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Saramago: O Nobel da Ficção Científica?

Zeferino Coelho, o homem que na Caminho costuma acompanhar os autores da


casa às conferências e apresentações de livros pelo país fora, disse-me uma vez que
Saramago gostaria de ser ou ter sido escritor de ficção científica. Esta confidência não
terá passado, provavelmente, de uma amabilidade destinada a deixar satisfeito o
jornalista que de vez em quando aparecia para cobrir os lançamentos e conferências que
iam tendo lugar em Portimão e que por vezes lhe lançava perguntas sobre o estado e
futuro da colecção de ficção científica que a editora, na altura, mantinha em estado
moribundo. Verdade ou não, o certo é que as relações entre Saramago e a FC são um
tema polémico dentro do pequeno mundo dos escritores e leitores do género, tanto
quanto as qualidades e/ou defeitos da escrita do nosso Nobel em si mesma. Por vários
motivos: porque todos lhe reconhecem alguma proximidade ao género, ainda que
muitos a considerem apenas folclórica ou superficial, porque o próprio Saramago por
vezes fala de FC de uma forma que não agrada à maioria das pessoas ligadas ao género,
muito embora de outras vezes o discurso, ou pelo menos o modo como é entendido, se
altere radicalmente, porque o estilo do nosso laureado causa tantos engulhos a parte dos
leitores de FC como à parte correspondente dos leitores de outros tipos de literatura
(hoje em dia está na moda falar mal de Saramago, dentro da FC e fora dela), enfim, e no
fundo, porque a FC portuguesa e Saramago são o que são.
Mas qual é, no fim de contas, a relação que se pode estabelecer entre Saramago e a
ficção científica, se é que existe alguma? A resposta a essa pergunta depende em grande
medida da resposta a uma outra: o que é a ficção científica? E aqui temos um grande
problema para resolver, pois se bem que muitos tenham tentado nunca ninguém
conseguiu definir os limites do género de uma forma que fosse globalmente aceite.
Desde o “tudo é FC” de Gene Roddenberry, Curt Siodmak, Octávio Aragão ou Lúcio
Manfredi, entre muitos outros, até ao “FC é lulas gigantes no espaço” de Margaret
Atwood, dezenas e dezenas de definições foram propostas, umas mais a sério e outras
mais a brincar, mas todas capazes de fazer alguém, ligado ao género ou não, torcer o
nariz.
Todavia, como o objectivo é tentar esclarecer o que tem Saramago em comum
com a ficção científica, é indispensável arranjar uma definição de FC que sirva de base
ao esclarecimento. Portanto, cá vai uma das minhas, e podem desde já preparar-se para
torcer os narizes:
Ficção científica é aquela forma de literatura de construção realista que respeita os
conhecimentos científicos contemporâneos por forma a criar mundos imaginários
credíveis e coerentes.
Que quer isto dizer? Que a construção de uma história de FC, para que o seja, tem
de conseguir tornar quase palpável, inteiramente credível, a fantasia inerente a histórias
sobre o futuro, o passado longínquo, universos paralelos ou outras extrapolações mais
ou menos exóticas. Isto consegue-se através do emprego de uma série de técnicas que
trabalham os pressupostos fantasiosos da história de forma a conferir-lhes substância e
realidade. Ao contrário do maravilhoso e do fantástico, em que tudo pode acontecer, na
ficção científica só pode acontecer aquilo que está de acordo com os pressupostos do
universo ficcional criado e é sua consequência lógica.
E também que a fantasia que preside à criação desse universo ficcional tem de ter
por base, ou pelo menos não contradizer de forma grosseira ou sistemática, aquilo que
se sabe sobre a forma como o mundo funciona à época em que a história é escrita. É um
tipo de histórias que expressa até certo ponto uma forma racionalista de olhar para o
mundo e que, embora por vezes trate temas místicos, os trata de uma maneira
organizada e racional, “trazendo-os à terra”, por assim dizer. História que não respeite
estes pressupostos não é uma história de ficção científica, mesmo que esteja repleta de
naves espaciais e alienígenas.
Por isso, a ficção científica é o mais característico género literário do século XX
ocidental, aquele que mais profundamente reflecte e respeita a mundovisão das
sociedades que serviram de motor à mais violenta revolução tecnológica da História e a
todas as alterações de paradigma social que essa revolução desencadeou. E também por
isso não é de surpreender que aspectos da ficção científica, ou pelo menos aspectos que
a FC foi a primeira a revelar, tenham contaminado irreversivelmente todo o ambiente
cultural contemporâneo, deixando traços indeléveis um pouco por todo o lado.
