem
confiança pra me dizer tudo!
— E você fez — Bela frisou. — Não é que eu não confie em você, mas é que eu não
consegui dizer. — O choro de Bela foi aumentando. — Eu sabia que quando eu falasse do Caio
você ia pedir pra eu te apresentar, pra trazer ele aqui e eu não consegui lidar com a ideia, porque
desde que o papai morreu eu sinto um bloqueio enorme com a ideia de trazer um namorado pra
dentro de casa. — Soluçou. — Eu não queria ter escondido, eu queria ter contado tudo pra vocês
duas, queria que pudessem conhecer o cara incrível que ele é, mas não dava! É a primeira coisa
séria que eu vivo e meu pai não tá aqui pra ver… — choramingou.
— Bela, é claro que você sente falta do seu pai, mas isso não pode fazer você parar sua
vida! — exclamou. — Você não pode se privar por causa da ausência dele.
— Como eu não vou fazer isso se você mesma faz? — apontou. Mamãe ficou em silêncio.
— Você nunca mais foi na praia, mãe. Você amava a praia. Você nunca mais conheceu ninguém,
nunca mais saiu a noite pra jantar. Você é o maior exemplo disso.
Mais silêncio, mas dessa vez mais curto, porque dona Sandra começou a chorar. E eu
também.
— Vocês têm razão. — Ela apoiou a cabeça nas mãos. — Eu não sou uma boa referência
nesse sentido. Parei minha vida em muitas coisas quando o pai de vocês se foi e não é justo
ensinar pra vocês que isso é certo. Me perdoem.
Um momento para pensar. Para refletir. A gente não conversa muito sobre a morte, mas
não é estranho que a gente evite o assunto que é a única certeza que temos sobre nós?
— Se ele tiver vendo a gente agora onde ele tá, tá achando tudo isso uma bobagem. — Dei
uma risada fraca no meio do choro.
— Com certeza. — Mamãe riu também.
— Ele ia chamar a gente de manteiga mole — Bela completou.
— Ele ia.
Mamãe enxugou as lágrimas e levantou, parando na frente da cadeira de Bela. Ela se
abaixou e pegou as mãos de Bela.
— Me desculpa, filha — pediu. — Eu entendo os seus motivos. E eu tô do seu lado. A
gente vai fazer isso direitinho, desde o começo, como tem que ser.
— Me desculpa, mãe. — Bela inclinou o corpo pra abraçar minha mãe, que levantou um
pouco para que o abraço acontecesse.
— Por que você tá pedindo desculpa, meu amor?
— Por ter deixado isso acontecer — Bela choramingou.
— Oh filha, essas coisas acontecem — Mamãe fez carinho no cabelo dela. — Você vai
conseguir e você não vai estar sozinha. Nem um segundo sequer.
— Não mesmo. — Apoiei a mão delicadamente nas costas de Bela.
— Mas e a faculdade? — Bela perguntou, preocupada.
— Você vai continuar indo até onde você conseguir e se sentir bem. E quando esse bebê
nascer, a gente vai dar um jeito. — Mamãe garantiu. — Sempre tem um jeito.
— Mas você vai se formar, isso eu garanto — falei.
— Eu não sei se eu consigo — Bela respondeu.
— Consegue — Dona Sandra assegurou —, mas se não, tá tudo bem também. A gente não
tem que dar conta de tudo.
E falando em dar conta de tudo, uma voz gritou meu nome no portão. Uma voz que eu não
estava pronta para ouvir.
— Eu já venho — disse pra elas, levantando e indo para o lado de fora.
Respira, Aurora. Pensa bem no que dizer e como dizer.
— O que foi, Mia? — perguntei, parando no portão.
“Eu quero por tudo lhe ver aqui, mas eu quero teu peito gritando meu nome”

Abril - Anavitória

— Abre o portão? — pediu. — Vamos conversar numa boa. Sem briga, sem impulso. Só duas
pessoas se ouvindo e dizendo o que tem que dizer.
Pensei por alguns segundos e concordei, deixando ela entrar.
— Obrigada.
— O que você quer me falar? — perguntei, fechando o casaco e apertando contra o corpo.
— Deve ser sério, pra você vir até aqui.
— Não aconteceu nada com a Larissa, Aurora — garantiu. — Só chamei ela pra conversar.
— É, uma conversa bem amigável, pelo jeito.
Suspirei.
— Tem algum problema nisso?
— Com ela e a Karina tinha um problema, não é?
Silêncio. Mia olhou minha mão enfaixada.
— Você se machucou? — perguntou, preocupada, tentando pegar minha mão. — O que
aconteceu?
— Não precisamos falar disso. — Puxei a mão de volta, olhando para o lado. — E você vai
saber, de qualquer forma.
— Tudo bem. — Ela suspirou, frustrada. — É… Bom, vou ser sincera. Ela até tentou
alguma coisa, mas eu não quis.
— Por quê? — perguntei.
— Eu não menti quando deixei claro que só tenho olhos pra você, Aurora — falou. — Não
mesmo.
