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Aproximações teóricas
·.�
editora
unesp
Título original: La amenaza de lo fantóstico: aproximaciones
teóricas
© 2 0 13 Editora Unesp
R544a
Roas, David
Unesp, 2014.
ISBN 978-85-393-0497-4
literória. I. T ítulo.
CDU: 82.09
Editora afiliada:
EJ!JJ AD
Asociación de Ed1tor1ales UllÍ\I'ersitarias Assoctação Bra81.1eira de
de América Latina y el Car1be Editoras Untversit.Arias
3.
Contexto sociocultural
e efeito fantástico:
um binômio inseparável
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David Roas
' A ameaça do fant6stico
realidade.").1 O problema é que, apesar de tudo, o j terpretar o verdadeiro sentido da história narrada:
I
livro está ali. "Não pode ser, mas é." se o mundo do texto, que funciona como o nosso,
Por que essa história fantástica impressiona os pode-se ver assaltado pelo inexplicável, poderia isso
leitores? Para além da habilidade do narrador em ocorrer no nosso mundo? Ainda, quem poderia su
comunicar o escândalo (e o temor) do protagonista, por que isso pudesse acontecer na realidade? Esse é
para além da verossimilhança em que está mergu o grande efeito do fantástico: provocar - e, portan
lhado o conto todo, a inquietude que o leitor expe to, refletir- a incerteza na percepção do real.
rimenta nasce da relação inevitável que estabelece Podemos afirmar, portanto, que a literatura
entre a história narrada e seu próprio mundo, entre fantástica oferece sempre uma temática tendente a
um fato ficcional e sua própria realidade. contradizer nossa concepção do real. Por mais que
O mundo construído nos contos fantásticos é saibamos quanto são fictícios os fatos narrados, o
sempre um mundo em que de início tudo é normal leitor deve contrastá-los com sua ideia do real para
e que o leitor identifica com sua própria realidade. avaliar na medida justa o que acontece na história
E não me refiro aqui simplesmente à presença no narrada e, sobretudo, para compreender o que se
texto de dados provenientes da realidade objetiva pretende com a narração de tal história (alterar nos
(assim, no conto de Borges o protagonista vive em sa noção do real). O fantástico, portanto, depende
Belgrano, fala-se da Bíblia, menciona-se Lutero, Ste sempre do que consideramos real, e o real deriva
venson, a cidade de Bombaim e o Museu Britânico). diretamente daquilo que conhecemos.2 Assim, não
Além dessas referências, reconhecíveis pelo leitor e podemos manter nossa recepção limitada à reali
que garantem uma evidente ilusão de realidade, o dade intratextual quando nos deparamos com um
que é verdadeiramente importante é que a constru conto fantástico. Relacionando o mundo do texto
ção do mundo textual parece estar destinada a de com o mundo real, torna-se possível a interpretação
monstrar que ele funciona de modo idêntico ao real. do efeito ameaçador que o narrado impõe para as
Um funcionamento aparentemente normal que, de crenças sobre a realidade empírica.
repente, se verá alterado pela presença do sobrena É evidente que, em todo processo de leitura, seja
tural, isto é, por um fenômeno que contradiz as leis de um texto fantástico, seja de um texto "realista"
físicas que organizam esse mundo. É isso o que leva (mimético), o leitor projeta sua visão do mundo ex
os leitores a abandonar o âmbito estrito do textual terno sobre o mundo criado no texto para interpre-
e a assomar a sua própria realidade: primeiro, para
pôr o narrado em contato com a sua ideia do real,
uma vez que é algo que a contradiz; e, segundo, e 2 Toda representação da realidade depende do modelo de mun
do de que parte uma cultura: "realidade e irrealidade, possí
que para mim é muito mais importante, para in-
vel e impossível se definem em sua relação com as crenças às
quais um texto se refere" (Segre, Principias de análisis dei texto
Borges, El libro de arena. ln: __ , El libro de arena, p. I 15. literário, p.257).
