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Capítulo 1 - Modelo Cognitivo

Vamos "começar pelo começo". :)


Antes de entrarmos no conteúdo (sei que é por isso que você está lendo
meu e-book), para que todas as peças se encaixem adiante e façam sentido,
primeiro devo te contar sobre como a Terapia Cognitivo-Comportamental
surgiu e sobre o criador desta teoria.

Hey! Prometo que não vai ser uma história chata. Até já te adianto um
spoiler bem interessante sobre ela: o criador da Terapia Cognitivo-
Comportamental era psicanalista! Segue na thread para saber mais sobre ele,
Aaron T. Beck:

• Nascido em 18 de julho de 1921 - +2021


• Em 1942, graduou-se em Ciências Políticas em Brown;
• Formou-se em Medicina em Yale;
• Residência em Neurologia;
• Em 1953, obteve seu Certificado em Psiquiatria;
• No ano seguinte, em 1954, tornou-se professor de Psiquiatria na Escola
de Medicina da Pensilvânia;
• Em 1960, criou o Centro de Terapia Cognitiva da Pensilvânia.

Na década de 60, nos EUA, como bom Psicanalista que era, Beck estava
buscando o suporte empírico para o modelo psicodinâmico da
depressão... ele queria "provar cientificamente" um pressuposto da
Psicanálise.

Em síntese, a Psicanálise presumia que os pacientes se deprimiam em


decorrência de "raiva retro-reflexa": ou seja, alguns clientes (neste caso:
todos que se deprimiam), quando sentiam raiva de algo
externo, inconscientemente "canalizavam" esta raiva contra eles mesmos –
que caía sobre eles na forma de "Depressão".

Em outras palavras, isto acontecia através de um “masoquismo” e de uma


“vontade inconsciente de sofrer”! (Talvez aqui você esteja pensando que
isto é bem "nonsense" e até mesmo uma forma de "culpar a vítima"...)

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Beck, então, tentou buscar o apoio empírico para essa afirmação (já que
ele era psicanalista e queria provar isto). Na ocasião, ele selecionou um
“n” de pesquisa significativo (amostragem) e começou, então, a analisar
o discurso de cada paciente com diagnóstico de depressão.

Ao ter contato, então, com uma amostra "gigante" de pacientes


deprimidos, ele agrupou o conteúdo do discurso deles em temas e
começou a buscar diferenças e semelhanças (isso se chama “análise
temática”) e, então, evidenciou que a raiva não era um componente
central na vida destes indivíduos!

Além disto, ele se deu conta de que não necessariamente as pessoas


deprimidas sofriam desse “masoquismo” e da tal “necessidade
inconsciente de sofrer”...
Beck constatou, na verdade, que os indivíduos deprimidos, em sua
maioria, apresentavam, uma visão negativa de si, do mundo e do futuro.
As pessoas se deprimiam por distorções da realidade – processos
cognitivos totalmente conscientes! "Eu não tenho valor nenhum /
absolutamente ninguém gosta de mim / meu futuro é sem esperança"!

E, disto, dois conceitos fundamentais surgiram para a abordagem: tripé


cognitivo (modelo cognitivo) e tríade cognitiva (crenças
centrais).

O tripé cognitivo refere-se à relação que existe entre pensamento


(cognição), comportamento e emoção (eles influenciam mutuamente,
mas a cognição, na visão beckyana, tem maior peso neste tripé).
Imagine que, por exemplo, um amigo te manda uma mensagem em
cima da hora cancelando um jantar com você…o que você pensaria?
Veja como a cognição influencia a emoção e o comportamento:

- Cognição: “ninguém faz questão de estar comigo…”


• Emoção: tristeza, solidão…
• Comportamento: choro, isolamento…

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- Cognição: “ufa! Eu não queria sair hoje mesmo!”
• Emoção: tranquilidade, alívio…
• Comportamento: distrai-se assistindo séries…

- Cognição: “isso é inaceitável!! Um desrespeito!!”


• Emoção: raiva, frustração…
• Comportamento: discutir, romper…

Na TCC, a ideia central é que há uma relação muito forte entre essas três
instâncias - pensamento, comportamento e emoção - de modo que não
conseguimos separá-las. Somos seres racionais e, nossas interpretações da
realidade determinam tudo que sentimos e fazemos!