— Sabe, Mia — Cruzei os braços e apoiei o ombro no portão —, isso se esvazia um pouco
quando ninguém pode saber de que maneira você me vê. — Encarei ela. — Tá, no começo essa
coisa de fugir pra longe num lugar só nosso era divertida. Era bonito, era… simbólico. Só que
com tudo que aconteceu comigo na última semana eu me dei conta de que não dá pra escapar do
mundo real. Fugir não me impediu de ter que estar aqui pela gravidez da minha irmã, de lidar
com o luto do meu pai, de brigar com meus melhores amigos e de ter que desfazer os problemas
que eu causei. E, bom, também não impediu que a gente acabasse aqui.
— Depois que você saiu eu confrontei a Larissa — contou. — Eu não duvidei de você, tá?
— Eu fico feliz com isso, Mia — respondi. — Só que não é o bastante. Não muda as
coisas.
— Muda se essa história tiver acabado. — Mia afundou as mãos nos bolsos.
— É isso que pega pra mim — Sacudi a cabeça de leve. — Você precisa que tudo mude,
que essa história acabe. Vamos supor que ela realmente acabou, certo. A gente fica bem. E se as
pessoas continuarem achando coisas ou, sei lá, se surgir um novo boato na semana que vem? A
gente se esconde de novo? Mente pra todo mundo?
— Eu não sei.
Mia respirou fundo, olhando para o chão.
— Pois é… — apontei, encolhida. — Você não sabe. Essa é a sua incerteza.
— E você? Não tem nenhuma? — perguntou. — Você não tem medo de nada?
— Tenho, de muita coisa — respondi. — Eu nunca disse que não tinha medo, Mia. Meu
intuito não é pagar de durona, sabe? Tudo bem ser vulnerável. Mas nenhum medo meu é maior
do que o medo de não viver a minha verdade. Enquanto o seu é de viver a sua.
— Em tanta coisa igual, as nossas diferenças ainda ecoam na nossa cabeça — Mia disse,
cabisbaixa.
— É. — Respirei fundo. — Eu só sei que… eu gosto muito da versão da Aurora que
nasceu naquele apartamento. Mas é tanto que eu quero que ela exista fora dele. Enquanto você…
parece que quer deixar a sua lá.
— Eu sou a mesma fora de lá.
— Não parece — Olhei pra ela. — A Mia de lá era muito mais livre. E ninguém é livre de
fato vivendo na sombra. Você, melhor do que ninguém, devia saber disso.
— Você tá desistindo da gente então? — Ela me olhou.
— Eu não sei se desistindo de nós é a forma certa de dizer. — Respirei, segurando o choro.
— Só, talvez… não desistindo de mim. E, claro, Mia, o meu maior desejo era que você
começasse a entender que o mundo também é sua casa. Que dançasse livre por ele. Mas isso é o
que eu quero, talvez não seja o que você quer. E eu não posso cobrar que você queira por minha
causa.
— Viver sobre olhares e expectativas a vida toda faz a gente não se desprender tão fácil
disso. — Mia também segurava o choro. — Você entende?
— Eu entendo — assenti. — E respeito. Por isso, não posso te exigir. Mas tenho que ser
sincera e dizer que uma pontinha de mim vai torcer pra que algo mude enquanto ainda der
tempo.
— Eu também entendo e respeito — ela respondeu. — E também, por isso, não posso te
fazer promessas. — Mia olhou para os lados. — Então… acho que tô indo.
— Tudo bem — respondi. — Obrigada. Por ter vindo.
— Obrigada por abrir o portão — ela respondeu, já saindo. — Tchau, Aurora.
— Tchau, Mia. — Acenei para ela antes de passar para dentro e fechar o portão.
Quando olhei para a porta de casa, mamãe e Bela me olhavam, esperando o que viria a
seguir. E o que veio a seguir fui eu, correndo para as duas, que me abraçaram ao mesmo tempo,
me deixando chorar o choro mais intenso de todos os tempos.
E sim, tinha uma pontinha de mim que queria acreditar em uma reviravolta, mas ela estava
escondida para não se decepcionar.
Eu odiava Mia Duarte antes. Agora, eu a amava. E amar alguém que você não tem é muito
pior do que odiar alguém que está ali. Tanto amor quanto ódio são emoções muito fortes que te
conectam com a outra pessoa.
Eu odiava tanto ela no começo que não conseguia ignorá-la. Eu tanto não a ignorei que
cada detalhe, mania e jeito seu eu decorei. E reparei. E passei a apreciar. E agora a amava tanto
que precisaria ignorá-la. Para não lembrar cada detalhe, mania e jeito. Para apagar. Para desviar.
E esquecer.
Só que se você não esquece quem odeia, quem você ama também não.
“Eles vão falar, mas não vão me culpar só por amar”

Fugitivos - DAY LIMNS

Acordei naquela quinta-feira em uma situação completamente deplorável. Quando vesti a roupa
depois do banho e olhei no espelho, só uma coisa passava na minha cabeça: essa é a face de
alguém que vai reprovar em Audiovisual.
Um trabalho valendo toda a nota do período, esquecido em meio a tudo que se sobrepôs. O
pior, um trabalho promissor, com uma temática ótima e participações carregadas de história e
sentimento. Tudo para dar certo, menos o próprio trabalho, de fato, pronto.