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David Roas A ameaça do fantástico
tar o que acontece nele.3 Ler supõe cooperar com o Assim, a confrontação- sempre problemática -
texto, colocá-lo em contato com nossa experiência que se produz entre o crível e o incrível, entre o
do mundo. Mas, a meu ver, a literatura fantástica real e o sobrenatural, é o que distingue a litera
obriga, mais que qualquer outro gênero, a ler re tura fantástica de outros gêneros (ou subgêneros)
ferencialmente os textos. Sabemos que um conto narrativos, sobretudo daqueles, como a literatura
é fantástico por sua relação conflituosa com a rea maravilhosa, em que também há a intervenção de
lidade empírica. É por isso que ele vai além do tipo fenômenos que à primeira vista consideraríamos
de leitura gerado por uma narração realista, em que sobrenaturais. O mundo maravilhoso, diferente
o interesse da história está focado principalmente mente do fantástico, é sempre construído como um
nos conflitos enfrentados pelos personagens, uma lugar inventado- um mundo paralelo- onde qual
vez que tudo o que acontece, dentro de suas múlti quer fenômeno é possível, o que permite ao leitor
plas variações, se situa sempre dentro do possível. supor que tudo o que acontece ali é normal, natu
A analogia com o mundo real é total. Não há trans ral. Esses textos, assim, não provocam a intervenção de
gressão, tudo é coerente, homogêneo. Em outras nossa ideia de realidade, de modo que não se estabele
palavras, nas ficções realistas a "verdade" dos fatos ce nenhuma transgressão dessa ideia.
não está sujeita à discussão, uma vez que a realidade Diante do maravilhoso, o mundo construído
representada coincide com a experiência do leitor.4 no interior do texto fantástico deve oferecer signos
que possam ser interpretados a partir da experiên
3 A fenomenologia e a pragmática do conto tornaram evidente cia de mundo do leitor. Isso lhe permite contrastar
a relação dialética que existe entre o mundo do texto e o as naturezas opostas dos acontecimentos narrados
mundo do leitor. Assim, Hrushovski ressalta que ler supõe
e captar sua relação de conflito.
projetar o "campo de referência externo" (ERF), isto é, a
realidade física, social e humana, sobre o "campo de refe Um conflito que, em muitas ocasiões, já é de
rência interno" (IRF), criado no texto. O IRF é um conjunto clarado explicitamente pelos narradores fantásticos
heterogêneo de elementos (personagens, situações, espa nas primeiras linhas de seus contos:
.,,
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David Roas A ameaço do fantástico
ples e direta possível alguns fatos que testemunhei fira esse mundo ao texto em sua mais absoluta
no último mês de julho, e que não têm precedentes cotidianidade. Desde suas distantes origens nos
nos anais dos mistérios da ciência física.5 castelos medievais em ruínas do romance gótico,
as histórias fantásticas vieram progressivamente
Como vemos, o narrador tem perfeita cons se instalando na simples e prosaica vida cotidiana,
ciência de que os acontecimentos que vai relatar para impressionar um leitor que, com o passar do
contradizem aquilo que o leitor conhece de seu tempo, foi se tornando cada vez mais cético diante
universo. No entanto, conta justamente por isso, do sobrenatural.7 Quanto mais próximo do leitor,
por essa contradição. Essa é a razão básica do con mais crível, e quanto mais crível, maior será o efeito
to fantástico: revelar algo que vai transtornar nossa psicológico produzido pela irrupção do fenômeno
concepção da realidade. Sem esquecer, além disso, insólito.
