Para sair do meu provincianismo temporal, para eu deixar de conceber o mundo como só nascimento e morte, mas perceber que existe uma tradição, uma cultura, um conjunto de conhecimentos que foram acumulados antes de eu vir a existir e que são necessários para a minha forma de se portar em vida, para saber lidar com situações reais e moldá-las em meu favor. Exemplo: geralmente quando estamos passando por uma situação difícil ou quando conhecemos alguém que está, nós recorremos a alguém que nos parece mais sábio para descobrir como lidar com aquela circunstância. Muitas vezes essa pessoa sábia é alguém que viveu situações semelhantes ou iguais e aparenta conhecer a forma correta de como lidar com aquela circunstância. Quando tomamos conhecimento de que essa pessoa já passou por aquilo, perguntamos: “como você lidou com isso”. Essa pessoa pode simplesmente falar o que fazer ou contar uma história para te ajudar a entender a situação. As grandes obras da literatura se assemelham muito a essa história por que nelas há experiência humana condensada. Os grandes escritores são aqueles que assimilaram e conseguiram descrever experiências difíceis de serem expressas, experiências que uma vez assimiladas podem ter o mesmo efeito que essa história que resolve o problema. O que seria essa experiência humana condensada? Bem. Uma obra de ficção pode ter personagens falsos, pode ter enredos extraordinários, mas pode haver nessas obras experiências humanas que são reais. Pensemos, por exemplo, no romance Memórias Póstumas de Brás Cubas: o Brás Cubas não existe, nada daquilo que foi narrado aconteceu; porém, as personalidades existentes naquele romance e seus dramas são reais. É precisamente isso a experiência humana condensada. O autoengano que a personagem principal comete é uma prática que está mais recorrente do que nunca no Brasil. E eu posso falar isso com tal seriedade por que em nenhum outro lugar do mundo o fenômeno do autoengano foi tão bem descrito, tão cheio de exemplos como na literatura brasileira. O que é o autoengano? O autoengano acontece precisamente quando sujeito é colocado diante das suas misérias; quando ele se depara com o ato imoral que fez, ele não confessa para si, mas justifica em favor do ato de forma a tirar toda a carga de imoralidade inerente ao ato. Pense, por exemplo, na comum situação da fofoca: o sujeito fala mal de fulano, mas quando é confrontado com alguém que denuncia o ato imoral que ele está cometendo ele responde: “não estou falando mal de ninguém, estou apenas constatando um fato”. O que esse sujeito está fazendo? Autoengano. Ele tem uma imagem dele mesmo de tamanha excelência que ele não suporta o fato de não atender às expectativas que ele tem de si mesmo. Essa mentira não serve precisamente para enganar a outra pessoa, mas para sair em resgate daquela imagem que o sujeito conserva de si mesmo. A mentira é útil, não para ludibriar alguém (o que será mera consequência), mas para manter essa autoimagem. É como que uma luta entre razão e memória.
Voltando ao tema da literatura...
Como dito: a literatura pode te ajudar a entender como ser portar perante as diversas situações que a realidade pode lhe impor. Em alguns casos, dependendo do que você está lendo, ele pode não ajudar você necessariamente, mas o seu próximo. Você pode pegar uma obra que não te ajude a entender você mesmo, mas pode entender alguma dificuldade que seu irmão, mãe, vizinho está passando. A literatura pode te dar aquilo que dá coerência para as ações deste sujeito. É como se você o estivesse enxergando a alma da pessoa, aquilo que há de mais íntimo dentro dela. Você vive aquela situação imaginativamente. Isso é a tão apregoada empatia. Você não precisou viver de fato aquela circunstância para entendê-la, mas através da imaginação e o senso das proporções você a compreende. Ela te dá os meios linguístico de como expressar situações difíceis. Muitas vezes nós atrapalhamos a nossa vida por que não damos o devido nome das coisas. Existe até uma frase célebre: “quer espantar o demónio? Fala o nome dele”. Um erro de expressão pode causar a perda de emprego, desfazer relacionamentos e inúmero outros problemas. Uma vez ouvi sobre um caso de um paciente do Dr. Ítalo Marsilli que estava quase para terminar o relacionamento, ele dizia que toda vez que chegava em casa ele brigava com a mulher; e o Dr. Ítalo pediu para ele contar como era o seu dia a dia. Quando o sujeito contou a ele, disse o doutor: olha, quando você chegar em casa você não fala com a sua mulher, com seus filhos, com ninguém. Você, primeiro, vai jantar. Um tempo depois a mesma pessoa ligou para Dr. Ítalo e disse: “doutor, estamos muito bem, nosso relacionamento está melhor do que nunca”. Isso que ele dizia do casamento, que era uma crise, era na verdade só fome. Por expressar de forma errada a situação ele quase destrói uma família. A boa literatura está à disposição para evitar esse tipo de problema. Mediante o contato com escritos que tentam expressar as situações com o máximo de precisão, você pode evitar esse tipo de situação. Por que o que é um bom escritor? É aquele sujeito que consegue descrever uma experiência com o maior grau de objetividade possível. Muitas vezes, experiências de uma dificuldade expressiva tremenda. Não tem essa de: “ah! Mas eu quis dizer isso, não aquilo”. Se ele não consegue alcançar esse alto grau de objetividade ele não deve ser tão bom assim. A literatura te ajuda a entender o que foi viver em épocas passadas. Para entender as épocas passadas não basta eu ler apenas livros de história. Eu posso muito bem ver estatísticas das grandes guerras do século 20 sem saber o que aquilo significou existencialmente para os indivíduos daquela época. Geralmente fazemos o quê? Vemos testemunhos de pessoas que viveram aquele período: textos, áudios, vídeos de pessoas. Existe uma grande diferença entre você ver números de mortos em jornais, na televisão, internet e ouvir alguém falando de uma pessoa próxima dela que está nestas estatísticas, o impacto é diferente. Exemplo: vejam a diferença de impacto em ver o número de mortos pelo COVID e ouvir alguém falando que um amigo, parente ou vizinho foi morto por esse vírus. É totalmente diferente. Mas existe um problema até mesmo nesses testemunhos: é que muitas vezes essas pessoas que estão falando não são qualificadas para expressarem as suas próprias experiências. É aí que entra os grandes escritores. Os grandes escritores conseguem dizer com mais precisão o que foram aqueles fenômenos para uma pessoa real de fato. Você consegue como que viver imaginativamente com mais proximidade o que foi aquela época. A literatura te dá esse contato do ser humano em diferentes épocas. Os grandes escritores colocam como que a humanidade diante de um espelho pelo qual se conhece o que foi ser humano nessas diferentes épocas. Nada mais correto do que aquilo que afirmava Eugen Rosenstock-Huessy: “o animal nasce, mas não pode penetrar o tempo que antecede seu próprio nascimento. Ninguém diz ao animal qual é a sua origem. Mas nós, as igrejas e tribos de tempos imemoriais, elevamos toda a humanidade acima da dependência do mero nascimento [...] Fizemos com que o homem conhecesse a sua origem, elaborando-lhe uma língua. A origem da fala humana é a fala da origem humana! Falando uma língua, o homem tornou-se e continua a tornar-se humano”.