A Aurora do futuro jamais vai perdoar a do passado por ter que fazer prova final. Mas a do
presente? Ah, ela perdoa. Vou me validar, por enquanto.
Minha mão tinha melhorado um pouco nesses dias, suficiente para desenfaixar, mas ainda
não cem por cento. Espero que não pensem que sou uma dessas pessoas que soca a parede.
— Uma pena que não vai dar pra ver seu filme, irmãzinha — Bela comentou do meu lado,
passando rímel.
Abrir o jogo tira um peso das costas e, claro, com Bela não foi diferente. Depois que
contou para nossa mãe, seu humor melhorou. Claro que não tinha a ver só com isso, mas também
com o final do primeiro trimestre, a fase onde tudo é mais delicado e alguns desconfortos são
maiores. O que importava, no fim, é que minha irmã estava de volta.
— Por que você veria? — perguntei. — Você nem é do curso.
— Querida? — Arqueou a sobrancelha. — Hora complementar. Por que você acha que a
turma vai apresentar no auditório?
— Que dia ótimo pra lidar com a faculdade toda. — Abri um sorriso amarelo.
— Você consegue. — Bela me deu um beijinho na bochecha. — Não vai apresentar
mesmo.
— Não diria que isso é tão reconfortante. — Franzi o cenho.
— Eu vou estar lá com você! — exclamou. — Isso não te conforta?
— Vou fingir que sim pra não ofender. — Bela me deu um peteleco, indignada. — Ai! É
brincadeira!
— Deixa de ser boba. — Ela cruzou os braços. — Agora dá licença que eu vou usar o
banheiro.
— Mas eu também quero fazer xixi — reivindiquei.
— Você não tá grávida, pode esperar — Bela argumentou. Me dei por vencida e saí do
banheiro.

Não sei se foi a sequência dos últimos ocorridos, ou simplesmente o tempo que passei não tendo
contato com gente, mas ao avistar o auditório tão cheio, meu coração acelerou no peito. Eu ia até
a mesa avisar a Teresa sobre o trabalho, voltar e me enfiar em algum buraco. Só isso.
Me aproximei dela, enquanto ela estava focada mexendo no notebook, organizando as
pastas das duplas.
— Professora? — chamei.
— Ah! — exclamou ao me ver parada ali. — Oi, Aurora. O que foi?
— Eu queria conversar com você sobre a apresentação do documentário — falei. — Minha
dupla é a Mia Duarte.
— A Mia já veio aqui e pediu pro de vocês entrar no dos que vão ser exibidos agora de
manhã, não se preocupa — tranquilizou.
Mia acabou o documentário?
— Ah, ela pediu? — respondi, tentando disfarçar a total surpresa. — Então tá bem,
obrigada.
Procurei um canto para sentar junto com Bela.
— A Mia aparentemente entregou o trabalho — falei com ela, confusa, enquanto me
sentava.
— Esquisito. — Bela franziu o cenho. — Pelo menos é melhor, né?
— É… — Suspirei. — Escapo da prova final.
Mais pessoas de outros cursos começavam a chegar conforme o horário se aproximava e eu
fui ficando tensa. Minha cara estaria lá e, por mais que eu soubesse do spotted e toda a confusão,
os outros não. Isso tornava um tanto quanto arriscado tanta gente vendo nossos rostos.
Luz apagada.
— Bem vindos, pessoal — disse a professora. — Nós vamos começar a exibição. São três
agora de manhã, mais três na parte da tarde. A hora complementar vai valer pelo dia, não importa
quando vocês vão entrar ou sair, só não deixem de assinar. Amanhã são os outros seis e o
esquema é igual. Agradeço a todo mundo que tá aqui prestigiando os colegas. Vamos lá!
Dois documentários significavam, em média, duas horas. O que era bom e ruim ao mesmo
tempo. O primeiro documentário parecia não acabar nunca, o que me deixou explodindo de
ansiedade, enquanto o segundo passou rápido o suficiente a ponto de me desesperar por estar
chegando a nossa vez. Certo, talvez eu não estivesse muito para sentimentos positivos hoje.
Nosso documentário começou com um pequeno texto introdutório que Mia,
aparentemente, havia acrescentado.

“Este documentário apresenta relatos das micro e macro violências sofridas por membros
da comunidade LGBTQIAPN+ relacionados a pressão social e a auto cobrança por influência
externa. O Brasil é o país que mais mata pessoas LGBTQIAPN+. Micro violência também é
violência. Busque suporte.”

Fiquei aliviada por Mia ter deixado essa mensagem no começo, porque era necessário e eu
também colocaria. Pensamos parecido.
O começo já tinha sido aprontado por nós. História, dados, matérias jornalísticas e
referências. Estava bem construído, Mia tinha feito os cortes necessários, a disposição certa dos
dados, tudo sob controle.
Entraram os relatos, com toda a dinâmica pré estabelecida. Cortes, subtrair o som, vídeos
da pessoa vivendo. Essa ideia que tivemos foi, sem dúvidas, a melhor. A junção dos relatos e os
vídeos com o piano suave de fundo ajudava a compor o sentimento que precisava ser passado.