que, em todo conto fantástico, o fenômeno sobre Mas existem narrativas em que a representa
natural é sempre sugerido como exceção, como um ção de uma realidade cotidiana e de elementos que
acontecimento incomum, pois do contrário se con o leitor identifica como sobrenaturais não provo
verteria em algo normal e não seria tomado como ca um efeito fantástico. Temos um bom exemplo
uma transgressão, como uma ameaça. disso em A Christmas Carol ("Um conto de Natal"),
Assim, todos os esforços do narrador se des de Charles Dickens, em que a presença dos fantas
tinam a vencer a esperada incredulidade do leitor mas que vêm atormentar o pobre Scrooge não tem
(que sabe que, no seu mundo, essas coisas não nenhuma vontade transgressora. E isso é assim
acontecem) e conseguir fazer com que a ocorrência porque o efeito final que se quer comunicar é uma
sobrenatural seja aceita, que sua presença se im alegoria moral: os fantasmas são simples adver
ponha como factível, ainda que ela não possa ser tências para que Scrooge volte ao caminho "corre
explicada. Admitir sua origem sobrenatural não sig to". Não esqueçamos, além disso, que tudo parece
nifica explicá-lo (compreendê-lo), como acontece acontecer em sonhos, explicação racional que des
com o protagonista de "O livro de areia". barata, como sabemos, o efeito fantástico. Assim,
E não se trata apenas de construir um espaço essa alegoria moral que se quer comunicar é o que
verossímil6 e similar em seu funcionamento ao determina a recepção do leitor: uma vez acabada a
mundo do leitor, e sim que o narrador como de
monstra a evolução do gênero fantástico trans- 7 São numerosas e variadas as estratégias discursivas e narra
tivas para conseguir fazer o leitor abandonar seu ceticismo e
5 O'Bríen, C:Qué es eso? ln: __, La lente de diamante y otros aceitar a dimensão sobrenatural do narrado, ou, quando me
relatos de terror, p. 71. nos, duvidar da explicação racionalista da realidade. Pode-se
6 Sobre o problema da verossimilhança fantástica, ver Srámek, ver uma análise de algumas dessas estratégias em Herrero
La V raísemblance dans !e récít fantastique, Études Romanes de Cecilia, Estética y pragmática dei relato fantástico las estrategias
-
Brno, XIV, 1983, p.71-82. narrativas y la cooperación interpretativa del lector, p.l45-238.
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David Roas A ameaça do fantóstico
leitura, o que inicialmente poderia passar por nar O componente sobrenatural da narrativa de
rativa fantástica acaba desembocando em um tipo Dickens não tem como finalidade estabelecer uma
de história muito diferente, uma vez que sua in transgressão ameaçadora do real, sendo em vez
tenção se afasta daquela alteração de nossa ideia do disso utilizado como meio para intensificar o efei
real que define o fantástico. Com isso torna-se evi to moral da história sobre o leitor. Trata-se, pois,
dente que não podemos decidir a priori que um con para utilizar um conceito cunhado pelos formalis
to é fantástico pelo mero fato de que apareçam em tas russos, de uma questão de dominante.9 jakobson
suas páginas supostos fenômenos sobrenaturais. A definia o dominante como o componente central de
qualidade fantástica de um texto não é nunca aprio uma obra de arte que rege, determina e transforma
rística, estabelecendo-se à medida que avançamos todos os demais. Aplicando essa ideia aos textos
na leitura. Pensemos, por exemplo, em narrativas fantásticos, poderíamos dizer que a função primor
aparentemente fantásticas como os romances góti dial deles seria transgredir a concepção do real que
cos de Ann Radcliffe, onde tudo se explica racional os leitores possuem. Quando essa transgressão de
mente no final, demonstrando que os fenômenos saparece ou passa a ocupar um posto secundário,
sobrenaturais que aparecem nas histórias não pas substituída por outra função (no exemplo comen
sam de truques para aterrorizar os personagens (e, tado, a alegórica), a narrativa não pode ser conside
com eles, o leitor). O que a princípio parece fantás rada fantástica.
