Você está na página 1de 139

Aurea Afonso Martinez Caetano

“SOBRE A QUESTÃO DA CONSCIÊNCIA”

Monografia apresentada à Sociedade


Brasileira de Psicologia Analítica como
parte dos requisitos para obtenção do
título de analista.

Orientador: Carlos Roberto Martins


Lacaz

São Paulo
1999
SUMÁRIO

Este trabalho pretende abordar a questão da consciência tanto do ponto


de vista do desenvolvimento psicológico quanto de sua inserção neurológica. A
autora começa o trabalho apresentando algumas definições de consciência. A
seguir faz uma síntese das principais teorias de desenvolvimento enfatizando o
momento de surgimento da noção de eu, primórdios da auto consciência.
Continua discutindo algumas das mais recentes teorias sobre o
funcionamento e a localização do aparato mental, em especial a questão da
emergência da consciência, trazendo novas idéias sobre o que poderia ser seu
substrato neurológico.
Estabelece, então, algumas correlações entre a teoria junguiana e essas
novas descobertas feitas pelas neurociências encontrando o que poderia ser um
embasamento científico para alguns dos conceitos postulados por Jung.

1
SUMMARY

This work tries to discuss the question of consciousness both from the
point of view of psychological development as for its neurological insertion. The
author presents some definitions of consciousness. Following she introduces a
summary of the most important theories of development focussing the moment
of rising of the idea of myself, origin of auto-consciousness.
She presents some of the most recent theories about mental operation
and localization specially the question of emergence of consciousness bringing
new ideas about what could be it's neurological substratum.
The author tries to establish some inter-relations between the junguian
theory and these new findings of neurosciences finding what could be a
scientific basement for some of Jung’s concepts.

2
"Sou um homem, e portanto cheio de defeitos e fraquezas. Minha carne
com muita freqüência grita de fome, às vezes com uma força que me estonteia.
Claro, muitas vezes tenho as minhas dúvidas. Não faz muito tempo atravessei
um período de tão forte crise espiritual, que escrevi uma longa carta a um
monsenhor que admiro e estimo. Usei nesta carta confessional a expressão 'sinto
que minha fé está apenas por um fio'. Sabe o que ele me respondeu? Que se
regozijava por saber que a coisa era assim, pois não confiava muito nas
chamadas 'fés inabaláveis', dessas que julgam poder deslocar montanhas. São
demasiadamente teatrais para serem profundas — escreveu o monsenhor. O fio
que prende a sua fé deve ser do melhor aço e portanto resistente e ao mesmo
tempo flexível. Fé sem flexibilidade, fé sem dúvida pode acabar em fanatismo.
Terminou a carta assim: 'Reze a Deus, peça-lhe para que faça esse fio
resplandecer sempre na sua luz'“.1

1
VERÍSSIMO, É.. Incidente em Antares. São Paulo: Círculo do Livro. p. 183.
3
INTRODUÇÃO

Quem sou eu e quem é o outro? Como é que sei que eu sou eu? O
problema da consciência foi sempre uma questão fundamental em minha vida.
Lembro-me de pensar, desde pequena, que deveria haver algo muito especial
que fazia com que eu soubesse quem era e ao mesmo tempo quem era o outro
com quem me relacionava. Tinha muito medo de, ao acordar, não me lembrar de
minha própria vida, não reconhecer minha família, minha casa, meus
brinquedos. E se a vida recomeçasse a cada nova manhã?
Como na história do sábio chinês que não sabia se era um sábio chinês
sonhando com uma borboleta ou uma borboleta sonhando com um sábio chinês,
também eu imaginava que poderia acordar a qualquer momento e descobrir que
aquilo que acreditava ser a minha vida não era mais do que o sonho de uma
outra pessoa. Nos momentos de medo e tristeza, essa idéia me consolava- afinal,
a qualquer momento eu poderia ser salva, bastava esperar pelo despertar de meu
sonhador. Em momentos de alegria e felicidade, no entanto, queria que o
sonhador fosse eu mesma.
Oscilando entre a passividade de objeto do sonho e a assertividade do
sonhador, fui crescendo e descobrindo novas maneiras de experimentar essa
mesma idéia. Uma delas foi a literatura. Onde mais poderia viver com tanta
intensidade essa troca de papéis? Era fabuloso fazer de conta que era em um
momento a princesa do conto de fadas, em outro a pequena órfã, mais tarde a
menina que pisou no pão. Quantas emoções descobria a cada nova leitura e
como era fácil sair do papel quando o medo apertava bastava fechar o livro.

4
Outra maneira de lidar com essa mesma questão foi através de minha
escolha profissional. Acredito que escolhi ser psicóloga porque em algum
momento aprendi que o psicólogo era o estudioso dos sonhos. E como queria
entendê-los! Desejava compreender como eram as pessoas, como eram seus
sonhos, quais suas inquietações; queria saber o que fazia com que eu acordasse
me lembrando quem era ao dormir e o que fazia com que fosse sempre a mesma.
Educada num colégio católico, queria saber quem é esse homem,
possuidor de uma alma que lhe garante a imortalidade e ao mesmo tempo a
filiação divina. Lá aprendi que somos todos irmãos porque filhos do mesmo pai,
iguais porque aos olhos do pai todos os filhos são iguais e ao mesmo tempo
diferentes porque somos possuidores de livre arbítrio e responsabilidade diante
da própria vida. Que alma é essa?, perguntava-me. Haverá mesmo algo imortal
em nós? Espelho, espelho meu, quem sou eu, afinal?
O tema escolhido para minha monografia ronda essas mesmas questões.
Quero discutir o que faz com que o homem se conheça como tal. Como se faz
um homem? O que há de imutável no ser humano? Como se dá a consciência?
— atributo que, afinal, nos diferencia dos outros animais. Qual seu lugar, quais
suas possibilidades de transformação?
Meu projeto inicial era discorrer sobre a consciência e sua criação,
discutindo a importância do trabalho terapêutico para seu desenvolvimento. Para
isso utilizaria algumas amplificações clínicas e outras literárias. No entanto,
logo ao começar a trabalhar fui atraída para um novo caminho. Deparei com
muitas publicações falando sobre o sítio da mente, sobre a consciência e seu
funcionamento, que tentavam estabelecer o substrato neurológico do fenômeno
consciente. Surgiu então a idéia de tentar estabelecer alguns paralelos entre as
novas teorias a respeito da mente e a psicologia junguiana.

5
Este trabalho é, enfim, espelho da mudança de minha relação com a
psicologia analítica. Num primeiro momento, a paixão e o fascínio foram os
elementos fundamentais para a aproximação. Fiquei encantada com as idéias de
arquétipo e inconsciente coletivo, com a possibilidade de trabalhar com o
material onírico. Esse encantamento fez com que eu escolhesse essa como a
teoria que fundamentaria minha atividade como psicóloga. Eram meus primeiros
anos de formação profissional, época de sonhos e desejos, grandes aspirações e
uma inconsistência quase juvenil tudo era maravilhoso.
A escolha teórica revelou-se acertada, tornou-se muito útil para a minha
compreensão clínica. Aos poucos no entanto, o encantamento e o fascínio
deram lugar a algo mais tranqüilo, mais sedimentado, como uma paixão que dá
lugar a um amor mais maduro. Quando estamos apaixonados não percebemos os
defeitos do objeto de paixão, tamanho o fascínio que ele nos causa. Já num amor
mais maduro podemos exercer a capacidade de ver o outro como ele realmente é
e, mesmo assim, ou até por isso, amá-lo de verdade.
O curso de formação na Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica
contribuiu para meu maior conhecimento da teoria e ao mesmo tempo para
aumentar os questionamentos que fazia. Ao ingressar no curso tinha muitas
certezas a respeito da teoria junguiana. Agora, ao concluí-lo, tenho muitas
dúvidas. Sinto que tive a minha fé abalada; foi um longo período de crise
interior, que me fez duvidar da capacidade de ser uma verdadeira analista
junguiana.
Percebo, no entanto, que o fio que prende minha fé — ou melhor, a
minha relação com a teoria junguiana —pode ser tangido pelos ventos da dúvida
e da incerteza e ao mesmo tempo se manter íntegro. Esta monografia não é mais
do que um exercício de flexibilidade e resistência desse fio condutor que une

6
minha vivência pessoal e profissional às idéias trazidas por Jung. Não posso
encontrar melhor forma de expressar minha profunda ligação com essa teoria.
Inicio esta monografia pela tentativa de discriminar seu objeto, com um
breve histórico do conceito de consciência, a etimologia da palavra e as
diferentes formas de abordar o tema. A seguir, faço um pequeno resumo de
algumas teorias que discutem a questão do surgimento da consciência do eu, já
pressupondo, portanto, que para falar em consciência é necessário um "eu" que
dela se aproprie. Além das idéias dos junguianos Edinger, Fordhan e Neumann,
discuto também as de Lacan, Winnicott e Melanie Klein. As análises desses
autores acerca do processo que culmina na consciência do eu são muito
interessantes e ajudaram-me a delimitar a questão. Apesar de cada um deles
partir de pressupostos teóricos diferentes, todos tratam de uma mesma questão: o
momento inicial de surgimento de consciência, momento de instalação de um
"eu" que é seu.
A etapa seguinte deste trabalho é um relato sobre as neurociências e os
mais recentes conhecimentos acerca da mente, seu lugar e funcionamento.
Discuto alguns autores, cujas recentes publicações trazem novas idéias acerca do
que seria o substrato do mental e sobre as perspectivas que se abrem a partir
desses novos conhecimentos. Autores de disciplinas diferentes têm-se se
debruçado sobre o tema da consciência, produzindo obras que discutem da
questão genética à questão comportamental, passando pela problemática
cultural. Essas são formas diferentes de abordar o mesmo assunto motivam-me a
escrever esta monografia. Minha questão básica, enfim, é: o que é a consciência
e como é que ela se dá?
Tento ainda neste trabalho estabelecer aproximações entre algumas
idéias de Jung e as novas descobertas das neurociências, pois, ao selecionar o
material que utilizaria, deparei-me com análises muito próximas às idéias

7
junguianas. Não é minha intenção, porém, fazer transposições teóricas uma vez
que os pontos de partida de cada análise são diferentes.
Acredito que seja justamente nesse momento que o exercício de
flexibilidade do meu fio condutor seja mais intenso. É impossível continuar
sendo junguiano sem discutir a possibilidade de encontrar algum tipo de
substrato neurofisiológico que sustente ou de referende idéias junguianas.
Acredito que neste momento em que Jung tem sido tão atacado e mal
compreendido é importante que nós, junguianos, nos preocupemos em divulgar
sua teoria utilizando todo o conhecimento científico disponível .
Termino a monografia com um breve apanhado das idéias discutidas ao
longo do trabalho e com uma pequena reflexão acerca dos caminhos percorridos
durante sua elaboração e dos destinos aos quais cheguei.

8
I

POR UMA DEFINIÇÃO DE CONSCIÊNCIA

"Conhece-te a ti mesmo."
Primeiro Mandamento do Oráculo de Apolo
em Delfos

Consciência (segundo Aurélio Buarque de Holanda Ferreira):


( do lat. Conscientia ) aquilo que define o ser humano. def.: 1-
atributo altamente desenvolvido na espécie humana e que se
define por uma oposição básica: é o atributo pelo qual o
homem toma em relação ao mundo (e, posteriormente em
relação aos chamados estados interiores, subjetivos) aquela
distância em que se cria a possibilidade de níveis mais altos
de integração 2- conhecimento desse atributo. 3- faculdade
9
de estabelecer julgamentos morais dos atos realizados.4-
conhecimento imediato de sua própria atividade psíquica . 5-
conhecimento, noção, idéia. 6- cuidado com que se executa
um trabalho. 7- honradez, retidão, probidade.2

Jung define forma a consciência da seguinte:


Por consciência eu entendo a relação dos conteúdos psíquicos
com o ego, na medida em que esta relação é percebida como
tal pelo ego. Relações com o ego que não são percebidas
como tal são inconscientes. Consciência é a função ou
atividade que mantêm a relação dos conteúdos psíquicos ao
ego. Consciência não é idêntica à psique, porque a psique
representa a totalidade de todos os conteúdos psíquicos e
estes não estão necessariamente diretamente conectados ao
ego, i.e. relacionados de tal forma que tenham a qualidade de
consciência. Existem muitos complexos psíquicos que não
estão necessariamente conectados ao ego.3

Outros autores sugerem os seguintes conceitos:

A consciência é causada por processos neuronais de nível


inferior no cérebro e é, por si só, uma propriedade do
cérebro. Por ser uma propriedade que surge através de certas
atividades dos neurônios, podemos vê-la como uma
"propriedade emergente" do cérebro. Uma propriedade

2
FERREIRA, A. B. H. (1975). Novo Dicionário da Língua Portuguesa. São Paulo:Nova Fronteira.
3
JUNG, C. G. (1971) Psychological Types. CW 6. New York: Princeton University Press. par. 700.
10
emergente de um sistema é aquela que é causalmente
explicada pelo comportamento dos elementos do sistema;
mas, não é uma propriedade de quaisquer elementos
individuais e não pode ser explicado simplesmente como uma
soma das propriedades desses elementos.4

A palavra consciência apareceu na Grécia quando se colocou


a questão, de importância vital no direito, de decidir se uma
pessoa tinha conhecimento ou não do que estava fazendo.
Qualquer avaliação da responsabilidade de alguém perante
seus atos, sejam civis, sejam penais, passa pela idéia de que
seja capaz de "ter consciência" deles.5

Há várias definições possíveis para o fenômeno da consciência, todas


auto-referentes. Consciência é a condição que possibilita qualquer coisa ter
alguma importância para alguém. É um paradoxo, porque é a questão central
para nossa compreensão como seres humanos:

O paradoxo é que a consciência é a condição que possibilita


qualquer coisa ter alguma importância para alguém. Apenas
para os agentes conscientes existe a possibilidade de algo ter
algum significado ou importância.6

O homem é o único ser vivo capaz de "ter consciência". Será essa uma
verdade ou estaremos falando de um tipo de consciência específica? Como é

4
SEARLE, J. R. (1998). O Mistério da Consciência. São Paulo: Paz e Terra. p. 44.
5
DEL NERO, H. S. (1997). O Sítio da Mente. São Paulo: Collegium Cognitio. p. 134.
6
SEARLE, J. R. op. cit, p. 26.

11
essa questão quando pensamos em um animal? O homem é um animal racional,
todos os outros animais são irracionais; racional é, segundo o verbete que consta
no Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa "aquele que usa da razão,
que raciocina, que se deduz pela razão". Esta é uma definição antiga, aquela
que aprendemos na escola para diferenciar o ser humano, aquele que seria a
coroação da criação divina, dos outros animais. Nesse sentido, a racionalidade é
nosso bem maior, nosso grande trunfo, aquilo que nos dá a possibilidade de
dominar o mundo irracional, que nos torna agentes transformadores dessa
criação. Será a racionalidade humana o mesmo que consciência? Era disso que
se falava antigamente?
Embora esse não seja um termo tão usado atualmente, tendemos ainda
hoje a confundir o ser humano e sua consciência com essa racionalidade. Numa
época de grandes conquistas tecnológicas parece impossível não definir o
homem por sua capacidade de pensamento, de criação, de transformação. Mas
que pensamento é esse? Poder pensar a respeito de algo nos traz a diferenciação,
a possibilidade de transformar o mundo, é como se fornecesse o instrumento
necessário para uma intervenção no rumo da natureza. Mas, ao mesmo tempo, se
esse pensamento for unilateral corremos o risco de nos afastar da vida em si,
daquilo que nos sustenta. A unilateralidade dessa diferenciação tem levado o
homem a destruir a natureza, esquecendo-se que somos um todo único e
interdependente.

No princípio, Deus criou o céu e a terra. A terra porém


estava informe e vazia; as trevas cobriam o abismo e o
Espírito de Deus pairava sobre as águas. Deus disse: “faça-se
a luz!” E a luz foi feita. Deus viu que a luz era boa, e separou

12
a luz das trevas. Deus chamou à luz Dia, e às trevas Noite.
Houve uma tarde e uma manhã: foi o primeiro dia.7

Mitos da criação falam da existência de um todo primordial. Enfatizam a


necessidade de separação em "o que está em cima e o que está embaixo" ou o
"superior e o inferior", "céu e terra" como condição para o aparecimento de um
espaço intermediário onde possam surgir os primeiros seres. Essa primeira
separação seria imprescindível para a criação. Sem essa oposição primeira não
há a tensão necessária para o aparecimento da vida. A partir dessa separação, e
então do surgimento do mundo, dos vários seres vivos, dá-se a possibilidade de
conhecer.
Não é possível haver conhecimento na escuridão, é necessário que se
faça a luz. Só se pode conhecer aquilo que é o outro, o diferente, o "não eu" e só
a partir desse conhecimento é que pode haver verdadeiramente o
reconhecimento.
Como é que se dá essa separação e reconhecimento? Não sabemos ao
certo se a realidade conhecida, ou reconhecida, é a mesma para todos. Teria
essa realidade algo a ver com a questão da consciência? Do ponto de vista
popular, quanto mais consciente for uma pessoa, mais inserida na realidade ela
estará. Segundo essa perspectiva , existe aprioristicamente algo como uma
realidade absoluta, atemporal, definida, na qual estaria inserido o ser consciente.
Mas existe tal realidade? Ou existe um eu que se destaca e pode a partir
daí, num processo dialético reconhecer, a partir de si próprio, a realidade? De
qualquer forma esse é um movimento fugaz porque esse eu, depois de
destacado, é agora outro, diferente, não mais o mesmo que iniciou o processo.
No entanto, ele é sim o mesmo eu.

7
Bíblia sagrada, São Paulo, Ave Maria, 1959, Gênesis, 1, 1-5
13
Uma cadeira é sempre uma cadeira, isto é, um objeto que serve para
sentar. A consciência, ou nesse sentido a percepção consciente, tem a sua
literalidade. Por isso se alterada a sua função, se a cadeira for utilizada como
uma escada por exemplo, deixará de ter suas características de cadeira? Não,
pois um sujeito que a olhe nesse momento pela primeira vez poderá dizer que é
uma cadeira, já que em sua literalidade será sempre uma cadeira. Qual é o dado
de realidade aí? Se pensarmos em conceitos abstratos, então a confusão pode
ficar ainda maior. O que para um sujeito é a mais pura realidade para outro não
passa de alucinação. E a consciência, como é que fica?
Estamos, na verdade, falando de dois aspectos diferentes da consciência.
O primeiro é o aspecto da percepção ou sensibilidade: "tenho consciência de
coisas através de meus órgãos de sentidos, registro, sinto". Outro aspecto é o da
consciência de si mesmo: "percebo-me como um e o mesmo sujeito ao longo do
tempo, tenho consciência de meus desejos, minhas limitações". Este seria o caso
especial da autoconsciência. Diz John Searle:

Estados de consciência são qualitativos no sentido de que


para qualquer estado — como sentir dor ou preocupar-se
com a situação econômica —- existe algo que
qualitativamente se sente como estando naquele estado; e são
subjetivos no sentido de que só existem quando
experimentados por um ser humano ou outro tipo de sujeito.8

Na vida cotidiana é comum o uso da expressão “consciência culpada”:


"fiz algo que sabia estar errado, tomei uma atitude que não estava de acordo com
meus valores e crenças ou com os valores socialmente aceitos e isso me traz
algum tipo de conflito". Fala-se também de "consciência limpa": "estou em paz
8
SEARLE, John R.,op. cit, pg. 25.
14
comigo mesmo, minhas atitudes estão de acordo com aquilo em que acredito,
está tudo certo, tudo em ordem. Há também o sujeito "sem consciência": aquele
que não pensa nos outros, isto é, não está nem aí para os cânones e valores
sociais, faz o que lhe dá vontade. Pode-se, também, pensar aqui a questão da
diferença entre consciência individual e coletiva, isto é, o que é correto e
verdadeiro para um sujeito pode não ser correto e verdadeiro para a coletividade
na qual está inserido o que é muito difícil avaliar.
Essas são todas expressões corriqueiramente utilizadas para falar de
atitudes de um sujeito e sua consciência em relação à uma realidade interna ou
externa. É o modo mais "popular" ou "leigo" de falar de consciência, porém isso
implica uma consciência relativa. Estar consciente, neste sentido, é o mesmo que
ter uma atitude adequada, estar em equilíbrio, termo de compromisso entre meus
desejos e as expectativas sociais.
A consciência até etimologicamente tem implícita a idéia de um "estar
com", isto é, consciência é o estar ciente de algo com alguém. Há, portanto, a
idéia de relação. Consciência é a experiência de conhecer juntamente com um
outro, isto é, num contexto de dualidade. Não se pode conhecer sozinho.

...e então só quando estamos horríveis, tristes e caóticos é que


chamamos por um salvador(...) é interessante que em vários
sistemas gnósticos a definição de salvador é: o ‘fazedor de
linhas limítrofes’ (de limites) aquele que dá uma clara idéia
de onde começamos e onde terminamos. O principal medo do
inconsciente é que esqueçamos quem somos.9

9
JUNG, C.G., Dream analysis, notes of the seminar given in 1928-1930, N.J.Princeton University Press, 1984,
p.13.
15
Nesse sentido, podemos estabelecer um paralelo entre a consciência e
esse salvador. Dentro da estruturação psíquica, seria no âmbito da consciência
que se daria a noção de identidade do sujeito. Só através de um ego consciente é
que chegamos a saber quem somos, quais são nossos limites, até onde vamos.
Nos momentos de crise, de confronto, essa idéia se faz fundamental. É na
relação com o outro, a partir desse encontro, que poderemos verdadeiramente
nos conhecer.
Vivemos de forma um tanto automática. Em muitos momentos não nos
damos conta de nosso lugar no mundo e quando confrontados com algum tipo
de problema nos sentimos acuados. Olhamos então para dentro de nós e
tentamos compreender quem somos, buscamos estabelecer nossos limites,
nossos contornos. A consciência surge nesse momento como o "salvador". Nela
e através dela nos situamos. Não há definição de Eu, não há lugar no mundo
onde a noção de consciência não esteja presente. É um conceito imprescindível
para falar de algo sendo em algum lugar. Para que a vida exista é preciso que
haja alguém que esteja consciente dessa vida. Alguém que saiba dela, alguém
que a perceba. As idéias de conhecimento e consciência estão entrelaçadas de tal
forma que uma pressupõe a outra. Jung traz essa idéia:

Agora o apreendia (o mito), constatando, por outro lado, que


o homem é indispensável à perfeição da criação e que, ainda
mais, é o segundo criador do mundo; é o homem que dá ao
mundo, pela primeira vez, a capacidade de ser objetivo - sem
poder ser ouvido, devorando silenciosamente, gerando,
morrendo, abanando a cabeça através de centenas de milhões
de anos, o mundo se desenrolaria na noite mais profunda do
não-ser, para atingir um fim indeterminado. A consciência

16
humana foi a primeira criadora da existência objetiva e do
significado: foi assim que o homem encontrou seu lugar
indispensável no grande processo do ser.10

Em sua memórias Jung fala da importância fundamental da consciência


para o reconhecimento do mundo. O homem natural é produto de um processo
de evolução, inserido numa cultura, capaz de poder reconhecer a si mesmo e a
esse mundo ao qual pertence. Nesse sentido é o espelho do criador, recriando a
cada momento a realidade na qual vive. A consciência é um acontecimento
natural e biológico, faz parte de nossa vida biológica como a digestão, ou o
crescimento, fenômeno interno qualitativo de primeira pessoa. Diz John Searle:

(...) estamos cegos para enxergar a característica biológica e


natural da consciência e outros fenômenos mentais devido à
nossa tradição filosófica que transformou mental e físico em
duas categorias mutuamente excludentes. A saída é rejeitar
não só o dualismo mas também o materialismo e aceitar que a
consciência é tanto um fenômeno mental, qualitativo e
subjetivo, quanto uma parte natural do mundo físico. 11

Jung acreditava que a psique humana fosse a fonte de todas as


atividades do homem. Estamos presos num mundo psíquico, dizia ele, não temos
o ponto de Arquimedes fora da psique. Marie Louise Von Franz, referendando
essa idéia, diz:

10
JUNG, C. G., Memórias, Sonhos e Reflexões, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1975, pg.226.
11
SEARLE, J. R., op. cit, p. 25.

17
Nenhum casa foi construída, nenhuma descoberta científica
foi feita e nenhum rito religioso observado sem a
participação da psique humana. ... Tudo o que se possa
descobrir acerca dessas leis naturais que se aplicam à psique
humana também terá validade em relação a todos os aspectos
da existência do homem.12

Talvez não saibamos jamais se aquilo a que nos referimos é a verdade,


ou mesmo se existe tal verdade. Podemos nos contentar em explicar de acordo
com nossos próprios meios o mundo que nos cerca e com o qual estamos em
constante interação. O fenômeno da consciência é fruto dessa relação e como tal
está inevitavelmente inserido na natureza. Compreendê-la a partir dessa inserção
é nossa tarefa atual.