Levando tudo isso em conta, Beck propôs, então, o "Modelo Cognitivo da


Depressão".

Nos anos que seguiram, outras pesquisadores buscaram "mapear" o


modelo cognitivo subjacente a outros transtornos para inferir quais seriam
os perfis cognitivos de outros transtornos mentais.

Desta forma, foram constatadas as seguintes tendências sistemáticas process


amento da informação:

• Depressão: visão negativa de si, do mundo e do futuro;


• Mania/Hipomania: visão demasiadamente inflada de si e de seu futuro;
• Transtorno de ansiedade: sensação de ameaça física ou psicológica
iminente;
• Transtorno de pânico: interpretação catastrófica de sensações físicas e
até mesmo mentais;
• Estado paranoico: tendências são atribuídas a outros indivíduos;
• Obsessão: estado constante de alerta que pode ser combinado (ou não)
com preocupações relacionadas à segurança;
• Compulsão: rituais de fuga devido à percepção de ameaça;
• Comportamentos suicidas: desesperança e deficiência na resolução de
problemas;
• Anorexia: medo excessivo relacionado a engordar.

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Para ajudar, trago um pequeno estudo de caso para você.

Vou contar para vocês a história da Sofia, uma paciente fictícia que te
procura em seu consultório (sim! Você terá que conceituar seu caso, fazer
seu plano de tratamento e executá-lo da melhor forma possível, na TCC).

Sofia é uma paciente, uma jovem estudante universitária, com vinte e


poucos anos. Ela está deprimida e buscou sua ajuda.
Quando ela chega em seu consultório, você notou, então, que ela carregava
uma bolsa. Nela, constavam várias coisas, adquiridas por ela, ao longo de
sua vida. E você, ao conceituar, deverá saber observar, descrever e
entender cada item que existe nela.

“Mas Ane, como assim?”

A bolsa, tem a ver com a nossa bagagem, ou seja, com tudo aquilo que
carregamos conosco ao longo das nossas vidas (inclusive o que nos
constitui antes mesmo de nascermos – como nossa biologia e nossas
vulnerabilidades genéticas). Nossas cognições (que são a base para entender
e "mudar" o paciente) estão, também, inerentemente ligadas à essa
bagagem.

Nesta bagagem o paciente carrega sua constituição biológica, psicológica e


também social. Ou seja, tudo o que carregamos e que constitui aquilo que
somos e que buscamos para significar o mundo.

Vamos à história de Sofia:

Sofia é uma estudante universitária de 20 anos que procurou terapia após a morte de sua
mãe. Marcou uma consulta com você, um terapeuta cognitivo.
Durante a sessão inicial, o psicólogo trabalhou com ela para reunir informações sobre sua
condição clínica, e aspectos significativos de sua história de vida, a fim de lançar luz sobre
possíveis eventos que se relacionavam às queixas e ao sofrimento atual…

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Sofia relatou que, desde o falecimento de sua mãe, que havia cometido suicídio há
cerca de um ano, ela não se sentia mais como alguém normal…sentia-se “no limite”
e “para baixo” a maior parte do tempo. Parou de praticar esportes, vivia isolada e
sentia-se cansada o tempo todo, mesmo dormindo cerca de 10 horas por dia. Suas
notas na faculdade também estavam ruins - ela sentia dificuldade de se concentrar,
tinha sonhos perturbadores com frequência e bebia todas as noites para adormecer.

Ela também contou que, quando tinha 7 anos de idade, perdeu sua irmã de apenas
9 anos. Seus pais e ela sofreram um acidente de carro (fatal para a irmã pequena)
enquanto Sofia estava sob os cuidados da avó.

“Eu estaria no mesmo carro que meus pais no dia em que ela se foi, mas preferi
ficar na casa da avó brincando…era pra ter sido eu!”
Para ter uma ideia de suas reações atuais a estímulos e a eventos específicos, o
terapeuta pediu a Sofia que pensasse sobre o momento em que geralmente se sentia
pior. A paciente relatou que se sentia pior à noite, quando estava sozinha em seu
apartamento.
O psicólogo perguntou também quais pensamentos específicos passavam por sua
cabeça durante esse período.