tico, tanto para os personagens quanto para o leitor, Algo semelhante acontece nos textos em que
é desmentido no final da leitura.6 se combina o sobrenatural e o humor, um assunto
bastante espinhoso que requer muito mais espaço
do que seria possível dedicar aqui. Ainda assim,
8 A mesma coisa acontece com o que Jean Fabre chama de
"fantasmatique". e que não deve ser confundido com o fan não resisto a colocar algumas ideias básicas.
tástico (Le Memoir de sorciere. Essai sur la littérature fantasti
que). O "fantasmatique" corresponde à expressão direta de
fenômenos psicológicos ou psicopatol6gicos, como o sonho.
a alucinação (como efeito da febre ou do uso de drogas), a consciente, de clausura insular, e que interfira na realidade,
obsessão etc. Essa forma de "fantástico" funciona proviso criando algo sobrenatural que o escritor possa tratar de ma
riamente no decorrer da leitura, gerando efeitos similares de neira maravilhosa ou fantástica", p.l24); e aquelas narrati
suspense e angústia. Seu final explicado, no entanto, elimina vas, como "O Horla", de Maupassant, e A outra volta do pa
o efeito fantástico e produz uma evidente decepção no leitor. rafuso, de Henry James, nas quais se cria um efeito ambíguo
Trata-se, afinal, de um falso sobrenatural. Mas Fabre acres entre uma explicação sobrenatural e uma racional (a possí
centa que "seria simplista concluir pela incompatibilidade vel doença mental do personagem).
entre Fantástico e Fantasmático" (p.l21), e dá exemplos 9 O conceito de dominante está documentado já em Tomashe
em que os recursos do sonho e da loucura de fato geram vski e em Tynyanov no contexto da teoria dos gêneros, tendo
um efeito fantástico: os sonhos de caráter preditivo, ou seía. sido utilizado por jakobson para definir a função poética. Ver
os que se convertem em realidade ("para isso é preciso que Tomashevski, Teoría de la literatura; e Jakobson, Lingüística y
ele transgrida seu estatuto natural de íardim privado do in- poética, In: --· Ensayos de lingüística general, p.347-95.
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Como observa Bakhtin com muita lucidez, "o lher, mas isso não supõe sua morte. A narrativa nos
riso destrói o medo e o respeito pelo objeto, pelo oferece aventuras sucessivas e disparatadas tendo
mundo, transformando-o em um objeto de cantata como culpado esse novo estado (todos acham que
familiar, preparando com isso sua investigação livre ele está morto), até que no final, por puro acaso, ele
e completa".10 E é assim porque o riso estabelece consegue recuperar o fôlego perdido.11 Neste caso,
uma distância entre o leitor e o mundo da narra é o tratamento humorístico do fenômeno o que o
tiva, o que provoca o desaparecimento da habi despoja de seu possível componente transgressor.
tual identificação que se estabelece entre o leitor Trata-se pura e simplesmente de um jogo grotesco
e o personagem. Quando o humor se combina ao isto é, deformante e hiperbólico - que estabelece
sobrenatural em narrativas (supostamente) fantás uma situação que transcende toda verossimilhança
ticas, não apenas desaparece essa identificação lei e que vai além de qualquer sentido. A única coi
tor-personagem como também - algo muito mais sa que interessa é sua deformação. Uma ideia que
importante - a que existe entre a realidade do leitor coincide com a definição do grotesco proposta por
e a realidade representada no texto. Sem esquecer Valeriano Bozal:
que o narrador, por meio desse distanciamento que
o humor lhe permite, oferece um tratamento da Utilizo o termo grotesco para me referir às imagens
história claramente descrente. Em um e outro âm que não se limitam a uma representação satírica cor
bito- emissor e receptor- estabelece-se o que po retora ou reformadora, imagens que encontram inte
deríamos denominar uma "distância de segurança" resse estético na deformação (grotesca) da natureza e
em relação ao sobrenatural, desvirtuando o possível que, portanto, valorizam em si mesma essa deforma
efeito fantástico. ção sem finalidades ulteriores.12
Assim, enquanto no conto de Dickens o sobre
natural é utilizado como meio para comunicar e
intensificar o efeito da alegoria moral, neste caso
11 Dois contos de temática e intenção semelhante ao de Poe
ele se converte em um mero veículo do humor. E
são "O nariz", de Nikólai Gógol (o nariz do protagonista ga
essa união entre o sobrenatural e o cômico costu nha independência de seu rosto por um tempo) e "Onde está
ma desembocar no grotesco. Um bom exemplo dis minha cabeça?", de Benito Pérez Galdós (um dia o protago
so é o que temos no conto "Perda de fôlego", de nista acorda sem cabeça e sua única preocupação é recuperá
-la; curiosamente, sua nova aparência não produz nenhum
Edgar Allan Poe, cujo protagonista perde o fôlego espanto nas pessoas que ele vai encontrando). Ver uma
(deixa de respirar) em uma discussão com sua mu- análise mais detalhada desses três contos em minha tese de
doutorado: La recepción de la literaturafantástica en la Espana dei
siglo XIX, Universidad Autónoma de Barcelona, 2000, cap.