12
FRANZ, Marie L.V. Jung Seu Mito em Nossa Época, São Paulo, Cultrix, 1997, p.12 .
18
II

SOBRE O DESENVOLVIMENTO DA CONSCIÊNCIA

"Dentro de nós há uma coisa que não tem nome, essa coisa é o que
somos”.13
Jose Saramago, Ensaio sobre a Cegueira

“Psicoterapia não é fazer interpretações argutas e apropriadas;


em geral trata-se de devolver ao paciente, a longo prazo, aquilo que o
paciente traz. É um derivado complexo do rosto que reflete o que há para
ser visto. Essa é a forma pela qual me apraz pensar em meu trabalho, tendo
em mente que, se o fizer suficientemente bem, o paciente descobrirá seu
próprio eu (self) e será capaz de existir e sentir-se real. Sentir-se real é
mais do que existir; é descobrir um modo de existir como si mesmo,
relacionar-se aos objetos como si mesmo e ter um eu (self) para o qual
retirar-se, para relaxamento.”14

13
SARAMAGO, Jose, Ensaio Sobre a Cegueira, São Paulo, Cia das Letras, 1995, p.
14
WINNICOTT, D.W., O Brincar e a Realidade, Rio de Janeiro, Imago, p. 161.
19
Faço aqui uma tentativa, a partir do ponto de vista da dinâmica psíquica,
de responder à pergunta colocada no início do trabalho: "Como é que se faz um
homem?". Não é minha intenção traçar um esboço completo do
desenvolvimento infantil. Gostaria de me ater à questão do nascimento da
consciência, sua emergência.
Penso, como já disse anteriormente, que a consciência é fundamental
para definir um homem. Sem ela não há um ser que se perceba, que seja. Para
entender como se dá esse nascimento, visito alguns autores que falam de
maneira mais específica do momento que seria o início do que podemos chamar
de consciência de si mesmo, primeiro germe da identidade individual, quando se
começa a ser um sujeito diferente e destacado do mundo que nos cerca — um
indivíduo.
Cada um dos vários autores utiliza uma terminologia específica, fruto de
seu pressuposto teórico, para elaborar sua teoria. Não pretendo considerar aqui
as diferenças teóricas subjacentes a cada descrição do processo de
desenvolvimento da consciência. É importante perceber que, embora partindo de
pressupostos teóricos diferentes, cada um dos autores discutidos tenta, à sua
maneira, falar sobre o que seria o germe da identidade pessoal.
Termos como ego, complexo de ego e eu são utilizados de formas
distintas. Considero aqui, no entanto, que estão sempre se referindo a um mesmo
fenômeno ou instância: aquilo que propicia a noção de identidade de um sujeito.

20
WINNICOTT

"Avaliar em que exatamente consistem os elementos mentais


irredutíveis, especialmente os de natureza dinâmica, constitui,
na minha opinião, um de nossos objetivos finais mais
fascinantes. Estes elementos têm necessariamente um
equivalente somático e provavelmente neurológico e, desta
forma, através do método científico, deveríamos ter estreitado
bastante a antiga distância entre a mente e o corpo. Aventuro-
me a predizer que, então, considerar-se-á a antítese que se
constituiu em um estorvo para todos os filósofos como algo
baseado em uma ilusão. Em outras palavras, não acho que a
mente exista realmente como uma entidade — algo
possivelmente espantoso, quando dito por um psicólogo.
Quando falamos da mente que influencia o corpo ou do corpo
que influencia a mente, estamos meramente usando uma
linguagem taquigráfica conveniente no lugar de uma
expressão mais incômoda.15

Em uma conferência proferida em 1949, D.W. Winnicott partiu da


citação acima para introduzir suas idéias sobre a relação da mente com a psique-
soma. Ele diz que ao se estudar o conceito de mente deve-se sempre estudar um
indivíduo total . “A mente não existe como uma entidade no esquema de coisas

15
WINNICOTT, D.W., A mente e sua relação com o psique-soma , in Da Pediatria à Psicanálise, Rio de
Janeiro, Francisco Alves, 1993, pg. 409.
21
desse indivíduo, não sendo mais que um caso especial do funcionamento do
psique-soma”16. Portanto, para falar sobre o funcionamento mental temos de
falar do indivíduo em desenvolvimento. Nesse processo é que vai surgir algo a
que se dá o nome de mental.
O desenvolvimento da mente é influenciado por fatores que muitas vezes
não dependem da esfera pessoal do indivíduo. Para que esse desenvolvimento
ocorra é necessário que exista um meio ambiente adequado. Winnicott fala então
do papel da mãe suficientemente boa como aquela capaz de favorecer um
ambiente adequado para o desenvolvimento do bebê. Diz ele que se a mãe for
suficientemente boa o bebê vai ser capaz de gradativamente compensar suas
deficiências através da atividade mental.17 "A atividade mental do bebê
transforma o relativo fracasso de adaptação em um sucesso adaptativo.” 18
Mais tarde, em 1970, ao falar em um simpósio sobre individuação, ele
retoma essa idéia dizendo que os processos maturacionais herdados pelo bebê só
farão com que ele progrida se o meio ambiente for facilitador. Portanto, o bebê
herda um processo em direção ao desenvolvimento, mas, para entender como ele
se dá, devemos sempre levar em conta a "provisão ambiental". Então, para que
um indivíduo se torne um indivíduo, há de levar em conta a inter-relação entre
os processos maturacionais herdados e o meio ambiente no qual ele se
desenvolve.
Winnicott refere-se a um bebê que nos primeiros meses de vida não está
separado do mundo que o cerca e postula então, um "não reconhecimento
primitivo":

nas primeiras fases do desenvolvimento emocional do bebê


humano, um papel vital é desempenhado pelo meio ambiente,
16
WINNICOTT, D. W., op. cit, p. 410.
17
Idéia semelhante à noção kleiniana de formação simbólica, que veremos a seguir .
18
WINNICOTT, D.W., op. cit, p. 412
22
que de fato o bebê ainda não separou de si mesmo.
Gradativamente a separação entre o não-eu e o eu se efetua, e
o ritmo dela varia de acordo com o bebê e o meio ambiente.19

O autor utiliza a metáfora do espelho para falar desse primeiro momento


de reconhecimento do bebê. Traz assim a idéia do olhar da mãe como o primeiro
espelho da criança. Diz Winnicott: “O que vê o bebê quando olha para o rosto
da mãe? Sugiro que , normalmente, o que o bebê vê é ele mesmo.” 20
É preciso que o bebê se veja refletido pela mãe para que ele se perceba e
se sinta real. Mais tarde, ele vai começar a perceber que o que vê é o rosto da
mãe e num desenvolvimento normal vai ser capaz de se auto-refletir para então
ser.
Em 1945, em um ensaio lido na British Psycho-Analythical Society,
Winnicott estabelece a idade de seis meses como aquela em que algo de
extraordinário acontece ao bebê, algo tão especial que todos à volta dele
percebem que "algo" aconteceu. Citou Anna Freud — para quem até os seis
meses o bebê está mais preocupado com alguns aspectos dos cuidados a ele
dispensados do que com pessoas específicas — e também Bowlby, segundo o
qual, até os seis meses os bebês não são singulares (a separação da mãe não os
afeta da mesma forma que o faria depois dos seis meses).
Winnicott fala do comportamento do bebê de pegar um objeto, colocá-lo
na boca (bebês menores também fazem isso, diz ele) e deixá-lo cair como parte
do jogo. Essa possibilidade tem a ver, em certa medida, com o desenvolvimento
físico, porque só então o bebê é capaz de agarrar um objeto e levá-lo à boca.
Mas, “qualquer que seja o lado físico da questão, há também o lado
emocional”.21 Winnicott acredita que “nesse estádio, o bebê se torna capaz de
19
WINNICOTT, D.W., O Brincar e a Realidade, Rio de Janeiro, Imago, 1975 , p.153
20
WINNICOTT, D.W., op. cit, 1975, p.154
21
WINNICOTT, D.W., op. cit, 1975, p. 273
23
mostrar no seu jogo, sua compreensão de que tem um interior e que coisas vêm
de fora”. Diz ainda que no caso de muitos bebês há um relacionamento de
pessoa total aos seis meses. “Quando um ser humano sente que é uma pessoa
que se relaciona com outras, ele já andou um longo caminho no seu
desenvolvimento primitivo”.22
Winnicott considera que esse desenvolvimento primitivo, antes de o
bebê conhecer a si mesmo, é de importância vital para o desenvolvimento
emocional futuro. Ele fala então de três processos que começariam muito cedo:
a integração, a personalização e depois a apreciação do tempo e espaço e outras
realidades. Postulando uma não-integração primária, diz que a integração
começa logo no início da vida. Para isso é importante que o bebê seja conhecido
e, diz ele, ser conhecido é sentir-se integrado (não ser muitos pedaços, ser um
inteiro).

A tendência a integrar é ajudada por dois conjuntos de


experiência: a técnica de cuidado infantil através da qual a
temperatura do bebê é mantida, ele é manipulado, banhado,
embalado e nomeado e, também, as experiências pulsionais
agudas que tendem a tornar a personalidade una a partir do
interior.23

Tão importante quanto essa integração é o desenvolvimento do


sentimento de que se está dentro do próprio corpo — a personalização—
sentimento que pode ser construído a partir de repetidas e tranqüilas
experiências de cuidado corporal, o outro tomando conta dele, e de experiências
pulsionais, movimento que poderíamos chamar de interno. 24
22
WINNICOTT, D.W., op. cit, 1975, p. 273
23
WINNICOTT, D.W., Desenvolvimento Emocional Primitivo in op. cit ,1993, p. 276
24
Então dois movimentos : um a partir de dentro e outro a partir de fora, o processo maturacional herdado e a
24
O terceiro processo, chamado de adaptação à realidade, aconteceria
quando já há um início de integração e então se inicia uma relação primária com
a realidade externa. O bebê, agora que já tem um lugar, encontra fora de si
mesmo algo real que vem em direção à sua necessidade, seu desejo (Winnicott
fala aqui em alucinação). O bebê começa a construir uma capacidade de evocar
o que é realmente disponível. A partir dessa inter-relação ele vai aos poucos
integrando sua personalidade (seu eu) e se diferenciando do resto do mundo. A
tarefa básica da mãe é proteger seu bebê de complicações que ele não pode
ainda entender e “continuar a fornecer de maneira uniforme, o pedacinho
simplificado de mundo que a criança, através dela, passa a conhecer”.25

LACAN

provisão ambiental.
25
WINNICOTT, D.W., op. cit, 1993, p. 280
25
Em “Introdução ao Narcisismo”, de 1914, Freud diz :

Não existe no início uma unidade comparável ao eu no


indivíduo, o eu deve ser desenvolvido. Como as pulsões auto-
eróticas existem desde o começo da vida, é necessário que
alguma coisa, uma nova ação psíquica seja acrescentada ao
auto-erotismo para desenvolver o narcisismo.26
Freud continua o trabalho sem explicar o que seria essa “nova ação
psíquica”.
Lacan observa, a esse respeito a existência do estádio do espelho e
aponta como sendo essa fase a dos primórdios de um reconhecimento do eu. Ele
utiliza a metáfora do espelho para falar de um primeiro momento de
reconhecimento do bebê, início da possibilidade de percepção de um eu,
possibilidade de estabelecer a relação do organismo com sua realidade.
O estádio do espelho é pedra angular da metapsicologia lacaniana. Em
1936, num trabalho lido no Congresso Internacional de Psicanálise em
Mariembad, Lacan fez uma comunicação sobre a concepção desse estádio. Não
existem documentos dessa palestra. No entanto, em 1949, 13 anos mais tarde,
Lacan faz um novo pronunciamento, desta vez chamado: "O estádio do espelho
como formador da função do eu, tal como nos é revelado na experiência
psicanalítica”.27
Lacan fala de uma instância "eu" que deve ser formada e refere-se ao
estádio do espelho como o momento em que essa formação se inicia. Essa
concepção é sustentada, segundo o autor, pela idéia de antecipação do

26
FREUD, S., Obras Completas, vol.II, Madrid, Biblioteca Nova, 1973,p.2019

27
LACAN, J. Algumas reflexões sobre o espelho" in Psicanálise, vol. 2/1985 p. 15 a 35
26
psicológico ao biológico, produto de uma insuficiência ocasionada pela falta de
mielinização do sistema nervoso.
Diz Lacan: “o filhote do homem numa idade onde ele é, por um tempo
curto, mas por algum tempo, superado na inteligência instrumental pelo
chimpanzé, reconhece no entanto sua imagem no espelho como já sua.”28 Esse
acontecimento pode produzir-se a partir da idade de seis meses e ocorrer com
esse mesmo sentido até mais ou menos os 18 meses.

É suficiente compreender o estádio do espelho como uma


identificação, no sentido pleno que a análise dá a esse termo:
a saber, a transformação produzida no sujeito quando ele
assume uma imagem — cuja predestinação a esse efeito de
fase está suficientemente indicado pelo uso, na teoria do
termo antigo imago ”29 30

Seria a possibilidade de início de uma matriz simbólica onde o eu “se


precipita” apesar de o bebê ser ainda impotente e dependente do ponto de vista
do desenvolvimento físico. Para Lacan, favorecido por um maior
desenvolvimento do córtex cerebral, o "animal humano" teria a possibilidade de
dar aí um passo adiante, estabelecendo uma conexão significativa entre ele
mesmo e a imagem que vê no espelho. Esse seria o início de uma "noção de
eu". Essa prevalência dos aparelhos ditos superiores do neuro-eixo e do córtex
tem o nome de fetalização e aponta para um tipo de maturação muito específico
do ser humano. Antes mesmo de poder andar e estando ainda absolutamente

28
LACAN, J. op. cit. p. 15
29
LACAN, J., op. cit., p. 18
30
Interessante observar o uso que se faz de um termo antigo —imago— cunhado originalmente por Jung, ainda
em 1911, em Símbolos de Transformação. Definia-se então como protótipo ou representação inconsciente, termo
que Jung, em escritos posteriores, vai substituir por arquétipo para deixar claro que falava de forças coletivas e
impessoais. (Ver nota de rodapé em CW, vol. 5, p. 44, 2ª edição, Princeton/Bollingen)
27
dependente da mãe ou nutridor, ele pode já antecipar o reconhecimento de sua
própria imagem no espelho.

A função do estádio de espelho revela-se para nós desde logo,


como um caso particular da função da imago, que é
estabelecer a relação do organismo à sua realidade- ou, como
se diz do Innenwelt (meio interno) ao Umwelt (meio externo).31

Nesse momento há uma identificação com a imago do próprio corpo,


momento em que o organismo antecipa seu domínio sobre o meio ambiente. É
uma fase do desenvolvimento na qual a criança identifica-se com o imaginário,
isto é, com algo que ela ainda não é. Essa colocação decorre do posicionamento
teórico de Lacan, que supõe que a criança inicialmente mantenha uma relação
diádica, fusional, com a mãe e, devido a esse fato, acredite ser aquilo que o
espelho (olhar da mãe) reflete como sendo ela mesma. O estádio do espelho
inicia sua conclusão quando, por volta dos 18 meses de vida, o "eu" se precipita
numa identificação transformadora com o social. É um momento fecundo: o ser
humano sai da alienação e parte para a sociabilidade.

MELANIE KLEIN

Melanie Klein situa o início da integração, momento em que se pode


falar dos primórdios do "eu", ao redor dos seis meses de idade, como o início
31
LACAN, J., op. cit., p. 18.
28
do que chamou de posição depressiva. Ela pressupõe, no entanto, um grau de
organização do ego muito maior do que o postulado por Freud desde o
nascimento. Klein acredita que a partir do momento do nascimento o bebê tem
de lidar com o impacto da realidade. Suas experiências vão influenciar a fantasia
inconsciente e são por ela influenciadas — há sempre, então, uma relação
dinâmica entre mundo externo e mundo interno.32
Susan Isaacs (citada por Hana Segal em seu livro) diz que as idéias que
representam os instintos seriam as fantasias primitivas originais. Como derivam
de instintos na fronteira entre o somático e a atividade psíquica essas fantasias
originais são experimentadas tanto como somáticas quanto como fenômenos
mentais. Essa idéia pressupõe que o ego, a partir do nascimento, seja capaz de
formar relações de objeto na fantasia e na realidade.

A partir do momento do nascimento , o bebê tem de lidar com


o impacto da realidade, começando com a experiência do
próprio nascimento e passando a inumeráveis experiências de
gratificação e frustração de seus desejos. Essas experiências
da realidade influenciam imediatamente a fantasia
inconsciente e são por ela influenciadas. A fantasia não é
simplesmente a fuga da realidade, mas um constante e
inevitável acompanhamento de experiências reais, com as
quais está em constante interação.33

32
Essa é justamente uma das críticas à teoria kleiniana feitas por Newmann, ele considera que não há no início
divisão entre mundo externo e mundo interno e portanto não se pode falar em mecanismo de projeção e
introjeção.
33
Segal, H., Introdução à Obra de Melanie Klein, p. 24.
29
A fantasia inconsciente está, portanto, constantemente alterando a
percepção ou interpretação da realidade e vice-versa: a realidade exerce seu
impacto sobre a fantasia inconsciente.
Klein postula então a existência de um ego primitivo desorganizado mas
com tendências à integração, exposto desde o nascimento à ansiedade provocada
pela polaridade inata dos instintos. Quando confrontado com a ansiedade
produzida pelo instinto de morte, o ego o deflete, isto é, se divide (splits) e
projeta essa sua parte para fora, no objeto original, o seio, que se torna então
ameaçador para ele. Ao mesmo tempo estabelece uma relação com o objeto
ideal — isto é, a libido também é projetada para criar um objeto que irá
satisfazer o esforço instintivo do ego pela preservação da vida.
O ego tem assim, desde cedo, uma relação com dois objetos: o seio é
dividido em seio ideal e seio persecutório. A ansiedade predominante aí é de que
os objetos persecutórios entrarão no ego e dominarão e aniquilarão tanto o
objeto ideal quanto o eu. Por causa dessa ansiedade de tipo paranóide e porque
há um estado de divisão, Melanie Klein deu a essa posição o nome de posição
esquizo-paranóide.
Ela mostra que a partir dessa projeção de partes do eu no objeto externo
desenvolve-se um mecanismo de identificação projetiva. Considera que essa é a
forma mais primitiva de formação simbólica: "...pela projeção de partes de si
mesmo no objeto e pela identificação de partes do objeto como partes do eu
(self) o ego forma seus primeiros e mais primitivos símbolos." 34
A divisão que acontece na fase esquizo-paranóide e que permite ao ego
emergir do caos e ordenar suas experiências é a base de uma faculdade de
discriminação cuja origem é a diferenciação primitiva entre bom e mau.
Há desde o início da vida uma tendência para a integração. Se as
condições do desenvolvimento são favoráveis, o bebê vai sentir que o objeto
34
Segal, H., op. cit., p. 48.
30
ideal e seus impulsos libidinais são mais fortes que o objeto mau e seus impulsos
maus — ele vai ser então cada vez mais capaz de identificar-se com o objeto
ideal, o ego ficará cada vez mais forte.
A posição depressiva é a fase em que o bebê reconhece um objeto total e
se relaciona com esse objeto. É o momento em que o bebê começa a reconhecer
sua mãe, o que significa que ele a reconhece como objeto total. Isso acontece
por volta dos seis meses de vida.35 Quando o ego se torna mais integrado,
quando processos de projeção diminuem, o bebê descobre sua própria realidade
psíquica "ele (o bebê) se torna consciente de si mesmo e de seus objetos como
separados dele ." 36
A medida que o ego se torna mais organizado, que as projeções se
enfraquecem, a repressão toma o lugar da divisão. Para poupar seus objetos o
bebê em parte inibe seus instintos e em parte os desloca ou substitui, o que é o
início da capacidade de formação simbólica. “Cada aspecto do objeto, cada
situação a que se tem de renunciar no processo de crescimento dá origem à
formação simbólica.” 37 (op. cit., pg 88)
Para Melanie Klein a formação simbólica é produto de uma perda, um
trabalho criativo que envolve sofrimento, na medida em que a criança tem de
renunciar a um objeto desejado e de alguma forma recriá-lo dentro de si. Klein
traz, então, uma idéia muito semelhante àquela formulada por Winnicott ao
dizer que se a mãe for suficientemente boa a criança vai poder compensar suas
deficiências através da atividade mental.
Os dois autores localizam a possibilidade de surgimento do mental
(Winnicott) e da formação simbólica (Melanie Klein) no início da capacidade
do bebê de reconhecer ao mesmo tempo a falta de algo e a possibilidade interna

35
Novamente aqui a marca dos seis meses de vida como um momento especial na vida do bebê.
36
Segal, H., op. cit., p. 86.
37
Segal, N., op. cit., p. 88.
31
de lidar com essa falta. O encontro da falta com a nascente possibilidade de
transformá-la cria o eu.

JUNG E OS JUNGUIANOS

32
Em sua obra, Jung pouco falou sobre a origem e o desenvolvimento do
ego (para ele, centro da consciência) a partir do inconsciente. Apesar disso ele
está o tempo todo preocupado com a relação que se estabelece entre consciente e
inconsciente.
Falando sobre psicologia analítica e educação num congresso
internacional em Londres (1924), Jung disse que o inconsciente é a mãe da
consciência: esta surgiria a partir do inconsciente durante a infância, assim como
ocorreu nos primórdios da humanidade. Diz ele:

Há duas maneiras distintas através das quais surge a


consciência. Uma é um momento de alta tensão emocional,
comparável à cena do Parsifal quando o herói, no momento
da maior tentação, subitamente compreende o significado da
ferida de Anfortas. A outra maneira é um estado de
contemplação, no qual as idéias passam pela mente como
imagens oníricas. Subitamente há um flash de associação
entre duas idéias aparentemente desconectadas e isso tem o
efeito de liberar uma tensão latente. Tal momento funciona
como uma revelação. Em ambos os casos parece haver uma
descarga de tensão seja interna ou externa, que produz
38
consciência.”

É importante notar que Jung aqui reafirma a idéia de que assim como a
evolução das espécies se repete no desenvolvimento embrionário do indivíduo,
também o desenvolvimento psíquico de uma criança a partir do inconsciente
segue os mesmos princípios.

38
JUNG, C. G., CW,VOL.17, par. 207.
33
Em outros momentos, Jung fala da consciência como ilhas emergindo
do mar:

Por causa de sua indefinida extensão o inconsciente pode ser


comparado ao mar, enquanto a consciência é como uma ilha
surgindo no meio dele... Não é de forma alguma uma relação
estável, mas um incessante brotar, uma constante troca de
conteúdos, porque, como o consciente, o inconsciente nunca
descansa, nunca fica estagnado. O inconsciente vive e
trabalha em um estado de perpétua interação com o
consciente. 39

Jung fala da importância da inter-relação consciente — inconsciente


para a vida psíquica e para o surgimento da consciência, cujo centro seria o ego.
Enfatiza sempre o movimento dinâmico que se estabelece entre essas duas
instâncias mostrando as possibilidades criativas que esse movimento favorece.
Em um sistema que está em constante transformação, mutação, o ego seria o
lugar do reconhecimento, onde o sujeito sabe que é. Alerta também para o fato
de que só a partir do surgimento da consciência pode-se falar em relacionamento
psicológico.

Até onde sabemos, consciência é sempre ego-consciência.


Para ser capaz de falar de eu-mesmo devo ser capaz de me
distinguir dos outros. Relacionamento só pode existir onde
essa distinção existe.40

39
JUNG,C.C., CW VOL 17, par. 102.
40
JUNG, C. G., CW vol17, par.326.
34
Vimos, no início deste trabalho que, para definir consciência, Jung fala
várias vezes em ego. É importante então entender o que ele quer dizer com esse
conceito e qual sua importância para a teoria junguiana.

Por ego eu entendo um complexo de idéias que constitui o


centro de meu campo de consciência e parece possuir um alto
grau de continuidade e identidade. Portanto eu também falo
de um complexo de ego. O complexo de ego é tanto um
conteúdo como uma condição da consciência, porque um
conteúdo psíquico só é consciente para mim se estiver
relacionado ao meu complexo de ego. Portanto o ego é
apenas o centro de meu campo consciente, ele não é idêntico
com a totalidade de minha psique, sendo meramente um
complexo entre outros complexos. Eu portanto faço uma
distinção entre o ego e o self, uma vez que o ego é apenas o
sujeito de minha consciência enquanto o self é o sujeito da
minha psique total, que também inclui o inconsciente. Neste
sentido, o self seria uma entidade ideal que abarca o ego.i

Jung destaca duas facetas da consciência: uma é a discriminação, a


capacidade de distinguir o ego do não-ego: a outra seria a capacidade de manter
as várias escolhas, uma vez discriminadas, numa espécie de equilíbrio, e facilitar
a produção de novos conteúdos psíquicos e portanto de novas atitudes
conscientes. Para que desenvolvimento e transformações possam ocorrer, para
que as vivências possam ter sentido é necessário que exista um ego consciente
ao qual possamos nos referir. Ficaremos neste trabalho com essa idéia: o ego é
o centro do que podemos chamar de campo consciente e para que um conteúdo

35
ou uma vivência possam ser conscientes é necessário que eles de alguma forma
se relacionem com o ego.

EDWARD F. EDINGER

Edward F. Edinger, em seu livro “A criação da consciência”, analisa a


relação consciente-inconsciente e a importância do ego para essa dinâmica. A
idéia central do livro é que o objetivo da vida humana é a criação da
consciência. Segundo ele, a palavra-chave é consciência. Sua vivência compõe-
se de dois fatores: o "conhecimento" e o "estar com", isto é, conhecer num
contexto de dualidade. A consciência nasce da experiência dos opostos . Para ele
consciência é a substância psíquica ligada a um ego, os conteúdos psíquicos
atualizam-se e tornam-se substanciais quando fazem conexão com um ego,
quando ingressam no conhecimento consciente do indivíduo.

A união de opostos no vaso do ego é o aspecto essencial. A consciência


é a terceira coisa a emergir do conflito da dualidade .A partir de todos os
conflitos

paralisantes existe a possibilidade de emergir a condição terceira, a condição


transcendente que constitui um novo quantum de consciência.

