Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
São Paulo
1999
SUMÁRIO
1
SUMMARY
This work tries to discuss the question of consciousness both from the
point of view of psychological development as for its neurological insertion. The
author presents some definitions of consciousness. Following she introduces a
summary of the most important theories of development focussing the moment
of rising of the idea of myself, origin of auto-consciousness.
She presents some of the most recent theories about mental operation
and localization specially the question of emergence of consciousness bringing
new ideas about what could be it's neurological substratum.
The author tries to establish some inter-relations between the junguian
theory and these new findings of neurosciences finding what could be a
scientific basement for some of Jung’s concepts.
2
"Sou um homem, e portanto cheio de defeitos e fraquezas. Minha carne
com muita freqüência grita de fome, às vezes com uma força que me estonteia.
Claro, muitas vezes tenho as minhas dúvidas. Não faz muito tempo atravessei
um período de tão forte crise espiritual, que escrevi uma longa carta a um
monsenhor que admiro e estimo. Usei nesta carta confessional a expressão 'sinto
que minha fé está apenas por um fio'. Sabe o que ele me respondeu? Que se
regozijava por saber que a coisa era assim, pois não confiava muito nas
chamadas 'fés inabaláveis', dessas que julgam poder deslocar montanhas. São
demasiadamente teatrais para serem profundas — escreveu o monsenhor. O fio
que prende a sua fé deve ser do melhor aço e portanto resistente e ao mesmo
tempo flexível. Fé sem flexibilidade, fé sem dúvida pode acabar em fanatismo.
Terminou a carta assim: 'Reze a Deus, peça-lhe para que faça esse fio
resplandecer sempre na sua luz'“.1
1
VERÍSSIMO, É.. Incidente em Antares. São Paulo: Círculo do Livro. p. 183.
3
INTRODUÇÃO
Quem sou eu e quem é o outro? Como é que sei que eu sou eu? O
problema da consciência foi sempre uma questão fundamental em minha vida.
Lembro-me de pensar, desde pequena, que deveria haver algo muito especial
que fazia com que eu soubesse quem era e ao mesmo tempo quem era o outro
com quem me relacionava. Tinha muito medo de, ao acordar, não me lembrar de
minha própria vida, não reconhecer minha família, minha casa, meus
brinquedos. E se a vida recomeçasse a cada nova manhã?
Como na história do sábio chinês que não sabia se era um sábio chinês
sonhando com uma borboleta ou uma borboleta sonhando com um sábio chinês,
também eu imaginava que poderia acordar a qualquer momento e descobrir que
aquilo que acreditava ser a minha vida não era mais do que o sonho de uma
outra pessoa. Nos momentos de medo e tristeza, essa idéia me consolava- afinal,
a qualquer momento eu poderia ser salva, bastava esperar pelo despertar de meu
sonhador. Em momentos de alegria e felicidade, no entanto, queria que o
sonhador fosse eu mesma.
Oscilando entre a passividade de objeto do sonho e a assertividade do
sonhador, fui crescendo e descobrindo novas maneiras de experimentar essa
mesma idéia. Uma delas foi a literatura. Onde mais poderia viver com tanta
intensidade essa troca de papéis? Era fabuloso fazer de conta que era em um
momento a princesa do conto de fadas, em outro a pequena órfã, mais tarde a
menina que pisou no pão. Quantas emoções descobria a cada nova leitura e
como era fácil sair do papel quando o medo apertava bastava fechar o livro.
4
Outra maneira de lidar com essa mesma questão foi através de minha
escolha profissional. Acredito que escolhi ser psicóloga porque em algum
momento aprendi que o psicólogo era o estudioso dos sonhos. E como queria
entendê-los! Desejava compreender como eram as pessoas, como eram seus
sonhos, quais suas inquietações; queria saber o que fazia com que eu acordasse
me lembrando quem era ao dormir e o que fazia com que fosse sempre a mesma.
Educada num colégio católico, queria saber quem é esse homem,
possuidor de uma alma que lhe garante a imortalidade e ao mesmo tempo a
filiação divina. Lá aprendi que somos todos irmãos porque filhos do mesmo pai,
iguais porque aos olhos do pai todos os filhos são iguais e ao mesmo tempo
diferentes porque somos possuidores de livre arbítrio e responsabilidade diante
da própria vida. Que alma é essa?, perguntava-me. Haverá mesmo algo imortal
em nós? Espelho, espelho meu, quem sou eu, afinal?
O tema escolhido para minha monografia ronda essas mesmas questões.
Quero discutir o que faz com que o homem se conheça como tal. Como se faz
um homem? O que há de imutável no ser humano? Como se dá a consciência?
— atributo que, afinal, nos diferencia dos outros animais. Qual seu lugar, quais
suas possibilidades de transformação?
Meu projeto inicial era discorrer sobre a consciência e sua criação,
discutindo a importância do trabalho terapêutico para seu desenvolvimento. Para
isso utilizaria algumas amplificações clínicas e outras literárias. No entanto,
logo ao começar a trabalhar fui atraída para um novo caminho. Deparei com
muitas publicações falando sobre o sítio da mente, sobre a consciência e seu
funcionamento, que tentavam estabelecer o substrato neurológico do fenômeno
consciente. Surgiu então a idéia de tentar estabelecer alguns paralelos entre as
novas teorias a respeito da mente e a psicologia junguiana.
5
Este trabalho é, enfim, espelho da mudança de minha relação com a
psicologia analítica. Num primeiro momento, a paixão e o fascínio foram os
elementos fundamentais para a aproximação. Fiquei encantada com as idéias de
arquétipo e inconsciente coletivo, com a possibilidade de trabalhar com o
material onírico. Esse encantamento fez com que eu escolhesse essa como a
teoria que fundamentaria minha atividade como psicóloga. Eram meus primeiros
anos de formação profissional, época de sonhos e desejos, grandes aspirações e
uma inconsistência quase juvenil tudo era maravilhoso.
A escolha teórica revelou-se acertada, tornou-se muito útil para a minha
compreensão clínica. Aos poucos no entanto, o encantamento e o fascínio
deram lugar a algo mais tranqüilo, mais sedimentado, como uma paixão que dá
lugar a um amor mais maduro. Quando estamos apaixonados não percebemos os
defeitos do objeto de paixão, tamanho o fascínio que ele nos causa. Já num amor
mais maduro podemos exercer a capacidade de ver o outro como ele realmente é
e, mesmo assim, ou até por isso, amá-lo de verdade.
O curso de formação na Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica
contribuiu para meu maior conhecimento da teoria e ao mesmo tempo para
aumentar os questionamentos que fazia. Ao ingressar no curso tinha muitas
certezas a respeito da teoria junguiana. Agora, ao concluí-lo, tenho muitas
dúvidas. Sinto que tive a minha fé abalada; foi um longo período de crise
interior, que me fez duvidar da capacidade de ser uma verdadeira analista
junguiana.
Percebo, no entanto, que o fio que prende minha fé — ou melhor, a
minha relação com a teoria junguiana —pode ser tangido pelos ventos da dúvida
e da incerteza e ao mesmo tempo se manter íntegro. Esta monografia não é mais
do que um exercício de flexibilidade e resistência desse fio condutor que une
6
minha vivência pessoal e profissional às idéias trazidas por Jung. Não posso
encontrar melhor forma de expressar minha profunda ligação com essa teoria.
Inicio esta monografia pela tentativa de discriminar seu objeto, com um
breve histórico do conceito de consciência, a etimologia da palavra e as
diferentes formas de abordar o tema. A seguir, faço um pequeno resumo de
algumas teorias que discutem a questão do surgimento da consciência do eu, já
pressupondo, portanto, que para falar em consciência é necessário um "eu" que
dela se aproprie. Além das idéias dos junguianos Edinger, Fordhan e Neumann,
discuto também as de Lacan, Winnicott e Melanie Klein. As análises desses
autores acerca do processo que culmina na consciência do eu são muito
interessantes e ajudaram-me a delimitar a questão. Apesar de cada um deles
partir de pressupostos teóricos diferentes, todos tratam de uma mesma questão: o
momento inicial de surgimento de consciência, momento de instalação de um
"eu" que é seu.
A etapa seguinte deste trabalho é um relato sobre as neurociências e os
mais recentes conhecimentos acerca da mente, seu lugar e funcionamento.
Discuto alguns autores, cujas recentes publicações trazem novas idéias acerca do
que seria o substrato do mental e sobre as perspectivas que se abrem a partir
desses novos conhecimentos. Autores de disciplinas diferentes têm-se se
debruçado sobre o tema da consciência, produzindo obras que discutem da
questão genética à questão comportamental, passando pela problemática
cultural. Essas são formas diferentes de abordar o mesmo assunto motivam-me a
escrever esta monografia. Minha questão básica, enfim, é: o que é a consciência
e como é que ela se dá?
Tento ainda neste trabalho estabelecer aproximações entre algumas
idéias de Jung e as novas descobertas das neurociências, pois, ao selecionar o
material que utilizaria, deparei-me com análises muito próximas às idéias
7
junguianas. Não é minha intenção, porém, fazer transposições teóricas uma vez
que os pontos de partida de cada análise são diferentes.
Acredito que seja justamente nesse momento que o exercício de
flexibilidade do meu fio condutor seja mais intenso. É impossível continuar
sendo junguiano sem discutir a possibilidade de encontrar algum tipo de
substrato neurofisiológico que sustente ou de referende idéias junguianas.
Acredito que neste momento em que Jung tem sido tão atacado e mal
compreendido é importante que nós, junguianos, nos preocupemos em divulgar
sua teoria utilizando todo o conhecimento científico disponível .
Termino a monografia com um breve apanhado das idéias discutidas ao
longo do trabalho e com uma pequena reflexão acerca dos caminhos percorridos
durante sua elaboração e dos destinos aos quais cheguei.
8
I
"Conhece-te a ti mesmo."
Primeiro Mandamento do Oráculo de Apolo
em Delfos
2
FERREIRA, A. B. H. (1975). Novo Dicionário da Língua Portuguesa. São Paulo:Nova Fronteira.
3
JUNG, C. G. (1971) Psychological Types. CW 6. New York: Princeton University Press. par. 700.
10
emergente de um sistema é aquela que é causalmente
explicada pelo comportamento dos elementos do sistema;
mas, não é uma propriedade de quaisquer elementos
individuais e não pode ser explicado simplesmente como uma
soma das propriedades desses elementos.4
O homem é o único ser vivo capaz de "ter consciência". Será essa uma
verdade ou estaremos falando de um tipo de consciência específica? Como é
4
SEARLE, J. R. (1998). O Mistério da Consciência. São Paulo: Paz e Terra. p. 44.
5
DEL NERO, H. S. (1997). O Sítio da Mente. São Paulo: Collegium Cognitio. p. 134.
6
SEARLE, J. R. op. cit, p. 26.
11
essa questão quando pensamos em um animal? O homem é um animal racional,
todos os outros animais são irracionais; racional é, segundo o verbete que consta
no Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa "aquele que usa da razão,
que raciocina, que se deduz pela razão". Esta é uma definição antiga, aquela
que aprendemos na escola para diferenciar o ser humano, aquele que seria a
coroação da criação divina, dos outros animais. Nesse sentido, a racionalidade é
nosso bem maior, nosso grande trunfo, aquilo que nos dá a possibilidade de
dominar o mundo irracional, que nos torna agentes transformadores dessa
criação. Será a racionalidade humana o mesmo que consciência? Era disso que
se falava antigamente?
Embora esse não seja um termo tão usado atualmente, tendemos ainda
hoje a confundir o ser humano e sua consciência com essa racionalidade. Numa
época de grandes conquistas tecnológicas parece impossível não definir o
homem por sua capacidade de pensamento, de criação, de transformação. Mas
que pensamento é esse? Poder pensar a respeito de algo nos traz a diferenciação,
a possibilidade de transformar o mundo, é como se fornecesse o instrumento
necessário para uma intervenção no rumo da natureza. Mas, ao mesmo tempo, se
esse pensamento for unilateral corremos o risco de nos afastar da vida em si,
daquilo que nos sustenta. A unilateralidade dessa diferenciação tem levado o
homem a destruir a natureza, esquecendo-se que somos um todo único e
interdependente.
12
a luz das trevas. Deus chamou à luz Dia, e às trevas Noite.
Houve uma tarde e uma manhã: foi o primeiro dia.7
7
Bíblia sagrada, São Paulo, Ave Maria, 1959, Gênesis, 1, 1-5
13
Uma cadeira é sempre uma cadeira, isto é, um objeto que serve para
sentar. A consciência, ou nesse sentido a percepção consciente, tem a sua
literalidade. Por isso se alterada a sua função, se a cadeira for utilizada como
uma escada por exemplo, deixará de ter suas características de cadeira? Não,
pois um sujeito que a olhe nesse momento pela primeira vez poderá dizer que é
uma cadeira, já que em sua literalidade será sempre uma cadeira. Qual é o dado
de realidade aí? Se pensarmos em conceitos abstratos, então a confusão pode
ficar ainda maior. O que para um sujeito é a mais pura realidade para outro não
passa de alucinação. E a consciência, como é que fica?