VII, seção 2.3.5.
10 Bakhtin, Épica y novela. Acerca de la metodología dei análi 12 Bozal, Goya: imágenes de lo grotesco. ln: Davis; Smith
sis novelístico. ln: __ , Teoria y estética de la novela, p.468. (orgs.), Art and Literature in Spain: 1600-1800, p.SO.
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Desse modo, a intencionalidade do grotesco que o leitor tem.14 Em outras palavras, para definir
não vai além do estrito campo do fictício, ou seja, o gênero fantástico é necessário contrastar o mun
dirige-se sempre à ficção e não ao referente real. A do do texto com o contexto sociocultural em que
hipérbole grotesca impede que o leitor possa chegar vive o leitor. O discurso fantástico é, como alerta
a "acreditar" no que é narrado, que é consumido Roberto Reis, um discurso em relação intertextual
fundamentalmente como um divertimento. O efei constante com esse outro discurso que é a reali
to final é única e exclusivamente o riso. Porque essa dade, entendida como construção cultural.15
é a intenção final do autor: oferecer uma história Isso supõe ir além de definições de caráter es
humorística. Trata-se, de novo, de um problema de truturalista ou imanente, como a de Todorov,16 que
dominante. se esquiva do problema da relação com o real pos
Os contos de Dickens e Poe são, portanto, nar tulando que a existência do fantástico depende uni
rativas "pseudofantásticas", termo com o qual iden camente da reação do leitor implícito, uma entidade
tifico as narrativas que utilizam estruturas, temas que faz parte do mundo ficcional. A definição de
e recursos próprios do conto fantástico autêntico, Todorov reduziria, desse modo, o fantástico a um
mas cujo tratamento do sobrenatural os distan puro jogo intratextual: cria-se no texto um mundo
cia do gênero: são textos que não pretendem criar cujo funcionamento é alterado por um fenômeno
qualquer efeito sinistro sobre o leitor, uma vez que, que vai além da lógica que ordena esse mundo (à
ou terminam racionalizando os supostos fenôme primeira vista, não importaria muito se está próxi
nos sobrenaturais, ou a presença deles não passa de mo ou não da realidade). E essa alteração provoca
um pretexto para oferecer uma narrativa grotesca, a vacilação do leitor implícito, que não sabe como
alegórica ou satírica.13
No fim das contas, o que diferencia radicalmen 14 É claro que, como comenta Susana Reisz, "quando se pro
te os textos citados das narrativas fantásticas puras cura estabelecer o grau de adequação de um texto à reali
dade, é preciso renunciar a todo tipo de definição ontológica
é que, com eles, o leitor nunca vê sua ideia de rea
e basear-se, em vez disso, naquilo que aceitamos cotidia
lidade ameaçada. namente como realidade, em geral sem questionamento,
Como se faz evidente, a condição genérica que naquilo que apreendemos e descrevemos como realidade e
estou expondo para definir o fantástico se situa na que ao ser verbalizado é, se não constituído, ao menos cc
constituído pela língua de que nos valemos para verbalizá-lo
dimensão pragmática do texto, na forma como ele é e, mais especificamente, pelos textos concretos nos quais
lido e interpretado, uma vez que, a meu ver, o fan o verbalizamos. Não falamos, portanto, da realidade em si
tástico depende diretamente da ideia de realidade nem do mundo em si, mas dos modelos interiores do mundo