Sofia contou a ele que pensava coisas como: “nunca serei feliz de novo…”, “sou
sozinha, não tenho ninguém na vida…”, “não há sentido em se aproximar das
pessoas…”, “sou culpada pela morte de minha mãe, eu deveria saber que ela queria
cometer suicídio…”

Suas emoções eram a tristeza e a solidão, e o seus comportamentos choro,


isolamento social (amigos e família), procrastinação nos estudos, uso excessivo de
álcool.

O psicólogo considerou as informações coletadas na entrevista inicial e, então,


começou a desenvolver uma conceituação baseada em como Sofia pensa sobre si,
os outros, o mundo e o futuro…

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Capítulo 2 - As distorções cognitivas
Neste capítulo do nosso e-book, vamos focar nas distorções cognitivas, ou
seja, nos pensamentos automáticos e os diferentes tipos de distorções
cognitivas.

Como temos visto ao longo do conteúdo, os indivíduos têm uma crença


que eventualmente se ativa e está relacionada com a bagagem de vida, ou
seja, com tudo aquilo que pessoa carrega dentro da sua “mochila”.

No decorrer da vida, há várias situações externas e internas que vão


confirmando ou não essa determinada crença do indivíduo.

Diante dessas situações, temos reações emocionais e cognitivas-


comportamentais.

Alguns pensamentos automáticos podem ser bastante distorcidos e é a


função do psicólogo ajudar o paciente entender quando isto acontece.

O indivíduo está constantemente significando e ressignificando o


mundo…às vezes ele acerta e às vezes ele erra.

Esses erros geralmente acontecem por conta de um pensamento


automático distorcido, ou seja, que não faz sentido de acordo com a
realidade e com o que de fato acontece.

Vamos observar agora quais são as principais distorções cognitivas:

• Inferência arbitrária: tendência de chegar a conclusões na ausência de


provas suficientes para isso ou por meio de um raciocínio falho: “eu sei que
aquele funcionário não trabalha direito…”

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• Abstração seletiva: focalizar apenas um detalhe do contexto ignorando
aspectos que podem ser importantes. Em graus extremos desse tipo de
distorção, a totalidade da realidade é avaliada apenas com base em um
fragmento dela: “como eu tirei uma nota baixa na minha avaliação [que
também continha várias notas altas], significa que eu estou fazendo um
trabalho mal feito.”

• Raciocínio emocional: tendências a tomar as próprias emoções como


única forma de validar uma realidade ou experiência: “no trabalho, eu
sei fazer muitas coisas, mas eu ainda me sinto um fracasso.”

• Hipergeneralização: um determinado evento é visto como negativo e,


a partir dele, os demais eventos são avaliados e generalizados como
negativos também: “[como eu me senti desconfortável na reunião], eu
não tenho condições necessárias para fazer amigos.”

• Desqualificação ou desconsideração do positivo: você diz a si mesmo,


irracionalmente, que as experiências positivas, realizações ou qualidades
não contam: “eu realizei bem aquele projeto, mas isso não significa que
eu sou competente, só tive sorte.”

• Visão em túnel: você enxerga apenas os aspectos negativos de uma


situação: “o professor do meu filho não faz nada direito. Ele é crítico,
insensível e ensina mal.”

• Maximização/Minimização: os fatos ou experiências positivas são


minimizados a ponto de serem desqualificados; da mesma forma, é
maximizada a conotação negativa de alguns fatos da vida diária:
“receber uma avaliação medíocre prova o quanto eu sou inadequado.
Tirar notas altas não significa que eu sou inteligente.”

• Personalização: o indivíduo sustenta a crença de que ele é causador de


fatos ruins: “o encanador foi rude comigo porque eu fiz alguma coisa
errada.”

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• Pensamento dicotômico absolutista: tendência a interpretar fatos e
experiências de maneira dicotômica em apenas duas categorias opostas
(o pensamento “tudo ou nada”): “se eu não for um sucesso total, sou
um fracasso.”

• Catastrofização: tendência a exagerar a conotação negativa de fatos e


experiências, além de prever negativamente o futuro sem levar em
consideração resultados mais prováveis: “eu vou ficar muito
perturbado, não vou conseguir trabalhar.”

• Rotulação: tendência de avaliar erros como traços estáveis do


comportamento ou como rótulos estáveis que são atribuídos aos
comportamentos: “eu sou um perdedor.”/ “ele não é bom.”

• Leitura mental: tendência de antecipar ou prever negativamente e sem


provas o que as outras pessoas pensam sobre você: “ele acha que eu
não sei nada sobre esse projeto.”

