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CASO CLÍNICO

R2 Gian Carlos Comerlatto

Identificação
Sílvia, 51 anos, é a caçula de uma prole de três, proveniente de uma cidade do litoral
de SC, divorciada, sem filhos. Graduada em Ciências da Computação e pós-graduada
em Engenharia de Software, há 6 anos demitida de uma instituição financeira em que
trabalhava no setor de tecnologia da informação. Mora com o pai João. Ela faz "bicos”
como tecelã em sua residência e professa a religião católica.

Queixa principal
Transferida de sua cidade de residência para avaliação no IPQ após tentativa de
suicídio por ingesta medicamentosa e ideação suicida persistente, no dia 29/10/2021.
História da doença atual
Na semana anterior à tentativa de suicídio teve uma discussão com seu pai por
motivos de herança. Seu pai havia recebido o direito a uma herança devido a morte de
um familiar. Segundo a paciente, ele disse que daria o dinheiro para uma sobrinha por
parte de pai. A paciente interveio, dizendo que era pra usar esse dinheiro para pagar
umas dívidas da casa. Lembra que discutiram por causa disso.

Logo depois, recebeu uma ligação que seu pai estaria no hospital e que teria tido um
AVE. Conta que não pode entrar no hospital para vê-lo e que seu pai ficava dizendo
que teria acontecido aquilo com ele por culpa da Sílvia, por ter discutido com ele.

Na quinta-feira (28/10) teve uma conversa com seu então namorado (“era músico,
daqueles maconheiros mesmo”, em que ele disse estar recebendo cantadas de uma
moça mais nova e que seria difícil resistir). Quando perguntou a ele se queria terminar,
disse “ah, vamos”, no que a paciente sentiu-se desprezada com isso. Voltou para sua
casa e nesse dia ingeriu 60 comprimidos de clonazepam numa TS impulsiva, não
premeditada.

Dados biográficos
Nascida de uma gestação não planejada, porém desejada, atingiu os marcos do
neurodesenvolvimento em idade esperada.

Conta que seu pai a abusou sexualmente dos 6 aos 12 anos. Aos 12 anos, diz ter
começado a perceber que não era correto, começou a chorar. Seu pai a agrediu e
então os abusos cessaram. Diz não ter contato sobre o ocorrido para sua mãe, pois
sentia medo. Relata que seu pai abusou também de sua irmã e de sua sobrinha.

Teve desempenho escolar satisfatório, com bom resultado acadêmico e boa relação
com os pares. Descreveu sua adolescência como normal. Ingressou na faculdade aos
20 anos.

Casou-se aos 26 anos e separou-se amistosamente aos 35 anos. Sobre o período inicial
do casamento, descreve que foi um período bom, que não brigavam, mas que
começaram a se distanciar afetivamente, com o esposo “focado no trabalho,
desprezando e criticando tudo que eu fazia”.

Depois do divórcio, conta que começou a frequentar muitas baladas, bebia bastante,
tinha uma vida social intensa. Naquele ano chegou a experimentar cocaína, porém diz
não ter continuado com o uso. Diz que se via diferente assim, pois se descreve como
uma pessoa caseira.

Em 2007, após a prisão do pai, diz ter começado a beber muito e ficar mais reclusa,
ficava dias sem sair de casa.
Descreve-se como alguém “com problemas com dinheiro, se tinha dinheiro na mão eu
gastava, sempre fui assim. Quando tava casada gastava mais com ele, depois que me
separei comecei a gastar mais comigo. Mas eu não costumava ficar com dívidas”.

Conta que morou com a irmã de 2011 a 2015, no que ajudava nas contas de casa.
Conta que no período gastava parte da renda com psiquiatra, psicólogo e remédios.
Sentia-se para baixo, só chorava, queria ficar isolada, e que em 2015 resolveu ir “morar
com o pai porque lá eu tinha a minha privacidade, e eu não queria ficar lá estragando a
felicidade deles”.

Lembra-se do pai desde mais jovem com tendências a acumular, e que sua mãe
“controlava um pouco”. Após o falecimento de sua mãe, seu pai ficou casado por 10
anos, separando-se quando foi preso em 2007. “Prometi pra mim mesma que eu ia
cuidar do meu pai. Me sinto responsável com o que aconteceu com aquela menina”.

Conta que foi morar com o pai em 2015 e que, naquela época, seu pai já acumulava
bastantes itens em casa (“ele pega as coisas na rua porque diz que vai precisar delas, e
não aceita jogar fora”). Conta que chegou a ficar longos períodos sem sair pro quintal e
ver a situação (“aquilo me dava uma tontura, uma coisa…”).