Quando os relatos de Lucas e Rafaela passaram, meu coração ficou pequenininho. Que
saudade dos meus amigos. Meus melhores amigos. Meu olho se encheu de lágrimas, mas logo
sequei. Não tinha mais o que fazer, só esperar e torcer para que as coisas ficassem bem. Sendo
compreensiva e respeitando o tempo deles.
— O seu já não era pra ter passado, Aurora? — Bela cochichou, — Vocês seguiram a
ordem?
— Tínhamos seguido, até onde eu me lembro — respondi, confusa. — O da Mia também
não passou.
Mais uns seis relatos passaram antes que o meu chegasse. Quando ele chegou, a surpresa
foi maior do que eu esperava.
A música de fundo, não era o mesmo piano. Era violão, o violão da música “Those eyes”,
do New West. Os vídeos, não eram os do arquivo de Rafaela e Lucas. Eu estava descobrindo
agora que eles existiam.
Eu comendo pizza, no dia que Mia foi na minha casa. Eu dançando, festa na casa dela. Eu
falando na sacada do apartamento quando pisei nele pela primeira vez. Eu no estande, dia de
visitação. Eu saindo do banheiro com a camisa dela no dia da piscina. Eu mexendo a massa da
pizza no nosso último encontro.
Mia estava registrando todos esses momentos. Ela estava fazendo seu próprio filme de
mim e, agora, todos sabiam como ela me via.
Eu não podia chorar. Não agora. Eu não ia chorar.
Até que, depois do meu vídeo, vieram os créditos. E depois deles, um vídeo de Mia. Sem
música.
— Meu nome é Mia Duarte e eu fui traída, exposta e humilhada pela minha ex-namorada,
Larissa — disse de cara. As pessoas ao redor emitiam sons de surpresa. — E eu não desconfiei
em momento algum que quem vinha espalhando boatos sobre mim era ela, porque você nunca
espera que alguém tão próximo vá fazer isso. Mas eu procurei descobrir o tempo todo quem
vinha fazendo e podem ter certeza que esse mistério me enlouqueceu por meses. Até fingir que
ainda tava namorando eu fingi pra vocês terem do que falar. Mas eu descobri.
“Ou melhor, outra pessoa descobriu. Porque eu tive ajuda todo esse tempo. Quem me
ajudou foi Aurora de Souza e essa garota é completamente genial. Além de genial, ela é doce,
compreensiva e carinhosa. São só algumas coisas que no meio do percurso fizeram eu me
apaixonar. Então não, Aurora nunca foi um caso. Ela foi, e é, muito mais que isso. E eu deixei
ela escapar por medo. Esse relato é pra mostrar pra vocês que o medo não é causado só pelo lado
de lá, mas pelo de cá também.
“A maioria de vocês nunca vai acreditar no que tô dizendo, porque é fácil culpar uma
mulher desfem. Tão fácil que minha própria namorada se apoiou nisso pra acobertar o próprio
erro. Mas, quer saber? Eu não ligo. Acreditem no que quiserem acreditar, falem o que quiserem
falar. Mas tem uma garota que merece coragem. E eu percebi que já passou da hora de entregar
isso à ela.”
Eu chorava copiosamente sem sequer perceber.
— Vai lá. — Bela me deu um toquinho no ombro, olhando para trás. — Ela tá lá.
Me levantei no meio das várias pessoas sentadas e avistei Mia, também de pé. Corri para
onde ela estava e a beijei. Com o beijo mais saudoso, apressado, impetuoso e corajoso de todos.
— Eu te amo, sua idiota! — exclamei, chorando, segurando firme no rosto dela.
— Eu te amo — Mia respondeu com olhos marejados e um largo sorriso, me
desmanchando. — E deixe que saibam.
Nos beijamos de novo, com demora e urgência. Se as pessoas estavam aplaudindo, vaiando
ou gritando? Eu não sei. Só ouvia nossos corações batendo ritmados. No final, o resto não
importava mesmo.
Nunca importou.
— Eu precisava acordar pra criar coragem — Mia disse. — Você tinha razão, Aurora. Eu
percebi isso e soube que já era hora. E, claro, quando soube que você teve coragem de socar
alguém por minha causa, tive certeza que era a escolha certa. — Ela riu.
— Como você sabe? — perguntei.
— A versão dois me contou. — Mia apontou pra Bela, que acenou para nós com um
sorrisinho. — E falando em versão — ela colocou meu cabelo atrás da orelha —, eu gosto muito
mais da versão de mim que veio depois de você.
— Você é inacreditável, sabia? — Dei um sorriso. — E minha irmã também. — Ri.
— Ela me contou tudo e me mandou as fotos das mensagens — falou, pegando o celular.
— Tá tudo aqui.
— Isso é ótimo — falei. — Agora você pode provar pras pessoas.
— Posso… — Mia encarou o celular e, logo em seguida, bloqueou a tela e guardou no
bolso. — Mas eu não quero.
— Isso é lindo, sabia? — Dei um selinho nela. — Mas não apaga não, porque isso aí é
prova em processo. Ela faz Direito, lembra?
— Princesa! — Mia exclamou, gargalhando.
Que saudade de ouvir isso.