• Afirmações com “deveria” e “tenho que”: tendência de avaliar o


comportamento na base de autorregras altamente moralistas em termos
de “deveria ou não deveria”, “certo ou errado”: “eu sempre deveria dar
o melhor de mim.”

• Vitimização: nos vemos como uma vítima impotente do destino e até


atribuímos a culpa de nosso insucesso ao outro. Por exemplo: “fui mal
na prova porque meu vizinho fez tanto barulho na semana passada que
não pude estudar um único dia”; “não consigo fazer dieta porque vejo
as pessoas na minha casa comendo à vontade.“

• Pensamento improdutivo: pensar sobre alguns assuntos específicos


dos quais não se poderá jamais obter uma resposta, ou ficar
“remoendo” problemas passados que não tem conexão com o presente,
pode ser contraproducente, ou seja, além de não se obter uma resposta
e não chegar a lugar nenhum com este tipo de pensamento, ele somente
gera mais sofrimento. Por exemplo: “fico analisando os fatos e me
perguntando todos os dias quando foi que minha ex-mulher começou a
parar de gostar de mim.”

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• Falácia da justiça: ficamos ressentidos porque achamos que sabemos o
que é a justiça ou o que é justo, mas as outras pessoas normalmente não
concordam conosco, assim, nesta distorção, tudo aquilo que não
coincide com a nossa visão é “injusto”: “não é justo que o professor me
dê essa nota! Mereço muito mais.”

• Estar sempre certo: neste caso estamos tentando constantemente


provar que as nossas opiniões e ações são corretas. Estar errado é
impensável e faremos o que for necessário para demonstrar que
estamos certos. Por exemplo: “eu não me importo o quão mal você vai
se sentir com este diálogo, eu vou ganhar no argumento não
importando o que custe, porque eu estou certo.” Estar certo (para a
pessoa que usa essa distorção cognitiva) muitas vezes é mais importante
que os sentimentos dos outros ou ouvir outro ponto de vista (que pode
ser até mais plausível que o próprio).
Vamos analisar melhor... :)

Faça uma análise (explique) como os pensamentos, comportamentos e


emoções de Sofia estão relacionados e se influenciam.
Por exemplo:
Situação: Estar sozinha no período da noite
Cognição: "Deveria ter sido eu no lugar da minha mãe, sou culpada por
não ter evitado isso!"
Distorção: raciocínio emocional, vitimização, etc
Emoção: tristeza, desespero
Comportamento: Uso excessivo de álcool

Agora é sua vez:

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Capítulo 3 - A Tríade Cognitiva e as Crenças Centrais
Hey, lembra do exemplo que dei sobre o amigo que cancela o jantar? Você,
por acaso, se perguntou por que as pessoas pensam de formas distintas no
mesmo contexto?

Bem, neste terceiro capítulo, vamos falar sobre as crenças centrais. Estas
crenças são o que determinam a "forma" com que pensamos, as nossas
cognições. As "crenças centrais" (sobre nós, mundo e futuro), são as lentes
que usamos para enxergar o mundo.

Quando falamos da Depressão, por exemplo, vemos a tríade cognitiva


(visão de si, do mundo e futuro) marcada pela seguinte tendência/ crenças:

• Visão de si
- sou sem valor, frágil, um derrotado!
- sou impotente, não sou respeitado…

• Visão das outras pessoas/mundo


- o mundo é ameaçador…
- as pessoas são sempre aproveitadoras e abusivas…

• Visão do futuro
- Algo de ruim vai acontecer…
- meu futuro é negativo, incerto…

Note que este indivíduo, neste caso acima, possui estas lentes para enxergar
e interpretar cada situação que se depara em sua vida.

Lembra da situação do cancelamento do jantar que vimos no capítulo


anterior? Pois bem. Se a pessoa tem uma crença central de desamor, ou
seja, ela não se acha passível de ser amada, é muito possível que:
• os pensamentos automáticos sejam: “ele não gosta de mim…”, “ninguém
me respeita…”, “ele faz isso porque sou eu, jamais faria com outra
pessoa…”
• a emoção seja: tristeza, isolamento, solidão...
• e o comportamento seja: choro, isolamento, passividade…

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Segundo Beck, nós temos três grandes categorias de crenças centrais.
São elas:

Desamparo: A ideia predominante é a de falta de suporte (“helplessness”).