E chegamos assim a Saramago.
Há algumas indicações de que Saramago foi influenciado pela FC, pelo menos no
início da sua carreira literária. O mais certo é que nunca tenha sido um conhecedor
profundo do género, mas textos como o poema “Science Fiction II”, integrado no
volume “Os Poemas Possíveis” (1966), ou o pequeno conto “Um Azul Para Marte”, que
faz parte do volume de crónicas “Deste Mundo e do Outro” (1971), mostram que pelo
menos teve contacto com ele e o considerava suficientemente relevante para o referir no
que escrevia e para reaproveitar e tornar seus alguns dos seus temas.
Mas aquilo que Saramago escrevia nessa época estava bastante afastado da FC.
Em “Um Azul Para Marte”, por exemplo, o escritor socorre-se de um tema típico da
ficção científica, uma viagem até ao planeta Marte, para escrever uma alegoria que nada
tem a ver com FC. “Um Azul Para Marte” não é, nem pretende ser, um texto com fundo
realista. É apenas uma reflexão parabólica sobre as limitações da humanidade e o modo
como essas limitações influenciam aquilo que as pessoas pensam sobre o mundo, na
qual os conhecimentos sobre o modo como o mundo realmente funciona não têm
nenhuma importância. Não que a ficção cientifica não possa fazer também esse tipo de
reflexões, porque pode e as faz, mas fá-las de um modo diferente. Em vez de postular
que em Marte não existem cores e tudo é cinzento, o que é objectiva e verificavelmente
falso no que à realidade das coisas diz respeito, cria uma espécie qualquer de seres
inteligentes incapazes de distinguir as cores e explora o modo como essa única
diferença fundamental os torna diferentes de nós, num mundo que de outra forma é tal e
qual como o conhecemos ou como seria credível que ele se nos apresentasse. Ou seja, a
ficção científica não lida bem com o tipo de escrita parabólica, hiperbólica, alegórica
que se usa na poesia e na prosa poética. As suas parábolas são, por paradoxal que
pareça, mais subtis. Tão subtis, na verdade, que muitos dos críticos do género nem se
dão conta de que existem. E, em abono da verdade, há que reconhecer que o mesmo
acontece com muitos dos consumidores do género.
Ora bem, mas se Saramago não escreveu FC durante a parte inicial da sua carreira,
numa época em que os seus textos mostravam alguma influência do género, tê-la-á
escrito mais tarde quando já era um escritor consagrado e aclamado pelas mesmas
pessoas que rejeitam e espezinham a ficção científica, taxando-a de sub-literatura, um
escritor a caminho do mais alto reconhecimento que se pode dar a quem exerce essa
actividade?
Curiosamente, a resposta é sim.
Falo, claro, de “Ensaio Sobre a Cegueira” (1995). Neste livro, o autor cria uma
epidemia de cegueira que se espalha por uma sociedade desprevenida exactamente da
mesma maneira de qualquer epidemia real e mostra-nos os modos, todos eles
terrivelmente plausíveis, como as diversas componentes da sociedade procuram
combater a doença ou escapar a ela. Este livro é um livro de ficção científica
precisamente devido à forma realista como está escrito, à sua verosimilhança, ao facto
de tudo o que nele acontece ser totalmente coerente quer com a premissa inicial, quer
com a realidade das coisas tal como a conhecemos. Lemos o “Ensaio Sobre a Cegueira”
e, embora saibamos perfeitamente que nada daquilo aconteceu, a sensação de que
poderia acontecer, de algum modo, nunca nos abandona. Mesmo a parte mais
inverosímil do romance, o modo como no fim de contas, passado algum tempo, os
sobreviventes à epidemia recuperam a visão é, se pensarmos bem, coerente com tudo o
resto. Afinal, doenças existem que morrem sozinhas sem qualquer tratamento, graças
apenas à actividade do nosso sistema imunológico e às características intrínsecas aos
agentes patogénicos. Constipações, pequenas gripes, cegueiras temporárias, no fundo,
qual a diferença?