Estamos, na verdade, falando de dois aspectos diferentes da consciência.
O primeiro é o aspecto da percepção ou sensibilidade: "tenho consciência de
coisas através de meus órgãos de sentidos, registro, sinto". Outro aspecto é o da
consciência de si mesmo: "percebo-me como um e o mesmo sujeito ao longo do
tempo, tenho consciência de meus desejos, minhas limitações". Este seria o caso
especial da autoconsciência. Diz John Searle:
9
JUNG, C.G., Dream analysis, notes of the seminar given in 1928-1930, N.J.Princeton University Press, 1984,
p.13.
15
Nesse sentido, podemos estabelecer um paralelo entre a consciência e
esse salvador. Dentro da estruturação psíquica, seria no âmbito da consciência
que se daria a noção de identidade do sujeito. Só através de um ego consciente é
que chegamos a saber quem somos, quais são nossos limites, até onde vamos.
Nos momentos de crise, de confronto, essa idéia se faz fundamental. É na
relação com o outro, a partir desse encontro, que poderemos verdadeiramente
nos conhecer.
Vivemos de forma um tanto automática. Em muitos momentos não nos
damos conta de nosso lugar no mundo e quando confrontados com algum tipo
de problema nos sentimos acuados. Olhamos então para dentro de nós e
tentamos compreender quem somos, buscamos estabelecer nossos limites,
nossos contornos. A consciência surge nesse momento como o "salvador". Nela
e através dela nos situamos. Não há definição de Eu, não há lugar no mundo
onde a noção de consciência não esteja presente. É um conceito imprescindível
para falar de algo sendo em algum lugar. Para que a vida exista é preciso que
haja alguém que esteja consciente dessa vida. Alguém que saiba dela, alguém
que a perceba. As idéias de conhecimento e consciência estão entrelaçadas de tal
forma que uma pressupõe a outra. Jung traz essa idéia:
16
humana foi a primeira criadora da existência objetiva e do
significado: foi assim que o homem encontrou seu lugar
indispensável no grande processo do ser.10
10
JUNG, C. G., Memórias, Sonhos e Reflexões, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1975, pg.226.
11
SEARLE, J. R., op. cit, p. 25.
17
Nenhum casa foi construída, nenhuma descoberta científica
foi feita e nenhum rito religioso observado sem a
participação da psique humana. ... Tudo o que se possa
descobrir acerca dessas leis naturais que se aplicam à psique
humana também terá validade em relação a todos os aspectos
da existência do homem.12
12
FRANZ, Marie L.V. Jung Seu Mito em Nossa Época, São Paulo, Cultrix, 1997, p.12 .
18
II
"Dentro de nós há uma coisa que não tem nome, essa coisa é o que
somos”.13
Jose Saramago, Ensaio sobre a Cegueira
13
SARAMAGO, Jose, Ensaio Sobre a Cegueira, São Paulo, Cia das Letras, 1995, p.
14
WINNICOTT, D.W., O Brincar e a Realidade, Rio de Janeiro, Imago, p. 161.
19
Faço aqui uma tentativa, a partir do ponto de vista da dinâmica psíquica,
de responder à pergunta colocada no início do trabalho: "Como é que se faz um
homem?". Não é minha intenção traçar um esboço completo do
desenvolvimento infantil. Gostaria de me ater à questão do nascimento da
consciência, sua emergência.
Penso, como já disse anteriormente, que a consciência é fundamental
para definir um homem. Sem ela não há um ser que se perceba, que seja. Para
entender como se dá esse nascimento, visito alguns autores que falam de
maneira mais específica do momento que seria o início do que podemos chamar
de consciência de si mesmo, primeiro germe da identidade individual, quando se
começa a ser um sujeito diferente e destacado do mundo que nos cerca — um
indivíduo.
Cada um dos vários autores utiliza uma terminologia específica, fruto de
seu pressuposto teórico, para elaborar sua teoria. Não pretendo considerar aqui
as diferenças teóricas subjacentes a cada descrição do processo de
desenvolvimento da consciência. É importante perceber que, embora partindo de
pressupostos teóricos diferentes, cada um dos autores discutidos tenta, à sua
maneira, falar sobre o que seria o germe da identidade pessoal.
Termos como ego, complexo de ego e eu são utilizados de formas
distintas. Considero aqui, no entanto, que estão sempre se referindo a um mesmo
fenômeno ou instância: aquilo que propicia a noção de identidade de um sujeito.
20
WINNICOTT
15
WINNICOTT, D.W., A mente e sua relação com o psique-soma , in Da Pediatria à Psicanálise, Rio de
Janeiro, Francisco Alves, 1993, pg. 409.
21
desse indivíduo, não sendo mais que um caso especial do funcionamento do
psique-soma”16. Portanto, para falar sobre o funcionamento mental temos de
falar do indivíduo em desenvolvimento. Nesse processo é que vai surgir algo a
que se dá o nome de mental.
O desenvolvimento da mente é influenciado por fatores que muitas vezes
não dependem da esfera pessoal do indivíduo. Para que esse desenvolvimento
ocorra é necessário que exista um meio ambiente adequado. Winnicott fala então
do papel da mãe suficientemente boa como aquela capaz de favorecer um
ambiente adequado para o desenvolvimento do bebê. Diz ele que se a mãe for
suficientemente boa o bebê vai ser capaz de gradativamente compensar suas
deficiências através da atividade mental.17 "A atividade mental do bebê
transforma o relativo fracasso de adaptação em um sucesso adaptativo.” 18
Mais tarde, em 1970, ao falar em um simpósio sobre individuação, ele
retoma essa idéia dizendo que os processos maturacionais herdados pelo bebê só
farão com que ele progrida se o meio ambiente for facilitador. Portanto, o bebê
herda um processo em direção ao desenvolvimento, mas, para entender como ele
se dá, devemos sempre levar em conta a "provisão ambiental". Então, para que
um indivíduo se torne um indivíduo, há de levar em conta a inter-relação entre
os processos maturacionais herdados e o meio ambiente no qual ele se
desenvolve.
Winnicott refere-se a um bebê que nos primeiros meses de vida não está
separado do mundo que o cerca e postula então, um "não reconhecimento
primitivo":
LACAN
provisão ambiental.
25
WINNICOTT, D.W., op. cit, 1993, p. 280
25
Em “Introdução ao Narcisismo”, de 1914, Freud diz :
26
FREUD, S., Obras Completas, vol.II, Madrid, Biblioteca Nova, 1973,p.2019
27
LACAN, J. Algumas reflexões sobre o espelho" in Psicanálise, vol. 2/1985 p. 15 a 35
26
psicológico ao biológico, produto de uma insuficiência ocasionada pela falta de
mielinização do sistema nervoso.
Diz Lacan: “o filhote do homem numa idade onde ele é, por um tempo
curto, mas por algum tempo, superado na inteligência instrumental pelo
chimpanzé, reconhece no entanto sua imagem no espelho como já sua.”28 Esse
acontecimento pode produzir-se a partir da idade de seis meses e ocorrer com
esse mesmo sentido até mais ou menos os 18 meses.
28
LACAN, J. op. cit. p. 15
29
LACAN, J., op. cit., p. 18
30
Interessante observar o uso que se faz de um termo antigo —imago— cunhado originalmente por Jung, ainda
em 1911, em Símbolos de Transformação. Definia-se então como protótipo ou representação inconsciente, termo
que Jung, em escritos posteriores, vai substituir por arquétipo para deixar claro que falava de forças coletivas e
impessoais. (Ver nota de rodapé em CW, vol. 5, p. 44, 2ª edição, Princeton/Bollingen)
27
dependente da mãe ou nutridor, ele pode já antecipar o reconhecimento de sua
própria imagem no espelho.
MELANIE KLEIN
32
Essa é justamente uma das críticas à teoria kleiniana feitas por Newmann, ele considera que não há no início
divisão entre mundo externo e mundo interno e portanto não se pode falar em mecanismo de projeção e
introjeção.
33
Segal, H., Introdução à Obra de Melanie Klein, p. 24.
29
A fantasia inconsciente está, portanto, constantemente alterando a
percepção ou interpretação da realidade e vice-versa: a realidade exerce seu
impacto sobre a fantasia inconsciente.
Klein postula então a existência de um ego primitivo desorganizado mas
com tendências à integração, exposto desde o nascimento à ansiedade provocada
pela polaridade inata dos instintos. Quando confrontado com a ansiedade
produzida pelo instinto de morte, o ego o deflete, isto é, se divide (splits) e
projeta essa sua parte para fora, no objeto original, o seio, que se torna então
ameaçador para ele. Ao mesmo tempo estabelece uma relação com o objeto
ideal — isto é, a libido também é projetada para criar um objeto que irá
satisfazer o esforço instintivo do ego pela preservação da vida.
O ego tem assim, desde cedo, uma relação com dois objetos: o seio é
dividido em seio ideal e seio persecutório. A ansiedade predominante aí é de que
os objetos persecutórios entrarão no ego e dominarão e aniquilarão tanto o
objeto ideal quanto o eu. Por causa dessa ansiedade de tipo paranóide e porque
há um estado de divisão, Melanie Klein deu a essa posição o nome de posição
esquizo-paranóide.
Ela mostra que a partir dessa projeção de partes do eu no objeto externo
desenvolve-se um mecanismo de identificação projetiva. Considera que essa é a
forma mais primitiva de formação simbólica: "...pela projeção de partes de si
mesmo no objeto e pela identificação de partes do objeto como partes do eu
(self) o ego forma seus primeiros e mais primitivos símbolos." 34
A divisão que acontece na fase esquizo-paranóide e que permite ao ego
emergir do caos e ordenar suas experiências é a base de uma faculdade de
discriminação cuja origem é a diferenciação primitiva entre bom e mau.
Há desde o início da vida uma tendência para a integração. Se as
condições do desenvolvimento são favoráveis, o bebê vai sentir que o objeto
34
Segal, H., op. cit., p. 48.
30
ideal e seus impulsos libidinais são mais fortes que o objeto mau e seus impulsos
maus — ele vai ser então cada vez mais capaz de identificar-se com o objeto
ideal, o ego ficará cada vez mais forte.
A posição depressiva é a fase em que o bebê reconhece um objeto total e
se relaciona com esse objeto. É o momento em que o bebê começa a reconhecer
sua mãe, o que significa que ele a reconhece como objeto total. Isso acontece
por volta dos seis meses de vida.35 Quando o ego se torna mais integrado,
quando processos de projeção diminuem, o bebê descobre sua própria realidade
psíquica "ele (o bebê) se torna consciente de si mesmo e de seus objetos como
separados dele ." 36
A medida que o ego se torna mais organizado, que as projeções se
enfraquecem, a repressão toma o lugar da divisão. Para poupar seus objetos o
bebê em parte inibe seus instintos e em parte os desloca ou substitui, o que é o
início da capacidade de formação simbólica. “Cada aspecto do objeto, cada
situação a que se tem de renunciar no processo de crescimento dá origem à
formação simbólica.” 37 (op. cit., pg 88)
Para Melanie Klein a formação simbólica é produto de uma perda, um
trabalho criativo que envolve sofrimento, na medida em que a criança tem de
renunciar a um objeto desejado e de alguma forma recriá-lo dentro de si. Klein
traz, então, uma idéia muito semelhante àquela formulada por Winnicott ao
dizer que se a mãe for suficientemente boa a criança vai poder compensar suas
deficiências através da atividade mental.
Os dois autores localizam a possibilidade de surgimento do mental
(Winnicott) e da formação simbólica (Melanie Klein) no início da capacidade
do bebê de reconhecer ao mesmo tempo a falta de algo e a possibilidade interna
35
Novamente aqui a marca dos seis meses de vida como um momento especial na vida do bebê.
36
Segal, H., op. cit., p. 86.
37
Segal, N., op. cit., p. 88.
31
de lidar com essa falta. O encontro da falta com a nascente possibilidade de
transformá-la cria o eu.
JUNG E OS JUNGUIANOS
32
Em sua obra, Jung pouco falou sobre a origem e o desenvolvimento do
ego (para ele, centro da consciência) a partir do inconsciente. Apesar disso ele
está o tempo todo preocupado com a relação que se estabelece entre consciente e
inconsciente.
Falando sobre psicologia analítica e educação num congresso
internacional em Londres (1924), Jung disse que o inconsciente é a mãe da
consciência: esta surgiria a partir do inconsciente durante a infância, assim como
ocorreu nos primórdios da humanidade. Diz ele:
É importante notar que Jung aqui reafirma a idéia de que assim como a
evolução das espécies se repete no desenvolvimento embrionário do indivíduo,
também o desenvolvimento psíquico de uma criança a partir do inconsciente
segue os mesmos princípios.
38
JUNG, C. G., CW,VOL.17, par. 207.
33
Em outros momentos, Jung fala da consciência como ilhas emergindo
do mar:
39
JUNG,C.C., CW VOL 17, par. 102.
40
JUNG, C. G., CW vol17, par.326.
34
Vimos, no início deste trabalho que, para definir consciência, Jung fala
várias vezes em ego. É importante então entender o que ele quer dizer com esse
conceito e qual sua importância para a teoria junguiana.