Presume-se falta de apoio e proteção social. Pensa ser frágil, vulnerável e
inadequado ou até incapaz por causa dessa ideia. Sou: desamparado,
sozinho, necessitado, frágil, carente de algo/de ajuda…

Desamor: Acredita-se que não é digno de amor por ter algo em si que
impede o recebimento de afeto e dificulta o estabelecimento de intimidade
com outras pessoas. Presume-se ser defeituoso e passível de rejeição. Não
sou capaz de ser amado, sou indesejável, não sou atraente, sou diferente
dos outros…

Desvalor: Alimenta-se o pensamento de que é funcionalmente inapto ou


moralmente ruim, de que há algo dentro de si que é terrível ou falho.
Acredita-se que não tem valor algum, não merecendo nada e sendo fadado
ao fracasso. Sou ineficiente, incompetente, fracassado, defeituoso, mau,
louco, derrotado.

Em resumo, as crenças centrais (ou nucleares) são entendimentos que os


indivíduos têm de si, do mundo e do futuro, são tão fundamentais e
profundamente enraizados que, raramente, as pessoas os questionam - são
tomados como verdades absolutas.
Em outras palavras: as crenças costumam ser globais, supergeneralizadas,
rígidas, inflexíveis.

Quando uma situação acontece, imediatamente, elas se "ativam" e dão


sentido para situação. E como consequência, elas dão origem aos
pensamentos automáticos / cognições distorcidas e, por conseguinte, às
emoções desagradáveis e comportamentos disfuncionais.

Além disto, a partir da crença central surgem, também, as crenças


intermediárias. Elas são regras, pressupostos e atitudes que nos orientam no
mundo a partir da verdade que carregamos (das crenças). Por exemplo, “eu
não tenho amor” (crença central: desamor), então, “devo fazer todo o
possível para agradar, para ser amado!" (possibilidade 1) ou, "não vou
nem tentar me relacionar com as pessoas e nem agradar ninguém, já que
nem adianta" (possibilidade 2).

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Observe aqui como, então, seria o "funcionamento cognitivo", ou a
conceituação, de um indivíduo:

Conceituação cognitiva - modelo linear

Situação: Um amigo cancela um jantar em cima da hora;

Crença central: Desamor;

Crenças intermediárias: “Sou indigno de afeto…”, “Como ninguém vai gostar de


mim, devo me isolar…”, “Sempre vão me abandonar ou me decepcionar…”

Estratégias compensatórias: Evitar relações; se isolar.

Emoção: Tristeza, frustração, solidão…

Pensamentos Automáticos: “Ele não gosta de mim…”, “Ninguém me respeita…”,


“Ele faz isso porque sou eu, jamais faria com outra pessoa…”

Comportamento: Choro, isolamento, passividade…

Em resumo, as crenças centrais significam o mundo e , as crenças


intermediárias, ajudam o indivíduo a se "posicionar" ou "orientar" no
mundo a partir de sua visão.

Hey! Você notou algo a mais no quadro acima? Talvez esteja se


perguntando "e esta tal de estratégia compensatória, Ane?"

As estratégias compensatórias são fundamentais!


São um tipo de crença intermediária... são essenciais na conceituação,
na minha visão.

Segue o fio:

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Dica especial da Ane: atenção às estratégias compensatórias! É meu
"segredo" ao fazer a conceituação!

Através da experiência com diversos alunos no decorrer do tempo, sei que


essas estratégias às vezes ficam esquecidas. Minha ênfase no meu curso (e
que quase ninguém mais dá), é olhar para elas com atenção!
Mas a realidade é que elas são muito importantes para responder a
pergunta: “por que meu paciente não muda, mesmo com todas as coisas
difíceis que acontecem?”
Além de uma série de variáveis que vou comentar mais a fundo no
próximo capítulo, o que acontece é que as pessoas, sem perceberem, muitas
vezes, são perpetuadoras de seus problemas... isto acontece através das
estratégias compensatórias.

“Ane, mas o que são essas estratégias?”