— Acho que tá na hora da gente sair daqui pra almoçar.
— Hoje eu como no bandejão! — ela respondeu.
— Quanto uma pessoa é capaz de mudar em uma semana? — impliquei.
— Se ela tiver os motivos certos? Muita coisa. — Mia deu de ombros com um sorrisinho
de canto no rosto.
Quando estávamos indo até o refeitório de mãos dadas, ouvi chamarem Mia.
— Mia! — Era uma voz masculina. Nos viramos e avistamos Pedro Henrique. — Podemos
conversar?
— Claro — Mia apertou minha mão antes de soltar.
Os dois foram em um canto conversar e, com cinco minutos, estavam chorando. Fiquei de
longe olhando com um sorriso, porque sabia que já era hora de isso acontecer.
— Deve ser bom se resolver com quem a gente gosta, não é?
Me virei em um pulo ao reconhecer a voz de Lucas, que estava com Rafa do lado dele.
— Lucas! — exclamei, pulando nele para um abraço apertado.
Comecei a chorar antes mesmo dos meus braços o envolverem. Para a minha surpresa, ele
chorava também.
— Desculpa, Aurora — ele disse. — Peguei pesado.
— Você não pegou pesado nada. Eu merecia e precisava ouvir tudo aquilo. Não pede
desculpa, por favor — pedi. — Desculpa eu, isso sim. Você não disse nada de errado.
— O Rique contou que você foi lá — disse, quando nos soltamos. — Ele me incentivou a
ficar bem com você.
Olhamos para Pedro, que abraçava Mia. Ele sorriu para mim e eu sorri de volta.
— Senti tanta falta de vocês — assumi, olhando para Lucas, depois para Rafa. — Rafaela,
pelo amor de Deus! — exclamei, afobada, abraçando ela.
— Que saudade, amiga. — Ela respirou fundo no meu abraço, como se precisasse disso. —
Que bom que estamos aqui de novo!
— Vocês não fazem ideia de quanta coisa aconteceu.
— Você e Mia ficaram igual um ioiô, Bela tá grávida, você espancou o Alexandre e deu
um tapão na cara da Larissa — Lucas disse, enxugando as últimas lágrimas do rosto.
— Eu sou tão previsível assim? — respondi, chocada.
— É, sim. — Rafa deu de ombros. — Mas, pra ser justa, sua irmã contou tudo pra gente.
— Bela é muito boca de sacola, meu Deus! — exclamei, desacreditada.
— Ainda bem, porque eu ia me matar de curiosidade — Rafaela disse, nos fazendo
gargalhar.
Mia e Pedro se aproximaram.
— E aí, almocinho? — o garoto chamou.
— Vamos, tô cheia de fome.

— Tô falando sério — Mia disse, acabando de mastigar. — Quando me formar, vou vir aqui
almoçar.
A carne picadinha de hoje estava, de fato, surreal.
— Muito melhor que fast-food, viu só? — impliquei.
— O que vocês têm de plano nas férias? — Pedro perguntou, depois de uma garfada na
versão vegetariana do cardápio.
— Viver na casa da Aurora pra fugir da minha mãe e garantir que minha ex-namorada não
vai me processar por difamação. — Mia arregalou os olhos, rindo.
— Eu vou ver minha avó por uma semana — Rafa contou.
— Lucas e eu vamos pra serra, se tudo der certo — Pedro disse sorridente, olhando para
ele.
— É só você falar o dia que eu vou correndo bater papo com a Tia Silvia e comer bolo de
fubá — falei.
— Me leva? — Mia pediu com biquinho. — Saudade do café dela.
— Eu vou te levar é pra minha casa — falei. — Domingo o Caio vai almoçar lá em casa
pra minha mãe conhecer ele e eu queria que você fosse também.
— Isso é oficialmente um almoço de família? — perguntou. — Não sei se tô preparada.
— É bom estar, porque você vai — Bela apareceu do lado da mesa, com uma bandeja nas
mãos. — Assim a mamãe fala freneticamente do fato da Aurora ser lésbica, constrangendo vocês
duas, e não eu — justificou, se ajeitando para sentar. — Abre espaço aí que eu tô grávida.
— Obrigada pela consideração — respondi, rindo.
Ainda tinham coisas para acontecer. Ma,s ali, naquela mesa, eu tive a sensação de que, ao
menos dessa vez, tudo ficaria bem.
“Ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro”

Sujeito de Sorte - Belchior

Minha irmã e eu tínhamos nomes de princesa, mas nossa família era real de outra forma.
— Desliga esse forno, mãe! — falei, desesperada enquanto cortava tomate. — Vai queimar
a calda do pudim!
— Calma, garota — respondeu, vindo apressada e desligando o forno. — Tenho anos de
cozinha, não é uma calda de pudim que vai me derrubar não.
— É que eu tô nervosa — falei. — Pela Bela, sabe?
— Pela Bela, Aurora Maria? — Mamãe me encarou desconfiada, enquanto tirava a forma
do forno. — Até parece! É porque você tá trazendo sua namorada.
— Pra sua informação, dona Sandra — falei —, a Mia ainda não é minha namorada.