O novo mito, que Edinger acredita ser aquele que Jung de certa forma
encarnou, postularia, segundo esse autor, a idéia de que cada indivíduo tem uma
parte singular no processo de criação da humanidade como um todo e que a

36
soma da consciência criada ao longo da vida é depositada no tesouro coletivo da
psique arquetípica. Cada incremento de consciência aumentaria o tesouro
coletivo — esta seria a versão moderna e mais modesta da idéia de existência de
uma alma imortal. Edinger cita Jung falando sobre o psicoterapeuta:

Ele não trabalha apenas para este ou aquele paciente


específico, que pode ser bastante insignificante, mas também
para si próprio e por sua própria alma, e, assim fazendo,
talvez esteja depositando uma partícula infinitesimal na
balança da alma da humanidade. Por pequena e invisível que
possa ser, essa contribuição ainda constitui um opus
magnun.41

A palavra consciência — conscious — deriva de con ou cum que


significa "com" ou "juntamente com", e scire "saber" ou "ver". Assim, o sentido
radical de consciência, em ambas as acepções, é "conhecer com" ou "ver com"
um "outro". "A consciência é a experiência de conhecer juntamente com um
outro, isto é, num contexto de dualidade.” 42

Para que possa haver conhecimento é imprescindível uma diferenciação


entre o eu e o outro. Num todo indiferenciado não há sujeito e objeto, portanto
não há a possibilidade de consciência porque não há um eu que conheça.
Edinger aqui cita Neumann dizendo que a separação entre o Pai Céu e a Mãe
Terra, ou entre a luz e a escuridão, é o evento cosmogônico original que assinala
o nascimento da consciência enquanto capacidade de conhecer. “Esse ato de
cognição, de discriminação consciente, divide o mundo em opostos, pois a
41
JUNG, C.G., CW vol 16, par. 449.
42
EDINGER, E., (1993). A Criação da Consciência , São Paulo, Cultrix, p. 34.
37
experiência do mundo só é possível através dos opostos.” 43

Edinger aponta também o espelho como um símbolo desse processo de


separação entre sujeito e objeto, conhecedor e conhecido. O espelho representa a
capacidade da psique de perceber objetivamente. O autor cita o capítulo 95 dos
Atos de João em que Jesus diz a seus discípulos: “Sou um espelho para vós que
me percebeis” e o capítulo 96: “Mira-te em mim... observa o que faço, pois é
tua esta paixão da carne que estou prestes a sofrer".

Nesse texto, Jesus instrui os discípulos sobre como separar o sujeito do


objeto, como perceber a experiência como um espelho que proporciona uma
imagem do sentido e não como uma angústia caótica.

Diz Edinger:

Considero que o escudo espelhado de Atena simboliza, em


última instância, o processo da própria cultura humana, que
redime o homem do horror medusiano destrutivo do ser em
estado bruto. A linguagem, a arte, o drama e a aprendizagem
proporcionam o espelho de Atena à humanidade, permitindo
que a psique emerja e se desenvolva..44

Edinger afirma que o processo de conhecer é um processo de poder, há


dois papéis ou duas polaridades nesse processo. Conhecer significa dominar o
objeto conhecido pelo logos e ser conhecido significa ser o alvo do conhecedor.
A própria definição de consciência implica "estar com", que é o dinamismo da
vinculação, princípio da relação. Na palavra consciência estão unidos os dois
princípios — logos e eros.

A experiência de conhecer com seria a capacidade de participar de um


43
EDINGER, E., op. cit., p. 35.
44
EDINGER, E., op. cit., p. 37.
38
processo de conhecer simultaneamente como sujeito e objeto, conhecedor e
conhecido. Isso só é possível na relação com um objeto que possa ser também
um sujeito, em um relacionamento com um outro externo e/ou também com um
outro interno (eu-self). O ego tem para com a totalidade (self) a responsabilidade
de ser seu sujeito conhecedor, bem como seu objeto conhecido. Seria um re-
conhecimento mútuo entre o ego e a totalidade — self.

Edinger repete uma colocação que Jung fez em suas memórias, dizendo
que "a finalidade da vida humana é criar consciência".
Cita então trecho de uma carta de Jung em que este diz: “O homem é o espelho
que Deus sustenta diante d’Ele, ou o órgão sensorial com que apreende Seu
ser”.45 Esta seria a nova meta do esforço humano, seria o correspondente
moderno da antiga noção de labutar nas vinhas do senhor e a nova resposta para
a indagação sobre o sentido da vida.

NEUMANN

A consciência da humanidade se sente, com toda razão, como


filho dessas profundezas primordiais, porque não apenas na
história da humanidade a consciência é um produto tardio do
45
carta de 28 de março de 1953, citada por JAFFÉ, A ., (1972), Phases in Jung's Life, Spring 1972, p.136.
39
ventre materno do inconsciente, mas também, em toda a vida
espiritual, a consciência re-experimenta o seu emergir do
inconsciente no crescimento da infância- e toda noite, no
sono, morrendo com o sol, ela torna a mergulhar nas
profundezas do inconsciente, renascendo pela manhã e
começando o dia mais uma vez.46

Segundo Neumann a consciência do ego tem de passar pelos mesmos


estágios arquetípicos pelos quais se deu a evolução da consciência na vida da
humanidade. O desenvolvimento ontogenético é uma recapitulação modificada
do desenvolvimento filogenético. Utiliza o mito do herói como uma metáfora
arquetípica para o desenvolvimento da consciência. O herói é aquele que faz
uma jornada individual, das sombras para a luz, e surge inaugurando um novo
momento mítico.
Arquétipo é definido aqui como elemento estrutural do inconsciente
coletivo, formas pictóricas dos instintos. Assim, os arquétipos, como órgãos
psíquicos, se articulariam uns com os outros determinando a maturação da
personalidade, da mesma forma como fazem os órgãos do corpo.

A consciência do ego se desenvolve mediante a passagem por


uma série de ‘imagens eternas' e o ego, transformado nessa
passagem, experimenta constantemente uma nova relação
com os arquétipos. A relação do ego com a natureza eterna
das imagens arquetípicas é um processo de sucessão
temporal, isto é, ocorre em estágios. 47

46
NEUMANN, E. (1995). Historia da Origem da Consciência , São Paulo, Cultrix, p. 33.
47
NEUMANN. E., op. cit., p. 14.
40
A evolução criativa da consciência é a realização peculiar do homem
ocidental. O sistema consciente ampliou cada vez mais suas fronteiras através da
assimilação de um número cada vez maior de conteúdos do inconsciente, num
processo contínuo que abarca milhares de anos. "O ego tem de absorver, em
cada período de seu desenvolvimento, parcelas essenciais do passado cultural
que lhe é transmitido pela educação a partir do cânone dos valores da sua
cultura.”48
Em todos os povos e religiões a criação aparece como a criação da luz: o
princípio do mundo é o advento da luz, sem a qual nenhum processo do mundo
pode ser visto. O surgimento da consciência manifestada como luz em contraste
com as trevas do inconsciente é o verdadeiro objeto da mitologia da criação.
O primeiro estágio de desenvolvimento da consciência seria o urobórico
— motivo universal da serpente enrolada em um círculo mordendo a própria
cauda — onde não haveria diferenciação, discriminação, a psique é ainda
idêntica e indistinta do mundo e o ego se encontra contido no inconsciente. A
existência na uroboros é a representação simbólica do estado inicial em que não
há diferenciação. Seria um estado pré-natal, existência no paraíso, perfeição
original. Não há nenhum tipo de consciência, este é um estágio anterior à
separação dos opostos.
Um dos símbolos dessa perfeição original é o círculo ou o ovo, o
rotundum, o redondo da alquimia. “São aspectos do autocontido, sem começo
49
nem fim”. Não há tempo, nem espaço, tudo isso só pode surgir com a luz.
“Embora sendo algo estático e eterno, imutável e portanto sem história, o
repouso absoluto é, ao mesmo tempo, o lugar de origem e a célula semente da

48
NEUMANN. E., op. cit., p. 15.
49
NEUMANN. E., op. cit., p. 27.
41
criatividade...É homem e mulher gerando e concebendo, devorando e dando a
luz, ativa e passiva,, em cima e embaixo, ao mesmo tempo.” 50
Ao nascer, o bebê está contido no que ele chama de estado uterino-
social, ainda não destacado da mãe, não diferenciado. Esse período seria
caracterizado por um domínio da relação primal com a mãe, moldado já pela
cultura, uma vez que ela e sua relação com esse bebê estão inseridas num
contexto sociocultural. Neumann diz que já nesse momento ao lado de uma
tendência de adaptação ao coletivo tem início o processo de automorfismo. É
um processo natural que ocorre no indivíduo como a necessidade de formar o
próprio ser a partir dos elementos particulares que o constituem.
O mundo é experimentado como todo-envolvente, o ego infantil emerge
“como uma ilha no oceano do inconsciente apenas ocasionalmente, voltando a
afundar, assim também o homem primevo experimenta o mundo”.51
Nesse estágio inicial não há diferenciação entre o homem e o mundo, o
indivíduo e o grupo, a consciência do ego e o inconsciente. O ego é germinal e a
consciência ainda não se desenvolveu, não há tensão entre ela e o inconsciente.
Paulatinamente essa ego-consciência vai se destacando e se relacionando com o
inconsciente de onde surgiu, num movimento alternado de fusão-separação pelo
qual pouco a pouco vai conseguindo crescente autonomia.
A união original do estado embrionário começa a se dissolver. A partir
de experiências tanto internas quanto externas o ego-consciência vai-se
destacando, o ego então nascente torna-se consciente das qualidades prazer-dor,
entra em contato com a ambivalência, tem uma vivência polarizada regida pelo
arquétipo da grande mãe entrando então na fase chamada de uroboros-
matriarcal. A consciência é ainda uma pequena ilha na vastidão do oceano

50
NEUMANN. E., op. cit., p. 28.
51
NEUMANN. E., op. cit., p. 31.

42
primal, uma consciência de ego ainda não desenvolvida, enredada pela natureza
e pelo mundo.

No decorrer da fase da Grande Mãe urobórica, a consciência


do ego, na medida em que esteja presente, ainda não
desenvolveu o seu próprio sistema e não possui existência
independente. Podemos apenas imaginar a emergência
primordial dos elementos da consciência do ego a partir da
analogia que acontece hoje, quando, em momentos
particulares de exaltação emocional ou quando os arquétipos
irrompem, ou seja, em determinadas situações
extraordinárias, advém uma iluminação, uma elevação
momentânea da consciência, como a ponta de uma ilha que
alcança a superfície, uma súbita revelação que interrompe o
fluxo monótono da existência inconsciente52.

Nessa fase, a existência é dirigida pelo inconsciente. Há então o que


Neumann chama de centroversão, que seria a tendência inata do todo a
estabelecer a unidade de suas partes e que num estágio posterior se manifesta
53
como um centro diretivo, de consciência, no ego e centro psíquico no self .
Diz o autor que no nível urobórico, quando não há ainda diferenciação a
sensação geral do corpo é a base natural da sensação de personalidade. Os
órgãos dos sentidos estariam então coordenados com a consciência; o registro e
a combinação de estímulos interiores e exteriores e a reação a eles, no curso de
milhões de anos de diferenciação, estão gravados na estrutura do sistema
corporal de forma inconsciente.

52
NEUMANN. E., op. cit., pp.208/209.
53
Algo semelhante à tendência à integração de Melanie Klein.
43
A psique , aqui, é construída através de uma série de reflexos;
responde a estímulos com reações inconscientes, mas sem
nenhum órgão central onde estímulo e reação sejam
representados. Somente à medida que se desenvolve a
centroversão, dando origem a sistemas de alcance e
graduação crescentes, forma-se a representação do mundo em
imagens e o órgão que o percebe, isto é, a consciência.54

A consciência em evolução é tão aberta a estímulos internos quanto


externos; no estágio urobórico de participação mística não era possível
discriminar a fonte dos estímulos-imagens porque não era possível perceber a
existência do "fora" como algo distinto do "dentro". A consciência se manifesta
como um sistema de registro do mundo exterior e o corpo como campo de
estímulos interiores. É uma posição de distanciamento, condição básica para seu
fortalecimento e diferenciação. Seu funcionamento depende da possibilidade
dessa separação.
A função da consciência do ego é não apenas perceber mas também
assimilar sinais de alarme como dor e desconforto; o ego como um órgão deve
ficar distanciado, exercendo controle em função do todo mas ao mesmo tempo
mantendo-se distinto da totalidade. Esses sinais são enviados pela centroversão,
indicando uma perturbação do equilíbrio inconsciente. “Somente à luz da
consciência pode o homem reconhecer. E esse ato de cognição, de
discriminação consciente, divide o mundo em opostos, tendo em vista que a
experiência do mundo só é possível por meio dos opostos.”55

54
NEUMANN. E., op. cit., p. 204.

55
NEUMANN. E., op. cit., p. 88.
44
Conforme vai-se desenvolvendo, o ego precisa encontrar seu espaço
próprio, há então uma luta com a Grande Mãe em seu aspecto terrível e
devorador do uroboros. Esse aspecto do uroboros é experimentado como a
tendência do inconsciente a destruir a consciência. O temor do ego em relação à
sua possível destruição leva à resistência e portanto a seu fortalecimento, esse é
um sintoma da centroversão que busca proteger o ego, favorecendo sua saída do
inconsciente que quer dominá-lo e preservando sua independência em relação ao
exterior e ao interior, sendo então cada vez mais representante da totalidade.
Há uma tensão crescente entre o ego-consciência que quer se
desenvolver e o inconsciente que o quer destruído.

Por conseguinte, ao lado do processo de integração, que


juntou uma infinidade de células e sistemas para formar o
universo da unidade psique-corpo, o processo de
diferenciação leva à autonomia do sistema de consciência,
oposto ao inconsciente. Ambos os processos são a expressão e
o efeito da centroversão. O sistema consciência não é apenas
um comutador central destinado ao estabelecimento de
relações entre interior e exterior; ele é ao mesmo tempo a
manifestação da tendência do organismo vivo a criar
experimentos novos.56

Com o fortalecimento cada vez maior da consciência há a passagem do


estado urobórico para o estágio da Grande Mãe: nesse momento ocorre um
desenvolvimento adicional do ego. Enquanto no uroboros a não-diferenciação
ainda pode ser vivenciada de forma positiva, no estágio da Grande Mãe a

56
NEUMANN. E., op. cit., p. 219.

45
dependência logo assume uma forma negativa. A independência da consciência
só vai alcançar seu momento crítico com o que Neumann chama de mito do
herói. O autor utiliza então a imagem do herói como uma metáfora para esse
processo de desenvolvimento da consciência do ego, dizendo que só então a
consciência alcança seu momento crítico.
Para vencer e tomar seu lugar no mundo o filho-herói-consciência
precisa se expor à força da mãe-dragão sem se deixar destruir. O incesto heróico
é a possibilidade vivida pelo ego de mergulhar na mãe-uroboros-inconsciente e
experimentar-se como algo duradouro, imortal e indissolúvel, utilizando para
isso funções características da consciência como a possibilidade de olhar e
reconhecer. O ego sai então dessa luta cada vez mais forte e discriminado.
O passo seguinte do desenvolvimento será a separação da unidade
consciente-inconsciente em dois sistemas. Esta é a tarefa primeira da
consciência — o fortalecimento do sistema do ego, que assim adquire
consciência de ser distinto e peculiar. O herói é, em sua luta com o dragão, o ego
determinado e discriminador que combate até alcançar a vitória — que seria a
sua diferenciação da totalidade inconsciente e formação como sistema
independente. Diz Neumann: “A tarefa primeira da consciência no tocante às
tendências subjugadoras do inconsciente consiste principalmente no
distanciamento, isolamento e defesa, isto é, no fortalecimento da firmeza do
ego.” 57
O autor descreve alguns processos através dos quais é feita a separação
entre consciente e inconsciente. Um deles é a fragmentação, processo mediante
o qual a consciência busca arrancar do inconsciente o material dos arquétipos a
fim de agregá-lo a seu próprio sistema.

57
NEUMANN. E., op. cit., p. 228.

46
A existência pura no inconsciente é pré-humana, pois o mundo só existe
na medida em que é objeto de cognição de um ego. Um mundo diferenciado é
fruto de uma consciência autodiferenciadora. Na medida em que a consciência
não pode entrar em contato direto com o inconsciente, ela vai se apropriando de
partes dele, experimentando-o de forma relativa. Neumann sugere uma analogia
entre esse processo e a digestão quando os alimentos são decompostos em seus
componentes básicos para ser digeridos.
Ao mesmo tempo acontece o que ele chama de processo de deflação do
inconsciente, quando é experimentada uma tendência a exaurir a emocionalidade
original em favor da razão. Há então a passagem do homem medular ao homem
cortical. Esse processo leva a uma repressão da reação instintiva favorecendo
uma atuação mais consciente. É papel da consciência colocar sua própria
atuação objetiva no lugar da reação instintiva, que, muitas vezes, não se adapta à
situação do indivíduo não mais primitivo. Essa vivência não deve ser confundida
com a racionalização. Não se trata de colocar a razão acima de tudo, mas sim de
“consolidar o sistema da consciência e represar o perigo da inundação e
invasão pelo lado inconsciente.” 58
Nesse momento ocorre o que Neumann chama de personalização
secundária de conteúdos originalmente transpessoais. “Em lugar de sermos
possuídos por um arquétipo, agora temos uma idéia, ou melhor ainda,
perseguimos uma idéia.”59 É a capacidade do homem de tomar os conteúdos
primários e transpessoais e reduzi-los a fatores pessoais. O homem começa por
experimentar o transpessoal fora de si mesmo e termina por introjetá-lo,
tornando-o conteúdo psíquico pessoal. Através de atos de introjeção e
assimilação a psique vai-se construindo e surge a "personalidade" e a esfera
psíquica pessoal pertencentes ao ego.

58
NEUMANN. E., op. cit., p. 240.
59
NEUMANN. E., op. cit., p. 241.
47
Essa progressiva assimilação de conteúdos inconscientes
constrói pouco a pouco, ao longo da história humana, a
personalidade, criando assim um sistema psíquico muito
amplo, que forma então a base de uma história psíquico-
espiritual interior da humanidade, que se torna, de forma
crescente, independente da história coletiva externa.60

Dessa forma o ego e a consciência vão ficando cada vez mais


fortalecidos e dissolvem com sua capacidade discriminadora a indeterminação
do mundo inconsciente. A consciência e o inconsciente são agora dois sistemas
separados, o ego e a consciência com suas funções discriminadoras formam um
órgão de adaptação à realidade.
Ao mesmo tempo, ao lado dessa separação cada vez maior, o sistema
ego-consciente começa a perceber que a realidade também está presente no
inconsciente como idéias ou arquétipos dominantes da experiência. Deve então
funcionar em relação ao psíquico-objetivo-interior da mesma forma que diante
do físico-objetivo-exterior. O ego com sua relativa independência deve ser capaz
de dirigir a consciência e a libido disponíveis para o foco de fascínio.
Para que a separação entre os dois sistemas acontecesse foi necessária
uma grande divisão, um esforço heróico através do qual o ego, para se
fortalecer, excluiu do âmbito do consciente conteúdos potencialmente perigosos
para a consciência. Agora é o momento de sair da unilateralidade e entrar em
contato com esses conteúdos estabelecendo uma relação dialética entre
consciente e inconsciente. "A formação e consolidação do sistema da
consciência e o esforço pela sua autonomia e preservação tem tanta

60
NEUMANN. E., op. cit., p. 243.

48
importância na história do desenvolvimento psíquico quanto a relativização
dessa autonomia devido à constante tensão entre consciência e inconsciente". 61
A passagem do ser humano em seu desenvolvimento ontogenético pelas
fases arquetípicas do desenvolvimento da consciência ocorre de maneira
singular "... o grau de individualidade da experiência das fases arquetípicas
depende da personalidade, que tem uma de suas partes formada pelo
inconsciente pessoal". 62
A personalidade em desenvolvimento vai incorporando amplas áreas do
inconsciente. A capacidade de síntese do ego vai reconstruir a cada momento
uma nova totalidade a partir das partes decompostas. A atividade sintética, como
uma das funções elementares da consciência, pressupõe a faculdade de
objetivação . Diz Neumann :

Ao chegar ao seu desenvolvimento máximo, essa crescente


auto-objetivização termina por levar a consciência do ego a
abandonar a sua egocentração e deixar-se integrar na
63
totalidade da psique — o self.

MICHAEL FORDHAN

Fordhan parte da idéia do self como uma totalidade organizadora que


inclui os sistemas consciente e inconsciente, presentes desde o início da vida da
criança e do qual derivam todos os processos maturacionais. Os pais têm o papel

61
NEUMANN. E., op. cit., p. 247.
62
NEUMANN. E., op. cit., p. 250.
63
NEUMANN. E., op. cit., p. 256.

49
de facilitadores e continentes desse processo de maturação. Segundo esse autor,
o processo de individuação atua desde o início da vida.
O processo básico subjacente à individuação na infância, adolescência e
maturidade é o mesmo: uma progressão dos estados de identidade primária e
pensamento mágico em direção a uma separação desse estado levando à
maturação do ego e expressa por uma ampliação da consciência. Fordhan diz
que o objetivo do desenvolvimento da criança é alcançar maturidade e para isso
é necessário fortalecer o ego de maneira que este possa exercer controle sobre o
ambiente interno e o externo.
A criança é, portanto, um indivíduo singular desde o início de sua vida,
com uma vida inconsciente separada e diferente daquela da mãe. O bebê nasce
com um “aparato de objetos”, uma mente com a qual se adapta ao novo meio
ambiente. Diz ele: “Um feto inicia a vida a partir de uma unidade primária na
qual consciente e inconsciente não são diferenciados . Eu deduzo portanto que
o estado primário de uma criança é um ser integrado e o integrador é o self e
não o ego”.64 Segundo ele o conceito junguiano de ego pode ser expandido da
seguinte forma: “ego é a soma dos atos perceptuais e descargas motoras que
são ou podem vir a ser conscientes”. 65
O primeiro estado da criança é um ser integrado e o integrador é o self e
não o ego. O bebê é uma unidade, um self total, do qual emergem os arquétipos
e o ego. A mãe saudável se relaciona com o bebê como uma pessoa, ele é uma
unidade psicossomática diferente dela mesma, ela se relaciona com o self que
ele é e que ela empaticamente conhece.
Fordhan diz que não é possível saber exatamente quando aparece algum
tipo de consciência, pois ela se desenvolve a partir do trabalho do self e seus
deintegrados, os arquétipos e o ego. Ele define arquétipo como:

64
FORDHAN, M., (1989)The infant's reach, Psychological Perspectives ,p.64.
65
FORDHAN, M., (1969) , Children as Individuals, New York, G. P. Putnan's Sons, p. 93.
50
(...) predisposição para desenvolver idéias arcaicas,
sentimentos e fantasias que não são nem implantadas nem
introjetadas; podem ser influenciadas e refinadas pela
educação que, por outro lado, como em um sistema de
feedback, fornece imagens adequadas através das quais os
arquétipos do inconsciente podem encontrar expressão na
consciência.66

Ele diz que existe um self primário, um integrado psicossomático —


uma espécie de mapa para maturação; a partir dessa observação Fordhan
enfatiza a idéia de que a criança deve ser vista como separada de sua mãe,
mesmo que não se possa pensar em uma criança sem uma mãe. Essa idéia
pressupõe que o bebê tem limites e individualidade próprios, desde o início da
vida, que vão formar as bases para o mundo interno.
O self deve ser entendido como um sistema dinâmico que deintegra e
integra numa seqüência rítmica. Num primeiro momento é um integrado, um
estado estável que vai fazer o movimento de deintegração para se diferenciar.
Esses dois movimentos é que vão fazer com que o self se organize e diferencie,
reforçando a distinção entre os mundos interno e externo, self e não-self:

(...) o self primário ou original da criança é radicalmente


rompido no nascimento, no qual a psique-soma é inundada
por estímulos que dão origem a uma ansiedade "prototípica".
A seguir se restabelece um estado estável e se completa a
primeira seqüência clara de distúrbio seguido de repouso ou
66
FORDHAN, M., (1976), The Self and Autism, The Library of Anaytical psychology, vol. 3, London, Willian
Heineman Medical Books Ltda.
FORDHAN, M., (1969) , op. cit, p.103.
51
estado estável. A seqüência se repete inúmeras vezes durante
a maturação e as forças que a motivam são chamadas
deintegrativas e integrativas. 67

Durante as primeiras semanas de vida a criança se desenvolve em


direção a um estado de "identidade" com o meio ambiente e particularmente
com sua mãe. A criança só pode se fundir (fusionar) com as partes do meio
ambiente que correspondem a suas próprias necessidades, o que não
corresponde é ignorado por ela.

(...) cada criança expressa sua individualidade dentro do


sistema de comportamento e fantasias de sua mãe, mas desde
o início ela também desenvolve sistemas de percepção,
comportamento e fantasia característicos da infância e
peculiares a si mesmo. Eles envolvem deintegrar a partir de
sua unidade primária — self — e através de novos atos
integrativos formar a base do ego da criança , sua experiência
de si-mesmo e sua continuidade de ser no espaço e tempo. 68

Estados instáveis não são necessariamente desintegrações mas muitas


vezes mudanças de orientação que envolvem num primeiro momento a pessoa
como um todo e mais tarde partes dela num processo de maturação. No início a
estabilidade é mantida pelo self e então o ego, com seu fortalecimento, direciona
e auxilia a estruturação da psique colaborando para esse estado mais estável.
Para Fordhan a possibilidade de reconhecer o que está dentro e o que
está fora se dá a partir de — bem sucedidas experiências de deintegração e
67
68
FORDHAN, M., (1976) , op. cit, p. 39.