As estratégias compensatórias, por sua vez, são um tipo "especial"


de crença intermediária, que cumprem duas funções,
necessariamente: aliviar o sofrimento da ativação da crença central e,
também, retroalimentar a crença (elas "confirmam" a crença central, com
base em uma evidência criada pela ação de "buscar o alívio). Por exemplo:
Crença central: desamor (sou estranha, ninguém é capaz de gostar de mim)
Crença intermediária: "todos me julgam", "nunca terei amigos", "não me
encaixo"...
Estratégia compensatória [EC]: "vou evitar contato com as pessoas"

Imagine, então, que esta pessoa sempre recuse convite dos colegas. Sua EC
é a evitação. Recusando convites ela se sente aliviada em um primeiro
momento (não ativa o sofrimento que sentiria na ativação da crença -
"ficando quietinha na minha casa, não vou me sentir estranha ou sem
conexão"). Este alívio é altamente reforçador!
Só que, posteriormente, sua crença vai ser fortalecida por esta ação.
Recusando os convites, ela deixa de criar um repertório adequado para se
relacionar, também deixa de criar evidências de que as pessoas podem
gostar dela e cria uma "prova favorável" à sua crença, que não existiria se
não fosse esta EC (quando ela encontrar seus colegas se sentirá mais alheia
e desconectada, p.ex., pois todos no grupo têm criado uma conexão ao sair
juntos, menos ela que se isolou: "todos falavam sobre algo vivido no
encontro em que não fui. Me senti alheia! Eu não disse que ninguém gosta
de mim? A prova foi estar alheia a tudo!"

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Capítulo 4 - A gênese do desenvolvimento patológico no
cognitivismo
E por que algumas pessoas desenvolverem certas crenças centrais? E por que
outras não? Falaremos, neste capítulo, sobre a "origem" das crenças.

Existe uma interação entre três grandes fatores. São eles:

• Bio: Filogenética e evolução, estratégias de adaptação + genética;

• Psico: Interação com o ambiente + personalidade;

• Social: Experiências + aprendizagens e influências sociais e culturais

Os indivíduos não desenvolvem as crenças centrais "da noite para o dia". Elas
são formadas pelos itens da bagagem que carregamos ao decorrer da vida e da
interação de certos elementos como os mencionados acima.

Vamos entender mais a fundo em que consistem as questões biológicas:,

• Herança genética (como os genes dos pais contribuem para sua fisiologia);

• Ambiente intra-uterino (fatores hormonais, uso de substâncias, etc)

• “Traumas” na infância também geram alterações neurológicas relevantes:


- Atrofia de volume do hipocampo (relacionada à memória e
dissociação; alterações (aumento da perfusão) em córtex órbito-frontal;
aumento de perfusão na amígdala (reações emocionais), etc

Todos esses fatores estão relacionados e acabam de certa forma compondo


a personalidade de cada indivíduo.

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Sua personalidade também compõe esta bagagem. Aqui, menciono
o Modelo Fatorial de Personalidades (dos 5 fatores de
personalidade), que é a teoria mais aceita no âmbito das Diferenças
Individuais:

• Amabilidade: a maior expressão deste traço diz respeito à alguém que tende a se preocupar
com a qualidade de suas interações com as outras pessoas, são generosas, confiáveis e preocupadas com
os outros;

• Neuroticismo: diz respeito à instabilidade emocional, as pessoas que são mais facilmente
suscetíveis à raiva, podem expressar hostilidade nas relações, ansiedade, frustração e medo. Sinaliza
propensão a perturbações emocionais.

• Conscienciosidade: grau de organização , persistência (obstinação) e motivação diante de


objetivos.

• Abertura à experiência: exploração de abertura a novidades e temas que não são


familiares;

• Extroversão: indivíduos que são mais atentos ao ambiente externo e mais propensos a “se
energizar" com ele, buscando a interação com os outros (“prestam mais atenção” ao ambiente
externo). Pessoas no outro oposto do traço, que possuem como característica a introversão, geralmente
tendem a apreciar mais atividades introspectivas (como a leitura) e se “energizam” mais com elas do
que com as atividades sociais.