35
ou uma vivência possam ser conscientes é necessário que eles de alguma forma
se relacionem com o ego.
EDWARD F. EDINGER
O novo mito, que Edinger acredita ser aquele que Jung de certa forma
encarnou, postularia, segundo esse autor, a idéia de que cada indivíduo tem uma
parte singular no processo de criação da humanidade como um todo e que a
36
soma da consciência criada ao longo da vida é depositada no tesouro coletivo da
psique arquetípica. Cada incremento de consciência aumentaria o tesouro
coletivo — esta seria a versão moderna e mais modesta da idéia de existência de
uma alma imortal. Edinger cita Jung falando sobre o psicoterapeuta:
Diz Edinger:
Edinger repete uma colocação que Jung fez em suas memórias, dizendo
que "a finalidade da vida humana é criar consciência".
Cita então trecho de uma carta de Jung em que este diz: “O homem é o espelho
que Deus sustenta diante d’Ele, ou o órgão sensorial com que apreende Seu
ser”.45 Esta seria a nova meta do esforço humano, seria o correspondente
moderno da antiga noção de labutar nas vinhas do senhor e a nova resposta para
a indagação sobre o sentido da vida.
NEUMANN
46
NEUMANN, E. (1995). Historia da Origem da Consciência , São Paulo, Cultrix, p. 33.
47
NEUMANN. E., op. cit., p. 14.
40
A evolução criativa da consciência é a realização peculiar do homem
ocidental. O sistema consciente ampliou cada vez mais suas fronteiras através da
assimilação de um número cada vez maior de conteúdos do inconsciente, num
processo contínuo que abarca milhares de anos. "O ego tem de absorver, em
cada período de seu desenvolvimento, parcelas essenciais do passado cultural
que lhe é transmitido pela educação a partir do cânone dos valores da sua
cultura.”48
Em todos os povos e religiões a criação aparece como a criação da luz: o
princípio do mundo é o advento da luz, sem a qual nenhum processo do mundo
pode ser visto. O surgimento da consciência manifestada como luz em contraste
com as trevas do inconsciente é o verdadeiro objeto da mitologia da criação.
O primeiro estágio de desenvolvimento da consciência seria o urobórico
— motivo universal da serpente enrolada em um círculo mordendo a própria
cauda — onde não haveria diferenciação, discriminação, a psique é ainda
idêntica e indistinta do mundo e o ego se encontra contido no inconsciente. A
existência na uroboros é a representação simbólica do estado inicial em que não
há diferenciação. Seria um estado pré-natal, existência no paraíso, perfeição
original. Não há nenhum tipo de consciência, este é um estágio anterior à
separação dos opostos.
Um dos símbolos dessa perfeição original é o círculo ou o ovo, o
rotundum, o redondo da alquimia. “São aspectos do autocontido, sem começo
49
nem fim”. Não há tempo, nem espaço, tudo isso só pode surgir com a luz.
“Embora sendo algo estático e eterno, imutável e portanto sem história, o
repouso absoluto é, ao mesmo tempo, o lugar de origem e a célula semente da
48
NEUMANN. E., op. cit., p. 15.
49
NEUMANN. E., op. cit., p. 27.
41
criatividade...É homem e mulher gerando e concebendo, devorando e dando a
luz, ativa e passiva,, em cima e embaixo, ao mesmo tempo.” 50
Ao nascer, o bebê está contido no que ele chama de estado uterino-
social, ainda não destacado da mãe, não diferenciado. Esse período seria
caracterizado por um domínio da relação primal com a mãe, moldado já pela
cultura, uma vez que ela e sua relação com esse bebê estão inseridas num
contexto sociocultural. Neumann diz que já nesse momento ao lado de uma
tendência de adaptação ao coletivo tem início o processo de automorfismo. É
um processo natural que ocorre no indivíduo como a necessidade de formar o
próprio ser a partir dos elementos particulares que o constituem.
O mundo é experimentado como todo-envolvente, o ego infantil emerge
“como uma ilha no oceano do inconsciente apenas ocasionalmente, voltando a
afundar, assim também o homem primevo experimenta o mundo”.51
Nesse estágio inicial não há diferenciação entre o homem e o mundo, o
indivíduo e o grupo, a consciência do ego e o inconsciente. O ego é germinal e a
consciência ainda não se desenvolveu, não há tensão entre ela e o inconsciente.
Paulatinamente essa ego-consciência vai se destacando e se relacionando com o
inconsciente de onde surgiu, num movimento alternado de fusão-separação pelo
qual pouco a pouco vai conseguindo crescente autonomia.
A união original do estado embrionário começa a se dissolver. A partir
de experiências tanto internas quanto externas o ego-consciência vai-se
destacando, o ego então nascente torna-se consciente das qualidades prazer-dor,
entra em contato com a ambivalência, tem uma vivência polarizada regida pelo
arquétipo da grande mãe entrando então na fase chamada de uroboros-
matriarcal. A consciência é ainda uma pequena ilha na vastidão do oceano
50
NEUMANN. E., op. cit., p. 28.
51
NEUMANN. E., op. cit., p. 31.
42
primal, uma consciência de ego ainda não desenvolvida, enredada pela natureza
e pelo mundo.
52
NEUMANN. E., op. cit., pp.208/209.
53
Algo semelhante à tendência à integração de Melanie Klein.
43
A psique , aqui, é construída através de uma série de reflexos;
responde a estímulos com reações inconscientes, mas sem
nenhum órgão central onde estímulo e reação sejam
representados. Somente à medida que se desenvolve a
centroversão, dando origem a sistemas de alcance e
graduação crescentes, forma-se a representação do mundo em
imagens e o órgão que o percebe, isto é, a consciência.54
54
NEUMANN. E., op. cit., p. 204.
55
NEUMANN. E., op. cit., p. 88.
44
Conforme vai-se desenvolvendo, o ego precisa encontrar seu espaço
próprio, há então uma luta com a Grande Mãe em seu aspecto terrível e
devorador do uroboros. Esse aspecto do uroboros é experimentado como a
tendência do inconsciente a destruir a consciência. O temor do ego em relação à
sua possível destruição leva à resistência e portanto a seu fortalecimento, esse é
um sintoma da centroversão que busca proteger o ego, favorecendo sua saída do
inconsciente que quer dominá-lo e preservando sua independência em relação ao
exterior e ao interior, sendo então cada vez mais representante da totalidade.
Há uma tensão crescente entre o ego-consciência que quer se
desenvolver e o inconsciente que o quer destruído.
56
NEUMANN. E., op. cit., p. 219.
45
dependência logo assume uma forma negativa. A independência da consciência
só vai alcançar seu momento crítico com o que Neumann chama de mito do
herói. O autor utiliza então a imagem do herói como uma metáfora para esse
processo de desenvolvimento da consciência do ego, dizendo que só então a
consciência alcança seu momento crítico.
Para vencer e tomar seu lugar no mundo o filho-herói-consciência
precisa se expor à força da mãe-dragão sem se deixar destruir. O incesto heróico
é a possibilidade vivida pelo ego de mergulhar na mãe-uroboros-inconsciente e
experimentar-se como algo duradouro, imortal e indissolúvel, utilizando para
isso funções características da consciência como a possibilidade de olhar e
reconhecer. O ego sai então dessa luta cada vez mais forte e discriminado.
O passo seguinte do desenvolvimento será a separação da unidade
consciente-inconsciente em dois sistemas. Esta é a tarefa primeira da
consciência — o fortalecimento do sistema do ego, que assim adquire
consciência de ser distinto e peculiar. O herói é, em sua luta com o dragão, o ego
determinado e discriminador que combate até alcançar a vitória — que seria a
sua diferenciação da totalidade inconsciente e formação como sistema
independente. Diz Neumann: “A tarefa primeira da consciência no tocante às
tendências subjugadoras do inconsciente consiste principalmente no
distanciamento, isolamento e defesa, isto é, no fortalecimento da firmeza do
ego.” 57
O autor descreve alguns processos através dos quais é feita a separação
entre consciente e inconsciente. Um deles é a fragmentação, processo mediante
o qual a consciência busca arrancar do inconsciente o material dos arquétipos a
fim de agregá-lo a seu próprio sistema.
57
NEUMANN. E., op. cit., p. 228.
46
A existência pura no inconsciente é pré-humana, pois o mundo só existe
na medida em que é objeto de cognição de um ego. Um mundo diferenciado é
fruto de uma consciência autodiferenciadora. Na medida em que a consciência
não pode entrar em contato direto com o inconsciente, ela vai se apropriando de
partes dele, experimentando-o de forma relativa. Neumann sugere uma analogia
entre esse processo e a digestão quando os alimentos são decompostos em seus
componentes básicos para ser digeridos.
Ao mesmo tempo acontece o que ele chama de processo de deflação do
inconsciente, quando é experimentada uma tendência a exaurir a emocionalidade
original em favor da razão. Há então a passagem do homem medular ao homem
cortical. Esse processo leva a uma repressão da reação instintiva favorecendo
uma atuação mais consciente. É papel da consciência colocar sua própria
atuação objetiva no lugar da reação instintiva, que, muitas vezes, não se adapta à
situação do indivíduo não mais primitivo. Essa vivência não deve ser confundida
com a racionalização. Não se trata de colocar a razão acima de tudo, mas sim de
“consolidar o sistema da consciência e represar o perigo da inundação e
invasão pelo lado inconsciente.” 58
Nesse momento ocorre o que Neumann chama de personalização
secundária de conteúdos originalmente transpessoais. “Em lugar de sermos
possuídos por um arquétipo, agora temos uma idéia, ou melhor ainda,
perseguimos uma idéia.”59 É a capacidade do homem de tomar os conteúdos
primários e transpessoais e reduzi-los a fatores pessoais. O homem começa por
experimentar o transpessoal fora de si mesmo e termina por introjetá-lo,
tornando-o conteúdo psíquico pessoal. Através de atos de introjeção e
assimilação a psique vai-se construindo e surge a "personalidade" e a esfera
psíquica pessoal pertencentes ao ego.
58
NEUMANN. E., op. cit., p. 240.
59
NEUMANN. E., op. cit., p. 241.
47
Essa progressiva assimilação de conteúdos inconscientes
constrói pouco a pouco, ao longo da história humana, a
personalidade, criando assim um sistema psíquico muito
amplo, que forma então a base de uma história psíquico-
espiritual interior da humanidade, que se torna, de forma
crescente, independente da história coletiva externa.60
60
NEUMANN. E., op. cit., p. 243.
48
importância na história do desenvolvimento psíquico quanto a relativização
dessa autonomia devido à constante tensão entre consciência e inconsciente". 61
A passagem do ser humano em seu desenvolvimento ontogenético pelas
fases arquetípicas do desenvolvimento da consciência ocorre de maneira
singular "... o grau de individualidade da experiência das fases arquetípicas
depende da personalidade, que tem uma de suas partes formada pelo
inconsciente pessoal". 62
A personalidade em desenvolvimento vai incorporando amplas áreas do
inconsciente. A capacidade de síntese do ego vai reconstruir a cada momento
uma nova totalidade a partir das partes decompostas. A atividade sintética, como
uma das funções elementares da consciência, pressupõe a faculdade de
objetivação . Diz Neumann :
MICHAEL FORDHAN
61
NEUMANN. E., op. cit., p. 247.
62
NEUMANN. E., op. cit., p. 250.
63
NEUMANN. E., op. cit., p. 256.
49
de facilitadores e continentes desse processo de maturação. Segundo esse autor,
o processo de individuação atua desde o início da vida.
O processo básico subjacente à individuação na infância, adolescência e
maturidade é o mesmo: uma progressão dos estados de identidade primária e
pensamento mágico em direção a uma separação desse estado levando à
maturação do ego e expressa por uma ampliação da consciência. Fordhan diz
que o objetivo do desenvolvimento da criança é alcançar maturidade e para isso
é necessário fortalecer o ego de maneira que este possa exercer controle sobre o
ambiente interno e o externo.
A criança é, portanto, um indivíduo singular desde o início de sua vida,
com uma vida inconsciente separada e diferente daquela da mãe. O bebê nasce
com um “aparato de objetos”, uma mente com a qual se adapta ao novo meio
ambiente. Diz ele: “Um feto inicia a vida a partir de uma unidade primária na
qual consciente e inconsciente não são diferenciados . Eu deduzo portanto que
o estado primário de uma criança é um ser integrado e o integrador é o self e
não o ego”.64 Segundo ele o conceito junguiano de ego pode ser expandido da
seguinte forma: “ego é a soma dos atos perceptuais e descargas motoras que
são ou podem vir a ser conscientes”. 65
O primeiro estado da criança é um ser integrado e o integrador é o self e
não o ego. O bebê é uma unidade, um self total, do qual emergem os arquétipos
e o ego. A mãe saudável se relaciona com o bebê como uma pessoa, ele é uma
unidade psicossomática diferente dela mesma, ela se relaciona com o self que
ele é e que ela empaticamente conhece.
Fordhan diz que não é possível saber exatamente quando aparece algum
tipo de consciência, pois ela se desenvolve a partir do trabalho do self e seus
deintegrados, os arquétipos e o ego. Ele define arquétipo como:
64
FORDHAN, M., (1989)The infant's reach, Psychological Perspectives ,p.64.