52
integração que possibilitam à criança a percepção do que é ela mesma e do que é
o mundo externo.
Nas primeiras semanas e meses de vida o self vai deintegrando: simples
descargas instintivas se dividem em opostos, o que permite à criança organizar
suas experiências em objetos bons e maus (esta é apenas uma aproximação útil
para a compreensão do que acontece com a criança). Cada objeto representa
uma parte do self e deve ser visto como objeto parcial; gradualmente, emergem
várias formas de lidar com esses objetos. Eles podem ser projetados, por
exemplo, no seio, que se torna então idealizado ou ameaçador, ou introjetados,
trazendo a sensação de si mesmo como bom ou mau. “Tudo isso implica que as
experiências de objetos parciais bons e maus se tornaram representações e
quando isso acontece um campo de consciência foi desenvolvido.”69 Todos esses
processos são inconscientes, baseados em estruturas arquetípicas que
deintegraram do self nos primeiros estágios de maturação. Não é possível ainda
falar em um ego e portanto em sujeito e objeto. É um estado intermediário, a
consciência apenas começa a se desenvolver.
Fordhan diz que por volta dos sete meses uma mudança radical acontece
— o reconhecimento da mãe como um objeto libidinal. É uma mudança como a
da loucura e desintegração para a sanidade e integração. A criança se torna aos
poucos capaz de lidar com objetos totais, o senso de realidade vai aumentando.
A criança é agora capaz de perceber que o objeto bom e o objeto mau, aquele
que satisfaz ou que frustra são o mesmo objeto.
Ele resume esse processo da seguinte forma:

A unidade primária do self levou através da deintegração à


identidade primária com a mãe, e a partir daí surgiu uma
situação a partir da qual as estruturas se desenvolveram. Elas
69
FORDHAN, M., (1969) , op. cit, p. 117.
53
se tornaram integradas em uma totalidade na qual o ego se
tornou estável e teve importância capital na organização de
suas partes. O estado descrito por Jung como identidade com
o meio ambiente foi dissolvido pela primeira vez.70

Consciência é algo a ser desenvolvido, todos os autores citados falam


desse movimento de vir-a-ser da consciência.O ser humano nasce com uma
disposição para seu desenvolvimento, ela não existe como algo pronto, uma
consciência em si,com existência independente. Para se falar nela é necessário
que se fale de uma entidade que a exerça, que a focalize. Quando se fala em
desenvolvimento da consciência a idéia sempre implícita é que existe uma
entidade egóica, um eu, que vai funcionar como organizador ou centro dessa
consciência, que então se desenvolve na medida em que puder estar relacionada
a esse centro-eu.
Portanto, o processo de desenvolvimento da consciência é sempre visto
como o fortalecimento de uma instância que possa se relacionar, cada vez mais,
com conteúdos tanto do mundo interno quanto do mundo externo— que de
70
FORDHAN, M., (1969) , op. cit, p. 123.
54
outra maneira seriam inconscientes. Entende-se aqui por inconsciente tudo
aquilo que não está acessível ao campo consciente, isto é, o que em determinado
momento não está relacionado a essa instância egóica — eu. Tornar-se
consciente então é começar a separar-se, poder fazer uma distinção entre o eu e
o mundo externo e o eu e o mundo interno.
Esse um processo acontece a partir do nascimento, momento em que o
ser começa a tomar forma no confronto com a sociedade, quando podemos
começar a ver uma individualidade se delimitando. Na verdade questões como a
da inserção dessa família na sociedade,variantes culturais que a acompanham, já
estão, antes mesmo do nascimento, moldando de alguma forma a vida dessa
criança. Para cada uma das várias teorias esse processo se dá de forma diferente,
mas acontece sempre, invariavelmente, a partir do confronto desse eu incipiente
com os conteúdos tanto do mundo interno quanto do mundo externo.
Alguns autores, como Winnicott, Melanie Klein e Lacan, falam de um
momento particular da criança aos seis meses de vida quando dá uma espécie de
salto e começa a se perceber de forma destacada do resto do mundo.
Lacan fala do estádio do espelho, quando o seu se reconhece pela
primeira vez. Melanie Klein falado momento em que o bebê começa a
reconhecer sua mãe, quando então seu ego está mais integrado, capaz de
reconhecer seus objetos fora dele. Winnicot traz o momento em que através do
jogo, nessa mesma época, o bebê mostra sua compreensão de que há um dentro
e um fora, portanto há algo que é ele e algo que é o mundo fora dele. É o marco
de desenvolvimento do eu, quando então pode ter início uma relação de pessoa
total tanto com o mundo externo quanto com o mundo interno.
Jung, Neumann e Fordhan partem dessa mesma idéia. O ego se
desenvolve a partir do confronto com o mundo e vai ser o centro do que
chamamos de consciência.A possibilidade de auto reflexão, da percepção de que

55
existe um “interno”é o início do tornar-se consciente de algo que vem a ser mais
tarde a autoconsciência ou consciência do eu.
Fordhan fala em uma idade especial, por volta dos sete meses, em que
algo diferente acontece. Esses dois conceitos, ego e consciência, estão
imbricados na medida que só podemos falar de consciência a partir do lugar
daquele que é, isto é, a partir daquele que tem um ego, que portanto pode se
autodenominar.
Todos os autores falam em processo de desenvolvimento. A idéia é que
haja um fortalecimento do eu, que se torna cada vez mais abrangente. Esse
fortalecimento vai acontecer à medida que o ego-eu seja capaz de entrar em
relação com conteúdos tanto do mundo interno quanto do mundo externo e, de
alguma forma, abarcá-los.
O ego como centro da consciência é o responsável por fazer a ponte
entre o que é e o que não é — essa questão aparece na teoria de todos os autores
vistos. O ego-eu coloca-se em oposição a tudo o que é não ego, o sujeito em
oposição ao objeto. A partir dessa discriminação surge a possibilidade de olhar
para o que é não-ego, objeto, entrar em contato com ele, avaliá-lo e trazê-lo para
a consciência como um novo produto. Dessa forma a consciência vai se
expandindo cada vez mais —no processo que Jung chama de processo dialético.
É importante notar que um ego forte não é aquele rígido preso na
dicotomia, ou isto ou aquilo, tendo sempre de fazer escolhas e deixando algo de
fora. Um ego forte é sim aquele flexível o suficiente para lidar com a
ambivalência do mundo. Um ego rígido será incapaz de exercer sua tarefa
mediadora entre o sujeito e o objeto, seja ele qual for.

56
III

SOBRE O SÍTIO DA CONSCIÊNCIA

57
"De repente, a parte superior da grande massa cinzenta,
que há momentos jazia perfeitamente inerte, começa a ser
iluminada por pequenos pontos de luz que produzem pulsos
viajando em todas as direções. O cérebro está acordando e, com
ele, a mente desperta mais uma vez. É como se a Via Láctea
entrasse em uma dança cósmica. Rapidamente, a massa cinzenta
se transforma em uma roca de fiar mágica, milhões de pontos de
luz acendendo e apagando de forma precisa e harmônica,
gerando padrões e subpadrões plenos de significados que se
renovam constantemente."
C.S. Sherrington, "Man on His Nature", Cambridge
University Press, 1951

Neste capítulo pretendo falar sobre as bases neurológicas do fenômeno


da consciência. Apesar de conhecermos cada vez mais o funcionamento do
cérebro, há ainda um grande enigma a ser decifrado: como é que os processos
fisiológicos dão origem à experiência da consciência.
Nestes últimos anos houve um aumento considerável nas publicações
científicas que falam do funcionamento cerebral. Isso talvez se deva ao fato de
que esta última década do milênio está sendo chamada de "A década do
cérebro". O ano de 1990 foi nomeado pelo então presidente dos Estados Unidos,
George Bush, o primeiro ano da década do cérebro. Muitos recursos têm sido
investidos no que chamamos de estudo das bases neurofisiológicas do processo
mental.

58
A mente humana parece ser a fronteira final da ciência. Há uma tentativa
de encontrar "a resposta", ou o que seria uma teoria unificada que se revelasse
válida para todos os campos do conhecimento científico. Essa resposta abarcaria
tanto a idéia do segredo da vida quanto a solução para o enigma do universo.
Gerald M.Edelmam, prêmio Nobel de Medicina em 1972, diz que a mente
é um tipo especial de processo que depende de arranjos especiais da matéria. Em
71
seu livro Bright Air, Brilliant Fire on the Matter of the Mind ele pretende
mostrar que a matéria física que sustenta a mente é comum — especial é a forma
como ela se organiza. A condição mínima para a existência do mental, segundo
ele, é um tipo específico de morfologia.
Francis Crick, que recebeu o Nobel de bioquímica em 1962 junto com
James D. Watson pela descoberta da estrutura molecular do DNA, escreveu
também um livro no qual propôs uma hipótese surpreendente — nossos
sofrimentos e alegrias, memórias e ambições, o senso de identidade individual e
livre arbítrio nada mais são do que o comportamento de uma vasta assembléia
de células nervosas e suas moléculas associadas.
Steven Pinker, professor de Psicologia e diretor do Centro para Ciência
Cognitiva no Instituto de Tecnologia de Massachussets (MIT), publicou em
1997 um livro chamado How the Mind Works. Nesse livro ele tenta desvendar o
funcionamento mental a partir da teoria darwiniana da seleção natural e da teoria
computacional da mente. Ele inicia seu livro citando o lingüista Noam
Chomsky, que sugeriu que nossa ignorância pode ser dividida em problemas e
mistérios: quando encaramos um problema, podemos não saber sua solução, mas
temos insights, no entanto, quando encaramos um mistério ficamos
maravilhados e não temos idéia de qual pode ser sua explicação. Pinker acredita
que alguns mistérios da mente, de imagens mentais a amor romântico, foram

71
Edelman. G.M. (1992). Bright Air, Brilliant Fire, on the Matter of the Mind. New York, Basic Books.
59
recentemente transformados em problemas e através dessa ótica ele se propõe a
abordar o tema do funcionamento mental.
O volume 8 da Revista de Psicologia da USP, de 1997, é também
dedicado a esse tema.Descartando uma visão dualista, os autores procuram
elaborar idéias acerca desse fenômeno utilizando aproximações filosóficas e
biológicas numa tentativa de clarificar a questão através de um conhecimento
cada vez mais ampliado.

"A consciência é fruto da evolução do sistema nervoso.


Portanto, percepções, individualidade, linguagem, idéias,
significado, cultura, escolha (livre arbítrio) moral e ética,
todos existem em decorrência do funcionamento cerebral".72

Henrique Schutzer Del Nero , psiquiatra brasileiro , publica em 1997 um


73
livro chamado "O Sítio da Mente" no qual pretende discutir a questão da
emergência do mental a partir do funcionamento cerebral. É um livro didático
porque fala do funcionamento mental desde os seus níveis mais básicos,
partindo da comunicação entre neurônios e chegando à complexidade dos
sistemas funcionais. Ë, no entanto, tendencioso, na medida em que propõe um
modelo computacional de funcionamento mental a partir do qual elabora todos
os seus conceitos sem espaço para outras possibilidades.
Antonio Damásio, neurologista que dirige um dos principais centros de
estudos neurológicos dos Estados Unidos, escreve também um livro em que
discute a dupla razão x emoção, abordando a questão da divisão mente e corpo
com base em amplas pesquisas neurológicas. Por fim, Susan C. Vaughan,

72
Campos, A.; Santos, A. M. G.; Xavier, G. F. (1997). A consciência como fruto da evolução e do
funcionamento do sistema nervoso in Psicologia USP, 8, n º 2, p. 181.
73
Del Nero, H.S.; (1997) .O Sítio da Mente.São Paulo, Collegium Cognition
60
74
psiquiatra americana, publica "A Cura pela Fala" em agosto de 1998. Sua
proposta é aproximar o trabalho psicanalítico dos conhecimentos acerca do
funcionamento cerebral.

Por que as pessoas ficam tão incomodadas com essas colocações? O que
há de tão ameaçador nesses questionamentos? Parece haver medo de que essas
idéias levem a um reducionismo biológico e que não haja mais espaço para o
mistério, o sagrado, a individualidade. Se o cérebro dá origem a tudo o que pode
ser chamado de mental e é um órgão físico, conhecido, comum a toda
humanidade — então não há mistério algum. Nada poderá nos diferenciar dos
outros seres humanos. Afinal, qual é a nossa especificidade?
Onde estará a alma imortal que perdura após a morte? Onde permanece
o sopro divino que nos humanizou e ao mesmo tempo nos tornou iguais ao
criador? A alma individual seria o correlato desse lugar do mental — uma alma
imortal criada por Deus e soprada dentro de nosso corpo tornando-nos únicos e
diferentes de todo o resto da humanidade. Alma que nos garantiria tanto a
imortalidade quanto a permanência.
Na verdade, o que nos move é o desejo de ser únicos, inigualáveis e
acima de tudo imortais. Tememos que com a inserção da mente no cérebro, fato
na verdade tão óbvio, sejamos todos igualados no nível biológico, não sendo
possível a existência de algo que nos identifique, que nos torne especiais. Mas,
ao mesmo tempo, isso não é claro para nós. Discutimos o tempo todo a questão
da dicotomia mente-corpo, no entanto cometemos o equívoco de falar de uma
mente não-incorporada, de uma mente que existe apesar do corpo e além dele.
Como é isso?

74
Vaughan, S., (1998). A Cura pela Fala. Rio de janeiro, Ed. Objetiva.
61
ANTONIO DAMÁSIO E O ERRO DE DESCARTES

Antonio R. Damásio em O Erro de Descartes75 fala a respeito do


funcionamento do aparato mental discutindo a visão dualista e mostrando uma
mente incorporada, uma mente que não existe sem um corpo. Ele aborda alguns
pontos muito importantes para a compreensão do funcionamento mental, apesar
de não propor uma teoria sobre a emergência da "mente".
Damásio partiu da observação de pacientes com comprometimento
neurológico cuja capacidade de sentir emoções estava alterada e questionou a
pretensa incompatibilidade entre razão e emoção. Percebeu, a partir de estudos
75
Damásio, A. R.(1998), O Erro de Descartes, São Paulo, Companhia das Letras.
62
neurológicos desses pacientes, que as emoções são fundamentais para o
processo decisório em qualquer nível:

Comecei a escrever este livro com o intuito de propor que a


razão pode não ser tão pura quanto a maioria de nós pensa
que é ou desejaria que fosse, e que as emoções e os
sentimentos podem não ser de todo uns intrusos no bastião
da razão, podendo encontrar-se, pelo contrário, enredados
nas suas teias para o melhor e para o pior.76

A razão funciona a partir de vários sistemas cerebrais, agindo de forma


conjunta ao longo de muitos níveis de organização neuronal. As emoções e os
sentimentos funcionam como guias nesse processamento. A emoção não é uma
qualidade ilusória associada a um objeto, mas a percepção direta de uma
paisagem específica — a paisagem do corpo. O sentimento seria a vivência
dessa paisagem corporal, a forma como ela é experimentada, tem um conteúdo
específico e sistemas neuronais específicos para suportá-lo. É tão cognitivo
como qualquer outra percepção. 77
Damásio acredita que o conhecimento das bases neurofisiológicas da
vivência dos sentimentos deveria aumentar nosso maravilhamento . "A emoção
e o sentimento constituem a base daquilo que os seres humanos tem descrito há
milênios como alma ou espírito humano." 78
Traz a questão da inter-relação corpo-mente dizendo que nossas mentes
não seriam o que são se não existisse uma interação entre o corpo e o cérebro
durante o processo evolutivo, o desenvolvimento individual e no momento atual.
Afirma que o cérebro e o resto do corpo são um único organismo que interage
76
Damásio, A., op. cit., p. 12.
77
Idéia semelhante à junguiana de sentimento enquanto função valorativa, tão racional quanto o pensamento.
78
Damásio, A., op. cit., p. 16.
63
com o ambiente como um conjunto, a mente deriva desse conjunto. Os
fenômenos mentais, portanto, só podem ser compreendidos através de um
organismo em interação com o meio ambiente que o rodeia. "A alma respira
através do corpo, e o sofrimento quer comece no corpo ou numa imagem
mental, acontece na carne.” 79
Para falar desse organismo em interação com o meio que o rodeia o autor
descreve as bases neurofisiológicas do funcionamento cerebral. O neurônio,
célula cerebral básica, também funciona apenas em conjunto com os neurônios
vizinhos, tudo o que ele faz depende do conjunto; por sua vez, os conjuntos se
influenciam mutuamente criando sistemas e essa influência depende da
localização do conjunto no sistema. O cérebro é um supersistema de sistemas .

Cada sistema é composto por uma complexa interligação de


pequenas mas macroscópicas, regiões corticais e núcleos
subcorticais que por sua vez são constituídos por circuitos
locais, microscópicos, formados por neurônios, todos eles
ligados por sinapses.80

Segundo o autor a abordagem neurobiológica seria uma tentativa de


explicar a forma como esses sistemas neurais e seus componentes estão
relacionados com certas operações cognitivas e se transformam em imagens em
nossas mentes. De qualquer forma, não podemos esquecer que somos
organismos vivos complexos com um corpo e um cérebro integrados por
circuitos bioquímicos e neurais complexos e recíprocos:

79
Damásio, A., op. cit., p. 18.
80
Damásio, A., op. cit, p. 54.
64
Numa primeira aproximação, a função global do cérebro é
estar bem informado sobre o que se passa no resto do corpo;
sobre o que se passa em si próprio e sobre o meio ambiente
que rodeia o organismo, de modo que se obtenha
acomodações de sobrevivência adequadas entre o organismo
e o ambiente.81

Mas não há um lugar único, definido, onde se daria o processamento e a


integração de todas as modalidades de processamento sensorial experienciadas
na mente. Damásio acredita que há um truque de sincronização que garante
nosso sentido de integração mental e que ele se daria através da ação conjunta
dos sistemas de grande escala, pela sincronização de conjuntos de atividade
neural em regiões cerebrais separadas. O tempo, sincronização (timing no
original), é então uma variável importante desse mecanismo.
Corpo e cérebro interagem entre si e com o ambiente; essas relações são
mediadas pelo movimento do organismo e pelos aparelhos sensoriais. O
conhecimento necessário para o raciocínio e a tomada de decisões chega à mente
sob a forma de imagens. Damásio faz uma distinção entre imagens perceptivas,
aquelas formadas pelas reais percepções do sujeito e as imagens evocadas,
aquelas construídas à medida que evocamos uma recordação de coisas do
passado.

Essas diversas imagens-perceptivas, evocadas a partir do


passado real e evocadas a partir de planos para o futuro —
são construções do cérebro. Tudo o que se pode saber ao
certo é que são reais para nós próprios e que há outros seres
que constroem imagens do mesmo tipo. Partilhamos com
81
Damásio, A., op. cit., p.116.
65
outros seres humanos, e até com alguns animais, as imagens
em que se apóia nosso conceito do mundo... Não sabemos, e é
improvável que alguma vez venhamos a saber, o que é a
realidade “absoluta”.82

O elemento chave da consciência é a subjetividade. As representações


neurais têm de estar correlacionadas com as que constituem a base neural para o
eu, definido por Damásio como um estado neurobiológico perpetuamente
recriado. O cérebro não armazena imagens como se fosse um arquivo de coisas,
pessoas ou situações: a memória é reconstrutiva, isto é, quando recordamos uma
cena por exemplo, estamos interpretando, reconstruindo o original. “Creio que
essas representações são momentaneamente construídas sob o comando de
padrões neurais dispositivos adquiridos em outras partes do cérebro”. 83
Novamente, a idéia de algo que está em todo o lugar e, ao mesmo tempo,
em lugar nenhum. Essas representações dispositivas são o depósito integral de
saber, o conhecimento inato e o adquirido. Existem como um padrão potencial
de atividade neuronal. São potencialidades de disparo que ganham vida a partir
de modificações sinápticas. Através da modificação contínua dessas
representações dispositivas é que vamos adquirir conhecimento novo.
A estrutura cerebral não é totalmente especificada. Muitas das
especificidades estruturais são determinadas geneticamente enquanto outras são
determinadas pela atividade do próprio organismo. Os genes proporcionam a um
componente cerebral sua estrutura precisa e a outro uma estrutura que está para
ser determinada.
Sistemas e circuitos cerebrais dependem do padrão de conexão entre
neurônios e do poder das sinapses entre essas conexões. O genoma ajuda a

82
Damásio, A., op. cit.,p. 124.
83
Damásio, A., op. cit.,p. 129.
66
estabelecer a estrutura dos sistemas e circuitos importante nos setores
evolutivamente mais antigos do cérebro humano, por exemplo aqueles que
regulam mecanismos homeostáticos. O arranjo preciso nos setores cerebrais
evolutivamente modernos se estabelece "sob a influência de circunstâncias
ambientais que são complementadas e restringidas pela influência dos circuitos
estabelecidos de forma inata e precisa relacionados com a regulação
biológica.” 84 A mente é incorporada, isto é, desenvolvida passo a passo através
do trabalho da estrutura genética com a inserção social deste ser humano
corporal.

Ao nascer, o cérebro humano inicia seu desenvolvimento


dotado de impulsos e instintos que incluem não apenas um kit
fisiológico para a regulação do metabolismo, mas também
dispositivos básicos para fazer face ao conhecimento e ao
comportamento social. ... Os mecanismos neurais que
sustentam o repertório supra-instintivo podem assemelhar-se,
na sua concepção formal geral, aos que regem os impulsos
biológicos e ser também restringidos por esses últimos. No
entanto, requerem a intervenção da sociedade para se
tornarem aquilo em que se tornam, e estão por isso
relacionados tanto com uma determinada cultura como com a
neurobiologia geral. 85

Para Damásio as representações primordiais do corpo em ação vão ter


papel importante na consciência. Seriam o núcleo da representação neural do eu
e então referência para o que acontece fora e dentro dos limites do organismo .

84
Damásio, A., op. cit.,p. 138.
85
Damásio, A., op. cit.,p. 155.
67
A base neural para o eu consiste na reativação contínua de imagens atualizadas
sobre nossa identidade e representações primordiais do próprio corpo. O estado
do eu é construído a partir da base a cada momento.

O que está nos acontecendo agora está de fato acontecendo a


um conceito de eu baseado no passado, incluindo o passado
que era atual há apenas um instante. ...O presente nunca está
aqui. Estamos irremediavelmente atrasados para a
consciência. 86

A CONSCIÊNCIA COMO FRUTO DA EVOLUÇÃO E DO


FUNCIONAMENTO DO SISTEMA NERVOSO

"What is mind? It doesn't matter. What is matter? Never


mind.”
(trocadilho utilizado na língua inglesa para se falar sobre
mente e matéria)

"Sistemas biológicos são o produto de um processo histórico altamente


peculiar que envolve evolução por seleção natural, sendo essa, na verdade, a
87
origem de sua unicidade.” A seleção se faz principalmente no nível do
indivíduo e de seu comportamento; quando a complexidade de um sistema

86
Damásio, A., op. cit.,p. 271.
87
CAMPOS, A.; SANTOS, A. M. G.; XAVIER, G.F., op. cit., p. 184.
68
aumenta e a imprevisibilidade torna-se um problema, um mecanismo diferente,
mais flexível, deve ser selecionado. Esse sistema deve permitir ao organismo
obter o máximo de informações sobre o ambiente, possibilitando a solução de
seus problemas no momento em que surgem, de forma não-antecipatória ou de
forma antecipatória quando um padrão regular for identificado. Ele tem de ser
altamente adaptativo, pois o organismo pode ter de lidar com circunstâncias
totalmente inesperadas. Esses sistemas são fruto de um processo histórico lento
e gradual, que ocorre passo a passo, na evolução das espécies.

Para que esses processos pudessem ocorrer foi importante que uma
grande quantidade de informações fosse armazenada. Essas informações,
armazenadas no sistema nervoso do indivíduo sob a forma de modificações nas
conexões entre seus elementos constituintes (as células nervosas), promovidas
pela história de interação do indivíduo com o meio ambiente, envolvem um
processo de contínua categorização da informação de modo a identificar um
estímulo ou ação e, com base nessa identificação, controlar o comportamento.

Fala-se de uma "consciência primária" definida como o conhecimento


dos estímulos internos e externos, cuja vantagem é que ela ajuda a abstrair e
organizar mudanças complexas num ambiente envolvendo múltiplos sinais
concomitantes. Ela estaria ligada ao desenvolvimento do sistema tálamo-cortical
que evoluiu em paralelo com o cerebelo, gânglios basais e hipocampo,
envolvidos na manipulação de espaço e tempo, com os quais mantém grande
quantidade de conexões. A aprendizagem pode ser vista como o meio pelo qual
a categorização ocorre, tendo por pano de fundo as mudanças adaptativas no
comportamento que satisfazem as necessidades fisiológicas do indivíduo.

A evolução do sistema nervoso poderia ser vista como uma "árvore com
diversos ramos" cada ramo transformando-se de forma independente dos

69
outros.88 Mudanças relacionadas com crescimento encefálico, inserção da
musculatura da mandíbula no crânio, espaço supralaríngeo e postura ereta, com
liberação das mãos, parecem ter sido decisivas para as características
consideradas tipicamente humanas. 89

O advento do uso de instrumentos foi acompanhado de um aumento na


inteligência, num processo bidirecional, ocorrendo uma retroalimentação
positiva de um sobre o outro. “Inovações culturais mudaram as condições de
expressão fenotípica de tal forma e tão rápido que teriam levado a diversas
alterações comportamentais.” 90

A aquisição de linguagem levou ao aumento no poder conceitual —


palavras podem ser vistas como instrumentos para manipulação da informação.
O armazenamento de longa duração de relações simbólicas, adquiridas através
de interações com outros indivíduos da mesma espécie, libera o sujeito do
presente imediato. A possibilidade de manipulação dessas relações simbólicas
pode corresponder ao florescimento da consciência superior, vista como a
capacidade de refletir sobre as próprias experiências ao longo do tempo, como
ocorre em seres humanos. Estruturas, do sistema nervoso, relacionadas com
linguagem e gramática constituem uma adaptação que ocorreu de forma gradual
sob a pressão da seleção natural.