exterior postos em jogo pelos comunicantes no ato de comu
13 Sobre a terminologia exposta e sua aplicação no estudo da nicação" (Teoría y análisis del texto literario, p.llO).
literatura fantástica espanhola do século XIX, ver o capítu 15 Reis, O fantástico do poder e o poder do fantástico, Ideologies
lo VII (seções 2.2.4 e 2.3.5) de minha tese de doutorado, and Literature, n.l34, 1980, p.6.
antes citada. 16 Ver Todorov, Introduction à la littérature fantastique, p.28-45.
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David Roas A ameaça do fant6stico
explicar o que aconteceu. Definida desse modo, autora reconheça a necessidade de uma leitura refe
qual seria então a transcendência da literatura fan rencial, de contrastar os fenômenos narrados com a
tástica? Como explicar a inquietude provocada no concepção que o leitor tem do real para poder iden
leitor real e o interesse que ela continua suscitando tificar um texto como fantástico.20 Não obstante,
no gênero fantástico? Não é estranho que Todorov essa perspectiva linguística serviu para tornar evi
compare o funcionamento da narrativa fantástica dente que a transgressão, a subversão, proposta por
com o da literatura policial mais clássica, baseando toda narrativa fantástica não se limita unicamente
-se única e exclusivamente no jogo formal da re a sua dimensão temática, manifestando-se tam
solução de um mistério aparentemente insolúvel. bém no nível linguístico, uma vez que, ao propor
A intenção última da narrativa policial não é outra a descrição de um fenômeno impossível, altera a
senão conquistar a admiração e o prazer do leitor representação da realidade estabelecida pelo siste
diante de sua perfeição formal. Tudo fica, portanto, ma de valores compartilhado pela comunidade. A
dentro do estrito âmbito intratextual.17 literatura fantástica manifestaria, assim, as relações
Apesar de tudo, Todorov não pode deixar de re
problemáticas que se estabelecem entre a lingua
conhecer a relação do fantástico com o mundo ex
gem e a realidade, uma vez que tenta representar
tratextual ao enumerar os temas que caracterizam o
o impossível, ou seja, ir além da linguagem para
gênero, todos eles são expressão de nossa visão do
transcender a realidade admitida.
real, de nossos temores e tabus.
E tudo isso nos leva, de novo, a afirmar a ne
Essa definição pragmática que estou expondo
cessária leitura referencial dos textos fantásticos, a
também supõe ir além das definições baseadas no
colocá-los sempre em contato com a realidade ex
uso particular da linguagem que se faz nos textos
tratextual, com o contexto sociocultural do leitor.
fantásticos. Embora Rosalba Campra18 tenha razão
Acontece a mesma coisa quando nos confronta
ao afirmar que o fantástico se caracteriza por uma
transgressão linguística em todos os níveis do tex mos com o que deu por se chamar de "neofantás
to- em outras palavras, que "não é apenas um fato tico", termo cunhado por AlazrakF1 que identifica
da percepção do mundo representado, mas também uma nova forma de cultivar o fantástico e que pode-
de escrita"19 -, é muito significativo que a própria
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David Roas A ameaço do fantástico
mos exemplificar, para citar apenas alguns autores, tista- uma entidade perfeitamente ordenada e imu
com as obras de Kafka, Borges e Cortázar. Desse tável. O neofantástico, pelo contrário, responderia a
modo, Alazraki contradiz a discutível afirmação de uma concepção inédita da realidade, segundo a qual
Todorov de que o gênero fantástico já não tem razão à margem do racional existiria outra realidade que,
de ser no século XX, por ter sido substituído pela em determinadas ocasiões, se imiscui no devir da
psicanálise.22 primeira. Nas palavras de Cortázar:
Essa asseveração de Todorov é motivada, so
bretudo, por um fato fundamental, manifesto cla [ . ] o fantástico é a indicação súbita de que, à mar
. .