65
FORDHAN, M., (1969) , Children as Individuals, New York, G. P. Putnan's Sons, p. 93.
50
(...) predisposição para desenvolver idéias arcaicas,
sentimentos e fantasias que não são nem implantadas nem
introjetadas; podem ser influenciadas e refinadas pela
educação que, por outro lado, como em um sistema de
feedback, fornece imagens adequadas através das quais os
arquétipos do inconsciente podem encontrar expressão na
consciência.66
52
integração que possibilitam à criança a percepção do que é ela mesma e do que é
o mundo externo.
Nas primeiras semanas e meses de vida o self vai deintegrando: simples
descargas instintivas se dividem em opostos, o que permite à criança organizar
suas experiências em objetos bons e maus (esta é apenas uma aproximação útil
para a compreensão do que acontece com a criança). Cada objeto representa
uma parte do self e deve ser visto como objeto parcial; gradualmente, emergem
várias formas de lidar com esses objetos. Eles podem ser projetados, por
exemplo, no seio, que se torna então idealizado ou ameaçador, ou introjetados,
trazendo a sensação de si mesmo como bom ou mau. “Tudo isso implica que as
experiências de objetos parciais bons e maus se tornaram representações e
quando isso acontece um campo de consciência foi desenvolvido.”69 Todos esses
processos são inconscientes, baseados em estruturas arquetípicas que
deintegraram do self nos primeiros estágios de maturação. Não é possível ainda
falar em um ego e portanto em sujeito e objeto. É um estado intermediário, a
consciência apenas começa a se desenvolver.
Fordhan diz que por volta dos sete meses uma mudança radical acontece
— o reconhecimento da mãe como um objeto libidinal. É uma mudança como a
da loucura e desintegração para a sanidade e integração. A criança se torna aos
poucos capaz de lidar com objetos totais, o senso de realidade vai aumentando.
A criança é agora capaz de perceber que o objeto bom e o objeto mau, aquele
que satisfaz ou que frustra são o mesmo objeto.
Ele resume esse processo da seguinte forma:
55
existe um “interno”é o início do tornar-se consciente de algo que vem a ser mais
tarde a autoconsciência ou consciência do eu.
Fordhan fala em uma idade especial, por volta dos sete meses, em que
algo diferente acontece. Esses dois conceitos, ego e consciência, estão
imbricados na medida que só podemos falar de consciência a partir do lugar
daquele que é, isto é, a partir daquele que tem um ego, que portanto pode se
autodenominar.
Todos os autores falam em processo de desenvolvimento. A idéia é que
haja um fortalecimento do eu, que se torna cada vez mais abrangente. Esse
fortalecimento vai acontecer à medida que o ego-eu seja capaz de entrar em
relação com conteúdos tanto do mundo interno quanto do mundo externo e, de
alguma forma, abarcá-los.
O ego como centro da consciência é o responsável por fazer a ponte
entre o que é e o que não é — essa questão aparece na teoria de todos os autores
vistos. O ego-eu coloca-se em oposição a tudo o que é não ego, o sujeito em
oposição ao objeto. A partir dessa discriminação surge a possibilidade de olhar
para o que é não-ego, objeto, entrar em contato com ele, avaliá-lo e trazê-lo para
a consciência como um novo produto. Dessa forma a consciência vai se
expandindo cada vez mais —no processo que Jung chama de processo dialético.
É importante notar que um ego forte não é aquele rígido preso na
dicotomia, ou isto ou aquilo, tendo sempre de fazer escolhas e deixando algo de
fora. Um ego forte é sim aquele flexível o suficiente para lidar com a
ambivalência do mundo. Um ego rígido será incapaz de exercer sua tarefa
mediadora entre o sujeito e o objeto, seja ele qual for.
56
III
57
"De repente, a parte superior da grande massa cinzenta,
que há momentos jazia perfeitamente inerte, começa a ser
iluminada por pequenos pontos de luz que produzem pulsos
viajando em todas as direções. O cérebro está acordando e, com
ele, a mente desperta mais uma vez. É como se a Via Láctea
entrasse em uma dança cósmica. Rapidamente, a massa cinzenta
se transforma em uma roca de fiar mágica, milhões de pontos de
luz acendendo e apagando de forma precisa e harmônica,
gerando padrões e subpadrões plenos de significados que se
renovam constantemente."
C.S. Sherrington, "Man on His Nature", Cambridge
University Press, 1951
58
A mente humana parece ser a fronteira final da ciência. Há uma tentativa
de encontrar "a resposta", ou o que seria uma teoria unificada que se revelasse
válida para todos os campos do conhecimento científico. Essa resposta abarcaria
tanto a idéia do segredo da vida quanto a solução para o enigma do universo.
Gerald M.Edelmam, prêmio Nobel de Medicina em 1972, diz que a mente
é um tipo especial de processo que depende de arranjos especiais da matéria. Em
71
seu livro Bright Air, Brilliant Fire on the Matter of the Mind ele pretende
mostrar que a matéria física que sustenta a mente é comum — especial é a forma
como ela se organiza. A condição mínima para a existência do mental, segundo
ele, é um tipo específico de morfologia.
Francis Crick, que recebeu o Nobel de bioquímica em 1962 junto com
James D. Watson pela descoberta da estrutura molecular do DNA, escreveu
também um livro no qual propôs uma hipótese surpreendente — nossos
sofrimentos e alegrias, memórias e ambições, o senso de identidade individual e
livre arbítrio nada mais são do que o comportamento de uma vasta assembléia
de células nervosas e suas moléculas associadas.
Steven Pinker, professor de Psicologia e diretor do Centro para Ciência
Cognitiva no Instituto de Tecnologia de Massachussets (MIT), publicou em
1997 um livro chamado How the Mind Works. Nesse livro ele tenta desvendar o
funcionamento mental a partir da teoria darwiniana da seleção natural e da teoria
computacional da mente. Ele inicia seu livro citando o lingüista Noam
Chomsky, que sugeriu que nossa ignorância pode ser dividida em problemas e
mistérios: quando encaramos um problema, podemos não saber sua solução, mas
temos insights, no entanto, quando encaramos um mistério ficamos
maravilhados e não temos idéia de qual pode ser sua explicação. Pinker acredita
que alguns mistérios da mente, de imagens mentais a amor romântico, foram
71
Edelman. G.M. (1992). Bright Air, Brilliant Fire, on the Matter of the Mind. New York, Basic Books.
59
recentemente transformados em problemas e através dessa ótica ele se propõe a
abordar o tema do funcionamento mental.
O volume 8 da Revista de Psicologia da USP, de 1997, é também
dedicado a esse tema.Descartando uma visão dualista, os autores procuram
elaborar idéias acerca desse fenômeno utilizando aproximações filosóficas e
biológicas numa tentativa de clarificar a questão através de um conhecimento
cada vez mais ampliado.
72
Campos, A.; Santos, A. M. G.; Xavier, G. F. (1997). A consciência como fruto da evolução e do
funcionamento do sistema nervoso in Psicologia USP, 8, n º 2, p. 181.
73
Del Nero, H.S.; (1997) .O Sítio da Mente.São Paulo, Collegium Cognition
60
74
psiquiatra americana, publica "A Cura pela Fala" em agosto de 1998. Sua
proposta é aproximar o trabalho psicanalítico dos conhecimentos acerca do
funcionamento cerebral.
Por que as pessoas ficam tão incomodadas com essas colocações? O que
há de tão ameaçador nesses questionamentos? Parece haver medo de que essas
idéias levem a um reducionismo biológico e que não haja mais espaço para o
mistério, o sagrado, a individualidade. Se o cérebro dá origem a tudo o que pode
ser chamado de mental e é um órgão físico, conhecido, comum a toda
humanidade — então não há mistério algum. Nada poderá nos diferenciar dos
outros seres humanos. Afinal, qual é a nossa especificidade?
Onde estará a alma imortal que perdura após a morte? Onde permanece
o sopro divino que nos humanizou e ao mesmo tempo nos tornou iguais ao
criador? A alma individual seria o correlato desse lugar do mental — uma alma
imortal criada por Deus e soprada dentro de nosso corpo tornando-nos únicos e
diferentes de todo o resto da humanidade. Alma que nos garantiria tanto a
imortalidade quanto a permanência.
Na verdade, o que nos move é o desejo de ser únicos, inigualáveis e
acima de tudo imortais. Tememos que com a inserção da mente no cérebro, fato
na verdade tão óbvio, sejamos todos igualados no nível biológico, não sendo
possível a existência de algo que nos identifique, que nos torne especiais. Mas,
ao mesmo tempo, isso não é claro para nós. Discutimos o tempo todo a questão
da dicotomia mente-corpo, no entanto cometemos o equívoco de falar de uma
mente não-incorporada, de uma mente que existe apesar do corpo e além dele.
Como é isso?
74
Vaughan, S., (1998). A Cura pela Fala. Rio de janeiro, Ed. Objetiva.
61
ANTONIO DAMÁSIO E O ERRO DE DESCARTES
79
Damásio, A., op. cit., p. 18.
80
Damásio, A., op. cit, p. 54.
64
Numa primeira aproximação, a função global do cérebro é
estar bem informado sobre o que se passa no resto do corpo;
sobre o que se passa em si próprio e sobre o meio ambiente
que rodeia o organismo, de modo que se obtenha
acomodações de sobrevivência adequadas entre o organismo
e o ambiente.81
82
Damásio, A., op. cit.,p. 124.
83
Damásio, A., op. cit.,p. 129.
66
estabelecer a estrutura dos sistemas e circuitos importante nos setores
evolutivamente mais antigos do cérebro humano, por exemplo aqueles que
regulam mecanismos homeostáticos. O arranjo preciso nos setores cerebrais
evolutivamente modernos se estabelece "sob a influência de circunstâncias
ambientais que são complementadas e restringidas pela influência dos circuitos
estabelecidos de forma inata e precisa relacionados com a regulação
biológica.” 84 A mente é incorporada, isto é, desenvolvida passo a passo através
do trabalho da estrutura genética com a inserção social deste ser humano
corporal.
84
Damásio, A., op. cit.,p. 138.
85
Damásio, A., op. cit.,p. 155.
67
A base neural para o eu consiste na reativação contínua de imagens atualizadas
sobre nossa identidade e representações primordiais do próprio corpo. O estado
do eu é construído a partir da base a cada momento.
86
Damásio, A., op. cit.,p. 271.
87
CAMPOS, A.; SANTOS, A. M. G.; XAVIER, G.F., op. cit., p. 184.
68
aumenta e a imprevisibilidade torna-se um problema, um mecanismo diferente,
mais flexível, deve ser selecionado. Esse sistema deve permitir ao organismo
obter o máximo de informações sobre o ambiente, possibilitando a solução de
seus problemas no momento em que surgem, de forma não-antecipatória ou de
forma antecipatória quando um padrão regular for identificado. Ele tem de ser
altamente adaptativo, pois o organismo pode ter de lidar com circunstâncias
totalmente inesperadas. Esses sistemas são fruto de um processo histórico lento
e gradual, que ocorre passo a passo, na evolução das espécies.
Para que esses processos pudessem ocorrer foi importante que uma
grande quantidade de informações fosse armazenada. Essas informações,
armazenadas no sistema nervoso do indivíduo sob a forma de modificações nas
conexões entre seus elementos constituintes (as células nervosas), promovidas
pela história de interação do indivíduo com o meio ambiente, envolvem um
processo de contínua categorização da informação de modo a identificar um
estímulo ou ação e, com base nessa identificação, controlar o comportamento.
A evolução do sistema nervoso poderia ser vista como uma "árvore com
diversos ramos" cada ramo transformando-se de forma independente dos
69
outros.88 Mudanças relacionadas com crescimento encefálico, inserção da
musculatura da mandíbula no crânio, espaço supralaríngeo e postura ereta, com
liberação das mãos, parecem ter sido decisivas para as características
consideradas tipicamente humanas. 89
88
Analogia interessante com a fala de Jung na Introdução a Símbolos de Transformação, quando ele diz que
somos apenas o florescer de um rizoma perene.
89
Lacan falou já em 1936 sobre a encefalização que teria favorecido a diferenciação do homem de outros
animais semelhantes.
90
73
com a biologia do desenvolvimento e a questão da origem da vida antes de ser
atraído para o estudo do fenômeno da consciência.
Esse autor afirma que a consciência deixou de ser um mistério para se
tornar um problema. Junto com um jovem colaborador, Christof Koch, Crick diz
que a única maneira de se começar um estudo científico da consciência ou
qualquer outro fenômeno mental seria através do estudo do cérebro, sua
estrutura e funcionamento. Segundo ele, os neurônios devem ser a base para
qualquer modelo da mente. Em 1994, ele publicou o livro em que expôs sua
teoria acerca do funcionamento mental.
Considerado um implacável reducionista, ele diz que, apesar de não ter
ainda uma solução para o problema do mistério da consciência, é possível
abordar essa questão de forma científica.
A mensagem do livro é que agora é a hora de pensar
cientificamente sobre a consciência e seu relacionamento, se
é que há algum, com a hipotética alma imortal e, o mais
importante, é tempo de iniciar o estudo experimental da
consciência de uma forma séria e deliberada. 93
93
CRICK, F., (1995); The Astonishing Hypothesis, New York, Touchstone, p.xii.