Fatores genéticos determinam em certa extensão seqüências de


desenvolvimento embrionário, bem como parte da especificação dos padrões de
conectividade neuronal. Isso, no entanto, não exclui a contribuição decisiva e
marcante da interação do indivíduo com o ambiente, incluindo a história de

88
Analogia interessante com a fala de Jung na Introdução a Símbolos de Transformação, quando ele diz que
somos apenas o florescer de um rizoma perene.
89
Lacan falou já em 1936 sobre a encefalização que teria favorecido a diferenciação do homem de outros
animais semelhantes.
90

CAMPOS, A.; SANTOS, A. M. G.; XAVIER, G.F., op. cit., p. 191


70
desenvolvimento individual associada às influêcias culturais, para a formação
final do sistema nervoso.

Existem, no ser humano, cerca de um quatrilhão de sinapses — essas


conexões são combinadas de várias maneiras para formar circuitos neurais; o
número final de possibilidades é praticamente infinito. Durante a ontogênese do
sistema nervoso, as células dividem-se, migram, conectam-se, morrem; o
destino de cada célula (que num primeiro momento era equipotencial) depende
de sua localização em relação a outras células, dos eventos que se processam nas
regiões vizinhas e no ambiente — determinadas transformações só ocorrerão se
outras ocorrerem previamente. Trata-se de um sistema auto-organizado — as
conexões não estão predefinidas nos genes: conjuntos idênticos de genes
resultam em sistemas nervosos distintos tanto anatômica como fisiologicamente.

O sistema nervoso exibe memória. Arranjos dinâmicos contribuem para a


formação de representações sobre o meio ambiente, mudanças prévias
interferem nos arranjos funcionais subseqüentes. Há também uma grande
plasticidade — característica que capacita a adaptação dos seres humanos às
mudanças constantes que ocorrem no ambiente. Mecanismos de
desenvolvimento do sistema nervoso levam, necessariamente, à individuação 91.
Dois organismos não podem ser iguais pelo simples fato de ocuparem posições
diferentes no espaço. Suas histórias de interação com o ambiente serão
diferentes, o que resultará em sistemas nervosos diferentes. Esses fatores,
críticos para o processo de adaptação ao ambiente, conferem individualidade
cognitiva e afetiva.

Por essa razão, deve-se descartar a idéia de que o respeito ao


ser humano e à ética são postos em risco ao se conceber a
mente humana como fenômeno biológico, ao contrário, por
91
Novamente aqui a utilização de um termo tão precioso para a psicologia junguiana.
71
ser único no seu patrimônio genético e particularmente no
patrimônio histórico, cada indivíduo é singular na sua
essência e criatividade, sendo, portanto, precioso. Exatamente
essa singularidade de cada um é que deve ser respeitada e
valorizada na condição humana..92 (op. cit , p. 194)

O sistema nervoso está organizado de forma modular, cada módulo


mantém conexões com os outros e o nível de independência no funcionamento
deles parece variar. A consciência não é uma propriedade exclusiva de uma
única porção indivisível do sistema nervoso, mas fruto do funcionamento
integrado dos diferentes módulos amplamente dispersos no sistema nervoso
cada qual processando informações específicas. As representações mentais
seriam integradas em função de suas atividades sincrônicas, que seriam
mediadas pela extensa interconexão paralela entre os vários módulos de
processamento.

O sistema nervoso também processa informações inconscientemente,


isto é, discriminações, memórias e processos elaborados de julgamento e
solução de problemas podem ocorrer fora do domínio consciente, influenciando
a experiência, o pensamento ou a ação em curso. Como é que algo “ultrapassa o
limiar” para tornar-se consciente, do ponto de vista fenomenológico? Esse
processo poderia corresponder no nível de atividade de cada um dos módulos,
atividade que pode ser modulada pelo córtex pré-frontal, pela intensidade da
informação apresentada ou pela interação com a atividade dos demais módulos.

Não há por que temer o completo desvendar dos fenômenos mentais.


Poderemos quando muito compreender o funcionamento dos circuitos neuronais
e estabelecer padrões de funcionamento. No entanto, as vivências individuais é
92
CAMPOS, A.; SANTOS, A. M. G.; XAVIER, G.F., op. cit., p. 194
72
que vão preencher ou direcionar conexões, enfatizando algumas e deixando
outras de lado ou as enfraquecendo. A vivência individual e as modificações
pessoais vão alterar completamente o funcionamento do sistema como um todo
e vão fazer com que cada circuito em cada ser humano seja diferente do outro.

FRANCIS CRICK E A HIPÓTESE SURPREENDENTE

"Os homens devem saber que é do cérebro


que vem alegria e prazer, riso e divertimento,
tristeza e desgosto, desânimo e lamentações."
Hipocrates (460-370 AC)

Francis Crick é o físico e bioquímico inglês que colaborou com James D.


Watson na descoberta da estrutura molecular do DNA, trabalho pelo qual
ganhou o Prêmio Nobel em 1962. As pesquisas feitas por ele, a seguir,
mostraram como as informações genéticas estão codificadas no DNA. Essas
pesquisas deram à teoria da evolução de Darwin e à teoria da hereditariedade de
Mendel a base empírica que lhes faltava. Crick se mudou de Cambridge,
Inglaterra, para a Califórnia, EUA, em meados da década de 1970 e trabalhou

73
com a biologia do desenvolvimento e a questão da origem da vida antes de ser
atraído para o estudo do fenômeno da consciência.
Esse autor afirma que a consciência deixou de ser um mistério para se
tornar um problema. Junto com um jovem colaborador, Christof Koch, Crick diz
que a única maneira de se começar um estudo científico da consciência ou
qualquer outro fenômeno mental seria através do estudo do cérebro, sua
estrutura e funcionamento. Segundo ele, os neurônios devem ser a base para
qualquer modelo da mente. Em 1994, ele publicou o livro em que expôs sua
teoria acerca do funcionamento mental.
Considerado um implacável reducionista, ele diz que, apesar de não ter
ainda uma solução para o problema do mistério da consciência, é possível
abordar essa questão de forma científica.
A mensagem do livro é que agora é a hora de pensar
cientificamente sobre a consciência e seu relacionamento, se
é que há algum, com a hipotética alma imortal e, o mais
importante, é tempo de iniciar o estudo experimental da
consciência de uma forma séria e deliberada. 93

Crick considera que o objetivo principal das pesquisas científicas sobre o


cérebro é compreender a verdadeira natureza da alma humana, seja ela
metafórica ou literal. Como cientista ele acredita que não há necessidade de um
conceito religioso de alma para explicar o comportamento do homem e outros
animais. A hipótese espantosa a que ele se refere é que " 'você', suas alegrias e
tristezas, memórias e ambições, seu senso de identidade e livre arbítrio, são na
verdade, não mais do que o comportamento de uma vasta assembléia de células

93
CRICK, F., (1995); The Astonishing Hypothesis, New York, Touchstone, p.xii.
74
nervosas e suas moléculas associadas.”94 Chama de surpreendente essa
hipótese, porque a maioria das pessoas não percebe o problema desta forma.
O autor acredita que as pessoas relutam em aceitar essa idéia porque ela
acaba sendo colocada na categoria de uma "abordagem reducionista", isto é, a
explicação de um sistema complexo pelo comportamento e inter-relação de suas
partes. Ele argumenta dizendo que reducionismo não é a interpretação de um
conjunto de idéias em termos de outro conjunto de idéias num nível inferior,
mas sim o principal método teórico que levou a descobertas espetaculares nas
ciências modernas. "É a única forma sensata de proceder até que, e a não ser
que, sejamos confrontados com evidências experimentais que demandem uma
mudança de atitude.” 95
Crick diz que para compreender o funcionamento do cérebro é
importante perceber que ele é o produto final de um longo processo de evolução;
os genes que recebemos de nossos pais foram influenciados, através de milhares
de anos, pela experiência de nossos ancestrais. O cérebro não é uma tabula rasa
no momento do nascimento mas uma estrutura elaborada — a experiência vai
“afinar” esse aparato até que ele possa fazer um trabalho de precisão. O
funcionamento do cérebro é portanto produto da natureza e da cultura.
No entanto, Crick acredita que é importante pensar em termos de
neurônios, uma vez que a linguagem do cérebro é baseada neles. É preciso
pensar tanto em seus componentes internos quanto nas formas intrincadas e
inesperadas em que eles atuam juntos, em paralelo. É desse funcionamento que
surge a consciência. Um neurônio sozinho não é nada, a relação intrincada entre
vários deles é que pode produzir coisas maravilhosas.

94
CRICK, F.; op. cit., p. 3.
95
CRICK, F.; op. cit., p. 8/9.
75
"O cérebro é tão complicado, e cada cérebro é tão individual,
que não seremos nunca capazes de obter um conhecimento
detalhado de como um cérebro particular funciona. Podemos,
ao menos, esperar compreender os princípios gerais de como
surgem no cérebro a partir da interação de suas inúmeras
partes, sensações e comportamentos complexos. 96

F. Crick trabalha com duas premissas básicas: a primeira afirma que há


algo que requer uma explicação científica e a segunda afirma que todos os
aspectos da consciência utilizam um mecanismo básico comum ou alguns
poucos mecanismos. Como é ainda impossível descrever o funcionamento de
todos os fenômenos mentais, ele junto com Christof Koch, seu colaborador,
decidem estudar o mecanismo da visão como uma tentativa de começar a atacar
o problema. Partem do pressuposto de que somos animais visuais e a percepção
visual é especialmente vívida e rica em informações. Esse mecanismo, apesar
de parecer muito óbvio para algumas pessoas, é um dos mais surpreendentes e
sofisticados que se pode imaginar. Se pudermos compreender os mecanismos
neurais subjacentes à função visual, talvez possamos desvendar fenômenos mais
complexos e sutis.
O autor considera a autoconsciência, isto é, o aspecto auto referencial da
consciência, um tipo especial de consciência, característica apenas dos
humanos, por isso muito mais difícil de estudar no nível neural. Esse talvez
seja um desses aspectos fascinantes que por ora não podemos compreender
totalmente. No entanto, ele sugere que se conseguirmos apreender o
funcionamento de um aspecto da consciência estaremos trilhando o caminho da
compreensão total. " ... uma vez que o sistema visual seja completamente

96
CRICK, F.; op. cit., p. 11/12.
76
compreendido, os aspectos mais fascinantes da "alma" serão muito mais
facilmente estudados". 97
Depois de descrever minuciosamente os circuitos nervosos que
constituem o mecanismo da visão, Crick tenta discutir o que é que faz com que
uma pessoa identifique o que vê, como é que, por exemplo, alguém pode
reconhecer o rosto de um amigo na multidão. Diz:

O que acontece no cérebro quando vemos um objeto? Há um


número quase infinito de possibilidades, diferentes objetos
que somos capazes de ver. É provável que, a qualquer
momento, qualquer objeto específico no campo visual seja
representado pelo disparo de um grupo de neurônios ... O
problema de como esses neurônios se tornam
temporariamente ativos como uma unidade é freqüentemente
descrito como “o problema da integração”. Como um objeto
é também visto, cheirado ou sentido, esta integração deve
ocorrer entre modalidades sensórias diferentes. 98

Crick sugere que o cérebro de alguma forma integra de maneira coerente


todos aqueles neurônios que respondem ativamente a diferentes aspectos do
objeto percebido. Deve haver então um tipo de atividade neural que faça essa
integração. Ele imagina que o correlato neural de consciência deve envolver um
tipo particular de neurônio disparando numa freqüência muito alta ou um
disparo sustentado por um tempo relativamente longo. Diz ele: "a integração
portanto pode corresponder a uma pequena fração de neurônios corticais, em
várias áreas corticais diferentes, disparando muito rápido ao mesmo tempo (ou

97
CRICK, F.; op. cit., p.259.
98
CRICK, F.; op. cit., p.208.
77
por um período muito longo)”.99 É a chamada teoria da oscilação neuronal. "Se
imaginarmos o cérebro como uma imensa multidão sussurrante de neurônios,
os neurônios oscilantes são como um grupo de pessoas que de repente começa
100
a cantar a mesma música” O fenômeno da percepção consciente seria
análogo a essa “integração" quando então percebemos um determinado fato,
temos consciência de algo.
Alguns acreditam que compreender a natureza é como retirar dela todo o
senso de mistério e portanto o fascínio natural que sentimos quando algo que
conhecemos muito pouco nos impressiona profundamente. Crick acredita que o
conhecimento científico que temos conquistado não deveria diminuir nossa
sensação de fascínio, mas ao contrário aumentá-la muito. Ficaremos ainda mais
fascinados quando percebermos as maravilhosas complexidades de nosso
cérebro, complexidades que, segundo esse autor, hoje só conseguimos
vislumbrar. "Dizer que nosso comportamento é baseado em uma vasta
assembléia de neurônios não deve diminuir nossa visão de nós mesmos mas
alargá-la tremendamente.” 101

99
CRICK, F.; op. cit., p.210.
100
HORGAN, J.;(1998), O Fim da Ciência, São Paulo, Companhia das Letras, p. 203.
101
CRICK, F.; op. cit., p. 260.
78
GERALD EDELMAN E A TNGS

“As únicas leis da matéria são aquelas que


nossas mentes fabricam, e as únicas leis da
mente são fabricadas para ela pela matéria.”
(James Clerk Maxwell)

Assim como Francis Crick, Gerald Edelman, também Prêmio Nobel,


teve sua atenção voltada para o estudo do fenômeno da consciência. Ainda
durante a pós-graduação, Edelman ajudou a determinar a estrutura das
imunoglobulinas, trabalho pelo qual compartilhou o Nobel de 1972. Depois
disso passou a estudar a biologia do desenvolvimento e iniciou o trabalho que
mais tarde seria sua teoria sobre o funcionamento da mente. Propôs uma idéia
chamada de TNGS, ou Teoria de Seleção de Grupo Neuronal: assim como

79
pressões ambientais selecionam os organismos mais aptos da espécie, as
informações que entram no cérebro selecionam grupos de neurônios, reforçando
as conexões entre eles.
Para Edelman sempre nos perguntamos a respeito do que é ter uma
mente, ser consciente, mas só agora começamos a acumular conhecimento
científico a respeito do cérebro para tentar responder a essas questões.
Apresenta sua teoria em quatro livros, o último deles publicado em 1992 tem
como nome “Bright Air, Brilliant Fire — On the matter of the mind”. Nesse
livro faz um apanhado de suas propostas.
Edelman afirma que quando Galileu apontou para a necessidade da
objetividade do observador retirou a mente do âmbito da natureza. Einstein, por
sua vez, com a teoria da relatividade, discutiu o próprio significado da palavra
matéria. No entanto, mesmo sabendo que em velocidades próximas da
velocidade da luz ou em distâncias muito pequenas o observador está inserido
em suas medições, o objetivo da Física permanece o de Galileu, isto é, descrever
leis que são invariáveis. A mente continua fora da natureza.
Serão os observadores também “coisas” como o resto dos objetos em seu
mundo? Como lidamos com a curiosa habilidade dos observadores em dividir o
mundo em categorias de coisas, em se referir às coisas enquanto elas não podem
se auto-referir? O dualismo persiste de várias formas até o presente.

Deve haver maneiras de se colocar a mente de volta na


natureza que sejam concordantes com como ela chegou lá em
primeiro lugar. Essas maneiras tem algo a ver com o que
aprendemos sobre a teoria da evolução — no curso da
evolução corpos vieram a ter mentes. Mas não é suficiente
dizer que a mente é incorporada, é preciso dizer como. Para

80
fazer isso devemos olhar o cérebro e o sistema nervoso e os
102
problemas estruturais e funcionais que ele apresenta.”

O resultado das recentes investigações em neurociência sugerem que não


há nada semelhante a uma substância pensante. A matéria física subjacente à
mente não é de forma alguma especial, é feita de elementos químicos tais como
carbono, hidrogênio, oxigênio, nitrogênio, fósforo, junto com alguns traços de
metal. Especial é a forma como essa matéria está organizada. Esses elementos
químicos comuns formam partes de moléculas extraordinariamente intrincadas,
que por sua vez formam estruturas complexas nas células dos tecidos vivos.

Uma das células mais especializadas e exóticas é a célula nervosa ou


neurônio. Ele é diferente em três aspectos: sua forma variada, suas funções
químicas e elétricas e sua conectividade, isto é, como ele se liga a outros
neurônios em rede. Deve haver cerca de 10 bilhões de neurônios no córtex
cerebral. Se o “desenrolássemos” seu tamanho seria o de um fino guardanapo de
mesa. Cada célula nervosa recebe conexões de outras células através das
sinapses , das quais há cerca de 1 milhão de bilhões no tecido cortical (1 pedaço
do tamanho de uma cabeça de fósforo de nosso cérebro teria cerca de 1 bilhão
de conexões).

Uma propriedade ainda mais extraordinária é a maneira pela qual células


cerebrais são arranjadas em padrões funcionais. Quando este diferente arranjo de
células (sua morfologia) é considerado junto com o número de células em um
objeto do tamanho de nosso cérebro e quando se consideram as reações
químicas que acontecem dentro dele, então estamos falando do objeto material
mais complicado do universo conhecido. O cérebro tem saídas através de
neurônios conectados a músculos e glândulas; por outro lado, partes do cérebro

102
EDELMAN. G., op. cit., p. 15.
81
recebem informações (inputs) de outras partes do cérebro e fornecem outputs a
outras partes do cérebro sem a intervenção do mundo externo, isto é, o cérebro
está mais em contato consigo mesmo do que com qualquer outra coisa.

Essas conexões não são pré-especificadas no padrão genético – vão-se


dando à medida que eventos prévios acontecem, o cérebro é um exemplo de
sistema auto-organizado. A rede cerebral é criada pelo movimento celular
durante o desenvolvimento e pela extensão e conexão de um número cada vez
maior de neurônios. Apesar de a conectividade dos sistemas neuronais no
sistema nervoso central ser mais ou menos similar entre os indivíduos, ela não é
idêntica; na verdade, há uma variação considerável na forma de neurônios de
mesmo tipo em dois indivíduos diferentes e também em seu padrão de conexão.
Considerando nossas mentes, devemos tanto levar em conta nossas
afinidades quanto nossas diferenças em relação a outras espécies; uma diferença
é que cada um de nós, seres humanos, tem uma “alma” individual baseada na
linguagem. A base fundamental para todo comportamento e para a emergência
da mente é a morfologia animal e da espécie e como ela funciona. O que
chamamos de mente emerge apenas em um período particular durante a
evolução, é o arranjo dinâmico das substâncias subjacentes à mente que criam o
processo mental, não sua composição. Darwin propôs que mentes surgiram por
evolução, o que quer dizer que mentes nem sempre estiveram por aí.
Apareceram em um tempo definido através de uma série de passos graduais.
O fenômeno da psicologia depende da espécie na qual ele é observado e
as propriedades da espécie dependem da seleção natural. O objetivo de Edelman
é demonstrar que a condição mínima para a existência do mental é um tipo
específico de morfologia.
Segundo ele, para compreender a origem evolucionária da mente
humana precisamos saber como a morfologia subjacente ao comportamento

82
surgiu durante a história evolucionária e como o comportamento alterou a
seleção natural. Genes não atuam diretamente, mas em combinações complexas
para alterar a forma, a forma altera o comportamento e mudanças bruscas de
forma levam a extraordinárias mudanças de comportamento.
O sistema nervoso e o cérebro surgem a partir de situações dinâmicas,
sua estruturação depende de sinais, genes, proteínas, movimento de células,
divisão e morte, tudo isso interagindo em vários níveis. Eventos ocorrendo em
um lugar requerem que eventos prévios ocorram em outros lugares, mas isso é
também dinâmico, plástico ou variável no nível de suas unidades fundamentais,
as células. Mesmo em gêmeos idênticos o mesmo padrão de células nervosas
não é encontrado no mesmo tempo e lugar. Esses processos aleatórios obrigam
os cérebros humanos a ser individuais.
Os genes regulam a anatomia intrincada do cérebro através de interações
epigenéticas, isto é, eventos particulares devem ocorrer antes que outros
aconteçam. A migração de células e a morte delas é estocástica (onde entra a
teoria matemática das probabilidades) — elas têm conseqüências imprevisíveis
no nível das células individuais.
Os três princípios da TNGS, proposta por Edelman, têm a ver com: 1-
como a anatomia cerebral surgiu durante o desenvolvimento; 2- como padrões
de resposta foram selecionados a partir desta anatomia durante a experiência e 3-
como a reentrada, um processo de sinalização entre os mapas resultantes do
cérebro, dá origem a funções comportamentais importantes.
De acordo com o primeiro princípio — desenvolvimento através de
seleção — os processos primários dinâmicos de desenvolvimento levaram à
formação das características neuroanatômicas de uma dada espécie. Esta
anatomia possui, obrigatoriamente, uma enorme variação nos seus níveis e
ramificações mais sutis.Todo o processo é seletivo, envolvendo populações de

83
neurônios engajados em uma competição topobiológica; a população de um
variado grupo de neurônios em uma determinada região cerebral
compreendendo redes neurais surgidas a partir de processos de seleção somática
é conhecida como repertório primário. Os códigos genéticos não fornecem um
diagrama para esse repertório mas impõem um tipo de restrição ao processo de
seleção. Mesmo com essas restrições, indivíduos geneticamente idênticos não
têm a mesma circuitaria, a seleção é epigenética.
De acordo com o segundo princípio, durante o comportamento conexões
sinápticas na anatomia são reforçadas ou enfraquecidas seletivamente por
processos bioquímicos, o que não altera o padrão anatômico. Esse mecanismo
que fundamenta a memória e outras funções efetivamente grava uma variedade
de circuitos funcionais (com sinapses reforçadas) da rede neural anatômica por
seleção; essa variação de circuitos funcionais é chamada de repertório
secundário. Em alguns aspectos os mecanismos que levam à formação de
repertórios primários e secundários estão misturados; isso acontece porque em
alguns lugares e momentos a formação do repertório primário depende da
modificação de forças sinápticas; mesmo em um cérebro desenvolvido pode
ocorrer “germinação”, na qual novos processos neurais formas sinapses
adicionais.

O terceiro princípio diz respeito a: como os eventos selecionais descritos


nos dois primeiros princípios agem para conectar a psicologia à fisiologia.
Edelman sugere que mapas cerebrais interagem por um processo chamado de
"reentrada". Esta é talvez a proposta mais importante da teoria porque mostra
como áreas do cérebro que emergem durante a evolução se coordenam com
outras para criar novas funções. Diz ele que para obter essas novas funções os
repertórios primário e secundário devem formar mapas que estão ligados por
conexões recíprocas e paralelas maciças. Enquanto grupos de neurônios são

84
selecionados em um mapa, outros grupos em diferentes mapas podem ser
selecionados ao mesmo tempo; a correlação e a coordenação de tais eventos
selecionados são conseguidas por “sinalização reentrante” e pelo fortalecimento
de interconexões entre os mapas dentro de um segmento de tempo.

Uma premissa fundamental dessa teoria é que a coordenação


seletiva de padrões complexos de interconexão entre grupos
neuronais por “reentrada” é a base do comportamento; na
verdade o mecanismo de “reentrada”, combinado com
memória, é a base principal para uma ponte entre fisiologia e
psicologia.103 (op. cit., pg.85)

De acordo com a TNGS a unidade de seleção é o grupo neuronal: grupo


de neurônios podem ter propriedades tanto inibitórias quanto de excitação.
Durante a formação do repertório primário, neurônios vizinhos tendem a se
conectar mais extensivamente formando circuitos contendo proporções variadas
de cada tipo de neurônio. Podemos resumir dizendo que, em geral, nenhum
neurônio individual é isoladamente selecionado, nenhum neurônio individual em
um mapa “reentra” com outro neurônio em outro mapa e nenhum neurônio
individual tem sozinho as propriedades que mostra em um grupo .

Edelman diz que a TNGS considera a função de categorização


fundamental para a tentativa de relacionar a fisiologia à psicologia. Ele sugere
que as categorizações acontecem através do que chama de dupla de
classificação, isto é, uma unidade mínima que consiste em dois mapas
funcionalmente diferentes de grupos neurais conectados por reentrada, cada
mapa recebendo sinais de outros mapas cerebrais ou do mundo externo dentro
103
EDELMAN. G., op. cit., p.85.
85
de um dado período de tempo. Através de “sinalização reentrante” certas
combinações ativas em um mapa são fortemente conectadas a diferentes
conexões em outros, isto ocorre pelo fortalecimento e enfraquecimento de
sinapses em grupos em cada mapa e também suas conexões com fibras
reentrantes.

Não apenas os eventos são correlacionados topograficamente através de


diferentes mapas sem um supervisor (homúnculo), mas também, novas
propriedades selecionais emergem através de "reentradas" sucessivas e
recursivas através de mapas no tempo, funções e atividades de um mapa são
conectadas e correlacionadas com as do outro mapa. Um mapa global é uma
estrutura dinâmica que contém mapas locais com múltiplas reentradas que são
capazes de interagir com partes não mapeadas do cérebro.

Edelman afirma que a seleção somática atuando em mapas globais,


com novos tipos de mapas somados a outros velhos durante a evolução, é um
meio poderoso de se adquirir novas funções, tais como memórias especializadas
e habilidades conceituais. Ele considera a categorização perceptiva, memória e
aprendizagem (na verdade três aspectos inseparáveis de uma performance
mental) a tríade fundamental de funções superiores. Aprendizagem depende, não
apenas, de categorização perceptiva e memória, mas também de uma conexão
aos sistemas de valor mediados por partes do cérebro diferentes daquelas que
fazem a categorização. Aprendizagem, segundo ele, é adaptação e por esta razão
ter grupos neuronais mais numerosos ou mais diversificados também será
adaptativo. No entanto, qualquer que seja o grau de aprendizagem, o
comportamento é restringido por fatores etológicos, tais como sistemas de
valores e critérios homeostáticos. Memória é uma propriedade do sistema, é a
habilidade de repetir uma performance que depende da estrutura do sistema na
qual a memória se manifesta, é a melhoria específica da habilidade prévia de
86
categorizar. Alterações na força sináptica de grupos em um mapa global
fornecem as bases bioquímicas da memória.