É provavelmente isso que leva Robert Silverberg, um dos monstros sagrados da
FC americana, a escrever numa crónica publicada em 2001 na revista Asimov’s e
publicada em português, no mesmo ano, na revista electrónica E-nigma, que este livro é
“um exemplar assombroso da ficção científica social de Asimov: um exame das
consequências sociais de um único desvio aterrador da nossa realidade. […] O ponto de
partida de Saramago não é fácil de aceitar ao pé da letra e ele não faz nenhuma tentativa
de fornecer uma explicação científica. Limita-se a explaná-lo, solta-o para gerar o
enredo e deixa a história seguir o seu curso sem nunca tentar fornecer qualquer tipo de
explicação sobre como tal coisa poderia ter ocorrido. Não importa. Mesmo que a
situação inicial seja basicamente fantástica, o tratamento que recebe é puramente
ciencio-ficcional: o firme e meticuloso exame das consequências – todas elas – de um
único e notável afastamento da realidade que conhecemos. Tal como o próprio autor
declarou numa entrevista há um par de anos, «Não há muita imaginação no Ensaio
Sobre a Cegueira, há apenas a aplicação sistemática das relações de causa e efeito».”
João Seixas chamaria a esta “aplicação sistemática das relações de causa e efeito”
a aplicação do método científico à literatura, o critério que utiliza para separar aquilo
que é FC do que não é. Embora eu considere que o método científico não é aplicável à
literatura e portanto não concorde com o modo como Seixas coloca as coisas, esta
aproximação do que Saramago diz do seu romance à maneira como define a FC uma
das pessoas que em Portugal mais vocalmente defende o género não deixa de ser um
argumento forte.
Outro bom argumento vem de Francisco José Viegas, sobejamente conhecido nos
meios literários devido às suas múltiplas actividades, que incluem programas de
televisão e vários anos como director da revista Ler, já para não falar dos seus
romances, e que não pode ser acusado de simpatias para com o género e os seus autores,
veja-se como exemplo o modo como intitulou uma crítica à antologia “O Atlântico tem
Duas Margens”, organizada por José Manuel Morais e publicada pela Caminho em
1993: “A bosta do trimestre”.
Pois dois anos mais tarde, tem Viegas o seguinte a dizer sobre “Ensaio Sobre a
Cegueira” num artigo publicado na Visão: “Quase em ritmo e registo de ficção
científica, Ensaio sobre a Cegueira mantém, na escrita de José Saramago e na sua
aventura romanesca, uma dimensão rara e singular na actual literatura portuguesa: a
constante demanda de um laço que prenda o romance à arte de questionar e que, daí,
exija o lugar de uma ética mais profunda que a própria arte de pensar. Como se o
romance fosse, e nunca tivesse deixado de ser, uma interrogação sobre o mundo como
ele é e como ele devia ser.” Tirando aquele “quase” que abre o parágrafo (inevitável,
vindo de quem vem – ainda estou para ver alguém ligado ao mainstream literário
admitir que algo de que gosta é FC), ele poderia ser subscrito por mim, palavra por
palavra, acrescentando todavia que essa interrogação sobre o mundo como ele é e como
devia ser só é rara na literatura portuguesa porque a publicação de boa ficção científica
produzida entre nós continua a sê-lo. É que é precisamente essa uma das actividades
intelectuais a que a ficção científica mais se dedica, muito mais do que outras formas
literárias, que tendem a privilegiar os mundos íntimos e subjectivos em detrimento dos
grandes frescos sobre a sociedade como um todo. Ao trabalhar sociedades alteradas,
seja pelo tempo que nos arrasta para o futuro, seja pela intrusão de algo de diferente em
alternativas de presente, seja até por passados que poderiam ter acontecido de modos
diversos, a ficção científica está constantemente a interrogar-se (e a interrogar-nos)
sobre o mundo.
“Ensaio Sobre a Cegueira” é, portanto, um livro de ficção científica. Que também
seja outras coisas, que é, não anula este facto pois, ao contrário do que muita gente
parece pensar, estas classificações não são como caixas que obrigam a que o que se põe
lá dentro não se possa pôr também em outras caixas.
Mas será o único?