— Ainda, né? — ressaltou. — Achava que vocês lésbicas nessa quantidade de tempo já
tavam casadas, mas você fica aí nesse chove não molha!
— Algum dia você vai parar de me atribuir estereótipos? — brinquei.
— Claro que não — respondeu de prontidão. — Você é minha lésbica favorita.
— Eu sou a única lésbica do seu convívio. — Revirei os olhos, com um sorrisinho.
— Por isso mesmo! — Deu de ombros, enchendo a forma. — E tecnicamente, agora tem
minha nora também.
Nora. Eu vou infartar.
— Você não perde a oportunidade de chamar ela assim, né?!
— Nunca pude fazer isso antes — justificou. — Nem nora, nem genro. E olha onde
estamos agora.
— Se você chamar o Caio de genro ele vai cair duro no chão — disse Bela, passando pela
porta. — E eu também.
Mamãe e eu paramos para olhar Bela, que estava radiante. Ela usava um vestido florido
acima dos joelhos, na cor vermelha. Ele era acinturado, o que fazia sua barriga ficar aparente e
marcada. Longe de mim ser tia babona, mas fala sério, era meu afilhado ou afilhada ali!
— Tá linda pra cortar o resto do tomate enquanto eu me arrumo — falei, soltando a faca.
— Você não tem vergonha de dar tarefa pra uma grávida, não? — Bela colocou as mãos na
cintura.
— Até quando você vai usar a gravidez como argumento? — perguntei.
— Até a criança nascer e eu poder mudar pro argumento do puerpério. — Deu de ombros.
— Quando vocês nasceram passei duas semanas falando de dor na cirurgia pra ganhar
privilégio — disse nossa mãe.
— Nosso parto não foi normal? — Franzi o cenho.
— É esse o ponto. — Ela sorriu, piscando o olho.
— Meu Deus, o charminho é de família! — Ri. — Bom, eu vou me arrumar. Se a Mia
chegar antes de eu voltar…
— Não me envergonhem! — responderam em coro, rindo.
Tomei um banho rápido, passei meu perfume e comecei a vestir minha roupa. Uma camisa
larga listrada preta e branca com uma jardineira jeans azul claro. Eu considerava a jardineira uma
roupa de dias felizes e hoje, sem dúvida alguma, era um dia feliz.
Saí do banheiro e fui para o quarto procurar minha correntinha, dando de cara com Mia,
sentada na minha cama.
— Que susto, garota! — exclamei.
— Acho que já vi essa cena antes. — Ela riu. — Oi, princesa.
— Oi, linda. — Sorri me aproximando, sentando de lado no colo dela e dando um beijinho
na testa. — Chegou tem muito tempo?
— Dez minutinhos — contou, abraçando minha cintura. — Tava quase me tremendo na
sala com sua mãe, aí a Bela me mandou pra cá.
— Por que quase se tremendo? — Ri.
— É diferente ver ela agora, né? — justificou. — E toda essa coisa de almoço e tal. Nunca
tive isso, sabe?
— Agora você tem, meu bem — respondi, fazendo carinho no cabelo dela. — Vamos lá?
Daqui a pouco o Caio e os pais chegam e minha mãe vai deixar outra pessoa nervosa.
— Já vamos — falou. — Fica só mais um pouquinho comigo aqui, de carinho.
— Fico — assenti, abraçando o pescoço dela.
— Você sabe que eu te amo, não sabe? — Mia disse depois de um tempo em silêncio.
— Sei — respondi. — Eu também te amo.
— Você é a melhor coisa que me aconteceu nos últimos tempos. — Ela olhou nos meus
olhos. — E eu sou grata por ter sido assim.
— Não sei como seria se a gente não tivesse chegado até aqui — falei. — Você mudou
minha vida, Mia.
— Você que mudou a minha — respondeu. — Nosso filme é o mais bonito que eu já fiz.
— Você é gigante — falei. — E eu amo ser a sua princesa.
— A minha princesa? — Ela abriu um largo sorriso. Assenti com a cabeça, sorrindo
também. — E será que essa princesa — Mia tirou de trás dela uma caixinha azul com dois anéis
de prata dentro. — Aceita ser, oficialmente, minha?
Arregalei os olhos surpresa.
— Mia… — falei, boquiaberta, sem reação. Olhei na parte interna das alianças e estava
gravada a frase “Happy ever after”.
— Você aceita ser minha namorada e dar uma chance ao felizes para sempre?
— É claro! — respondi, com lágrimas escorrendo. — Claro que aceito.
Mia e eu nos beijamos.
E se me disser que o romance foi feito para mim, hoje eu acredito. E se me disser que eu
nasci para viver um conto de fadas, eu não terei dúvidas. Eu poderia ser irmã, filha, amiga.
Poderia ser uma garota lésbica que não viveu muita coisa. Poderia ser vista de várias formas e ser
de vários jeitos. Mas eu ainda seria a princesa de Mia Duarte.
E, entre roupas largas e não feminilidade, ela era a minha também.
Depois de um momento nosso, fomos para a cozinha, onde todo mundo já se ajeitava.
— Ah, olha elas aqui! — Mamãe exclamou ao nos ver. — Meninas, vem cá. Esses são o
Alberto e a Neiva — falou, apontando para os pais de Caio. — Essa é minha filha Aurora —
apontou pra mim. — E minha nora, Mia.