Uma vez que categorias perceptivas não são imutáveis e podem ser
alteradas pelo comportamento do animal, a memória resulta então de um
processo de contínua recategorização; é um processo que envolve atividade
motora contínua e ensaios repetidos em diferentes contextos. “Alterações nas
forças sinápticas de grupos em um mapa global fornecem as bases bioquímicas
da memória”.104 Diferentemente do computador, a memória cerebral é inexata,
mas é também capaz de um alto grau de generalização. Indivíduos diferentes
têm memórias diferentes e as utilizam de formas diferentes.
A incorporação de amplas capacidades de categorização requer outro
desenvolvimento evolucionário em adição à memória como recategorização. A
essa função Edelman dá o nome de habilidade para ter conceitos. A palavra
"conceito" é geralmente usada em conexão com a linguagem e em contextos nos
quais se pode falar de verdadeiro ou falso. É no entanto também uma capacidade
anterior à aquisição de linguagem; um animal capaz de ter conceitos identifica
uma coisa ou uma ação e na base dessa identificação controla seu
comportamento. Esse reconhecimento deve ser relacional, isto é, deve ser capaz
de conectar uma categorização perceptual com outra aparentemente não
relacionada. Deve ser capaz de ativar ou reconstruir partes de atividades
passadas de mapas globais de tipos diferentes, deve ser capaz também de
recombiná-los ou compará-los.
Edelman acredita que a discussão sobre a memória enquanto
recategorização e de conceitos como produtos do cérebro categorizando suas
próprias atividades nos fornece os elementos necessários para alcançar uma
abordagem biológica da consciência.
A análise da consciência, na biologia, é um pouco como a análise dos
104
EDELMAN. G., op. cit., p. 102.
87
primeiros eventos cosmológicos: bem no início certas manipulações e
observações não são possíveis. Segundo o autor há três pressupostos
fundamentais para sua teoria de consciência: o primeiro é o pressuposto físico,
segundo o qual as leis da física não devem ser violadas. Diz ele que a descrição
do mundo pela física moderna é adequada, mas não fornece uma base completa
para a teoria da consciência. O segundo é o pressuposto biológico, pelo qual a
consciência surgiu como uma propriedade fenotípica em algum ponto da
evolução da espécie — antes disso ela não existia; isto implica que a consciência
é eficaz — isto é, não é um epifenômeno. Qualia, o terceiro pressuposto,
constitui a coleção de experiências pessoais ou subjetivas e sensações que
acompanham a consciência, são estados fenomenológicos — "como as coisas se
parecem para nós" como seres humanos. O vermelho de um objeto vermelho,
por exemplo, é um qualia. São partes discrimináveis de uma cena mental que no
entanto tem uma unidade total.

Um indivíduo pode reportar sua experiência a outro, mas esse relato será
sempre parcial, impreciso e relativo a seu próprio contexto pessoal. Indivíduos
podem ter suas próprias teorias sobre a totalidade de suas experiências
conscientes individuais, no entanto estas não serão nunca teorias científicas. Há
então um paradoxo — para fazer física utilizo minha vida consciente,
percepções e qualia, mas em minha comunicação inter-subjetiva eu os deixo fora
de minha descrição. Diz Edelman: “Como base para uma teoria da consciência
é sensato assumir que , assim como em nós mesmos, qualia existe em outros
seres humanos conscientes, sejam eles considerados como sujeitos ou
observadores científicos”.105
O autor faz uma distinção entre o que chama de consciência primária e
secundária (high-order).

105
EDELMAN. G., op. cit., p. 115.
88
Consciência secundária está baseada na ocorrência da
percepção direta em um ser humano que possui uma
linguagem e uma vida subjetiva comunicável. Consciência
primária deve ser composta de experiências fenomenológicas
como imagens mentais, mas está ligada a um tempo perto do
presente mensurável, não tem conceito de self, passado ou
futuro e está além do relato descritivo direto do ponto de vista
individual.106

A consciência primária ajuda a abstrair e organizar mudanças complexas


num meio ambiente envolvendo múltiplos sinais paralelos. Embora muitos
desses sinais não tenham uma relação direta com o mundo externo, eles podem
ser indicadores de perigo ou recompensa para o animal em questão. Ela fornece
um meio de relacionar um input presente a seus atos e recompensas passadas; é
possível que um animal com consciência primária tenha habilidades para
generalizar sua aprendizagem mais rapidamente que um animal que não a
possua. No entanto, um animal que possui apenas consciência primária está
fortemente atado à sucessão de eventos no tempo. Falta a memória simbólica:
memória para símbolos e seus significados associados que trará então a
possibilidade de transformação.
Diz o autor:

Certamente as bases para o reconhecimento de um


relacionamento sujeito-objeto em humanos requer uma
consciência emergente da distinção entre o self (no sentido
social de “selfhood”) e outras entidades classificadas como
não self.(...) A consciência secundária, então, necessita a
106
EDELMAN. G., op. cit., p. 115.
89
contínua operação de estruturas que servem a consciência
primária. Envolve também a habilidade para construir um
“selfhood” socialmente fundamentado, para modelar o mundo
em termos de passado e futuro. Sem uma memória simbólica
estas habilidades não podem ser desenvolvidas .107

Edelman traz então a questão do surgimento da fala, dizendo acreditar


que um modelo de interação self — não self tem de ser anterior a ela.
Como alguém se torna consciente de ser consciente? "Para adquirir esta
capacidade, sistemas de memória devem estar relacionados a representações
conceituais de um verdadeiro self (ou self social) atuando no meio ambiente e
vice-versa. Um modelo conceitual de ‘selfhood’ deve ser construído, assim
108
como um modelo do passado”. Uma vida interna baseada na emergência da
linguagem se torna possível, ela é individual, na verdade, pessoal. É a
consciência superior capaz de modelar o passado, o presente, o futuro, o self e o
mundo. Cada consciência depende de sua história única, é construída pelas
interações sociais e no entanto tem sido selecionada durante a evolução para
perceber os objetivos e as satisfações de cada indivíduo biológico.
“A consciência superior surge com o estabelecimento de capacidades
semânticas e floresce com a aquisição da linguagem e referencia simbólica”. 109
Sua aquisição depende da construção de um self através de trocas afetivas inter-
subjetivas, ela leva à construção de um reino imaginativo, de sentimento,
emoção, pensamento , fantasia, self e vontade.

107
EDELMAN. G., op. cit., p. 125.
108
EDELMAN. G., op. cit., p. 131.
109
EDELMAN. G., op. cit., p. 149.

90
A dupla exposição de uma pessoa – a alterações do mundo
real afetando os objetos e a alterações históricas individuais
em sua memória como um sujeito – tem conseqüências
importantes. O fluxo de categorização em um sistema seletivo
levando à memória e consciência altera as relações comuns
de causação descritas pela física. Uma pessoa, como uma
coisa, existe num (world line) mundo em quatro dimensões.
Mas porque os seres humanos individuais têm
intencionalidade, memória e consciência, podem experimentar
padrões em um ponto dessa linha e baseados em suas
histórias pessoais submetê-los a planos em outros pontos
dessa ”world line”. Podem então executar estes planos,
alterando as relações causais dos objetos de uma forma
definida de acordo com a estrutura de suas memórias.110

Mesmo que a ciência consiga colocar a mente de volta na natureza, não


vai ser capaz de descrever uma experiência individual adequadamente. Cada ser
humano é um acidente histórico único e diferente.
A consciência é estranha, misteriosa, o último grande mistério. Há algo
peculiar sobre ela enquanto um objeto da ciência, pois a consciência é ela
mesma o processo individual e pessoal que cada um de nós deve possuir para
poder fazer qualquer explicação científica. Cada consciência depende de sua
história única e personificação; uma consciência humana é construída de
maneira paradoxal — pelas interações sociais, apesar de ter sido selecionada
durante a evolução para perceber principalmente os objetivos e as satisfações de
cada individualidade biológica. Somos fruto de um sistema evolutivo e ao

110
EDELMAN. G., op. cit., p. 169.
91
mesmo tempo produto individual, cruzamento entre evolução e cultura. (A flor e
o rizoma perene.)

STEVEN PINKER E "O SENTIDO DA VIDA"

"O homem comum se maravilha diante


de coisas incomuns, o homem sábio se
maravilha diante do lugar-comum".
Confúcio

Steven Pinker é professor de psicologia e diretor do centro de


Neurociência Cognitiva do MIT (Massachusetts Institute of Technology), um
dos maiores representantes da ciência cognitiva nos Estados Unidos. Pinker se
propõe a explicar o funcionamento da mente através do que chama de
engenharia reversa. Segundo ele a mente é um sistema de órgãos de
computação, desenvolvidos por seleção natural, que permitiram a nossos
ancestrais a sobrevivência e o domínio de outras espécies.
111
Ele inicia seu livro “How the Mind Works” dizendo que não sabemos
ainda como a mente funciona, mas que nos últimos anos muitos dos mistérios
111
PINKER, S., (1997) , How the Mind Works, New York; W.W. Norton & Company.
92
da mente, de imagens mentais a amor romântico, foram promovidos a
problemas. Ele se propõe a discutir essas questões utilizando duas idéias básicas,
que não são suas, mas nas quais acredita: a teoria computacional da mente e a
teoria da seleção natural. Sua proposta é explicar o que é a mente, como ela
surgiu e por que nos permite ver, pensar e interagir.
Diz ele:

Quero convencê-los de que nossas mentes não são animadas


por algum vapor divino ou princípio único maravilhoso (...)
Acredito que a descoberta pelas ciências cognitivas e a
inteligência artificial dos desafios técnicos resolvidos pela
nossa atividade mental cotidiana é uma das maiores
revelações da ciência, um despertar da imaginação
comparável ao conhecimento de que o universo é feito de
milhões de galáxias ou que uma gota de água abunda em vida
microscópica.112

Todos os nossos atos cotidianos, desde o ver e reconhecer um objeto até


a locomoção ou o lançamento de uma bola de basquete, coisas consideradas
normais ou simples às quais nem mais prestamos atenção, são o produto de atos
absolutamente complexos, desenhados e aperfeiçoados através da seleção
natural. São a melhor forma que a natureza encontrou para resolver problemas
de adaptação e sobrevivência.
Pinker diz, parafraseando Confúcio, que não há nada comum em senso
comum. Nenhum banco de dados jamais vai poder listar os fatos que nós
conhecemos e que ninguém nunca nos ensinou.

112
PINKER, S.; op. cit., p. 4.
93
Um sistema inteligente, então, não pode ser ocupado por
trilhões de dados. Deve ser equipado com uma pequena lista
de verdades centrais e um grupo de regras para deduzir suas
implicações. Mas as regras do senso comum, assim como as
categorias do senso comum são muito difíceis de
estabelecer(...) Uma vida inteligente tem de deduzir as
implicações do que sabe, mas apenas as implicações
relevantes.113

A mente é aquilo que o cérebro faz, pensamento é um tipo de


computação. A mente é organizada em módulos cuja lógica básica é
determinada pelo programa genético, suas operações foram moldadas pela
seleção natural para solucionar os problemas que desafiaram nossos ancestrais
em nossa longa história evolucionária. A psicologia proposta por ele é um tipo
de engenharia reversa, tentativa de compreender como e porque um determinado
tipo de função ou aparato mental foi selecionado durante nossa história
evolucionária.
Quando Charles Darwin publicou A Origem das Espécies insistiu no fato
de que sua teoria não explicava apenas a complexidade do corpo mas também a
114
complexidade da mente. "A psicologia será baseada em novos fundamentos."
Pinker, falando então a partir do ponto de vista de uma Psicologia
Evolucionária, diz que a mente é uma extensão da biologia mas não apenas:

Pensamento é computação, mas isto não quer dizer que o


computador é uma boa metáfora para a mente. A mente é um
conjunto de módulos, mas os módulos não são caixas
113
PINKER, S.; op. cit., p. 14-15.
114
PINKER, S.; op. cit., p. 22.
94
encapsuladas ou circuitos circunscritos na superfície do
cérebro. A organização de nossos módulos mentais vem de
nosso programa genético, o que não quer dizer que há um
gene para cada traço ou que aprendizagem é menos
importante que costumamos pensar. A mente é uma adaptação
desenvolvida por seleção natural, mas isto não quer dizer que
tudo que pensamos, sentimos e fazemos é biologicamente
adaptativo. Nós evoluímos dos macacos, mas isto não quer
dizer que temos as mesmas mentes. E o objetivo final na
seleção natural é propagar genes, o que não quer dizer que o
115
objetivo final das pessoas é propagar genes.”

A mente não é o cérebro, mas o que o cérebro faz. A mente humana tem
uma estrutura heterogênea feita de várias partes especializadas, foi construída
assim porque tinha de solucionar problemas diferentes. Nosso programa
genético fornece o design básico de nossos órgãos. O conteúdo da atividade
cerebral está nos padrões de conexão e de atividade entre os neurônios.
Diferenças mínimas nos padrões de conexão originam padrões de resposta
diferentes. No entanto, diz ele: “Ao contrário da crença de que as culturas
podem variar arbitrariamente e sem limite, pesquisas em literatura etnográfica
mostram que as pessoas compartilham uma surpreendentemente detalhada
psicologia universal.” 116
O comportamento em si não se desenvolve, o que se desenvolve é a
mente. Ela foi desenhada para gerar comportamentos que seriam adaptativos em
nosso meio ambiente ancestral. No entanto, qualquer feito particular hoje é o

115
PINKER, S.; op. cit., pp.23-24.
116
PINKER, S.; op. cit., p. 32. Esta é de certa forma idéia junguiana de inconsciente coletivo...
95
efeito de inúmeras causas. Dizer que a mente é produto da seleção natural não
quer dizer que o comportamento também seja.

Nossas mentes foram desenhadas para gerar comportamento


que teria sido adaptativo em nosso meio ambiente ancestral,
mas qualquer feito particular hoje é o efeito de várias causas.
Comportamento é produto de uma batalha interna entre
muitos módulos mentais atuando num tabuleiro de xadrez de
oportunidades e restrições definidas pelo comportamento de
outras pessoas.117

O comportamento deve ser explicado hoje em dia como uma complexa


interação entre os genes, a anatomia do cérebro, seu estado bioquímico, o
contexto familiar da pessoa, a forma como a sociedade a trata e os estímulos aos
quais está exposta. No entanto "A ênfase num design inato não deveria ser
confundida com a procura por um gene responsável por este ou aquele órgão
mental." 118
Pinker diz que a consciência se tornou recentemente o círculo que todos
querem enquadrar, a cada momento surge um novo autor dizendo que descobriu
seu substrato neurofisiológico. Essa questão nos confronta com inúmeras
charadas, por exemplo: como um evento neural pode ocasionar consciência?
Para que ela serve? Por que a seleção natural favoreceu os seres conscientes?
Ele considera a questão da sensibilidade, ou “sentience” a mais interessante
relacionada à consciência.119 Sensibilidade é a experiência subjetiva, a percepção
fenomenológica, o como é que é ser ou como é fazer algo... O autor acredita

117
PINKER, S.; op. cit., p. 42.
118
PINKER, S.; op. cit., p. 34.
119
Esse termo foi traduzido por sensibilidade no livro de John R. Searle, O Mistério da Consciência. Preferi
utilizar a mesma tradução por se tratar de um termo comum ao tema.
96
que mais cedo ou mais tarde seremos capazes de compreender qual é a parte do
cérebro responsável pela consciência, no sentido de acesso à informação.
Como utiliza um modelo computacional para falar do fenômeno mental,
Pinker vai descrever a consciência em termos de acesso à informação. Diz que
qualquer processador de informação tem um custo, em termos de espaço (o
hardware para gravar a informação), tempo (quanto tempo o processador leva
para lidar com uma informação) e energia (o custo energético desse processo).
A consciência teria sido desenvolvida pela seleção natural de forma a poder lidar
com esses custos de forma adequada, isto é, de forma adaptativa.
Segundo Pinker a consciência teria quatro características fundamentais.
A primeira delas é que somos cientes, em vários graus, de um rico campo de
sensações, no entanto somos conscientes apenas de parte delas, o suficiente para
nos movimentarmos no mundo de forma adequada. A segunda característica é
que partes dessas informações podem cair fora do foco da atenção, são então
armazenadas na memória de curto prazo e alimentam nossa capacidade
deliberativa através de uma espécie de processamento inconsciente paralelo. A
terceira característica é o colorido emocional da experiência, não apenas
registramos experiências mas as registramos como penosas ou prazerosas, o que
nos leva a no futuro repetir umas e evitar as outras. A quarta característica seria
o controle de um processador executivo, algo que experimentamos como o self,
a vontade, o eu.
Pinker acredita que sensibilidade e acesso à informação são dois lados de
uma mesma moeda. Nossa experiência subjetiva é também ligada ao raciocínio,
à fala e à ação. Diz que pode ocorrer sensibilidade sem "acesso", quando por
exemplo de repente, durante uma conversa, percebo que estava ouvindo um
pica-pau lá fora. “O que precisamos é uma teoria de como qualidades
120
subjetivas de sensibilidade emergem de mera informação”. Ele diz que não
120
PINKER, S.; op. cit., p. 145.
97
tem a mínima idéia de como seria essa teoria. Não há ainda uma explicação
científica, o que não quer dizer que sensibilidade não exista, mas apenas que
não descobrimos ainda o ingrediente extra que deu origem à ela.
Pinker segue discorrendo sobre várias atividades mentais a partir do
ponto de vista da seleção natural e da teoria computacional da mente. Segundo
ele, todos os comportamentos humanos, como por exemplo, ética, religiosidade,
amor filial, podem ser compreendidos à luz dessa teoria. Termina o livro
dizendo:

Sensibilidade (sentience) não é a combinação de eventos


cerebrais ou estados computacionais: como um neurônio
sensível a vermelho dá origem à sensação subjetiva de
vermelho não é nem um pouco menos misterioso do que como
o cérebro inteiro dá origem ao fluxo inteiro de consciência. O
“eu” não é uma combinação de partes do corpo ou estados do
cérebro ou bits de informação, mas uma unidade de
identidade através do tempo, um único lugar que está em
nenhum lugar em particular. 121

121
PINKER, S.; op. cit., p. 564.
98
DEL NERO E O SÍTIO DA MENTE

Assim como os autores tratados anteriormente, Henrique Schützer Del


Nero também se propõe a compreender a questão do lugar do mental. Psiquiatra
brasileiro, paulista, parte da constatação da inexistência de material a respeito do
assunto em português e de sua vivência enquanto psiquiatra para elaborar uma
teoria acerca do que chama de "sítio da mente".
Del Nero chama sua teoria de “Redescrição Valorada de Atos e
Percepções Presumidos”. Diz ele:

A mente e a consciência, seu ponto máximo, são mistos


de cérebro e de cultura. Entender a articulação destes
conceitos pode auxiliar numa naturalização de certos
discursos das ciências humanas e na culturalização de
certos enfoques restritivos das ciências cerebrais.122

Segundo o autor, a mente é emoção, pensamento e vontade


contracenando no palco da consciência. Conhecê-la significa situá-la e tentar
unificar o discurso a seu respeito. Afirma que a mente está na encruzilhada entre
a natureza que selecionou o cérebro, a linguagem que permite a comunicação, a
história individual e a história coletiva .
Uma das grandes diferenças entre o ser humano e os outros animais é o
alto nível de encefalização. A proporção de massa cefálica no homem é muito

122
DEL NERO, H. S. , op. cit., p. 12.
99
maior do que em qualquer outro animal. O cérebro humano é formado
basicamente por dois conjuntos de células: um manipula e processa informação
e o outro serve de suporte. Resumindo, Del Nero diz que há três grandes funções
cerebrais básicas responsáveis pelas áreas sensoriais, motoras e integradoras.
Quanto mais simples o sistema nervoso, menor a área de integração; quanto
mais complexo, maior essa área. Diz o psiquiatra: “A mente surge graças
fundamentalmente a três processos evolutivos: complexidade, variação e
necessidade.” 123
Ao lidar com um sistema complexo, um neurônio a mais no processo de
encefalização pode propiciar num certo instante um salto qualitativo. O
acréscimo de células é capaz de gerar saltos no comportamento do sistema. “O
sistema nervoso humano tem dez bilhões de unidades processadoras
(neurônios) conversando por meio de alguns trilhões de conexões (sinapses).
Quanto mais neurônios a natureza foi colocando nos seres vivos, tanto mais
complexidade foi se obtendo.” 124
Del Nero faz uma descrição do funcionamento básico dos neurônios
enfatizando o papel da conexão entre eles. Para fazer a ligação entre o axônio
de um neurônio e o dendrito de outro é necessário um mensageiro químico, o
neurotransmissor. “O processo de passagem pela sinapse envolve a
transformação de informação sob a forma de corrente (potencial de ação) em
informação sob a forma de mensageiro químico (neurotransmissor). A
fidelidade da transmissão depende da ligação do neurotransmissor com os
125
receptores do neurônio seguinte.” Diz que o aprendizado se dá a partir da
modificação dos receptores possibilitando o reforço de algumas conexões entre
neurônios.

123
DEL NERO, H. S. , op. cit., p. 31.
124
DEL NERO, H. S. , op. cit., p. 32.
125
DEL NERO, H. S. , op. cit., p. 57.
100
O autor afirma que a mente é gerada através do processamento de
informação complexa a partir da manipulação de impulsos elétricos traduzindo o
discurso sobre coisas e pessoas. Acredita que sinais elétricos e símbolos mentais
não passam de duas faces da mesma moeda. Faz uma analogia entre o
funcionamento mental e o de uma empresa. Para tanto, chama a mente de
departamento virtual. Ante uma nova questão são reunidos membros de dois ou
mais departamentos concretos. Problemas novos requerem soluções novas, não
existem especialistas, a cada nova questão são reunidas pessoas de vários
comitês para conversar a respeito. Não há sentido em criar um novo
departamento a cada novo problema .126 (a mente) (...) Não está em
departamento concreto algum. Surge da dinâmica de recrutamento de
127
funcionários de departamentos concretos em comitês mais ou menos fixos.”
Num nível inferior há sempre departamentos concretos responsáveis por
determinadas atividades, ou seja, neurônios formam módulos concretos mais ou
menos especializados em certas funções.
Del Nero diz que após um processamento inicial em departamentos mais
específicos, qualquer questão será resolvida em departamentos virtuais. Apenas
as seqüências iniciais de um processo de percepção seguem caminhos mais
específicos. Quanto mais próximo da consciência, mais se embaralham as
unidades processadoras recrutadas em comitê:

Os fatos cruciais da mente humana – como a consciência


crítica, a capacidade de refletir, o pensamento , a
linguagem, a criatividade, o aprendizado e a transmissão
dele, a memória, o sonho, as emoções, as intuições —
costumam ser processados numa região em que não há

126
Parece ser a mesma idéia utilizada por Edelmam de mecanismo de reentrada entre mapas diferentes.
127
DEL NERO, H. S. , op. cit., p. 66.
101
divisórias bem marcadas e iguais para todos, já que
esses fatos mentais são fruto da reunião de unidades
vindas de diferentes departamentos complexos. 128

O ser humano vivendo num sistema complexo e mutante não pode


resolver seus problemas através apenas dos departamentos tradicionais. Tem de
selecionar sempre novas formas de lidar com essas questões, cria então uma
nova comissão que se for adequada se torna mais ou menos vitalícia, como se
fosse o conselho de uma empresa. A mente lida basicamente com situações
novas e que exigem constante aprendizado. Não há como procurá-la em uma
região específica, sua lógica de aparecimento está calcada no recrutamento
dinâmico de unidades que processem o talvez em comissões virtuais. Segundo
ele, a inteligência é “a construção contínua de rotas em locais em que não há
um caminho único e imutável.” 129
Del Nero diz que existe um código de transposição que traduz as cenas
do mundo, tanto interno quanto externo, em oscilações neuronais que, quando
sincronizadas, fazem com que apareçam no palco da mente como as
percebemos. A unidade resultante da sincronização é constantemente usada para
reinterpretar o mundo. Ele utiliza a já clássica distinção entre hardware e
software para falar das disfunções mentais. “O hardware-cérebro e o software-
experiência que cada um gravou em suas vidas é que estarão por trás de nossos
130
problemas e de nossa própria existência. ” Se o problema for no software,
então a solução pode vir via psicoterapia, se estiver no hardware então é o caso
da utilização de meios (remédios) que interajam no nível físico-cerebral. 131

128
DEL NERO, H. S., op. cit., p. 75.
129
DEL NERO, H. S., op. cit., p. 78.
130
DEL NERO, H. S., op. cit., p. 104.
131
Del Nero está aqui sendo dualista, colocando a ‘mente’ como separada e produto emergente do cérebro.
102
Segundo o autor, todas as funções mentais são funções cerebrais, mas
nem todas as funções cerebrais são mentais. Quanto mais evoluído o animal,
maior a quantidade de funções cerebrais que são funções mentais. Quanto maior
o número de unidades processantes capazes de sintonizar, mais próximos
estaremos do surgimento da mente. “A mente humana deve ter surgido da
imensa capacidade de grupamentos de neurônios se sincronizarem em
diferentes partes do cérebro, unificando informação dispersa e setorial num
132
objeto complexo e de contexto rico.” Os processos mentais se caracterizam
pela recombinação sincronizada de módulos neuronais.
A consciência, diz ele, é produto do cérebro (conteúdo) e função
(forma). “Conhecer é estar consciente de algo, representando-o plenamente e
exercendo sobre ele poder de discriminação quanto aos desdobramentos
133
possíveis.” Produtos mentais podem ou não ser conscientes, mas funções
mentais, para ele, são por definição sempre conscientes. Processos puramente
não-conscientes são de ordem fisiológica.
Do ponto de vista evolutivo a mente é a capacidade de aprendizado e de
coexistência de programas pré-gravados com programas gravados
posteriormente. O acaso vai criando variações e a necessidade de se adaptar ao
meio ambiente vai selecionando as mais bem-sucedidas, é a capacidade de
processar informação pelo cérebro que se justapõe às habilidades previamente
gravadas. O papel do aprendizado e da cultura é interagir com esses programas
pré-gravados, o que proporciona a possibilidade de transformação.
A formação da consciência depende da experiência e de sua qualificação
e correção através da linguagem, se esta não for rica o suficiente para nos
comunicarmos também não será rica o bastante para incorporar conceitos. Del
Nero acredita que o processo mental consciente ultrapassa os limites do cérebro

132
DEL NERO, H. S. , op. cit., p. 111.
133
DEL NERO, H. S. , op. cit., p. 126.
103
individual e através da comunicação permite que a mente tenha departamentos
terceirizados na mente dos outros e nos objetos da cultura.