Relata que a situação em casa vem piorando. Cita que seu pai tem 40 fornos elétricos
no quintal (que compra, conserta e espera revender). “Ele não deixa jogar casca de
frutas pra fazer adubo, não tem nada plantado e acaba criando rato e gambá. Gato não
acaba ficando lá, não sei por que, acho que é fartura de rato” - brinca. Têm dois
cachorros, um criado pelo pai e outro criado pela paciente. Diz que seu pai trata mal o
cachorro dela.

Sobre a situação sanitária, conta que já tiveram algumas intervenções de pessoas


externas, mas que seu pai não gostou. Diz não queixar-se mais contra ele pois “ele é
agressivo, se eu falar ele me bate”.

Começou a namorar um rapaz em novembro de 2020, aos 50 anos, que descreve como
“bipolar” e como quem a havia iniciado no uso de maconha. Ele era músico e o
encontrava aos finais de semana, quando fumava cerca de 3 a 4 baseados. Percebeu
que seu pai estava com ciúmes em relação ao namorado, o que fazia com que viesse a
encontrá-lo às escondidas. Acredita que seu pai agia assim por medo de que ela fosse
o deixar sozinho.

Conta que a relação com o namorado estava ruim, pois descobriu que o companheiro
estava saindo com uma menina de 25 anos. Conta que estavam tendo relação sexual
quando “ele saiu de dentro de mim para ir ver a guria”.

Dados genealógicos
Relembra sua relação com sua família (“era família de alemão, tinha que ser tudo
certinho, senão brigavam”). Diz que “tinha muito medo do pai, só fui perder minha
virgindade quando entrei na faculdade porque ele não me deixava namorar”.
A mãe Maria faleceu em 1996 por CA de pulmão. Silvana cuidou de sua mãe e
acompanhou seu processo de morte. Hoje sente saudade dela, mas à época sentiu
alívio na morte de sua mãe (“ela descansou, ela sofreu muito”). Diz não culpar-se por
isso (“a gente precisa entender as coisas, ser racional”). Descreve sua relação com sua
mãe como muito boa (“era a melhor pessoa do mundo”).

O pai João, 88 anos, trabalha consertando eletrodomésticos em sua casa. Possui


importante prejuízo da visão, porém mesmo assim se locomove pelo bairro com
bicicleta, o que lhe causou diversos acidentes. Desde 2015 está morando com seu pai.
Conta que ele deu um tear para que ela trabalhasse na pandemia, mas que o negócio
está indo mal.

Descreve o pai como uma pessoa autoritária, que a humilha na frente dos outros.
Conta que ele é acumulador, que “tem mais de 20 motores dentro do quarto dele, o
quintal, a casa toda é cheio de coisas que não precisavam estar guardadas, não tem
espaço nem pra passar, mas ele fica bravo quando fala pra jogar fora”.

Relata que seu pai foi preso por pedofilia, em 2007, preso em flagrante por contato
íntimo, sem conjunção carnal, com filha da vizinha. Visitava com frequência seu pai na
cadeia. Conta que os companheiros de cela, que se encontravam no “Seguro”,
tentavam encontrar-se com ela, mas tinha medo em não aceitar e acabar prejudicando
seu pai na cadeia. Permaneceu preso por dois anos.

Seu irmão Lúcio, sete anos mais velho, faleceu em 1990, vítima de acidente
automobilístico.

Sua irmã Heloísa, 64 anos, foi diagnosticada com quadro demencial em estágio
avançado (possivelmente afasia progressiva primária), necessitando de cuidados
especiais.

Dados somáticos e hábitos de vida


Começou a ingerir bebidas alcoólicas aos 13 anos, com intensidade do consumo
oscilando ao longo da vida, porém com maior quantidade nos períodos de maior
instabilidade emocional (traz como exemplo o período do divórcio, quando seu pai foi
preso, quando foi afastada do trabalho). Não vê o consumo de álcool como
problemático.

Relata ter iniciado uso de maconha no ano passado, no relacionamento com o ex-
namorado, fazendo uso de cerca de 3 a 4 baseados aos finais de semana. Não
apresenta sinais de abstinência e nem dependência da maconha.

Tem como amigas suas vizinhas, com quem tem algum relacionamento. Permanece a
maior parte do tempo em seu quarto usando o celular. Não pratica atividades físicas.
Há alguns anos deixou de frequentar a missa dominical.
Estava trabalhando com tear que havia ganhado do seu pai, produzindo tapetes,
mantas de sofá e almofadas. Conta que vinha recebendo muitas encomendas, dada a
proximidade com as festas da região (Oktoberfest, por exemplo), mas que com a
pandemia a produção caiu. Conta ter ficado com esperança de readquirir sua
independência financeira, porém relata “tenho a sensação de que não consigo viver
sozinha”. Fala que “minha situação não melhora”, mas que “quero ser independente,
tem meu dinheiro, não precisar das pessoas pra comprar um remédio, pra poder fazer
alguma coisa”.