74
nervosas e suas moléculas associadas.”94 Chama de surpreendente essa
hipótese, porque a maioria das pessoas não percebe o problema desta forma.
O autor acredita que as pessoas relutam em aceitar essa idéia porque ela
acaba sendo colocada na categoria de uma "abordagem reducionista", isto é, a
explicação de um sistema complexo pelo comportamento e inter-relação de suas
partes. Ele argumenta dizendo que reducionismo não é a interpretação de um
conjunto de idéias em termos de outro conjunto de idéias num nível inferior,
mas sim o principal método teórico que levou a descobertas espetaculares nas
ciências modernas. "É a única forma sensata de proceder até que, e a não ser
que, sejamos confrontados com evidências experimentais que demandem uma
mudança de atitude.” 95
Crick diz que para compreender o funcionamento do cérebro é
importante perceber que ele é o produto final de um longo processo de evolução;
os genes que recebemos de nossos pais foram influenciados, através de milhares
de anos, pela experiência de nossos ancestrais. O cérebro não é uma tabula rasa
no momento do nascimento mas uma estrutura elaborada — a experiência vai
“afinar” esse aparato até que ele possa fazer um trabalho de precisão. O
funcionamento do cérebro é portanto produto da natureza e da cultura.
No entanto, Crick acredita que é importante pensar em termos de
neurônios, uma vez que a linguagem do cérebro é baseada neles. É preciso
pensar tanto em seus componentes internos quanto nas formas intrincadas e
inesperadas em que eles atuam juntos, em paralelo. É desse funcionamento que
surge a consciência. Um neurônio sozinho não é nada, a relação intrincada entre
vários deles é que pode produzir coisas maravilhosas.
94
CRICK, F.; op. cit., p. 3.
95
CRICK, F.; op. cit., p. 8/9.
75
"O cérebro é tão complicado, e cada cérebro é tão individual,
que não seremos nunca capazes de obter um conhecimento
detalhado de como um cérebro particular funciona. Podemos,
ao menos, esperar compreender os princípios gerais de como
surgem no cérebro a partir da interação de suas inúmeras
partes, sensações e comportamentos complexos. 96
96
CRICK, F.; op. cit., p. 11/12.
76
compreendido, os aspectos mais fascinantes da "alma" serão muito mais
facilmente estudados". 97
Depois de descrever minuciosamente os circuitos nervosos que
constituem o mecanismo da visão, Crick tenta discutir o que é que faz com que
uma pessoa identifique o que vê, como é que, por exemplo, alguém pode
reconhecer o rosto de um amigo na multidão. Diz:
97
CRICK, F.; op. cit., p.259.
98
CRICK, F.; op. cit., p.208.
77
por um período muito longo)”.99 É a chamada teoria da oscilação neuronal. "Se
imaginarmos o cérebro como uma imensa multidão sussurrante de neurônios,
os neurônios oscilantes são como um grupo de pessoas que de repente começa
100
a cantar a mesma música” O fenômeno da percepção consciente seria
análogo a essa “integração" quando então percebemos um determinado fato,
temos consciência de algo.
Alguns acreditam que compreender a natureza é como retirar dela todo o
senso de mistério e portanto o fascínio natural que sentimos quando algo que
conhecemos muito pouco nos impressiona profundamente. Crick acredita que o
conhecimento científico que temos conquistado não deveria diminuir nossa
sensação de fascínio, mas ao contrário aumentá-la muito. Ficaremos ainda mais
fascinados quando percebermos as maravilhosas complexidades de nosso
cérebro, complexidades que, segundo esse autor, hoje só conseguimos
vislumbrar. "Dizer que nosso comportamento é baseado em uma vasta
assembléia de neurônios não deve diminuir nossa visão de nós mesmos mas
alargá-la tremendamente.” 101
99
CRICK, F.; op. cit., p.210.
100
HORGAN, J.;(1998), O Fim da Ciência, São Paulo, Companhia das Letras, p. 203.
101
CRICK, F.; op. cit., p. 260.
78
GERALD EDELMAN E A TNGS
79
pressões ambientais selecionam os organismos mais aptos da espécie, as
informações que entram no cérebro selecionam grupos de neurônios, reforçando
as conexões entre eles.
Para Edelman sempre nos perguntamos a respeito do que é ter uma
mente, ser consciente, mas só agora começamos a acumular conhecimento
científico a respeito do cérebro para tentar responder a essas questões.
Apresenta sua teoria em quatro livros, o último deles publicado em 1992 tem
como nome “Bright Air, Brilliant Fire — On the matter of the mind”. Nesse
livro faz um apanhado de suas propostas.
Edelman afirma que quando Galileu apontou para a necessidade da
objetividade do observador retirou a mente do âmbito da natureza. Einstein, por
sua vez, com a teoria da relatividade, discutiu o próprio significado da palavra
matéria. No entanto, mesmo sabendo que em velocidades próximas da
velocidade da luz ou em distâncias muito pequenas o observador está inserido
em suas medições, o objetivo da Física permanece o de Galileu, isto é, descrever
leis que são invariáveis. A mente continua fora da natureza.
Serão os observadores também “coisas” como o resto dos objetos em seu
mundo? Como lidamos com a curiosa habilidade dos observadores em dividir o
mundo em categorias de coisas, em se referir às coisas enquanto elas não podem
se auto-referir? O dualismo persiste de várias formas até o presente.
80
fazer isso devemos olhar o cérebro e o sistema nervoso e os
102
problemas estruturais e funcionais que ele apresenta.”
102
EDELMAN. G., op. cit., p. 15.
81
recebem informações (inputs) de outras partes do cérebro e fornecem outputs a
outras partes do cérebro sem a intervenção do mundo externo, isto é, o cérebro
está mais em contato consigo mesmo do que com qualquer outra coisa.
82
surgiu durante a história evolucionária e como o comportamento alterou a
seleção natural. Genes não atuam diretamente, mas em combinações complexas
para alterar a forma, a forma altera o comportamento e mudanças bruscas de
forma levam a extraordinárias mudanças de comportamento.
O sistema nervoso e o cérebro surgem a partir de situações dinâmicas,
sua estruturação depende de sinais, genes, proteínas, movimento de células,
divisão e morte, tudo isso interagindo em vários níveis. Eventos ocorrendo em
um lugar requerem que eventos prévios ocorram em outros lugares, mas isso é
também dinâmico, plástico ou variável no nível de suas unidades fundamentais,
as células. Mesmo em gêmeos idênticos o mesmo padrão de células nervosas
não é encontrado no mesmo tempo e lugar. Esses processos aleatórios obrigam
os cérebros humanos a ser individuais.
Os genes regulam a anatomia intrincada do cérebro através de interações
epigenéticas, isto é, eventos particulares devem ocorrer antes que outros
aconteçam. A migração de células e a morte delas é estocástica (onde entra a
teoria matemática das probabilidades) — elas têm conseqüências imprevisíveis
no nível das células individuais.
Os três princípios da TNGS, proposta por Edelman, têm a ver com: 1-
como a anatomia cerebral surgiu durante o desenvolvimento; 2- como padrões
de resposta foram selecionados a partir desta anatomia durante a experiência e 3-
como a reentrada, um processo de sinalização entre os mapas resultantes do
cérebro, dá origem a funções comportamentais importantes.
De acordo com o primeiro princípio — desenvolvimento através de
seleção — os processos primários dinâmicos de desenvolvimento levaram à
formação das características neuroanatômicas de uma dada espécie. Esta
anatomia possui, obrigatoriamente, uma enorme variação nos seus níveis e
ramificações mais sutis.Todo o processo é seletivo, envolvendo populações de
83
neurônios engajados em uma competição topobiológica; a população de um
variado grupo de neurônios em uma determinada região cerebral
compreendendo redes neurais surgidas a partir de processos de seleção somática
é conhecida como repertório primário. Os códigos genéticos não fornecem um
diagrama para esse repertório mas impõem um tipo de restrição ao processo de
seleção. Mesmo com essas restrições, indivíduos geneticamente idênticos não
têm a mesma circuitaria, a seleção é epigenética.
De acordo com o segundo princípio, durante o comportamento conexões
sinápticas na anatomia são reforçadas ou enfraquecidas seletivamente por
processos bioquímicos, o que não altera o padrão anatômico. Esse mecanismo
que fundamenta a memória e outras funções efetivamente grava uma variedade
de circuitos funcionais (com sinapses reforçadas) da rede neural anatômica por
seleção; essa variação de circuitos funcionais é chamada de repertório
secundário. Em alguns aspectos os mecanismos que levam à formação de
repertórios primários e secundários estão misturados; isso acontece porque em
alguns lugares e momentos a formação do repertório primário depende da
modificação de forças sinápticas; mesmo em um cérebro desenvolvido pode
ocorrer “germinação”, na qual novos processos neurais formas sinapses
adicionais.
84
selecionados em um mapa, outros grupos em diferentes mapas podem ser
selecionados ao mesmo tempo; a correlação e a coordenação de tais eventos
selecionados são conseguidas por “sinalização reentrante” e pelo fortalecimento
de interconexões entre os mapas dentro de um segmento de tempo.
Uma vez que categorias perceptivas não são imutáveis e podem ser
alteradas pelo comportamento do animal, a memória resulta então de um
processo de contínua recategorização; é um processo que envolve atividade
motora contínua e ensaios repetidos em diferentes contextos. “Alterações nas
forças sinápticas de grupos em um mapa global fornecem as bases bioquímicas
da memória”.104 Diferentemente do computador, a memória cerebral é inexata,
mas é também capaz de um alto grau de generalização. Indivíduos diferentes
têm memórias diferentes e as utilizam de formas diferentes.
A incorporação de amplas capacidades de categorização requer outro
desenvolvimento evolucionário em adição à memória como recategorização. A
essa função Edelman dá o nome de habilidade para ter conceitos. A palavra
"conceito" é geralmente usada em conexão com a linguagem e em contextos nos
quais se pode falar de verdadeiro ou falso. É no entanto também uma capacidade
anterior à aquisição de linguagem; um animal capaz de ter conceitos identifica
uma coisa ou uma ação e na base dessa identificação controla seu
comportamento. Esse reconhecimento deve ser relacional, isto é, deve ser capaz
de conectar uma categorização perceptual com outra aparentemente não
relacionada. Deve ser capaz de ativar ou reconstruir partes de atividades
passadas de mapas globais de tipos diferentes, deve ser capaz também de
recombiná-los ou compará-los.
Edelman acredita que a discussão sobre a memória enquanto
recategorização e de conceitos como produtos do cérebro categorizando suas
próprias atividades nos fornece os elementos necessários para alcançar uma
abordagem biológica da consciência.
A análise da consciência, na biologia, é um pouco como a análise dos
104
EDELMAN. G., op. cit., p. 102.
87
primeiros eventos cosmológicos: bem no início certas manipulações e
observações não são possíveis. Segundo o autor há três pressupostos
fundamentais para sua teoria de consciência: o primeiro é o pressuposto físico,
segundo o qual as leis da física não devem ser violadas. Diz ele que a descrição
do mundo pela física moderna é adequada, mas não fornece uma base completa
para a teoria da consciência. O segundo é o pressuposto biológico, pelo qual a
consciência surgiu como uma propriedade fenotípica em algum ponto da
evolução da espécie — antes disso ela não existia; isto implica que a consciência
é eficaz — isto é, não é um epifenômeno. Qualia, o terceiro pressuposto,
constitui a coleção de experiências pessoais ou subjetivas e sensações que
acompanham a consciência, são estados fenomenológicos — "como as coisas se
parecem para nós" como seres humanos. O vermelho de um objeto vermelho,
por exemplo, é um qualia. São partes discrimináveis de uma cena mental que no
entanto tem uma unidade total.
Um indivíduo pode reportar sua experiência a outro, mas esse relato será
sempre parcial, impreciso e relativo a seu próprio contexto pessoal. Indivíduos
podem ter suas próprias teorias sobre a totalidade de suas experiências
conscientes individuais, no entanto estas não serão nunca teorias científicas. Há
então um paradoxo — para fazer física utilizo minha vida consciente,
percepções e qualia, mas em minha comunicação inter-subjetiva eu os deixo fora
de minha descrição. Diz Edelman: “Como base para uma teoria da consciência
é sensato assumir que , assim como em nós mesmos, qualia existe em outros
seres humanos conscientes, sejam eles considerados como sujeitos ou
observadores científicos”.105
O autor faz uma distinção entre o que chama de consciência primária e
secundária (high-order).
105
EDELMAN. G., op. cit., p. 115.
88
Consciência secundária está baseada na ocorrência da
percepção direta em um ser humano que possui uma
linguagem e uma vida subjetiva comunicável. Consciência
primária deve ser composta de experiências fenomenológicas
como imagens mentais, mas está ligada a um tempo perto do
presente mensurável, não tem conceito de self, passado ou
futuro e está além do relato descritivo direto do ponto de vista
individual.106
107
EDELMAN. G., op. cit., p. 125.
