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A libélula

Mariana Namuedi sonhou que o seu filho


Madzina a empurrava num balouço que pendia do
arco das nuvens. Era um voo curto, um céu de rédea
curta. Mas era o que bastava para Mariana se
desamarrar do chão. De repente, o menino
assustou-se e gritou:
- Ai, mãe, que te caiu um pé!
- Melhor assim – disse Namuedi, sorrindo. –
Melhor assim, que não tenho sapatos.
No sonho, o filho corria por entre os arbustos à
procura do que faltava no corpo da mãe. Esgueirava-
se por entre a folhagem, e o ruído dos passos
convertia-se num rastolhar de bicho. Mariana tinha
olhos de caçadora, mas foi perdendo o rasto de
Madzina. De súbito, escutou tiros. Conhecia bem
esse estampido que faz suspender o mundo. O
cheiro a pólvora tornou-a temporariamente cega.
Arrastou-se pelo mato, encostou-se a um rochedo no
meio dos arbustos. E acertou o coração dentro do
peito, até respirar junto com a pedra.
Minutos depois, o menino reapareceu. Estava
irreconhecível: usava farda militar e trazia uma
espingarda a tiracolo. Tinha a cabeça e o pescoço
envoltos num lenço preto. Quando ela o libertou
desse pano, viu que o filho já não tinha rosto.
Foi esse o sonho de Mariana. E foi um sonho
tão triste que ela chorou enquanto dormia. Ao
despertar, correu para espreitar o quarto vazio de
Madzina. Fazia uma semana que os terroristas
levaram o seu filho, por entre balas, fumos e
disparos. Arrastaram-no pela estrada de areia, o teto
em fogo, o chão em cinza. Ela pensou: Talvez o
filho, neste fim de mundo para onde levaram,
partilhasse o mesmo sonho do balouço. Ou talvez
ele já não soubesse sonhar. Onde os demónios
moram, deixa de haver nuvens. E onde não há
nuvens, deixa de haver sonhos. Era essa a crença
de Mariana.
Nessa manhã, à saída da porta, Mariana
suspendeu o seu meio-passo como se receasse
enfrentar o peso da luz sobre os ombros. Assim que
bateu à porta, a vizinha deu notícia dos que tinham
sido mortos durante a noite.
Mariana tombou no meio do pátio e clamou em
surdina:
- Estão a morrer todos? Quando chegar a minha
vez, já não haverá mais mortes?
A vizinha ajudou-a a levantar-se e comentou:
“Essas muletas estão a ficar velhas,” pé, apoiada à
vizinha. Mariana murmurou: “Já não me lembro onde
queria ir.” E a vizinha disse: “Não importa, vamos
juntas.” E enquanto caminhavam, amparadas uma
na outra, a vizinha lembrou-lhe a razão do nome que
o pai lhe tinha escolhido: Namuedi. Esse é o nome
que, em shimakonde, se dá às libelinhas.
Nesse mesmo dia, levaram Mariana para a
cidade. A mulher ainda resistiu: “E o meu filho,
deixo-o perdido, nesse mato?” Ninguém atendeu aos
seus protestos. Carregaram-na à força para o barco.
No percurso, onda após onda, ela foi perdendo o
nome.
À chegada à cidade, ela era uma entre milhares
de deslocadas. Quando a puxaram para o cais,
Mariana Namuedi apontou para o barco e pediu que
lhe entregassem as muletas. “São os meus remos”,
disse ela e todos se riram.
Conduziram-na para um bairro onde foi recebida
por uma família pobre que lhe deu roupa, comida e
uns chinelos. Tudo velho, tudo gasto, tudo pouco.
Partilhou o mesmo quarto com uma dezena de
desconhecidos, todos deslocados.
Ao fim da tarde, a dona da casa veio trocar as
chinelas que acabara de lhe emprestar por um
sapato. Um único sapato, que era o que bastava
para o seu solitário pé. “Desculpe, a sola está toda
esburacada”, disse a anfitriã. E Mariana, com o
sapato encostado ao peito, agradeceu: “Gosto
assim, é da maneira que fico mais leve.”
A dona de casa saiu e Mariana deitou-se com o
sapato calçado. Fechou os olhos para que o tempo
antigo se aproximasse sob o escuro das pálpebras.
A primeira e única vez que ela teve um par de
sapatos foi exatamente da escola. Nesse dia, o
professor chamou-a à parte, numa sombra do pátio
das traseiras. “Tenho uma prenda para ti”, disse com
um embrulho escondido atrás das costas. Namuedi
abriu o embrulho como se desfolhasse os próprios
dedos. Ficou tão encantada que passou a dormir
calçada. Deitada na esteira, os pés emergiam do
lençol para roçarem a Lua.
Nessa altura, Mariana não sabia que estava
grávida. Dois meses depois de estrear os sapatos, o
ventre inchou e as pernas duplicaram. Os pés
cresceram tanto que ela não conseguiu descalçar-
se. Os sapatos ficaram tão apertados que, uma
manhã, ao despertar, o pé direito parecia um tronco
de embondeiro. O médico disse: “A vossa filha
morreu desse pé. E agora”, acrescentou ele, “para
que não morra toda inteira é preciso amputar do
tornozelo para baixo”.
Os pais ainda argumentaram: já era tão difícil
lobolar a filha, agora que já estava estreada, e para
complicar a situação, a moça iria ficar aleijada?
Mariana recorda-se do peso dessa caminhada:
voltava a casa com um filho e sem um pé. Soube
então que o professor fugira da aldeia. Durante dez
anos, tratou da sua criança como se fosse o corpo
que lhe faltava. A mãe ajudou-a a ser mãe. O pai
nunca mais lhe dirigiu palavra. Um dia, entregou-lhe
um par de muletas que ele mesmo esculpira em
madeira. E afastou-se, em silêncio. A mãe disse:
“Essas madeiras são feitas da tua carne”. E voltou a
falar, depois de uma longa pausa: “Uma mulher
precisa de muitos pés para fugir de si mesma. Mas
terás uma vantagem: nenhum homem te vai querer.
Esse teu defeito, minha filha, pode ser uma bênção.”
Foi disso que Mariana se recordou, deitada de
olhos cerrados por entre os outros refugiados que
atapetavam o chão do quarto. De noite, quando
todos esses outros dormiam, Mariana foi para o pátio
e chamou pelos seus tambores. Fechou os olhos
como se não mais os fosse abrir e lançou o corpo
sobre a metade do chão que lhe pertencia. Apoiada
nas muletas, balançou os quadris e rodopiou pelo
terreiro até sentir que, na sua aldeia longínqua, se
quebravam as mãos dos que tinham raptado o seu
filho Madzina. Foi então que ela viu o seu menino
soltar-se das cordas para escapar por entre as
árvores. Viu-o chegar à praia e lançar-se na água.
No centro do pátio, Mariana abriu os braços no
escuro como se rasgasse em dois o mar. Por aquele
caminho, o seu menino correu para os seus braços.
Se os donos da casa, tivessem, naquele
instante, aberto as janelas, teriam visto um par de
madeiras esvoaçando sobre a casa. E eram duas
asas de libélula.
Mia Couto
Visão Braille, III Série, Nº 29, Maio, 2021, Santa
Casa da Misericórdia do Porto, CPAC, Edições
Braille.

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