Creio que a vivência de consciência é uma propriedade


semelhante à transição de fase por que passa a água
quando aquecida além de 100ºC. A água evapora e
mudam as características do sistema. Grandes
quantidades de assembléias neuronais sincronizando
podem suscitar fenômeno idêntico, levando o sistema a
exibir a propriedade da auto-inspeção ou consciência
subjetiva. 134

Todo o processo de forja do mental veio da capacidade do cérebro,


graças a um salto qualitativo durante o processo de encefalização, de processar
aprendizado, tornando-se capaz de fazer coisas novas. “O fato de a consciência
poder, por meio da linguagem, estabelecer ‘sintonia’ através de ‘neurônios
virtuais’ com outros cérebros e com outros bancos de dados (cultura) amplifica
135
brutalmente a capacidade do sistema de processar informação.” A
consciência pode ser amplificada pela comunicação e retroagir sobre o nível dos
neurônios, é uma propriedade emergente que pode ser ampliada pela linguagem.
“Toda vez que estabelecemos contato, através da comunicação, com outros
cérebros ou com objetos culturais, temos uma reunião do tipo mente virtual.”136
A consciência está em constante processo de mutação. No entanto, é
responsável por fazer uma pessoa estar ciente o tempo todo de que é sempre a
mesma pessoa.

134
DEL NERO, H. S.; Caderno Mais, Folha de São Paulo 13/04/97.
135
DEL NERO, H. S. , op. cit., p. 137.
136
DEL NERO, H. S. , op. cit., p. 143.
104
Embora a sensação subjetiva de unidade, a despeito da
diversidade, possa ser uma propriedade de abstração do
sistema nervoso, a correta caracterização do indivíduo
como centro de decisão, pensamento, liberdade, vontade,
livre arbítrio e responsabilidade depende de construções
do mundo cultural, que, através da linguagem, se
incorporam à consciência.137

Diz ele que qualquer abordagem do cérebro deve sempre levar em conta
a harmonia entre pensamento, emoção e vontade, deve haver um equilíbrio entre
sistemas. A inteligência é, então, nesse ponto de vista uma maneira de
estabelecer relações sincrônicas entre módulos cerebrais, testando formas novas
e efetivas de abordagem. O que brota na consciência é apenas parcela do
processo racional uma vez que várias funções são executadas abaixo da
percepção consciente.

Temos uma série de relações (sincronizações),


estabelecendo-se o tempo todo, que representam um
aumento na “temperatura” do processamento cerebral.
Em determinados momentos, a “temperatura” aproxima-
se tanto do ponto de transição que qualquer evento, até
uma noite de sono, pode colocar o sistema na transição
de fase. É nesse instante que a solução para o problema,
a heureca, brota na consciência (isto é, no nível mental
138
de processamento).”

137
DEL NERO, H. S. , op. cit., p. 146.
138
DEL NERO, H. S. , op. cit., p. 231.
105
Del Nero afirma que psicoterapia é um processo de requalificação de
conceitos forjados durante a história de cada um. Esse trabalho funciona via
linguagem, fornecendo, pela pluralidade analógica, uma via de solução através
de sincronizações desconhecidas. Diz que a linguagem é um tipo de estrutura
que aparelhou o cérebro humano ao longo da evolução. Nasce “desligada” e só
entra em funcionamento graças ao estímulo ambiental.

Nós seres humanos, no entanto, mudamos a cada dia.


Esse fenômeno se deve à porção adquirida da linguagem
(nos seus conteúdos) e à porção inata (na possibilidade
de construir infinitas sentenças) e, de maneira mais
ampla, à comunicação e à plasticidade (capacidade de
gravar diferentes programas) do sistema nervoso
139
central.”

O autor afirma que ao nascer somos apenas cérebros, formas; a mente,


então, vai ser moldada à imagem e semelhança do mundo circundante. Memória
é outro elemento essencial para entender a vida mental. Está essencialmente
ligada à mudança de determinados padrões em face da experiência; alterações na
freqüência ou amplitude do potencial de ação ou força das conexões sinápticas
são como “pegadas” que deixam informação para posterior reconhecimento.

A consciência, inicialmente uma formação embrionária


— possível de existir em outros animais, talvez de forma
semelhante ao estado de consciência de nossos sonhos—
foi incorporando a função de monitorar, regular e
valorar ações e percepções. Inicialmente externa,
139
DEL NERO, H. S. , op. cit., p. 315.
106
introjeta-se pela lenta ascensão à vida adulta, condição
de emancipação civil e penal. Introjetou-se, antes, pela
história da espécie humana (filogênese) e introjeta-se em
cada um durante o desenvolvimento do cérebro e do
indivíduo-sujeito-pessoa (ontogênese).140

140
DEL NERO, H. S. , op. cit., p. 397.
107
IV

EM BUSCA DE JUNG — ALGUMAS ANALOGIAS


POSSÍVEIS

“E seguindo em frente, chegamos a coisas como mal, beleza e


esperança... O que estará mais próximo de Deus; se eu puder usar
uma metáfora religiosa. Beleza e esperança, ou as leis fundamentais?
Penso que o caminho certo é dizer que temos que olhar para a
interconexão estrutural total das coisas, e que todas as ciências e não
apenas as ciências mas todos os esforços de tipo intelectual são uma
tentativa para ver as conexões das hierarquias, conectar beleza à
história, conectar história à psicologia humana, a psicologia humana
ao funcionamento do cérebro, o cérebro aos impulsos neurais, os
impulsos neurais à química,e portanto para cima e para baixo, de
ambas as formas. E hoje, não podemos, e não há por que acreditar
que sim, desenhar cuidadosamente uma linha de uma ponta à outra
desta coisa, porque nós apenas começamos a ver que existe essa
hierarquia relativa. E eu não acredito que qualquer uma das
extremidades esteja mais próxima de Deus.”
Richard Feynman , The Character of Physical Law , p.125
O que afinal é isso que chamamos de consciência? Parece que cada um
dos autores vistos tem idéias diferentes acerca do que seja esse fenômeno
mental. No entanto há um ponto especial em comum. Como cientistas, todos
eles falam do espanto diante da complexidade do funcionamento cerebral, todos

108
acreditam que quanto mais sabemos acerca dele mais maravilhados deveríamos
ficar. Enquanto as pessoas normalmente associam o conhecimento científico ao
esvaziamento do mistério da vida, que nos é tão caro, eles acreditam que
justamente aí reside o maior mistério de todos. "Este novo conhecimento não
diminuiu nosso senso de mistério mas aumentou-o imensuravelmente” 141
Francis Crick com sua hipótese espantosa, Gerald Edelmam com sua
Teoria de Seleção de Grupo Neural (TNGS), Del Nero e os departamentos
virtuais, Steven Pinker e a teoria da seleção natural aplicada às funções mentais,
pensam e escrevem acerca do que seria, para cada um, o embasamento
neurofisiológico da consciência. Todos eles concordam que o mental e sua
função superior — a consciência — são fruto da evolução do ser humano. Todos
dizem que ainda não temos suficiente conhecimento científico a respeito, mas
que a questão da consciência está deixando de ser um mistério para se tornar um
problema.
O exagero dessa posição parece ser a idéia de que tudo pode ser reduzido
para o nível da comunicação entre neurônios. Não seríamos nada mais do que
conjuntos de sinapses nervosas, milhões de pontos de luz acendendo e apagando
ao mesmo tempo. Daí a grande crítica em relação a uma abordagem reducionista
que simplificaria todos os fenômenos mentais e que como conseqüência última
terminaria por inviabilizar nosso trabalho como analistas. Afinal, para que gastar
tempo e dinheiro com a análise dos conteúdos psíquicos se uma medicação
apropriada poderia dar conta de todas as questões. Del Nero, talvez por ser o
único psiquiatra entre os autores vistos, é especialmente enfático quando fala a
respeito. Diz que na maioria das vezes é preciso medicar e só após a recuperação
parcial iniciar algum tipo de psicoterapia. 142 Diz que se a sinapse é justamente

141
CRICK, F.; (1995), op. cit.; p. 260.
142
DEL NERO, H. S.; (1997); op.cit., p.208.
109
um dos locais de desregulagem no cérebro humano, importante seria agir sobre
ela através de algum tipo de medicação.
Outro importante ponto em comum entre os autores vistos é a ênfase no
papel da cultura, das inter-relações sociais e da história individual no
desenvolvimento do cérebro. O cérebro e o funcionamento mental, mais
especificamente, são produto da cultura na qual estão inseridos. Eles alertam
para o fato de que mesmo em gêmeos idênticos não se observa um idêntico
funcionamento cerebral. Cada um vai ter uma "circuitaria" mental específica e
individual. Apesar de a forma ser a mesma, a maneira como vão se estabelecer
as conexões é sempre individual. São as emoções, as vivências concretas, desde
a fecundação que vão determinar o caminho do desenvolvimento como um todo
e da mente em especial. Francis Crick diz que: "a estrutura geral do sistema
nervoso é determinada geneticamente mas é a experiência que vai sintonizar e
refinar os muitos detalhes de sua estrutura , é sempre um processo contínuo ao
longo da vida.." 143

A alma humana vive unida ao corpo, numa unidade


indissolúvel, por isso só artificialmente é que se pode
separar a psicologia dos pressupostos básicos da
biologia, e como esses pressupostos biológicos são
válidos não só para o homem mas também para todo o
mundo dos seres vivos, eles conferem aos fundamentos
da Ciência uma segurança que supera os do julgamento
psicológico que só tem valor na esfera da consciência.
Por isso não deve causar surpresa que os psicólogos se
sintam inclinados a retornar à segurança do ponto de
vista biológico e utilizem a teoria dos instintos e da
143
CRICK, F.; (1995), op. cit., p. 81).
110
fisiologia. Também não é de espantar a existência de
uma opinião largamente difundida que considera a
psicologia meramente como um capítulo da fisiologia.
Embora a psicologia reclame, e com razão , a autonomia
de seu próprio campo de pesquisa, ela deve reconhecer
uma extensa correspondência de seus fatos com os dados
144
da biologia.

A maioria dos autores citados no terceiro capítulo concordaria com essa


fala de Jung. Todos eles estão em busca do que seriam os pressupostos básicos
da neurofisiologia que permeiam os fenômenos mentais e, de forma especial, o
fenômeno da consciência. Nenhum deles no entanto nem sequer menciona
Jung, parecem desconhecer por completo qualquer das idéias propostas por ele.
Falam em Freud ao discutir a questão do inconsciente enfatizando a importância
de sua teoria e a grande novidade que ela trouxe. Edelman cita o início de seu
trabalho com o "Projeto para uma Psicologia Científica" e diz que a noção de
repressão proposta por Freud é consistente com o modelo de consciência que ele
apresenta. Del Nero acentua a formação de Freud, neurologista, dizendo que a
parte inicial de sua obra seria uma tentativa de colocar no cérebro a dinâmica
dos fatos psíquicos anormais, trabalho que acabou por abandonar em função do
pouco conhecimento acerca do cérebro que havia na época. Crick, o único que
menciona Jung, o cita como um autor associado a Freud, sem nenhuma
especificação. Nas outras obras Jung não aparece.
No entanto, ao ler as teorias sobre o fenômeno da consciência propostas
por esses autores deparei-me com algumas afirmações muito parecidas com
idéias propostas por Jung. Comecei a pensar que de fato a teoria junguiana não

144
JUNG, C. G. (1969). Psychological factors determining human behaviour. In: The Structure and Dynamics of
the Psyche. CW 8, New York: Princeton University Press, par. 232.
111
está tão afastada assim do modelo científico atual. Algumas das idéias de Jung
encontram sim um correlato neurofisiológico: não se trata de querer validar a
teoria junguiana utilizando modelos das neurociências mas de buscar algumas
aproximações entre ambos os campos.
A aura de misticismo que envolve Jung e seus seguidores impede ainda
hoje a propagação das idéias da psicologia analítica: Jung ainda é visto por
muitos como um profeta místico, cuja teoria está afastada das mais recentes
descobertas científicas. Acredito que já é tempo de começarmos a trabalhar no
sentido de ampliar a divulgação de suas idéias enfatizando aspectos outros que
não o místico e o religioso.

Jung inicia sua carreira como psiquiatra no Hospital de Burghölzli.


Nessa época começa a se interessar pela compreensão dos delírios de seus
pacientes psiquiátricos tentando encontrar o que poderia ser um sentido, o que
seria a história de cada um deles. Percebe então que essa era a forma de poder
chegar a algum tipo de cura.
A partir da observação clínica desses pacientes começa a trabalhar com o
teste de associações, elaborando, a partir daí, a idéia de complexos e mais tarde
a idéia de arquétipos. Chega a essas idéias através da observação de conteúdos
surgidos durante o "Teste de Associações" e conteúdos de sonhos e fantasias de
pacientes. Observando esses complexos afetivamente carregados percebe que na
verdade eles fazem parte da "constituição psíquica que é o elemento
absolutamente predeterminado de cada indivíduo.” 145
Percebe então a existência do que seriam motivos que se repetiam a
despeito do background cultural ou familiar das pessoas. Através do estudo e da

145
JUNG, C. G. (1969). A review of the complex theory. In: The Structure and Dynamics of the Psyche. CW8.
New York:Princeton University Press, par. 213.
112
observação desses motivos repetitivos percebeu que teriam a mesma estrutura de
conteúdos mitológicos que apareciam ao longo do tempo nos mitos, nas lendas e
histórias da humanidade. Chegou então à idéia de arquétipo. Começou a pensar
que a ocorrência desses motivos repetitivos não poderia ser explicada apenas
pela comunicação direta, uma vez que eles apareciam em lugares e povos muito
distintos. Propôs então que deveria haver algo inato, não aprendido, que fosse o
responsável pelo aparecimento desses motivos. Em Símbolos de Transformação
Jung expõe as idéias que vão ocasionar seu afastamento de Freud. Uma dessas
idéias é justamente o conceito de "imagens primordiais", forma pela qual
chamava inicialmente os arquétipos.
Diz Jung:

Então também o mito, que é baseado num processo de


fantasia inconsciente, é na verdade , forma e
substância , longe de ser infantil ou a expressão de uma
atitude auto erótica ou autística , mesmo que produza
uma imagem do mundo pouco consistente com nossa
objetiva e racional visão das coisas. As bases instintivas,
arcaicas da mente são uma questão de fato objetivo e
não são menos dependentes da experiência individual ou
escolha pessoal que das estruturas herdadas e do
funcionamento do cérebro ou qualquer outro órgão.
Assim como o corpo tem uma história evolucionária e
mostra traços claros dos vários estágios evolutivos,
também a psique faz o mesmo. 146

146
JUNG,C.G., (1969). Symbols of transformation. CW 5.New York: Princeton University Press, par.38.
113
Seria espantoso pensar na psique como o único fenômeno biológico a
não mostrar vestígios claros de sua história evolutiva. Seguindo essas idéias,
Jung vai chegar ao conceito de inconsciente coletivo — que seria básico e
comum a toda humanidade, repositório das experiências humanas e ao mesmo
tempo condição anterior a essa experiência, imagem do mundo que levou uma
eternidade para se formar. O inconsciente coletivo comum a toda humanidade , é
diferente do inconsciente pessoal, este sim mais próximo da noção de
inconsciente freudiano.
Para Jung, psique e matéria são aspectos diferentes da mesma coisa, os
arquétipos portanto teriam também dois pólos: o orgânico/biológico e o
psíquico. Utilizando a imagem da escala cromática, Jung diz que o dinamismo
instintivo (mais biológico) se situaria na parte infravermelha do espectro,
enquanto que as imagens instintivas estariam no extremo violeta, que é
composto pelo azul e pelo vermelho.

A percepção da realidade do instinto e sua assimilação


nunca se dão no extremo vermelho,ou seja, pela
absorção e mergulho na esfera instintiva, mas apenas
por assimilação da imagem, que significa e ao mesmo
tempo evoca o instinto, embora sob uma forma
inteiramente diversa daquela em que o encontramos a
nível biológico.147

Refinando sua idéia de arquétipo, Jung diz que existe uma


interdependência entre instinto e imagem e que o arquétipo seria algo
psicossomático. A relação entre arquétipos e biologia é importante para a

147
JUNG,C.G., (1969). On the Nature of the Psyche. In: The Structure and Dynamics of the Psyche. CW 8 New
York: Princeton University Press, par.38.
114
colocação do ponto de vista científico. Discutindo essa relação, Samuels (1989)
diz que em alguns momentos Jung fez conexões entre arquétipos e genes,
especialmente em relação aos arquétipos animus e anima, que ele julgou terem
origem genética. Fordhan mais tarde disse que os arquétipos deveriam estar
representados de alguma maneira nas células do embrião, seria essa a única
maneira de explicar a possibilidade de sua existência.
Anthony Stevens, trabalha com a relação entre arquétipos e
neurobiologia. Em seu livro Archetype — A Natural History of The Self ele
afirma:

O arquétipo possui uma dualidade fundamental: é


consciente e inconsciente, simbólico e instintivo, psíquico e
não-psíquico, é pré condição essencial par todos os eventos
psico-físicos (...) é uma conseqüência de sua dupla natureza
que o arquétipo encontre expressão — ou seja atualizado
como diria Jung— tanto no nível objetivo do
comportamento externo quanto no nível subjetivo da
experiência consciente interna”148

É interessante observar a convergência de algumas idéias dos autores


citados com as de Jung. Damásio utiliza uma expressão quase idêntica à
junguiana trazendo uma idéia muito próxima à de arquétipo. Ao falar sobre
convenções e regras que regulariam as sociedades humanas, diz que seriam
controles adicionais que moldariam o comportamento instintivo, de forma a
poder ser adaptado com flexibilidade a um meio ambiente em rápida e complexa
mutação e garantir a sobrevivência da espécie. Diz ele:

148
STEVENS, A. ((1982). Archetype, a Natural History of the Self, London, Routledge & Kegan. p. 62.
115
Muito embora essas convenções e regras tenham de ser
transmitidas apenas por meio da educação e da
socialização, de geração em geração, suspeito que as
representações neurais da sabedoria que incorporam e
dos meios para implementar essa sabedoria se
encontram ligadas, de forma inextricável, à
representação neural dos processos biológicos inatos de
regulação. Vejo uma "trilha" ligando o cérebro que
representa uma ao cérebro que representa a outra.
Naturalmente que essa trilha é constituída por conexões
entre neurônios.149

Jung, por sua vez, diz:


A natureza humana é caracterizada por uma
instintividade inflexível, bem como pelo fato de estar
totalmente à mercê de seus instintos. A carga hereditária
oposta a esta situação é constituída pelos sedimentos
mnemônicos de todas as experiências legadas pelos
ancestrais. As pessoas muitas vezes se sentem inclinadas
a encarar tais hipóteses com ceticismo ,pensando que se
trata de “idéias herdadas”. Evidentemente não é disto
que estamos falando. Trata-se, ao contrário, de
possibilidades herdadas de idéias, de “pistas” que foram
traçadas gradualmente pelas experiências acumuladas
pelos ancestrais. Negar que estas pistas foram herdadas
equivaleria a negar a hereditariedade do cérebro.150
149
DAMASIO, A. op. cit., p.153.
150
JUNG, C.G. (19969). On Psychic Energy.In: The Structure and the Dynamics of the Psyche. CW 8. New
York: Princeton University Press, par. 99.
116
Como vemos as palavras "trilhas" em Damásio e "pistas" em Jung falam
do mesmo motivo que seria a construção ao longo do desenvolvimento da
humanidade de possibilidades de representação de alguma forma herdadas pelo
homem. Estão ambos falando da idéia de arquétipo, Damásio utilizando um
referencial neurológico e Jung utilizando um referencial psicológico. No
entanto, como diz Jung, o físico e o psíquico são dois lados da mesma moeda e
não podemos falar de um sem, ao mesmo tempo, falar do outro. A visão
neurológica e a visão psicológica são apenas duas das possíveis formas de ver a
questão. Ao dizer que essas "trilhas" ou "pistas" estão fundamentadas nas
conexões entre os neurônios, Damásio está fornecendo um possível substrato
neurológico para um dos mais importantes conceitos junguianos. Jung enfatiza
em vários momentos que o arquétipo não é a imagem em si, mas sim a
possibilidade de representação.
Marie Louise Von Franz, também falando sobre isso, diz:

Os arquétipos têm muitas probabilidades de serem


predisposições estruturais inatas que se manifestam na
experiência concreta como o fator ou elemento que
ordena ou organiza representações em determinados
padrões (...) São “modos de apreensão” típicos que
pertencem do ponto de vista estrutura, a todos os seres
humanos, e que formam ao mesmo tempo uma auto-
imagem interior , por assim dizer, dos instintos humanos
ou de sua estrutura. 151

151
FRANZ, M. L. V. (1997). C. G. Jung, Seu Mito em Nossa Época. São Paulo, Cultrix, p. 105.
117
Del Nero acredita que o cérebro humano vem com uma espécie de
programa pré-gravado "(...) do ponto de vista evolutivo, mente significa
capacidade de aprendizado e de coexistência de programas pré-gravados com
programas gravados posteriormente”152 Seria aquilo que chamamos de vivência
individual, que vai ao longo do tempo mobilizar e preencher ou colorir a
"forma" arquetípica, esta sim conteúdo do inconsciente coletivo.
Em Considerações Teóricas Sobre a Natureza do Psíquico, Jung discute
a questão do inconsciente dizendo que ele não seria apenas o desconhecido, mas
seria antes o psíquico desconhecido, um estado fluido no qual não se pode
demarcar com precisão o limite entre consciente e inconsciente. Existe uma
polaridade dinâmica entre a consciência por um lado e o inconsciente por outro,
que funcionam num sistema auto-regulador, de retro-alimentação, onde se
percebe a existência de um todo indivisível. No entanto, diz ele "só quando o
homem possui a capacidade de ser consciente é que se torna verdadeiramente
homem." 153
Del Nero154 diz que do ponto de vista neurológico produtos mentais
podem ou não ser conscientes. Conhecer é estar consciente de algo,
representando-o plenamente e exercendo sobre ele poder de discriminação
quanto aos desdobramentos possíveis. Diz ele:

Pensar sem consciência é executar algum tipo de rotina


cerebral (...) Aquilo que brota na consciência é apenas
uma parcela do processo racional, uma vez que inúmeras
funções são executadas abaixo da percepção
consciente.155

152
DEL NERO, H. S. op cit., p. 132.
153
JUNG, C. G. On The Nature of the Psyche. In; op. cit .CW 8. par. 412.
154
DEL NERO, H. S. op cit., p. 126.
155
DEL NERO, H. S. op cit.,p. 246.
118
Jung acredita que a consciência seja imprescindível para a existência do
mundo, fundamental para uma relação dialética eu-mundo, para que algo possa
ser em algum lugar. Para tanto é preciso que exista uma instância egóica, centro
da consciência, responsável pelo auto-reconhecimento, auto-referência. Essa
instância é aquela cujos primórdios os vários teóricos sobre o desenvolvimento
situam ao redor dos 6 meses de vida.
Edelman traz a mesma idéia a partir do ponto de vista neurológico. Ele
diz que, fazendo uso apenas da consciência primária, aquela mais ligada ao
registro das sensações, o homem não "pode ver o mundo". Seres com
consciência primária podem até ter imagens mentais, mas não um "self" (sentido
de identidade) que as identifique, que dê sentido a elas. É como se ele estivesse
falando de um ser sem alma, sem singularidade, que portanto não é capaz de
identificar o outro, o não-eu. Diz ele:

Um animal somente com consciência primária está


fortemente atado à sucessão de eventos em tempo real.
(...) as bases para o reconhecimento de uma relação
sujeito-objeto no ser humano, requerem uma
consciência emergente da distinção entre self (no
sentido social de selfhood) e outras entidades
classificadas como não-self.156

Mais adiante ele define selfhood como "não apenas a individualidade


que emerge da genética ou imunologia, mas a individualidade pessoal que
emerge das interações sociais e desenvolvimento.” 157

156
EDELMAN, G.M. op. cit. , p. 125.
157
EDELMAN, G.M. op. cit. , p. 167.
119
Steven Pinker, em todo o seu livro, fala sobre um aparato mental
selecionado durante milhões de anos, se apresentando agora com a forma
definida que conhecemos. Diz que o desejo último do ser humano seria a
propagação da espécie, a continuidade da vida e que para isso cada um de
nossos comportamentos é adaptativo. Ele cita Darwin, que escreve: "A seleção
natural nunca vai produzir em um ser nenhuma estrutura mais maléfica do que
benéfica para aquele ser, porque seleção natural atua somente por e para o
bem de cada um”.158
Jung com seu conceito de individuação diz mais ou menos o mesmo:

Individuação é um processo de diferenciação, tendo


como objetivo o desenvolvimento da personalidade
individual.(...) somente uma sociedade que pode
preservar uma coesão interna e valores coletivos e ao
mesmo tempo garantir a maior liberdade possível ao
indivíduo, tem possibilidade de uma duradoura
vitalidade.159

Será que podemos falar em individuação como um processo de seleção


natural? Se pensarmos que cada um de nós é produto de uma linhagem e a
melhor expressão de um desenvolvimento que vem acontecendo através de
milhares de anos, estamos dizendo que somos a melhor expressão da espécie, o
indivíduo "último tipo". Jung diz que "cada vida individual é em última
instância ao mesmo tempo a vida eterna da espécie.” 160 Pensando em termos
evolutivos, devemos, portanto, levar adiante essa tarefa afinando nosso

158
PINKER, S. op. cit., p. 397.
159
JUNG, C. G. op. cit., CW 6, par. 758.
160
JUNG,C.G. Psychology and Religion in Psychology and Religion: West and East .op.cit. CW 11, par. 146.
120
desenvolvimento individual, contribuindo assim para o aprimoramento da
espécie. Del Nero afirma:

A mente humana está situada na encruzilhada entre a


natureza que selecionou o cérebro humano, a linguagem
que permitiu a comunicação, a história pessoal que
moldou o rosto de cada um e a história coletiva que nos
dá padrões médios de ação e juízo.” 161

Na introdução de Símbolos de Transformação Jung diz:

A psique não é de hoje; sua linhagem remonta a alguns


milhões de anos. A consciência individual é apenas a flor
e o fruto de uma estação, brotam do rizoma perene sob a
terra; e estaria mais de acordo com a verdade se levasse
em conta a existência do rizoma. Porque a matéria raiz
é a mãe de todas as coisas .162

Gerald Edelman diz algo muito parecido :


(...) cada consciência depende de suas história e
incorporação únicas. E dado que um self humano
consciente é construído, talvez paradoxalmente, por
interações sociais, e no entanto tenha sido selecionado,
durante a evolução a perceber principalmente os
objetivos e satisfações de cada indivíduo biológico,

161
DEL Nero, H. S., op.cit., p. 21.
162
JUNG, C. G. op. cit., CW 5, p. xxiv.
121
talvez não seja surpresa que como indivíduos nós
queiramos explicações que a ciência não pode dar.
Talvez não seja surpresa que desejemos imortalidade (...)
o mistério está em imaginar como uma mente particular
surge em relação à sua própria história pessoal. Nós
estamos aprisionados.163

A questão que esses autores, tão diferentes e no entanto tão próximos,


abordam é o desafio de compreender como uma mente particular vai surgir.
Todos eles falam sobre a história pessoal de cada um, inserida num contexto
cultural, moldando por sua vez desde o nascimento a mente de cada ser humano
individual. Quando Edelman diz que estamos aprisionados (locked in), está
trazendo a mesma idéia da mente incorporada, o mental enquanto atributo
funcional de um aparato neurofisiológico e, por isso mesmo, dependente tanto
do individual quanto do coletivo. Jung diz que o indivíduo é sempre histórico
por se achar rigorosamente vinculado ao tempo.