108
EDELMAN. G., op. cit., p. 131.
109
EDELMAN. G., op. cit., p. 149.
90
A dupla exposição de uma pessoa – a alterações do mundo
real afetando os objetos e a alterações históricas individuais
em sua memória como um sujeito – tem conseqüências
importantes. O fluxo de categorização em um sistema seletivo
levando à memória e consciência altera as relações comuns
de causação descritas pela física. Uma pessoa, como uma
coisa, existe num (world line) mundo em quatro dimensões.
Mas porque os seres humanos individuais têm
intencionalidade, memória e consciência, podem experimentar
padrões em um ponto dessa linha e baseados em suas
histórias pessoais submetê-los a planos em outros pontos
dessa ”world line”. Podem então executar estes planos,
alterando as relações causais dos objetos de uma forma
definida de acordo com a estrutura de suas memórias.110
110
EDELMAN. G., op. cit., p. 169.
91
mesmo tempo produto individual, cruzamento entre evolução e cultura. (A flor e
o rizoma perene.)
112
PINKER, S.; op. cit., p. 4.
93
Um sistema inteligente, então, não pode ser ocupado por
trilhões de dados. Deve ser equipado com uma pequena lista
de verdades centrais e um grupo de regras para deduzir suas
implicações. Mas as regras do senso comum, assim como as
categorias do senso comum são muito difíceis de
estabelecer(...) Uma vida inteligente tem de deduzir as
implicações do que sabe, mas apenas as implicações
relevantes.113
A mente não é o cérebro, mas o que o cérebro faz. A mente humana tem
uma estrutura heterogênea feita de várias partes especializadas, foi construída
assim porque tinha de solucionar problemas diferentes. Nosso programa
genético fornece o design básico de nossos órgãos. O conteúdo da atividade
cerebral está nos padrões de conexão e de atividade entre os neurônios.
Diferenças mínimas nos padrões de conexão originam padrões de resposta
diferentes. No entanto, diz ele: “Ao contrário da crença de que as culturas
podem variar arbitrariamente e sem limite, pesquisas em literatura etnográfica
mostram que as pessoas compartilham uma surpreendentemente detalhada
psicologia universal.” 116
O comportamento em si não se desenvolve, o que se desenvolve é a
mente. Ela foi desenhada para gerar comportamentos que seriam adaptativos em
nosso meio ambiente ancestral. No entanto, qualquer feito particular hoje é o
115
PINKER, S.; op. cit., pp.23-24.
116
PINKER, S.; op. cit., p. 32. Esta é de certa forma idéia junguiana de inconsciente coletivo...
95
efeito de inúmeras causas. Dizer que a mente é produto da seleção natural não
quer dizer que o comportamento também seja.
117
PINKER, S.; op. cit., p. 42.
118
PINKER, S.; op. cit., p. 34.
119
Esse termo foi traduzido por sensibilidade no livro de John R. Searle, O Mistério da Consciência. Preferi
utilizar a mesma tradução por se tratar de um termo comum ao tema.
96
que mais cedo ou mais tarde seremos capazes de compreender qual é a parte do
cérebro responsável pela consciência, no sentido de acesso à informação.
Como utiliza um modelo computacional para falar do fenômeno mental,
Pinker vai descrever a consciência em termos de acesso à informação. Diz que
qualquer processador de informação tem um custo, em termos de espaço (o
hardware para gravar a informação), tempo (quanto tempo o processador leva
para lidar com uma informação) e energia (o custo energético desse processo).
A consciência teria sido desenvolvida pela seleção natural de forma a poder lidar
com esses custos de forma adequada, isto é, de forma adaptativa.
Segundo Pinker a consciência teria quatro características fundamentais.
A primeira delas é que somos cientes, em vários graus, de um rico campo de
sensações, no entanto somos conscientes apenas de parte delas, o suficiente para
nos movimentarmos no mundo de forma adequada. A segunda característica é
que partes dessas informações podem cair fora do foco da atenção, são então
armazenadas na memória de curto prazo e alimentam nossa capacidade
deliberativa através de uma espécie de processamento inconsciente paralelo. A
terceira característica é o colorido emocional da experiência, não apenas
registramos experiências mas as registramos como penosas ou prazerosas, o que
nos leva a no futuro repetir umas e evitar as outras. A quarta característica seria
o controle de um processador executivo, algo que experimentamos como o self,
a vontade, o eu.
Pinker acredita que sensibilidade e acesso à informação são dois lados de
uma mesma moeda. Nossa experiência subjetiva é também ligada ao raciocínio,
à fala e à ação. Diz que pode ocorrer sensibilidade sem "acesso", quando por
exemplo de repente, durante uma conversa, percebo que estava ouvindo um
pica-pau lá fora. “O que precisamos é uma teoria de como qualidades
120
subjetivas de sensibilidade emergem de mera informação”. Ele diz que não
120
PINKER, S.; op. cit., p. 145.
97
tem a mínima idéia de como seria essa teoria. Não há ainda uma explicação
científica, o que não quer dizer que sensibilidade não exista, mas apenas que
não descobrimos ainda o ingrediente extra que deu origem à ela.
Pinker segue discorrendo sobre várias atividades mentais a partir do
ponto de vista da seleção natural e da teoria computacional da mente. Segundo
ele, todos os comportamentos humanos, como por exemplo, ética, religiosidade,
amor filial, podem ser compreendidos à luz dessa teoria. Termina o livro
dizendo:
121
PINKER, S.; op. cit., p. 564.
98
DEL NERO E O SÍTIO DA MENTE
122
DEL NERO, H. S. , op. cit., p. 12.
99
maior do que em qualquer outro animal. O cérebro humano é formado
basicamente por dois conjuntos de células: um manipula e processa informação
e o outro serve de suporte. Resumindo, Del Nero diz que há três grandes funções
cerebrais básicas responsáveis pelas áreas sensoriais, motoras e integradoras.
Quanto mais simples o sistema nervoso, menor a área de integração; quanto
mais complexo, maior essa área. Diz o psiquiatra: “A mente surge graças
fundamentalmente a três processos evolutivos: complexidade, variação e
necessidade.” 123
Ao lidar com um sistema complexo, um neurônio a mais no processo de
encefalização pode propiciar num certo instante um salto qualitativo. O
acréscimo de células é capaz de gerar saltos no comportamento do sistema. “O
sistema nervoso humano tem dez bilhões de unidades processadoras
(neurônios) conversando por meio de alguns trilhões de conexões (sinapses).
Quanto mais neurônios a natureza foi colocando nos seres vivos, tanto mais
complexidade foi se obtendo.” 124
Del Nero faz uma descrição do funcionamento básico dos neurônios
enfatizando o papel da conexão entre eles. Para fazer a ligação entre o axônio
de um neurônio e o dendrito de outro é necessário um mensageiro químico, o
neurotransmissor. “O processo de passagem pela sinapse envolve a
transformação de informação sob a forma de corrente (potencial de ação) em
informação sob a forma de mensageiro químico (neurotransmissor). A
fidelidade da transmissão depende da ligação do neurotransmissor com os
125
receptores do neurônio seguinte.” Diz que o aprendizado se dá a partir da
modificação dos receptores possibilitando o reforço de algumas conexões entre
neurônios.
123
DEL NERO, H. S. , op. cit., p. 31.
124
DEL NERO, H. S. , op. cit., p. 32.
125
DEL NERO, H. S. , op. cit., p. 57.
100
O autor afirma que a mente é gerada através do processamento de
informação complexa a partir da manipulação de impulsos elétricos traduzindo o
discurso sobre coisas e pessoas. Acredita que sinais elétricos e símbolos mentais
não passam de duas faces da mesma moeda. Faz uma analogia entre o
funcionamento mental e o de uma empresa. Para tanto, chama a mente de
departamento virtual. Ante uma nova questão são reunidos membros de dois ou
mais departamentos concretos. Problemas novos requerem soluções novas, não
existem especialistas, a cada nova questão são reunidas pessoas de vários
comitês para conversar a respeito. Não há sentido em criar um novo
departamento a cada novo problema .126 (a mente) (...) Não está em
departamento concreto algum. Surge da dinâmica de recrutamento de
127
funcionários de departamentos concretos em comitês mais ou menos fixos.”
Num nível inferior há sempre departamentos concretos responsáveis por
determinadas atividades, ou seja, neurônios formam módulos concretos mais ou
menos especializados em certas funções.
Del Nero diz que após um processamento inicial em departamentos mais
específicos, qualquer questão será resolvida em departamentos virtuais. Apenas
as seqüências iniciais de um processo de percepção seguem caminhos mais
específicos. Quanto mais próximo da consciência, mais se embaralham as
unidades processadoras recrutadas em comitê:
126
Parece ser a mesma idéia utilizada por Edelmam de mecanismo de reentrada entre mapas diferentes.
127
DEL NERO, H. S. , op. cit., p. 66.
101
divisórias bem marcadas e iguais para todos, já que
esses fatos mentais são fruto da reunião de unidades
vindas de diferentes departamentos complexos. 128
128
DEL NERO, H. S., op. cit., p. 75.
129
DEL NERO, H. S., op. cit., p. 78.
130
DEL NERO, H. S., op. cit., p. 104.
131
Del Nero está aqui sendo dualista, colocando a ‘mente’ como separada e produto emergente do cérebro.
102
Segundo o autor, todas as funções mentais são funções cerebrais, mas
nem todas as funções cerebrais são mentais. Quanto mais evoluído o animal,
maior a quantidade de funções cerebrais que são funções mentais. Quanto maior
o número de unidades processantes capazes de sintonizar, mais próximos
estaremos do surgimento da mente. “A mente humana deve ter surgido da
imensa capacidade de grupamentos de neurônios se sincronizarem em
diferentes partes do cérebro, unificando informação dispersa e setorial num
132
objeto complexo e de contexto rico.” Os processos mentais se caracterizam
pela recombinação sincronizada de módulos neuronais.
A consciência, diz ele, é produto do cérebro (conteúdo) e função
(forma). “Conhecer é estar consciente de algo, representando-o plenamente e
exercendo sobre ele poder de discriminação quanto aos desdobramentos
133
possíveis.” Produtos mentais podem ou não ser conscientes, mas funções
mentais, para ele, são por definição sempre conscientes. Processos puramente
não-conscientes são de ordem fisiológica.
Do ponto de vista evolutivo a mente é a capacidade de aprendizado e de
coexistência de programas pré-gravados com programas gravados
posteriormente. O acaso vai criando variações e a necessidade de se adaptar ao
meio ambiente vai selecionando as mais bem-sucedidas, é a capacidade de
processar informação pelo cérebro que se justapõe às habilidades previamente
gravadas. O papel do aprendizado e da cultura é interagir com esses programas
pré-gravados, o que proporciona a possibilidade de transformação.
A formação da consciência depende da experiência e de sua qualificação
e correção através da linguagem, se esta não for rica o suficiente para nos
comunicarmos também não será rica o bastante para incorporar conceitos. Del
Nero acredita que o processo mental consciente ultrapassa os limites do cérebro
132
DEL NERO, H. S. , op. cit., p. 111.
133
DEL NERO, H. S. , op. cit., p. 126.
103
individual e através da comunicação permite que a mente tenha departamentos
terceirizados na mente dos outros e nos objetos da cultura.
134
DEL NERO, H. S.; Caderno Mais, Folha de São Paulo 13/04/97.
135
DEL NERO, H. S. , op. cit., p. 137.
136
DEL NERO, H. S. , op. cit., p. 143.
104
Embora a sensação subjetiva de unidade, a despeito da
diversidade, possa ser uma propriedade de abstração do
sistema nervoso, a correta caracterização do indivíduo
como centro de decisão, pensamento, liberdade, vontade,
livre arbítrio e responsabilidade depende de construções
do mundo cultural, que, através da linguagem, se
incorporam à consciência.137
Diz ele que qualquer abordagem do cérebro deve sempre levar em conta
a harmonia entre pensamento, emoção e vontade, deve haver um equilíbrio entre
sistemas. A inteligência é, então, nesse ponto de vista uma maneira de
estabelecer relações sincrônicas entre módulos cerebrais, testando formas novas
e efetivas de abordagem. O que brota na consciência é apenas parcela do
processo racional uma vez que várias funções são executadas abaixo da
percepção consciente.
137
DEL NERO, H. S. , op. cit., p. 146.
138
DEL NERO, H. S. , op. cit., p. 231.
105
Del Nero afirma que psicoterapia é um processo de requalificação de
conceitos forjados durante a história de cada um. Esse trabalho funciona via
linguagem, fornecendo, pela pluralidade analógica, uma via de solução através
de sincronizações desconhecidas. Diz que a linguagem é um tipo de estrutura
que aparelhou o cérebro humano ao longo da evolução. Nasce “desligada” e só
entra em funcionamento graças ao estímulo ambiental.
140
DEL NERO, H. S. , op. cit., p. 397.