É. Em nenhum outro dos seus livros teve Saramago um tão grande cuidado em
“aplicar as relações de causa e efeito”, se bem que em vários se notem sinais de
aplicação do mesmo tipo de rigor “científico” que é tão evidente no “Ensaio”. Por
exemplo, no “Memorial do Convento”, a passarola do padre Bartolomeu Lourenço
necessita das “vontades” recolhidas por Blimunda nos autos-de-fé para poder voar. Ou
seja, embora a recolha das “vontades” seja um acto mágico, o seu uso, o motivo da sua
necessidade, é tipicamente tecnológico: uma máquina que necessita de combustível para
poder funcionar. Nada mais simples. Nada mais próximo do tipo de detalhe com que os
escritores de FC jogam continuamente. Mas no “Memorial do Convento” este detalhe é
apenas isso mesmo: um detalhe que embora seja importante para a narrativa não a
determina. Fosse o livro todo assim, talvez se pudesse colocá-lo na mesma estante das
restantes obras de ficção científica. Mas não é.
Noutros romances recentes, como “A Caverna”, “O Homem Duplicado” ou
“Ensaio Sobre a Lucidez”, Saramago parece à primeira vista aproximar-se mais da FC
mas a verdade é que se afasta. Em “A Caverna”, a ideia base poderia ter servido para a
construção de uma distopia orwelliana, mas em vez disso o autor optou por traçar um
esboço esquemático, até mesmo geométrico, de uma sociedade e das relações cidade-
campo que contém, regressando a uma alegoria muito próxima daquela que frequentou
em alguns textos de há mais de 30 anos. “O Homem Duplicado” é uma ideia
antiquíssima na FC (há até um livro de FC publicado em Portugal, antes do de
Saramago, com título idêntico), que tem na clonagem a sua encarnação mais recente
(mas mesmo assim não tão recente como isso) e que serve normalmente para reflectir
sobre questões de identidade. “O Homem Duplicado” de Saramago integra-se bem neste
grupo de obras, até porque se debruça sobre o mesmo tema, mas faz lembrar muito mais
aquelas escritas nos anos 40 ou 50 do que as mais recentes e tem também um ambiente
muito mais alegórico do que concreto. É um livro que balança na fronteira da FC, mas
que na minha opinião pende mais para o lado de fora que para o de dentro. É
insuficientemente realista, insuficientemente baseado no que pode acontecer. Inclui
demasiada magia, barbas que crescem em simultâneo, cicatrizes que surgem ao mesmo
tempo, esse tipo de coisas. Quanto ao “Ensaio Sobre a Lucidez”, apesar de recuperar
algumas personagens e ambientes de “Ensaio Sobre a Cegueira” é muito diferente deste
livro, muito menos rigoroso, muito mais alegórico, muito mais longe de poder ser
englobado na ficção científica.
Para terminar, cabe falar um pouco de “História do Cerco de Lisboa”. Trata-se de
um livro que por muito pouco não entra na História Alternativa, género que alguns
incluem na ficção científica (por intermédio dos universos paralelos). Um revisor quase
resolve incluir um “não” num livro que descreve o cerco da cidade moura de Lisboa
pelas tropas portuguesas, e assim quase cria um mundo alternativo (que apesar de tudo
vai descrevendo) onde os cruzados não ajudaram os portugueses e Lisboa não foi
conquistada. Claro que o romance é muito mais do que isto, mas é esta série de
“quases” que importa para o que aqui nos traz, porque é ela que faz com que este livro
não faça parte da história alternativa. Fica-se pelo quase.
Nos restantes livros, Saramago mantém-se afastado da FC, seja em tema, seja em
abordagem, global ou parcial.
Claro, isto é assim apenas se analisarmos a questão com base na definição
proposta no início deste artigo. Partindo de outras definições chegaríamos a conclusões
completamente diferentes, como é natural: se postularmos que tudo é ficção científica,
então bastaria dizer que, como é evidente, tudo o que Saramago escreveu é ficção
científica, e acabar-se-ia o artigo ali mesmo (o que comprova a completa inutilidade
desta “definição”, mas isso é outra conversa); se preferirmos dizer que ficção científica
é lulas gigantes no espaço, então nada do que Saramago escreveu se aproxima sequer de
remotamente da FC, e o mesmo se pode dizer do que eu escrevi ou do que escreveu a
esmagadora maioria dos autores geralmente chamados “de ficção científica”, quer
portugueses, quer estrangeiros.
Mas como há bons argumentos a favor de muitas das definições de FC que já
foram propostas (mas não de todas), esta resposta que aqui tentei explanar à pergunta
sobre as relações entre o nosso mais prestigiado escritor e o género literário chamado
ficção científica é apenas uma de várias respostas possíveis. Não é a resposta certa; é
apenas a minha resposta.

Jorge Candeias

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