Esse mesmo pressuposto pode estar por trás da idéia junguiana de


inconsciente coletivo definido por Jung como "... um segundo sistema psíquico
de natureza impessoal, universal, coletiva que é idêntico em todos os
indivíduos. Este inconsciente coletivo não se desenvolve individualmente mas é
herdado”.164

Del Nero introduz a idéia de uma mente terceirizada, isto é, através da


comunicação haveria uma sincronização cultural que permite que exista uma
espécie de processo mental acontecendo na interação entre indivíduos dotados
de mente. Cada um de nós teria departamentos terceirizados na mente dos outros

163
EDELMAN, G. op.cit., p. 139.
164
JUNG,C.G. The Concept of the Collective Unconscious. In: The Archetypes and the Collective
Unconscious.CW 9. op.cit. par. 90.
122
e nos objetos da cultura. Ele diz que:

Há uma forma de mente que surge da interação entre


indivíduos dotados de mente, bem como da interação do
indivíduo com cada objeto da cultura. É como se
tivéssemos a formação de um novo cérebro com três
neurônios: o indivíduo, o outro indivíduo e um objeto
cultural. (...) Não há um cérebro ali entre o indivíduo, o
outro e um objeto da cultura .Mas existe um processo de
manipulação de informação , que trafega entre os três,
que pode ser da mesma natureza que o cérebro usou
para fazer a mente surgir da interação entre os
neurônios. 165

Gerald Edelman diz algo muito semelhante quando aponta para o papel
do meio ambiente na estruturação do sistema nervoso de cada indivíduo e na
questão do sentido que damos a cada um dos ícones culturais que vão de alguma
forma contribuir para o desenvolvimento do que chamamos consciência. Diz
então: "Não podemos individualizar conceitos e crenças sem fazer referência ao
meio ambiente. O cérebro e o sistema nervoso não podem ser considerados de
166
forma isolada dos estados do mundo e das interações sociais...” Mais adiante
ele vai dizer que o significado que atribuímos a algo depende da inter-relação
com o meio ambiente "para ter nossos significados temos de crescer e nos
comunicar em uma sociedade”. 167

Essas idéias estão de alguma forma implicadas. Quando falamos em um

165
DEL NERO, H. S. op. cit. , p. 139.
166
EDELMAN, G. op.cit. ,p.224.
167
EDELMAN, G. op.cit. ,p.225.

123
inconsciente coletivo estamos talvez falando desses conteúdos (ou melhor,
possibilidade de representação) presentes na mente de todos os seres humanos,
mesmo de forma inconsciente. Não é que exista uma mente etérea flutuando em
torno de uma coletividade mas é possível que existam conteúdos comuns
pertencentes à humanidade como um todo e a cada sociedade em particular que
vão sendo experienciados de acordo com o sentido individual a eles atribuído.

Vários autores falam sobre vivências ou percepções que poderiam


acentuar algumas conexões neuronais e não outras, criando circuitarias mentais
diferentes, mapas globais diferentes para Edelman, departamentos virtuais
diferentes para Del Nero. Acredito que muito da possibilidade efetiva de
trabalho analítico resida aí, justamente na capacidade de, através da fala,
elucidação e elaboração de conflitos (por ex.) ir refazendo conexões, essa
circuitaria, esses mapas.

Susan C. Vaughan, psiquiatra americana com formação em psicanálise


pela Universidade de Colúmbia, escreveu um livro chamado A cura pela Fala
— a Ciência por trás da Psicoterapia. É um livro interessante que traz, de
forma clara e compreensível, algumas idéias acerca do que poderia ser o
embasamento científico do trabalho analítico, em seu caso trabalho
psicanalítico.
Ela diz que se considera uma micro-cirurgiã da mente porque utiliza
palavras e símbolos para explorar e modificar o panorama neural das mentes e
cérebros de seus pacientes. Os resultados da psicoterapia devem-se à produção
de mudanças duradouras nas conexões entre neurônios que compõem o córtex
cerebral, base do funcionamento do aparato mental. Essa reformulação neuronal
propicia mudanças na forma de produzir, integrar, experimentar e compreender
informações e emoções. A psiquiatra acredita que a psicoterapia de fato

124
modifica a estrutura do cérebro, alterando a rede de células neurológicas da
massa cinzenta do córtex cerebral.
Gerald Edelman, pensando de forma semelhante, fala da memória como
um processo de contínua recategorização. Diz que alterações na força sináptica
de grupos num mapa global fornecem as bases bioquímicas da memória. Abre
espaço então para a questão do tratamento psicanalítico (abarcando aqui de
maneira geral as terapias verbais) que poderia atuar justamente nesse processo
de recategorização. Edelman diz que "na verdade, nossa liberdade está em
nossa gramática”.168 Ele acredita que a TNGS descrita por ele pode
fundamentar a validade da terapia verbal, os males da mente podem ser vistos
como alterações nas trilhas reentrantes e na categorização. A terapia verbal pode
funcionar justamente aí, na possibilidade de ampliar a consciência modificando
essas categorizações.
Del Nero afirma:

Em geral, psicoterapia é um processo de requalificação


de conceitos forjados durante a história de cada um de
nós. Usa a linguagem como meio dinâmico, fornecendo,
pela pluralidade analógica, uma via de solução através
de sincronizações desconhecidas.169

Susan C. Vaughan propõe que o córtex cerebral abrigue um "sintetizador


de histórias" cuja tarefa é fornecer as tramas e personagens para as histórias
pessoais únicas. Seria uma idéia muito próxima à idéia junguiana de mito
pessoal, o sintetizador de histórias poderia ser compreendido como o mito de
cada um, aquele que dá sentido a nossa vida, que dirige nossos destinos que de
168
EDELMAN,G. op.cit., p. 170.
169
DEL NERO,H. S. op.cit., p. 266.

125
alguma forma molda o registro de nossas vivências. Ele conteria representações
de nós mesmos e dos outros, construindo blocos com os quais montamos a
história de nossa vida. As conexões que ligariam esses blocos, as conexões
entre os neurônios que constituem o sintetizador, são fortalecidas, moldadas,
enfraquecidas ou destruídas ao longo do processo de psicanálise.
James Hillman em O Código do Ser propõe a teoria do fruto do
carvalho: segundo ele, todas as pessoas nascem com uma imagem que as define
e fazemos terapia para resgatar essa imagem muitas vezes perdida. "Todas as
pessoas em terapia , ou afetadas pela reflexão terapêutica... estão buscando
uma biografia adequada: como juntar as peças de minha vida para formar uma
imagem coerente? Como encontrar a trama básica de minha história?" 170
O propósito da psicoterapia é reexaminar e reformular as redes de
conexões estabelecidas desde o início da vida. Susan Vaughan acredita que
aquilo que chamamos de "elaboração" seria o reexame e a reformulação das
redes formadas desde as primeiras experiências humanas. Ela propõe a idéia de
que essa seria uma forma de "pentear" as redes neurais do paciente,
desembaraçando as partes que estão embaraçadas, proporcionando uma forma
mais organizada.

Acompanhar as associações de um paciente durante uma


sessão é como debruçar-se sobre sua paisagem neural,
obtendo a configuração do terreno através da análise de
idéias e imagens interligadas que vão formando o fio da
meada.171

170
HILLMAN, J. (1997). O código do Ser. Rio de Janeiro. Ed.Objetiva. pp 14/15.
171
VAUGHAN,S. (1998). A cura pela fala. Rio de janeiro; Ed.Objtiva. p. 60.
126
A autora acredita que os temas gerais que o sintetizador de histórias
pode criar são limitados porque os seres humanos "costumam nutrir
preocupações centrais recorrentes", mas os elementos de cada história são
individuais. Novamente aqui encontra-se a idéia de arquétipo, ou programa pré-
gravado, de possibilidades estruturais que vão ser preenchidas individualmente.
Diz ela que a psicoterapia poderia modificar as conexões funcionais
entre os neurônios e mais tarde converter essas transformações em mudanças na
estrutura concreta do próprio córtex cerebral. O cérebro humano é plástico o
suficiente para poder ser transformado durante a vida; seu verdadeiro
treinamento exige atenção concentrada para reconhecer e desafiar as associações
que as experiências de vida levaram uma pessoa a construir. Depois de
reconhecidas as regras do funcionamento das redes em psicoterapia, o próximo
passo seria questionar os valores mais arraigados do caráter, questionando seus
modos de funcionamento.
Vaughan sugere que desde o início da vida somos instruídos a construir
protótipos, mapas internos globais dos fatos. A neurose é uma forma de
repetição de novas relações como se fossem antigas, baseadas nos protótipos. A
análise pode ser um processo de recontar a vida transformando-a a partir desses
protótipos, possibilitando a criação de novas relações.
Ela sugere que cada um tem histórias significativas de sua vida para
contar, "histórias são a moeda corrente em psicoterapia", a psicanálise retira sua
força analítica especificamente do ato de "recontar uma vida", o que nos permite
sintetizar uma narrativa mais coerente. Através da psicoterapia podemos
entender e valorizar a história de nossa vida através da mudança estrutural, que
seria descrita pelos biólogos como uma alteração nas conexões neuronais e pelos
analistas como modificação das estruturas da mente.

127
Cada ser humano é único e portanto está no mundo e o vê a partir de sua
própria equação pessoal. Jung diz que "A limitação inevitável que acompanha
qualquer observação psicológica é a de que ela, para ser válida, pressupõe a
172
equação pessoal do observador". Gerald Edelman diz quase o mesmo: "Um
indivíduo pode relatar sua experiência a um observador , mas este relato
sempre será parcial e relativo a seu próprio contexto pessoal". 173

CONCLUSÃO

172
JUNG, C. G., op. cit., CW 8, par.213.
173
EDELMAN, G., op.cit., p. 140.
128
"Se sabes o que estás fazendo és bem aventurado, mas se não o
sabes és maldito."
Trecho do Novo Testamento, apócrifo, citado por Jung 174

A consciência só existe quando é experimentada como tal. Consciência e


sua experiência são a mesma coisa. Mesmo que possamos explicar seu
funcionamento ela não deixará de existir enquanto experiência vivida, não pode
ser reduzida aos processos que possibilitam sua existência.
No segundo capítulo vimos como autores de escolas teóricas diferentes
descrevem o surgimento da noção de eu, de autoconsciência. Cada um deles a
seu modo fala do mesmo momento fundamental em que o bebê se percebe como
um eu diferente do resto do mundo. Eles mostram o desenvolvimento desse tipo
especial de consciência do ponto de vista da dinâmica da psique.
No capítulo seguinte examinamos a forma como vários cientistas
tentaram descrever a mesma coisa a partir do ponto de vista do funcionamento
do aparato cerebral. Acredito que são faces da mesma moeda ou do mesmo
dado, uma vez que não são as únicas abordagens possíveis. O fenômeno do
surgimento da consciência, em especial da autoconsciência, pode ser abordado a
partir de várias perspectivas.
Tentei aqui mostrar que há paralelos ou pontos convergentes entre essas
abordagens, enfatizando o fato que uma forma não pode nunca ser reduzida a
outra. Não acredito que possamos encontrar uma explicação única ou "A
Resposta" que dê conta de todas as possibilidades. Como foi repetidamente dito,
cada cérebro humano é único em seu desenvolvimento, sua configuração e sua
174
JUNG, C.G., op. cit., CW 11, par. 133.
129
estruturação. Não existem dois aparatos mentais organizados exatamente da
mesma forma. Existem sim padrões básicos de funcionamento que dão origem a
todas as possibilidades de variação individuais, mas eles por si só não podem
explicar o que é a experiência individual, subjetiva da consciência.
Talvez a questão mais importante a ser considerada seja a de que a
balança que durante os últimos anos pendeu para o lado da mente enquanto
produto etéreo, visto de maneira quase separada do corpo físico, apesar das
tentativas de não cair num dualismo psicofísico, hoje em dia pende de forma
radical para o outro lado. Os neurocientistas tendem a acreditar que conhecendo
a neurofisiologia das funções cerebrais podemos vir a decifrar este último
grande enigma: o que é a mente afinal?
A questão da consciência, de seu desenvolvimento e de sua localização
vem despertando curiosidade e gerando uma grande quantidade de trabalhos,
estudos e publicações. Até pouco tempo atrás, dizem vários autores, a
consciência era um grande mistério, durante muito tempo não foi considerada
assunto adequado, ou mesmo válido, para a investigação científica. A partir do
início dos anos 90 vários cientistas proclamaram que já era tempo de começar a
estudar os mecanismos neurofisiológicos subjacentes ao processo mental.
A mente parece ser a última fronteira do conhecimento humano. No
entanto, parece que estamos longe de compreender de que forma mecanismos
neurais proporcionam a experiência da consciência. Não há ainda uma idéia
clara de como o funcionamento de qualquer coisa no cérebro poderia causar
estados conscientes.
Buscamos uma teoria que dê conta de todas as nossas perguntas, que
explique as leis básicas do funcionamento mental. Enquanto estudiosos da
mente nosso desejo é compreender sua dinâmica, encontrar o que seria um modo
universal de funcionamento que pudesse ao mesmo tempo dar conta de todos os

130
fenômenos individuais. A partir do geral ou universal talvez possamos encontrar
o individual, como pequenas ramificações que brotam do que seria a extensa
árvore humana.
Na verdade, o caminho que trilhamos é o da tentativa de unificação de
todos os campos do conhecimento científico. Estamos tentando na verdade
encontrar "A Resposta", aquela que poderia esclarecer tanto questões sobre o
segredo da vida quanto o enigma do universo, isto é, qual seria a origem das
origens.
Talvez as questões básicas continuem sendo as mesmas que a
humanidade vem fazendo há milhares de anos: quem sou eu? De onde eu vim ?
Para onde eu vou? Neste sentido podemos pensar na existência de uma grande
pergunta — "A Pergunta" —, que seria a questão última sobre a origem da
existência.
A ciência trata de questões que podem ser resolvidas, e tentando explorar
sua fronteira final, que parece ser a mente humana, começa a fazer perguntas
sobre a consciência, que está deixando de ser um mistério para se tornar um
problema. Não deixa de ser uma tentativa de colocar o problema de forma
correta. Seguindo os mestres antigos podemos dizer que o verdadeiro sábio não
é aquele que tem as respostas corretas, mas sim o que sabe fazer as verdadeiras
perguntas.
Será que também não é esse o nosso papel enquanto psicoterapeutas?
Elaborar perguntas adequadas que ajudem nosso cliente a examinar melhor as
questões que o afligem. Através do questionamento vamos revendo conteúdos
emocionais, elaborando mudanças e transformações. Como diz Susan Vaughan
estamos "penteando" as conexões neurais, desembaraçando os fios, desfazendo
os nós que impedem um adequado funcionamento da psique . A imagem de um
nó pode ser uma boa analogia para complexo.

131
Uma transformação passará necessariamente pela palavra. Mesmo
pensando que a elaboração possa acontecer em outro nível que não o verbal, a
palavra sempre será necessária quando se trata de comunicar ao outro essa
elaboração. Mesmo quando penso, esse pensar se utiliza de palavras. Quando me
organizo internamente para contar algo a alguém ou mesmo para entender
determinada questão é através da palavra que essa organização acontece, a
palavra é agente, está a serviço da consciência. John Searle diz que é porque
temos representações adequadas de coisas que podemos agir de modo correto.
Eu diria, então, que nossa capacidade de nomear coisas traz a possibilidade de
lidar com elas, sejam objetos, estados de ânimo, desejos.
Nosso trabalho consiste exatamente em auxiliar nosso cliente nessa
aventura de nomear seus conteúdos, ampliando através desse movimento a
compreensão de sua própria história. Quanto mais sinônimos o cliente puder dar
a suas experiências melhor e mais íntegro ele estará.
Se pudermos encontrar correlatos, imagens que falem da mesma coisa em
diferentes níveis, então poderemos elaborar cada vez melhor aquele símbolo e
portanto ampliar o campo consciente. A imaginação funciona como auxiliar do
trabalho terapêutico.
É a possibilidade de utilização de metáforas, algo que em nosso trabalho
utilizamos tanto. A possibilidade de traduzir em "outra língua", fazer uso de
analogias, dar uma forma cada vez mais compreensível a algo que num primeiro
momento não fazia sentido algum.
Cada um de nós explica o mundo e suas vivências através de metáforas
individuais. Cada um de nós tenta compreender a realidade a partir de seu "olho
interno", sua equação pessoal. Temos um aparato mental diferente, vemos o
mundo e reagimos a ele de forma diferente. Talvez não possamos jamais
explicar o porquê de nos comovermos com um pôr-do-sol ou de uma sinfonia de

132
Mozart nos tocar profundamente. Esta talvez seja tarefa para os artistas, que, não
comprometidos com teorias científicas, permanecem livres para expressar de
forma criativa suas mais profundas emoções.
A nós, analistas, talvez seja apenas possível acompanhar nossos clientes
em suas emoções e em seus encantamentos. Com sua aquiescência, entrar em
seus labirintos mentais, suas histórias individuais, suas mentes incorporadas e
auxiliá-los nas batalhas contra seus monstros. Tal como Ariadne, ajudá-los, com
o fio de nosso conhecimento, a encontrar o caminho que leva à verdadeira
liberdade. E que esse fio possa ser ao mesmo tempo flexível e forte,
resplandecendo à luz de nossos conhecimentos teóricos nos labirintos da mente
humana.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Bíblia Sagrada , Editora Ave Maria, São Paulo.


CAIRNS-SMITH, A. G.(1996); Evolving the Mind. Cambridge: Cambridge
University Press.
CAMPOS, A.; SANTOS, A . M. G.; XAVIER, G. F. (1997); A consciência
como fruto da evolução e do funcionamento do sistema nervoso, pg. 181-226,
em Psicologia USP, 8, n.2, USP , São Paulo, pp 181-226.
CRICK, F. (1995). The Astonishing Hypothesis. New York: Touchstone.

133
DAMASIO, A. (1998). O Erro de Descartes. São Paulo: Companhia das Letras.
DEL NERO, H. S. (1997). O Sítio da Mente. São Paulo: Collegium Cognitio.
ECO, H. (1989). Sobre os Espelhos e Outros Ensaios. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira.
EDELMAN, G. M. (1992). Bright Air, Brilliant Fire, on the Matter of the Mind.
New York: Basic Books.
EDINGER, E.F. (1993).A Criação da Consciência. São Paulo: Cultrix,
FORDHAN, M. (1969). Children as Individuals. New York: G. P. Putnan's
Sons.
FORDHAN, M. (1985). Explorations into the self, em The Library of
Analytical Psychology, vol. 7. London: Academic Press.
FORDHAN, MICHAEL;(1976). The Self and Autism, em The Library of
Analytical psychology, Vol. 3, London: Willian Heineman Medical Books Ltda .
FORDHAN, M. (1989). The infants reach, em Psychological Perspectives.
FRANZ ,M. L. VON (1997). C. G. Jung, seu Mito em Nossa Época. São Paulo:
Cultrix.
FREUD, S. (1973). Obras Completas, Vol II , Madrid: Biblioteca Nova.
GLEISER, M. (1997). A dança do Universo. São Paulo: Companhia das Letras.
HAASE, V.G.; DINIZ ,L.F.M.;CRUZ , M.F.(1997). A Estrutura Temporal da
Consciência, em Psicologia USP 8, n.2. São Paulo: USP, pp. 227-250.
HILLMAN, J. (1989). Entrevistas. São Paulo: Summus.
HILLMAN, J. (1997). O Código do Ser. Rio de Janeiro: Ed. Objetiva.
HORGAN, J. (1998) O Fim da Ciência. São Paulo: Companhia das Letras.
JUNG, C. G. (1975). Memórias, Sonhos e Reflexões. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira.
JUNG, C. G. (1984). Dream Analysis, notes of the seminar given in 1928-1930.
New Jersey: Princeton University Press.

134
JUNG, C. G. (1990). Symbols of Transformation. CW 5. New York: Princeton
University Press.
JUNG, C. G. (1990). Psychological Types. CW 6. New York: Princeton
University Press.
JUNG, C.G. (1990). The structure and the Dynamics of The Psyche .CW 8. New
York: Princeton University Press.
JUNG, C. G. (1990). The archetypes and the collective unconscious. CW9/1.
New York: Princeton University Press.
JUNG, C. G. (1990). Psychology and Religion West and East. CW 11. New
York: Princeton University Press.
JUNG, C. G. (1990). The Practice of Psychoterapy. CW 16. New York:
Princeton University Press.
JUNG, C. G.(1990).The Development of Personality. CW 17. New York:
Princeton University Press.
LACAN, J. (1985). Algumas reflexões sobre o espelho. In: Psicanálise, número
2/1985. São Paulo: Clínica Freudiana, pags. 15 a 35.
NEUMANN, E. (1995). História da Origem da Consciência. São Paulo:
Cultrix.
NEUMANN, E. (1995). A criança. São Paulo: Cultrix.
HOLANDA, A . B. (1983). Novo Dicionário. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
PINKER, S. (1997). How the Mind Works. New York: W.W. Norton &
Company.
ROSEMBLITZ, M. (1995). Narcisismo. Curso oferecido pela SBPA.
SAMUELS, A.(1985). Jung e os Pós Junguianos. Rio de Janeiro: Imago.
SAMUELS, A., SHORTER, B., PLAUT, F.(1988). Dicionário Crítico de
Análise Junguiana. Rio de Janeiro: Imago Editora.
SARAMAGO, J. (1995). Ensaio sobre a Cegueira, São Paulo: Cia das Letras.

135
SEARLE, J.R. (1998). O Mistério da Consciência. São Paulo: Paz e Terra.
SEGAL, H. (1975). Introdução à Obra de Melanie Klein. Rio de Janeiro:
Imago.
SHERINGTON, C.S.(1951). Man on his Nature. Cambridge: Cambridge
University Press.
STEVENS, A. (1982). Archetype, a Natural History of the Self. London:
Routledge & Kegan.
VAUGHAN, S. (1998). A Cura pela Fala. Rio de Janeiro: Ed. Objetiva.
VERÍSSIMO, É. Incidente em Antares. São Paulo: Ed. Círculo do Livro.
WINNICOTT , D. W. (1975). O Brincar e a Realidade. Rio de Janeiro: Imago.
WINNICOTT , D. W. (1993). Da Pediatria à Psicanálise. Rio de Janeiro:
Francisco Alves.
WINNICOTT , D. W. (1994). Explorações Psicanalíticas, Porto Alegre: Ed.
Artes Médicas.

136
137
i

JUNG, C. G., CW VOL 6, p. 706.

Você também pode gostar