107
IV
108
acreditam que quanto mais sabemos acerca dele mais maravilhados deveríamos
ficar. Enquanto as pessoas normalmente associam o conhecimento científico ao
esvaziamento do mistério da vida, que nos é tão caro, eles acreditam que
justamente aí reside o maior mistério de todos. "Este novo conhecimento não
diminuiu nosso senso de mistério mas aumentou-o imensuravelmente” 141
Francis Crick com sua hipótese espantosa, Gerald Edelmam com sua
Teoria de Seleção de Grupo Neural (TNGS), Del Nero e os departamentos
virtuais, Steven Pinker e a teoria da seleção natural aplicada às funções mentais,
pensam e escrevem acerca do que seria, para cada um, o embasamento
neurofisiológico da consciência. Todos eles concordam que o mental e sua
função superior — a consciência — são fruto da evolução do ser humano. Todos
dizem que ainda não temos suficiente conhecimento científico a respeito, mas
que a questão da consciência está deixando de ser um mistério para se tornar um
problema.
O exagero dessa posição parece ser a idéia de que tudo pode ser reduzido
para o nível da comunicação entre neurônios. Não seríamos nada mais do que
conjuntos de sinapses nervosas, milhões de pontos de luz acendendo e apagando
ao mesmo tempo. Daí a grande crítica em relação a uma abordagem reducionista
que simplificaria todos os fenômenos mentais e que como conseqüência última
terminaria por inviabilizar nosso trabalho como analistas. Afinal, para que gastar
tempo e dinheiro com a análise dos conteúdos psíquicos se uma medicação
apropriada poderia dar conta de todas as questões. Del Nero, talvez por ser o
único psiquiatra entre os autores vistos, é especialmente enfático quando fala a
respeito. Diz que na maioria das vezes é preciso medicar e só após a recuperação
parcial iniciar algum tipo de psicoterapia. 142 Diz que se a sinapse é justamente
141
CRICK, F.; (1995), op. cit.; p. 260.
142
DEL NERO, H. S.; (1997); op.cit., p.208.
109
um dos locais de desregulagem no cérebro humano, importante seria agir sobre
ela através de algum tipo de medicação.
Outro importante ponto em comum entre os autores vistos é a ênfase no
papel da cultura, das inter-relações sociais e da história individual no
desenvolvimento do cérebro. O cérebro e o funcionamento mental, mais
especificamente, são produto da cultura na qual estão inseridos. Eles alertam
para o fato de que mesmo em gêmeos idênticos não se observa um idêntico
funcionamento cerebral. Cada um vai ter uma "circuitaria" mental específica e
individual. Apesar de a forma ser a mesma, a maneira como vão se estabelecer
as conexões é sempre individual. São as emoções, as vivências concretas, desde
a fecundação que vão determinar o caminho do desenvolvimento como um todo
e da mente em especial. Francis Crick diz que: "a estrutura geral do sistema
nervoso é determinada geneticamente mas é a experiência que vai sintonizar e
refinar os muitos detalhes de sua estrutura , é sempre um processo contínuo ao
longo da vida.." 143
144
JUNG, C. G. (1969). Psychological factors determining human behaviour. In: The Structure and Dynamics of
the Psyche. CW 8, New York: Princeton University Press, par. 232.
111
está tão afastada assim do modelo científico atual. Algumas das idéias de Jung
encontram sim um correlato neurofisiológico: não se trata de querer validar a
teoria junguiana utilizando modelos das neurociências mas de buscar algumas
aproximações entre ambos os campos.
A aura de misticismo que envolve Jung e seus seguidores impede ainda
hoje a propagação das idéias da psicologia analítica: Jung ainda é visto por
muitos como um profeta místico, cuja teoria está afastada das mais recentes
descobertas científicas. Acredito que já é tempo de começarmos a trabalhar no
sentido de ampliar a divulgação de suas idéias enfatizando aspectos outros que
não o místico e o religioso.
145
JUNG, C. G. (1969). A review of the complex theory. In: The Structure and Dynamics of the Psyche. CW8.
New York:Princeton University Press, par. 213.
112
observação desses motivos repetitivos percebeu que teriam a mesma estrutura de
conteúdos mitológicos que apareciam ao longo do tempo nos mitos, nas lendas e
histórias da humanidade. Chegou então à idéia de arquétipo. Começou a pensar
que a ocorrência desses motivos repetitivos não poderia ser explicada apenas
pela comunicação direta, uma vez que eles apareciam em lugares e povos muito
distintos. Propôs então que deveria haver algo inato, não aprendido, que fosse o
responsável pelo aparecimento desses motivos. Em Símbolos de Transformação
Jung expõe as idéias que vão ocasionar seu afastamento de Freud. Uma dessas
idéias é justamente o conceito de "imagens primordiais", forma pela qual
chamava inicialmente os arquétipos.
Diz Jung:
146
JUNG,C.G., (1969). Symbols of transformation. CW 5.New York: Princeton University Press, par.38.
113
Seria espantoso pensar na psique como o único fenômeno biológico a
não mostrar vestígios claros de sua história evolutiva. Seguindo essas idéias,
Jung vai chegar ao conceito de inconsciente coletivo — que seria básico e
comum a toda humanidade, repositório das experiências humanas e ao mesmo
tempo condição anterior a essa experiência, imagem do mundo que levou uma
eternidade para se formar. O inconsciente coletivo comum a toda humanidade , é
diferente do inconsciente pessoal, este sim mais próximo da noção de
inconsciente freudiano.
Para Jung, psique e matéria são aspectos diferentes da mesma coisa, os
arquétipos portanto teriam também dois pólos: o orgânico/biológico e o
psíquico. Utilizando a imagem da escala cromática, Jung diz que o dinamismo
instintivo (mais biológico) se situaria na parte infravermelha do espectro,
enquanto que as imagens instintivas estariam no extremo violeta, que é
composto pelo azul e pelo vermelho.
147
JUNG,C.G., (1969). On the Nature of the Psyche. In: The Structure and Dynamics of the Psyche. CW 8 New
York: Princeton University Press, par.38.
114
colocação do ponto de vista científico. Discutindo essa relação, Samuels (1989)
diz que em alguns momentos Jung fez conexões entre arquétipos e genes,
especialmente em relação aos arquétipos animus e anima, que ele julgou terem
origem genética. Fordhan mais tarde disse que os arquétipos deveriam estar
representados de alguma maneira nas células do embrião, seria essa a única
maneira de explicar a possibilidade de sua existência.
Anthony Stevens, trabalha com a relação entre arquétipos e
neurobiologia. Em seu livro Archetype — A Natural History of The Self ele
afirma:
148
STEVENS, A. ((1982). Archetype, a Natural History of the Self, London, Routledge & Kegan. p. 62.
115
Muito embora essas convenções e regras tenham de ser
transmitidas apenas por meio da educação e da
socialização, de geração em geração, suspeito que as
representações neurais da sabedoria que incorporam e
dos meios para implementar essa sabedoria se
encontram ligadas, de forma inextricável, à
representação neural dos processos biológicos inatos de
regulação. Vejo uma "trilha" ligando o cérebro que
representa uma ao cérebro que representa a outra.
Naturalmente que essa trilha é constituída por conexões
entre neurônios.149
151
FRANZ, M. L. V. (1997). C. G. Jung, Seu Mito em Nossa Época. São Paulo, Cultrix, p. 105.
117
Del Nero acredita que o cérebro humano vem com uma espécie de
programa pré-gravado "(...) do ponto de vista evolutivo, mente significa
capacidade de aprendizado e de coexistência de programas pré-gravados com
programas gravados posteriormente”152 Seria aquilo que chamamos de vivência
individual, que vai ao longo do tempo mobilizar e preencher ou colorir a
"forma" arquetípica, esta sim conteúdo do inconsciente coletivo.
Em Considerações Teóricas Sobre a Natureza do Psíquico, Jung discute
a questão do inconsciente dizendo que ele não seria apenas o desconhecido, mas
seria antes o psíquico desconhecido, um estado fluido no qual não se pode
demarcar com precisão o limite entre consciente e inconsciente. Existe uma
polaridade dinâmica entre a consciência por um lado e o inconsciente por outro,
que funcionam num sistema auto-regulador, de retro-alimentação, onde se
percebe a existência de um todo indivisível. No entanto, diz ele "só quando o
homem possui a capacidade de ser consciente é que se torna verdadeiramente
homem." 153
Del Nero154 diz que do ponto de vista neurológico produtos mentais
podem ou não ser conscientes. Conhecer é estar consciente de algo,
representando-o plenamente e exercendo sobre ele poder de discriminação
quanto aos desdobramentos possíveis. Diz ele:
152
DEL NERO, H. S. op cit., p. 132.
153
JUNG, C. G. On The Nature of the Psyche. In; op. cit .CW 8. par. 412.
154
DEL NERO, H. S. op cit., p. 126.
155
DEL NERO, H. S. op cit.,p. 246.
118
Jung acredita que a consciência seja imprescindível para a existência do
mundo, fundamental para uma relação dialética eu-mundo, para que algo possa
ser em algum lugar. Para tanto é preciso que exista uma instância egóica, centro
da consciência, responsável pelo auto-reconhecimento, auto-referência. Essa
instância é aquela cujos primórdios os vários teóricos sobre o desenvolvimento
situam ao redor dos 6 meses de vida.
Edelman traz a mesma idéia a partir do ponto de vista neurológico. Ele
diz que, fazendo uso apenas da consciência primária, aquela mais ligada ao
registro das sensações, o homem não "pode ver o mundo". Seres com
consciência primária podem até ter imagens mentais, mas não um "self" (sentido
de identidade) que as identifique, que dê sentido a elas. É como se ele estivesse
falando de um ser sem alma, sem singularidade, que portanto não é capaz de
identificar o outro, o não-eu. Diz ele:
156
EDELMAN, G.M. op. cit. , p. 125.
157
EDELMAN, G.M. op. cit. , p. 167.
119
Steven Pinker, em todo o seu livro, fala sobre um aparato mental
selecionado durante milhões de anos, se apresentando agora com a forma
definida que conhecemos. Diz que o desejo último do ser humano seria a
propagação da espécie, a continuidade da vida e que para isso cada um de
nossos comportamentos é adaptativo. Ele cita Darwin, que escreve: "A seleção
natural nunca vai produzir em um ser nenhuma estrutura mais maléfica do que
benéfica para aquele ser, porque seleção natural atua somente por e para o
bem de cada um”.158
Jung com seu conceito de individuação diz mais ou menos o mesmo:
158
PINKER, S. op. cit., p. 397.
159
JUNG, C. G. op. cit., CW 6, par. 758.
160
JUNG,C.G. Psychology and Religion in Psychology and Religion: West and East .op.cit. CW 11, par. 146.
120
desenvolvimento individual, contribuindo assim para o aprimoramento da
espécie. Del Nero afirma:
161
DEL Nero, H. S., op.cit., p. 21.
162
JUNG, C. G. op. cit., CW 5, p. xxiv.
121
talvez não seja surpresa que como indivíduos nós
queiramos explicações que a ciência não pode dar.
Talvez não seja surpresa que desejemos imortalidade (...)
o mistério está em imaginar como uma mente particular
surge em relação à sua própria história pessoal. Nós
estamos aprisionados.163
163
EDELMAN, G. op.cit., p. 139.
164
JUNG,C.G. The Concept of the Collective Unconscious. In: The Archetypes and the Collective
Unconscious.CW 9. op.cit. par. 90.
122
e nos objetos da cultura. Ele diz que:
Gerald Edelman diz algo muito semelhante quando aponta para o papel
do meio ambiente na estruturação do sistema nervoso de cada indivíduo e na
questão do sentido que damos a cada um dos ícones culturais que vão de alguma
forma contribuir para o desenvolvimento do que chamamos consciência. Diz
então: "Não podemos individualizar conceitos e crenças sem fazer referência ao
meio ambiente. O cérebro e o sistema nervoso não podem ser considerados de
166
forma isolada dos estados do mundo e das interações sociais...” Mais adiante
ele vai dizer que o significado que atribuímos a algo depende da inter-relação
com o meio ambiente "para ter nossos significados temos de crescer e nos
comunicar em uma sociedade”. 167
165
DEL NERO, H. S. op. cit. , p. 139.
166
EDELMAN, G. op.cit. ,p.224.
167
EDELMAN, G. op.cit. ,p.225.
123
inconsciente coletivo estamos talvez falando desses conteúdos (ou melhor,
possibilidade de representação) presentes na mente de todos os seres humanos,
mesmo de forma inconsciente. Não é que exista uma mente etérea flutuando em
torno de uma coletividade mas é possível que existam conteúdos comuns
pertencentes à humanidade como um todo e a cada sociedade em particular que
vão sendo experienciados de acordo com o sentido individual a eles atribuído.
124
modifica a estrutura do cérebro, alterando a rede de células neurológicas da
massa cinzenta do córtex cerebral.
Gerald Edelman, pensando de forma semelhante, fala da memória como
um processo de contínua recategorização. Diz que alterações na força sináptica
de grupos num mapa global fornecem as bases bioquímicas da memória. Abre
espaço então para a questão do tratamento psicanalítico (abarcando aqui de
maneira geral as terapias verbais) que poderia atuar justamente nesse processo
de recategorização. Edelman diz que "na verdade, nossa liberdade está em
nossa gramática”.168 Ele acredita que a TNGS descrita por ele pode
fundamentar a validade da terapia verbal, os males da mente podem ser vistos
como alterações nas trilhas reentrantes e na categorização. A terapia verbal pode
funcionar justamente aí, na possibilidade de ampliar a consciência modificando
essas categorizações.