O que, então, "somos" e nossas relação com o meio interage e se influencia


mutuamente, de forma transacional. A cultura, a sociedade (no sentido
maior e nas "relações micro") também influenciam nossa "constituição".
Imagine uma criança que nasce com uma "biologia favorável" ao
desenvolvimento de transtornos de ansiedade (é mais sensível às ativações
do seu Sistema Nervoso Simpático), que cresce ouvindo seus pais dizendo
como o "mundo é hostil" (sofre modelação e modelagem), é retraída (tem
pouca abertura à experiência), e, neste ínterim, talvez sofra "bullying" no
ambiente escolar. Isso tudo se influencia mutuamente e molda, então, sua
visão de mundo, sua crença. E, cada vez mais sua crença e
comportamentos, em espiral, possivelmente, irão reforçar esta perspectiva.
Adiante, talvez tudo isto constitua um Transtorno de Ansiedade Social ou
Generalizada, inclusive.

Nossas crenças, portanto, são oriundas da inter-relação entre as


características inatas/biológicas, as experiências e interação com o
ambiente e as características (personalidade, etc) que medeiam a
suscetibilidade à vulnerabilidade nestas interações com o ambiente.

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Agora, vamos voltar a história da paciente fictícia Sofia, que começamos a
ver no primeiro capítulo deste e-book.

O clínico na avaliação também notou vários exemplos de pensamentos distorcidos, em sua


conceituação:
• Sofia tinha expectativas tendenciosas sobre o futuro: “eu nunca vou ser feliz de
novo…”
• Ela fazia generalizações excessivas: “não há sentido em me aproximar das
pessoas…”
• E raciocínio emocional: “deveria ser eu naquele carro…”

O psicólogo também considerou a natureza do foco de Sofia: quais eram suas lembranças
recorrentes, ruminações, seu viés atencional no dia-a-dia…

E ela contou que, além de ser incomodada por sonhos angustiantes recorrentes sobre o
falecimento de sua mãe, ela ainda “passava muito tempo em sua cabeça” pensando em
como se sente mal, sozinha e repassando todos os aspectos do seu sofrimento e perdas…

O terapeuta desenvolveu, então, uma conceituação inicial e um plano de tratamento com


base no “modelo cognitivo de Sofia” (suas emoções, pensamentos e comportamentos
prevalentes e frequentes), suas crenças e, também, a partir dos sintomas de depressão e
estresse pós-traumático…

Sofia perguntou ao psicólogo como ela poderia ter desenvolvido essas crenças…como havia
chegado ali…

O psicólogo contou à Sofia que não era possível estabelecer uma relação de causa e efeito
entre os eventos de nossas vidas e o surgimento do transtorno mental…

Também explicou à ela que os transtornos mentais têm causa multifatorial e


compartilhou com ela a metáfora da bagagem…

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Olha só os itens que foram enchendo a mochila de Sofia ao
longo da vida:

• Mãe: depressão (possível vulnerabilidade genética);


• Pai: histórico psiquiátrico ausente;
• Sofia: criança introvertida, retraída, insegura;
• Criada por pais amorosos, mas superprotetores;
• Pais: modelação e modelagem das crenças centrais e distorções de Sofia:
Ela mostrou vários itens de sua "bagagem", expressivos para ela:
“Meus pais diziam que tinha que me apoiar somente na família…”, “família é
tudo que você tem nada vida, os outros são os outros…”
- “O mundo é perigoso…”
- “Você precisa ser boa aluna como sua irmã para sentirmos orgulho…” >
afeto condicionado ao sucesso na escola…
- “Uma das lembranças mais marcantes da minha infância foi meu pai
bebendo whisky, possivelmente embriagado com os olhos vermelhos e tristes, no
final de um dia de trabalho, nos meses que seguiram à perda da minha
irmã… um dia ele me colocou no colo e ficamos em silêncio… ele estava
ouvindo Cartola, naquele dia, eu não sabia a história da música , mas aquilo
me cortou por dentro…a música e a cena nunca saíram da minha cabeça, ela
dizia como "o mundo é moinho, vai acabar com teus sonhos tão mesquinho e
reduzir as ilusões a pó".
Além disto, Sofia também carrega isto em sua bagagem...
Infância & Adolescência
• Evento traumático: perda de irmã (acidente quando crianças);
• Era cordial e amigável, mas não conseguiu estabelecer laços profundos
com amigos na infância, pois sua família sempre mudava de cidade por
causa do trabalho do pai;
• Sua família não tocava no assunto da perda da irmã - sofrimento era
velado – "aprendi a ser sozinha e a não buscar ajuda no sofrimento";
• Início da adolescência: “desconectada, diferente…queria ser querida,
gostável, mas carregava estas ideias de não ter conexão com ninguém”;
• Idealização da irmã - “culpa por não ser ela e por não ter falecido em seu
lugar”;
•Lutos: “As pessoas que gosto sempre me deixam…”
• Tímida: certa dificuldade em fazer amigos e de se aproximar de garotos…
• Alta conscienciosidade com os estudos (queria atender os desejos dos
pais), porém, em seu contexto, isso tornou-se problemático
(perfeccionismo desadaptativo)