ramente em A metamorfose, de Kafka: a ausência de gem das leis aristotélicas e de nossa mente pensante,
vacilação e de espanto tanto no narrador quanto existem mecanismos perfeitamente válidos, vigen
nos personagens diante de um fenômeno que não tes, que nosso cérebro lógico não capta, mas que em
caracterizada pelo efeito aterrorizante sobre o lei ou resistem à linguagem da comunicação, que não
tor (ausente, segundo Alazraki, no neofantástico), cabem nas células construídas pela razão, que vão a
o que se postula é a possível ruptura da coerência contrapelo do sistema conceptual ou científico com
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David Roas A ameaça do fant6stico
tido metafórico nos escapa.26 O paradoxal é que mundo representado nesses textos, está se produ
não haveria outra forma de aludir a essa segunda zindo uma transgressão de sua concepção do real.
realidade que resiste a ser nomeada pela linguagem Como adverte com muita lucidez Susana Reisz, o
ordinária. fato de
A definição que Alazraki dá para o neofantás
tico está diretamente relacionada, a meu ver, com [ .. ] que a transformação de Gregor Samsa em inseto
.
a visão que a filosofia e a ciência contemporâneas seja apresentada pelo narrador e assumida pelos per
têm da realidade como uma entidade indecifrável. sonagens sem questionamento é sentido pelo recep
Vivemos em um universo incerto, em que não há tor como outro dos impossíveis da história, embora de
verdades gerais, pontos fixos a partir dos quais con ordem diversa da metamorfose em si. Como a meta
frontar o real. Isso supõe abolir a concepção positi morfose constitui uma transgressão das leis naturais,
vista que se tinha no século XIX, da realidade como o não questionamento dessa transgressão é sentido
uma entidade imutável e ordenada. Porque já não por sua vez como uma transgressão das leis psíquicas
há como compreender, como captar o que é a reali e sociais que, junto com as naturais, fazem parte da
dade. Portanto, se não sabemos o que é a realidade, nossa noção de realidade. 27
como podemos nos propor a transgredi-la? Mais
ainda, se não há uma visão unívoca da realidade. Sem esquecer que a transformação de Gregor
'
tudo é possível, de modo que também não haveria Samsa, apesar da comentada falta geral de espanto,
possibilidade de transgressão. é proposta como uma exceção, condição básica do
Mas, apesar dessa nova concepção filosófica, tratamento do sobrenatural em toda narrativa fan
nossa experiência da realidade continua nos di tástica. Tal como ressalta Cortázar, "só a alteração
zendo que os seres humanos não se transformam momentânea dentro da regularidade delata o fan
em insetos nem vomitam coelhinhos vivos (como tástico, mas é necessário que o excepcional passe a
acontece com o protagonista de "Carta a uma se ser também a regra sem deslocar as estruturas ordi
nhorita em Paris", de Cortázar). Por mais que os nárias entre as quais se inseriu".28 Não tem que ser
narradores e personagens dessas narrativas não se um simples relance momentâneo, e sim permane
espantem e não se perguntem as causas de suas ex cer, inserir-se na realidade.29
periências inquietantes, não resta dúvida de que,
para o leitor, que apesar de tudo se reconhece no
27 Reisz, Las ficciones fantásticas y sus relaciones con otros
tipos ficcionales, op. cit., p.218.