História médica pregressa


Dislipidemia, histerectomia prévia, sem uso de medicações clínicas.

História psiquiátrica pregressa


Em fevereiro de 2021 teve a primeira tentativa de suicídio por ingesta de vários
comprimidos de Fluoxetina, embora não tivesse necessitado internação hospitalar.
Conta que não a ingeriu desta vez “porque o médico disse que Fluoxetina não mata”.

A segunda TS ocorreu após o término do relacionamento com o namorado, ingerindo


cerca de 60 comprimidos de Clonazepam. Em relação a esta TS, conta que não queria
morrer, mas sim “tirar a angústia de dentro de mim”. Porém, em seguida, começa a
chorar e diz “tenho medo de fazer isso de novo”. Diz ter feito um compromisso consigo
que “quando o meu pai morrer, vou tomar comprimido pra morrer”. Fala que seu pai é
a única pessoa que a entende, que cuida dela.

Conta que não está mais fazendo acompanhamento no CAPS “porque eles me
rejeitaram porque disseram que eu estou viciada em remédio”. Começou a fazer
atendimento recentemente com psicóloga, mas fez uma sessão e interrompeu
temporariamente por motivo de cirurgia dela.

Fala já ter tomado várias medicações, lembra-se de Effexor dose máxima, Bupropiona.
Atualmente fazendo uso irregular de Fluoxetina 20 mg 2.0.0 / Amitriptilina 25 mg 1.0.0
/ Clonazepam 2 mg 0.0.1.

Nega alergias medicamentosas e outras comorbidades clínicas.

Nega episódios anteriores de alucinações e períodos compatíveis com episódios


maníacos. Descreve episódios depressivos prolongados, com comprometimento
importante da funcionalidade, com afastamentos laborais. Não consegue precisar
duração e periodicidade dos episódios depressivos, porém descreve-os como bastante
intensos.

Diz ter feito psicoterapia quando separou-se, em 2005, por 2 meses; em 2007 a 2009,
quando o pai foi preso; e em 2012 a 2013, quando ficou afastada do trabalho (técnica
EMDR).
Exame do estado mental
Em uso de vestes hospitalares, com cabelos grisalhos, despenteados, com higiene
adequada. Apresenta sutura em mento em bom aspecto, após queda / lúcida /
orientada temporoespacialmente / memória preservada / inteligência dentro da média
clínica / hipotímica, afeto predominantemente dissociado / pensamento de curso
normal, lógico, agregado, conteúdo predominante de culpa, desesperança / ideação
suicida presente, sem plano estruturado / juízo da realidade parcialmente preservado
(ideias deliroides de culpa?) / insight parcial / pragmatismo prejudicado / discreta
lentificação psicomotricidade, sem tremores ou rigidez em roda denteada / atitude
colaborativa, teatral em alguns momentos.

Avaliação clínica
Apresentava ferimento corto-contuso em mento por queda ocorrida devido a
instabilidade postural durante a intoxicação aguda por benzodiazepínicos na tentativa
de suicídio. Não apresentava demais alterações ao exame físico.

Exames complementares
Lab (01/11/21):
Hb 15,5 Leuc 9290 Plaq 350000
albumina 4,8 / gamaGT 17
CT 277 LDL 201 HDL 58
creat 1,02 / GJ 125 / sódio 143 / potássio 4,43
anti-HBs 2,6 / HBsAg NR / anti-HCV NR / anti-HIV NR / VDRL NR
TSH 3,31 / T4L 1,18 / TGO 53 / TGP 29 / vit B12 379

TC crânio (10/11/21):
Mínima hipoatenuação da substância branca periventricular provavelmente relacionada
a microangiopatia.
Demais áreas do parênquima cerebral com valores de atenuação dentro dos limites da
normalidade.
Discreta assimetria dos ventrículos laterais, maior à esquerda, sem significado clínico.
Demais porções do sistema ventricular de configuração e dimensões normais.
Sulcos da convexidade, fissuras e cisternas da base sem alterações.
Fossa posterior sem anormalidades.
Ausência de coleções extra-axiais ou calcificações patológicas.
Calota craniana de configuração normal e estrutura óssea íntegra.
Pequeno espessamento mucoso do seio maxilar direito.
Placas ateromatosas calcificadas nos sifões carotídeos.

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