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• Ensino médio: passou a pertencer a um grupo de meninas do colégio e
conheceu a natação - fator de proteção!
• Primeira experiência romântica: relação positiva - fator de proteção;
• Melhora da sua autoconfiança após passar no vestibular;
• Início da idade adulta: faculdade de Direito;
• Mudou da casa dos pais para outra cidade;
• Envolvimento com esportes (deixou de ter hobbies solitários e começou
a se envolver em atividades coletivas);
• Conseguiu se vincular bem às colegas de faculdade;
• Uso recreativo de álcool (início).

Aos poucos Sofia estava manejando cada situação e estava bem. Mas, nunca
deixou os itens de sua bagagem (não há como). E, possivelmente, por isto,
quando sua mãe cometeu suicídio, ela ativou novamente suas crenças
centrais e decaiu (estava tudo lá! Dentro de sua bolsa!). Declinou
profundamente, se deprimiu e começou a fazer uso abusivo de álcool.
Este é o momento em que ela buscou a terapia!

As crenças centrais não estão ativas o tempo todo. Elas se ativam em


determinados momentos nos quais o indivíduo é confrontado com alguma
situação que as suscitam.

No caso de Sofia, há uma crença que começou a ser desenvolvida por


conta de suas experiências na infância, ou seja, que foi ativada de forma
muito veemente neste período e foram agravadas após o episódio do
falecimento de sua mãe, já na fase adulta.

Essas crenças disfuncionais podem ter tornado Sofia vulnerável a


interpretar eventos e a focar nas coisas de maneira tendenciosa e,
provavelmente, influencia nos seus pensamentos diários, o que afetou
negativamente seu humor e consequentemente a levou a pensamentos mais
negativos.

Este ciclo provavelmente foi reforçado pela tendência de Sofia de evitar


pessoas e certos lugares, o que a impedia de ter a oportunidade de avaliar a
precisão de seus pensamentos negativos ou experimentar eventos positivos
na vida.

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Capítulo 5 – Alvos do tratamento a partir da
Conceituação Cognitiva
Levando em consideração todos esses aspectos, a conceituação cognitiva de
Sofia, os seguintes alvos

• Identificar, examinar e modificar pensamentos e crenças distorcidos ou


inúteis que Sofia tem;
• Examinar seus pensamentos sobre seu papel percebido no suicídio da
mãe;
• Aumentar seu nível de interação social;
• Aplicação de protocolo para a depressão: ativação comportamental e
reestruturação cognitiva (há uma aula sobre o tratamento para Depressão
no meu Canal no YouTube! Vá lá conferir! Siga o canal e também deixe
seu like no vídeo!)
• Foco no abuso de álcool
• Aplicação de protocolo para o Transtorno de estresse pós-traumático de
Sofia;

A partir daí, Sofia pode começar a ressignificar essas evidências, os itens de


sua bagagem.
A reestruturação cognitiva a ajudou a examinar as evidências e adotar um
pensamento modificado de que o desejo de sua mãe de suicídio era algo
que ela não poderia ter previsto e também outros pensamentos para que
fossem mais precisos e úteis.

Com a terapia, Sofia reconheceu que tinha várias pessoas próximas em sua
vida que se preocupavam com ela e que era importante para ela manter
esses relacionamentos. Ela também concordou em aumentar lentamente
sua atividade social, o que lhe permitiu avaliar sua crença de que não tinha
ninguém e não valia a pena se relacionar. Ao longo do tratamento, Sofia fez
progressos importantes em relação aos objetivos do tratamento e relatou
uma redução dos sintomas.

Perto do final do tratamento, continuou a trabalhar para reduzir a


quantidade de álcool que consumia antes de dormir (experimento
comportamental para testar seu pensamento de que levará “uma eternidade
para adormecer sem beber”).
Apesar de permanecer hesitante, relatou que se sentiu grata por ter se
reconectado com sua família e suas amigas.

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