Mia apertou minha mão ao ouvir isso e eu dei uma risadinha para ela. Nos
cumprimentamos.
— E aquele ali é o Caio — mamãe apontou.
Caio estava parado em um canto com Bela. Ele era branco, alto e tinha o cabelo raspado
bem baixinho. Falando assim parece um alerta de homem cafajeste, mas ele parecia inofensivo.
Cumprimentei ele com um abraço.
— Bem vindo à família, Caio — disse, com um sorriso. — Espero que se sinta em casa.
— Obrigada, Aurora — ele respondeu, educado. — Bela fala muito de você.
— Só não conta pra ela que é mal — Bela implicou e eu revirei os olhos. Enquanto Mia
cumprimentava Caio, minha irmã encarou minha mão. — Que negócio é esse brilhando no teu
dedo? — cochichou.
— Acha que só você pode namorar? — respondi, com um sorriso. — Meu sobrinho ou
sobrinha acaba de ganhar mais uma tia.
— Minha criança vai ter uma tia rica! — exclamou, comemorando.
— Bela! — exclamei, incrédula, dando risada.
O almoço foi agradável e muito divertido, Mia e Caio estavam travados no começo, mas
logo foram se soltando com ajuda da minha mãe. Caio era um fofo e os pais dele também, o que
me assegurava de que minha irmã seria bem cuidada lá também.
— Bom, gente, o pudim tá ótimo… — Caio falou, levantando.
— Bela que o diga, ela comeu quatro vezes — brinquei.
— Teria comido cinco se você não comesse o último — reivindicou, levantando também.
— Depois o bebê nasce com cara de pudim e você vai lembrar desse dia.
— Eu compro pudim pra você, meu amor. — Caio riu. — Bom, eu só queria dizer que
Bela e eu já sabemos o sexo do bebê. — Ele deu as mãos para ela. — E a gente quer contar pra
vocês.
— Fala logo, filho — disse Neiva. — Pelo amor de Deus, vou passar mal.
— Eu que o diga — Mamãe completou, aflita.
— Eu e o Caio vamos ter uma menina. — Bela sorriu. — É menina.
Mais uma mulher na família e eu não podia estar mais feliz. Todos na mesa deram os
parabéns.
— E vocês já escolheram o nome? — perguntou Mia.
— Bom, seguindo a tradição da minha mãe… — disse Bela, sorrindo para ela —
escolhemos um nome de princesa, carregado de significado.
— Qual? — perguntou Alberto.
— Anna — Bela me olhou. — Pra homenagear a irmã que nunca desistiu de mim. E pra
que ela seja corajosa como a madrinha é.
Não estava nos meus planos chorar na mesa do almoço, mas foi inevitável. Já tinha
recebido tantas homenagens nas últimas semanas e, mesmo assim, nunca vou me acostumar.
Levantei do meu lugar para abraçar Bela apertado.
— Eu vou estar aqui sempre — assegurei.
— Não tenho dúvidas, irmãzinha.
Uma família amorosa, uma afilhada a caminho, amigos incríveis e a melhor namorada do
mundo. Vivi uma onda de azar, mas tudo voltou para o lugar certo, mostrando que eu tinha muita
sorte. E o amor que eu tanto queria, eu encontrei em vários lugares.
Isso ia além de qualquer filme.
“We’ll be alright”

Fine Line - Harry Styles

Meu pai gostava muito dos Mutantes. Mas quando a Rita Lee saiu, ele abandonou eles e passou a
admirar apenas a rainha do rock. Sua música favorita dela, se chamava “Minha Vida”. Ele nos
colocava para ouvir antes de dormir, desde que éramos pingos de gente. Quando chegamos na
orla da Praia do Forte em Cabo Frio, naquele fim de tarde, com dona Sandra prestes a pisar na
areia depois de oito anos, a música ecoava na minha cabeça. Em um lugarzinho de mim, eu
acreditava que era ele cantando em algum canto do universo.
— Você consegue, mãe — falei, segurando a mão dela. — A gente tá aqui.
— A gente vai com você — respondeu Bela, segurando a outra mão. — Você consegue.
Mamãe respirou fundo e colocou os pés. Um de cada vez. Ela foi caminhando lentamente
até o mar, com nós duas a acompanhando. Quando a primeira onda do mar tocou seus pés, ela
abriu um largo sorriso e, ao mesmo tempo, começou a chorar. E nós também.
A praia estava quase vazia. Na teoria, só estávamos eu, minha mãe, Bela e Anna, naquele
barrigão de reta final. Mas quando o mar nos acolheu, não parecia que estávamos sozinhas.
— Vocês tão sentindo isso? — perguntei.
— Muito — Mamãe disse, de olhos fechados, sentindo a brisa marinha.
— Anna não para de se mexer — disse Bela. — Ele tá muito aqui com a gente.
— Se eu soubesse que ia encontrar ele aqui, tinha voltado correndo — mamãe falou. —
Não tinha perdido um dia.
— Agora você sabe — falei. — E vai poder viver em paz com você mesma.