28 Cortázar, Dei cuento breve y sus alrededores. ln:--·
Ú l
26 Utilizando as palavras de Saúl Yurkievich para descrever o timo round, p.S3.
fantástico cortazariano, tratar-se-ia de "fissuras do normal/ 29 O exemplo que Cortázar dá é perfeito: "Descobrir em uma
natural que permitem a percepção de dimensões ocultas, mas nuvem o perfil de Beethoven seria inquietante se durasse dez
não sua intelecção" (Julio Cortázar: mundos y modos, p.27). segundos antes de se desfazer e se transformar em fragata
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Podemos dizer, portanto, que possuímos uma mente sem importância: um homem chega em casa,
concepção do real que, embora possa ser falsa, é se aconchega no sofá preferido e começa a ler um
compartilhada por todos os indivíduos (trata-se, romance em que se narra a história de um casal de
como eu disse antes, de uma construção cultural) e amantes que planejam a morte do marido dela. O
nos permite, em última instância, identificar o con que surpreende nesse conto magistral de Cortázar
flito entre o ordinário e o extraordinário que define é que essa realidade cotidiana acaba sendo invadida
o gênero fantástico. pela esfera do mundo da ficção: na última cena, o
Assim, tanto o conto fantástico "tradicional" protagonista é assassinado por um dos personagens
quanto o "neofantástico" têm um mesmo efeito, do romance que está lendo. O efeito fantástico surge
ainda que expresso por meios diferentes: transgre dessa metalepse, dessa intersecção entre duas ordens
dir nossa percepção do real. Afinal, como adverte inconciliáveis, entre as quais, aparentemente, não
Teodosio Fernández, existe continuidade possível. Daí o sentido do título.
E é tal a confusão que o conto de Cortázar gera
[...] a aparição do fantástico não tem por que residir que, quando o leitor termina de ler, acaba olhando
na alteração por elementos estranhos de um mundo para trás por cima do ombro, por via das dúvidas.
ordenado pelas leis rigorosas da razão e da ciência. Em última instância, o que essa intersecção de níveis
Basta que se produza uma alteração do reconhecível, de ficção põe em suspenso é nossa própria realidade.
da ordem ou desordem familiares. Basta a suspeita Assim, é fundamental colocar em contato o mun
de que outra ordem secreta (ou outra desordem) do intratextual e o mundo extratextual- o horizon
possa colocar em perigo a precária estabilidade da te sociocultural do leitor - ao nos depararmos com
nossa visão do mundo.30 ficções fantásticas,
Pensemos, por exemplo, na utilização que se [.. ] já que elas se sustentam no questionamento da
.
faz do recurso da metaficção em alguns contos fan própria noção de realidade e tematizam, de modo
tásticos contemporâneos. Um bom exemplo disso muito mais radical e direto que as demais ficções lite
é "Continuidade dos parques", de Cortázar. Nesse rárias, o caráter ilusório de todas as "evidências", de
brevíssimo conto, o narrador constrói uma reali todas as "verdades" transmitidas em que o homem
dade ordinária feita de atos cotidianos e aparente- de nossa época e de nossa cultura se apoia para elabo
rar um modelo interior do mundo e situar-se nele.31
ou pomba; seu caráter fantástico só se afirmaria caso o perfil
de Beethoven continuasse ali enquanto o resto das nuvens 31 Reisz, Las ficciones fantásticas y sus relaciones con otros
seguisse com sua desintencional desordem sempiterna" (Dei tipos ficcionales, op. cit., p.l94. Ana María Barrenechea ma
cuento breve y sus alrededores, op. cit., p. 53; grifo meu). nifesta uma opinião semelhante quando afirma que "não se
30 Fernández, Lo real maravilloso de América y la literatura pode escrever contos fantásticos sem contar com um quadro
fantástica. ln: Roas, Teorías de lo fantástico, p.296-7. de referência que delimite o que é que ocorre ou não ocorre
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