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Amor em tempos de pandemia

O avô João conseguiu finalmente reencontrar-se


com Rui, o seu neto preferido. Viúvo, João esteve
confinado em sua casa, visitado diariamente pela
filha que, de luvas e máscara, o proveu de quase
tudo – comida, gel desinfetante, palavras de alento.
Uma vez por dia, falavam-se por telefone. João
aproveitou para ler e sobretudo, reler várias obras
que lhe haviam povoado a imaginação na juventude.
Meditou. Riu e chorou sozinho. Sofreu saudades dos
netos e das estórias que contava a Rui – a do João
Ratão e a da Carochinha, a do João Pé de Feijão,
tantas e tantas. O miúdo, 8 anos espevitados, ia
insistindo. “Avô! Quando é que vens cá a casa?” O
dia chegou esta semana. A mãe, cautelosa, avisa
antes. “Pai! Não há abraços nem beijinhos!” Durante
também é industriado. “Não vais para o colo do avô!”
Ao primeiro contacto visual, avô e neto hesitam.
Aguentam as distâncias. Rui abre-se num sorriso.
“Avô! Conta-me uma estória!” João sente vontade de
o abraçar e de o sentar no colo. “Rui! Hoje vou-te
contar a estória do Florentino e da Firmina!” Rui
arregala os olhos. “Essa nunca me contaste!” João
aclara a garganta. “Era uma vez… há muitos, muitos
anos… um rapaz que se chamava Florentino! Era
uma espécie de carteiro. Entregava o correio ao
senhor Lorenzo, que era o pai de uma menina muito
bonita chamada Firmina!” Rui ri-se. “Mas que nomes
tão esquisitos!” João explica que são nomes antigos
e que a estória se passou muito longe de Portugal, lá
na América do Sul. “Florentino, mal viu Firmina,
apaixonou-se logo por ela!” Rui aconchega-se à
almofada do sofá. “Começaram a escrever muitas
cartas um ao outro, sem o pai dela saber!” Rui
embrenha-se no enredo. “Nunca deram nem um
beijinho, mas um dia Florentino escreveu à menina a
pedir que casasse com ele!” “E depois?” Depois,
aconteceu uma chatice!” O pai dele soube do
romance, não gostou e obrigou a menina a casar
com um doutor chamado Juvenal, que era médico e
sabia muito bem tratar uma doença muito perigosa,
chamada cólera!” Rui agita-se. “Era assim como a
Covid? Tinham todos de andar de máscara?” João
suspira. “Era uma doença que matava muita gente!
Se houvesse máscaras também não ajudavam
grande coisa…” Rui está lançado. “E por causa
dessa cólera não podiam dar-se abraços nem
beijinhos?” João finta a pergunta. “Muitos davam às
escondidas…” Rui sorria. “João medindo as
palavras, acaba de contar a estória. Explica que
Florentino ficou muito triste, mas nunca se esqueceu
de Firmina. “Burilando pormenores, João avança e
conclui. “O doutor morreu e Florentino e Firmina
acabaram por ficar namorados e juntos para toda a
vida!” Rui abre os braços. “E já eram velhinhos?”
Muito sério, João suspira. “Eram! Tinham-se
passado 53 anos, 4 meses e 11 dias desde que o
Florentino viu Firmina pela primeira vez!” Rui bate
palmas. “Ó avô! Foste tu quem inventaste esta
estória?” João sorri. “Não. Foi um senhor chamado
Gabriel García Márquez!” Avô e neto olham-se nos
olhos. Num repente, Rui salta para o colo do avô.
João não resiste a um abraço bem apertado. E
sussurra. “Não digas nada à tua mãe!”
Victor Bandarra
Rosa-Dos-Ventos, Maio, 2021, Ano 52, Nº 569,
Santa Casa da Misericórdia do Porto, CPAC,
Edições Braille.

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