— São muitas memórias. — Ela enxugou as lágrimas.
— É hora de fazer novas — Bela respondeu. — Tem gente vindo pra viver isso também.
— E fazer novas memórias não quer dizer que as velhas vão ser esquecidas — acrescentei.
— Mas sim que no seu livro ainda tem muita página pra preencher.
— É muito bom ter vocês no meu livro.
— O nosso só existe por sua causa — respondi.
— Amo vocês — disse Bela.
— Amo vocês.
Mamãe respirou fundo, olhando pra frente.
— Eu amo muito vocês — ela disse, por fim.
O sol se punha em tons de rosa e lilás. Com nós três ali, de mãos dadas, e mais uma a
caminho. Na beira do mar. Sentindo a brisa. O maior cartão postal que guardaremos na mente.
Tudo me lembrando do quanto a vida é bonita.
E viver é ainda mais.
Não posso começar isso sem agradecer à Maria Fernanda, que é quem troca coragem comigo
desde o primeiro dia de nós duas. Meu amor, você é minha melhor escolha. Ontem, hoje e
amanhã. A minha certeza. Você merece todas as declarações em público, os beijos nas multidões
e as cabanas na varanda. Eu te amo, obrigada por ser minha parceria todos os dias.
Bárbara Maria, a pisciana mais pisciana que eu conheço: esse livro só existe porque você
me perturba com as ideias mais inusitadas possíveis, venham elas de um sonho ou de um tweet.
Acho que a gente divide um só neurônio, então o que eu faço sempre vai ter um pouquinho de
você. Te amo. Obrigada por tudo.
Ariel, Ari, patinho: que grande sorte tenho na minha vida de ter por perto alguém tão
diferente e tão igual a mim. Alguém que me ajuda a aprender com os meus erros e, ao mesmo
tempo, coloca meu livro no cantinho dos especiais. Nunca vou me cansar de dizer como a minha
arte existe porque a sua existe também e de como tenho orgulho de você e do que você faz. Eu
quero crescer e quero que você cresça junto comigo. Te amo, obrigada por se deixar ficar na
minha vida e nas minhas palavras.
Eduardda com dois “D”, três se contar o primeiro: mesmo que agora distantes fisicamente,
sempre te sinto pertinho. Você, uma leitora compulsiva, e eu, uma escritora impulsiva. A gente
se completa, se junta, e continua montando esse quebra-cabeça há seis anos, com nossos lugares
determinados na vida uma da outra. Te amo e saudade. Pode se acostumar a ler e-books, porque
vem muita coisa aí pelo caminho.
Juliana Reis. Para alguns, a autora de Borboletas e Oitavo Andar, para mim, uma das
minhas melhores amigas e minha esposa de escrita (Luana e Mafe, vocês entendem, né?):
obrigada. Obrigada e obrigada. Isso aqui não teria sido metade do que foi sem você, sem nossas
ligações toda tarde nas férias, sem nossas cantorias de Jão a Reneé Rapp. Esse meio literário te
colocou no meu caminho e foi uma das melhores coisas que ele poderia ter feito. A Brenda
Borges autora é outra com a Juliana Reis autora por perto, modéstia parte acho que talvez a
Juliana Reis autora também seja outra com a Brenda Borges autora por perto, mas o que importa
é que a Brenda, só a Brenda, também é outra com só a Juliana aqui. Te amo. Você é gigante.
Obrigada por tanto.
Minhas betas queridas, Catarina, Carol, Helo, Mary, Luna e Victoria (menção honrosa para
Helena e Amandinha, que na correria não conseguiram ler tudo, mas estiveram aqui quando
puderam): obrigada por me fazerem sentir no Wattpad de novo ao comentarem cada coisinha
lida. As reações de vocês me fizeram soltar uma risadinha em diversos lugares aleatórios,
abrindo o arquivo ou as mensagens. Vocês com certeza fizeram dessa experiência ainda mais
divertida do que poderia ser. Bom demais ter vocês por aqui.
E você, que tá lendo isso aqui agora: obrigada. Esteja você aqui desde sempre ou tenha
chegado agora, só tenho a agradecer por estar aqui e dar a chance de conhecer um pouquinho do
que se passa na minha cabeça. Esse livro veio ao mundo pra ser de todes que se identificarem ou
encontrarem nele um lugar de conforto. Espero que esse conforto faça vocês permanecerem.
Obrigada.
Sobre a autora

Brenda Borges nasceu em 1999 e é, para além de escritora, uma artista desde que se
entende por gente. Dentre todos os seus caminhos, ela escolheu a escrita como o
principal, e por meio dele pode falar sobre o que permeia sua vida como uma
mulher lésbica: garotas amando outras garotas (só que com um pouco mais de
drama, choro e gritaria do que na vida real – ou não). É leonina, o que talvez
explique o ímpeto de ser grande, e também tem déficit de atenção e hiperatividade, o
que talvez justifique a cabeça que nunca (nunca mesmo) para de criar. Aluna de
Produção Cultural na UFF, ela concilia produzir nos bastidores com produzir nos
holofotes, e enquanto a luz estiver nela, vai continuar gritando o amor entre
mulheres para que outras gritem também.

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