Del Nero afirma:
125
alguma forma molda o registro de nossas vivências. Ele conteria representações
de nós mesmos e dos outros, construindo blocos com os quais montamos a
história de nossa vida. As conexões que ligariam esses blocos, as conexões
entre os neurônios que constituem o sintetizador, são fortalecidas, moldadas,
enfraquecidas ou destruídas ao longo do processo de psicanálise.
James Hillman em O Código do Ser propõe a teoria do fruto do
carvalho: segundo ele, todas as pessoas nascem com uma imagem que as define
e fazemos terapia para resgatar essa imagem muitas vezes perdida. "Todas as
pessoas em terapia , ou afetadas pela reflexão terapêutica... estão buscando
uma biografia adequada: como juntar as peças de minha vida para formar uma
imagem coerente? Como encontrar a trama básica de minha história?" 170
O propósito da psicoterapia é reexaminar e reformular as redes de
conexões estabelecidas desde o início da vida. Susan Vaughan acredita que
aquilo que chamamos de "elaboração" seria o reexame e a reformulação das
redes formadas desde as primeiras experiências humanas. Ela propõe a idéia de
que essa seria uma forma de "pentear" as redes neurais do paciente,
desembaraçando as partes que estão embaraçadas, proporcionando uma forma
mais organizada.
170
HILLMAN, J. (1997). O código do Ser. Rio de Janeiro. Ed.Objetiva. pp 14/15.
171
VAUGHAN,S. (1998). A cura pela fala. Rio de janeiro; Ed.Objtiva. p. 60.
126
A autora acredita que os temas gerais que o sintetizador de histórias
pode criar são limitados porque os seres humanos "costumam nutrir
preocupações centrais recorrentes", mas os elementos de cada história são
individuais. Novamente aqui encontra-se a idéia de arquétipo, ou programa pré-
gravado, de possibilidades estruturais que vão ser preenchidas individualmente.
Diz ela que a psicoterapia poderia modificar as conexões funcionais
entre os neurônios e mais tarde converter essas transformações em mudanças na
estrutura concreta do próprio córtex cerebral. O cérebro humano é plástico o
suficiente para poder ser transformado durante a vida; seu verdadeiro
treinamento exige atenção concentrada para reconhecer e desafiar as associações
que as experiências de vida levaram uma pessoa a construir. Depois de
reconhecidas as regras do funcionamento das redes em psicoterapia, o próximo
passo seria questionar os valores mais arraigados do caráter, questionando seus
modos de funcionamento.
Vaughan sugere que desde o início da vida somos instruídos a construir
protótipos, mapas internos globais dos fatos. A neurose é uma forma de
repetição de novas relações como se fossem antigas, baseadas nos protótipos. A
análise pode ser um processo de recontar a vida transformando-a a partir desses
protótipos, possibilitando a criação de novas relações.
Ela sugere que cada um tem histórias significativas de sua vida para
contar, "histórias são a moeda corrente em psicoterapia", a psicanálise retira sua
força analítica especificamente do ato de "recontar uma vida", o que nos permite
sintetizar uma narrativa mais coerente. Através da psicoterapia podemos
entender e valorizar a história de nossa vida através da mudança estrutural, que
seria descrita pelos biólogos como uma alteração nas conexões neuronais e pelos
analistas como modificação das estruturas da mente.
127
Cada ser humano é único e portanto está no mundo e o vê a partir de sua
própria equação pessoal. Jung diz que "A limitação inevitável que acompanha
qualquer observação psicológica é a de que ela, para ser válida, pressupõe a
172
equação pessoal do observador". Gerald Edelman diz quase o mesmo: "Um
indivíduo pode relatar sua experiência a um observador , mas este relato
sempre será parcial e relativo a seu próprio contexto pessoal". 173
CONCLUSÃO
172
JUNG, C. G., op. cit., CW 8, par.213.
173
EDELMAN, G., op.cit., p. 140.
128
"Se sabes o que estás fazendo és bem aventurado, mas se não o
sabes és maldito."
Trecho do Novo Testamento, apócrifo, citado por Jung 174
130
fenômenos individuais. A partir do geral ou universal talvez possamos encontrar
o individual, como pequenas ramificações que brotam do que seria a extensa
árvore humana.
Na verdade, o caminho que trilhamos é o da tentativa de unificação de
todos os campos do conhecimento científico. Estamos tentando na verdade
encontrar "A Resposta", aquela que poderia esclarecer tanto questões sobre o
segredo da vida quanto o enigma do universo, isto é, qual seria a origem das
origens.
Talvez as questões básicas continuem sendo as mesmas que a
humanidade vem fazendo há milhares de anos: quem sou eu? De onde eu vim ?
Para onde eu vou? Neste sentido podemos pensar na existência de uma grande
pergunta — "A Pergunta" —, que seria a questão última sobre a origem da
existência.
A ciência trata de questões que podem ser resolvidas, e tentando explorar
sua fronteira final, que parece ser a mente humana, começa a fazer perguntas
sobre a consciência, que está deixando de ser um mistério para se tornar um
problema. Não deixa de ser uma tentativa de colocar o problema de forma
correta. Seguindo os mestres antigos podemos dizer que o verdadeiro sábio não
é aquele que tem as respostas corretas, mas sim o que sabe fazer as verdadeiras
perguntas.
Será que também não é esse o nosso papel enquanto psicoterapeutas?
Elaborar perguntas adequadas que ajudem nosso cliente a examinar melhor as
questões que o afligem. Através do questionamento vamos revendo conteúdos
emocionais, elaborando mudanças e transformações. Como diz Susan Vaughan
estamos "penteando" as conexões neurais, desembaraçando os fios, desfazendo
os nós que impedem um adequado funcionamento da psique . A imagem de um
nó pode ser uma boa analogia para complexo.
131
Uma transformação passará necessariamente pela palavra. Mesmo
pensando que a elaboração possa acontecer em outro nível que não o verbal, a
palavra sempre será necessária quando se trata de comunicar ao outro essa
elaboração. Mesmo quando penso, esse pensar se utiliza de palavras. Quando me
organizo internamente para contar algo a alguém ou mesmo para entender
determinada questão é através da palavra que essa organização acontece, a
palavra é agente, está a serviço da consciência. John Searle diz que é porque
temos representações adequadas de coisas que podemos agir de modo correto.
Eu diria, então, que nossa capacidade de nomear coisas traz a possibilidade de
lidar com elas, sejam objetos, estados de ânimo, desejos.
Nosso trabalho consiste exatamente em auxiliar nosso cliente nessa
aventura de nomear seus conteúdos, ampliando através desse movimento a
compreensão de sua própria história. Quanto mais sinônimos o cliente puder dar
a suas experiências melhor e mais íntegro ele estará.
Se pudermos encontrar correlatos, imagens que falem da mesma coisa em
diferentes níveis, então poderemos elaborar cada vez melhor aquele símbolo e
portanto ampliar o campo consciente. A imaginação funciona como auxiliar do
trabalho terapêutico.
É a possibilidade de utilização de metáforas, algo que em nosso trabalho
utilizamos tanto. A possibilidade de traduzir em "outra língua", fazer uso de
analogias, dar uma forma cada vez mais compreensível a algo que num primeiro
momento não fazia sentido algum.
Cada um de nós explica o mundo e suas vivências através de metáforas
individuais. Cada um de nós tenta compreender a realidade a partir de seu "olho
interno", sua equação pessoal. Temos um aparato mental diferente, vemos o
mundo e reagimos a ele de forma diferente. Talvez não possamos jamais
explicar o porquê de nos comovermos com um pôr-do-sol ou de uma sinfonia de
132
Mozart nos tocar profundamente. Esta talvez seja tarefa para os artistas, que, não
comprometidos com teorias científicas, permanecem livres para expressar de
forma criativa suas mais profundas emoções.
A nós, analistas, talvez seja apenas possível acompanhar nossos clientes
em suas emoções e em seus encantamentos. Com sua aquiescência, entrar em
seus labirintos mentais, suas histórias individuais, suas mentes incorporadas e
auxiliá-los nas batalhas contra seus monstros. Tal como Ariadne, ajudá-los, com
o fio de nosso conhecimento, a encontrar o caminho que leva à verdadeira
liberdade. E que esse fio possa ser ao mesmo tempo flexível e forte,
resplandecendo à luz de nossos conhecimentos teóricos nos labirintos da mente
humana.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
133
DAMASIO, A. (1998). O Erro de Descartes. São Paulo: Companhia das Letras.
DEL NERO, H. S. (1997). O Sítio da Mente. São Paulo: Collegium Cognitio.
ECO, H. (1989). Sobre os Espelhos e Outros Ensaios. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira.
EDELMAN, G. M. (1992). Bright Air, Brilliant Fire, on the Matter of the Mind.
New York: Basic Books.
EDINGER, E.F. (1993).A Criação da Consciência. São Paulo: Cultrix,
FORDHAN, M. (1969). Children as Individuals. New York: G. P. Putnan's
Sons.
FORDHAN, M. (1985). Explorations into the self, em The Library of
Analytical Psychology, vol. 7. London: Academic Press.
FORDHAN, MICHAEL;(1976). The Self and Autism, em The Library of
Analytical psychology, Vol. 3, London: Willian Heineman Medical Books Ltda .
FORDHAN, M. (1989). The infants reach, em Psychological Perspectives.
FRANZ ,M. L. VON (1997). C. G. Jung, seu Mito em Nossa Época. São Paulo:
Cultrix.
FREUD, S. (1973). Obras Completas, Vol II , Madrid: Biblioteca Nova.
GLEISER, M. (1997). A dança do Universo. São Paulo: Companhia das Letras.
HAASE, V.G.; DINIZ ,L.F.M.;CRUZ , M.F.(1997). A Estrutura Temporal da
Consciência, em Psicologia USP 8, n.2. São Paulo: USP, pp. 227-250.
HILLMAN, J. (1989). Entrevistas. São Paulo: Summus.
HILLMAN, J. (1997). O Código do Ser. Rio de Janeiro: Ed. Objetiva.
HORGAN, J. (1998) O Fim da Ciência. São Paulo: Companhia das Letras.
JUNG, C. G. (1975). Memórias, Sonhos e Reflexões. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira.
JUNG, C. G. (1984). Dream Analysis, notes of the seminar given in 1928-1930.
New Jersey: Princeton University Press.
134
JUNG, C. G. (1990). Symbols of Transformation. CW 5. New York: Princeton
University Press.
JUNG, C. G. (1990). Psychological Types. CW 6. New York: Princeton
University Press.
JUNG, C.G. (1990). The structure and the Dynamics of The Psyche .CW 8. New
York: Princeton University Press.
JUNG, C. G. (1990). The archetypes and the collective unconscious. CW9/1.
New York: Princeton University Press.
JUNG, C. G. (1990). Psychology and Religion West and East. CW 11. New
York: Princeton University Press.
JUNG, C. G. (1990). The Practice of Psychoterapy. CW 16. New York:
Princeton University Press.
JUNG, C. G.(1990).The Development of Personality. CW 17. New York:
Princeton University Press.
LACAN, J. (1985). Algumas reflexões sobre o espelho. In: Psicanálise, número
2/1985. São Paulo: Clínica Freudiana, pags. 15 a 35.
NEUMANN, E. (1995). História da Origem da Consciência. São Paulo:
Cultrix.
NEUMANN, E. (1995). A criança. São Paulo: Cultrix.
HOLANDA, A . B. (1983). Novo Dicionário. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
PINKER, S. (1997). How the Mind Works. New York: W.W. Norton &
Company.
ROSEMBLITZ, M. (1995). Narcisismo. Curso oferecido pela SBPA.
SAMUELS, A.(1985). Jung e os Pós Junguianos. Rio de Janeiro: Imago.
SAMUELS, A., SHORTER, B., PLAUT, F.(1988). Dicionário Crítico de
Análise Junguiana. Rio de Janeiro: Imago Editora.
SARAMAGO, J. (1995). Ensaio sobre a Cegueira, São Paulo: Cia das Letras.
135
SEARLE, J.R. (1998). O Mistério da Consciência. São Paulo: Paz e Terra.
SEGAL, H. (1975). Introdução à Obra de Melanie Klein. Rio de Janeiro:
Imago.
SHERINGTON, C.S.(1951). Man on his Nature. Cambridge: Cambridge
University Press.
STEVENS, A. (1982). Archetype, a Natural History of the Self. London:
Routledge & Kegan.
VAUGHAN, S. (1998). A Cura pela Fala. Rio de Janeiro: Ed. Objetiva.
VERÍSSIMO, É. Incidente em Antares. São Paulo: Ed. Círculo do Livro.
WINNICOTT , D. W. (1975). O Brincar e a Realidade. Rio de Janeiro: Imago.
WINNICOTT , D. W. (1993). Da Pediatria à Psicanálise. Rio de Janeiro:
Francisco Alves.
WINNICOTT , D. W. (1994). Explorações Psicanalíticas, Porto Alegre: Ed.
Artes Médicas.
136
137
i